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Os Fundamentos da Relação Afetiva

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Os Fundamentos da Relação Afetiva

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Armazém do Ipê

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Campinas

2012

Os Fundamentos da Relação Afetiva

Tradução: Rena Signer

RAPHAËLE MILJKOVITCH

Les fondations du lien amoureux

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Miljkovitch, Raphaële Os fundamentos da relação afetiva / Raphaële Miljkovitch; [tradução Rena

Signer]. – Campinas, SP: Armazém do Ipê, 2012.

Título original: Les fondations du lien amoureux.Bibliografia.

ISBN 978-85-62019-10-4

1. Comportamento de apego – Estudos longitudinais 2. Pais e filhos – Aspectos psicológicos 3. Psicanálise – Amor 4. Relações interpessoais – Aspectos psicológicos I. Título.

11-00047 CDD-152.41

Índices para catálogo sistemático:

1. Apego : Relações afetivas : Psicologia 152.41 2. Vínculo e afetividade : Psicologia 152.41

2012Impresso na Indonésia em setembro de 2012

Copyright © 2012 by Editora Autores Associados LTDA.

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Les fondations du lien amoureuxCopyright língua francesa © 2006 by Presses Universitaires de France

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A Gary e César

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Agradecimentos

Em primeiríssimo lugar, faço questão de agrade-cer a S téphanie Leblanc, que muito contribuiu à realiza-ção da pesquisa sobre a qual se baseia esta obra. Além do importante trabalho de análise das entrevistas, as discussões que tivemos foram uma fonte de emulação, que me leva a desejar que nosso trabalho em colabora-ção tenha apenas começado.

Quero também expressar minha gratidão aos meus doutorandos, e particularmente a Isabelle Géry, pela dedicação e perseverança. Suas pesquisas ajudam--me a avançar em minha linha de raciocínio, ao mesmo tempo em que se tornaram um prolongamento.

Também sou grata aos meus alunos de DEA ( Diplôme d’Études Approfondies) ou de especializa-ção, pela leitura crítica dos meus trabalhos e pelas discussões enriquecedoras, que me permitiram chegar a um trabalho melhor estruturado. Este livro não teria sido concluído sem a participação dos meus alunos do mestrado, que se defrontaram com as dificuldades da pesquisa de campo para a coleta dos dados explorados aqui.

Meu mais profundo agradecimento às pessoas que aceitaram participar da pesquisa e confiaram algumas parcelas de sua existência para constituir a essência deste livro.

Finalmente, quero registrar minha gratidão a Serge Paugam, por me oferecer a oportunidade de es-crever esta obra, encorajando-me a aprofundar um campo que me é caro.

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Sumário

Nota do editor francês xiii

Introdução xvii

Capítulo umContar com o outro 1

» Modelos para o futuro 1 » Momentos críticos no desenvolvimento do sentimento de confiança 2 » A relação do casal filtrada pela infância 11 » Reduzir os riscos de uma decepção amorosa 27 » A escolha de um compromisso 36 » Conclusão 40

Capítulo doisManter o outro junto de si 43

» Manter o vínculo durante a infância 44 » Reprodução das estratégias de apego da infância na vida a dois 57 » Inadequação das estratégias de apego da infância na vida do casal 84

Capítulo trêsTer controle na relação afetiva 89

» O nascimento de uma sensação de controle 90 » A necessidade de controle contínuo na relação parental 92 » A incapacidade de agir sobre o parente 93 » Consequências da falta de controle na idade adulta 97 » Influência da necessidade de controle na escolha de um parceiro

amoroso 111 » Conclusão 117

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Capítulo quatroAprender a se conhecer na relação com o outro 121

» A aprendizagem das emoções 122 » O encorajamento da expressão emocional 123 » Fugir das emoções 125 » A censura parental 126 » A autocensura das emoções 130 » “Fantasiar” as emoções 132 » A conscientização do adolescente 133 » Persistência das censuras parentais no casal 134 » Ressurgência de afetos em um encontro amoroso 137 » Revivescência das frustrações da infância na vida do casal 139 » Evitação das frustrações da infância na relação a dois 144 » Corrigir o passado pela relação a dois 145 » Conclusão 148

Capítulo cincoA evolução das relações com o tempo 151

» A primeira relação a dois: resquícios da infância 151 » A segunda relação a dois: diminui o efeito da infância 156 » Evolução da primeira para a segunda relação 158 » Diferenças interindividuais na disposição para mudar 161 » Síntese 181 » Conclusão 182

AnexosAnexo A: Características das pessoas entrevistadas 189

Anexo B: Limites e consequências da pesquisa 192

Anexo C: Validade de Attachment Security and Secondary Strategy Interview (ASSSI) 196

Anexo D: Perguntas de Attachment Security and Secondary Strategy Interview (ASSSI) 206

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Anexo E: Codificação de Attachment Security and Secondary Strategy Interview (ASSSI) 212

» Escalas de segurança 212 » Estratégias secundárias 218 » Escala de inibição do sistema de apego 219 » Escala de hiperativação do sistema de apego 225 » Classificações de ASSSI 231 » Quadro de codificação 233

Referências 235

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Nota do editor francês

É com grande interesse que os pesquisadores em ciências sociais descobrirão o belo livro de Raphaële Miljkovitch, da coleção “Le lien social” [O vínculo social]. Resulta de uma pesquisa inspirada pelo tra-balho do psiquiatra inglês John Bowlby e poderia ter sido publicado em uma coleção especializada em pesquisas psicológicas ou em análises psiquiátricas. Sem dúvida, teria encontrado uma excelente recepção junto aos pesquisadores e profissionais da área. No entanto, seria uma pena limitar a divulgação desta obra a um público especializado, pelas perspectivas analíticas que abre em diferentes áreas das ciências sociais.

Esta pesquisa interessará aos pesquisadores que se importam com a função da socialização do grupo familiar, a qual depende, em grande parte, da relação filial. Sabe-se que a relação entre a criança e seus pais condiciona inúmeros aprendizados. O amor pa-rental confere à criança confiança em si e segurança nos diferentes círculos sociais que encontra. Desde as pesquisas de Pierre Bourdieu sobre o habitus, os sociólogos insistem na pluralidade da herança. A transmissão não é apenas econômica, mas também cultural, no sentido do saber e dos hábitos cotidianos, e ela constitui as predisposições mais ou menos está-veis para agir ao longo de toda a vida. Mas, a herança familiar não comporta também essa parte invisível e frequentemente ignorada das primeiras experiências

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xivOs Fundamentos da Relação AfetivaRaphaële Miljkovitch

da relação afetiva? Desde a sua constituição, o vínculo filial não atua como uma marca mais ou menos durável?

Acima das questões jurídicas que envolvem a definição desse vínculo, os sociólogos, antropólogos, assim como os psicólogos, os psi-cólogos sociais e os psicanalistas, insistem na sua função socializadora e identitária. Ela contribui para o equilíbrio do indivíduo desde o seu nascimento, por lhe garantir, simultaneamente, proteção e reconheci-mento. Frequentemente, a filiação é associada à noção de apego, no sentido da relação que une dois ou mais indivíduos pela valorização da importância que atribuem uns aos outros. Hoje, sabe-se que esse apego se manifesta a partir dos 7 meses. Durante o período que se segue, as separações são fonte de angústia, pelo fato de a mãe representar uma pessoa insubstituível para a criança. O apego corresponde a um compor-tamento interativo: a criança expressa de forma inata – ou instintiva – apelos à mãe, para que ela lhe proporcione os cuidados e a atenção de que ela precisa de modo vital. Assim, pode-se falar do instinto de apego quando a criança se sente profundamente ligada à mãe e essa relação comporta uma dimensão afetiva. Essa fase de unidade simbiótica não é duradoura, pois cada um deve conquistar, progressivamente, sua própria independência. Aos poucos, o bebê deve desenvolver sua capacidade de ficar sozinho. Ele deve tomar consciência de que o amor maternal é durável e sólido, e, apesar da separação temporária, ele pode contar com essa relação intersubjetiva para satisfazer suas exigências pessoais.

A pesquisa de Raphaële Miljkovitch confirma a estreita relação entre a qualidade dos apegos vividos na primeira infância e a capacidade de estabelecer relações íntimas equilibradas e satisfatórias. Ao demons-trar que as relações amorosas dos adultos são, em parte, determinadas pelas experiências que viveram na infância, conforme tiveram afeição ou, ao contrário, insegurança, se foram abandonados ou maltratados, a autora ressalta o problema mais geral da transmissão. Ao estudar os fundamentos da relação afetiva a partir de uma grande pesquisa que desenvolveu com seus alunos, ela enriquece o conceito de herança. Depois de fechar este livro, o leitor chegará à conclusão de que os pais transmitem aos filhos, sem perceberem, uma imagem de apego durá-vel, que reaparece de modo quase inevitável nas relações amorosas na

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xvNota do editor francês

idade adulta. Raphaële Miljkovitch evita qualquer determinismo ou generalização, mas não há dúvida de que sua pesquisa deixará também sua marca no conhecimento dessa complexidade dos vínculos sociais contemporâneos.

Serge Paugam

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Introdução

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xvii

A evolução da sociedade ocidental nas últimas décadas foi acompanhada de um rearranjo da noção de casal. Antigamente, o casamento era uma verdadeira instituição, que instaurava uma estrutura, na qual se organizava a vida da família. O cimento do casal era constituído de convenções sociais: ficava-se junto por-que se estava casado e porque havia filhos. Hoje, apesar de esse tipo de preocupação ter um lugar importante na escolha de vida, o casal está mais preocupado em buscar sua satisfação pessoal. Com a explosão da taxa de divórcios, o casal não é mais considerado necessário para garantir sua descendência. A luta pela igualdade dos sexos acarretou uma maior flexibilidade dos papéis entre homens e mulheres. Financeiramente, as mulhe-res não precisam mais dos homens para sustentá-las, nem para sustentar os filhos. Quanto aos homens, sua crescente implicação na educação dos filhos tornou-os figuras parentais inteiras, cuja capacidade “materna” é suficiente para acompanhá-los até a maturidade. A partir dessas modificações sociais, a sobrevida do ca-sal é um desafio cada vez mais difícil de enfrentar e mantém-se, na imaginação de muita gente, pelo bem--estar que proporciona.

Assim, coloca-se a questão: o que determina esse bem-estar? Em um nível subjetivo, tem-se a tendência a acreditar ser essa a responsabilidade do cônjuge: se ele atender ou não às expectativas, encontra-se junto dele uma relativa felicidade. Entretanto, as diferentes trajetórias de vida levam a pensar que algumas pessoas estão mais capacitadas ou têm mais sorte do que as outras para encontrar um equilíbrio a dois. Enquanto alguns multiplicam seus fracassos sentimentais, outros parecem se relacionar de forma harmoniosa com seus parceiros. Ao examinar mais de perto, percebe-se com

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xvii iOs Fundamentos da Relação AfetivaRaphaële Miljkovitch

frequência que não só as mesmas histórias se repetem pelas relações que se sucedem, como também elas já se delineavam na infância, no contato com os pais.

O objetivo desta obra é duplo. Por um lado, trata-se de examinar o que, na infância, e particularmente na relação com os pais, influencia o indivíduo na sua maneira de ser enquanto parceiro num casal. Como as experiências precoces orientaram o adulto na sua forma de se relacionar com o outro? Em que a relação amorosa desperta a problemática originada na infância? Quais são os procedimentos desencadeados no fenômeno de repetição? Por outro lado, trata-se de avaliar até que ponto essa influência do passado é determinante nas modalidades relacionais do adulto. De que margem ele dispõe para se libertar do aprendizado precoce? Quais são os fatores de resiliência que autorizam certa liberdade de ação concomitante a uma autonomia em relação à sua história?

Há muito tempo, aceita-se a ideia de o comportamento do adulto ser influenciado pelos acontecimentos da infância. A psicanálise interessou-se pelo modo como o desenvolvimento psicossexual forma a atividade psí-quica do indivíduo, a qual determina seus atos. Pelo conceito de habitus, introduzido por Bourdieu, a sociologia estuda o processo pelo qual a forma de ser de um indivíduo decorre da incorporação de normas e práticas vei-culadas pelo seu meio social de origem. Alguns trabalhos especificamente orientados para o casal acrescentam o papel desempenhado pela infância. No âmbito da teoria do apego, fundada por John Bowlby (1978), Hazan e Shaver estabeleceram um paralelo entre o comportamento do adulto em relação ao cônjuge e o do bebê em relação à mãe1.

1 Para simplificar, preferiu-se o termo “mãe” à expressão “figura de apego”. A escolha explica-se pelo fato de a quase totalidade dos trabalhos citados nesta obra focarem-se nas mães. Apesar de se poder supor que mecanismos similares sejam observados entre um pai (ou qualquer outra figura de apego) e seu filho, convém manter a imparcialidade diante de qualquer assimilação dessas duas relações, pelas diferenças qualitativas entre elas (Miljkovitch & Pierrehumbert, 2005, pp. 115-113).

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xixIntrodução

Assim, não se pode relacionar a relação do casal à relação de apego precoce, pois os valores são outros. Para o bebê, o apego tem uma quali-dade vital; sem tutor estável, ele não pode sobreviver. Em contrapartida, o adulto dispõe de capacidades físicas e mentais para viver de maneira autônoma. A presença de um cônjuge, mesmo que melhore a qualidade de sua existência, não lhe é indispensável. Essas diferenças repercutem na natureza da ligação que se estabelece nos dois casos. Por um lado, a ligação é assimétrica, com a criança totalmente dependente do parente; por outro lado, é simétrica, pois cada parceiro desempenha um papel intercambiável. Assim, a necessidade de preservar a relação é bem mais forte para a criança do que para o adulto. Além disso, ela mostra ter uma capacidade de adaptação bem superior.

Uma outra diferença refere-se ao fato de o bebê não ter ainda de-senvolvido um modo relacional próprio quando ocorre sua relação com os pais e irá se ajustar a eles de maneira espontânea, o que não ocorre com o adulto. Este já tem uma personalidade bem estruturada, que se impõe relativamente no seu círculo social e que induz a algumas reações. A adap-tação ao parceiro é menos fácil e pode exigir um esforço para reorganizar seus hábitos. Observa-se também a diferença entre essas duas relações no nível da solidez da relação. Para o adulto, o casal não representa uma questão vital, a relação é mais precária, particularmente nas sociedades modernas, que permitem uma flexibilidade dos papéis e uma autonomia financeira individual para qualquer que seja o sexo. Definitivamente, é mais fácil separar-se de um cônjuge e substituí-lo por outro do que separar um bebê de seus pais.

Essas diferenças não devem ofuscar o fato de existir no adulto, as-sim como na criança, uma profunda motivação para se relacionar com o outro. Proponho um postulado básico no âmbito deste livro: a dinâmica amorosa do adulto, com os meios que ele aciona para estabelecer e manter uma relação, é determinada, em parte, por aquilo que aprendeu nas suas experiências precoces. Eu parto da hipótese de que inúmeras (dis)funções da relação amorosa originam-se da aprendizagem socioemocional do co-meço da vida. No início, essa aprendizagem participa de uma adaptação ao meio familiar e pode revelar-se imprópria ao contexto do casal.

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xxOs Fundamentos da Relação AfetivaRaphaële Miljkovitch

Este trabalho é uma sequência da minha obra anterior ( Miljkovitch, 2001), na qual exponho as numerosas pesquisas que documentam os mecanismos acionados na relação mãe-bebê. Elas inserem-se na teoria de Bowlby, que definiu o conceito de apego: trata-se de uma relação afetiva estável da criança com sua “figura de apego”, isto é, uma pessoa adulta que garante sua proteção. Para se desenvolver harmoniosamente, a criança sempre precisa sentir-se segura. Quando se sente ameaçada, ativa seu “sistema comportamental de apego”, ou seja, age de forma que aproxime o adulto. Desde o nascimento, o bebê dispõe de um repertório de comportamentos inatos (como o choro), cujo efeito, em geral, é chamar e mobilizar a mãe. Às vezes, essas tendências naturais não bastam para conseguir a segurança desejada, então a criança modifica a expressão do seu sistema de apego, inibindo-o ou, ao contrário, hiperativando-o, para sentir o que funciona melhor com o parente.

Nos anos de 1970, Mary Ainsworth ajustou uma situação experi-mental, destinada a avaliar o estilo de apego de bebês com 1 ano. Seu protocolo de observação consiste em submetê-los a um leve estresse, a fim de despertar o comportamento que teriam com a mãe, para acabar com sua ansiedade. Esse dispositivo, chamado Situação estranha, consis-te em separá-los um pouco do parente e colocá-los na presença de uma pessoa desconhecida. Com os dados que colheu, Ainsworth desenvolveu um sistema de classificação dos bebês. Distinguem-se os bebês “segu-ros”, que não têm de modificar seus reflexos inatos, ou seja, protestam quando há uma separação, mas param quando a mãe volta; os “ansiosos evitantes”, que inibem seu sistema de apego e não recorrem a ele; e os “ansiosos ambivalentes” (também chamados de “ansiosos resistentes”) que, ao contrário, hiperativam seu sistema de apego, deixando claro seu desconforto e sua necessidade de proximidade de forma persistente. Sur-giram também alguns bebês que não se encaixavam em nenhuma dessas categorias e apresentavam comportamentos contraditórios de aproxima-ção e fuga, assim como gestos de apreensão. Pelo fato de sua aparente incapacidade em encontrar uma estratégia coerente que lhes permitisse serem tranquilizados pela mãe, Solomon e Main qualificaram seu apego de “desorganizado e desorientado”.

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xxiIntrodução

É mais complicado mensurar o apego no adulto. É claro que há inú-meros questionários, mas eles só revelam aquilo que as pessoas querem ou acreditam a respeito de si. O Adult Attachment Interview (AAI), elabo-rado por George, Kaplan e Main (1985), permite contornar esse viés, pelo fato de não ser tanto o conteúdo do discurso que importa, mas a forma. Assim, o analista pode inferir o nível de integração de lembranças da infância e determinar o “estado de espírito” em relação ao apego2. Esse tipo de entrevista mostrou-se muito interessante para entender como a parentalidade se articula com as experiências da infância, assim como o fenômeno de transmissão intergeracional. No entanto, não permite cata-logar os atos da pessoa em caso de angústia. Se o sistema de apego de um bebê pode ser ativado artificialmente ao separá-lo por alguns instantes da mãe, com o adulto funciona de outra forma e seria necessária uma ameaça mais substancial. Além disso, para fazê-lo reagir, seria necessário que ele desconhecesse a natureza experimental da ameaça. Consequentemente, para investigar o comportamento de apego, o método mais aconselhável baseia-se em entrevistas.

Para estabelecer pontes entre as relações vividas durante a infância e as relações de casal na idade adulta, eu usei o relato retrospectivo do percurso pessoal dos participantes. Pode-se questionar o que foi realmente avaliado e quanto se pode confiar na palavra das pessoas entrevistadas. As reconstruções a posteriori do que aconteceu podem ser enviesadas e não refletir o real desenvolvimento das relações. Mesmo sem incorrer na falha de memória, a vivência do indivíduo pode levar a uma visão muito subjetiva dos fatos, sem a participação de outras pessoas que estavam presentes num determinado episódio. O objetivo da pesquisa não foi re-constituir os fatos, mas compreender a dinâmica do indivíduo por meio de suas diferentes relações. A entrevista desenvolvida para este estudo permite apreender os modelos internos operantes, isto é, o que a pessoa reteve de suas relações, a forma como as percebe. Há uma abundante li-teratura a sugerir que o que influencia uma pessoa no seu funcionamento não é tanto a natureza exata dos acontecimentos vividos, mas as repre-

2 Esta entrevista é exposta mais detalhadamente no capítulo 5.

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xxiiOs Fundamentos da Relação AfetivaRaphaële Miljkovitch

sentações que lhe ficaram (Fonagy, Steele M., Steele H., Morian & Higgit, 1991, pp. 201-218; Main, Kaplan & Cassidy, 1985, pp. 66-104; Ijzendoom, 1995, pp. 387-403). Além disso, um mesmo evento tem um significado e um impacto muito diferentes, conforme a pessoa que o vive. Por isso, preferiu-se uma apreciação subjetiva da vivência a uma avaliação mais objetiva da história pessoal dos sujeitos entrevistados.

Portanto, um primeiro objetivo da minha pesquisa foi examinar a existência de continuidade entre as relações estabelecidas em contato com os pais e aquelas mantidas com sucessivos parceiros. Eu queria ver se haveria certa constância em termos de segurança afetiva e se haveria uma tendência a reproduzir nas duas situações o mesmo tipo de compor-tamento. A entrevista concebida para este estudo visava avaliar a segu-rança sentida na relação com cada figura de apego ou companheiro e as estratégias utilizadas em seu contato. Por essa razão, a entrevista tem o nome em inglês, Attachment Security and Secondary Strategy Interview (ASSSI) (Miljkovitch, no prelo). As perguntas foram elaboradas em razão desse duplo objetivo: constatar o que a pessoa sentiu em condi-ções ansiogênicas ou de vulnerabilidade (para apreender a segurança) e o comportamento desencadeado nessas ocasiões (estratégias de apego). Evocaram-se diferentes situações consideradas ativadoras do sistema de apego, das quais algumas podem justificar um pedido de ajuda, de suporte ou de reconforto pela parte do outro. Por exemplo: separação, chegada de irmão(s) ou irmã(s), falecimento, divórcio dos pais, conflitos, brigas, indisponibilidade parental, doença, mudança das condições de vida, rea-ção diante de desconhecidos, perigo. Com exceção do que é específico na infância (por exemplo, chegada de irmãos ou irmãs), os mesmos temas foram abordados para estudar as relações do casal. O código utilizado para examinar as entrevistas está no anexo E (antecedido de uma discussão quanto à validade da entrevista no anexo C).

A comparação dos relatos dos dois períodos da vida permite locali-zar os fatores de continuidade e, ao mesmo tempo, levou à identificação dos fatores de descontinuidade. No nível individual, verificou-se que algumas pessoas apresentavam percursos mais lineares do que as outras. Realizou-se uma análise mais apurada dos dois tipos de casos, a fim de determinar o que os diferenciava e o que constituiria um impulso para

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xxii iIntrodução

desviar a trajetória inicial durante a infância. O trabalho exposto nesta obra visa apresentar resultados gerais, pelo fato de terem sido estabele-cidos estatisticamente e ilustrar os processos psicológicos identificados com casos clínicos. Estudantes de mestrado em psicologia colheram uma centena de entrevistas com pessoas de todos os horizontes3. Não houve nenhum critério de exclusão. A amostragem total compõe-se de 43 mu-lheres e 57 homens, com idades que variam de 18 a 78 anos4. Todos os níveis socioeconômicos estão representados5. Nos casos apresentados ao longo dos capítulos, estabeleceu-se (ver anexo A) a idade, o nível de for-mação, a profissão, assim como dados concernentes à situação familiar (posição na fratria, número de eventuais filhos, situação matrimonial). Cada estudante entrevistou uma pessoa adulta que não conhecia, para evitar desvios ou omissões na maneira de colocar as perguntas ou na resposta dos entrevistados. Geralmente, o entrevistado foi apresentado por um conhecido comum. Assim, apesar do distanciamento entre eles, havia um ponto de relacionamento em comum para favorecer uma rela-ção de confiança e facilitar as confidências da pessoa entrevistada. Para deixar os entrevistados à vontade e não despertar neles um sentimento de violação da intimidade, os entrevistadores tinham de lhes dizer, an-tes de começar a entrevista, que eles não eram obrigados a responder a determinadas perguntas. Também estavam cientes de que, apesar do consentimento inicial, eles poderiam desistir ou recusar que os dados

3 Ao examinar as entrevistas, verificou-se que as tendências estatísticas en-contradas a partir de 100 entrevistas corroboravam aquelas encontradas depois da análise de cerca da metade dos casos. Por isso, realizou-se uma codificação completa somente de 52 entrevistas. Assim, algumas das análises estatísticas relatadas nesta obra referem-se à totalidade dos participantes, enquanto outras se restringem a 52. Na ausência de precisão, o cálculo foi efetuado sobre o número 52; quando se trata de amostragem da totalidade, o número de participantes incluídos é preciso (N = 100).

4 Idade média: 35,6 anos; desvio padrão: 10,7 anos.5 Ensino fundamental incompleto: N = 14; ensino fundamental completo:

N = 16; ensino médio completo: N = 17; nível universitário: N = 14; com mestrado ou mais: N = 16; faltam informações sobre os demais 21 sujeitos.

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xxivOs Fundamentos da Relação AfetivaRaphaële Miljkovitch

fossem estudados. Os resultados obtidos a partir dessas entrevistas estão expostos ao longo deste livro.

O projeto deste livro foi organizado em dois eixos principais: o primeiro corresponde aos capítulos 1, 2 e 3, nos quais explico como os automatismos desenvolvidos durante a infância podem se perpetuar nas relações amorosas da vida adulta. O segundo eixo (capítulos 4 e 5) exa-mina o que o casal permite como evolução e mudança no percurso do indivíduo.

O capítulo 1 trata da questão do sentimento de confiança e a ma-neira como é elaborado a partir dos primeiros anos da vida. Mais tarde, esse sentimento tempera as relações amorosas no que concerne às in-tenções atribuídas ao companheiro e à crença do seu amor. A concepção das relações, desenvolvida no seio familiar de origem, altera a forma de perceber o parceiro. A vontade de se comprometer com ele dependerá da confiança que se tem na autenticidade e perenidade de seus sentimentos.

Além desse filtro elaborado durante a infância, o adulto tem a tendência a reproduzir comportamentos inicialmente dirigidos aos pais. Desde o começo da vida, o bebê usa estratégias para obter o máximo pos-sível de atenção e proteção dos seus familiares. É assim que ele se adapta a eles, registrando o comportamento ao qual são mais sensíveis e reativos, para garantir a segurança de que necessita. No capítulo 2, exponho como essas estratégias precoces influenciam o adulto na sua maneira de agir para encontrar a afeição na relação a dois.

Na primeira infância, pode acontecer de nenhuma estratégia fun-cionar para incitar o parente a proporcionar os cuidados apropriados, o que deixa o bebê sem nenhum domínio sobre o que lhe acontece. Para combater essa impressão de impotência, ele pode ter uma atitude punitiva ou protetora na relação adulta. Ao renegar sua própria vulnerabilidade, arrisca-se a perpetuar uma atitude controladora nas relações amorosas. Esse tópico é desenvolvido no capítulo 3.

No capítulo 4, mostra-se que, se os hábitos adquiridos em contato com os pais tendem a se perpetuar automaticamente na idade adulta sem que as pessoas percebam, a relação de casal oferece uma oportunidade de tomar consciência de determinados efeitos embutidos desde a infância. Sua emergência permite ao indivíduo conhecer-se melhor e assim se “au-

Page 25: Os Fundamentos da Relação Afetiva - autoresassociados.com.br · Ao estudar os fundamentos da relação afetiva a partir de uma grande pesquisa que desenvolveu com seus alunos, ela

xxvIntrodução

toatualizar”. Surge a possibilidade de retomar aspectos não resolvidos do seu passado, a fim de encontrar uma solução mais positiva no presente. A dinâmica amorosa é automaticamente afetada.

O capítulo 5 corresponde a uma projeção do que foi exposto ante-riormente. Enquanto os primeiros capítulos ressaltam as continuidades entre a infância e a idade adulta, este aponta os fatores de descontinuida-de. Evidentemente, seria demais achar que tudo ocorre durante a infân-cia. O contexto imediato no qual evolui o adulto também influencia seu funcionamento. A maneira de ser do companheiro, em particular, pode ter um impacto sobre o comportamento de apego que ele manifesta. Ao mesmo tempo, veremos que essa modulação do passado varia de acordo com os indivíduos, na medida em que alguns têm modalidades relacionais mais flexíveis do que outros.

Com base nos testemunhos das pessoas entrevistadas a respeito de sua própria história, este livro tem por objetivo mostrar que, se muitas coisas ocorreram na infância, o homem continua a se desenvolver na idade adulta, graças, em particular, às relações afetivas que ele constrói. Com base em uma pesquisa objetiva, mostra-se como e em que medida a infância influi na relação de casal, que pode modificar as representações adquiridas no começo da vida.