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DOUTORADO EM DESIGN Programa de Pós-graduação em Design (PPGD) DOUTORADO EM DESIGN ESCOLA DE DESIGN SÉRGIO LUCIANO DA SILVA OS FUNDAMENTOS ONTOLÓGICOS DAS RELAÇÕES ENTRE DESIGN E ARTE Belo Horizonte 2019

Os fundamentos ontológicos das relações entre design e arte

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Page 1: Os fundamentos ontológicos das relações entre design e arte

DOUTORADOE M D E S I G N

Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Design (PPGD)DOUTORADO EM DESIGN

ESCOL A DE DESIGN

SEacuteRGIO LUCIANO DA SILVA

OS FUNDAMENTOS ONTOLOacuteGICOS DAS RELACcedilOtildeES ENTRE

DESIGN E ARTE

Belo Horizonte

2019

SEacuteRGIO LUCIANO DA SILVA

OS FUNDAMENTOS ONTOLOacuteGICOS DAS RELACcedilOtildeES ENTRE

DESIGN E ARTE

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Poacutes-Gra-

duaccedilatildeo em Design da Escola de Design da Universidade

do Estado de Minas Gerais como requisito parcial para

a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Design

Aacuterea de Concentraccedilatildeo Design

Linha de Pesquisa Cultura Gestatildeo e Processos em Design

Orientador Prof Dr Dijon De Moraes

Belo Horizonte

2019

AUTORIZO A REPRODUCcedilAtildeO E DIVULGACcedilAtildeO TOTAL OU PARCIAL DESTE

TRABALHO POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETROcircNICO

PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA DESDE QUE CITADA A FONTE

Bibliotecaacuteria responsaacutevel Gilza Helena Teixeira CRB61725

S586f Silva Seacutergio Luciano da

Os fundamentos ontoloacutegicos das relaccedilotildees entre design e arte [manuscrito] Seacutergio Luciano da Silva -- 2019

224 f enc il color 31 cm

Tese (doutorado) ndash Universidade do Estado de Mina s Gerais Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Design 2019

Orientador Prof Dr Dijon de Moraes

Bibliograa f 213-224

1 Ontologia - Tese 2 Metafiacutesica 3 Epistemologia 4 Esteacutetica ndash arte 5 Comunicaccedilatildeo I Moraes Dijon de II Universidade do Estado de Minas Gerais Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Design III Tiacutetulo

CDU 68701

Para Alice e Janaiacutena

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais que transformaram seus sonhos e projetos nos meus

Agrave Alice pelas leituras atentas criacuteticas isentas e apoio incondicional

Agrave Janaiacutena e ao Thiago por continuarem acreditando

Ao Alecir por todas as horas de companheirismo e reflexotildees sobre ontologia e outras ldquometafiacutesicasrdquo

Ao Felipe pela parceria e pelas traduccedilotildees

Agrave Luciana por seu apoio e disponibilidade

Ao Claacuteudio Santos Ricardo Portilho e Vacircnia Myrrha pelas referecircncias bibliograacuteficas

Ao Professor Dijon De Moraes pelo apoio e orientaccedilatildeo inclusive nos difiacuteceis momentos finais

Ao Professor Gui Bonsiepe por gentilmente ceder o manuscrito de uma conferecircncia de sua autoria antes de sua publicaccedilatildeo

Ao Professor Seacutergio Antocircnio por toda generosidade e estiacutemulo

Agrave Professora Rita Ribeiro por insistir comigo sobre a relevacircncia de Flusser

Ao Professor Ricardo Fenati que me despertou do ldquosono dogmaacuteticordquo para a epistemologia

Agrave Professora Virginia Figueiredo que abriu meus olhos para a esteacutetica claacutessica

Ao Professor Rodrigo Duarte por me apresentar ao pensamento de Arthur Danto

Aos Professores Gustavo Arauacutejo Ana Arauacutejo e Raquel Teles Yehezkel pelos ensinamentos de grego latim e hebraico

Ao Professor Paulo Bernardo Ferreira Vaz pelas valiosas sugestotildees

Agrave Professora Angeacutelica Adverse pelas inumeraacuteveis e detalhadas sugestotildees

Ao Rodrigo Stenner pela dedicaccedilatildeo competecircncia e carinho

Aos estudantes da Escola de Design da uemg com os quais aprendi muito

Ao ppgd da Escola de Design da uemg que me acolheu desde 2009

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior ndash Brasil (CAPES) ndash Coacutedigo de Financiamento 001

Natildeo somos daqueles que soacute em meio aos livros estimulados por

livros vecircm a ter pensamentos mdash eacute nosso haacutebito pensar ao ar

livre andando saltando subindo danccedilando preferivelmente

em montes solitaacuterios ou proacuteximos ao mar onde mesmo as

trilhas se tornam pensativas

nietzsche mdash a gaia ciecircncia

RESUMO

SILVA S L Os fundamentos ontoloacutegicos das relaccedilotildees entre design e arte 2019

224 f Tese (Doutorado) ndash Escola de Design Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Design da

Universidade do Estado de Minas Gerais Belo Horizonte 2019

Esta tese aborda os fundamentos das relaccedilotildees entre design e arte investigando especi-

ficamente suas estruturas ontoloacutegicas Seu pressuposto eacute que design e arte satildeo campos

distintos e criam conceitos e objetos em categorias tambeacutem ontologicamente distintas

Aleacutem disso design e arte estabelecem interlocuccedilatildeo e conduzem para seus espaccedilos de

atuaccedilatildeo especiacutefica elementos conceituais empregados por ambos os campos cujos em-

briotildees remontam ao pensamento grego antigo O objetivo eacute explicitar tais fundamentos

compartilhados a partir da seleccedilatildeo e do estudo especiacutefico dos conceitos de ldquomiacutemesisrdquo de

ldquobelordquo versus ldquouacutetilrdquo e de ldquofim em si mesmordquo e do ldquodiscurso epidiacutecticordquo extraiacutedos da obra de

Aristoacuteteles O meacutetodo se divide em quatro etapas A primeira parte das origens platocircnicas

da cisatildeo e hierarquizaccedilatildeo da ciecircncia teacutecnica e arte contrapotildee as reflexotildees epistemoloacutegicas

de Alexandre Koyreacute Tomaacutes Maldonado Gui Bonsiepe Beat Schneider Rafael Cardoso

e Vileacutem Flusser estabelecendo as consequecircncias para o design e para a arte A segunda

apoiada nas reflexotildees de Kant Thierry de Duve Heidegger e Lacoue-Labarthe avanccedila

no acircmbito esteacutetico e ontoloacutegico ampliando a compreensatildeo dos objetos do design a partir

das obras de arte A terceira reelabora os conceitos aristoteacutelicos para o design e para a arte

contemporacircnea com o suporte teoacuterico de Arthur Danto Umberto Eco e Nietzsche A

quarta rastreia nos projetos de Philippe Starck e nas obras de Andy Warhol os conceitos

teoricamente reelaborados na etapa anterior comprovando a relevacircncia de seus funda-

mentos ontoloacutegicos na praacutetica contemporacircnea

Palavras-chave Teoria e Criacutetica do Design Ontologia Metafiacutesica Epistemologia Esteacute-

tica Comunicaccedilatildeo

ABSTRACT

SILVA S L The ontological foundations of the relations between design and art 2019

224 f Thesis (Doctorate) ndash Escola de Design Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Design

da Universidade do Estado de Minas Gerais Belo Horizonte 2019

This thesis approaches the foundations of the relations between design and art focusing

on its ontological structures Its assumption is that design and art are distinct fields and

create concepts and objects in categories ontologically distinct as well In addition de-

sign and art establish interlocution and lead to their specific spaces of action conceptual

elements employed by both fields whose embryos go back to ancient Greek thought The

objective is to expose such shared foundations on the basis of the concepts of ldquomimesisrdquo

ldquobeautifulrdquo versus ldquousefulrdquo the ldquoend in itself rdquo and the ldquoepidictic discourserdquo extracted from

the work of Aristotle The method was divided into four stages The first stage takes into

consideration the Platonic origins of the split and hierarchy of science technique and

art contrasting the epistemological reflections of Alexandre Koyreacute Tomaacutes Maldonado

Gui Bonsiepe Beat Schneider Rafael Cardoso and Vileacutem Flusser then establishing the

consequences for the design and for the art The second stage based on the reflections

of Kant Thierry de Duve Heidegger and Lacoue-Labarthe advances in the aesthetic

and ontological scope extending the understanding of the objects of the design from

the works of art The third stage reworked the Aristotelian concepts for the design and

for contemporary art with the theoretical support of Arthur Danto Umberto Eco and

Nietzsche The fourth stage investigates the projects of Philippe Starck and in the works

of Andy Warhol the concepts theoretically reworked in the previous stage proving the

relevance of its ontological foundations in contemporary practice

Key words Theory and Critique of Design Ontology Metaphysics Epistemology

Aesthetics Communication

LISTA DE ILUSTRACcedilOtildeES

Figura 1 Representaccedilatildeo de aacutereas articuladas na tese Dentro da aacuterea azul se situam

outros campos de atuaccedilatildeo da filosofia natildeo representados Ciecircncia teacutecnica e

arte natildeo estatildeo representados como aacutereas mas como objetos de estudo fonte

autor 24

Figura 2 Linha do tempo indicando desdobramento do conceito grego de poacuteiesis (pro-

duccedilatildeo) em episteacuteme (ciecircncia) e teacutekhne (arte) e posteriormente sua divisatildeo em

ciecircncia teacutecnica e arte em seus sentidos modernos fonte autor 45

Figura 3 Linha do tempo indicando os sucessivos desdobramentos do conceito de

poacuteiesis (produccedilatildeo) no periacuteodo claacutessico greco-latino fonte autor 61

Figura 4 Representaccedilatildeo das trecircs categorias de produccedilatildeo e a relaccedilatildeo das produccedilotildees huma-

nas (teacutekhne e episteacuteme) com seus fundamentos teoacutericos fonte autor 61

Figura 5 Representaccedilatildeo na teoria platocircnica do primeiro niacutevel ontoloacutegico e seu pro-

dutor o demiurgo ou artiacutefice natural fonte autor 68

Figura 6 Representaccedilatildeo na teoria platocircnica do segundo niacutevel ontoloacutegico e seu produtor

o artiacutefice humano fonte autor 69

Figura 7 Representaccedilatildeo dos trecircs niacuteveis ontoloacutegicos reunidos na hierarquia da metafiacutesica

platocircnica O artiacutefice natural e os artiacutefices humanos como o marceneiro satildeo

produtores (poieteacutes ποιητής) enquanto que os artistas como o pintor o poeta

e o ator satildeo apenas imitadores (mimeteacutes μιμητής) fonte autor 69

Figura 8 Linha do tempo indicando desdobramento do conceito grego de poacuteiesis

(produccedilatildeo) em episteacuteme (ciecircncia) e teacutekhne (arte) Apoacutes a cisatildeo entre ciecircncia

teacutecnica e arte se incorpora a tecnologia um elo de ligaccedilatildeo teoacuterico entre ciecircncia

e teacutecnica fonte autor 74

Figura 9 Linha do tempo acrescentando o design com as influecircncias que esse campo

acolheu e as conexotildees que Flusser propotildee como desdobramento de suas ati-

vidades fonte autor 96

Figura 10 Linha do tempo incluindo aleacutem da ligaccedilatildeo entre ciecircncia e natureza a proposta

de Flusser para a ligaccedilatildeo entre design e natureza fonte autor 100

Figura 11 Representaccedilatildeo das esferas da ontologia e da gnoseologia e dos movimentos

de reflexatildeo que precisamos empreender em cada um desses campos para

identificar as caracteriacutesticas dos artefatos fonte autor 107

Figura 12 Representaccedilatildeo da etapa de centralizaccedilatildeo da investigaccedilatildeo na esfera da esteacutetica

em sua relaccedilatildeo com a da gnoseologia e ontologia fonte autor 112

Figura 13 Esquema da interpretaccedilatildeo de Thierry de Duve da posiccedilotildees de Clement Green-

berg e Joseph Kosuth em relaccedilatildeo agrave arte e agrave esteacutetica fonte autor 115

Figura 14 Esquema da interpretaccedilatildeo de Thierry De Duve dos acrocircnimos act e art

criados por Ian e Elaine Baxter fonte autor 116

Figura 15 Fotografia da performance (1962) de George Maciunas para Jackson Mac

Low fonte momaorg 117

Figura 16 Fotografia da obra de Robert Rauschenberg (1953) criada apagando um de-

senho do artista Willem de Kooning fonte momaorg 117

Figura 17 Fotografia de obra sem tiacutetulo (1967) de Christine Koslov a partir de um rolo

de filme virgem A legenda na tampa da lata tem a inscriccedilatildeo ldquoTransparent

Film nordm2 ndash White 100ft 16mm ndash 1967rdquo fonte henry-mooreorg 117

Figura 18 Esquema dos obstaacuteculos a cada posiccedilatildeo act e art que as impedem de

cumprir seus objetivos plenamente fonte autor 118

Figura 19 Esquema do caso extremo cuja consequecircncia segundo Thierry de Duve pro-

veacutem das posiccedilotildees adotadas por Greenberg e Kosuth fonte autor 119

Figura 20 Esquema da antinomia do gosto kantiana fonte autor 120

Figura 21 Esquema da resoluccedilatildeo da antinomia do gosto kantiana fonte autor 120

Figura 22 Esquema da apropriaccedilatildeo e transferecircncia feita por Thierry de Duve da resolu-

ccedilatildeo da antinomia do gosto kantiana para o universo da arte contemporacircnea

fonte autor 121

Figura 23 Esquema da apropriaccedilatildeo e transferecircncia da resoluccedilatildeo da antinomia do gosto

kantiana para o design fonte autor 127

Figura 24 Representaccedilatildeo da associaccedilatildeo entre os conceitos gregos de Phyacutesis e Teacutekhne e

os conceitos heideggerianos de Terra e Mundo fonte autor 135

Figura 25 Diagramas das conexotildees entre os conceitos de criatividade criaccedilatildeo e design

As setas em ciacuterculo indicam que natildeo existe um ponto inicial ou final mas

apenas circularidade entre os conceitos fonte autor 144

Figura 26 Diagrama da separaccedilatildeo ontoloacutegica entre essecircncia e aparecircncia em Platatildeo (es-

querda) e sua indistinccedilatildeo em Aristoacuteteles (direita) que conduz a um conceito

de miacutemesis diferenciado e potencialmente capaz de abarcar o universal com

consequecircncias relevantes para a arte e o design fonte autor 148

Figura 27 Imagem ampliada da estrutura bioloacutegica de um carrapicho (esquerda) e de-

talhe do projeto de George de Mestral do Velcro para registro de patente da

invenccedilatildeo (direita) fontes designculturecombr e google patents

com 152

Figura 28 Imagem com detalhe do projeto de Leonard Duffy do New Velcro para registro

de patente da invenccedilatildeo fonte google patentscom 154

Figura 29 Linha do tempo que mostra as trecircs conexotildees que partem da phyacutesis episteacuteme

e teacutekhne possibilitando sua ligaccedilatildeo com o design na atualidade atraveacutes do

conceito de miacutemesis fonte autor 154

Figura 30 Esquema da oposiccedilatildeo entre representaccedilatildeo e reapresentaccedilatildeo conforme a criacutetica

nietzschiana ao programa euripidiano fonte autor 157

Figura 31 Esquema do Dilema de Euriacutepedes e a dificuldade segundo Danto de se en-

contrar uma definiccedilatildeo para obra de arte fonte autor 158

Figura 32 Esquema do entrelaccedilamento da miacutemesis e da contramiacutemesis com a comple-

mentaridade solucionando o dilema entre continuidade e descontinuidade

da arte com o real fonte autor 159

Figura 33 Fotografia do espremedor de frutas Juicy Salif (1990) de Philippe Starck

projetado para a empresa italiana Alessi fonte alessicom 161

Figura 34 Linha do tempo indicando o conceito de fim em si mesmo (linha 2) em um

caminho inverso ao da ldquoPonte Flusserianardquo partindo da arte em direccedilatildeo ao

design fonte autor 163

Figura 35 Fotografia de A fonte (1917) de Marcel Duchamp fonte tateorg 165

Figura 36 Esquema das origens e movimentos dos discursos aberto e persuasivo em suas

conexotildees com a arte a comunicaccedilatildeo e o design fonte autor 167

Figura 37 Fotografias da Brillo box (1964) e dos 32 quadros das latas de sopa Campbell

(1962) criados por Andy Warhol fonte momaorg 171

Figura 38 Esquema dos dois sentidos de apropriaccedilatildeo da arte e do design fonte

autor 171

Figura 39 Reproduccedilatildeo da pintura O beijo (1961) de Roy Lichtenstein fonte ima-

geduplicatorcom 176

Figura 40 Fotografia da instalaccedilatildeo Warhol (1964) Stable Gallery Nova York fonte

revista ars 177

Figura 41 Fotografias de A fonte (1917) de Marcel Duchamp (esquerda) e da Brillo Box

(1964) de Andy Warhol (direita) fontes tateorg e momaorg 185

Figura 42 Reproduccedilatildeo do quadro 200 notas de um dolar (1962) de Andy warhol

fonte sothebyscom 187

Figura 43 Fotografia do espremedor de frutas da Alessi impressa na embalagem do

produto fonte alessicom 190

Figura 44 Fotografia da espaacutetula para bolo Ceci nrsquoest pas une truelle (1998) de Philippe

Starck projetada para a Alessi fonte alessicom 193

Figura 45 Reproduccedilatildeo da pintura A traiccedilatildeo das imagens (1929) de Reneacute Magritte

fonte lacmaorg 194

Figura 46 Figura 46 Fotografia de uma das esculturas Paacutessaro no Espaccedilo (1928) de

Constantin Brancusi (esquerda) e fotografia da escova de dentes Dr Kiss

(1996) de Philippe Starck (direita) fonte momaorg

Figura 47 Esquema da possibilidade de o designer se movimentar entre ciecircncia e arte

enquanto a ponte do design se manteacutem estruturada fonte autor 196

Figura 48 Fotografia da cadeira La Marie (1998) de Philippe Starck projetada para a

empresa Kartell fonte kartellcom 197

Figura 49 Fotografia do banco WW (1990) de Philippe Starck projetado para o cineasta

Wim Wenders e produzido pela empresa Vitra fonte starckcom 203

LISTA DE FONTES NA INTERNET

alessicom Web Site Alessi lt wwwalessicom gt

designculturecombr Web Site Design Culture lt wwwdesignculturecombr gt

google patents Web Site Google Patentslt httpspatentsgooglecom gt

henri-mooreorg Web Site Henry Moore Foundation lt wwwhenry-mooreorg gt

imageduplicatorcom Web Site Image Duplicator lt wwwimageduplicatorcom gt

kartellcom Web Site Kartell companylt wwwkartellcomgt

lacmaorg Web Site Los Angeles County Museum of Artlt wwwlacmaorg gt

momaorg Web Site Museum of Modern Art lt wwwmomaorg gt

revista ars Web Site Revista Ars (ECAUSP)lt www2ecauspbrcaparshtm gt

sothebyscom Web Site Sothebyrsquoslt wwwsothebyscom gt

starckcom Web Site Phillipe Starcklt wwwstarckcom gt

tateorg Web Site Galleries Tatelt wwwtateorguk gt

SUMAacuteRIO

1 INTRODUCcedilAtildeO 16

11 Estrutura do texto 16

12 Percursos preacutevios 25

13 Questotildees norteadoras 32

2 ORIGENS E CONSEQUEcircNCIAS DA HIERARQUIZACcedilAtildeO DA CIEcircNCIA

TEacuteCNICA E ARTE 53

21 A essecircncia compartilhada de quatro conceitos gregos 54

211 Phyacutesis 54

212 Poacuteiesis 56

213 Teacutekhne 58

214 Episteacuteme 60

22 Hierarquia platocircnica cisatildeo e ruptura 62

221 A metafiacutesica impliacutecita ao tema da cidade ideal 65

222 O argumento ontoloacutegico contra a arte mimeacutetica 66

223 Desdobramentos da hierarquizaccedilatildeo do conhecimento 72

23 Design entre ciecircncia teacutecnica e arte 78

231 Afastamentos aproximaccedilotildees e interaccedilotildees 80

232 Artifiacutecios fronteiras moacuteveis e pontes 86

233 Essecircncia ontoloacutegica e epistemoloacutegica 101

3 DA ESTEacuteTICA Agrave ONTOLOGIA NA ARTE E NO DESIGN 111

31 Kant e a abordagem esteacutetica na arte e no design 113

311 Subjetividade e objetividade no territoacuterio da arte 114

312 Os conceitos de act e art 115

313 Antinomia e dilema 118

314 Uma releitura de Kant do belo agrave arte 119

315 Uma soluccedilatildeo incompleta ou a incompletude como soluccedilatildeo 121

316 Subjetividade e objetividade no territoacuterio do design 123

317 Outra releitura de Kant da arte ao design 123

318 A universalidade objetiva no design 125

319 A universalidade subjetiva no design 126

32 Heidegger e o vieacutes ontoloacutegico na arte e no design 129

321 O giro em direccedilatildeo agrave ontologia 130

322 A criacutetica a Platatildeo a arte natildeo eacute imitaccedilatildeo 132

323 Poacuteiesis como produccedilatildeo phyacutesis como terra e teacutekhne como mundo 134

324 Os trecircs modos de produccedilatildeo e sua influecircncia sobre o design 136

325 O design aleacutem da instrumentalidade e da utilidade 141

4 OS CONCEITOS ARISTOTEacuteLICOS NO DESIGN E NA ARTE 143

41 O fundamento ontoloacutegico do conceito de miacutemesis 144

411 A inversatildeo aristoteacutelica miacutemesis mediadora ativa e criativa 145

412 A alianccedila entre universalidade verdade e arte poeacutetica 147

413 As relaccedilotildees entre miacutemesis teacutekhne e phyacutesis 149

42 Deslocamento do conceito de miacutemesis e sua contribuiccedilatildeo ao design e agrave arte 150

421 A miacutemesis exoacutegena no design acreacutescimo e processo agrave natureza 151

422 A miacutemesis endoacutegena no design adaptaccedilatildeo e evoluccedilatildeo 153

423 A miacutemesis complementar na arte saiacuteda para o dilema de Euriacutepedes 155

43 Ampliaccedilatildeo das determinaccedilotildees ontoloacutegicas nas relaccedilotildees entre design e arte 159

431 Da arte ao design o conceito de ldquofim em si mesmordquo 160

432 Da arte ao design o discurso aberto e o persuasivo epidiacutectico 163

433 Do design agrave arte a metaacutefora epistemoloacutegica e os objetos sensiacuteveis 167

5 A PRODUCcedilAtildeO DE OBJETOS NO MUNDO SENSIacuteVEL 173

51 ldquoPontos focaisrdquo na arte Andy Warhol e Marcel Duchamp 175

52 ldquoPonto focalrdquo no design Philippe Starck 188

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 204

REFEREcircNCIAS 213

16

1 INTRODUCcedilAtildeO

Neste capiacutetulo a primeira seccedilatildeo Estrutura do texto explicita elementos que compotildeem

formalmente a escrita da tese como o modo de transliteraccedilatildeo de palavras de origem grega

o uso de imagens e graacuteficos e a definiccedilatildeo de alguns poucos termos de origem filosoacutefica

empregados na teoria subjacente agrave arte e ao design imprescindiacuteveis agrave compreensatildeo do

texto que os segue Em seguida os Percursos preacutevios resgatam e narram os motivos pelos

quais me debrucei haacute alguns anos sobre uma questatildeo e ainda hoje percorro os caminhos

para a sua compreensatildeo A seccedilatildeo seguinte Questotildees norteadoras apresenta e delimita tema

objetivo pressuposto hipoacutetese e demais elementos conceituais que fornecem o escopo da

tese Assim os Percursos apresentam uma narrativa de cunho pessoal na primeira pessoa

do singular e em seguida o discurso vai para o plural considerando que a tese propotildee

minhas reflexotildees em conjunto com as contribuiccedilotildees de meu orientador e de todos aqueles

que de algum modo deram suporte ao texto final

11 Estrutura do texto

Em escritos de ciecircncias humanas e sociais especialmente em reflexotildees de cunho filosoacutefico

eacute pouco comum o uso de diagramas ou ilustraccedilotildees mesmo quando o autor em se tratando

da aacuterea de esteacutetica cita uma obra de artista expondo seus detalhes A quase exclusividade

do uso das palavras eacute uma tradiccedilatildeo que garante ao escritor um controle miacutenimo sobre seu

discurso e argumentaccedilatildeo e aos potenciais leitores uma reduccedilatildeo nas possibilidades her-

menecircuticas minimizando interpretaccedilotildees duvidosas As exceccedilotildees ocorrem por exemplo

em textos de loacutegica onde o uso de diagramas tem uma funccedilatildeo correlata agrave das equaccedilotildees

em trabalhos de matemaacutetica permitindo condensar cadeias de raciociacutenio mais extensas

e apresentar uma visatildeo do todo em determinada questatildeo sem introduzir ambiguidade

Temos em conta esses fatores mas a tese se estabelece no territoacuterio do design disciplina

que tem como um de seus ramos mais proeminentes o design graacutefico e a infografia Como

defende o designer Gui Bonsiepe

17

Pode-se cair facilmente na armadilha de uma tendecircncia antivisual quando a teoria privilegia exclusivamente a linguagem ou mais ainda declara a lingua-gem como uacutenica forma epistecircmica A partir do chamado lsquogiro visualrsquo (iconic turn) nas ciecircncias que foi possibilitado pelo desenvolvimento da tecnologia digital e da informaacutetica o domiacutenio visual passou a ser reconhecido como um domiacutenio constitutivo epistemoloacutegico A pretensatildeo absolutista da linguagem como forma primordial do conhecimento vem perdendo espaccedilo embora ainda represente uma tradiccedilatildeo poderosa uma fortaleza institucional da discursivida-de Essa tradiccedilatildeo cria consideraacuteveis dificuldades para o avanccedilo da visualidade (bonsiepe 2011 p 184)

Neste sentido consideramos oportuno e optamos pelo uso de ilustraccedilotildees com caraacuteter

complementar ao texto como normalmente acontece no uso de infograacuteficos desenhos

e fotografias

Palavras de origem grega costumam ser transliteradas com grafias diversas por autores

de diferentes liacutenguas Por exemplo τέχνη aparece nas citaccedilotildees ora como teacuteckne ora como

teacutekhne e ateacute como techne Mantivemos a escolha de cada autor nas citaccedilotildees e optamos por

unificar somente a nossa grafia1

A nomenclatura associada a teorias princiacutepios e conceitos especialmente aqueles

advindos da filosofia utilizados por autores de aacutereas correlatas (apesar de estar firme-

mente estabelecida nos territoacuterios da esteacutetica e da arte) natildeo estaacute necessariamente ligada

agrave praacutetica do design No entanto com a ampliaccedilatildeo dos trabalhos teoacutericos desse campo

cada vez mais se faz presente nas suas pesquisas Poreacutem termos que derivam da filosofia

sofrem alteraccedilotildees e ganham definiccedilotildees divergentes ao serem empregados por pensadores

de diversas eacutepocas e com distintas posiccedilotildees ideoloacutegicas Assim decidimos apresentar

imediatamente uma lista com os termos e expressotildees mais recorrentes na tese para re-

duzir equiacutevocos hermenecircuticos e ambiguidades e ao mesmo tempo indicar algumas de

nossas filiaccedilotildees ideoloacutegicas dentro da filosofia do design e da arte tornando mais claros

os motivos de nossas posiccedilotildees e escolhas metodoloacutegicas

bull Epistemologia filosofia da ciecircncia teoria do conhecimento e gnoseologia mdash Joseacute

Ferrater Mora (1979) em seu Diccionario de filosofia afirma que epistemologia pode

ser entendida como sinocircnimo de teoria do conhecimento e de gnoseologia No entanto

1 Na transliteraccedilatildeo do alfabeto grego para o latino nos apoiamos na Gramaacutetica Grega de Antocircnio Freire S J (freire 1997) e no meacutetodo Hellenikaacute (brandatildeo saraiva lage 2005)

18

com a tendecircncia a se aproximar gnoseologia de teoria do conhecimento em seu

sentido de conhecimento geral a epistemologia passou a ser compreendida como

teoria do conhecimento cientiacutefico tendo como referecircncias as questotildees que provecircm

especificamente das ciecircncias No Dicionaacuterio filosoacutefico Comte-Sponville (2011) reforccedila

esta distinccedilatildeo e delimita mais os trecircs termos

[Epistemologia] eacute a parte da filosofia que versa sobre uma ou vaacuterias ciecircncias em particular e natildeo sobre o saber geral (teoria do conhecimento gnoseologia)Uma teoria do conhecimento se situaria a montante do saber ela se pergunta em que condiccedilotildees as ciecircncias satildeo possiacuteveis Uma epistemologia a jusante ela se interroga menos sobre as condiccedilotildees das ciecircncias do que sobre sua histoacuteria seus meacutetodos seus conceitos seus paradigmas Seraacute quase sempre regional ou plural (a epistemologia da matemaacutetica natildeo eacute a da fiacutesica que natildeo eacute a da biolo-gia) Eacute filosofia aplicada como quase sempre eacute poreacutem mais no terreno das ciecircncias do que no seu O epistemoacutelogo acampa em terra estrangeira (em geral eacute um cientista que se lanccedilou na filosofia ou um filoacutesofo que se interessa pelas ciecircncias) (comte-sponville 2011 p 196-197)

Na tese nos apoiamos na delimitaccedilatildeo de Comte-Sponville para assumir a epistemologia

como um campo regional inserido dentro da teoria do conhecimentognoseologia

e portanto limitado aos estudos daquelas aacutereas que se assumiram e se entendem

como ciecircncia ou derivadas dela como eacute o caso da teacutecnica E a teoria do conheci-

mentognoseologia como a aacuterea de abrangecircncia maior refletindo sobre as condiccedilotildees

das ciecircncias ou seja suas possibilidades origens e essecircncia2 Por uacuteltimo Filosofia da

2 Essa divisatildeo mdash em origem possibilidade e essecircncia mdash eacute relevante para a constituiccedilatildeo de uma teoria do design Johannes Hessen (2000) em seu livro Teoria do conhecimento apresenta essa triacuteade subdivi-dindo-a em inuacutemeras posiccedilotildees e representantes que se firmaram ao longo da histoacuteria do pensamento Assim a origem do conhecimento eacute compreendida a partir das posiccedilotildees do dogmatismo ceticismo relativismo pragmatismo e criticismo A possibilidade do conhecimento a partir do racionalismo em-pirismo intelectualismo e apriorismo E a essecircncia do conhecimento a partir do objetivismo subjeti-vismo realismo idealismo e fenomenalismo Portanto quando se faz a distinccedilatildeo entre os problemas do conhecimento em seu acircmbito geral e preacutevio agraves ciecircncias daquelas questotildees que se estabelecem no interior de ciecircncias jaacute fundadas e de outros campos de pesquisa pressupotildee-se a adesatildeo por parte dos pesquisadores a cada uma das posiccedilotildees gnoseoloacutegicas anteriores Assim por exemplo no acircmbito do design quando Maldonado (2012) refletindo sobre a teacutecnica afirma que ldquoDessauer deixa subenten-dido mdash platocircnica e aristotelicamente mdash que as formas dos objetos teacutecnicos jaacute estariam presentes em um cataacutelogo ideal das formas preexistentes E que a teacutecnica natildeo faria outra coisa a natildeo ser deixaacute-las expliacutecitasrdquo (maldonado 2012 p 153) ele claramente explora as posiccedilotildees gnoseoloacutegicas assumidas por Dessauer correlacionando-as com as suas em busca de fundamentar atraveacutes da teoria do conhe-cimento sua proacutepria epistemologia sobre a teacutecnica no design

19

ciecircncia eacute uma expressatildeo que natildeo consta como verbete nas mais de 3500 paacuteginas do

dicionaacuterio de Ferrater Mora (1979) nem no dicionaacuterio de Comte-Sponville (2011)

mas que estaacute associada agraves investigaccedilotildees acerca das estruturas das teorias cientiacuteficas

modernas e contemporacircneas como ocorre com epistemologia Apesar da natildeo expli-

citaccedilatildeo em verbete Ferrater Mora ao expor o pensamento de epistemoacutelogos como

Alexandre Koyreacute Karl Popper e Thomas Kuhn aponta a filosofia da ciecircncia como

aacuterea de atuaccedilatildeo desses estudiosos A relevacircncia dessa aacuterea aumenta uma vez que

teoacutericos do design como Tomaacutes Maldonado (2012) confirmam sua atuaccedilatildeo dentro

dela No caso de Maldonado como suas investigaccedilotildees avanccedilam em direccedilatildeo a temas

especiacuteficos da teacutecnica que nos interessam dialogando com autores como Koyreacute e

Kuhn entre outros3 esse autor inclui como aacuterea de sua atuaccedilatildeo aleacutem da filosofia

da ciecircncia a filosofia da teacutecnica de uso menos comum Na tese optamos pelo uso

de epistemologia para a maioria das situaccedilotildees mas entendemos filosofia da ciecircncia

como um sinocircnimo de epistemologia

bull Ontologia mdash Aacuterea da filosofia que estuda o ser ou os entes em sua generalidade O

historiador da filosofia Pierre Aubenque (2012) em seu livro O problema do ser em

Aristoacuteteles nos alerta para dificuldades de diversas ordens que se enfrenta quando o

tema de estudo eacute a ontologia

Porque vivemos no pensamento aristoteacutelico do ser mdash isso seria somente porque ele reflete na gramaacutetica de inspiraccedilatildeo aristoteacutelica atraveacutes da qual pensamos e falamos nossa linguagem mdash desaprendemos a perceber o que havia de sur-preendente e talvez de eternamente surpreendente na questatildeo O que eacute o ser Eacute por isso que parece interessante nos perguntarmos por que Aristoacuteteles fez essa questatildeo que natildeo eacute evidente e como chegou a fazecirc-la enquanto tal O problema do ser eacute o mais problemaacutetico dos problemas natildeo somente no sentido de que ele natildeo seraacute talvez jamais inteiramente respondido mas no sentido de que eacute jaacute um problema de saber por que noacutes nos questionamos acerca desse problema (aubenque 2012 p 22)

3 No livro Cultura sociedade e teacutecnica (2012) a lista de autores oriundos da filosofia da ciecircncia com os quais Maldonado manteacutem interlocuccedilatildeo eacute longa Entre aqueles citados por Maldonado que produziram obras em temas subsidiaacuterios da tese merecem destaque (aleacutem de Alexandre Koyreacute e Thomas Kuhn) o disciacutepulo de Karl Popper Imre Lakatos e os fiacutesicos Isaac Newton e Werner Heisenberg que tambeacutem fizeram incursotildees em teoria do conhecimento

20

Neste espiacuterito de perplexidade diante da condiccedilatildeo imanente da linguagem do pen-

samento e do ser Umberto Eco (1998) inicia o primeiro capiacutetulo do seu livro Kant

e o ornitorrinco tratando desse problema

Pascal (Fragmento 1655) percebera isso muito bem ldquoNatildeo podemos nos preparar para definir o ser sem incorrer neste absurdo porque natildeo podemos definir uma palavra sem comeccedilarmos pelo termo eacute expresso ou subentendido Entatildeo para definir o ser eacute preciso dizer eacute e assim usar o termo definido na definiccedilatildeordquo O que natildeo eacute o mesmo que dizer com Gorgia que natildeo podemos falar do ser falamos muito dele ateacute demais a natildeo ser que esta palavra maacutegica nos sirva para definir quase tudo mas natildeo seja definida por nada Em semacircntica falariacuteamos de um primitivo o mais primitivo de todos (eco 1998 p 17)

Concordando com Aubenque e Eco assumimos que eacute preciso ir aleacutem desse ldquopro-

blemardquo e falar sobre o ser No entanto a ontologia como os demais ramos da filo-

sofia chega agrave atualidade acumulando diversas variantes de significado derivadas da

trajetoacuteria histoacuterica do pensamento ocidental ao passar pelos estudiosos que vecircm se

dedicando a essa aacuterea e seus temas Assim considerando-a em seu caraacuteter mais geral

ontologia carrega o sentido de reflexatildeo e busca por compreensatildeo da dimensatildeo mais

ampla da realidade em que cada ente que a compotildee (finito ou infinito material ou

imaterial) tem sua existecircncia estabelecida definida e validada ou natildeo dependendo

do modo como cada pesquisador elabora sua teoria Por exemplo se entendermos

a arte como um ente da realidade na concepccedilatildeo platocircnica ela eacute mera imitaccedilatildeo coacute-

pia natildeo existindo enquanto um elemento essencial consequentemente natildeo sendo

legitimada na ontologia proposta por esse pensador Jaacute para a ontologia aristoteacutelica

e tambeacutem para a nossa na tese como a realidade natildeo se estabelece em separado em

um mundo das ideias o mundo sensiacutevel em que vivemos e agimos incluindo a arte

e o design tem existecircncia real ou seja tem fundamento ontoloacutegico

bull Metafiacutesica mdash Androcircnico de Rodes no seacuteculo i aC ao editar as obras de Aristoacuteteles

se deparou com uma seacuterie de livros acerca do ser e dos primeiros princiacutepios e causas

que hoje poderiam ser classificados como escritos de ontologia No entanto como

editor Androcircnico decidiu ordenar esses livros e inseri-los apoacutes o tratado sobre a fiacutesica

com o tiacutetulo de Metagrave tagrave physikaacute (depois da fiacutesica) expressatildeo que natildeo se encontra na

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obra de Aristoacuteteles4 Ocorre que em grego o antepositivo metagrave natildeo se restringe ao

significado de ldquodepois derdquo tendo outras acepccedilotildees como ldquoaleacutem derdquo Com o passar do

tempo o sentido aleacutem de foi incorporado pela tradiccedilatildeo do pensamento ao conceito

de metafiacutesica e essa aacuterea se firmou como aquela que trata dos temas que estatildeo aleacutem

da fiacutesica e das ciecircncias da natureza e tambeacutem de um modo geral dos assuntos que

ultrapassam o conhecimento cientiacutefico ou empiacuterico Uma das possibilidades de

se entender a metafiacutesica eacute consideraacute-la como uma disciplina impossiacutevel enquanto

almejando o conhecimento de uma realidade transcendente Essa eacute por exemplo a

posiccedilatildeo do empirismo (incluindo o positivismo e o neopositivismo ou positivismo

loacutegico contemporacircneo) Outra agrave qual aderimos eacute entendecirc-la natildeo como referente

a uma realidade espiritual ou divina mas como um conjunto de conceitos e prin-

ciacutepios que formam uma base natildeo empiacuterica tatildeo fundamental quanto a experiecircncia

sensiacutevel para a constituiccedilatildeo das ciecircncias e de outros campos Em ciecircncias humanas

e sociais a distinccedilatildeo entre metafiacutesica e ciecircncia talvez seja difiacutecil de se explicitar pelo

proacuteprio entrelaccedilamento dos temas que tecircm como centro de interesse o ser humano

e suas idiossincrasias Poreacutem ao se pensar de modo correlato acerca de uma ciecircncia

da natureza como a fiacutesica (tanto pelas suas caracteriacutesticas empiacutericas e matemaacuteticas

quanto pela sua precedecircncia histoacuterica em relaccedilatildeo agraves demais ciecircncias que se reflete

na evidente distinccedilatildeo morfoloacutegica dos termos originaacuterios fiacutesica e metafiacutesica) acredi-

tamos torna-se mais clara a posiccedilatildeo com a qual nos identificamos e que exploramos

na tese no acircmbito das ciecircncias humanas e sociais Assim um exemplo que aponta

para a concepccedilatildeo com a qual estamos alinhados vem do filoacutesofo da ciecircncia Edwin

Arthur Burtt (1983) em seu livro As bases metafiacutesicas da ciecircncia moderna

Newton natildeo encontrava rival como cientista mdash mas eacute possiacutevel que natildeo estivesse infenso a criacuteticas como metafiacutesico Ele tentou escrupulosamente pelo menos em seu trabalho experimental evitar a metafiacutesica Desprezava as hipoacuteteses que para ele significavam proposiccedilotildees explicativas natildeo-deduzidas imediatamente dos fenocircmenos Ao mesmo tempo seguindo seus ilustres predecessores dava ou presumia respostas definidas a questotildees fundamentais como a natureza

4 O tiacutetulo Metafiacutesica dado agrave obra de Aristoacuteteles eacute complexo e problemaacutetico Tanto que Pierre Aubenque em O problema do ser em Aristoacuteteles (2012) dedica um capiacutetulo inteiro (A ciecircncia sem nome) buscando elucidar suas origens histoacutericas

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do espaccedilo e do tempo e da mateacuteria e as relaccedilotildees do homem com os objetos de seu conhecimento e satildeo justamente essas respostas que constituem a metafiacutesica O fato de que o tratamento por ele dado a estes grandes temas mdash que se impocircs ao mundo culto pelo peso de seu prestiacutegio cientiacutefico mdash cobria-se com a roupagem do positivismo pode ter-se tornado um perigo em si mesmo Tal fato pode ter contribuiacutedo significativamente para insinuar um conjunto de ideacuteias aceitas acriticamente a respeito do mundo no cenaacuterio intelectual comum do homem moderno (burtt 1983 p 24) Itaacutelico nosso

O ldquoperigordquo da roupagem positivista de que nos fala Burtt tambeacutem foi questionado

no neopositivismo contemporacircneo por exemplo por Karl Popper e por Thomas

Kuhn ao proporem concepccedilotildees distintas da ciecircncia atual mas que natildeo abrem matildeo da

metafiacutesica Retornando agraves ciecircncias humanas e sociais compreendemos a metafiacutesica

como um vasto campo no interior da filosofia que inclui conjecturas e hipoacuteteses e

como afirma Burtt (1983 p 24) abriga tambeacutem reflexotildees sobre ldquoas relaccedilotildees do homem

com os objetos de seu conhecimentordquo no nosso caso sobre design e arte Corrobora

nossa posiccedilatildeo o questionamento do historiador da arte e do design Rafael Cardoso

(2016) agraves ideias positivistas amplamente disseminadas nos ciacuterculos da ciecircncia e da

histoacuteria da ciecircncia desde o seacuteculo xix5 e que acabaram por encontrar espaccedilo no

acircmbito de diversas ciecircncias sociais incluindo o design Conforme suas palavras no

livro Design para um mundo complexo

Ao longo do seacuteculo xx o lado criativo do design foi sistematicamente subestimado e ateacute combatido por um ideaacuterio que ansiava firmar a metodologia projetual em bases supostamente cientiacuteficas distanciando-a das artes plaacutesticas e do artesanato Tal postura reflete uma bagagem intelectual positivista bastante rasa herdada do seacuteculo xix junto com o marxismo de panfleto que alguns designers e arqui-tetos modernistas proclamavam a tiacutetulo de ideologia (cardoso 2016 p 245)

5 O epistemoacutelogo Wolgang Stegmuumlller foi preciso ao resumir a criacutetica de Thomas Kuhn agrave visatildeo positivista que passou a permear as concepccedilotildees da historia da ciecircncia no seacuteculo xix com seacuterias consequecircncias para as ciecircncias particulares ldquoAs verdadeiras raiacutezes do movimento positivista estariam segundo Kuhn em outro ponto grosseiramente falando estariam nas introduccedilotildees e nos prefaacutecios de obras de fiacutesica e de quiacutemica do seacuteculo xix Mas natildeo seriam competentes cientistas os autores dessas obras Certamente enquanto cientistas estudiosos de fenocircmenos naturais Lamentavelmente contudo esses autores tambeacutem se julgaram aptos historiadores de suas disciplinas discorrendo naqueles prefaacutecios e naque-las introduccedilotildees a respeito de aspectos da histoacuteria dos assuntos tratados mdash campo que infelizmente ignoravam por completo Assim nasceu uma errocircnea concepccedilatildeo das ciecircncias naturais vistas em sua condiccedilatildeo de manifestaccedilotildees culturais e sociais e assim surgiram os mal-entendidos a propoacutesito da histoacuteria de tais ciecircnciasrdquo (stegmuumlller 1977 v 2 p 361)

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Neste sentido eacute portanto imprescindiacutevel tambeacutem pensar conceitos caros agrave arte e

ao design como os de criaccedilatildeo e criatividade entendendo-os como pertencentes agraves

reflexotildees da metafiacutesica pois satildeo inerentes a ela

bull Esteacutetica mdash O filoacutesofo Rodrigo Duarte (2005) ao discorrer sobre a descontinuidade

das questotildees de esteacutetica em relaccedilatildeo a de outros temas recorda que essa disciplina

nasceu recentemente no seacuteculo xviii Conforme suas palavras

Mesmo considerando que ao longo da histoacuteria as discussotildees esteacuteticas natildeo te-nham tido a mesma continuidade que as eacuteticas ou metafiacutesicas tambeacutem nesse acircmbito haacute questotildees colocadas por Platatildeo e Aristoacuteteles como o tema da miacutemesis por exemplo que ateacute hoje natildeo perderam a relevacircncia sendo mesmo recorrentes atraveacutes dos seacuteculos Quando menciono a descontinuidade na esteacutetica tenho em mente que com o referido nome essa disciplina filosoacutefica eacute um produto tipicamente moderno tendo aparecido pela primeira vez na obra homocircnima de Alexander von Baumgarten de 1750 (duarte 2005 p 377)

Se para Baumgarten o problema da esteacutetica claacutessica se circunscreve ao problema do

belo para Comte-Sponville (2011) a esteacutetica contemporacircnea recoloca a questatildeo em

outro contexto e com elementos diversos

ldquoEsteacutetica mdash O estudo ou a teoria do belo Considera-se habitualmente que eacute muito mais uma parte da filosofia do que das Belas-Artes Eacute justo O conceito de belo natildeo eacute belo O conceito de obra de arte natildeo eacute uma obra de arte Eacute por isso que os artistas desconfiam dos esteticistas que tomam o belo por um pensamentordquo (comte-sponville 2011 p 213)

Quanto agrave nossa posiccedilatildeo no desenvolvimento da tese os temas de esteacutetica e nossos

interesses vatildeo aleacutem da questatildeo do belo natildeo somente porque a arte contemporacircnea

ultrapassou sobremaneira esse referencial claacutessico mas porque as proposiccedilotildees esteacuteticas

dizem respeito tambeacutem ao campo do design

Tendo como referecircncia essa lista terminoloacutegica a seguir na figura 1 apresentamos

uma ordenaccedilatildeo e hierarquizaccedilatildeo de algumas das aacutereas da filosofia que seratildeo tematizadas

na tese O graacutefico inclui trecircs objetos de estudo dessas aacutereas mdash ciecircncia teacutecnica e arte mdash mas

natildeo propriamente o design A natildeo explicitaccedilatildeo do design se deve como veremos a certa

indeterminaccedilatildeo desse campo que no estaacutegio atual de seu desenvolvimento tanto pode

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ser abordado como objeto de estudo por qualquer das disciplinas filosoacuteficas do graacutefico

quanto pode ser entendido como pertencendo agrave ciecircncia agrave teacutecnica e agrave arte

Ressaltamos que o graacutefico representa o nosso entendimento e obviamente existem

muitas outras ordenaccedilotildees6 estabelecidas Entre essas classificaccedilotildees encontram-se aque-

las que eliminam aacutereas apresentadas no graacutefico (como a dos empiristas que excluem a

6 As divergecircncias na classificaccedilatildeo das aacutereas da filosofia eacute tatildeo antiga quanto a disciplina De autor para autor somam-se a essas diferentes ordenaccedilotildees o problema dos significados da terminologia adota-dos por cada estudioso gerando inuacutemeras variantes Tal situaccedilatildeo se agrava quando esse arcabouccedilo eacute conduzido para outros campos como o design No entanto a filosofia diversamente de outras aacutereas do conhecimento sempre retorna agraves mesmas questotildees mdash por sua proacutepria escolha e decisatildeo que eacute a de primeiramente problematizar mdash e seu vocabulaacuterio necessitar ser enriquecido enquanto ela estabelece suas proposiccedilotildees Assim novas divisotildees e tambeacutem acepccedilotildees satildeo bem-vindas a esse campo como ocorre em um dicionaacuterio A exemplo disso o dicionaacuterio Ferrater Mora inicia o verbete filosofia afirmando que ldquoentre os problemas que se colocam com relaccedilatildeo agrave filosofia estatildeo (i) o do termo lsquofilosofiarsquo (ii) o da origem da filosofia (iii) o da sua significaccedilatildeo e da divisatildeo da filosofia em diversas disciplinas Desses problemas (iii) eacute o mais discutido e o que ocuparaacute a maior parte do presente verbeterdquo (ferrater mora 1987 v 2 p 1175-1176) Itaacutelico nosso traduccedilatildeo nossa

FILOSOFIA

METAFIacuteSICA

ESTEacuteTICA

ONTOLOGIA

TEORIA

DO CONHECIMENTOGNOSEOLOGIA

EPIST

EMOLO

GIAFILOSOFIA DA CIEcircNCIA

CIEcircNCIAamp

TEacuteCNICAARTE

O SER EOS ENTES EM GERAL

Figura 1 Representaccedilatildeo de aacutereas articuladas na tese Dentro da aacuterea azul se situam outros campos de atuaccedilatildeo da filosofia natildeo representados Ciecircncia teacutecnica e arte natildeo estatildeo representados como aacutereas mas como objetos de estudo fonte autor

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metafiacutesica) ou aquelas que constroem uma hierarquizaccedilatildeo diferente (como a proposta

por Heidegger que retira a ontologia do interior da metafiacutesica e opotildee radicalmente essas

duas aacutereas) De qualquer modo a siacutentese da lista anterior disposta na figura 1 tem seus

propoacutesitos busca esclarecer ao leitor uma hierarquia e um espectro de aacutereas com os quais

identificamos os temas da tese e contribui como uma espeacutecie de fio condutor na demar-

caccedilatildeo do caminho enquanto nos movemos no interior dos capiacutetulos

Uma uacuteltima ressalva deve ser feita com relaccedilatildeo agrave escrita da tese No periacuteodo de sua

elaboraccedilatildeo algumas partes foram apresentadas em congressos e outras submetidas a

perioacutedicos na forma de artigos o que naturalmente produziu criacuteticas ao nosso trabalho

tanto por parte de avaliadores quanto de outros pesquisadores Parte dessas criacuteticas foi

respondida com correccedilotildees de rumo e ajustes no texto Outras pelo seu caraacuteter mais espe-

ciacutefico foram incorporadas na forma de perguntas colocadas por interlocutores hipoteacuteti-

cos e potenciais uma vez que infelizmente na eacutepoca natildeo os pudemos identificar Nesse

sentido tais interlocutores natildeo pretendem ter funccedilatildeo retoacuterica no texto mas assumem

seu papel de questionar nossas posiccedilotildees os quais procuramos responder

12 Percursos preacutevios

No ano de 2005 apoacutes a conclusatildeo de minha especializaccedilatildeo em teoria do conhecimento

com um tema em Descartes na Universidade Federal de Minas Gerais tendo compreen-

dido as consequecircncias problemaacuteticas tanto da visatildeo mecanicista do mundo proposta

pelos racionalistas quanto pela sua contraparte empirista busquei concepccedilotildees diversas

e alternativas Naquele momento voltei minha atenccedilatildeo para as conexotildees existentes entre

ciecircncia teacutecnica criaccedilatildeo e criatividade e elegi o design e a arte como uma nova direccedilatildeo

de trabalho Meus primeiros estudos em design ligavam temas da escrita e da tipografia

com projetos que eu implementava para o mercado editorial e se concretizaram tambeacutem

na dissertaccedilatildeo de mestrado na Escola de Design da Universidade do Estado de Minas

Gerais Paralelamente a esses temas especiacuteficos do design graacutefico e da gnoseologia (aacuterea

preferencial desde minha graduaccedilatildeo) direcionei parte do meu tempo para pesquisas no

campo da esteacutetica claacutessica um territoacuterio naquele momento por mim ainda natildeo explorado

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Assim o primeiro passo foi retornar ao meu departamento de origem e cursar uma

disciplina sobre a Poeacutetica de Aristoacuteteles texto claacutessico cuja leitura eacute obrigatoacuteria em es-

tudos de esteacutetica e cujo autor eu jaacute conhecia de pesquisas anteriores voltadas agrave teoria do

conhecimento e agrave ontologia Uma pergunta me movia mas soacute alcanccedilou uma formulaccedilatildeo

mais clara alguns anos depois em quais tipos de fundamentos eacute possiacutevel compreender as

relaccedilotildees entre design e arte

A decisatildeo de frequentar disciplinas isoladas em esteacutetica e filosofia da arte proporcio-

nou-me o alargamento da visatildeo sobre essa aacuterea Aleacutem disso levou-me ao conviacutevio com

pesquisadores de belas-artes comunicaccedilatildeo letras ciecircncias sociais histoacuteria juntamente

com os originaacuterios da filosofia Como consequecircncia forneceu-me campo feacutertil para a

abordagem e o debate de questotildees que se entrelaccedilam ampliando as possibilidades de

reflexatildeo e produzindo discussotildees com esses pesquisadores elementos essenciais para a

elaboraccedilatildeo de um tema comparativo como o meu

O contato com as reflexotildees de Vileacutem Flusser um caso raro de filoacutesofo que leva o de-

bate para o interior do design natildeo somente acrescentou controveacutersias agraves discussotildees mas

tambeacutem indicou pontos em comum com o meu tema Naquele momento a comunidade

acadecircmica voltava sua atenccedilatildeo para esse autor creio que em parte devido agrave publicaccedilatildeo de

algumas de suas obras ateacute entatildeo ineacuteditas que colocam em pauta filosofia design arte e

comunicaccedilatildeo Seu livro poacutestumo O mundo codificado por uma filosofia do design e da

comunicaccedilatildeo de 2007 revela no proacuteprio tiacutetulo essa conexatildeo e torna-se no meu entendi-

mento uma provocaccedilatildeo agrave filosofia no sentido de desafiaacute-la a pensar questotildees fora de um

confortaacutevel ciacuterculo de conhecimento jaacute estabelecido Outro exemplo eacute a sua conferecircncia

Criaccedilatildeo cientiacutefica e artiacutestica (1982) que apesar de localizar a cisatildeo entre arte e ciecircncia na

modernidade (periacuteodo que considero muito distante no tempo em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo

de uma das minhas hipoacuteteses) reforccedilou a crenccedila no valor da problematizaccedilatildeo da sepa-

raccedilatildeo entre esses dois campos

Como desdobramento dessas leituras cheguei ateacute Rafael Cardoso em seu artigo

Design Cultura material e o fetichismo dos objetos (1998) Cardoso historiador da arte

e do design organiza e prefacia O mundo codificado de Flusser (2005) Ao investigar um

pouco mais encontrei aleacutem de algumas concepccedilotildees concordantes entre esses dois autores

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uma questatildeo relevante para o encaminhamento da tese uma controveacutersia natildeo expliacutecita

que os coloca em posiccedilotildees ontologicamente distintas em relaccedilatildeo ao ato de projetar do

design Neste sentido independentemente das discordacircncias que tenho em relaccedilatildeo agraves

posiccedilotildees de Flusser foi um estiacutemulo encontrar um filoacutesofo disposto a especular sobre o

design colocando esse campo em um lugar de destaque na reflexatildeo teoacuterica e natildeo apenas

no acircmbito da produccedilatildeo

Somou-se a isso a defesa que o teoacuterico do design Bernhard Buumlrdek (2006) faz da filo-

sofia credenciando-a como um dos instrumentos a serem empregados na constituiccedilatildeo de

fundamentos do design Esses autores fortaleceram minha decisatildeo de abordar o problema

das relaccedilotildees entre design e arte com o auxiacutelio de conceitos filosoacuteficos

Uma vez que minha atenccedilatildeo natildeo se restringia ao campo artiacutestico ou do design mas

se concentrava nas bases das relaccedilotildees entre design e arte cursei outras disciplinas que

pudessem contribuir para o entendimento das diferenccedilas entre objetos artiacutesticos e demais

objetos da produccedilatildeo humana As reflexotildees sobre esteacutetica e filosofia da arte em Arthur

Danto cumpriram essa funccedilatildeo na medida em que esse autor em busca da compreensatildeo

do universo da arte contrapotildee objetos de arte a outros objetos como os artefatos e a

atividade de criaccedilatildeo dos artistas a outras atividades Nas suas palavras

Creio que subsistem perplexidades anaacutelogas na anaacuteloga teoria da arte segundo a qual um objeto material (ou artefato) eacute uma obra de arte quando o arcabou-ccedilo institucional do mundo da arte assim o considera A teoria institucional da arte natildeo explica embora permita justificar por que a Fonte de Duchamp passou de mera coisa a obra de arte por que aquele urinol especiacutefico mereceu tatildeo impressionante promoccedilatildeo enquanto outros urinoacuteis obviamente idecircnticos a ele continuaram relegados a uma categoria ontologicamente degradada[7] A teoria deixa ainda em aberto o problema de outros objetos indiscerniacuteveis dos quais um eacute uma obra de arte e o outro natildeo (danto 2005 p 39)

Talvez pelo fato de ter se envolvido anteriormente em questotildees de filosofia analiacutetica

o estilo dialeacutetico como Danto empreende suas anaacutelises esteacuteticas especialmente em seu

livro A transfiguraccedilatildeo do lugar-comum uma filosofia da arte (2005) aleacutem de ser o gatilho

7 Como veremos no capiacutetulo 3 Heidegger natildeo compartilha essa ideia de rebaixamento ontoloacutegico dos demais objetos em relaccedilatildeo agrave arte Ao contraacuterio de Danto para ele a arte eacute essencial para ampliar a compreensatildeo dos chamados objetos utilitaacuterios ou utensiacutelios

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para investigaccedilotildees subsequentes contribuiu para assegurar-me de assumir um pressuposto

ontoloacutegico na pesquisa sem perder de vista os fundamentos gnoseoloacutegicos adquiridos an-

teriormente Nessa trajetoacuteria busquei outros autores que possibilitassem pensar elementos

relacionais ao design e agrave arte na mesma clivagem

Reler a Obra aberta (1988) de Umberto Eco com novos objetivos em mente e um

novo olhar me fez avanccedilar na compreensatildeo de uma das categorias de discursos persuasivos

elaborados por Aristoacuteteles (o epidiacutectico) que se mostrou potencialmente feacutertil para o an-

damento da pesquisa Ao mesmo tempo tal leitura despertou-me para uma convergecircncia

teoacuterica e conceitual diversos estudiosos (entre eles Eco e Danto) ao refletirem sobre os

discursos na comunicaccedilatildeo e as formas de expressatildeo da arte da ciecircncia ou de campos de

algum modo a eles relacionados invariavelmente retornam ao pensamento aristoteacutelico

seja de forma criacutetica ou como fundamento e apoio agraves suas investigaccedilotildees

Assim quando em 2007 cheguei a uma primeira seleccedilatildeo das obras de Aristoacuteteles jaacute

estava orientado para o tema dos discursos aristoteacutelicos assim como para o conceito de

miacutemesis (estudado anteriormente na obra A poeacutetica) entendendo-os como relevantes

para a abordar alguns dos fundamentos das relaccedilotildees entre design e arte Tal recorte

contemplado em duas obras A poeacutetica (1987) e A retoacuterica (1964) foi ampliado em 2010

incluindo A poliacutetica (1986) e A fiacutesica (2009) Essas obras tambeacutem foram essenciais para

a compreensatildeo do que Umberto Eco nomeia como discurso aberto em contraposiccedilatildeo ao

discurso persuasivo em comunicaccedilatildeo

Aleacutem disso A poeacutetica e A fiacutesica forneceram as bases para o entendimento do conceito

aristoteacutelico de miacutemesis um dos elementos centrais na tese A fiacutesica em especial apresenta

o conceito de miacutemesis atrelado aos conceitos gregos de natureza (phyacutesis) e de arte (teacutekh-

ne) Nessa sequecircncia de conexotildees pude compreender como esses trecircs conceitos estatildeo

subsumidos ao conceito mais geral de produccedilatildeocriaccedilatildeo (poacuteiesis) que eacute determinante

para saber como os gregos entendiam as produccedilotildees humanas Mas nesse aspecto o que

eacute mais relevante para o tema e que tambeacutem se encontra no livro A fiacutesica satildeo aquelas

produccedilotildees que se constituem a partir de princiacutepios que estabelecem natildeo um fazer mas

um saber fazer uma teacutekhne dos quais entendo que o design eacute um dos herdeiros tardios

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A compreensatildeo dos fundamentos dessas produccedilotildees se completou com a anaacutelise que

Aristoacuteteles procede na obra A poliacutetica8 sobre as atividades humanas onde ele apresenta a

distinccedilatildeo nos conceitos de coisas uacuteteis coisas belas e de fim em si mesmo Esses conceitos

compotildeem o nuacutecleo da reflexatildeo acerca de caracteriacutesticas distintivas dos objetos de design

e dos objetos artiacutesticos

A partir dessas pesquisas identifiquei um distanciamento entre meus estudos de teoria

do conhecimento e de esteacutetica Essa falta de articulaccedilatildeo entre aacutereas soacute foi compreendida

quando em 2012 pude investigar pensadores alijados da tradiccedilatildeo epistemoloacutegica e criacuteticos

dela como Friedrich Nietzsche e Martin Heidegger Deste modo em um niacutevel subsidiaacuterio

A origem da obra de arte (2004) e A questatildeo da teacutecnica (2007) de Heidegger e O nascimento

da trageacutedia (1992) de Nietzsche contribuem de forma decisiva para a compreensatildeo do

momento histoacuterico da cisatildeo entre ciecircncia e arte no mundo grego Aleacutem disso concorrem

para o entendimento de conceitos gregos fundamentais como o de poacuteiesis phyacutesis episteacuteme

e teacutekhne em interpretaccedilotildees criacuteticas e opostas agrave visatildeo que a epistemologia tradicional tem

dos conceitos contemporacircneos de ciecircncia teacutecnica e arte

Com os estudos que efetuei sobre esses dois pensadores a partir do embate de

concepccedilotildees antinocircmicas pude assegurar-me de uma proposta de mediaccedilatildeo como soluccedilatildeo

de contradiccedilotildees ligadas por exemplo agrave objetividade e subjetividade de campos como o

design e a arte no capiacutetulo 3

Na cadeia de conexotildees retomei tambeacutem um livro de leitura bastante anterior Lingua-

gem e mito (1992) de Ernst Cassirer que fechou o ciacuterculo no diaacutelogo com esses autores

Com isso estabeleci reflexotildees sobre o mito de Prometeu enquanto arqueacutetipo da ciecircncia

e da teacutecnica e o conceito de mediaccedilatildeo como possibilidade de soluccedilatildeo de antinomias que

surgiram ao longo das investigaccedilotildees

Tambeacutem me apoiei em Cassirer na obra Determinism and indeterminism in modern

physics historical and systematic studies of the problem of causality (1956) utilizando sua

8 Do mesmo modo que as questotildees e os conceitos se entrelaccedilam no pensamento antigo as obras claacutessicas natildeo tecircm uma temaacutetica claramente delimitada como passa a ocorrer na modernidade Deste modo encontra-se por exemplo em uma obra com o tiacutetulo de A poliacutetica aleacutem dos temas proacuteprios ao nome questotildees que hoje seriam classificadas dentro da esteacutetica Esse natildeo eacute um procedimento exclusivo de Aristoacuteteles Platatildeo tem um dos momentos cruciais da sua criacutetica ontoloacutegica agrave arte mimeacutetica em sua obra A repuacuteblica

30

interpretaccedilatildeo dos princiacutepios de complementaridade indeterminaccedilatildeo e causalidade na

fiacutesica quacircntica Este autor contribui tanto ao entendimento do conceito de ldquometaacutefora

epistemoloacutegicardquo de Eco aplicada ao mundo da arte mdash em especial a arte contemporacircnea

e as conexotildees que Eco faz com a fiacutesica quacircntica mdash bem como subsidia as minhas apro-

priaccedilotildees e criacuteticas a esses conceitos no design

Por indicaccedilatildeo de meu orientador que identificou a estreita relaccedilatildeo entre os temas da

filosofia da teacutecnica e do design com as reflexotildees de Tomaacutes Maldonado pude acrescentar

autores e temas que subsidiam as minhas consideraccedilotildees sobre as distinccedilotildees entre ciecircncia

teacutecnica arte e design Neste sentido os capiacutetulos Pensar a teacutecnica hoje A ldquoidade projetualrdquo

e Daniel Defoe e Os oacuteculos levados a seacuterio do livro Cultura sociedade e teacutecnica trazem agrave tona

o debate de temas proacuteprios do design que Maldonado (2012) explora em profundidade

Ao construir o quadro geral de autores e temas percebi que o retorno a Aristoacuteteles

estava claramente vinculado a Platatildeo Natildeo era possiacutevel construir os argumentos em tor-

no das minhas posiccedilotildees sem me referir de algum modo agraves concepccedilotildees platocircnicas Essa

necessidade se deu por pelo menos dois motivos

Em primeiro lugar os autores centrais para a constituiccedilatildeo do arcabouccedilo da tese re-

tornam expliacutecita ou implicitamente a Platatildeo Aristoacuteteles trata de forma oposta e criacutetica a

seu mestre os conceitos de arte e de miacutemesis que me interessam Nietzsche e Heidegger

mesmo de modo distinto tambeacutem se insurgem contra Platatildeo e a tradiccedilatildeo ocidental esta-

belecida em torno da concepccedilatildeo de ciecircncia teacutecnica e arte em certo sentido derivada das

influecircncias teoacutericas desse pensador Desses embates extraiacute elementos para compreender

natildeo somente a cisatildeo mas tambeacutem a hierarquizaccedilatildeo entre campos do saber que manti-

nham uma equivalecircncia na antiguidade preacute-platocircnica Na esteira desses autores tambeacutem

se direcionam Eco e Danto tendo em Platatildeo o catalizador inicial de questotildees que movem

o pensamento no Ocidente

Em segundo talvez o mais relevante motivo se as preocupaccedilotildees de Platatildeo satildeo de

ordem gnoseoloacutegica o tratamento que ele oferece para distinguir e hierarquizar ciecircncia

teacutecnica e arte eacute de caraacuteter ontoloacutegico Sua obra A repuacuteblica (1987) mdash especialmente o livro

x mdash traz uma criacutetica radical agrave arte mimeacutetica natildeo sem razatildeo conhecida como a Criacutetica

ontoloacutegica Essa abordagem inevitavelmente obriga aqueles que discordam ou natildeo de

Platatildeo a discutirem a questatildeo passando de algum modo pelo crivo ontoloacutegico

31

Quanto a mim jaacute estava persuadido da relevacircncia de uma abordagem que leva em

conta o problema do ser quando investiguei O princiacutepio de causalidade e a prova ontoloacutegica

da existecircncia de Deus em Descartes Mas entre esse estudo realizado haacute mais de 20 anos e

uma trajetoacuteria que culminaria no tema de doutorado soacute me tornei plenamente consciente

da relevacircncia da ontologia em minhas investigaccedilotildees quando o design e a arte se uniram

em um tema de pesquisa Percebi entatildeo seus desdobramentos expliacutecitos ou impliacutecitos em

trabalhos de autores contemporacircneos como Heidegger Danto e Flusser

Ao longo desse percurso em diversos momentos surpreendi-me com algumas con-

tradiccedilotildees A contribuiccedilatildeo de Kant um filoacutesofo das mediaccedilotildees que dirige sua atenccedilatildeo para

antinomias e paradoxos e de seu leitor e interprete contemporacircneo Thierry de Duve

(com suas anaacutelises sobre a guinada na arte contemporacircnea a partir de Marcel Duchamp)

foi determinante para eu natildeo desistir dessa empreitada complexa e guiou-me no caminho

que ultrapassa os limites da esteacutetica e da gnoseologia

Durante o processo de recorte e interconexatildeo entre autores e temas uma uacuteltima

demanda se fez presente ampliar a identificaccedilatildeo dos conceitos teoricamente reelaborados

nos processos do design e na praacutetica artiacutestica No caso da arte o caminho se descortinou

rapidamente uma vez que as reflexotildees de Arthur Danto inserem a Pop-Art como

protagonista Dentro deste contexto Danto elege Andy Warhol como uma de suas

principais referecircncias nas discussotildees sobre arte contemporacircnea Ao ler uma citaccedilatildeo

do escritor Edmund White em um ensaio de Danto tive a certeza de que Warhol natildeo

poderia deixar de ser incluiacutedo

Andy tomou todas as definiccedilotildees concebiacuteveis da palavra arte para desafiaacute-la A arte revela o traccedilo da matildeo do artista Andy optou pela serigrafia Um trabalho de arte eacute um objeto uacutenico Andy surgiu com os muacuteltiplos Um pintor pinta Andy fez cinema A arte eacute divorciada do comercial e do utilitaacuterio Andy se especiali-zou nas latas de sopa Campbell e Notas de Doacutelar A pintura pode ser definida em contraste com a fotografia Andy recicla meras fotografias Um trabalho de arte eacute o que um artista assina prova do seu trabalho criativo de suas intenccedilotildees Andy assinava qualquer objeto (danto 2001 p 106)

Warhol aleacutem de artista e um dos iacutecones da Pop-Art tambeacutem trabalhou no acircmbito

da publicidade e do design e suas obras de arte tecircm a contribuiccedilatildeo e a interseccedilatildeo desses

campos Essa conexatildeo DantondashPop-ArtndashWarhol foi oportuna para o momento de colocar

32

a prova no mundo sensiacutevel a tese e o ensaio O filoacutesofo como Andy Warhol (2001) junta-

mente com os livros A filosofia de Andy Warhol (2010) e Popism de Andy Warhol (2010)

deram suporte a esta etapa Para contemplar o design nesse recorte optei por Philippe

Starck Minha intenccedilatildeo foi destacar como no caso da arte um designer reconhecido pelo

conjunto de sua produccedilatildeo que bordeja segundo criacuteticos o universo da arte Os livros

homocircnimos Philippe Starck de Judith Carmel-Arthur (2000) e de Cristina Morozzi

(2012) foram referecircncias em que me apoiei

Essa trajetoacuteria envolve diversos autores que tecircm espectros ideoloacutegicos distintos

Nesse sentido me inspirei na habilidade de Danto e Eco em construir seus raciociacutenios

percorrendo autores e temas na histoacuteria do pensamento Minha intenccedilatildeo eacute balizar cada

uma das contribuiccedilotildees de todos esses autores entendendo os conceitos e princiacutepios

dos quais me aproprio e que uma vez adaptados ou alterados para o propoacutesito da tese

proporcionam parte da base para o percurso empreendido

13 Questotildees norteadoras

As relaccedilotildees que diversos campos cientiacuteficos e tecnoloacutegicos tecircm estabelecido entre si

tornam-se cada vez mais objeto de reflexatildeo de pesquisadores que atuam nos territoacuterios

mais especiacuteficos da epistemologia ou naqueles de acircmbito mais geral da teoria do conhe-

cimento Esses estudiosos apoiando-se na metafiacutesica ou recorrendo agrave ontologia buscam

compreensatildeo dos fundamentos dessas relaccedilotildees e em domiacutenios especiacuteficos podem reavaliar

os princiacutepios e as metas que orientam o avanccedilo do saber Se aacutereas como as das matemaacuteticas

ainda se mantecircm ou acreditam se manter em certa medida imunes agraves influecircncias de ou-

tras o mesmo natildeo ocorre com as ciecircncias humanas sociais sociais aplicadas e ateacute com as

ciecircncias naturais e fiacutesicas Quando se trata de analisar as relaccedilotildees e interlocuccedilotildees de dois

ou mais campos cientiacuteficos quaisquer tal tarefa por mais complexa que seja encontra ao

seu dispor elementos estruturais desses campos jaacute secularmente elaborados Assim se for

necessaacuterio recuar ateacute essas bases ainda se atua com aacutereas do conhecimento plenamente

33

estabelecidas e com delimitaccedilatildeo teoacuterica experimental e pragmaacutetica que as suportam o

que minimamente orienta o trabalho do pesquisador

No entanto eacute necessaacuterio refletir sobre as bases dessas relaccedilotildees quando as mesmas

envolvem aacutereas que natildeo concentram seus interesses em elaboraccedilotildees de caraacuteter cientiacutefico

ou na delimitaccedilatildeo das suas fronteiras de atuaccedilatildeo como ocorre com a arte Eacute preciso

tambeacutem o mesmo cuidado com campos que ainda estatildeo constituindo seus fundamentos

teoacutericos como o design

O design enquanto um campo que emerge das ciecircncias sociais aplicadas tem ao seu

dispor e pode se apropriar dos subsiacutedios conceituais provenientes da comunicaccedilatildeo da

sociologia e da filosofia bem como dos avanccedilos tecnoloacutegicos das diversas engenharias e da

ciberneacutetica Poreacutem ainda carece mdash em parte por sua constituiccedilatildeo histoacuterica relativamente

recente e talvez pela constante movimentaccedilatildeo de suas fronteiras de atuaccedilatildeo mdash de um corpo

organizado coerente e delimitado de fundamentos assim como de uma definiccedilatildeo unifi-

cada de seu conceito enquanto aacuterea Conforme afirma o teoacuterico e designer Gui Bonsiepe

Simultaneamente emerge a contradiccedilatildeo entre a difusatildeo do termo design e os limites da teorizaccedilatildeo do fenocircmeno O design eacute hoje um fenocircmeno teoricamente inexplorado apesar de achar-se difundida sua presenccedila na vida cotidiana e na economia Como se explica esta falta de teoria Evitando dar uma resposta simplista se pode sustentar que existe uma correlaccedilatildeo entre a fragilidade do discurso projetual e a carecircncia de uma teoria convincente do design O design eacute ateacute agora um domiacutenio sem fundamento (bonsiepe 1993 p21) Itaacutelicos nossos traduccedilatildeo nossa

Mais de uma deacutecada depois do que escreveu Bonsiepe o designer e historiador do

design Bernhard Buumlrdek sinaliza para os mesmos problemas Buumlrdek tambeacutem encontra-se

entre aqueles pesquisadores que defendem a constituiccedilatildeo de uma teoria do design atenta

aos alicerces das ciecircncias humanas Seus argumentos tecircm em consideraccedilatildeo particularmente

a filosofia quando se trata de refletir sobre aspectos teoacutericos e metodoloacutegicos dos quais

o design ainda necessita

No desenvolvimento da metodologia e teoria do design as ciecircncias humanas tecircm um papel muito especial A constante crise dos sentidos da disciplina faz sentir uma maior necessidade de reflexatildeo e teoria de filosofia Por isso eacute necessaacuterio

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verificar que aspectos da teoria do design ou da metodologia do design tecircm fundamento na filosofia europeia[9] (buumlrdek 2006 p 227)

Nesta mesma direccedilatildeo satildeo conduzidos os argumentos mais recentes do designer e

historiador do design Beat Schneider ao apontar para algumas lacunas do design que

reforccedilam a necessidade de reflexatildeo sobre as bases teoacutericas desse campo

[] eacute preciso abordar os pontos fracos do design Entre eles estaacute a falta de um debate sobre o gecircnero na profissatildeo assim como o seu lado sexista e o eurocen-trismo do design Mas eacute sobretudo a deficiecircncia teoacuterica da profissatildeo do design que se expressa na fatal natildeo teorizaccedilatildeo do contexto econocircmico social e poliacutetico (SCHNEIDER 2010 p 193)

Sintoma dessas indeterminaccedilotildees eacute o fato de o design antes do seacuteculo xx mas es-

pecialmente nos uacuteltimos cem anos apresentar e defender diversas propostas agraves vezes

sobre a forma de manifestos que buscam tanto uma definiccedilatildeo do campo quanto de suas

atividades Beat Schneider ao analisar a questatildeo recua bastante no tempo em uma busca

etimoloacutegica para a palavra ldquodesignrdquo Este autor tambeacutem afirma que o verbete design

consta no Oxford English Dictionary10 pela primeira vez em 1588 Tendo como ponto

de partida essa data Schneider11 (2010 p 195-196) apresenta uma seacuterie de definiccedilotildees do

design histoacuterica e geograficamente localizadas

9 Buumlrdek tambeacutem indica como meacutetodos a fenomenologia de Husserl e a hermenecircutica de Schleiermacher Dilthey e Gadamer teorias filosoacuteficas essas que segundo ele jaacute se encontram minimamente aplicadas em pesquisas de design (burdek 2006 p 239-251) Eacute importante ressaltar que tais teorias podem tambeacutem ser empregadas em outras aacutereas do conhecimento posicionadas nem sempre especificamente dentro das ciecircncias humanas e sociais como ocorre por exemplo com a Teoria geral dos sistemas do bioacutelogo e filoacutesofo Ludwig von Bertalanffy e de seu disciacutepulo Ervin Laszlo Bertalanffy (2012) busca nos sistemas um fundamento comum agrave biologia e demais ciecircncias naturais assim como agraves ciecircncias sociais e histoacutericas Quanto ao eurocentrismo de Buumlrdek poderemos pelo menos atenuaacute-lo se atuarmos localmente criando maiores oportunidades para o intercacircmbio natildeo somente entre os ramos tradicio-nais da filosofia e do design mas entre esse e as diversas aacutereas das ciecircncias humanas e sociais

10 Ao retirar essa definiccedilatildeo do Oxford English Dictionary Schneider natildeo diz que este dicionaacuterio tambeacutem informa como origem do verbo designare (designar) natildeo o italiano mas o latim e que a forma subs-tantivada deriva do italiano para o francecircs De qualquer modo natildeo podemos nos esquecer de que tanto o italiano quanto o francecircs satildeo liacutenguas neolatinas o que faz recuar a palavra a um periacuteodo muito anterior a 1588 Aleacutem disso se o termo proveacutem do latim e vai para o inglecircs mdash uma liacutengua de origem natildeo itaacutelica mdash posteriormente retorna agraves liacutenguas neolatinas como o italiano o francecircs o espanhol e o portuguecircs com acepccedilotildees diversas das originais em latim

11 Na constituiccedilatildeo da lista Schneider tem como referecircncia Bernhard Buumlrdek Gui Bonsiepe Alan Findeli Victor Papanek e Cordula Meier

35

bull Renascimentoldquo[]disegno interno significava o esboccedilo de uma obra de arte a ser

realizada o projeto o desenho e de uma forma bem geneacuterica a ideia em que se ba-

seava um trabalho Jaacute o disegno esterno significava a obra executadardquo (schneider

2010 p 195) O conceito de disegno neste momento natildeo se distingue de modo

claro da arte mas apresenta uma divisatildeo entre processo (disegno interno) e resultado

(disegno esterno)

bull Seacuteculoxix com projetos de objetos para a induacutestria surge a tematizaccedilatildeo sobre o

significado do ldquonovo fenocircmenordquo12 ldquoTratava-se em sua maior parte da sua distinccedilatildeo

de um lado perante a arte e de outro perante o artesanato ou as chamadas lsquoartes e

ofiacuteciosrdquo (schneider 2010 p 195) Nos paiacuteses de liacutengua alematilde apoacutes 1865 satildeo pro-

postos vaacuterios termos para tentar definir a atividade da profissatildeo Kunstgewerbe (artes

aplicadas agrave induacutestria) Kunsthandwerk (artes e ofiacutecios) Kunstindustrie (induacutestria

artiacutestica) Werkkunst (arte fabril) angewandter Kunst (arte aplicada) e dekorativer

Kunst (arte decorativa)

bull Seacuteculoxx (antes de 1970) ainda persiste nos paiacuteses de liacutengua alematilde uma terminologia

vernacular como industrieller Formgebung (conformaccedilatildeo de produtos industriais)

Industrie-Entwurf (projeto industrial) Industrie-Formgestaltung (configuraccedilatildeo de

produtos industriais) e Gestaltung (criaccedilatildeoconfiguraccedilatildeo de produtos)

bull Seacuteculoxx (apoacutes 1970) o termo design alcanccedila inclusive os paiacuteses de liacutengua alematilde

Nas deacutecadas finais desse seacuteculo na Franccedila o termo passa a substituir arts deacutecoratifs

A lista de Schneider poderia ser bastante ampliada se o autor incluiacutesse juntamente

com essa terminologia em grande parte de liacutengua alematilde os diversos conceitos que cada

12 Tanto Schneider quanto Bonsiepe (cf citaccedilatildeo p 33) fazem uso do termo fenocircmeno associando-0 ao design Ateacute onde pudemos ver esses autores natildeo explicitam de qual acepccedilatildeo de fenocircmeno se trata Tendo em conta que Schneider entende ldquoo design como ciecircncia jovemrdquo (schneider 2010 p 193) e Bonsiepe tem expectativa de que no futuro as perspectivas da cogniccedilatildeo da ciecircncia e do projeto no design ldquoacabem se fundindordquo (bonsiepe 2011 p 19) conjecturamos que fenocircmeno possa significar objeto do conhecimento no sentido lato estabelecido desde Kant Se assim for o design eacute um tema de teoria do conhecimento ou mais especificamente de filosofia da ciecircncia para Bonsiepe assim como o eacute para Maldonado (2010) Com relaccedilatildeo a Schneider como veremos no capiacutetulo 2 sua posiccedilatildeo conduz a um ciacuterculo vicioso

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termo agregou ao longo de suas trajetoacuterias em escolas como a Bauhaus e Ulm entre

outras espalhadas pelo mundo Mas para o argumento de Schneider e tambeacutem para o

nosso mais relevante do que um glossaacuterio histoacuterico exaustivo eacute sua conclusatildeo de que ainda

ldquohoje natildeo eacute possiacutevel uma definiccedilatildeo precisa e unitaacuteria do conceitordquo de design (schneider

2010 p 196) Tal imprecisatildeo segundo ele existe por vaacuterios motivos O primeiro seria as

mudanccedilas de significado que ocorreram desde o Renascimento ateacute a atualidade O se-

gundo diz respeito ao acircmbito de aplicaccedilatildeo do design que continua a crescer O terceiro

as ldquosituaccedilotildeesrdquo em que o termo design estaacute associado ldquocomo um procedimento (o ato ou

a atividade de projetar) ao resultado desse processo (um design um esboccedilo um plano ou

modelo) ou a produtos que foram gerados por meio de um design (design de objetos)rdquo

(schneider 2010 p 196)

Aleacutem da identificaccedilatildeo de todas essas variaccedilotildees terminoloacutegicas e conceituais o autor

acrescenta mais um problema agrave indeterminaccedilatildeo do conceito de design

Hoje nos meios especializados haacute um descontentamento com o uso inflacionaacuterio do conceito E sobretudo para escapar agrave restriccedilatildeo dominante agrave pura designaccedilatildeo de objetos Gui Bonsiepe por exemplo propotildee para a liacutengua alematilde os termos Entwerfen e EntwerferIn (projeto e projetista) Para o francecircs Alain Findeli pocircs em discussatildeo os termos projet e projecteur (schneider 2010 p 196)

Neste sentido podemos constatar no miacutenimo uma incongruecircncia quando a palavra

design eacute incorporada a outras liacutenguas Qual seja o uso generalizado do termo exclusivamente

em inglecircs natildeo garante a unidade do conceito Natildeo podemos nos esquecer de acrescentar a

esse desacordo e ao uso inflacionaacuterio de que nos fala Schneider o surgimento de novas

categorias ao lado das tradicionais design graacutefico e design de produto13 Tais subdivisotildees

e especialidades vecircm se impondo com o uso de substantivos e adjetivos incorporados ao

13 Schneider considera ateacute mesmo design graacutefico e design de produto como categorias ldquoquestionaacuteveisrdquo tanto do ponto de vista da teoria quanto da praacutetica O autor afirma que as escolas tecircm dificuldades com estas subdivisotildees tradicionais argumentando que se baseiam na segunda e terceira dimensatildeo fiacutesica (schneider 2010 p 205) Discordamos da subdivisatildeo tradicional indicada por Schneider Para noacutes o design graacutefico natildeo pode ser pensado sem a terceira dimensatildeo por exemplo os projetos editoriais e de sinalizaccedilatildeo satildeo estruturalmente tridimensionais Poreacutem enquanto atuando no ensino de design graacutefico entendemos que existe uma crescente especializaccedilatildeo nos projetos das duas catego-rias que favorece a separaccedilatildeo em aacutereas dentro dos cursos Mas com o avanccedilo da desmaterializaccedilatildeo dos produtos e a compreensatildeo de que design graacutefico tambeacutem gera produtos a divisatildeo talvez soacute faccedila sentido no acircmbito curricular

37

termo design que em alguns casos poderiam ou deveriam ser inerentes ao seu conceito

como design ecoloacutegico ou ecodesign e design estrateacutegico entre outros Acerca deste tema

Bonsiepe eacute provocativo ao afirmar que ldquoagraves vezes tenho a impressatildeo de que um designer

que aspire a dois minutos de fama se sente obrigado a inventar um roacutetulo que sirva como

marca para se diferenciar dos demais profissionaisrdquo (bonsiepe 2011 p 17) Em recente

conferecircncia em seu discurso Bonsiepe foi taxativo ao exemplificar algumas consequecircn-

cias dessa indeterminaccedilatildeo

Haacute alguns anos ocorre um fenocircmeno surpreendente o uso inflacionaacuterio da palavra ldquodisentildeordquo ou ldquodesignrdquo atraente devido agrave sua imprecisatildeo e polissemia Eacute a proacutepria indeterminaccedilatildeo do conceito de ldquodesignrdquo que o torna tatildeo atraente A crescente atratividade da palavra ldquodesignrdquo manifesta-se de forma ilustrativa no uso do termo amplamente difundido ldquodesign thinkingrdquo Se com este termo quer referir-se agrave forma especiacutefica como os designers abordam um problema isso natildeo eacute uma novidade para os profissionais de design Talvez possa estimular o interesse em revelar o funcionamento dessa capacidade supostamente especiacutefica O perigo no entanto consiste em fazer supor ou insinuar-se que um diploma em design thinking habilita para fazer design profissionalmente fazer projetos de forma concreta Portanto natildeo eacute de surpreender-se que por exemplo um conhecido cientista da anaacutelise de interfaces digitais e artefatos materiais ques-tione a legitimidade do uso desse conceito que para ele eacute o que se conhece pelo antigo termo ldquocriatividaderdquo (Donald Norman) Suponhamos que haja algo como medical thinking e certificados para medical thinking Natildeo obstante um paciente consultaraacute um meacutedico de cura competente e natildeo um medical thinking que nunca curou um paciente em sua vida (bonsiepe 2019) Traduccedilatildeo nossa

Um uacuteltimo exemplo de compreensatildeo do design enquanto um campo de indeterminaccedilatildeo

e limitaccedilotildees que carrega um tom otimista e esperanccediloso eacute a posiccedilatildeo de Rafael Cardoso

Precisamos pensar com ousadia imaginar o que o design pode vir a ser para aleacutem das circunstacircncias imediatas e das limitaccedilotildees passadas Pensar em design natildeo como um corpo de doutrinas fixo e imutaacutevel mas como um campo em plena evoluccedilatildeo Algo que cresce de modo contiacutenuo e se transforma ao crescer Um caminho que se revela ao ser percorrido O design eacute muito maior e mais dinacircmico do que qualquer uma de suas manifestaccedilotildees especiacuteficas Trata-se de uma aacuterea por demais complexa e multifacetada para caber em qualquer defini-ccedilatildeo estreita muito menos para ser reduzida agrave praacutetica de determinado indiviacuteduo ou escola Campo jovem o design encontra-se ainda em fase de aprendizado e experimentaccedilatildeo (cardoso 2016 p 238)

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Em contraposiccedilatildeo ao design a arte cujo conceito em seu sentido ocidental e lato vem

modificando-se desde os gregos preserva seu nome com as respectivas traduccedilotildees para

diversas liacutenguas Aleacutem disso conforme afirma Umberto Eco apesar de a arte produzir

obras apoiando-se em programas de produccedilatildeo (poeacuteticas) e estar de algum modo ligada

aos diversos elementos da cultura inclusive a campos cientiacuteficos e tecnoloacutegicos o dis-

curso da mesma natildeo busca a univocidade como o da ciecircncia (eco 1988) Na atualidade

a dificuldade ateacute de falarmos sobre programas de produccedilatildeo e de uma histoacuteria da arte

contemporacircnea reforccedilam os problemas em se encontrar definiccedilotildees natildeo efecircmeras para

a arte Nesse contexto a questatildeo eacute ainda podemos falar de uma histoacuteria da arte na con-

temporaneidade A esse propoacutesito Rodrigo Duarte (2006) no livro Arte no pensamento

apresenta uma anaacutelise sobre O tema do fim da arte na esteacutetica contemporacircnea Depois de

percorrer as concepccedilotildees de pensadores que trataram diferentemente dessa questatildeo desde

Hegel Marx Nietzsche Lukacs Benjamin Heidegger Horkheimer e Adorno Duarte

chega aos dias atuais com a visatildeo de Arthur Danto e afirma

Danto reconhece que a designaccedilatildeo lsquocontemporacircneorsquo eacute fraca mas diante da constataccedilatildeo de que lsquopoacutes-modernorsquo mdash outro roacutetulo possiacutevel para a produccedilatildeo artiacutestica atual mdash eacute muito forte ele manifesta sua preferecircncia pela denomi-naccedilatildeo lsquoarte poacutes-histoacutericarsquo Essa significa dentre outras coisas que os filoacutesofos devem carregar a responsabilidade pela compreensatildeo das obras e os artistas podem simplesmente usufruir a liberdade de estar para aleacutem da histoacuteria (duarte 2006 p 408)

Concordando com Duarte e Danto se assumimos tal responsabilidade eacute preciso

enfrentar o indeterminado Poreacutem de certo modo tal indeterminaccedilatildeo ou uma recusa

por determinaccedilatildeo da proacutepria arte se revela no tom de perplexidade do proacuteprio Danto

Definir arte eacute uma tarefa tatildeo esquiva que a quase cocircmica inaplicabilidade das definiccedilotildees filosoacuteficas da arte agrave proacutepria arte tem sido explicada pelos poucos que perceberam nessa inaplicabilidade um problema como resultado da inde-finibilidade da arte (danto 2005 p 26)

Consequentemente as lacunas apontadas por Bonsiepe Buumlrdek e Schneider nos

fundamentos do design a condiccedilatildeo refrataacuteria da arte a esses gecircneros de fundamentos

indicadas por Eco Duarte e Danto assim como a indeterminaccedilatildeo de ambos os campos

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por si soacute justificam e abrem espaccedilo para investigaccedilotildees sobre a essecircncia constituiccedilatildeo e

limites de cada um deles no interior de suas proacuteprias esferas de atuaccedilatildeo De um lado o

esforccedilo pela constituiccedilatildeo de uma teoria dentro do campo do design e de outro a esteacutetica

a filosofia da arte e os estudos criacuteticos de belas-artes no territoacuterio da arte acolhem em

seus espaccedilos especiacuteficos pesquisas sobre seus proacuteprios fundamentos Estudos dessa cate-

goria analiacuteticos mas com menos frequecircncia comparativos satildeo usuais e procedem quase

sempre isoladamente dentro de cada aacuterea como entre outros fazem Bonsiepe (1993 2011)

e Buumlrdek (2006) com o design e Heidegger (2004) e Danto (2005) com a arte

Nosso objetivo eacute nos deslocarmos das anaacutelises habituais natildeo elegendo uma dessas

aacutereas (design ou arte) em separado mas aquilo que funda as suas relaccedilotildees Procurando

delimitar os passos a serem seguidos concentramos nossa proposta em um pressuposto

seguido de uma hipoacutetese a se realizar em duas etapas subsequentes

Pressuposto

Distinccedilatildeo entre design e arte a partir da compreensatildeo de que esses dois campos criam

conceitos e objetos em categorias ontologicamente distintas

Hipoacutetese

a) Como consequecircncia do pressuposto a compreensatildeo dos fundamentos das relaccedilotildees

entre design e arte natildeo pode se dar unicamente no acircmbito da teoria do conhecimento

e da esteacutetica mas necessita avanccedilar ateacute o territoacuterio da ontologia Esta transposiccedilatildeo de

aacutereas deve ser construiacuteda com o apoio das reflexotildees de Imamnuel Kant e Thierry de

Duve sobre a esteacutetica e as de Martin Heidegger e Lacoue-Labarthe sobre a ontologia

b) Apesar dessa distinccedilatildeo design e arte estabelecem interlocuccedilatildeo e carreiam para seus

espaccedilos de atuaccedilatildeo especiacutefica elementos conceituais empregados e compartilhados

por ambos os campos cujos embriotildees remontam ao pensamento grego antigo Assim

os fundamentos das relaccedilotildees entre design e arte devem ser explicitados a partir da

seleccedilatildeo e do estudo especiacutefico dos conceitos de miacutemesis de belo e uacutetil e de fim em si

mesmo e do discurso epidiacutectico todos extraiacutedos da obra de Aristoacuteteles e conectados

agraves reflexotildees de Arthur Danto e Umberto Eco na atualidade

40

Devemos ressaltar que do ponto de vista loacutegico e argumentativo primeiro eacute preciso

distinguir para em seguida buscar relaccedilotildees Aleacutem disso no nosso entendimento a distin-

ccedilatildeo entre design e arte apesar de atentar para o resultado das produccedilotildees eacute voltada para

os fundamentos desses dois campos Como veremos no capiacutetulo 5 com a anaacutelise de obras

de Philippe Starck e Andy Warhol e da relevante precedecircncia de Marcel Duchamp cada

vez mais o resultado do trabalho de designers e artistas apresenta caracteriacutesticas comuns

agraves duas aacutereas o que pode ensejar a defesa de que design e arte satildeo campos indistintos po-

siccedilatildeo da qual discordamos No entanto como a ausecircncia de unanimidade entre designers

artistas e teoacutericos nesta questatildeo permanece eacute importante vermos alguns exemplos14 de

posiccedilotildees a favor e contra tal distinccedilatildeo

O filoacutesofo e teoacuterico da arte Thierry de Duve (2010) no artigo O que fazer da

vanguarda Ou o que resta do seacuteculo 19 na arte do seacuteculo 20 apresenta o artista Marcel

Duchamp como um ldquomensageirordquo da arte contemporacircnea com o entendimento de que

todos podem ser artistas e tudo pode ser arte Em suas palavras

A pintura e a escultura a paisagem e o nu e todos os ldquoismosrdquo do seacuteculo 20 fazem parte ao contraacuterio da arte em geral jaacute que ela nada exclui e inclui aleacutem disso as praacuteticas recentes mdash a instalaccedilatildeo a arte conceitual ou a videoarte assim como outras que ainda natildeo tecircm nome De fato o teor da expressatildeo eacute o seguinte fazer arte com tudo e com qualquer coisa eacute hoje tecnicamente possiacutevel e institucional-mente legiacutetimo como bem percebeu Suzi Gablik Decerto nem tudo eacute arte A priori poreacutem qualquer coisa pode secirc-lo A arte em geral eacute o nome da novidade de que Duchamp foi mensageiro Esse nome substitui a denominaccedilatildeo geneacuterica

ldquobelas-artesrdquo que corresponde agrave situaccedilatildeo que encarnavam a Academia a Escola e o sistema das belas-artes antes que sua falecircncia fosse declarada pelas vanguardas histoacutericas Portanto qualquer coisa pode ser arte qualquer um pode ser artista Para quem essa eacute uma novidade ruim para quem eacute boa (de duve 2010 p182)

Arthur Danto (2005) eacute outro teoacuterico que invoca esta possibilidade apontando espe-

cificamente para os objetos criados

[] em fases de estabilidade artiacutestica costumava-se pensar que as obras de arte possuiacuteam certas propriedades cuja ausecircncia bastava para pocircr seriamente em duacutevida seu status de arte Mas esse tempo jaacute passou haacute muito e assim como

14 Um estudo extenso e pormenorizado que entre outros temas aborda as posiccedilotildees de designers artistas e teoacutericos sobre a polecircmica em torno da distinccedilatildeo entre design e arte foi elaborado por Andreacute Stolarski (2012) em sua dissertaccedilatildeo de mestrado

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qualquer coisa pode expressar qualquer coisa desde que se conheccedilam as conven-ccedilotildees pertinentes e os fatores que explicam seu status como expressatildeo qualquer coisa pode ser uma obra de arte natildeo haacute condiccedilotildees necessaacuterias enunciaacuteveis na forma de predicados de um lugar Decerto natildeo se deve concluir do fato de que qualquer coisa pode ser uma obra de arte que qualquer coisa o seja A maacutequina de escrever que estou usando poderia ser uma obra de arte mas natildeo eacute O que torna tatildeo interessante o conceito de arte eacute que dizer que minha maacutequina de escrever poderia ser uma obra de arte natildeo eacute o mesmo que dizer que ela eacute um sanduiacuteche de presunto embora um certo sanduiacuteche ateacute pudesse ser (e quem sabe se jaacute natildeo eacute) um objeto de arte Mas a explicaccedilatildeo disso natildeo se encontra unicamente na concepccedilatildeo de que uma obra de arte eacute um objeto relacional a razatildeo deve ser mais profunda (danto 2005 p 113)

Essa abertura proporcionada pela arte contemporacircnea pode conduzir a direccedilotildees que

a primeira vista natildeo seriam previsiacuteveis Paradoxalmente as reflexotildees de Thierry de Duve

e Arthur Danto localizadas exclusivamente no territoacuterio da arte apesar de defenderem

uma distinccedilatildeo da arte e seus objetos em relaccedilatildeo a outros campos e outros objetos podem

ensejar argumentos como sinaliza Andreacute Stolarski (2012) agravequeles que de modo contraacuterio

se dispotildeem a ver nas palavras todos podem ser artistas e tudo pode ser arte uma porta para

a indistinccedilatildeo entre design e arte

Em um sentido diverso da possibilidade anterior mas tambeacutem defendendo a indis-

tinccedilatildeo entre design e arte existe o argumento da indefiniccedilatildeo das fronteiras ou ateacute em

casos extremos da ausecircncia de fronteiras desses dois campos Esse eacute o caso por exemplo

do artista plaacutestico Almir Mavignier Atentemos para a transcriccedilatildeo que os criacuteticos de arte

Daniela Name e Felipe Scovino (2008) fazem da afirmaccedilatildeo de Mavignier no cataacutelogo

Diaacutelogo concreto mdash design e construtivismo no Brasil

Em 1957 Mavignier comeccedilou sua produccedilatildeo de cartazes quando legitima ldquoarte eacute design Pintura e cartaz satildeo objetos a pintura fascina e o cartaz informa A fronteira entre os dois eacute instaacutevel porque ambos podem fascinar A fim de reco-nhececirc-la fui estudar em Ulm [onde] aprendi que a fronteira natildeo existerdquo (name scovino 2008 p 48)

Eacute no miacutenimo surpreendente saber que Mavignier atribui a ausecircncia de fronteiras

entre design e arte ao seu aprendizado na renomada escola racionalista e funcionalista

onde Gui Bonsiepe tambeacutem estudou e lecionou Bonsiepe assume posiccedilatildeo diametralmente

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oposta a Mavignier e coloca a filosofia como capaz de refutar a indistinccedilatildeo entre design e

arte No entanto Bonsiepe considera a posiccedilatildeo assumida em favor da indistinccedilatildeo dentro

das instituiccedilotildees de ensino uma possiacutevel convenccedilatildeo que favorece orccedilamentos Conforme

suas palavras ldquoHaacute muito tempo dispomos de conceitos filosoacuteficos para fazer distinccedilatildeo

entre arte e design Classificar design em categorias artiacutesticas soacute pode ser explicado por

criteacuterios da poliacutetica de distribuiccedilatildeo de verbas nas universidadesrdquo (Bonsiepe 2011 p 181)

Nesse contexto o autor natildeo nos diz como tal refutaccedilatildeo deve ocorrer mas defende clara-

mente a distinccedilatildeo E o mais importante coloca a filosofia como o territoacuterio de decisatildeo o

que seraacute de interesse como veremos para o capiacutetulo 2

Outra defesa de certa distinccedilatildeo difundida na atualidade eacute a do teoacuterico da comuni-

caccedilatildeo Andreacute Villas Boas (1998) mas que natildeo coaduna com a nossa proposta tambeacutem de

distinccedilatildeo por sustentar seus argumentos de modo diverso e em outras bases A esse pro-

poacutesito citamos a criacutetica agrave posiccedilatildeo de Villas Boas feita por outro teoacuterico da comunicaccedilatildeo

Carlos Alberto Barbosa

[] o design para o autor ldquo() eacute realizado para reproduccedilatildeo eacute reproduziacutevel e eacute efetivamente reproduzido a partir de um original (ainda que virtual) Do contraacuterio eacute uma peccedila uacutenica circunscrita ao campo da arte (o manuscrito me-dieval por exemplo ()rdquo (villas-boas 1998 p 12) Tal perspectiva parece natildeo levar em conta as obras de arte mecanicamente reproduziacuteveis as tais que foram objeto do famoso ensaio A obra de arte na eacutepoca de sua reproduti-bilidade teacutecnica de Walter Benjamin no qual a proacutepria noccedilatildeo de ldquooriginalrdquo eacute colocada em jogo O entendimento sobre o que eacute arte para Villas-Boas diz respeito notadamente a uma produccedilatildeo de peccedila uacutenica Mais adiante o autor cerca um pouco mais seu conceito e se debruccedila sobre o campo do projeto de design ldquo() satildeo peccedilas de design graacutefico todos aqueles projetos graacuteficos que tecircm como fim comunicar atraveacutes de elementos visuais (textuais ou natildeo) uma dada mensagem para persuadir o observador guiar sua leitura ou vender um produtordquo (villas-boas 1998 p 12ndash13) Talvez isso cerque de forma mais efetiva o campo do design Deve ser um projeto que vise a reproduccedilatildeo tendo como fim a persuasatildeo e a venda Seraacute que a partir do advento da Induacutestria Cultural e sua radicalizaccedilatildeo explicitada pela tecnologia associada ao consumo em massa a arte por vezes natildeo se insere tambeacutem nessa categoria de ldquoper-suasatildeo e vendardquo principalmente se levarmos em conta uma sociedade que soacute percebe a obra de arte como mercadoria o que entatildeo tambeacutem a aproximaria do campo do design (barbosa 2003 p 52)

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Existem vaacuterias implicaccedilotildees na citaccedilatildeo anterior e a aproximaccedilatildeo da arte com o design

eacute uma das intenccedilotildees de Barbosa Mas o relevante para os nossos propoacutesitos eacute que a criacutetica

de Barbosa que se estende a outras posiccedilotildees como agrave de Rafael Cardoso mostra que a

questatildeo da distinccedilatildeo entre design e arte eacute antes de tudo intrincada No entanto longe de

ser um ldquoproblemardquo em um sentido negativo acreditamos eacute justamente esse emaranhado

envolvendo a questatildeo que nos impotildee a necessidade de uma distinccedilatildeo ontoloacutegica que

conecta como veremos cada elemento aparentemente divergente na tese

Diante desses exemplos nossa posiccedilatildeo pela distinccedilatildeo entre design e arte enquanto

pressuposto busca um ponto delimitado de diferenciaccedilatildeo sem incorrer em definiccedilotildees que

tambeacutem defendem a distinccedilatildeo mas apropriam-se de elementos mutaacuteveis tornando-se

rapidamente obsoletas Natildeo podemos nos esquecer de que tanto a arte quanto o design

estatildeo sempre se reinventando o que torna essa tarefa mais difiacutecil

Assim nossa premissa estabelece suas bases na clivagem ontoloacutegica que Danto propotildee

para separar objetos artiacutesticos de outros objetos e consequentemente distinguir a arte de

outros campos Nas suas palavras

[] aprender que um objeto eacute uma obra de arte eacute saber que ele tem qualidades que faltam ao seu siacutemile natildeo transfigurado e que provocaraacute reaccedilotildees esteacuteticas diferentes E isso natildeo eacute institucional mas ontoloacutegico mdash estamos lidando com ordens de coisas completamente diferentes (danto 2005 p 157)

Acreditamos que essa delimitaccedilatildeo inicial ao colocar objetos da arte contrapondo-se

a outros objetos aceita implicitamente os do design na oposiccedilatildeo Deste modo entende-

mos tal dicotomia em princiacutepio como condiccedilatildeo necessaacuteria apenas enquanto pressuposto

e natildeo como causa15 sendo portanto somente o primeiro passo no encaminhamento de

nossa hipoacutetese Indo aleacutem do acircmbito da esteacutetica e da posiccedilatildeo de Danto como veremos

15 Assumimos o significado de condiccedilatildeo necessaacuteria como distinto do significado de causa Causa tem sentido positivo eacute aquilo que produz o efeito Condiccedilatildeo necessaacuteria (oposta agrave condiccedilatildeo suficiente de sentido positivo) tem sentido negativo eacute aquilo sem o qual natildeo se produz o efeito (condiccedilatildeo sine qua non) Tal condiccedilatildeo determina que a existecircncia do elemento condicionante natildeo implica na existecircncia do condicionado Em outras palavras nosso pressuposto enquanto condiccedilatildeo necessaacuteria estabelece o paracircmetro ontoloacutegico (elemento condicionante) e aponta em uma direccedilatildeo de pesquisa mas natildeo eacute conclusivo e natildeo nos garante nada aleacutem do seu ponto de partida Assim iniciando com o pressuposto precisamos percorrer todo o caminho da hipoacutetese para confirmaacute-la ou natildeo como ocorre de praxe em uma tese

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no capiacutetulo 3 Heidegger com propoacutesito e estrateacutegias diversas agraves empregadas por Danto

corrobora nosso pressuposto ao especificar em sua anaacutelise os objetos que se contrapotildeem

aos artiacutesticos enquanto objetos uacuteteis E avanccedila em um ponto essencial ao defender

a tese de que a apreciaccedilatildeo das obras de arte nos coloca em contato com significados

mais profundos para os objetos utilitaacuterios Essa defesa abre portas para pensarmos os

objetos do design para aleacutem do mero uso consumo e exploraccedilatildeo ou seja indo aleacutem da

utilidade e da instrumentalidade E ir aleacutem do uacutetil e instrumental acreditamos eacute funda-

mental para a compreensatildeo dos objetos de design que expandiram seus significados na

contemporaneidade

Neste ponto uma questatildeo de ordem histoacuterica precisa ser levantada Porque retornar

a Platatildeo e a Aristoacuteteles Em nossos estudos sobre as origens da linguagem e do mito e

suas possiacuteveis influecircncias na constituiccedilatildeo dos discursos cientiacuteficos e tecnoloacutegicos uma

afirmaccedilatildeo de Ernst Cassirer nos marcou e nos guia desde entatildeo

[] toda reflexatildeo histoacuterica genuiacutena em lugar de se perder na percepccedilatildeo do meramente uacutenico deve buscar aqueles momentos ldquopejadosrdquo do acontecer para onde confluem como para pontos focais seacuteries inteiras de eventos Em tais pontos fases temporais largamente separadas entre si conectam-se em um todo unitaacuterio para a concepccedilatildeo e a compreensatildeo histoacuterica Ao serem certos momentos destacados da corrente uniforme do tempo estabelecendo relaccedilotildees e concatenando-se em seacuteries iluminam-se com isso justamente a origem e a meta de todo acontecer seu de onde (Woher) e seu para onde (Wohin) (cassirer 1992 p 48)

Considerando que design e arte satildeo campos distintos e natildeo encontrando respostas

suficientes para as semelhanccedilas e diferenccedilas na atualidade nos inspiramos em Cassirer e

recuamos na histoacuteria do pensamento ocidental Na busca pelo periacuteodo histoacuterico em que

as teorias que originaram os fundamentos desses campos se constituiacuteram chegamos ao

pensamento grego Foi na polecircmica de Platatildeo em favor da ciecircncia grega e contra a arte

que o pensamento de Aristoacuteteles criacutetico de Platatildeo emergiu em apoio e base de nossa

hipoacutetese Apropriando-nos das palavras de Cassirer em Platatildeo e Aristoacuteteles encontram-

se os ldquopontos focaisrdquo e descortinaram-se a origem e a meta o onde e o para onde da tese

A centralidade desses dois pensadores em torno de nosso tema e de outros assuntos

subsidiaacuterios se justifica dado que estatildeo entre os primeiros a abordar questotildees sobre a

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constituiccedilatildeo da realidade como a entendemos Apesar de essa primazia natildeo ser sempre

deles mas de seus antecessores os chamados preacute-socraacuteticos encontramos no bojo dos

sistemas platocircnico e aristoteacutelico conceitos e soluccedilotildees que se tornaram referecircncia para as

reflexotildees posteriores inclusive contemporacircneas

Platatildeo eacute o ponto fulcral de onde nossas questotildees partem Deste modo necessitamos

sempre retornar a Platatildeo Fazemos isso ao longo do texto como tambeacutem quase todos os

autores referenciados na tese Aristoacuteteles faz o contraponto e encaminha os problemas na

direccedilatildeo que desejamos normalmente discordando de Platatildeo neste tema Como os con-

ceitos e criteacuterios aos quais aderimos na constituiccedilatildeo baacutesica de nosso texto satildeo de origem

aristoteacutelica cabe justificar o motivo pelo qual elegemos esse pensador para o centro da

proposiccedilatildeo de nossas questotildees Examinemos como isso ocorre

Um dos pontos que atrai nossa atenccedilatildeo para a obra aristoteacutelica eacute o fato de que ao

tempo em que seus textos foram escritos o Ocidente ensaiava os primeiros passos na cons-

tituiccedilatildeo de teorias gerais acerca do mundo e do saber Como consequecircncia as diversas

aacutereas e ramificaccedilotildees do conhecimento que com o passar dos seacuteculos e milecircnios foram

sendo delimitadas ainda natildeo estavam claramente definidas (figura 2)

Deste modo os conceitos elaborados por pensadores desse periacuteodo incluindo Aris-

toacuteteles tecircm uma plasticidade e satildeo concebidos para abarcar diversos domiacutenios teoacutericos

e praacuteticos certamente indo aleacutem daquilo que passamos a compreender sob o nome de

filosofia Ir ao nascedouro de aacutereas do conhecimento e de conceitos com tais propriedades

Figura 2 Linha do tempo indicando desdobramento do conceito grego de poacuteiesis (produccedilatildeo) em episteacuteme (ciecircncia) e teacutekhne (arte) e posteriormente sua divisatildeo em ciecircncia teacutecnica e arte em seus sentidos moder-nos fonte autor

asymp aC dC dCGreacutecia Ocidente

EPISTEacuteME

TEacuteKHNE

CIEcircNCIA

TEacuteCNICA

ARTE

POacuteIESIS

PERIacuteODO DE PLAacuteSTICIDADEENTRE OS CONCEITOS

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auxilia no rastreamento de elementos que permanecem compartilhados ainda hoje mesmo

quando tais aacutereas e as disciplinas delas derivadas satildeo agora distintas

Essas concepccedilotildees dadas a suas pretensotildees agrave universalidade aliadas a uma variedade

de possibilidades hermenecircuticas vecircm mobilizando pesquisadores ao longo da histoacuteria

interessados em anaacutelises de cunho geral mas tambeacutem de natureza epistemoloacutegica gno-

seoloacutegica e ontoloacutegica visando instaurar fundamentos em campos culturais cientiacuteficos

e tecnoloacutegicos Aleacutem disso Aristoacuteteles eacute um daqueles pensadores em que as teorias e os

conceitos que nos interessam vecircm sendo interpretados reinterpretados e aplicados ou

criticados nos mais diversos campos na teoria literaacuteria nas artes plaacutesticas nas anaacutelises da

esteacutetica na linguiacutestica e na comunicaccedilatildeo Entre os pesquisadores envolvidos com estudos

sobre a obra de Aristoacuteteles e seus desdobramentos no presente elegemos dois estudiosos

em campos distintos para ratificar nossa posiccedilatildeo

Jacyntho Lins Brandatildeo das letras claacutessicas ao estudar a obra A retoacuterica de Aristoacuteteles

que conteacutem um dos gecircneros de discursos abordados em nossa pesquisa afirma

Num mundo como o contemporacircneo em que eacute a ciecircncia que se tornou o discurso autorizado por excelecircncia (difundido pelos meios modernos de comunicaccedilatildeo) natildeo seria razoaacutevel admitir que [] a retoacuterica eacute que eacute hoje um tipo de literatura para a multidatildeo (atraveacutes dos jornais da televisatildeo da publicidade) e que a ciecircn-cia por seu lado eacute uma espeacutecie de retoacuterica popular (basta lembrar o quanto o discurso poliacutetico se converteu em econocircmico isto eacute supostamente cientiacutefico) (brandatildeo 2007 p 19)

Fernando Santoro da filosofia e esteacutetica ao retomar a obra A poeacutetica de Aristoacuteteles

eacute enfaacutetico ao defender a relevacircncia que os conceitos elaborados por esse pensador ainda

manteacutem na contemporaneidade

Portanto ainda que Aristoacuteteles natildeo tenha pensado sobre as artes tal como as entendemos hoje o que ele escreveu foi decisivo ao longo da histoacuteria das artes ocidentais especialmente apoacutes o Renascimento A Poeacutetica de Aristoacuteteles muitas vezes chegou a determinar os cacircnones de vaacuterios estilos principalmente os de inspiraccedilatildeo claacutessica classicismos e neoclassicismos diversos E mesmo quando se queria contestar alguma tradiccedilatildeo ou escola artiacutestica a Poeacutetica serviu quando natildeo era o modelo a seguir de modelo a contestar como por exemplo ao se cri-ticar o naturalismo ou o figurativismo ou as famosas prescriccedilotildees de unidade (de tempo de espaccedilo de accedilatildeo) Assim se Aristoacuteteles natildeo abordou as artes tal como

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as entendemos hoje em contrapartida ele foi decisivo para o que entendemos hoje como arte Muitas das clivagens dos valores das categorias e dos princiacutepios das teorias esteacuteticas modernas e contemporacircneas tecircm origem nas especulaccedilotildees de Aristoacuteteles sobre a poesia eacutepica sobre a muacutesica e sobre a poesia dramaacutetica (santoro 2006 p 77)

Tal potecircncia das especulaccedilotildees contida nos textos de Aristoacuteteles eacute um dos elementos

que subsidiam este trabalho Eacute tambeacutem por isso que nos apoiamos como veremos nos

estudos de Heidegger Danto e Eco Esses teoacutericos contemporacircneos cada um a seu modo

compartilham desse olhar interessado na aurora do pensamento grego e instauram re-

flexotildees conectando as indagaccedilotildees aristoteacutelicas com problemas da atualidade indagaccedilotildees

estas que iluminam e fomentam nossas proacuteprias questotildees

No entanto como Aristoacuteteles atuou natildeo somente como filoacutesofo no sentido estrito

mas produziu conhecimento em biologia fiacutesica e outros campos cientiacuteficos ocorre de

criacuteticas procedentes agraves suas concepccedilotildees ligadas agraves ciecircncias naturais serem indevidamente

estendidas para o acircmbito de conceitos metafiacutesicos e ontoloacutegicos Um exemplo claacutessico e

um truiacutesmo em ciecircncias naturais eacute a afirmaccedilatildeo de que a fiacutesica de Aristoacuteteles eacute ultrapassada

e completamente distinta de qualquer concepccedilatildeo da natureza em pensadores posteriores

a Galileu ou que uma visatildeo aristoteacutelica de coacutesmos natildeo se sustenta diante da concepccedilatildeo de

universo infinito do mundo moderno O que natildeo se expotildee de modo imediato quando

se mostra tal incongruecircncia entre a teoria fiacutesica antiga e a moderna eacute a impossibilidade

de correspondecircncia entre a base metafiacutesica da fiacutesica aristoteacutelica que essencialmente eacute

qualitativa e a da fiacutesica newtoniana quantitativa

Mas esse exemplo adequado ao acircmbito especiacutefico da fiacutesica moderna natildeo deve ser

impedimento para um pesquisador fazer conexotildees que ultrapassam a esfera estrita de

determinado campo em direccedilatildeo agrave fundamentaccedilatildeo de uma teoria cientiacutefica Para nos

mantermos dentro do escopo da fiacutesica sigamos as palavras do filoacutesofo da ciecircncia e

epistemoacutelogo F S Northrop na introduccedilatildeo do livro Fiacutesica e Filosofia de Heisenberg

A tese mais nova e importante deste livro talvez seja a afirmaccedilatildeo feita pelo autor de que a mecacircnica quacircntica reviveu o conceito aristoteacutelico de potencialidade na fiacutesica moderna Consequecircncia disso eacute que a mecacircnica quacircntica eacute igualmente importante para a ontologia e a epistemologia (heisenberg 1987 p 11)

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Em outras palavras seria questionaacutevel tentar unir ou correlacionar conceitos fiacutesicos

aristoteacutelicos e modernos em uma mesma concepccedilatildeo de natureza fiacutesica pois tal pretensatildeo

levaria a contradiccedilotildees Mas quando se recua da ciecircncia para a epistemologia buscando

fundamentaccedilatildeo ou se retrocede ainda mais na esfera da metafiacutesica seja no acircmbito da

teoria do conhecimento da esteacutetica ou da ontologia os conceitos mdash que natildeo satildeo mais

das ciecircncias mas dos pilares que as fundam mdash tornam-se mais propensos a intercacircmbios

e passiacuteveis de serem explorados em vaacuterios campos como o da arte e do design Assim a

plasticidade dessa categoria de conceitos eacute ainda maior quando envolve esteacutetica retoacuterica

e arte como eacute o nosso caso com Aristoacuteteles e os autores modernos e contemporacircneos a

ele relacionados

Um exemplo eacute o conceito de coacutesmos aristoteacutelico que aleacutem de associado agrave sua fiacutesica

expressa uma ordem e uma harmonia que natildeo eacute de cunho matemaacuteticoquantitativo

Natildeo sem razatildeo o radical κόσμος (coacutesmos) eacute a base de palavras como κοσμητής (cosmeteacutes)

cujo significado eacute daquele que potildee ordem dispotildee e regula como procedem o deus Zeus

e tambeacutem o profissional decorador na antiga Greacutecia (malhadas dezotti neves

2008 v 3 p 87-88) Faz sentido portanto que a palavra cosmeacutetico usada na atualidade

derive desse radical Em qualquer dos casos o conceito de coacutesmos aristoteacutelico antes de

ser uma concepccedilatildeo fiacutesica tem caraacuteter metafiacutesico E a ecircnfase de Aristoacuteteles a uma essecircncia

qualitativa desse conceito o coloca em uma posiccedilatildeo privilegiada para abordarmos os

temas da arte e do design

Acreditamos que a defesa desses teoacutericos seja satisfatoacuteria e possa pelo menos mitigar

as criacuteticas de caraacuteter hermenecircutico agrave distacircncia temporal dos mais de 2300 anos que nos

separam das especulaccedilotildees e das teorias aristoteacutelicas Ainda assim algum criacutetico atento

agrave estrutura das concepccedilotildees aristoteacutelicas poderia opor argumentos baseados na ideia de

finalismo deste pensador tanto nos seus conceitos de natureza quanto de arte que satildeo

desdobramentos da teoria das quatro causas Natildeo faz parte do tema enveredar por essa

teoria mas como ela pode ser associada a diversas espeacutecies de determinismo e consequen-

temente ser entendida como limitadora agraves possibilidades de compreensatildeo das relaccedilotildees

entre design e arte somos obrigados a justificar minimamente o finalismo aristoteacutelico

ou pelo menos natildeo consideraacute-lo como nocivo agraves reflexotildees ligadas a esses dois campos A

esse respeito no acircmbito mais amplo da reflexatildeo filosoacutefica Aristoacuteteles entende que uma

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das caracteriacutesticas do homem eacute exercer accedilotildees voluntaacuterias mas nos atendo especificamente

ao campo do design chamamos novamente em nossa defesa Carlos A Barbosa

A questatildeo eacute que a causa final na visatildeo aristoteacutelica eacute a que daacute iniacutecio e tambeacutem dirige todo o processo ou accedilatildeo De nada adiantaria ou talvez nem mesmo existiria um juiacutezo uacutenico para os casos semelhantes se antes natildeo se apresentasse uma razatildeo ou uma finalidade para tal juiacutezo Um designer por exemplo natildeo sai simplesmente projetando para ver se chega em algo Na verdade esse ldquoalgordquo ao qual o designer pretende chegar pressupotildee um uso o qual orienta e determina a necessidade do projeto Ou seja o projeto de design eacute movido pela sua finali-dade que eacute aquilo que se pretende com o projeto ou para que se pretende um objeto (barbosa 2003 p 58)

Diante de um pensador da envergadura de Aristoacuteteles como apontou Fernando San-

toro tanto as defesas quanto as contestaccedilotildees e querelas enriquecem e ampliam as possibi-

lidades de reflexatildeo quando o tema em questatildeo tem raiacutezes que partem de investigaccedilotildees em

sua eacutepoca e continuam a reverberar no modo como concebemos a realidade atualmente

Com relaccedilatildeo ao meacutetodo compreendendo-o em seu sentido originaacuterio de caminho

ele foi efetivado nas seguintes etapas na tese cada uma circunscrita a um capiacutetulo

1 Origens platocircnicas da cisatildeo e hierarquizaccedilatildeo da ciecircncia teacutecnica e arte e suas conse-

quecircncias para o design e para a arte (capiacutetulo 2)

2 Transposiccedilatildeo da abordagem do tema de um vieacutes esteacutetico e gnoseoloacutegico para onto-

loacutegico (capiacutetulo 3)

3 Rastreamento identificaccedilatildeo anaacutelise e reelaboraccedilatildeo dos conceitos aristoteacutelicos de

miacutemesis coisas belas coisas uacuteteis o fim em si mesmo e o discurso epidiacutectico para o design

e a arte contemporacircnea (capiacutetulo 4)

4 Ampliaccedilatildeo na identificaccedilatildeo dos conceitos teoricamente reelaborados na praacutetica

artiacutestica de Andy Warhol precedido historicamente por Marcel Duchamp e nos

projetos de design de Philippe Starck (capiacutetulo 5)

Com esse roteiro estabelecido falta explicitar os caminhos contidos no meacutetodo que

tornaram possiacutevel avanccedilar de modo coerente Ao tratarmos acerca dessa estrutura guia

consideramos necessaacuterio justificar a inclusatildeo de autores de espectros ideoloacutegicos distintos

no bojo das discussotildees

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Acreditamos que a inclusatildeo de autores de correntes divergentes e ateacute opostas na busca

de consenso em um constructo teoacuterico somente eacute um problema se ao final chega-se a uma

antinomia na teoria Aleacutem disso nossa proposta natildeo eacute unir pensadores que dialogam entre

si tendo em conta uma filiaccedilatildeo genealoacutegica comum Ao contraacuterio articular discordacircncias

em torno dos fundamentos das relaccedilotildees entre design e arte mdash buscando inteligibilidade a

partir de uma abordagem centrada no vieacutes ontoloacutegico mdash eacute o que traz unidade e coerecircncia

interna ao tema Polecircmicas que surgiram no periacuteodo claacutessico da cultura grega seguiram

em frente na histoacuteria das ideias e ainda permanecem em alguns casos sob formas diver-

sas e (em determinadas circunstacircncias) impliacutecitas na atualidade Natildeo temos a pretensatildeo

de alinhar nosso pensamento com uma corrente especiacutefica mas selecionar autores que

tendo estabelecido uma questatildeo como objeto de estudo procuram submetecirc-la ao exame

mesmo diante de posiccedilotildees discordantes Esse eacute um desafio metodoloacutegico que guia esta tese

Para atender aos cruzamentos de conteuacutedos sobre as relaccedilotildees das aacutereas pesquisadas

com os autores estabelecemos padrotildees que conduzem aos diversos toacutepicos da tese O

resultado foi um meacutetodo de estrutura hiacutebrida constituiacutedo de elementos habituais nas

pesquisas em ciecircncias humanas e sociais O que fizemos foi incorporar estrateacutegias de

abordagem jaacute existentes que nos permitiram controlar melhor os percursos

1ordf Analiacutetica mdash garantir a decomposiccedilatildeo dos diversos conceitos compreender suas parti-

cularidades e testar suas possibilidades de aplicaccedilatildeo na atualidade bem como limites

2ordf Comparativa mdash ser capaz de identificar e descrever elementos comuns aos dois campos

investigados design e arte contemporacircnea descrevendo as interligaccedilotildees descobertas

3ordf Diacrocircnica e sincrocircnica mdash uma vez que parte dos conceitos extraiacutedos procede de

autores do passado (Platatildeo e Aristoacuteteles) em cotejo com autores contemporacircneos a

abordagem diacrocircnica necessariamente atenta agrave hermenecircutica apoia-se principalmen-

te nas anaacutelises e interpretaccedilotildees de estudiosos contemporacircneos como Arthur Danto

Thierry de Duve Martin Heidegger Philippe Lacoue-Labarthe e Umberto Eco O

propoacutesito eacute assegurar que a transposiccedilatildeo desses conceitos para o presente preserve seu

vigor e validade Na abordagem sincrocircnica por outro lado dirigimos nossa atenccedilatildeo

a autores contemporacircneos como Vileacutem Flusser Rafael Cardoso Tomaacutes Maldonado

Gui Bonsiepe e Beat Schneider e privilegiamos mais a tomada de posiccedilatildeo deles em

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relaccedilatildeo aos conceitos jaacute estabelecidos Esse giro intencional assegura que o embate

se fixe no presente uma vez que o tema se concentra nos fundamentos de campos

da atualidade design e arte Com isso acreditamos obtemos um leque maior de

possibilidades na discussatildeo tendo em conta as significativas diferenccedilas ideoloacutegicas

que esses estudiosos apresentam no tratamento dos conceitos

4ordf Sinteacutetica mdash comprovar a hipoacutetese e sua validaccedilatildeo ateacute onde eacute possiacutevel em uma tese

no acircmbito das ciecircncias humanas e sociais

A variaccedilatildeo dessas estrateacutegias combinando-as quando necessaacuterio a um tratamento

especiacutefico (como por exemplo anaacutelise comparativa diacrocircnica ou anaacutelise comparativa

sincrocircnica) tornou a abordagem flexiacutevel agraves nossas necessidades Apesar de cada estudioso

ter suas particularidades na aplicaccedilatildeo de recursos analiacuteticos e comparativos Danto de

Duve Heidegger Lacoue-Labarthe Eco e outros autores modernos e contemporacircneos

estudados fazem uso recorrente desses procedimentos o que favorece nossa abordagem

Como jaacute pode ser constatado neste primeiro capiacutetulo as escolhas tanto do tema

quanto da perspectiva adotada e dos autores envolvidos na construccedilatildeo de nosso cami-

nho nos conduzem invariavelmente a retornar em periacuteodos histoacutericos constituintes do

pensamento da ciecircncia do design e da arte em diversos momentos do texto Estamos

perseguindo o que Cassirer (1992 p 48) acertadamente nomeou de ldquopontos focaisrdquo ldquopara

ondeconfluem[]seacuteriesinteirasdeeventosrdquoContudotemosconsciecircnciadequeessa

tese natildeo eacute sobre histoacuteria do design da arte ou da filosofia Mas sabemos que existe sempre

o risco de se avanccedilar sobre o sedutor territoacuterio da histoacuteria dessas disciplinas e deixar de

lado a reflexatildeo sobre a trama das ideias propostas Portanto concentramos esforccedilos em

mantermos demarcados os temas de contextualizaccedilatildeo Mas natildeo abrimos matildeo da histoacuteria

da filosofia ou de qualquer outra disciplina quando elas contribuem para a genealogia

dos objetos estudados Assim ocorreu no atual capiacutetulo na anaacutelise da indeterminaccedilatildeo

do design e da arte e seraacute no proacuteximo na transposiccedilatildeo de quatro conceitos gregos que

ainda satildeo potencialmente fecundos e influentes na atualidade Atentos especificamente

ao acircmbito da historiografia nos esforccedilamos tambeacutem no sentido de buscar equiliacutebrio no

tratamento do tema das relaccedilotildees tendo consciecircncia da longa histoacuteria da arte ocidental

em comparaccedilatildeo com o curto periacuteodo formal da histoacuteria do design

52

Outro ponto que precisa ser ressaltado eacute que apesar da ampliaccedilatildeo do interesse em

torno do tema das relaccedilotildees entre design e arte se confirmar com mais estudos debates e

publicaccedilotildees ateacute onde pudemos averiguar natildeo encontramos autores que o tratem sob o

crivo da ontologia Natildeo entendemos a falta de bibliografia especiacutefica como um problema

Ao contraacuterio tal situaccedilatildeo eacute oportunidade estimulante de se avanccedilar em um novo territoacuterio

No entanto o diaacutelogo com os autores especialmente os do design torna-se agraves vezes mais

difiacutecil de se efetivar uma vez que os temas relacionados agrave nossa pesquisa se encontram

esparsos em artigos e livros dedicados a outras questotildees

Aleacutem disso apesar da proposta daquilo que atualmente eacute nomeado uma ldquofilosofia do

designrdquo estar avanccedilando nas reflexotildees sobre design sentimos falta em alguns autores de

uma caracteriacutestica usual aos teoacutericos das ciecircncias humanas e sociais a de explicitar suas

filiaccedilotildees ideoloacutegicas ou a que linhas de pensamento eles se contrapotildeem ao defenderem

suas proacuteprias posiccedilotildees Nesses casos somos obrigados a um adicional exerciacutecio de her-

menecircutica buscando razotildees subjacentes aos textos as vezes em frases curtas e palavras

extraindo delas nossa interpretaccedilatildeo Dadas essas circunstacircncias trazer os fundamentos

ontoloacutegicos para o debate nas relaccedilotildees entre design e arte eacute tarefa que exige a inserccedilatildeo de

elementos propedecircuticos de origem filosoacutefica (como a lista terminoloacutegica do iniacutecio deste

capiacutetulo) que pode se tornar enfadonha para parte dos leitores Por tudo isso quanto

ao escopo da tese procuramos natildeo avanccedilar em direccedilatildeo a abordagens de acircmbito pedagoacute-

gico social e econocircmico entre outras igualmente relevantes e produtivas para se pensar

as bases das relaccedilotildees entre design e arte mas privilegiamos o enfoque ontoloacutegico que

acreditamos precede aos demais

53

2 ORIGENS E CONSEQUEcircNCIAS DA HIERARQUIZACcedilAtildeO DA

CIEcircNCIA TEacuteCNICA E ARTE

Tendo o escopo da tese delimitado iniciamos o capiacutetulo atual com algumas consideraccedilotildees

sobre a intenccedilatildeo que nos guia e jaacute se encontra anunciada quando apresentamos o graacutefico

da figura 2 (p 45) a propoacutesito das origens histoacutericas de nosso tema As definiccedilotildees de

phyacutesis poacuteiesis episteacuteme e teacutekhne tecircm um entrelaccedilamento de suas essecircncias proacuteprio da

visatildeo de mundo grega mas que foi se esgarccedilando com o passar dos seacuteculos e chegam agrave

atualidade separadas nas ideias de natureza produccedilatildeo ciecircncia e arte O presente capiacute-

tulo efetiva a primeira das quatro etapas do meacutetodo ou seja busca uma compreensatildeo

preliminar de alguns elementos constituintes e comuns ao design e agrave arte que no nosso

entendimento foram herdados de um periacuteodo na histoacuteria do pensamento onde uma

cisatildeo e hierarquizaccedilatildeo dos conceitos de ciecircncia teacutecnica e arte estavam em andamento

Assim eacute preciso retornar a essa eacutepoca para compreender as razotildees desse processo O

texto se divide em trecircs partes

Na primeira seccedilatildeo iniciamos com as quatro concepccedilotildees gregas anteriores como

parte da formaccedilatildeo da estrutura do pensamento claacutessico que nos chancelam a entrada no

universo teoacuterico de Platatildeo acerca do conhecimento

Na segunda seccedilatildeo tendo em conta a divisatildeo e hierarquizaccedilatildeo que a teoria platocircnica

propotildee para o conhecimento e as produccedilotildees humanas analisamos a ruptura que se esta-

belece ainda na Greacutecia antiga entre ciecircncia entendida como conhecimento verdadeiro

(episteacuteme) e arte mimeacutetica enquanto mera coacutepia no mundo sensiacutevel

Na terceira frente a influecircncia quase hegemocircnica dessa concepccedilatildeo de origem platocircnica

nos ciacuterculos cientiacuteficos da contemporaneidade partimos das descriccedilotildees de Koyreacute e das

criacuteticas de Nietzsche para destacarmos as nuances das posiccedilotildees de Tomaacutes Maldonado

Gui Bonsiepe Rafael Cardoso e Beat Schneider no emaranhado das relaccedilotildees entre ciecircncia

teacutecnica design e arte E em busca de um contraponto conceitual criticamos a visatildeo do

platonismo apoiando-n0s nas posiccedilotildees de cada um desses quatro autores Em seguida de

posse de alguns conceitos de Vileacutem Flusser e Rafael Cardoso encaminhamos as reflexotildees

para conexotildees especiacuteficas entre design ciecircncia teacutecnica e arte e propomos uma primeira

incursatildeo no acircmbito da ontologia contrapondo as concepccedilotildees desses dois autores

54

21 A essecircncia compartilhada de quatro conceitos gregos

Para a anaacutelise das palavras gregas phyacutesis poacuteiesis teacutekhne e episteacuteme buscamos definiccedilotildees

principalmente no Diccionario de Filosofia Joseacute Ferrater Mora (1979) e no Dicionaacuterio

Grego-Portuguecircs (dgp) de Malhadas Dezotti e Neves (2006ndash2010) Nossa intenccedilatildeo

foi equilibrar os conteuacutedos mais especiacuteficos do primeiro leacutexico com os mais gerais do

segundo A especificidade do Diccionario de Filosofia Ferrater Mora expliacutecita no proacuteprio

nome se comprova em verbetes que privilegiam os sentidos ligados agrave filosofia e aacutereas cor-

relatas Por outro lado de forma complementar o Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs (dgp)

tem como proposta atender ldquodiversas aacutereas do conhecimentordquo sendo ldquoum dicionaacuterio de

liacutengua isto eacute natildeo-enciclopeacutedicordquo (malhadas dezotti neves 2006 v 1 p vii)

Aleacutem disso ambos os dicionaacuterios privilegiam o momento histoacuterico de nosso interesse

o Ferrater Mora inicia cada verbete discorrendo sobre a origem da entrada enunciada

normalmente a antiguidade claacutessica e o dgp concentra-se na liacutengua grega antiga natildeo

incluindo o leacutexico moderno

Em relaccedilatildeo agrave pesquisa dos conceitos subjacentes a essas quatro palavras nos apoiamos

sobretudo em dois autores Novamente Ferrater Mora (1979) por seu direcionamento

a temas filosoacuteficos e por suas anaacutelises circunscreverem tambeacutem as posteriores traduccedilotildees

dessas palavras para o latim E Heidegger (2012) por fazer um caminho no tempo na

direccedilatildeo inversa agrave de Ferrater Mora incorporando aos seus estudos filoloacutegicos o momento

do pensamento preacute-socraacutetico imediatamente anterior ao periacuteodo claacutessico de Platatildeo e

Aristoacuteteles Nesse sentido a contribuiccedilatildeo de ambos eacute relevante para a compreensatildeo de um

contexto histoacuterico mais alargado da cisatildeo entre ciecircncia teacutecnica e arte Passemos entatildeo

agraves palavras e seus conceitos

211 Phyacutesis

Entre os gregos a ideia de phyacutesis (φύσις) corresponde ao real enquanto independente

ou seja aquilo que existe por si Phyacutesis pode ser empregada em vaacuterios sentidos Talvez o

55

mais comum dos seus significados seja a ideia de reuniatildeo ou totalidade dos seres naturais

ou natureza Nesse sentido geral como afirma Ferrater Mora (1979 v 3 p 2309) ocorre

o emprego da grafia com maiuacutescula como um nome proacuteprio ldquoa Naturezardquo

Em uma acepccedilatildeo especiacutefica e independente da anterior natureza determina a essecircn-

cia de um ser particular como por exemplo ao afirmar-se que a natureza do homem eacute

a razatildeo a poliacutetica ou a guerra Entre os diversos sentidos da palavra acumulados desde

entatildeo essas duas acepccedilotildees (uma abrangente outra restritiva) se preservaram ateacute os dias

de hoje o que favorece de algum modo nosso entendimento acerca deste conceito pelo

menos nesses dois aspectos

Tal eacute a importacircncia da palavra em sua origem que Ferrater Mora inclui em seu Dic-

cionario de Filosofia aleacutem do verbete natureza o verbete phyacutesis considerando o

segundo uma introduccedilatildeo ao primeiro A este propoacutesito ele afirma

Geralmente traduz-se φύσις [phyacutesis] por lsquonaturezarsquo [] Com efeito φύσις eacute o nome que corresponde ao verbo φύω [phyacuteo] (infinitivo φύειν [phyacuteein]) o qual significa ldquoproduzirrdquo ldquofazer crescerrdquo ldquoengendrarrdquo ldquocrescerrdquo formar-serdquo etc [] daiacute φύσας [phyacutesas] ldquoengendradorrdquo ldquogeradorrdquo ldquoprogenitorrdquo quer dizer ldquopairdquo Analogamente natura [latim] eacute o nome que corresponde ao verbo nascor (in-finitivo nasci) que significa ldquonascerrdquo ldquoformar-serdquo ldquocomeccedilarrdquo ldquoser produzidordquo como em ex me natus est ldquonascido de mim (eacute meu filho)rdquo Daiacute que φύσις [phyacutesis] equivale (pelo menos em grande parte) a natura e seja traduzido por lsquonaturezarsquo enquanto que ldquoo que surgerdquo ldquoo que nascerdquo ldquoo que eacute engendrado (ou engendra)rdquo e por isso tambeacutem certa qualidade inata ou propriedade que pertence agrave coisa de que se trata e que faz que esta coisa seja o que eacute em virtude de um princiacutepio proacuteprio seu (ferrater mora 1979 v 3 p 2569) Traduccedilatildeo nossa

A variedade de significados de phyacutesis na liacutengua grega tambeacutem se mostra no Dicionaacuterio

de Grego-Portuguecircs (dgp) tanto pelo espaccedilo maior dedicado ao verbete quanto pelas

15 acepccedilotildees das quais apresentamos em resumo as oito primeiras

1 natureza qualidade natural qualidade ou propriedade constitutiva maneira de ser [] 2 natureza do corpo compleiccedilatildeo fiacutesica forma exterior talhe es-tatura etc [] 3 natureza do espiacuterito ou da alma disposiccedilatildeo natural iacutendole caraacuteter [] 4 instinto (de animal) 5 ordem natural natureza [] 6 gera-ccedilatildeo nascimento [] 7 Fil natureza como princiacutepio origem 8 constituiccedilatildeo geral das coisas natureza universo mundo criado [] (malhadas dezotti neves 2010 v 5 p 225)

56

Como podemos observar no dgp somente a partir da quinta acepccedilatildeo os significados

se aproximam mais de conceitos filosoacuteficos Mas tendo em vista a semelhanccedila do sentido

de palavras como engendrar gerar e produzir empregadas nos dois dicionaacuterios consta-

tamos que o conceito de produccedilatildeo perpassa diversas acepccedilotildees de phyacutesis Isso jaacute era de se

esperar uma vez que como afirmamos a natureza eacute aquilo que existe por si Portanto

esta existecircncia espontacircnea exige capacidade de autoproduccedilatildeo

Faccedilamos uma pausa para refletir sobre o que se conquista ateacute aqui A identificaccedilatildeo

desse liame entre natureza e produccedilatildeo eacute decisiva para a nossa abordagem Estaacutevamos nos

referindo a esse tipo de viacutenculo quando no capiacutetulo 1 defendemos a ideia de plasticidade

dos conceitos gregos que abarcam diferentes domiacutenios teoacutericos e praacuteticos O conceito de

produccedilatildeo que ateacute este momento se apresenta como constituinte da phyacutesis iraacute se revelar

tambeacutem nas anaacutelises da teacutekhne e da episteacuteme Para tanto eacute necessaacuterio compreender pro-

duccedilatildeo primariamente em seu sentido lato como poacuteiesis

212 Poacuteiesis

Normalmente traduzida como produccedilatildeo poacuteiesis (ποίησις) tambeacutem tem vaacuterias acepccedilotildees

por seu emprego em diversas aacutereas e circunstacircncias desde o uso comum e cotidiano na

vida grega ateacute no discurso mitoloacutegico artiacutestico e filosoacutefico Eacute fundamentalmente uma

concepccedilatildeo abstrata por sua caracteriacutestica de generalidade Dela derivam seus modos

particulares e concretos E como ocorre com os conceitos de caraacuteter geral a compreen-

satildeo da abstraccedilatildeo favorece ao entendimento de suas manifestaccedilotildees concretas e vice-versa

Algumas acepccedilotildees no dgp mostram isso

1 accedilatildeo de fazer criaccedilatildeo 2 crist a criaccedilatildeo ie o mundo criado 3 fabrica-ccedilatildeo confecccedilatildeo de (trabalho manual) gen 4 accedilatildeo de compor obras poeacuteticas 5 faculdade de compor obras poeacuteticas arte da poesia 6 composiccedilatildeo poeacutetica obra poeacutetica poema 7 arte poeacutetica [] (malhadas dezotti neves 2009 v 4 p 101)

57

Heidegger confirma e reforccedila a abrangecircncia da poacuteiesis ao afirmar que ela abarca tanto

as produccedilotildees humanas como as da natureza indicando uma classificaccedilatildeo ou ordenaccedilatildeo

em graus de importacircncia na constituiccedilatildeo da realidade

Tudo agora depende de se pensar a pro-duccedilatildeo[1] e o pro-duzir em toda a sua amplitude e ao mesmo tempo no sentido dos gregos Uma pro-duccedilatildeo ποίησις [poacuteiesis] natildeo eacute apenas a confecccedilatildeo artesanal e nem somente levar a aparecer e conformar poeacutetica e artisticamente a imagem e o quadro Tambeacutem a φύσις [phyacutesis] o surgir e elevar-se por si mesmo eacute uma pro-duccedilatildeo eacute ποίησις [poacuteiesis] A φύσις [phyacutesis] eacute ateacute a maacutexima ποίησις [poacuteiesis] Pois o vigente φύσει [phyacutesei] tem em si mesmo (ἐν ἐαυτῷ) [en eautoacutei] o eclodir da pro-duccedilatildeo Enquanto o que eacute produzido pelo artesanato e pela arte por exemplo o caacutelice de prata natildeo possui o eclodir da pro-duccedilatildeo em si mesmo mas em um outro (ἐν αλλῷ) [en alloacutei] no artesatildeo e no artista (heidegger 2012 p 16)

A densidade do texto de Heidegger exige uma anaacutelise por partes Existem pelo

menos trecircs pontos que se entrelaccedilam na citaccedilatildeo anterior que merecem ser explicitados

Primeiramente Heidegger subsume phyacutesis agrave poacuteiesis e a classifica como o mais alto niacutevel

de produccedilatildeo Tal viacutenculo entre poacuteiesis e phyacutesis dentro de uma hierarquia mais do que

apontar para a essecircncia comum de natureza e produccedilatildeo apresenta a natureza como um

entre outros tipos de produccedilatildeo Heidegger no entanto atenta para um segundo pon-

to o que justifica a posiccedilatildeo ldquomaacuteximardquo da phyacutesis dentro do gecircnero das produccedilotildees eacute sua

1 Heidegger tem um estilo de escrita que separa palavras e une outras para reforccedilar sentidos que natildeo se expressam explicitamente na grafia normal Isso segundo ele pode gerar ldquomal-entendidosrdquo Mas a liacutengua em que ele escreve favorece a esse tipo de intervenccedilatildeo Como afirma Fernando Mendes Pessoa

ldquoHeidegger utiliza-se de um recurso que a liacutengua alematilde oferece em sua possibilidade de compor palavras atraveacutes da junccedilatildeo de diferentes partiacuteculas a um mesmo radical dando diversas nuances a seu sentidordquo (pessoa 2009 p 195) Aleacutem disso o proacuteprio Heidegger a propoacutesito do uso incomum que ele oferece por exemplo para a palavra ldquoGestellrdquo (composiccedilatildeo) como teacutecnica considera uma estravagacircncia e se justifica ldquoSoacute que esta extravagacircncia eacute um antigo costume do pensamento E os pensadores tornam-se extravagantes precisamente quando tecircm de pensar o mais elevado Noacutes epigonais jaacute natildeo possuiacutemos condiccedilatildeo de avaliar o significado do fato de Platatildeo aventurar-se a utilizar a palavra εἶδος [eidos] para dizer a essecircncia de tudo e de cada coisa Pois na linguagem de todo dia εἶδος [eidos] diz a visatildeo que uma coisa visiacutevel nos apresenta agrave percepccedilatildeo sensiacutevel Ora Platatildeo pretende da palavra algo inteiramente extraordinaacuterio Pretende designar o que jamais se poderaacute perceber com os olhos E a extravagacircncia natildeo termina aiacute Pois ἰδέα [idea] natildeo evoca apenas o perfil natildeo sensiacutevel do que se vecirc sensivelmente Ιδέα [idea] o perfil significa e eacute tambeacutem o que perfaz a essecircncia de tudo que se pode ouvir tocar sentir de tudo que de alguma maneira se nos torna acessiacutevel Comparado com o que Platatildeo pretende da liacutengua e do pensamento neste e em outros casos o uso que ousamos agora fazer da palavra ldquoGestellrdquo com-posiccedilatildeo para dizer a essecircncia da teacutecnica moderna eacute quase inocente E natildeo obstante continua sendo uma pretensatildeo sujeita a muitos mal-entendidosrdquo (heidegger 2012 p 23-24)

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capacidade de autoproduccedilatildeo sua autonomia ou com suas palavras ldquoo surgir e elevar-se

por si mesmordquo O terceiro ponto eacute que a percepccedilatildeo da diferenciaccedilatildeo entre produccedilatildeo natu-

ral e produccedilatildeo humana ocorre justamente pelo entendimento de que produccedilatildeo humana

natildeo eacute autoproduccedilatildeo mas produccedilatildeo em um ldquooutrordquo Se a coesatildeo e organizaccedilatildeo em torno

desses trecircs pontos apresenta seu nuacutecleo na ideia de produccedilatildeo a uacuteltima delas por natildeo ser

em si mesma conduz nossa anaacutelise para a teacutekhne

213 Teacutekhne

Teacutekhne (τέχνη) eacute mais uma palavra com muitas acepccedilotildees pois tambeacutem acrescenta aos

sentidos de uso comum os de caraacuteter e emprego filosoacutefico que foram sendo atribuiacutedos

pelos pensadores gregos Conforme o que define o dgp

1 destreza manual habilidade 2 exerciacutecio de uma habilidade manual ofiacutecio profissatildeo [] 3 arte habilidade [] 4 conhecimento teoacuterico metodologia 5 artifiacutecio astuacutecia intriga maquinaccedilatildeo 6 meio expediente [] 7 produto de uma arte obra de arte obra 8 tratado sobre uma arte [] (malhadas dezotti neves 2010 v 5 p 122)

Considerando que a ordem de numeraccedilatildeo das acepccedilotildees em um dicionaacuterio procede

dos significados mais evidentes e usuais para os menos comuns ou mais exclusivos a seacuteti-

ma posiccedilatildeo deve indicar um sentido subjacente ou especiacutefico ligado agrave palavra produccedilatildeo

ou pelo menos com o resultado de uma produccedilatildeo isto eacute seu ldquoprodutordquo Uma vez que

importa dados os nossos propoacutesitos buscarmos relacionar cada nova palavra e conceito

com os demais jaacute descritos vamos direto para a seacutetima acepccedilatildeo Associar teacutekhne a produto

como faz o dicionaacuterio a insere dentro do domiacutenio da poacuteiesis E Heidegger argumenta na

mesma direccedilatildeo

τέχνικόν [teacutekhnikoacuten] diz o que pertence agrave τέχνη [teacutekhne] Devemos considerar duas coisas com relaccedilatildeo ao sentido desta palavra De um lado τέχνη [teacutekhne] natildeo constitui apenas a palavra do fazer na habilidade artesanal mas tambeacutem do fazer da grande arte e das belas-artes A τέχνη [teacutekhne] pertence agrave pro-duccedilatildeo a ποίησις [poacuteiesis] eacute portanto algo poeacutetico (heidegger 2012 p 17)

59

Na citaccedilatildeo anterior o mais relevante para a nossa anaacutelise eacute a identificaccedilatildeo do viacutencu-

lo entre teacutekhne e poacuteiesis equivalente ao que Heidegger reconhece ocorrer entre phyacutesis e

poacuteiesis A consequecircncia eacute que ambas podem ser entendidas como produccedilatildeo Aleacutem disso

o filoacutesofo indica o emprego ambivalente da palavra tanto no trabalho artesanal quanto

no das belas-artes significados que se concentram nas trecircs primeiras acepccedilotildees do dgp

Essas por serem atividades profissionais pressupotildeem produccedilatildeo e conhecimento poreacutem

carregam o sentido mais comum de habilidade associada ao uso das matildeos como ofiacutecio

ou arte Ferrater Mora de modo semelhante mostra como os conceitos de teacutekhne e arte

se imbricam em algumas acepccedilotildees

Os gregos usavam o termo τέχνη [teacutekhne] (com frequecircncia traduzido por ars lsquoartersquo e que eacute a raiz etimoloacutegica de lsquoteacutecnicarsquo para designar uma habilidade mediante a qual se faz algo mdash geralmente se transforma uma realidade natural em uma realidade ldquoartificialrdquomdash A teacutechne natildeo eacute no entanto qualquer habilidade senatildeo uma que segue certas regras por meio das quais se consegue algo Por isso existe uma teacutechne da navegaccedilatildeo (ldquoarte da navegaccedilatildeordquo) uma teacutechne da caccedila (ldquoarte da caccedilardquo) uma teacutechne do governo (ldquoa arte de governarrdquo) etc (ferrater mora 1979 v 4 p 2569) Traduccedilatildeo nossa

O trecho acima eacute o prenuacutencio do duplo caminho que teacutekhne iraacute seguir historicamente

quando por um lado for traduzida por ars (arte) na liacutengua e cultura latina e por outro

passar etimologicamente tambeacutem para o latim com o conceito diverso de teacutecnica Aten-

temos aqui para a duplicidade de sentidos de teacutekhne apontada por Ferrater Mora como

trabalho artesanal e belas-artes que se aproxima da ambivalecircncia indicada por Heidegger

Ainda uma uacuteltima questatildeo em relaccedilatildeo agrave citaccedilatildeo anterior eacute a particularidade da teacutekhne

em funccedilatildeo de sua necessidade de ldquoregrasrdquo Tal especificidade eacute correlata agrave quarta acepccedilatildeo

do dgp que relaciona teacutekhne com conhecimento teoacuterico e metodologia Esse acordo de

sentidos entre teacutekhne conhecimento teoacuterico e metodologia eacute tambeacutem confirmado por

Heidegger na permuta de significados que ocorre entre os conceitos de teacutekhne e espisteacuteme

[] o que vale considerar ainda a propoacutesito da palavra τέχνη [teacutekhne] eacute de maior peso Τέχνη [teacutekhne] ocorre desde cedo ateacute o tempo de Platatildeo juntamente com a palavra ἐπιστήμη [episteacuteme] Ambas satildeo palavras para o conhecimento em seu sentido mais amplo Dizem ser versado em alguma coisa dizem entender do assunto (heidegger 2012 p 17)

60

Se a quarta acepccedilatildeo do dgp tambeacutem se destaca ao relacionar teacutekhne com conheci-

mento o que mais sobressai nesse caso eacute ser conhecimento no acircmbito teoacuterico Natildeo sem

razatildeo Heidegger declara tal relaccedilatildeo ser ldquode maior pesordquo O conhecimento especificado

enquanto ldquoteoacutericordquo atrai a atenccedilatildeo uma vez que na esfera da filosofia episteacuteme deteacutem a

primazia para exprimir um saber especulativo distinto do saber praacutetico Tal proximidade

de sentidos nos leva ateacute a anaacutelise da ultima palavra episteacuteme

214 Episteacuteme

Diferentemente das palavras anteriores episteacuteme (ἐπιστήμη) no dgp somente apresenta

quatro acepccedilotildees

1 experiecircncia habilidade destreza em algo [] 2 conhecimento saber 3 conhecimento cientiacutefico ciecircncia (op a τέχνη [teacutekhne] e a ἐμπειρία [empeiriacutea] e a δόξα [doacutexa]) 4 aplicaccedilatildeo do espiacuterito estudo (malhadas dezotti neves 2007 v 2 p 131)

Apesar do nuacutemero reduzido de sentidos que creditamos agrave especificidade da palavra

os conceitos envolvidos satildeo complexos e isto se mostra na oposiccedilatildeo entre a primeira e a

terceira acepccedilotildees Essa oposiccedilatildeo (indicada pela abreviaturaldquooprdquo no dgp) contrapotildee expe-

riecircncia (empeiriacutea) agrave ciecircncia Outras duas oposiccedilotildees satildeo entre ciecircncia e teacutekhne e ciecircncia e

doacutexa (opiniatildeo) No nosso entendimento considerando a posiccedilatildeo de Platatildeo que veremos

a seguir diriacuteamos que ao inveacutes de pura oposiccedilatildeo ocorreria a partir desse pensador uma

subordinaccedilatildeo em niacuteveis de conhecimento em que episteacuteme se estabelece no topo do saber

teacutekhne em um niacutevel intermediaacuterio e empeiriacutea (experiecircncia sensiacutevel) e doacutexa (opiniatildeo) no

mais baixo niacutevel do senso comum estabelecido no cotidiano

O nuacutemero de variantes de significado das palavras analisadas ateacute aqui eacute muito maior

do que essa exposiccedilatildeo pode mostrar Nossa seleccedilatildeo teve como principal criteacuterio as caracte-

riacutesticas em comum dessas palavras privilegiando suas relaccedilotildees com o conceito de produccedilatildeo

Complementando a anaacutelise apresentamos dois graacuteficos O da figura 3 sintetiza o que foi

exposto ateacute aqui Ele retoma a linha do tempo do graacutefico da figura 2 (cf capiacutetulo 1 p 45)

acrescentando o conceito de phyacutesis e restringindo-se o periacuteodo agrave antiguidade greco-latina

61

O graacutefico da figura 4 manteacutem a estrutura matriz de poacuteiesis da figura 3 e associa as

produccedilotildees humanas agrave teoria pela proacutepria caracteriacutestica do pensamento grego que entende

tanto episteacuteme quanto teacutekhne como um saber que antecede e subsidia o fazer Na origem

de teoria no uso cotidiano da liacutengua teoroacutes (θεωρός) se referia ao espectador dos jogos

oliacutempicos e de outros espetaacuteculos Teoriacutea (θεωρία) significa accedilatildeo de ver de observar con-

templar examinar e especular Sua relaccedilatildeo com o olhar aproxima-a do sentido da palavra

oida (οἶδα) mdash que significa ao mesmo tempo ver e compreender Isso eacute mais um indiacutecio

do quanto os gregos associavam a visatildeo ao conhecimento E o Ocidente eacute herdeiro desse

modo de compreender a realidade

Figura 3 Linha do tempo indicando os sucessivos desdobramentos do conceito de poacuteiesis (produccedilatildeo) no periacuteodo claacutessico greco-latino fonte autor

asymp aC

PERIacuteODO DE PLAacuteSTICIDADEENTRE OS CONCEITOS

EPISTEacuteME

TEacuteKHNE

PHYacuteSIS

SCIENTIA

TECHNICUS

ARS

NATURA

POacuteIESIS

Greacutecia

Figura 4 Representaccedilatildeo das trecircs categorias de produccedilatildeo e a relaccedilatildeo das produccedilotildees humanas (teacutekhne e episteacuteme) com seus fundamentos teoacutericos fonte autor

NATURALTEOacuteRICA TEOacuteRICAPRAacuteTICA

POacuteIESIS

PHYacuteSISTEacuteKHNEEPISTEacuteME

PRODUCcedilAtildeO GERAL

62

22 Hierarquia platocircnica cisatildeo e ruptura

Platatildeo herda os conceitos de phyacutesis poacuteiesis teacutekhne e episteacuteme de seus antecessores e os

reelabora para fundamentar sua teoria acerca do conhecimento No acircmbito de nossa pes-

quisa selecionamos na obra deste pensador o diaacutelogo A repuacuteblica percorrendo algumas

de suas passagens e seguindo seus passos para identificar a hierarquizaccedilatildeo e classificaccedilatildeo

dos tipos de conhecimento e produccedilatildeo humana

A repuacuteblica trata o tema de nosso interesse em trechos distintos como de praxe

em um diaacutelogo platocircnico Nesses momentos Platatildeo constroacutei argumentos tendo como

opositor principal Homero reconhecido na eacutepoca como o grande educador da Greacutecia

A intenccedilatildeo expliacutecita de Platatildeo eacute substituir a poesia pela filosofia reivindicando para esta

uacuteltima o primado da educaccedilatildeo e conduzindo os filoacutesofos ao governo da cidade Para noacutes no

entanto o que importa satildeo as estrateacutegias impliacutecitas a essa intenccedilatildeo Nelas como veremos

estaacute a metafiacutesica de Platatildeo que critica e afasta a arte poeacutetica2 da ciecircncia e da teacutecnica O

diaacutelogo platocircnico tem como protagonista Soacutecrates e alguns disciacutepulos que se revesam na

discussatildeo dos temas Nos trechos analisados os personagens concentram sua reflexatildeo em

torno da proposta de criaccedilatildeo de uma cidade justa Para tanto Soacutecrates argumenta sobre

o imperativo de que cada fundador da cidade trabalhe no ofiacutecio que conheccedila melhor

Ƕ Por Zeus que nada me admira mdash disse eu mdash Ao ouvir-te falar penso tambeacutem que em primeiro lugar cada um de noacutes natildeo nasceu igual a outro mas com naturezas diferentes cada um para a execuccedilatildeo de sua tarefa Ou natildeo te parece

Ƕ Parece-me Ƕ Como assim Uma pessoa faraacute melhor em trabalhar sozinho em muitos ofiacutecios ou quando for soacute um a executar um

Ƕ Quando for um soacute a executar um Ƕ Mas julgo eu que eacute tambeacutem evidente que se algueacutem deixar fugir a oportunidade de fazer uma coisa perde-a

Ƕ Eacute evidente

2 A criacutetica platocircnica agrave arte pode ser dividida em trecircs partes A primeira (de conteuacutedo) vai do fim do livro ii ao iniacutecio do livro iii A segunda (ligada agrave forma ao estilo) inicia-se em 392c e avanccedila pelo livro iii A terceira (ontoloacutegica) vai do iniacutecio do livro x ateacute 608b sendo a mais contundente e relevante para os nossos propoacutesitos

63

Ƕ Eacute que creio eu a obra natildeo espera pelo lazer do obreiro mas forccedila eacute que o obreiro acompanhe o seu trabalho sem ser agrave maneira de um passatempo

Ƕ Eacute forccediloso Ƕ Por conseguinte o resultado eacute mais rico mais belo e mais faacutecil quando cada pessoa fizer uma soacute coisa de acordo com a sua natureza e na ocasiatildeo proacutepria deixando em paz as outras

Ƕ Absolutamente (platatildeo 1987 p 74)

Se os homens possuem naturezas distintas a teacutekhne mdash arte em seu sentido de ofiacutecio

pressupondo um conhecimento que cada profissional deve dominar mdash se impotildee como

criteacuterio de separaccedilatildeo entre as atividades mas tambeacutem de hierarquizaccedilatildeo dos saberes Aqui

a intenccedilatildeo impliacutecita de Platatildeo eacute que a compreensatildeo sobre o domiacutenio da arte ou das diver-

sas artes ultrapasse o acircmbito gnoseoloacutegico em busca de seus fundamentos ontoloacutegicos

Como afirma o filoacutesofo Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro

Afinal de contas em se tratando de viajar por alto mar natildeo eacute indiferente admitir a opiniatildeo do piloto ou a do leigo Um primeiro sentido de ldquoarterdquo eacute esse uma com-petecircncia que se aprende e se exercita pela qual os que de fato a aprenderam e a exercitaram se distinguem dos demais constituindo-se em autoridades ldquonaturaisrdquo nos seus respectivos domiacutenios Mas o ponto mais importante natildeo eacute de ordem gnosioloacutegica e sim ontoloacutegica os domiacutenios de coisas teriam um modo de ser proacuteprio teriam um ldquoem-sirdquo vale dizer que o experiente conheceria e dominaria pouco a pouco tirando partido posteriormente daquilo que natildeo escolheu mas a que se rendeu a essecircncia da proacutepria coisa A existecircncia de vaacuterias artes parece atestar que sim (ribeiro 2006 p 104)

No entanto essa proposta subjacente ao texto de Platatildeo mdash de um domiacutenio de um

territoacuterio real da teacutekhne que pode ser acessado atraveacutes do aprendizado mdash eacute apresentada em

um processo dialoacutegico em que o discurso de Soacutecrates caminha no sentido de constituir

uma cidade justa e portanto livre de tudo o que segundo ele eacute supeacuterfluo E os disciacutepulos

que ouvem na roda do diaacutelogo suas sugestotildees para uma cidade saudaacutevel onde o que mais

importa eacute a subsistecircncia humana discordam da consequente simplicidade de vida a que

seus habitantes devem se submeter Glaacuteucon eacute o mais ousado deles ao replicar

Ƕ Se estivesses a organizar oacute Soacutecrates mdash interveio ele mdash uma cidade de porcos natildeo precisavas de outra forragem para eles

Ƕ Mas entatildeo como haacute-de ser oacute Glaacuteucon

64

Ƕ O costume mdash respondeu ele mdash Acho que devem reclinar-se em leitos se natildeo quiserem que se sintam infelizes e que jantem agrave mesa iguarias como hoje haacute e sobremesas

Ƕ Seja mdash disse eu mdash Compreendo Natildeo estamos apenas a examinar ao que parece a origem de uma cidade mas uma cidade de luxo Talvez natildeo seja mau Efectivamente ao estudarmos uma cidade dessas depressa podemos desco-brir de onde surgem nas cidades a justiccedila e a injusticcedila A verdadeira cidade parece-me ser aquela que descrevemos como uma coisa satilde mas se quiserdes observaremos tambeacutem a que estaacute inchada de humores Nada o impede Bem estas determinaccedilotildees natildeo bastam ao que parece a certas pessoas nem este pas-sadio mas acrescentar-lhes-atildeo leitos mesas e outros objectos e ainda iguarias perfumes e incenso cortesatildes e guloseimas e cada uma destas coisas em toda a sua variedade Em especial natildeo mais se colocaraacute entre as coisas necessaacuterias o que dissemos primeiro mdash habitaccedilotildees vestuaacuterio e calccedilado mdash ir-se-aacute buscar a pintura e o colorido e entender-se-aacute que se deve possuir ouro marfim e preciosidades dessa espeacutecie Eacute ou natildeo

Ƕ Eacute mdash respondeu ele (platatildeo 1987 p 79)

A consequecircncia imediata de se aceitar o ldquoluxordquo na cidade eacute a obrigatoriedade de trazer

para ela os artiacutefices que com suas respectivas artes possam produzir e prover as demais

aspiraccedilotildees dos cidadatildeos Poreacutem junto com esses produtores que tem domiacutenio de uma

teacutekhne precisam vir tambeacutem aqueles cujo trabalho Platatildeo entende como imitaccedilatildeo Nas

palavras de Soacutecrates

Ƕ Portanto temos de tornar a cidade maior A que era satilde natildeo eacute bastante mas temos de a encher de uma multidatildeo de pessoas que jaacute natildeo se encontra na cidade por ser necessaacuteria como os caccediladores de toda a espeacutecie e imitadores muitos dos quais satildeo os que se ocupam de desenho e cores muitos outros da arte das Musas ou seja os poetas e seus servidores mdash rapsodos actores coreutas empresaacuterios mdash artiacutefices que fabriquem toda a espeacutecie de utensiacutelios sobretudo adereccedilos femi-ninos E em especial precisaremos de mais servidores Ou natildeo te parece que careceremos de pedagogos amas governantes accedilafatas cabeleireiros e ainda cozinheiros e marchantes (platatildeo 1987 p 80)

A narrativa de Platatildeo impressiona por sua semelhanccedila com a histoacuteria dos problemas

e das necessidades de uma cidade contemporacircnea em crescimento E as consequecircncias

tambeacutem a longo prazo com mais pessoas na cidade a terra se torna escassa e com a falta

de espaccedilo para pastagens lavoura e outras atividades de subsistecircncia segue-se a falta de

alimentos o que conduz agrave guerra contra outras cidades

65

221 A metafiacutesica impliacutecita ao tema da cidade ideal

Cabe neste ponto uma ressalva os textos antigos normalmente natildeo tratam separada-

mente temas de poliacutetica justiccedila eacutetica loacutegica ciecircncia e arte entre outros Assim como

jaacute dissemos eacute preciso nos manter atentos pois paralelamente a essa narrativa hipoteacutetica

sobre a origem e constituiccedilatildeo de uma Cidade Estado (poacutelis) estaacute impliacutecita a metafiacutesica

platocircnica com a divisatildeo que nos interessa explicitar a hierarquia dos tipos de saberes e

produccedilatildeo como a teacutekhne em sua relaccedilatildeo com a episteacuteme De um lado encontra-se a classe

dos artiacutefices que tecircm um conhecimento e uma teacutekhne que oferece suporte ao seu trabalho

realizando somente um tipo de obra em que satildeo capacitados e tecircm domiacutenio De outro a

dos artiacutefices que produzem obras que satildeo imitaccedilotildees Essa segunda classe depreciada3 por

Platatildeo tem como representantes maacuteximos os poetas Como afirma Ribeiro

Se a arte em sentido lato portanto estaacute no homem desde o comeccedilo a arte em sentido estrito surge quando o homem supera o patamar da mera subsistecircncia e se entrega agrave dimensatildeo supeacuterflua de sua existecircncia O preccedilo dessa superaccedilatildeo eacute cariacutessimo mas o fato de os homens estarem sempre dispostos a pagaacute-lo revela o elemento traacutegico de sua condiccedilatildeo (ribeiro 2006 p 111)

Portanto para fazer a guerra eacute necessaacuterio uma nova classe de profissionais os guerreiros

ou ldquoguardiotildeesrdquo com uma teacutekhne especiacutefica ou uma ciecircncia (episteacuteme) especiacutefica como

prefere Platatildeo neste trecho4dodiaacutelogoldquoEssaciecircnciaeacutedavigilacircncia[]eencontra-se

naqueles chefes que agora mesmo classificamos de guardiotildees perfeitosrdquo (platatildeo 1987 p

178) Assim o proacuteximo passo eacute pensar como educar essa classe desde a infacircncia pois ela

iraacute proteger a cidade e fazer guerra quando necessaacuterio E a educaccedilatildeo depende da literatura

3 Tal depreciaccedilatildeo eacute relativa Platatildeo critica um procedimento do qual ele tambeacutem faz intenso uso Con-forme Ribeiro ldquoPlatatildeo ele mesmo usou mais imitaccedilatildeo que narraccedilatildeo em seus diaacutelogos filosoacuteficos e mesmo no caso da narraccedilatildeo sempre pocircs outrem a narrar por ele Natildeo obstante reclamar por uma esteacutetica ldquomais austera e menos apraziacutevelrdquo (austeroteacutero kaigrave aedesteacutero) seu texto eacute na histoacuteria da filoso-fia aquele em que mais interveacutem o elemento pateacutetico pela presenccedila dramaacutetica natildeo raro traacutegica ou cocircmica dos personagens E eacute tambeacutem o mais apraziacutevelrdquo (ribeiro 2006 p 121)

4 Nesta parte de A Repuacuteblica Platatildeo associa episteacuteme natildeo somente agrave profissatildeo dos guardiotildees como tam-beacutem de outras das quais ele normalmente trata como teacutekhne Assim nesse momento ao inveacutes de arte temos ldquociecircncia dos carpinteirosrdquo ldquociecircncia da construccedilatildeordquo ldquociecircncia dos utensiacutelios de madeirardquo ldquociecircncia de trabalhar objetos de bronzerdquo etc (platatildeo 1987 p 177) Isso comprova como afirmou Heidegger anteriormente que tambeacutem Platatildeo explora a ambivalecircncia dos conceitos de teacutekhne e episteacuteme

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Ƕ Mas haacute duas espeacutecies de literatura uma verdadeira e outra falsa Ƕ Haacute Ƕ E ambas seratildeo ensinadas mas primeiro a falsa Ƕ Natildeo entendo o que queres dizer Ƕ Natildeo compreendes mdash disse eu mdash que primeiro ensinamos faacutebulas agraves crianccedilas Ora no conjunto as faacutebulas satildeo mentiras embora contenham algumas verdades E servimo-nos de faacutebulas para as crianccedilas antes de as mandarmos para os ginaacutesios

Ƕ Assim eacute (platatildeo 1987 p 87)

As palavras de Soacutecrates demonstram a estrateacutegia de Platatildeo de fechar o cerco em torno

dos poetas e rapsodos sob o argumento de que os guerreiros devem ser corajosos e natildeo dar

ouvidos a histoacuterias que estimulam a ira o medo e outras emoccedilotildees que prejudiquem suas

accedilotildeesldquo[]quantomaispoeacuteticasmenosdevemserouvidasporcrianccedilaseporhomens

que devem ser livres e temer a escravatura mais do que a morterdquo (platatildeo 1987 p 178)

222 O argumento ontoloacutegico contra a arte mimeacutetica

No fundamento de uma decisatildeo de caraacuteter pedagoacutegico (educar com excelecircncia os guar-

diotildees) encontra-se a divisatildeo platocircnica em trecircs niacuteveis da produccedilatildeo (poacuteiesis) que buscamos O

passo final de Soacutecrates eacute associar o poeta e outros artistas como o pintor e o tragedioacutegrafo

ao mais baixo niacutevel de uma hierarquia ontoloacutegica em que o resultado de seus trabalhos

natildeo satildeo entendidos como produccedilatildeo mas somente imitaccedilatildeo (miacutemesis)

Ƕ Acaso natildeo existem trecircs formas de cama Uma que eacute a forma natural e da qual diremos segundo entendo que Deus a confeccionou Ou que outro Ser poderia fazecirc-lo

Ƕ Nenhum outro julgo eu Ƕ Outra a que executou o marceneiro Ƕ Sim Ƕ Outra feita pelo pintor Ou natildeo Ƕ Seja Ƕ Logo pintor marceneiro Deus esses trecircs seres presidem aos tipos de leito Ƕ Satildeo trecircs Ƕ Ora Deus ou porque natildeo quis ou porque era necessaacuterio que ele natildeo fabricasse mais do que uma cama natural confeccionou assim aquela uacutenica cama a cama real Mas duas camas desse tipo ou mais eacute coisa que Deus natildeo criou nem criaraacute

67

Ƕ Como assim Ƕ Eacute que se fizesse apenas duas apareceria outra cuja ideia aquelas duas realizariam e essa seria a cama real natildeo as outras duas

Ƕ Exactamente Ƕ Por saber isso julgo eu eacute que Deus querendo ser realmente o autor de uma cama real e natildeo de uma qualquer nem um marceneiro qualquer criou-a na sua natureza essencial una

Ƕ Assim parece Ƕ Queres entatildeo que o intitulemos artiacutefice natural da cama ou algo de semelhante Ƕ Eacute justo uma vez que foi ele o criador disso e de tudo o mais na sua natureza essencial

Ƕ E quanto ao marceneiro Acaso natildeo lhe chamaremos o artiacutefice da cama Ƕ Chamaremos Ƕ E do pintor diremos tambeacutem que eacute o artiacutefice e autor de tal moacutevel Ƕ De modo algum Ƕ Entatildeo que diraacutes que ele eacute em relaccedilatildeo agrave cama Ƕ O tiacutetulo que me parece que se lhe ajusta melhor eacute o de imitador daquilo de que os outros satildeo artiacutefices

Ƕ Seja mdash concordei eu mdash Chamas por conseguinte ao autor aquilo que estaacute trecircs pontos afastado da realidade um imitador

Ƕ Exactamente Ƕ Logo tambeacutem o tragedioacutegrafo seraacute assim (se na verdade eacute um imitador) como se fosse o terceiro depois do rei e da verdade e bem assim todos os outros imitadores (platatildeo 1987 p 455)

Esta longa exposiccedilatildeo faz parte daquilo que ficou conhecido como o argumento

ontoloacutegico de Platatildeo contra a arte mimeacutetica e tem sido motivo de estudo e debate desde

a antiguidade O ponto fundamental para o nosso tema eacute a divisatildeo que este pensador

estabelece para a realidade em trecircs esferas com caracteriacutesticas ontoloacutegicas distintas

Grosso modo a primeira e mais elevada esfera de onde derivam as demais eacute a do

mundo inteligiacutevel ou mundo das ideias Do ponto de vista ontoloacutegico essa eacute a realidade

e laacute se encontra um ldquomodelordquo (παραδειγμαmdashparadeigma) universal para cada ente Pla-

tatildeo nomeia ora como ldquoDeusrdquo ora ldquodemiurgordquo ora ldquoartiacutefice naturalrdquo aquele que fabrica ou

modela cada elemento da realidade a partir de ideias preexistentes O conceito de pree-

xistecircncia das ideias pode parecer extravagante mas ele tem mais proximidade ao conceito

de produccedilatildeo empregado ateacute agora do que ao de criaccedilatildeo Esta questatildeo seraacute retomada ainda

neste capiacutetulo nas anaacutelises sobre as concepccedilotildees de Flusser mas para o momento importa

68

saber que o conceito de produccedilatildeo (poacuteiesis) difere do conceito de criaccedilatildeo (creatio) no sen-

tido hebraico-cristatildeo de criaccedilatildeo a partir do nada (creatio ex nihilo) Produccedilatildeo pressupotildee

uma mateacuteria primordial desordenada e sem forma (χάοςmdashcaos) que pela accedilatildeo (poacuteiesis)

do demiurgo daacute origem ao coacutesmos (κόσμος) o universo ordenado Conforme a figura 5

A segunda esfera eacute a do mundo sensiacutevel e temporal Ela compartilha ou ldquoparticipardquo

dos modelos eternos da realidade transcendente da primeira esfera mas eacute imperfeita

e aparente A essecircncia da realidade natildeo se encontra nela poreacutem os artiacutefices humanos

atraveacutes do conhecimento (teacutekhneepisteacuteme) tecircm acesso aos modelos ideais e os aplicam

na confecccedilatildeo dos objetos e utensiacutelios e demais artefatos do mundo humano Assim por

exemplo uma uacutenica ideia de cama em sua plenitude e perfeiccedilatildeo permite aos marceneiros

produzirem toda a diversidade de camas existentes Como afirma Ribeiro

Uma coisa pelo menos estaacute totalmente a cargo do artista o remate o efetivo pocircr matildeos agrave obra Dizer que ele obedece a um modelo significa dizer que natildeo cria arbitrariamente [] Nenhuma obra esgota o ser do modelo que imita mas de alguma maneira a criaccedilatildeo contiacutenua de obras pereniza na dimensatildeo temporal nos limites do ser mortal o caraacuteter eterno desse modelo (ribeiro 2006 p 128)

Se o mundo inteligiacutevel eacute a realidade laacute eacute o lugar da verdade Portanto o mundo sensiacutevel

se encontra ontologicamente abaixo do primeiro Na forma de se expressar Platatildeo estaacute

dois pontos afastado da realidade e tambeacutem da verdade Entretanto eacute por ter em mente

o modelo eterno da cama que o marceneiro mesmo executando uma coacutepia imperfeita

da ideia pode carregar o tiacutetulo de ldquoartiacuteficerdquo Conforme a figura 6

Figura 5 Representaccedilatildeo na teoria platocircnica do primeiro niacutevel ontoloacutegico e seu produtor o demiurgo ou artiacutefice natural fonte autor

ARTIacuteFICE NATURAL1ordm NIacuteVEL

MODELOS PERFEITOSE UNIVERSAIS

MATEacuteRIA PREEXISTENTEIDEIAS

DEMIURGO

MUNDO INTELIGIacuteVELREALIDADE

CAOS

Tudo em sua natureza essencial

69

Agrave terceira e uacuteltima esfera pertencem todos os que segundo Platatildeo natildeo efetivamente

produzem mas imitam O pintor por exemplo ao produzir uma imagem de uma cama

natildeo vai ateacute agrave ideia de cama mas recorre apenas agrave cama do marceneiro como guia Neste

sentido o pintor ldquoestaacute trecircs pontos afastado da realidaderdquo A figura 7 incorpora o mais

baixo niacutevel ontoloacutegico aos demais superiores e completa o quadro da hierarquia platocircnica

Figura 6 Representaccedilatildeo na teoria platocircnica do segundo niacutevel ontoloacutegico e seu produtor o artiacutefice hu-mano fonte autor

ARTIacuteFICE HUMANO2ordm NIacuteVEL

MATEacuteRIA PREEXISTENTEMODELOS PERFEITOS

E UNIVERSAISIDEIAS

MARCENEIRO

MUNDO INTELIGIacuteVELREALIDADE

MUNDO SENSIacuteVELAPAREcircNCIAS

TEacuteKH

NEE

PIST

EacuteME

Figura 7 Representaccedilatildeo dos trecircs niacuteveis ontoloacutegicos reunidos na hierarquia da metafiacutesica platocircnica O artiacutefice natural e os artiacutefices humanos como o marceneiro satildeo produtores (poieteacutesmdashποιητής) enquanto que os artistas como o pintor o poeta e o ator satildeo apenas imitadores (mimeteacutesmdashμιμητής) fonte autor

ARTIacuteFICE NATURAL1ordm NIacuteVEL

IMITADOR3ordm NIacuteVEL

ARTIacuteFICE HUMANO2ordm NIacuteVEL

MATEacuteRIA PREEXISTENTEMODELOS PERFEITOS

E UNIVERSAISIDEIAS

PINTOR

MARCENEIRO

DEMIURGO

MUNDO INTELIGIacuteVELREALIDADE

MUNDO SENSIacuteVELAPAREcircNCIAS

CAOS

TEacuteKH

NEE

PIST

EacuteME

MIacuteMESIS

Tudo em sua natureza essencial

70

O problema da miacutemesis tem lugar privilegiado na discussatildeo platocircnica sobre o criteacuterio

diferenciador entre o conhecimento (episteacuteme) que busca a universalidade e consequente-

mente a verdade orientando as produccedilotildees e a mimeacutetica que eacute apenas aparecircncia e conduz

agraves coacutepias e agrave falsidade Ribeiro resume este ponto explicitando a diferenccedila e a distacircncia

que separa arte enquanto pura teacutekhne da arte mimeacutetica

Mas que mal haacute em ser imitador Todo demiurgo tambeacutem natildeo ldquoimitardquo algo Repetir-se-ia aqui o dogma de que um estaacute dois pontos afastado da verdade (da ideacuteia) enquanto o outro estaacute trecircs por imitar natildeo diretamente a ideacuteia mas seu homocircnimo sensiacutevel e o lugar-comum de que a obra de arte seria a coacutepia da coacutepia Importante poreacutem eacute interpretaacute-los A imitaccedilatildeo fracassa por natildeo corres-ponder ao modo de ser da teacutechne pressuposto como criteacuterio Em primeiro lugar a mimeacutetica imita toda e qualquer coisa como algueacutem que caminha com um espelho nas matildeos reproduzindo os seres naturais e artificiais com que cruza no caminho natildeo se deteacutem como a teacutechne sobre um campo determinado do real [] Homero imita um general um meacutedico e um arauto sem ser perito em nenhum desses domiacutenios Aleacutem disso a mimeacutetica natildeo se preocupa em conhecer como eacute em si e por si mesmo o real correspondente a cada arte que imita jaacute que lhe basta o aparente (phainoacutemenon) para agradar o grande puacuteblico ignorante que julga pela cor (chrocircma) e formato (schecircma) A mimeacutetica natildeo eacute conhecimento (episteacuteme) natildeo se ateacutem agraves determinaccedilotildees universais e necessaacuterias das coisas [] (ribeiro 2006 p 125-126)

Essa busca por um ldquoreal correspondente a cada arterdquo assim como a subordinaccedilatildeo ldquoagraves

determinaccedilotildees universais e necessaacuterias das coisasrdquo que colocamos em relevo na citaccedilatildeo

anterior proacuteprio da pura teacutekhne e mais ainda da episteacuteme satildeo elementos que se preser-

varam como valores intriacutensecos ao conhecimento na trajetoacuteria posterior do pensamento

impondo assim uma hierarquia do saber

Ao teacutermino dessa exposiccedilatildeo sobre Platatildeo um dos pontos que consideramos relevante

sobre a teoria desse pensador para o presente capiacutetulo estaacute ligado a um elemento que

natildeo se encontra agrave primeira vista expliacutecito em sua concepccedilatildeo hierarquizada do conheci-

mento Esse elemento pode ser extraiacutedo de sua metafiacutesica quando entendemos que este

autor procura uma ordem e permanecircncia que natildeo encontra no mundo sensiacutevel em fluxo

e devir Para Platatildeo natildeo eacute possiacutevel aceitar que a verdade possa estar em um lugar em que

tudo muda o tempo todo E a busca por estabilidade exige delimitaccedilotildees que distinguam

cada componente da realidade dos demais Uma cama deve ser somente uma cama e um

71

marceneiro somente um marceneiro Aquilo que natildeo se encaixa nesse criteacuterio eacute confuso

e indeterminado e portanto natildeo tem lugar ontoloacutegico assegurado em sua concepccedilatildeo da

realidade Mas como vimos no capiacutetulo anterior a questatildeo eacute que a arte e o design por

motivos diversos satildeo indeterminados Portanto eacute necessaacuterio avanccedilar sobre alguns desdo-

bramentos da posiccedilatildeo platocircnica e buscar autores que discordam parcial ou inteiramente

dela para estabelecer um modelo alternativo de conhecimento e realidade ou pelo

menos reelaborar essa concepccedilatildeo de modo a tornaacute-la capaz de mediar a indeterminaccedilatildeo

e a heterogeneidade como propriedades a se preservar

Uma ressalva deve ser feita acerca do tom criacutetico que assumimos em relaccedilatildeo agrave posiccedilatildeo

de Platatildeo Apoacutes 20 seacuteculos de histoacuteria do pensamento ocidental torna-se difiacutecil avaliar

ateacute onde reverberam as suas concepccedilotildees Muito foi dito e natildeo soacute por filoacutesofos sobre a

influecircncia de suas ideias desde a sua contribuiccedilatildeo na formaccedilatildeo do nosso modo de pensar

a vida no acircmbito do senso comum ateacute na construccedilatildeo de elaboradas e abstratas teorias

acerca da realidade Haacute algum tempo eacute lugar comum entre as citaccedilotildees acerca deste pen-

sador a frase do filoacutesofo Alfred North Whitehead ldquoA caracterizaccedilatildeo geral mais segura da

tradiccedilatildeo filosoacutefica europeacuteia eacute que ela consiste em uma seacuterie de notas de rodapeacute a Platatildeordquo

(whitehead 1978 p 39) Traduccedilatildeo nossa Independentemente de se entender tal afir-

maccedilatildeo como retoacuterica5 aceitar ou natildeo a onipresenccedila das ideias desse pensador ou pelo

menos a ubiquidade e recorrecircncia de temas primeiramente por ele propostos parte do

que se credita a Platatildeo foi inspirado em sua metafiacutesica mas estabelecido depois dele e

portanto natildeo pode ser de sua exclusiva responsabilidade para o bem ou para o mal

Subjacente a essa concepccedilatildeo um paracircmetro que orienta o entendimento do tipo de

princiacutepio ordenador da realidade que Platatildeo persegue tem destaque natildeo somente em

seus diaacutelogos No portal da Academia Platocircnica havia uma inscriccedilatildeo com a advertecircncia

ldquoQuem natildeo eacute geocircmetra natildeo entrerdquo (cornelli gabriele 2007 p 420) A forccedila dessa

frase se revela no fato de que ela serve de inspiraccedilatildeo ateacute hoje natildeo soacute para racionalistas mas

tambeacutem para seus opositores empiristas que neste ponto concordam entre si seguros

da validade universal da matemaacutetica Se a matemaacutetica constroacutei seus objetos sem necessi-

dade da experiecircncia sensiacutevel seus fundamentos estatildeo em consonacircncia com concepccedilotildees

5 Essa frase antes de ser publicada no livro Process and Reality foi proferida em uma palestra de Whi-tehead na Gifford Lectures da Universidade de Edimburgo durante as seccedilotildees de 1927 e 1928

72

metafiacutesicas de mundos transcendentes O mundo das ideias platocircnico eacute somente o pri-

meiro representante deste tipo de paradigma que com muitos opositores ainda se faz

presente na atualidade

223 Desdobramentos da hierarquizaccedilatildeo do conhecimento

Na Idade Meacutedia um interluacutedio apoiado no pensamento de Aristoacuteteles havia estabelecido

uma concepccedilatildeo qualitativa que explicava de modo diverso tanto a natureza quanto o ho-

mem No entanto os aspectos quantitativos caros a um racionalista e matemaacutetico como

Platatildeo satildeo retomados com forccedila no pensamento daqueles que iratildeo direcionar os rumos

do conhecimento natural a partir da modernidade Copeacuternico Kepler Galileu e Descar-

tes entre outros Assim contrariando uma visatildeo qualitativa da realidade se estabelecem

a partir da Renascenccedila as bases de uma nova concepccedilatildeo de ciecircncia de caraacuteter descritivo

apoiada em equaccedilotildees nuacutemeros e medidas precisas (burtt 1983) Tal estrutura (aliada

aos conceitos de universalidade e de necessidade apontados por Ribeiro na subseccedilatildeo an-

terior) prosperaraacute em parte pelos resultados extraordinaacuterios de suas realizaccedilotildees praacuteticas

no acircmbito da teacutecnica mas que natildeo eacute bem-sucedida em explicar o homem e seus valores

qualitativos Vale ressaltar as palavras de Maldonado sobre trecircs pilares da modernidade

cientiacutefica e tecnoloacutegica base da revoluccedilatildeo industrial dos seacuteculos xvii e xviii que fomen-

taraacute aspectos formais de disciplinas como o design ldquoUm universo no qual a observaccedilatildeo

escrupulosa a mediccedilatildeo acurada e a quantificaccedilatildeo exata transformaram-se nos trecircs elementos

que sustentam o mundo do engenho estrutural e funcionalrdquo (maldonado 2012 p 178)

A precisatildeo na mediccedilatildeo de que nos fala Maldonado eacute um dos elementos centrais que

o historiador da ciecircncia Alexandre Koyreacute recorre para justificar e tornar inteligiacutevel a

nascente tecnologia da modernidade

De minha parte acredito que a histoacuteria ou melhor a preacute-histoacuteria da revoluccedilatildeo teacutecnica dos seacuteculos xvii e xviii confirma a concepccedilatildeo cartesiana de que foi em consequumlecircncia de uma conversatildeo da ἐπιστήμη [episteacuteme] na τέχνη [teacutekhne] que a maacutequina eoteacutecnica⁹ se transformou na maacutequina moderna (paleoteacutecnica) pois foi essa conversatildeo em outros termos foi a tecnologia nascente que atribuiu agrave

73

segunda aquilo que forma o seu caraacuteter proacuteprio e a distingue radicalmente da primeira ou seja nada mais do que a precisatildeo (koyreacute 1991 p 275)

⁹ Emprego a terminologia extremamente sugestiva do Sr Lewis Mumford Tech-nics and Civilisation 4ordf ed New York 1946 [nota em peacute de paacutegina do autor]

Em outra passagem o autor alerta para a imprecisatildeo do caacutelculo nos periacuteodos histoacute-

ricos anteriores

[] consideremos que o homem do Renascimento o homem da Idade Meacutedia (e a mesma coisa vale tambeacutem para o homem antigo) natildeo sabia calcular E natildeo estava habituado a fazecirc-lo Sabia sem duacutevida bastante bem11 jaacute que a ciecircncia antiga elaborou e desenvolveu os meacutetodos e os meios apropriados executar caacutelculos astronocircmicos mas natildeo sabia mdash12 jaacute que a ciecircncia antiga se preocupou pouco ou nada com isso mdash executar caacutelculos numeacutericos (koyreacute 1991 p 275)

11 Os astrocircnomos o sabiam 12 O comum dos mortais Mesmo as pessoas instruiacute-das [notas em peacute de paacutegina do autor]

Isso natildeo significa que Koyreacute natildeo valorize e natildeo compreenda a habilidade dos estu-

diosos e profissionais anteriores e a relevacircncia de seu trabalho em um periacuteodo em que

a teacutekhne (como vimos) tem componentes teacutecnicos e artiacutesticos mesclados Com plena

consciecircncia disso Koyreacute recorre a uma longa citaccedilatildeo do historiador Lucien Febvre acerca

das conquistas ateacute aquele momento que reproduzimos a seguir

Atualmente noacutes natildeo falamos ou falamos cada vez menos (e jaacute haacute algum tempo) da Noite da Idade Meacutedia Nem do Renascimento como um guerreiro vitorioso que dissipou as trevas para sempre Isso porque prevalecendo o bom senso natildeo poderiacuteamos continuar acreditando nessas obliteraccedilotildees totais de que nos falavam antigamente obliteraccedilotildees da curiosidade humana obliteraccedilotildees do espiacuterito de observaccedilatildeo e se preferirmos obliteraccedilatildeo de invenccedilatildeo Isso porque conside-ramos afinal que uma eacutepoca que teve arquitetos com a envergadura dos que conceberam e construiacuteram nossas grandes basiacutelicas romacircnticas Cluny Veacutezelay Saint-Sernin etc e nossas grandes catedrais goacuteticas Paris Chartres Amiens Reims Bourges e as poderosas fortalezas dos grandes barotildees Coucy Pierre-fonds Chacircteau-Gaillard com todos os problemas de geometria de mecacircnica de transporte de levantamento de materiais pesados de manutenccedilatildeo que seme-lhantes construccedilotildees supotildeem todo o tesouro de experiecircncias bem-sucedidas e de insucessos consignados que esse trabalho ao mesmo tempo exige e alimenta mdash a uma eacutepoca assim seria ridiacuteculo negar em bloco e sem discernimento o espiacuterito de observaccedilatildeo e o espiacuterito de inovaccedilatildeo Olhando com atenccedilatildeo os homens que

74

inventaram ou reinventaram ou adotaram e implantaram em nossa civilizaccedilatildeo do Ocidente a atrelagem dos cavalos pelo peito a ferradura o estribo o botatildeo o moinho de vento e de aacutegua a plaina a buacutessola a poacutelvora para canhatildeo o papel a imprensa etc mdash esses homens bem que fizeram jus ao espiacuterito da invenccedilatildeo e da humanidade (febvre 1946 apud koyreacute 1991 p 274)

No entanto sua posiccedilatildeo eacute de defesa de um ideal em que a ciecircncia quantificada (diriacutea-

mos de inspiraccedilatildeo platocircnica) iraacute se impor sobre a teacutecnica e estabelecer o que ele define

como tecnologia ldquofazer a teoria da praacuteticardquo (koyre 1991 p 267) A figura 8 apresenta

a linha do tempo com a inclusatildeo do conceito de tecnologia proposto por Koyreacute e seu

aporte a partir da segunda metade do seacuteculo xvii para a teacutecnica com consequecircncias

revolucionaacuterias sobre a nascente induacutestria e seus derivados

Se avaliarmos a histoacuteria da ciecircncia tendo em conta particularmente autores que refor-

mularam essa disciplina ao longo do seacuteculo xx como Koyreacute (1982) Burtt (1983) e Koestler

(1989) podemos afirmar que a partir do seacuteculo xv a confianccedila nos aspectos quantitativos

em detrimento dos qualitativos cresce em todas as aacutereas do conhecimento com a busca e

seleccedilatildeo de elementos que demonstrem caracteriacutesticas universais numericamente calculaacute-

veis e aliadas agrave objetividade no que passou a ser conhecido como a mathesis universalis

Os meacutetodos derivados desse modo de explicar parte da realidade foram corroborados

pelo sucesso que as pioneiras ciecircncias naturais alcanccedilaram a partir do seacuteculo xvii com

a matematizaccedilatildeo de seus fundamentos Se tal proposta gnoseoloacutegica foi parcialmente

aceita como verdade porque funciona em seus desdobramentos cientiacuteficos tecnoloacutegicos

Figura 8 Linha do tempo indicando desdobramento do conceito grego de poacuteiesis (produccedilatildeo) em episteacuteme (ciecircncia) e teacutekhne (arte) Apoacutes a cisatildeo entre ciecircncia teacutecnica e arte a tecnologia eacute estabelecida como um elo de ligaccedilatildeo teoacutericopraacutetico entre ciecircncia e teacutecnica fonte autor

asymp aC dC 7 dC dCGreacutecia Ocidente

EPISTEME

TEacuteKHNE

CIEcircNCIA

TEacuteCNICA

ARTE

POacuteIESIS

TECNOLOGIA

75

e teacutecnicos com os inegaacuteveis resultados da industrializaccedilatildeo o avanccedilo e hipertrofia desse

empreendimento conhecido como cientificismo levou agrave extremos na tentativa de exportar

esse modelo bem-sucedido nas ciecircncias naturais para disciplinas de aacutereas humanas

No entanto parte dos estudiosos das ciecircncias humanas e sociais desde o seacuteculo xix

discorda dessas posiccedilotildees Subjacente a esse questionamento se encontram as diferenccedilas

entre diversos conceitos que foram reelaborados entre os quais estatildeo os de natureza fiacutesica

e natureza humana Como hoje sabemos esse segundo conceito estaacute longe de ser descrito

satisfatoriamente como o primeiro por um modelo quantitativo

Nesse periacuteodo ateacute a virada do seacuteculo xx Nietzsche eacute um dos que se destaca indo

aleacutem do papel criacutetico que a gnoseologia na figura de Kant6 teve em relaccedilatildeo agraves bases

das ciecircncias Como um precursor agraves interpelaccedilotildees de Heidegger ele se insurge contra a

hegemonia da racionalidade cientiacutefica e a questiona de forma radical desde o seu primei-

ro livro O nascimento da trageacutedia publicado em 1872 No prefaacutecio da segunda ediccedilatildeo

dessa obra que Nietzsche intitula de uma ldquotentativa de autocriacuteticardquo seu questionamento

carregado de um tom pessoal aponta para um argumento distinto das criacuteticas de base

epistemoloacutegica daquele periacuteodo Para este pensador soacute eacute possiacutevel compreender o ldquopro-

blemardquo da ciecircncia se nos situarmos fora de seus domiacutenios E mais importante cabe agrave arte

essa tarefa inquiridora

O que consegui entatildeo apreender algo terriacutevel e perigoso um problema com chi-fres natildeo necessariamente um touro por certo em todo caso um novo problema hoje eu diria que foi o problema da ciecircncia mesma mdash a ciecircncia entendida pela primeira vez como problemaacutetica como questionaacutevel Mas o livro em que se ex-travasava a minha coragem e a minha suspicaacutecia juvenis mdash que livro impossiacutevel teria de brotar de uma tarefa tatildeo contraacuteria agrave juventude Edificado a partir de puras vivecircncias proacuteprias prematuras e demasiado verdes que afloravam todas agrave soleira do comunicaacutevel colocado sobre o terreno da arte mdash pois o problema da ciecircncia natildeo pode ser reconhecido no terreno da ciecircncia mdash []

[] ante um olhar mais velho cem vezes mais exigente poreacutem de maneira alguma mais frio nem mais estranho agravequela tarefa de que este livro temeraacuterio ousou pela primeira vez aproximar-se mdash ver a ciecircncia com a oacuteptica do artista mas a arte com a da vida (nietzsche 2013 p 12-13)

6 Kant assumindo para si a tarefa de uma criacutetica gnoseoloacutegica dos extremos racionalista e empirista busca uma mediaccedilatildeo e nomeia suas obras principais como Criacutetica da razatildeo pura Criacutetica da razatildeo praacutetica e Criacutetica da faculdade de julgar Ao contraacuterio de Kant Nietzsche natildeo propotildee mediaccedilatildeo

76

Uma reaccedilatildeo dessa magnitude que seraacute um ideaacuterio perseguido por Nietzsche nas suas

obras posteriores ateacute a sua morte em 1900 tem relevacircncia natildeo somente pela sua criacutetica agrave

ciecircncia em um contexto de crescente valorizaccedilatildeo do conhecimento fundado em meacutetodos

racionais mas tambeacutem porque nega uma hierarquia em que a arte estaria submetida agrave

ciecircncia e a eleva agrave condiccedilatildeo superior de instacircncia avaliadora da episteacuteme

Este giro conceitual em clara oposiccedilatildeo agrave ordenaccedilatildeo de inspiraccedilatildeo platocircnica influencia

opositores desde o iniacutecio do seacuteculo xx ateacute os dias de hoje natildeo somente na arte mas nos

demais campos que partilham elementos qualitativos com ela Mas a efervescecircncia cultural

e de constituiccedilatildeo de disciplinas do saber natildeo se reduz a uma simples divisatildeo entre dois

polos opostos O tom da criacutetica nietzschiana eacute sintoma de uma eacutepoca em que os valores

tradicionais e modelos estabelecidos sofrem questionamentos constantes com novas

teorias ideias e movimentos nas mais variadas aacutereas com as obras de Duchamp Freud

Piaget e Darwin provocando mudanccedilas radicais na arte e na ciecircncia influenciando a

cultura e atingindo ateacute a fiacutesica que avanccedilava com estabilidade e linearidade Por exemplo

algumas concepccedilotildees de Plank e Einstein publicadas ainda na primeira deacutecada do seacuteculo

xx comprovam quebras de paradigma no cerne de ciecircncias ldquodurasrdquo Tais mudanccedilas aliadas

agrave efervescecircncia cultural refletem como veremos com Eco no capiacutetulo 4 naquilo que este

autor nomeia de ldquometaacutefora epistemoloacutegicardquo em uma circularidade que retorna agrave arte Essas

inter-relaccedilotildees atravessam o seacuteculo xx e se ampliam Assim uma visatildeo natildeo hierarquizada

do saber continua a ser um modo criacutetico no sentido nietzschiano de assumir a crescente

pluralidade de aacutereas como um valor Rafael Cardoso adota este preceito no livro Design

para um mundo complexo Como historiador da arte e do design ele insiste na defesa da

equidade entre os campos

Arte eacute um meio de acesso ao desconhecido em peacute de igualdade com a ciecircncia a filosofia a religiatildeo mdash enfim os poucos caminhos que o ser humano encon-trou para relacionar seu interior com o universo que o cerca mdash e nesse sentido design eacute uma categoria subordinada mais agrave arte que aos outros trecircs citados (cardoso 2016 p 246)

Devemos atentar para a questatildeo de que mesmo defendendo a igualdade entre arte e

ciecircncia Cardoso natildeo escapa de manter-se adepto a uma hierarquia onde o design em certo

sentido subordina-se agrave arte Beat Schneider outro historiador do design aparentemente

77

se aproxima da declaraccedilatildeo de Cardoso acerca da submissatildeo do design agrave arte No entanto

Schneider natildeo afirma como Cardoso que compreende o design como um campo su-

bordinado agrave arte mas de um ponto de vista mais descritivo do que prescritivo considera

com inflexatildeo criacutetica que o design ldquoentendeu-se como subcategoria da disciplina arterdquo

Examinemos a afirmaccedilatildeo de Schneider contextualizada

De uma perspectiva histoacuterica podemos encontrar uma razatildeo para o impedimento da discussatildeo teoacuterica no ocircnus artiacutestico presente no autoentendimento do design O design entendeu-se como subcategoria da disciplina arte e natildeo como disciplina autocircnoma e deixou com excessiva frequecircncia a teoria e o registro histoacuterico a cargo da ciecircncia e da histoacuteria da arte Uma tradiccedilatildeo forte e ateacute agora dominante na histoacuteria do design desde a industrializaccedilatildeo ateacute a atualidade eacute marcada pela motivaccedilatildeo artiacutestica pela inspiraccedilatildeo artiacutestica para um design expressivo Essa tradiccedilatildeo se manifesta na tendecircncia a fetichizar a proacutepria praacutetica como artiacutestica e desobrigar-se agrave argumentaccedilatildeo racional e cultivar a aura do design de autor Nesse contexto eacute recorrente o mito do ldquodesigner-artistardquo criativo que com seu

ldquobomrdquo design organiza as coisas do mundo (schneider 2010 p 260)

A posiccedilatildeo de Cardoso inclina-se claramente para a defesa da arte como um ldquocaminhordquo

que permite ao homem se relacionar com o universo e neste sentido o autor justifica a

sua relevacircncia para a disciplina do design mais do que a ciecircncia a filosofia e a religiatildeo

Por outro lado Schneider entende de modo negativo certa influecircncia da arte sobre o

design por sua inspiraccedilatildeo e fetichizaccedilatildeo da praacutetica deste campo pois segundo ele tende

a reduzir o compromisso com a ldquodiscussatildeo teoacutericarsquo e com a ldquoargumentaccedilatildeo racionalrdquo

Indo aleacutem das diferenccedilas entre as posiccedilotildees desses dois autores que satildeo relevantes para

a compreensatildeo das nuances nas relaccedilotildees entre os campos na atualidade devemos estar

atentos ao questionamento sobre a real necessidade de uma hierarquizaccedilatildeo e da consta-

taccedilatildeo de uma categorizaccedilatildeo em niacuteveis que estabelece a dependecircncia entre aacutereas do saber

As abordagens de Cardoso e Schneider nos fazem pensar que o proacuteprio Nietzsche mdash ao

colocar a arte como o lugar e a instacircncia para uma criacutetica procedente da ciecircncia mdash talvez

natildeo deixe de refletir dentro de um modelo hieraacuterquico e de dependecircncia entre campos

De qualquer modo a questatildeo natildeo nos parece simples Em oposiccedilatildeo agrave ideia de depen-

decircncia defender a autonomia pode conduzir agrave incongruecircncias Isso porque a definiccedilatildeo

de autonomia (em seu sentido originaacuterio de ser governado por suas proacuteprias leis e deter-

minaccedilotildees) pressupotildee separaccedilatildeo Entatildeo como pensar a ideia de independecircncia sem a sua

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contraparte de ruptura Em outras palavras eacute possiacutevel garantir autonomia a cada uma

dessas disciplinas e ao mesmo tempo ultrapassar ou pelo menos mitigar o modelo de cisatildeo

que existe entre elas Apesar das dificuldades nossa aposta eacute que sim tendo em conta que

os elos de ligaccedilatildeo jaacute existem vecircm do passado e satildeo os pontos comuns agrave ciecircncia e agrave teacutecnica

que se conectam agrave arte e ao design

23 Design entre ciecircncia teacutecnica e arte

Natildeo acreditamos que seja possiacutevel retornar a uma compreensatildeo da realidade como um coacutesmos

harmocircnico em que cada ramo do saber esteja intimamente relacionado aos demais e natildeo

hierarquizados como na antiguidade preacute-platocircnica Mas eacute importante ter esse referencial

em mente para pensarmos duas espeacutecies de dificuldades com as quais precisamos lidar na

contemporaneidade Uma inerente agrave fragmentaccedilatildeo que enfrentamos no acircmbito geral da

cultura e do saber que se estabelece de forma acentuada desde o advento da modernidade

Outra consequecircncia da hierarquizaccedilatildeo do conhecimento que afeta diversas aacutereas mas

diretamente duas de nosso interesse design e arte Diante disso Tomaacutes Maldonado se

apresenta como um dos criacuteticos importantes para nossa anaacutelise pois une seus argumen-

tos provenientes de conhecimentos no design e na arte7 com um interesse na filosofia da

ciecircncia e da teacutecnica questionando a tradiccedilatildeo idealista proveniente de Platatildeo Conforme

ele afirma no capitulo Pensar a teacutecnica hoje do livro Cultura sociedade e teacutecnica

Vivemos atualmente em um momento particularmente inovador da longa (e atribulada) histoacuteria da reflexatildeo sobre a teacutecnica Constata-se nas uacuteltimas deacutecadas uma tendecircncia cada vez maior de afastamento daquelas interpretaccedilotildees com vieacutes idealista que sempre dificultaram as tentativas de se fazer reflexatildeo sobre a teacutecnica

[] Basta pensar por exemplo na contribuiccedilatildeo de E Zschimmer (1914) e F Dessauer (1927 e 1959) dois engenheiros-cientistas-filoacutesofos de filiaccedilatildeo hege-liana e kantiana respectivamente [] esses estudiosos estavam convencidos de que as respostas agraves questotildees levantadas pela teacutecnica deveriam ser buscadas

7 Maldonado formou-se pela Academia de Belas Artes de Buenos Aires em 1939 e participou do movi-mento de Arte Concreta da Argentina entre os anos de 1943 e 1954 antes de se tornar professor de design e reitor na Alemanha na escola de Ulm

79

dentro da proacutepria teacutecnica A teacutecnica seria uma realidade autocircnoma um sistema fechado que se desenvolve e se autoexplicaria sem ter de recorrer a fatores exoacute-genos Poder-se-ia dizer mdash utilizando um termo agora muito na moda mdash que a teacutecnica eacute autopoieacutetica

Dessauer deixa subentendido mdash platocircnica e aristotelicamente mdash que as formas dos objetos teacutecnicos jaacute estariam presentes em um cataacutelogo ideal das formas preexistentes E que a teacutecnica natildeo faria outra coisa a natildeo ser deixaacute-las expliacutecitas (maldonado 2012 p 153)

Trecircs pontos interligados na citaccedilatildeo anterior devem ser destacados Primeiro a criacutetica

de Maldonado estaacute dirigida agraves interpretaccedilotildees que se apoiam no idealismo Segundo a

delimitaccedilatildeo da forma mais atual desse idealismo estaacute vinculada ao conceito de autopoiese

ou autoproduccedilatildeo Terceiro (promovendo a conexatildeo dos dois primeiros pontos) este autor

faz uma clara remissatildeo dessa concepccedilatildeo de teacutecnica ao ideaacuterio platocircnico ao relacionaacute-la

com ldquorealidade autocircnomardquo e ldquocataacutelogo ideal das formas preexistentesrdquo

Natildeo haacute duacutevida da criacutetica direta de Maldonado agrave posiccedilatildeo platocircnica Mas devemos fazer

duas ressalvas A primeira eacute que (como vimos na seccedilatildeo 1 deste capiacutetulo) na antiguidade

o conceito de poacuteiesis na sua especificaccedilatildeo de existecircncia espontacircnea eacute autoproduccedilatildeo e estaacute

intrinsecamente associado agrave natureza (phyacutesis) Mas o mesmo natildeo ocorre na sua especifi-

caccedilatildeo enquanto episteacuteme ou teacutekhne No entanto seguindo as palavras de Maldonado que

fala de ldquoautopoieacuteticardquo afirmando ser um termo da moda podemos supor que talvez ele se

refira agrave ldquoautopoieserdquo palavra cunhada pelo bioacutelogo e epistemoacutelogo Humberto Matura-

na na deacutecada de 1970 para caracterizar a capacidade dos seres vivos de produzirem a si

proacuteprios e que ficou em evidecircncia com os debates em torno da relevacircncia dos sistemas8

na compreensatildeo dos fenocircmenos bioloacutegicos Apesar do neologismo autopoiese tambeacutem

remeter agrave phyacutesis grega tanto no conceito quanto na etimologia e raiz da palavra poiese se

Maldonado estaacute apenas se apropriando de sua designaccedilatildeo contemporacircnea relacionada agrave

biologia e aplicando-a a uma concepccedilatildeo de teacutecnica entendida como endoacutegena a ressalva

pode ser mitigada

8 Conforme afirmam Humberto Maturana e Francisco Varela no livro De maacutequinas y seres vivos au-topoiesis la organizacioacuten de lo vivo sobre a delimitaccedilatildeo do conceito de autopoiese ldquoA compreensatildeo do caraacuteter sistecircmico dos fenocircmenos que envolvem a vivecircncia possibilitada pela teoria da autopoiese permite explicar a origem dos seres vivos na terra ou em qualquer parte do cosmo como o surgi-mento espontacircneo de um ser vivo como entidade discreta assim como ocorre a dinacircmica molecular autopoieacutetica como um fenocircmeno sistecircmicordquo (maturana varela 2003 p 24) Traduccedilatildeo nossa

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A segunda ressalva diz respeito a inclusatildeo do nome de Aristoacuteteles alinhando-o com

o pensamento platocircnico Como veremos no capiacutetulo 4 Aristoacuteteles se opotildee frontalmente

a um mundo de formas ideais preexistentes ou a um ldquocataacutelogordquo Essa eacute uma das posiccedilotildees

fundamentais de Aristoacuteteles que o potildee historicamente como o primeiro a discordar de

Platatildeo e com argumentos suficientes para justificar nossa escolha de colocaacute-lo no centro

da discussatildeo sobre a criacutetica agrave hierarquia do conhecimento No entanto essa restriccedilatildeo natildeo

invalida a posiccedilatildeo tambeacutem criacutetica de Maldonado em relaccedilatildeo a uma concepccedilatildeo de teacutecnica

entendida como ldquoum sistema fechadordquo Mas eacute importante tambeacutem atentar que mesmo nas

concepccedilotildees de tendecircncia ldquoplatocircnicardquo com ldquorealidades autocircnomasrdquo a teacutecnica compreen-

dida como um campo separado da ciecircncia estaacute cada vez mais atrelada e hierarquicamente

submetida a uma teoria que a fundamenta e que se efetiva atraveacutes da tecnologia como

vimos na definiccedilatildeo de Koyreacute (cf p 72-73)

Aleacutem de Maldonado identificamos a disposiccedilatildeo de outros pesquisadores em buscar

elementos comuns e a integraccedilatildeo de fenocircmenos em campos distintos na forma de novas

teorias ou princiacutepios organizadores alguns defendendo somente as conexotildees de seus

objetos de estudo e outros apostando em um caraacuteter holiacutestico ou totalizante de seus

fundamentos Analisemos em recorte como esse processo vem ocorrendo

231 Afastamentos aproximaccedilotildees e interaccedilotildees

De acordo com o graacutefico da figura 1 (cf capiacutetulo 1 p 24) o ciacuterculo da epistemologia

incorpora ciecircncia e teacutecnica como seus objetos de estudo Deste modo selecionamos um

grupo de epistemoacutelogos que se tornaram referecircncia para a compreensatildeo das relaccedilotildees dessas

duas aacutereas para subsidiar nossa anaacutelise das posiccedilotildees de Maldonado Bonsiepe Schneider

e Cardoso contextualizando ciecircncia e teacutecnica com o design

O seacuteculo xx eacute proliacutefico em obras como as de Edwin A Burtt (1983) e Alexandre

Koyreacute (1982) O conhecimento acumulado a partir desses autores que se especializaram

em histoacuteria da ciecircncia influenciou mais de uma geraccedilatildeo de pesquisadores como Arthur

Koestler (1989) e Thomas S Kuhn (1987) contribuindo inclusive para os ceacutelebres

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debates desse uacuteltimo contra Karl R Popper (1972 1975 1993) e suas posiccedilotildees Seus es-

tudos compotildeem um quadro rico e heterogecircneo calcado na histoacuteria dessas ciecircncias e de

seus desdobramentos para a teacutecnica demonstrando a construccedilatildeo de relaccedilotildees e avanccedilos

pragmaacuteticos jaacute centenaacuterios Tais relaccedilotildees entre as teorias e as suas aplicaccedilotildees interessam

a vaacuterios campos inclusive ao design Os trabalhos de Tomaacutes Maldonado como vimos

unem esses temas e autores explorando a histoacuteria da ciecircncia e da teacutecnica na busca por

compreensatildeo de aspectos intriacutensecos ao design Eacute o que se pode constatar em Os oacuteculos

levados a seacuterio onde os avanccedilos na estrutura da teacutecnica e da funcionalidade derivam dos

fundamentos de teorias das ciecircncias naturais

As lentes abriram o caminho para o desenvolvimento das primeiras lunetas e os primeiros microscoacutepios compostos Prenunciaram ainda o advento da oacutetica fina e de altiacutessima precisatildeo ou seja daquele conjunto de instrumentos e de aparelhos que serviram de alicerce para a poderosa revoluccedilatildeo que nos levou do lsquomundo da aproximaccedilatildeo ao universo da precisatildeorsquo para utilizar a feliz expressatildeo de A Koyreacute (1961) (maldonado 2012 p 178)

Neste capiacutetulo exemplar do livro Cultura sociedade e teacutecnica Maldonado discursa natildeo

somente como designer mas tambeacutem como epistemoacutelogo e busca explicar a invenccedilatildeo

de objetos que incorporam design como os oacuteculos rastreando sua origem na histoacuteria

das ciecircncias e da teacutecnica Com os subsiacutedios teoacutericos de Alexandre Koyreacute argumenta de

modo analiacutetico em favor de uma aproximaccedilatildeo dessas duas aacutereas E do mesmo modo no

capiacutetulo Pensar a teacutecnica hoje Maldonado reforccedila a atenccedilatildeo concentrada na atualidade

no acircmbito da ciecircncia e da teacutecnica agrave discussatildeo dos seus fundamentos

Trata-se da velha questatildeo da atualidade ou natildeo das estrateacutegias cognitivas que desde F Bacon propiciaram alcanccedilar formidaacuteveis resultados nos campos da descoberta cientiacutefica e da inovaccedilatildeo tecnoloacutegica Ela permanece no centro do debate entre os filoacutesofos e cientistas Eacute cada vez menor o nuacutemero daqueles que atribuem uma validade universal e uma objetividade absoluta agrave metodologia da pesquisa tecnociecircntiacutefica Outros a colocam em discussatildeo em nome do pluralismo e do relativismo outros ainda levantam a hipoacutetese de uma mediaccedilatildeo entre essas duas posiccedilotildees extremas ou entatildeo rejeitam a ambas Eacute um debate que no fundo refere-se aos fundamentos loacutegico-epistemoloacutegicos do empreendimento cientiacutefico (maldonado 2012 p 155)

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Apesar de natildeo citar neste ponto quais autores estatildeo no centro deste debate Maldonado

identifica uma reduccedilatildeo no nuacutemero de estudiosos que privilegiam conceitos (como vi-

mos anteriormente) caros agrave ciecircncia ortodoxa quantitativa como ldquovalidade universalrdquo e

ldquoobjetividade absolutardquo Tal percepccedilatildeo de Maldonado eacute sintoma de seu posicionamento

atento a uma flexibilizaccedilatildeo de princiacutepios que podem conduzir a uma relativizaccedilatildeo de

elementos riacutegidos do platonismo E supomos que seu entendimento da conexatildeo entre

ciecircncia e teacutecnica eacute forte o bastante para levaacute-lo agrave fusatildeo desses dois conceitos no neologismo

ldquotecnocientiacuteficardquo Mas poderiacuteamos tambeacutem supor um sinal de hierarquia ou pelo menos

de causa e efeito preservado na descriccedilatildeo de Maldonado ao falar dos ldquoformidaacuteveis resul-

tadosrdquo ordenando em primeiro lugar o campo da ldquodescoberta cientiacuteficardquo e em segundo o

da ldquoinovaccedilatildeo tecnoloacutegicardquo Depois de seacuteculos de confianccedila em tal ordenaccedilatildeo faz parte ateacute

do senso comum9 considerar ciecircncia em primeiro e teacutecnica em segundo o que se reflete

tambeacutem na forma como escrevemos Mas Maldonado tem consciecircncia da complexidade

das relaccedilotildees entre ciecircncia e teacutecnica Tanto que mais uma vez no seu capiacutetulo sobre os

oacuteculos destaca a importacircncia de reconsiderarmos a questatildeo

Novamente se propotildee a velha ideia que satildeo os doutos mdash e natildeo os praacuteticos mdash os principais protagonistas da inovaccedilatildeo tecnoloacutegica Essa ideia estaacute no centro das controveacutersias de muitas invenccedilotildees Quem foi por exemplo o inventor da maacute-quina a vapor o douto Denis Papin ou o praacutetico Thomas Newcomen O douto Joseph Black ou o douto-praacutetico James Watt (maldonado 2012 p 182)

Acerca dessa polecircmica que Maldonado insere no cerne da causalidade (2012 p

176-177) Koyreacute diria que natildeo importa quem foi o autor se um ldquodoutordquo ou um ldquopraacuteticordquo

mas que qualquer dos dois protagonistas precisou necessariamente de fundamentaccedilatildeo

teoacuterica para guiar seu projeto ldquotecnoloacutegicordquo dado o niacutevel de complexidade deste tipo de

invenccedilatildeo Com relaccedilatildeo a Maldonado podemos afirmar que dessa complexidade pode

derivar o ldquopluralismordquo de que ele nos fala associando-o a busca por elementos comuns e

relaccedilotildees entre os campos (rotulada sob certas circunstacircncias de interdisciplinaridade) tatildeo

9 Como afirma Koyreacute em nota do seu consagrado ensaio ldquoDo mundo do lsquomais-ou-menosrsquo ao universo da precisatildeordquo reverenciado por Maldonado ldquoO senso comum natildeo eacute alguma coisa de absolutamente constante noacutes natildeo examinamos mais a aboacutebada celeste Da mesma forma o pensamenteo teacutecnico tradicional as regras dos ofiacutecios a τέχνη [teacutekhne] pode absorver mdash e o fez no decorrer da histoacuteria mdash elementos do saber cientiacuteficordquo (koyreacute 1991 p 287)

83

caracteriacutestica de nossa eacutepoca e que pode ser incorporada tambeacutem aos objetivos teoacutericos

do design Em suas palavras

Torna-se cada vez mais claro que somente seraacute possiacutevel desenvolver uma histoacuteria da teacutecnica mais proacutexima aos nossos problemas atuais com a cola-boraccedilatildeo dos filoacutesofos historiadores etnoacutelogos engenheiros economistas psicoacutelogos e socioacutelogos [] Eacute improvaacutevel que se possa estudar a teacutecnica sem recorrer a tal cooperaccedilatildeo interdisciplinar Cada estudioso deveria procurar assimilar o saber oriundo de outras disciplinas mesmo permanecendo fiel agraves particularidades do seu proacuteprio campo de pesquisa Esse saber seria capaz de tornar o seu trabalho menos parcial e portanto mais verdadeiro e concreto (maldonado 2012 p 159)

Reflexotildees dessa natureza indicam que as divisotildees que ocorreram na ciecircncia e na teacutecni-

ca principalmente a partir da eacutepoca moderna tecircm um movimento em direccedilatildeo contraacuteria

ou de refluxo na busca por um entendimento integral dos fenocircmenos O pensamento

sistecircmico defendido por entre outros Rafael Cardoso eacute mais uma prova do interesse

de pesquisadores do design em avanccedilar na seara das conexotildees entre os campos Partindo

da mesma linhagem de epistemoacutelogos com a qual Maldonado dialoga Cardoso explora

um caminho diverso e se insurge contra uma concepccedilatildeo do design enquanto ciecircncia de

cunho analiacutetico

A maior e mais importante contribuiccedilatildeo que o design tem a fazer para equacionar os desafios do nosso mundo complexo eacute o pensamento sistecircmico Poucas aacutereas estatildeo habituadas a considerar os problemas de modo tatildeo integrado e comunicante O procedimento metodoloacutegico baacutesico em qualquer atividade cientiacutefica eacute recor-tar e fracionar o problema para constituir uma situaccedilatildeo experimental passiacutevel de averiguaccedilatildeo Esse meacutetodo funciona extremamente bem para uma seacuterie de anaacutelises mas eacute de pouca valia para lidar com a elaboraccedilatildeo de grandes sistemas complexos sua manutenccedilatildeo e planejamento Quando os problemas atravessam saberes e disciplinas por exemplo eacute limitado o que cada uma delas pode fazer para resolver o todo Assim como outras aacutereas projetuais mdash em especial a enge-nharia e a arquitetura mdash o design parte de uma abordagem diferente Em vez de fracionar o problema para reduzir as variaacuteveis o designer visa gerar alternativas cada uma das quais tende a ser uacutenica e totalizante Sua meta eacute viabilizar uma soluccedilatildeo e natildeo garantir a reprodutibilidade do experimento mdash construccedilatildeo e natildeo desconstruccedilatildeo ldquofactibilidaderdquo e natildeo ldquofalseabilidaderdquo partidos e funccedilotildees em vez de conjeturas e refutaccedilotildees (cardoso 2016 p 243-244)

84

A desvinculaccedilatildeo de Cardoso de uma epistemologia apropriada agraves ciecircncias naturais

segundo ele natildeo adequada ao design natildeo apresenta na citaccedilatildeo anterior um autor expliacutecito

(como o faz Maldonado com Koyreacute) talvez por uma questatildeo de estilo Mas eacute possiacutevel

identificar que Cardoso estaacute se referindo a Popper ao fazer uso dos termos ldquofalseabilidaderdquo

e ldquoconjeturas e refutaccedilotildeesrdquo respectivamente um conceito e um tiacutetulo de uma das obras

mais influentes desse epistemoacutelogo E portanto ao propor a siacutentese e a factibilidade ao

inveacutes da anaacutelise e falseabilidade reitera sua posiccedilatildeo de afastar o design de uma concepccedilatildeo

de ciecircncia stricto sensu Tal posiccedilatildeo faz sentido se o design recorre frequentemente ao

argumento de que eacute um campo com fronteiras pouco definidas e que trabalha transver-

salmente em conjunto com outras disciplinas

Beat Schneider a propoacutesito dessas fronteiras e da complexidade dos campos tambeacutem

recomenda a interdisciplinaridade

O pensamento e a reflexatildeo satildeo uma parte do processo de criaccedilatildeo Deles pode partir a teoria mdash no sentido de uma reflexividade que problematiza o processo de criaccedilatildeo Hoje essa reflexividade faz-se mais necessaacuteria do que nunca pois tanto a praacutetica social e teacutecnica quanto a praacutetica do design tornaram-se muito complexas O design precisa de uma teoria que corresponda agrave sua complexi-dade Essa complexidade do design estaacute em seu objeto e em sua constituiccedilatildeo interdisciplinar e transdisciplinar Uma rede de muitas disciplinas cientiacuteficas das aacutereas das ciecircncias humanas sociais e da engenharia disciplinas da induacutestria comeacutercio administraccedilatildeo e cultura bem como a complexa multiplicidade de usuaacuterios participam do processo de design e da resoluccedilatildeo comum de tarefas (schneider 2010 p 266)

Compartilhando com Cardoso a essecircncia projetual do design Schneider no entanto

considera este campo como ciecircncia Depois de haver nomeado o ldquodesign como ciecircncia

jovemrdquo (schneider 2010 p 193) este autor discorre sobre as atividade deste campo

ldquoSua tarefa eacute contribuir enquanto ciecircncia para tornar nosso complexo mundo visiacutevel e

legiacutevel Ela se situa no contexto normativo da tradiccedilatildeo iluminista da alfabetizaccedilatildeo e da

democratizaccedilatildeo do saber e do conhecimentordquo (schneider 2010 p 266)

Bonsiepe tambeacutem resguarda o mesmo acircmbito projetual que Cardoso e Schneider

e almeja uma interaccedilatildeo entre design entendido como projeto e ciecircncias enquanto

conhecimento

85

Enquanto as ciecircncias enxergam o mundo sob a perspectiva da cogniccedilatildeo as disciplinas de design o enxergam sob a perspectiva do projeto Essas duas perspectivas diferentes que oxalaacute no futuro acabem se fundindo Estou con-vencido de que no futuro haveraacute uma interaccedilatildeo frutiacutefera entre o mundo das ciecircncias e o mundo do projeto que hoje se daacute no maacuteximo esporadicamente (bonsiepe 2011 p 17)

Mas eacute importante atentar que tal interaccedilatildeo de perspectivas na concepccedilatildeo de Bonsiepe

natildeo significa transformar o design em ciecircncia

A atitude de colocar o projeto relacionado com as ciecircncias natildeo deve ser in-terpretada como um postulado por um design cientiacutefico ou para transformar design em ciecircncia Seria grotesco querer projetar um cinzeiro baseando-se em conhecimentos cientiacuteficos Deveria ser criada uma correspondecircncia entre complexidade temaacutetica e metodologia O design deve recorrer a conhecimentos cientiacuteficos quando a temaacutetica o exige Por exemplo quando se quer projetar uma nova embalagem para leite que minimize os impactos ecoloacutegicos (ecological footprints) (bonsiepe 2011 p 17)

A posiccedilatildeo assumida por Bonsiepe tem aspectos que nos atraem pois tambeacutem natildeo

consideramos um problema recorrer a conhecimentos cientiacuteficos de outras aacutereas Pelo

contraacuterio esse procedimento de natildeo reinventar a roda eacute cada vez mais comum em dis-

ciplinas que ampliam sua atuaccedilatildeo em novos territoacuterios Mas como veremos no capiacutetulo

3 natildeo ser ciecircncia natildeo implica que o design natildeo se caracterize enquanto campo de conhe-

cimento O atributo da cogniccedilatildeo natildeo eacute exclusividade da ciecircncia

Portanto acreditamos que quando Bonsiepe afirma que os dois campos enxergam o

mundo com perspectivas diferentes ele natildeo estabelece categorias estanques o que para noacutes

eacute essencial na medida em que natildeo compreendemos o design isolado ou enrijecido em suas

fronteiras com outras aacutereas sejam elas cientiacuteficas teacutecnicas ou artiacutesticas Diriacuteamos que o

expressivo uso por Bonsiepe da palavra ldquoenxergarrdquo une ciecircncia e design em atividades

de caracteriacutesticas comuns em que a ldquoperspectivardquo apenas direciona a visatildeo para aspectos

distintos de uma mesma realidade Se for assim o liame proposto por esse autor para as

concepccedilotildees de ciecircncia e design retoma de forma elegante o legado conceitual de teoria

em sua origem na Antiguidade Como evidenciamos (cf capiacutetulo 1 p 61) teoria (θεωρία)

denota accedilatildeo de ver de observar contemplar examinar e especular E sua relaccedilatildeo com o

olhar aproxima-a de oida (οἶδα) significando ao mesmo tempo ver e compreender

86

232 Artifiacutecios fronteiras moacuteveis e pontes

Diante do quadro construiacutedo na subseccedilatildeo anterior eacute necessaacuteria uma anaacutelise em retros-

pecto cotejando as posiccedilotildees dos quatro autores e implicando-as com a nova etapa Ini-

ciando por Bonsiepe estaacute claro seu entendimento a respeito da distinccedilatildeo entre ciecircncia e

design assim como sua expectativa de uma futura interaccedilatildeo efetiva entre esses campos

Maldonado nos escritos analisados apesar de natildeo ser tatildeo expliacutecito a esse respeito tem um

crivo epistemoloacutegico semelhante ao de Bonsiepe Mas a posiccedilatildeo de Bonsiepe se conecta

com outro aspecto do seu pensamento que exploramos anteriormente (cf capiacutetulo 1 p

42) sendo importante retomar neste momento Naquele ponto ele distingue tambeacutem

categoricamente design de arte Bonsiepe (para justificar sua adesatildeo agrave distinccedilatildeo entre

esses campos) poderia estabelecer como territoacuterios de argumentaccedilatildeo a ciecircncia ou o de-

sign como faz Schneider ou ateacute mesmo a arte caso estivesse em sintonia com uma visatildeo

por exemplo Nietzschiana No entanto como vimos esse autor firma a filosofia como a

disciplina capaz de explicitar essa distinccedilatildeo o que confirma sua atuaccedilatildeo coerente como

epistemoacutelogo e designer e natildeo como cientista

Schneider por seu lado ao entender o design como ciecircncia e a arte como um ldquoocircnusrdquo

para esse campo argumenta ora como um cientista que precisa se assegurar de fundamentos

estabelecidos para o design (recentemente estabelecidos uma vez que para ele este campo

eacute ldquociecircncia jovemrdquo) ora como epistemoacutelogo em busca de fundamentos Assim sua criacutetica

agrave falta de fundamentos do design fragiliza a sua defesa dessa disciplina enquanto ciecircncia

A questatildeo do modo como a encaminha Schneider leva a um ciacuterculo vicioso pois de um

ponto de vista epistemoloacutegico e portanto de fundamentaccedilatildeo de um campo cientiacutefico

para se imputar o tiacutetulo de ciecircncia a uma disciplina eacute necessaacuterio que a mesma jaacute tenha

posse sobre os alicerces especiacuteficos de tal categoria de conhecimento

Quanto a Cardoso pelas nuances de seu pensamento e o entrelaccedilamento de temas

que nos interessam sua posiccedilatildeo precisa ser investigada com mais detalhes Sua pesquisa

chama a nossa atenccedilatildeo natildeo somente por suas reflexotildees de caraacuteter epistemoloacutegico que no

nosso entendimento mesmo implicitamente questionam de modo mais radical a hierar-

quia e a ruptura de inspiraccedilatildeo platocircnica mas tambeacutem porque como veremos avanccedila para

87

o territoacuterio da ontologia buscando fundamentos para o design Aliado a esse enfoque

Cardoso se liga ao pensamento de Flusser com acordos e desacordos entre ambos que

fornecem a mateacuteria prima tanto para a subseccedilatildeo atual quanto para a uacuteltima deste capiacutetulo

As ligaccedilotildees entre o pensamento de Rafael Cardoso e o de Vileacutem Flusser natildeo se res-

tringem somente aos temas que esses dois autores abordam Cardoso interessado na obra

flusseriana organizou e escreveu a Introduccedilatildeo do livro ldquoO mundo codificado por uma

filosofia do design e da comunicaccedilatildeordquo de Flusser (2007) cujo subtiacutetulo sinaliza para a

relevacircncia e a singularidade dessa obra em teoria e reflexatildeo filosoacutefica no acircmbito do design

e da comunicaccedilatildeo Em tom de advertecircncia Cardoso afirma

Flusser eacute um pensador de causas e natildeo de comportamentos por conseguinte ele natildeo hesita em ultrapassar as limitaccedilotildees metodoloacutegicas necessaacuterias ao pensa-mento de cunho histoacuterico Para aacutereas marcadas desde sempre pelo predomiacutenio de abordagens e pressupostos advindos das ciecircncias sociais mdash como eacute o caso tanto da comunicaccedilatildeo quanto do design mdash o efeito eacute surpreendente e enriquecedor Passado o susto inicial eacute melhor dizer visto que o autor eacute afeito a generalizaccedilotildees e aproximaccedilotildees capazes de provocar ataques de apoplexia em qualquer cientista social ortodoxo (flusser 2007 p 11)

Se essas caracteriacutesticas dos textos flusserianos que aparecem ateacute certo ponto disfarccedila-

das com as provocaccedilotildees de seu autor perdem na contextualizaccedilatildeo histoacuterica e socioloacutegica

ganham ao aprofundarem-se nas matrizes estruturantes do pensamento ocidental ainda

preservadas na atualidade que eacute o foco de nosso interesse Assim concordando com

Cardoso essa transposiccedilatildeo de limites tem seu valor genuiacuteno enquanto reflexatildeo filosoacutefica

por voltar-se para as causas Para o nosso propoacutesito abordaremos especificamente dois

pequenos escritos de Flusser reunidos como capiacutetulos do livro O mundo codificado mas jaacute

publicados anteriormente como ensaios separados ldquoSobre a palavra designrdquo e ldquoA alavanca

contra-atacardquo Apesar do peculiar tiacutetulo do segundo texto natildeo explicitar o seu propoacutesito

como veremos as duas investigaccedilotildees tratam de temas correlacionados

Sobre a palavra design eacute um escrito de apenas seis paacuteginas mas seminal Como carac-

teriacutestico das produccedilotildees de filoacutelogos e filoacutesofos o texto comeccedila com definiccedilotildees de palavras

e conceitos indo ateacute suas origens para assim construir argumentos

Em inglecircs a palavra design funciona como substantivo e tambeacutem como verbo (circunstacircncia que caracteriza muito bem o espiacuterito da liacutengua inglesa) Como

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substantivo significa entre outras coisas ldquopropoacutesitordquo ldquoplanordquo ldquointenccedilatildeordquo ldquometardquo ldquoesquema malignordquo ldquoconspiraccedilatildeordquo ldquoformardquo ldquoestrutura baacutesicardquo e todos esses e outros significados estatildeo relacionados a ldquoastuacuteciardquo e a ldquofrauderdquo Na situaccedilatildeo de verbo mdash to design mdash significa entre outras coisas ldquotramar algordquo ldquosimularrdquo ldquopro-jetarrsquorsquo ldquoesquematizarrdquo ldquoconfigurarrdquo ldquoproceder de modo estrateacutegicordquo (flusser 2007 p 181)

Flusser apresenta essas acepccedilotildees com a clara intenccedilatildeo de reforccedilar os sentidos do con-

ceito de astuacutecia fraude simulaccedilatildeo e trama que eacute o centro de seu interesse Esse propoacutesito

eacute confirmado quando ele tambeacutem natildeo deixa duacutevidas impondo o mesmo crivo ao definir

a atuaccedilatildeo do designer

A palavra design ocorre em um contexto de astuacutecias e fraudes O designer eacute portanto um conspirador malicioso que se dedica a engendrar armadilhas Outros termos tambeacutem bastante significativos aparecem nesse contexto como por exemplo as palavras ldquomecacircnicardquo e ldquomaacutequinardquo Em grego mechos designa um mecanismo que tem por objeto enganar uma armadilha e o cavalo de Troia eacute um exemplo disso Ulisses eacute chamado polymechanikos o que traduziacuteamos no coleacutegio como ldquoo astuciosordquo (der Listenreiche) (flusser 2007 p 182)

Comparada aos demais autores que investigamos ateacute o momento essa eacute uma anaacutelise

e posiccedilatildeo incomum10 Flusser transita do conceito de design para o de designer e deste

para o de mecacircnica e de maacutequina conectando seus significados com o que ele entende

ser sua essecircncia comum a astuacutecia Indo ateacute a origem dessa palavra ele a associa a Odisseus

(ou Ulisses como ficou conhecido no Ocidente) heroacutei grego e personagem da Odisseia

construiacutedo por Homero para encarnar um caraacuteter uacutenico com o epiacuteteto de o astuto

Neste ponto importa compreender esse elemento fundamental na dinacircmica do texto

flusseriano porque este autor para pensar o conceito de astuacutecia e demais elementos a ele

associados movimenta-se entre um sentido positivo (de sagacidade e habilidade estrateacutegi-

ca) e outro negativo (de fraude e conspiraccedilatildeo) em uma dialeacutetica proacutepria da sua exposiccedilatildeo

Para tanto e seguindo a trilha aberta por Flusser no acircmbito da mitologia grega eacute preciso

10 Entre os anos de 2013 e 2017 lecionamos na Escola de Design da Universidade do Estado de Minas Gerais para estudantes dos cursos de Design e de Artes Visuais em turmas do 1ordm 2ordm 4ordm 5ordm e 7ordm pe-riacuteodos Nas diversas oportunidades em que esse ensaio de Flusser foi investigado e discutido em sala de aula para nossa surpresa (e apesar de natildeo procedermos com nenhuma pesquisa empiacuterica) um nuacutemero expressivo de estudantes concordou com Flusser acerca da associaccedilatildeo do conceito de astuacutecia ao design e aos designers

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nos determos mesmo que de forma natildeo aprofundada sobre narrativas de origem e de

conquista do conhecimento em nossa cultura Faremos isso tanto em sua vertente grega

quanto na do texto biacuteblico da tradiccedilatildeo judaico-cristatilde uma vez que no nosso entendimen-

to as diferenciaccedilotildees desses escritos trazem elementos correlatos aos que Flusser explora

no tratamento de seu tema Investigaremos especificamente os atributos que tornaram

o ser humano distinto dos outros seres e o destacaram da natureza O tema cresce em

complexidade e importacircncia na medida em que as duas narrativas a serem investigadas

contecircm elementos em oposiccedilatildeo como nas contraposiccedilotildees do ensaio de Flusser

Entre as diversas cosmogonias que de algum modo influenciaram e continuam a

ter relevacircncia nas concepccedilotildees de realidade no Ocidente a de origem grega eacute uma das

que se destaca por sua capacidade de conectar os discursos primordiais miacuteticos com o

subsequente pensamento racional da filosofia Como apresentamos (cf p 56-58) a con-

cepccedilatildeo da poacuteiesis se insere nessa categoria em que um deus ou demiurgo produz o cosmos

a partir do caos uma massa preexistente e informe De modo distinto dessa construccedilatildeo

encontra-se a narrativa biacuteblica em que Deus produz ou mais exatamente cria o mundo

a partir do nada (ex nihilo) Tal diferenciaccedilatildeo entre concepccedilotildees eacute essencial pois se traduz

em duas espeacutecies de caminhos para o ato criativo Grosso modo na concepccedilatildeo grega exis-

tem modelos a se descobrir para efetivar a produccedilatildeo que carreia a racionalizaccedilatildeo para o

interior do processo criativo Na judaico-cristatilde se natildeo eacute possiacutevel explicar racionalmente

tal processo elementos como a imaginaccedilatildeo a originalidade e a subjetividade conduzem

agrave ideia de inspiraccedilatildeo divina e de gecircnio criativo como o liame entre os correlatos criador

e criatura e artista e criaccedilatildeo Ao longo da histoacuteria da cultura ocidental essas duas visotildees

se alternaram e disputam ainda hoje a primazia da explicaccedilatildeo dos processos criativos11

Seguindo adiante nas duas cosmogecircneses de um lado temos o mito de Prometeu cujo

personagem principal um semideus astuto e capaz de antever o futuro daacute tiacutetulo agrave narrati-

va Prometeu com o objetivo de salvar a raccedila humana da extinccedilatildeo furta o conhecimento

11 Para uma anaacutelise comparativa dessas duas concepccedilotildees com suas caracteriacutesticas e seus pontos fortes e fracos ver o artigo A Teoria de Soluccedilatildeo de Problemas Inventivos (TRIZ) como complementar aos pro-cessos intuitivos de criatividade no design (silva S domingues F dias M R A C 2017) Nessa investigaccedilatildeo defendemos a ideia de que se natildeo for possiacutevel unificar as duas visotildees (a intuitiva e a racional) em um mesmo procedimento pelo menos eacute aceitaacutevel trabalhar com ambas como instru-mentos complementares e natildeo excludentes de suporte agrave criaccedilatildeo potencializando-os mutuamente

90

teacutecnico da deusa Athenaacute e o fogo e a arte de plasmar metais do deus Hefestos Com isso

ele garante aos homens condiccedilotildees de sobreviver diante dos elementos da natureza em

peacute de igualdade com os outros seres vivos O ser humano que natildeo tinha acesso a esses

conhecimentos tendo-os recebido como presentes garante sua sobrevivecircncia Mas uma

vez de posse desse saber a humanidade natildeo cessa de ampliaacute-lo elevando-se em relaccedilatildeo aos

demais seres buscando controlar a natureza em benefiacutecio proacuteprio e consequentemente

aproximando seus atributos aos da divindade

No livro biacuteblico do Gecircnesis haacute uma narrativa correlata que fala de uma aacutervore do

conhecimento do bem e do mal e seu fruto acessiacutevel apesar de ser expressamente proi-

bido para a mulher e o homem sob pena de morrerem A Serpente o mais astuto dos

animais atua de modo a enganar a mulher e convencecirc-la a comer e a dar de comer ao

homem Adatildeo e Eva antes de comerem do fruto vivendo no Eacuteden natildeo correm o risco

de perecerem Mas o castigo dado a eles pela transgressatildeo se estende tambeacutem agrave toda a sua

descendecircncia com a perda do paraiacuteso e da vida eterna e a aquisiccedilatildeo de uma capacidade

de conhecer que natildeo eacute apenas do bem mas tambeacutem do mal

Nosso propoacutesito em relaccedilatildeo agraves duas narrativas apesar das inuacutemeras semelhanccedilas

entre elas eacute ressaltar as diferenccedilas12 para confrontaacute-las com o pensamento de Flusser em

uma busca por compreensatildeo de suas ideias sobre o design a arte a ciecircncia e a teacutecnica No

Prometeu a humanidade natildeo vivia em um paraiacuteso mas correndo o risco de extinccedilatildeo por

natildeo ter as proteccedilotildees e capacidades naturais dos demais seres vivos Aleacutem disso a puniccedilatildeo

que os humanos sofreram apoacutes o furto de Prometeu de serem obrigados a trabalhar para

sobreviver eacute apenas uma parte do que padece o homem biacuteblico com a expulsatildeo do pa-

raiacuteso O titatilde Prometeu apesar de ser condenado a ficar preso a uma rocha e ter o fiacutegado

dilacerado todos os dias por uma ave de rapina permanece na sua condiccedilatildeo de imortal

12 Na histoacuteria de Prometeu existiam variantes orais que foram cristalizadas em inuacutemeras versotildees de poetas e tragedioacutegrafos ao contraacuterio do texto unificado da Biacuteblia Assim destacam-se entre outros autores Hesiacuteodo Eacutesquilo e ateacute Platatildeo que narram com diferenccedilas a histoacuteria de Prometeu Conforme afirma o classicista Junito de Souza Brandatildeo ldquoO mito como jaacute se assinalou vive em variantes ora a obra de arte de conteuacutedo mitoloacutegico somente pode apresentar e eacute natural uma de suas variantes Acontece que dado o imenso prestiacutegio da poesia na Greacutecia a variante apresentada por um grande poeta impunha-se agrave consciecircncia puacuteblica tornando-se um mito canocircnico com esquecimento das demais variantes talvez artisticamente menos eficazes mas nem por isso menos importantes do ponto de vista religiosordquo (brandatildeo 1986 p 27)

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Assim comparando a Serpente a Prometeu ambos satildeo astutos e catalizadores do

processo da aquisiccedilatildeo do conhecimento e nos dois casos fazem uso de um ardil No en-

tanto Prometeu eacute retratado como heroacutei enaltecido como benfeitor da raccedila humana e

natildeo perde seu status de semideus ao passo que a Serpente eacute descrita como o ser maldito

que engana e desencadeia os males sobre a humanidade sendo punida com uma vida

rastejante alimentando-se de poacute Aleacutem disso o conhecimento adquirido pelos protegi-

dos de Prometeu eacute algo valioso que encerra uma visatildeo virtuosa e nobre na faculdade de

conhecer enquanto que o conhecimento advindo do fruto biacuteblico estaacute cindido em um

maniqueiacutesmo que o torna um risco constante para a humanidade

Deste modo um espiacuterito positivo e em certo sentido ateacute otimista em relaccedilatildeo ao

conhecimento e ao ato de conhecer perpassa e reaparece em outras histoacuterias formadoras

e estruturantes da cultura grega como a Iliacuteada e a Odisseia de Homero de que Flusser se

apropria a propoacutesito de elaborar seu raciociacutenio Como eacute sabido o personagem Ulisses no

livro da Iliacuteada usando de seu atributo principal a astuacutecia esconde-se com seus guerreiros

em um grande cavalo de madeira que eacute a chave para a vitoacuteria contra a cidade de Iacutelion

(Troia) No livro seguinte Odisseia esse heroacutei consegue enfrentar com engenhosidade

toda a sorte de dificuldades e aventuras e retornar a salvo agrave sua terra e lar

A disposiccedilatildeo grega de entender a astuacutecia em sua acepccedilatildeo de valor a se preservar res-

surge em outras narrativas como por exemplo na lenda do Noacute Goacuterdio Essa histoacuteria narra

a soluccedilatildeo inusitada que Alexandre o Grande teria dado para desfazer um noacute em cordas

aparentemente impossiacutevel de ser desatado Apoacutes um tempo estudando a amarraccedilatildeo Ale-

xandre desembainha sua espada e corta o noacute Essa atitude entendida pela tradiccedilatildeo grega

positivamente como sagacidade engenhosidade e arguacutecia tambeacutem pode ser interpretada

negativamente como fraude ardil ou trapaccedila Como Flusser transita entre duas acepccedilotildees

e medidas valorativas consideramos essa dupla visatildeo (grega e judaico-cristatilde) uma chave

de leitura para compreender a proposta desse autor para o design

Apoacutes definir design e designer Flusser com o mesmo meacutetodo etimoloacutegico procura

caracterizar tanto a teacutecnica quanto a arte indo ateacute as suas raiacutezes gregas que satildeo comuns

Sigamos seus passos

92

Outra palavra usada nesse mesmo contexto eacute ldquoteacutecnicardquo Em grego techneacute significa ldquoarterdquo e estaacute relacionada com tekton (ldquocarpinteirordquo) A ideia fundamental eacute a de que a madeira (em grego hyleacute) eacute um material amorfo que recebe do artista o teacutecnico uma forma ou melhor em que o artista provoca o aparecimento da forma (flusser 2007 p 182)

Essa descriccedilatildeo estaacute claramente vinculada ao conceito de produccedilatildeo demiuacutergica em que

preexiste um ldquomaterial amorfordquo (equivalente ao caos) que deve ser trabalhado e enforma-

do pelo artista Em seguida ele avanccedila para a liacutengua latina com o mesmo procedimento

etimoloacutegico e vieacutes em torno da fraude enquanto um artifiacutecio

O equivalente latino do termo grego techneacute eacute ars que significa na verdade ldquomanobrardquo (Dreh) O diminutivo de ars eacute articulum mdash pequena arte mdash e indica algo que gira ao redor de algo (como por exemplo a articulaccedilatildeo da matildeo) Ars quer dizer portanto algo como ldquoarticulabilidaderdquo ou ldquoagilidaderdquo e artifex (ldquoartistardquo) quer dizer ldquoimpostorrdquo O verdadeiro artista eacute um prestidigitador o que se pode perceber por meio das palavras ldquoartifiacuteciordquo ldquoartificialrdquo e ateacute mesmo

ldquoartilhariardquo (flusser 2007 p 183)

Aqui Flusser vai aleacutem das definiccedilotildees claacutessicas gregas de artista e se alinha especifica-

mente com o conceito platocircnico de artista pois poderiacuteamos afirmar que um impostor ou

prestidigitador eacute na essecircncia um imitador Eacute importante destacar que esses termos se ligam

na origem com outros com os quais atualmente natildeo fazemos normalmente conexatildeo Por

exemplo o mesmo sentido de impostor se encontra tambeacutem em um dos significados de

hipoacutecrita que em sua origem grega tem como uma das suas acepccedilotildees principais a de ator

Tendo essas associaccedilotildees estabelecidas Flusser pode entatildeo retomar a questatildeo do design

na atualidade indicando o problema (que segundo ele se instaura no periacuteodo moderno)

e defender sua tese acerca do papel do design neste contexto

Essas consideraccedilotildees explicam de certo modo por que a palavra design pocircde ocupar o espaccedilo que lhe eacute conferido no discurso contemporacircneo As palavras design maacutequina teacutecnica ars e Kunst[13] estatildeo fortemente inter-relacionadas cada um dos conceitos eacute impensaacutevel sem os demais e todos eles derivam de uma mesma perspectiva existencial diante do mundo No entanto essa co-nexatildeo interna foi negada durante seacuteculos (pelo menos desde a Renascenccedila)

13 Nesse ensaio Flusser tcheco nascido em Praga tambeacutem apresenta o correlato de cada palavra defi-nida em alematildeo Na medida em que natildeo incluiacutemos essa liacutengua ao escopo de nossa anaacutelise natildeo nos estendemos sobre essas comparaccedilotildees

93

A cultura moderna burguesa fez uma separaccedilatildeo brusca entre o mundo das artes e o mundo da teacutecnica e das maacutequinas de modo que a cultura se dividiu em dois ramos estranhos entre si por um lado o ramo cientiacutefico quantificaacutevel ldquodurordquo e por outro o ramo esteacutetico qualificador ldquobrandordquo Essa separaccedilatildeo desastrosa comeccedilou a se tornar insustentaacutevel no final do seacuteculo xix (flusser 2007 p 183)

A citaccedilatildeo anterior merece especial atenccedilatildeo Flusser defende uma ldquointer-relaccedilatildeordquo entre

os conceitos de design e maacutequina teacutecnica e arte com a qual concordamos pelo menos

em parte Nossa posiccedilatildeo difere desse autor quanto ao momento em que ocorreu a cisatildeo

entre esses conceitos Para Flusser tal separaccedilatildeo entre ciecircncia teacutecnica e arte ocorre ldquopelo

menosrdquo a partir da Renascenccedila enquanto para noacutes como afirmamos anteriormente ela

se inicia com Platatildeo com uma teoria acerca da realidade que cinde o conhecimento em

aacutereas Mas o mais importante para noacutes tal teoria tambeacutem hierarquiza o conhecimento

Independentemente dessas diferenccedilas a proposta de Flusser para atenuar essa ldquoseparaccedilatildeo

desastrosardquo ou ldquobrechardquo entendida com ldquoinsustentaacutevelrdquo eacute relevante

A palavra design entrou nessa brecha como uma espeacutecie de ponte entre esses dois mundos E isso foi possiacutevel porque essa palavra exprime a conexatildeo interna entre teacutecnica e arte E por isso design significa aproximadamente aquele lugar em que arte e teacutecnica (e consequentemente pensamentos valorativo e cientiacutefico) caminham juntas com pesos equivalentes tornando possiacutevel uma nova forma de cultura (flusser 2007 p 183)

Devemos nos manter atentos ao alerta anterior de Cardoso sobre a forma de Flusser

conduzir seus raciociacutenios e expressar suas ideias Por exemplo nas duas uacuteltimas citaccedilotildees

ele natildeo se preocupa em explicitar a diferenccedila entre ciecircncia e teacutecnica permutando o uso

desses conceitos Como vimos essa tambeacutem eacute uma postura adotada por Platatildeo em alguns

de seus diaacutelogos em relaccedilatildeo agrave teacutekhne e agrave espisteacuteme

Ao mesmo tempo Flusser natildeo assume com todas as letras a existecircncia na atualidade

de uma hierarquizaccedilatildeo do conhecimento Mas tal consciecircncia se manifesta em poucas

palavras quando ele qualifica o design para estabelecer a arte e a teacutecnica ldquocom pesos

equivalentesrdquo Essa visatildeo peculiar difere do pensamento de Cardoso que natildeo considera

necessaacuteria a accedilatildeo do design para instituir a equidade entre a arte e outros campos ldquoArte

eacute um meio de acesso ao desconhecido em peacute de igualdade com a ciecircncia a filosofia a

religiatildeo[]rdquo(cardoso 2016 p 246)

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Quando Flusser emprega o termo ldquoconexatildeo internardquo pode parecer que ele compreende

design e arte como indistintos No entanto as palavras ldquocaminham juntasrdquo indicam que

seguem uma mesma direccedilatildeo mas natildeo de indistinccedilatildeo entre aacutereas Isso se torna mais claro

com o seu conceito de ldquoponterdquo pois a indistinccedilatildeo natildeo carece desse artifiacutecio de ligaccedilatildeo Assim

paradoxalmente o ponto de vista de Flusser um filoacutesofo que procura ligar design e arte

natildeo necessariamente se opotildee agrave posiccedilatildeo de Bonsiepe um designer que pensa a filosofia

para distinguir design e arte Aleacutem disso podemos afirmar que ambos concordam com

outra conexatildeo aquela entre design e ciecircnciateacutecnica Lembremos o que Bonsiepe diz a

esse respeito ldquoEstou convencido de que no futuro haveraacute uma interaccedilatildeo frutiacutefera entre

mundo das ciecircncias e o mundo do projeto que hoje se daacute no maacuteximo esporadicamenterdquo

(bonsiepe 2011 p 17)

Ateacute aqui mesmo com o modo natildeo usual de conduzir sua reflexatildeo Flusser chega a

algumas conclusotildees semelhantes agraves de autores do design como Cardoso e Bonsiepe Mas

a questatildeo da astuacutecia ainda precisa ser esclarecida Flusser sabe disso e propotildee assumirmos

esse caraacuteter que segundo ele eacute inerente agrave nossa cultura

A cultura para a qual o design poderaacute melhor preparar o caminho seraacute aquela consciente de sua astuacutecia A pergunta eacute a quem e ao que enganamos quando nos inscrevemos na cultura (na teacutecnica e na arte em suma no design) Vamos a um exemplo a alavanca eacute uma maacutequina simples Seu design imita o braccedilo humano trata-se de um braccedilo artificial Sua teacutecnica provavelmente eacute tatildeo antiga quanto a espeacutecie Homo sapiens talvez ateacute mais E o objetivo dessa maacutequina desse design dessa arte dessa teacutecnica eacute enganar a gravidade trapacear as leis da natureza e ardilosamente liberar-nos de nossas condiccedilotildees naturais por meio da exploraccedilatildeo estrateacutegica de uma lei natural Por intermeacutedio de uma alavanca mdash e apesar de nosso proacuteprio peso mdash podemos nos lanccedilar ateacute as estrelas se for o caso e se nos derem um ponto de apoio somos capazes de tirar o mundo de sua oacuterbita Esse eacute o design que estaacute na base de toda cultura enganar a natureza por meio da teacutecnica substituir o natural pelo artificial e construir maacutequinas de onde surja um deus que somos noacutes mesmos Em suma o design que estaacute por traacutes de toda cultura consiste em com astuacutecia nos transformar de simples mamiacuteferos condicionados pela natureza em artistas livres (flusser 2007 p 184)

O exemplo da alavanca que seraacute retomado no segundo ensaio de Flusser jaacute aparece

aqui de modo a explorar o aspecto positivo e diriacuteamos culturalmente grego da astuacutecia

ou seja nos libertar como artistas para alcanccedilarmos as estrelas e ateacute nos tornarmos deuses

95

Mas a dialeacutetica de Flusser natildeo para neste ponto Ele entende que ldquoum ser humano eacute um

design contra a naturezardquo e que ldquose o design continuar se tornando cada vez mais o foco

de interesse e as questotildees referentes a ele passarem a ocupar o lugar das preocupaccedilotildees

concernentes agrave ideia certamente natildeo pisaremos em chatildeo firmerdquo (flusser 2007 p 185) E

em um movimento de oposiccedilatildeo Flusser aponta o que pagamos por assumirmos a astuacutecia

como inerente agrave nossa cultura

Como explicar essa desvalorizaccedilatildeo de todos os valores Pelo fato de que graccedilas agrave palavra design comeccedilamos a nos tornar conscientes de que toda cultura eacute uma trapaccedila de que somos trapaceiros trapaceados e de que todo envolvimento com a cultura eacute uma espeacutecie de autoengano [] Mas o preccedilo que pagamos por isso eacute a renuacutencia agrave verdade e agrave autenticidade O que a alavanca faz de fato eacute tirar de oacuterbita tudo o que eacute verdadeiro e autecircntico e substituiacute-lo mecanicamente por artefatos desenhados com perfeiccedilatildeo Desse modo todos os artefatos adquirem o mesmo valor que as canetas de plaacutestico convertem-se em gadgets descartaacuteveis E isso se evidencia no mais tardar quando morremos Pois apesar de todas as estrateacutegias teacutecnicas e artiacutesticas (apesar da arquitetura do hospital e do design do leito de morte) o fato eacute que morremos como todos os mamiacuteferos A palavra design adquiriu a posiccedilatildeo central que tem hoje no discurso cotidiano porque estamos comeccedilando (e provavelmente com razatildeo) a perder a feacute na arte e na teacutecnica como fontes de valores Porque estamos comeccedilando a entrever o design que haacute por traacutes delas (flusser 2007 p 185-186)

Nesse ponto claramente o tom e a argumentaccedilatildeo flusseriana procuram identificar

os aspectos negativos de assumirmos o que ele entende como um modo de vida artificial

sem verdade e autenticidade Flusser acredita que junto com a identificaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo

da astuacutecia e a busca pela perfeiccedilatildeo renunciamos a diversos valores na arte e na teacutecnica

Poreacutem natildeo concordamos com Flusser que a perda ou rejeiccedilatildeo desses valores possa ser

creditada agrave astuacutecia inerente ao homem e aos princiacutepios que constituem a essecircncia do

design A ambivalecircncia que este autor explora nesse conceito (que associamos agrave cultura

ocidental ora em direccedilatildeo a uma compreensatildeo da vida como um ldquopresenterdquo de Prometeu

ora como a perda da imortalidade e da existecircncia apraziacutevel pela cilada da Serpente biacuteblica)

natildeo indica a real causa das possibilidades que o design enquanto ponte pode nos oferecer

No nosso entendimento o perigo no uso que fazemos da astuacutecia natildeo diz respeito

propriamente a posse que temos dela mas agrave nossa capacidade de discernir valores e agraves

direccedilotildees que nossas escolhas conscientes podem nos levar Flusser no fundo parece

96

ciente disso quando afirma ao final do seu texto que ldquoEste ensaio segue um design

determinado ele quer trazer agrave luz os aspectos peacuterfidos e ardilosos da palavra design que

normalmente costumam ser ocultadosrdquo (flusser 2007 p 186) E aponta que outros

caminhospoderiamserseguidosmasconcluildquo[]eacuteexatamenteassimtudodepende

do designrdquo (flusser 2007 p 186) Natildeo consideramos essa afirmaccedilatildeo como retoacuterica O

conceito de ponte que Flusser propotildee eacute potente o suficiente para fazer pensar sobre as

possibilidades que o design tem enquanto um camp0 com fronteiras moacuteveis A ampliaccedilatildeo

expressiva dessas fronteiras estaacute representada no graacutefico da figura 9 onde linhas partem

do design em direccedilatildeo agrave arte teacutecnica tecnologia e ciecircncia O proacuteximo passo eacute de modo

anaacutelogo percorrer o segundo ensaio deste autor ldquoA alavanca contra-atacardquo atentando

para uma conexatildeo inesperada entre o design e a natureza

Existe um liame visiacutevel entre o primeiro e segundo ensaio Da mesma forma que Flusser

coloca a astuacutecia no centro da discussatildeo no primeiro ele o faz conduzindo esse caraacuteter de

artifiacutecio para o conceito de alavanca no segundo Nessa reflexatildeo de quatro paacuteginas no-

vamente ele inicia com uma definiccedilatildeo ldquoAs maacutequinas satildeo simulaccedilotildees dos oacutergatildeos do corpo

humanordquo (flusser 2007 p 46) Em seguida ele retoma os primoacuterdios da vida humana

imaginando na preacute-histoacuteria alguns instrumentos que contribuiacuteram para o desenvolvimento

de nossa espeacutecie Tanto a alavanca quanto a faca de pedra satildeo enquadradas na categoria

de ldquomaacutequinas inorgacircnicasrdquo enquanto o burro o chacal (que podemos interpretar como

DESIGN

asymp aC dC 7 dC 85 dC dCGreacutecia Ocidente

EPISTEacuteME

TEacuteKHNE TEacuteCNICA

ARTE

TECNOLOGIA

POacuteIESIS CIEcircNCIA

Figura 9 Linha do tempo acrescentando o design com as influecircncias que esse campo acolheu e as conexotildees que Flusser propotildee como desdobramento de suas atividades fonte autor

97

o catildeo) e o escravo pertencem agrave classe das ldquomaacutequinas orgacircnicasrdquo Ao criteacuterio de distinccedilatildeo

entre maacutequinas vivas e inanimadas seguem-se as vantagens e desvantagens de cada um

desses gecircneros As inorgacircnicas satildeo mais fortes resistentes e consequentemente duram mais

No entanto satildeo ldquoestuacutepidasrdquo Jaacute as orgacircnicas duram menos mas por sua complexidade satildeo

consideradas ldquointeligentesrdquo14 (flusser 2007 p 46-47) Em seguida em um salto (na

expressatildeo de Cassirer para outro ldquoponto focalrdquo da histoacuteria) este autor aborda a eacutepoca da

Revoluccedilatildeo Industrial onde uma inflexatildeo e mudanccedila sensiacutevel ocorrem

A maacutequina industrial se distingue da preacute-industrial pelo fato de que aquela tem como base uma teoria cientiacutefica Certamente a alavanca preacute-industrial tambeacutem tem a lei da alavanca em seu bojo mas somente a industrial sabe que a tem Habitualmente isso se expressa assim as maacutequinas preacute-industriais fo-ram fabricadas empiricamente ao passo que as industriais o satildeo tecnicamente (flusser 2007 p 47)

Aqui a semelhanccedila da posiccedilatildeo de Flusser com a que apresentamos de Koyreacute eacute evidente

Para Koyreacute (1991) as teorias cientiacuteficas satildeo o fundamento da diferenciaccedilatildeo que conduz

da teacutecnica agrave tecnologia ao passo que para Flusser essas mesmas teorias distinguem maacute-

quinas preacute-industriais e industriais Ateacute o periacuteodo histoacuterico em que esse processo ocorre

eacute o mesmo para ambos os autores Flusser natildeo faz uso dos mesmos termos de Koyreacute mas

eacute clara sua aderecircncia a essa compreensatildeo que se mostraraacute uma das bases para ele pensar

o design Natildeo sem razatildeo na figura 9 preservamos o elemento da tecnologia e sua linha

de derivaccedilatildeo que vai da ciecircncia ateacute o design

As teorias a respeito do ldquomundo inorgacircnicordquo que possibilitaram as maacutequinas da Re-

voluccedilatildeo Industrial trazem vantagens em relaccedilatildeo agraves duas classes de maacutequinas anteriores

Mas e quanto ao homem e sua relaccedilatildeo com esses instrumentos Flusser prossegue em seu

raciociacutenio mostrando a inversatildeo que ocorre

Daiacute que a partir da Revoluccedilatildeo Industrial o boi deu lugar agrave locomotiva e o cavalo ao aviatildeo O boi e o cavalo eram impossiacuteveis de ser feitos tecnicamente Com relaccedilatildeo aos escravos a coisa era ainda mais complicada As maacutequinas teacutecnicas natildeo apenas iam se tornando cada vez mais eficazes como tambeacutem maiores e

14 O proacuteprio Flusser insere aspas ao se referir agrave caracteriacutestica ldquoestuacutepidardquo ou ldquointeligenterdquo destacando o sentido figurativo desses termos nessa situaccedilatildeo

98

mais caras Desse modo a relaccedilatildeo ldquohomem-maacutequinardquo inverteu-se de tal modo que as maacutequinas natildeo serviam aos homens mas estes serviam a elas Haviam-se convertido em escravos relativamente inteligentes de maacutequinas relativamente estuacutepidas (flusser 2007 p 47)

Simultaneamente ele se pergunta acerca de uma nova fronteira que precisava ser

ultrapassadapelaciecircncialdquo[]emrelaccedilatildeoaomundoorgacircnicoasteoriaserambastante

escassas Que leis tem o burro no seu ventre Natildeo soacute o proacuteprio burro as desconhecia

como tambeacutem os cientistas pouco sabiam sobre elasrdquo (flusser 2007 p 47) Esse passo

eacute importante porque marca um giro em direccedilatildeo agrave natureza aacutepice do ensaio Assim ele vai

da revoluccedilatildeo dos seacuteculos xviii e xix de caraacuteter predominantemente inorgacircnico para

a do xx que volta parte das suas atenccedilotildees para o mundo orgacircnico Nas suas palavras

Mas essa natildeo eacute a mudanccedila realmente importante Muito mais significativo eacute o fato de que estamos comeccedilando a dispor tambeacutem de teorias que se aplicam ao mundo orgacircnico Comeccedilamos a saber que leis o burro traz no ventre Em consequecircncia em breve poderemos fabricar tecnologicamente bois cavalos escravos e superescravos Isso seraacute chamado provavelmente a segunda Revo-luccedilatildeo Industrial ou a Revoluccedilatildeo Industrial ldquobioloacutegicardquo (flusser 2007 p 48)

Flusser chama a nossa atenccedilatildeo para um ramo da ciecircncia que avanccedila em uma aacuterea natildeo

pensada pela tradiccedilatildeo Lembremos que a poacuteiesis em sua vertente de phyacutesis eacute uma atividade

exclusiva da natureza com os seus atributos de autonomia e autoproduccedilatildeo Tendo em

conta a extraordinaacuteria ampliaccedilatildeo do conhecimento que vem ocorrendo desde meados

do seacuteculo xx (a partir da elaboraccedilatildeo de teorias como a do dna) tornou-se inevitaacutevel a

ligaccedilatildeo e o gradativo controle da ciecircncia (episteacuteme) sobre a produccedilatildeo natural (phyacutesis) em

um niacutevel de compreensatildeo natildeo imaginado pelos gregos e a tradiccedilatildeo que se seguiu ateacute aquele

momento Assim apoacutes mostrar que estamos unindo as vantagens do mundo inorgacircnico

com as do orgacircnico Flusser afirma o resultado dessa hibridizaccedilatildeo Metaforizada pelo

autor nas figuras dos ldquochacais de pedrardquo tal ingerecircncia da produccedilatildeo teoacuterica na produccedilatildeo

natural pode tornar as maacutequinas resultantes mais espertas e levaacute-las a nos contra-atacar

como uma alavanca que devolve o golpe causando dor (flusser 2007 p 48-49)

A velha alavanca nos devolveu o golpe movemos os braccedilos como se fossem ala-vancas e isso desde que passamos a dispor delas Imitamos os nossos imitadores Desde que criamos ovelhas nos comportamos como rebanhos e necessitamos de

99

pastores Atualmente esse contra-ataque das maacutequinas estaacute se tornando mais evidente os jovens danccedilam como robocircs os poliacuteticos tomam decisotildees de acordo com cenaacuterios computadorizados os cientistas pensam digitalmente e os artistas desenham com maacutequinas de plotagem Por conseguinte toda futura fabricaccedilatildeo de maacutequinas tambeacutem deveraacute levar em conta o contragolpe da alavanca Jaacute natildeo eacute possiacutevel construir maacutequinas considerando apenas a economia e a ecologia Eacute preciso pensar tambeacutem como essas maacutequinas nos devolveratildeo seus golpes Uma tarefa difiacutecil se levarmos em consideraccedilatildeo que na atualidade a maioria das maacutequinas eacute construiacuteda por ldquomaacutequinas inteligentesrdquo e noacutes apenas observamos o processo para intervir ocasionalmente (flusser 2007 p 49)

Essa visatildeo impressiona em seu aspecto preditivo uma vez que este ensaio de Flusser

foi escrito ainda no seacuteculo xx15 No entanto sua proposta mais radical com a qual ele

encerra o ensaio natildeo diz respeito a essas antecipaccedilotildees e exerciacutecios de futurologia mas

tem a ver com sua decisatildeo de colocar o design no centro da ldquoRevoluccedilatildeo Industrial lsquobioloacute-

gicarsquordquo e se perguntar sobre a capacidade do designer de elaborar soluccedilotildees para os efeitos

do contragolpe da alavanca

Esse eacute um problema de design como devem ser as maacutequinas para que seu con-tragolpe natildeo nos cause dor Ou melhor como devem ser essas maacutequinas para que o contragolpe nos faccedila bem Como deveratildeo ser os chacais de pedra para que natildeo nos esfarrapem e para que noacutes mesmos natildeo nos comportemos como chacais Naturalmente podemos projetaacute-los de modo a que nos lambam em vez de morder-nos Mas queremos realmente ser lambidos Satildeo questotildees difiacuteceis porque ningueacutem sabe de fato como quer ser No entanto devemos debater essas questotildees antes de comeccedilarmos a projetar chacais de pedra (ou talvez clones de invertebrados ou quimeras de bacteacuterias) E essas questotildees satildeo ainda mais inte-ressantes do que qualquer chacal de pedra ou qualquer futuro super-humano Seraacute que o designer estaraacute preparado para colocaacute-las (flusser 2007 p 49-50)

15 Natildeo encontramos referecircncia agrave data da publicaccedilatildeo original deste ensaio mas Flusser morre em 1991 o que distancia suas reflexotildees dos raacutepidos avanccedilos cientiacuteficos e tecnoloacutegicos do seacuteculo atual e reforccedila o tom profeacutetico de sua narrativa Sua preocupaccedilatildeo eacute compartilhada por outros teoacutericos e escritores desse periacuteodo O teor de suas palavras lembra tambeacutem a efervescecircncia dos temas de ficccedilatildeo cientiacutefica de claacutessicos da literatura como os livros Admiraacutevel mundo novo (1932) de Aldous Huxley Eu robocirc (1950) de Isaac Asimov Androides sonham com ovelhas eleacutetricas (1968) de Philip K Dick levado ao cinema por Ridley Scott em Blade Runner o caccedilador de androides (1982) e o conto Sentinela (1951) de Arthur C Clarke que foi a base para o filme 2001 uma odisseia no espaccedilo (1968) de Stanley Kubrick Os escritos de Flusser parecem estar em constante diaacutelogo com esses autores e obras

100

Eacute notaacutevel que Flusser um filoacutesofo transfira pelo menos em parte a responsabilidade

de reflexatildeo sobre os fins do homem e da natureza da esfera da filosofia e da ciecircncia para

o acircmbito do design incluindo o designer no ldquodebaterdquo dessas questotildees que devem se-

gundo ele e com razatildeo preceder aos projetos A figura 10 apresenta duas novas conexotildees

uma entre ciecircncia e natureza e outra surpreendentemente representando a concepccedilatildeo

de Flusser entre design e natureza

Talvez o deslocamento ou rearranjo de compromissos esteja associado ao conceito

de projeto com o qual Flusser abarca tambeacutem o mundo bioloacutegico em suas ldquoquimeras de

bacteacuteriasrdquo Neste sentido podemos afirmar que novamente Bonsiepe tem uma compreen-

satildeo alinhada com a proposta flusseriana

Natildeo se pode mais restringir o conceito de projeto agraves disciplinas projetuais como ocorre na arquitetura no design industrial e no design de comunicaccedilatildeo visual pois nas disciplinas cientiacuteficas tambeacutem haacute projeto Quando um grupo de enge-nheiros agrocircnomos desenvolveu uma nova merenda com base na semente de algaroba acrescida de sais minerais e vitaminas baacutesicas para escolares realizou um claro exemplo de projeto

Portanto jaacute registramos uma zona de contato entre ciecircncias e projeto embora ainda natildeo tenhamos ateacute o momento uma teoria projetual que abarque todas as manifestaccedilotildees projetuais como na engenharia geneacutetica que sem duacutevida alguma deve ser considerada uma disciplina projetual cientiacutefica (bonsiepe 2011 p 19)

DESIGN

asymp aC dC 7 dC 85 dC dCGreacutecia Ocidente

EPISTEacuteME

TEacuteKHNE

PHYacuteSIS NATUREZA

CIEcircNCIA

TEacuteCNICA

ARTE

TECNOLOGIA

POacuteIESIS

Figura 10 Linha do tempo incluindo aleacutem da ligaccedilatildeo entre ciecircncia e natureza a proposta de Flusser para a ligaccedilatildeo entre design e natureza fonte autor

101

Na citaccedilatildeo anterior nossa atenccedilatildeo se concentra na semelhanccedila entre a ideia de ldquozona

de contatordquo em Bonsiepe e a de ldquoponterdquo em Flusser As possibilidades que esses dois con-

ceitos liberam para o design e outros campos atuarem como conectores entre aacutereas do

conhecimento satildeo substanciais e promissoras Bonsiepe expotildee sua ideia sobre uma ldquoteoria

projetualrdquo como um viacutenculo entre diversas aacutereas Atuando como epistemoacutelogo propotildee

de modo perspicaz uma disciplina que do modo como entendemos exerceria (enquanto

um substrato metafiacutesico) suporte agrave etapa de projeto do qual os campos implicados em

praacuteticas projetivas poderiam usufruir De modo similar agrave visatildeo de Bonsiepe a ideia de

Flusser no entanto nos atrai mais pelos diversos desdobramentos que pudemos identificar

e que tem proximidade com nossa abordagem

1 Apesar da semelhanccedila conceitual diferentemente da zona de contato na ideia de

ponte o design eacute a proacutepria ponte

2 A ponte liga ciecircncia de um lado e arte do outro o que eacute um modo de nos esquivarmos

da cisatildeo entre aacutereas do saber

3 A ponte tambeacutem permite reconsiderar se o problema da hierarquizaccedilatildeo do conheci-

mento advinda da cisatildeo em aacutereas pode ser eventualmente mitigado ou ateacute eliminado

4 A possibilidade de quebra ou supressatildeo parcial da hierarquia aponta um caminho

para avanccedilarmos na reflexatildeo sobre o estatuto ontoloacutegico do design e da arte

Para os nossos propoacutesitos o quarto desdobramento eacute o mais relevante Para ser ex-

plicitado eacute necessaacuterio avanccedilarmos um pouco mais contrapondo ao conceito de ldquoponterdquo

de Flusser (2007) o de ldquorelogiosidade do reloacutegiordquo de Cardoso (1998)

233 Essecircncia ontoloacutegica e epistemoloacutegica

Rafael Cardoso no artigo ldquoDesign cultura material e o fetichismo dos objetosrdquo (1998)

apesar de considerado por ele mesmo mais um ensaio ou ldquoum exerciacutecio de especulaccedilatildeordquo

aprofunda-se ao longo de 29 paacuteginas em um amplo espectro de questotildees No entanto

nosso interesse se restringe aos dois niacuteveis de significados propostos para o que este autor

102

nomeia como ldquoartefatosrdquo16 No primeiro niacutevel encontram-se os significados essenciais em

seus aspectos ontoloacutegicos e epistemoloacutegicos No segundo incorporam-se os significados

natildeo inerentes dessa classe de objetos Como outros autores investigados ateacute aqui Cardoso

elabora algumas definiccedilotildees chave para formar uma base de onde partem suas ideias

Na verdade o design graacutefico moderno conta com um verdadeiro arsenal de me-canismos para despertar uma vasta gama de emoccedilotildees sendo o desejo e a cobiccedila as mais empregadas atualmente para fins mercadoloacutegicos Partamos entatildeo para um esboccedilo de definiccedilatildeo o design eacute em uacuteltima anaacutelise um processo de investir os objetos de significados significados estes que podem variar infinitamente de forma e de funccedilatildeo e eacute nesse sentido que ele se insere em uma ampla tradiccedilatildeo lsquofetichistarsquo (cardoso 1998 p 28-29)

Considerando que a atribuiccedilatildeo de significaccedilatildeo estaacute longe de se restringir aos aspectos

materiais essa definiccedilatildeo de design como ldquoum processo de investir os objetos de significadosrdquo

por si soacute jaacute indica uma compreensatildeo do design que natildeo necessariamente estaacute vinculada agrave

produccedilatildeo material Cardoso partindo desse ldquoesboccedilordquo busca delimitar o campo do design

em relaccedilatildeo agrave arte ao artesanato e agrave ciecircncia empregando a palavra artifiacutecio o que obvia-

mente remete ao uso anterior dado por Flusser

O que eu quero enfatizar aqui eacute que o esforccedilo histoacuterico do design para afastar-se do sentido artesanal e individualista da tradiccedilatildeo artiacutestica ocidental e para acercar-se de uma pretensa objetividade cientiacutefica e tecnoloacutegica acarretou entre outros resultados uma relativa perda de consciecircncia do teor artificioso do campo Natildeo quero dizer de modo algum que o design natildeo passe de uma espeacutecie de artifiacutecio no sentido pejorativo de fingimento ou artimanha Quero antes recuperar o sentido mais primitivo da palavra artifiacutecio o de habilidade ou engenho de inventividade e mdash por que natildeo dizer mdash de criatividade O ato de projetar tem na sua essecircncia um componente baacutesico de criaccedilatildeo de artifiacutecio que natildeo difere substancialmente daquele mesmo elemento factiacutecio (no sentido de lsquofeiturarsquo) que estaacute por traacutes do artesanato da arte e ateacute da magia segundo Kris e Kurz26 Em todos esses casos o artifiacutecio da coisa consiste em dar forma agraves ideacuteias em gerar o fato material e concreto a partir de um ponto eminentemente imaterial e abstrato O que distingue o design de grande parte do artesanato da arte e mdash presumo eu mdash da magia eacute que no design o fato material (factum)

16 Cardoso estabelece os artefatos como uma das particularizaccedilotildees dos objetos ldquoMais correta do que lsquoob-jetorsquo no contexto atual seria a palavra lsquoartefatorsquo a qual se refere especificamente aos objetos produzidos pelo trabalho humano em contraposiccedilatildeo aos objetos naturais ou acidentaisrdquo (cardoso 1998 p 19)

103

que se pretende gerar natildeo eacute feito (factus) pelo mesmo indiviacuteduo que deu iniacutecio ao processo ao conceber a ideacuteia (cardoso 1998 p 29-30)

26 Ernst Kris amp Otto Kurz Legend myth and magic in the image of the artist (New Haven Yale University Press 1981) [nota em peacute de paacutegina do autor]

Independentemente de ser discutiacutevel qual sentido da palavra artifiacutecio eacute o mais primi-

tivo17 se o de engenho ou de fingimento a posiccedilatildeo de Cardoso indica sua predileccedilatildeo pela

primeira acepccedilatildeo bem justificada por estar associada agrave criatividade e diriacuteamos um sentido

positivo e grego se nos lembrarmos da correlaccedilatildeo com a dialeacutetica de Flusser acerca da

astuacutecia Essa determinaccedilatildeo eacute reforccedilada uma vez que logo em seguida na mesma citaccedilatildeo

ele explicita que entende por artifiacutecio o ldquodar forma agraves ideiasrdquo partindo do imaterial e do

abstrato o que reflete um caraacuteter aleacutem de grego platocircnico

Assim Cardoso propotildee o design como uma esfera de concepccedilatildeo de ideias o que do

nosso ponto de vista implica mesmo de modo impliacutecito aceitar um componente platocirc-

nico de objetividade Mas em contraponto a essa posiccedilatildeo ele caminha tambeacutem em um

sentido inverso de valorizar a criatividade da arte criticando o ldquoesforccedilo histoacutericordquo18 do

design de se afastar dos aspectos individualistas e artesanais e se aproximar de elementos

como a objetividade normalmente associados agrave ciecircncia e tecnologia Por fim Cardoso

une esses elementos diversos em uma caracterizaccedilatildeo complexa do design

Quero sugerir portanto que a atividade do design caracteriza-se mais como um exerciacutecio de processos mentais (artifiacutecioengenho) do que de processos manuais (artes aplicadas ou plaacutesticas propriamente ditas) e como tanto assemelha-se ao fetichismo que tambeacutem forja uma ligaccedilatildeo entre o imaterial e o material sem passar necessariamente pela feitura27 (cardoso 1998 p 30)

27 Ignorando por um momento o fato de que o designer depende tradicio-nalmente de meios de expressatildeo manuais e ateacute artiacutesticos para transmitir as

17 No nosso entendimento pelo menos ateacute pudemos investigar etimologicamente eacute difiacutecil precisar qual eacute o sentido mais primitivo para a palavra artifiacutecio

18 A afirmaccedilatildeo de Cardoso sobre ldquoo esforccedilo histoacuterico do design para afastar-se do sentido artesanal e individualista da tradiccedilatildeo artiacutestica ocidental e para acercar-se de uma pretensa objetividade cientiacutefica e tecnoloacutegica []rdquo (cardoso 1998 p 29-30) confirma a oposiccedilatildeo frontal que jaacute anunciamos ante-riormente (p 77) entre ele e Schneider Lembremos que Schneider entende que ldquouma tradiccedilatildeo forte e ateacute agora dominante na histoacuteria do design desde a industrializaccedilatildeo ateacute a atualidade eacute marcada pela motivaccedilatildeo artiacutestica pela inspiraccedilatildeo artiacutestica para um design expressivo Essa tradiccedilatildeo se manifesta na tendecircncia a fetichizar a proacutepria praacutetica como artiacutestica e desobrigar-se agrave argumentaccedilatildeo racional e cultivar a aura do design de autorrdquo (schneider 2010 p 260) Itaacutelico nosso

104

suas concepccedilotildees Esta questatildeo tem que ser sempre levada em consideraccedilatildeo ao problematizar a relaccedilatildeo entre design e arte [nota em peacute de paacutegina do autor]

Aqui se condensa mais um ponto relevante da comunhatildeo de ideias de Cardoso e

de Flusser Com articulaccedilatildeo distinta Cardoso partilha da visatildeo de Flusser de reconexatildeo

entre aacutereas do saber mesmo que ele natildeo assuma explicitamente neste artigo uma criacutetica e

proposiccedilatildeo de superaccedilatildeo da cisatildeo dessas aacutereas Deste modo os componentes em oposiccedilatildeo

dialeticamente mesclados por Cardoso em sua definiccedilatildeo do design mdash de um lado uma

objetividade de cunho platocircnico e epistecircmico e de outro um fetichismo quase maacutegico

subjetivo e por que natildeo dizer artiacutestico mdash natildeo satildeo difiacuteceis de ser associados com o conceito

da Ponte Flusseriana

Paralelamente a isso os dois constituintes desse conceito tecircm algo em comum

conectam segundo Cardoso o imaterial com o material natildeo sendo nos dois casos me-

diados necessariamente nessa ligaccedilatildeo pela operaccedilatildeo do fazer Para este autor o design

caracteriza-se portanto por ser um ldquoprocesso mentalrdquo sem a intervenccedilatildeo da execuccedilatildeo

material ficando a produccedilatildeo a cargo de outros profissionais que natildeo o designer E tal de-

terminaccedilatildeo entre conceito abstrato e fazer concreto em outras palavras projeto e execuccedilatildeo

pode ser comprovada na praacutetica com os seus ganhos e perdas para o ser humano desde

a Revoluccedilatildeo Industrial quando a divisatildeo de tarefas entre designers e artesatildeosoperaacuterios

torna-se evidente

Em complemento a esses argumentos no livro ldquoUma introduccedilatildeo agrave histoacuteria do designrdquo

publicado uma deacutecada depois desse artigo Cardoso confirma seu entendimento acerca

da separaccedilatildeo entre projeto e execuccedilatildeo ao discorrer com inuacutemeros exemplos19 sobre

19 Tal separaccedilatildeo se confirma tambeacutem ateacute nas atividades em que a parte projetual define a maior parte das estruturas que guiaratildeo a execuccedilatildeo como no caso dos projetos editoriais de livros e a criaccedilatildeo de faces tipograacuteficas Nesses projetos o imaterial espantosamente equivale ao digital e pode em certo sentido prescindir do mundo material como no caso dos e-books e suas fontes tipograacuteficas Em relaccedilatildeo agraves fontes a ocorrecircncia da divisatildeo de seu processo de produccedilatildeo entre projeto e execuccedilatildeo eacute ainda mais recuada no tempo Desde o periacuteodo da tipografia mecacircnica que se inicia com Gutenberg o trabalho conceitual da criaccedilatildeo das formas dos tipos ou de seu conjunto a face tipograacutefica pelos ldquodesignersrdquo de faces se diferenciava da produccedilatildeo fiacutesica da fonte tipograacutefica pelos puncionistas profissionais que geravam as matrizes para a posterior produccedilatildeo das letras em ligas de chumbo Mas neste caso especiacutefico em que a separaccedilatildeo de tarefas vai ateacute a terminologia (de um lado faces de tipo e de outro fontes tipograacuteficas) tal divisatildeo natildeo impedia nem impede na atualidade de um mesmo profissional atuar em ambas as eta-pas Para mais detalhes ver silva SL Faces e Fontes Multiescrita fundamentos e criteacuterios do design tipograacutefico 1ordf ed Belo Horizonte Adaequatio Editora 2016 lt wwwfacesefontescombr gt

105

as diferenccedilas entre as etapas de planejamento e de produccedilatildeo que permitiram reduzir o

tempo de fabricaccedilatildeo baratear o custo com a matildeo de obra especializada ao colocar cada

trabalhador executando uma tarefa simples e repetitiva separada das demais ldquoEm vez de

contratar muitos artesatildeos habilitados bastava um bom designer para gerar o projeto um bom

gerente para supervisionar a produccedilatildeo e um grande nuacutemero de operaacuterios sem qualificaccedilatildeo

nenhuma para executar as etapas de preferecircncia como meros operadores de maacutequinasrdquo (car-

doso 2008 p 34)

Retornando ao artigo de 1998 atentemos para como esse autor constroacutei a ligaccedilatildeo

entre os conceitos de design e designer com dois niacuteveis de significados dos objetos na

categoria de artefatos

Quero sugerir aqui que os artefatos mesmo natildeo possuindo significados perma-nentes ou fixos satildeo capazes de conter significados ligados tatildeo intimamente agrave sua natureza fiacutesica e concreta que estes podem ser considerados mais ou menos lsquoinerentesrsquo ou seja estaacuteveis em um grau infinitamente maior do que qualquer significado verbal [] (cardoso 1998 p 32)

Cardoso estabelece entatildeo outra diferenciaccedilatildeo que nos interessa por distinguir dois

aspectos de significaccedilatildeo quanto agrave essecircncia desses objetos Eacute importante destacar a rele-

vacircncia da abordagem de Cardoso operando uma clivagem entre aspectos ontoloacutegicos

e epistemoloacutegicos de um lado e aspectos natildeo essenciais de outro em um escrito de 20

anos atraacutes Ateacute onde pesquisamos abordagens expliacutecitas dessa natureza calcadas nessa

espeacutecie de diferenciaccedilatildeo ainda satildeo pouco exploradas em textos sobre teoria do design

Avancemos na linha de raciociacutenio deste autor

[] mesmo que natildeo funcione e mesmo que seja apropriado para outro uso (eg como um peso de papel ou um elemento decorativo) o reloacutegio reteacutem pelo menos dois niacuteveis de significaccedilatildeo que dificilmente satildeo apagados primeiramente a sua identificaccedilatildeo como exemplar de uma classe especiacutefica de objetos (a sua essecircncia ontoloacutegica) e em segundo lugar o fato de remeter agrave mediccedilatildeo da passagem do tempo (a sua essecircncia epistemoloacutegica) (cardoso 1998 p 32)

Acreditamos que a escolha que Cardoso faz do reloacutegio como exemplo para as duas

classes de objetos natildeo eacute arbitraacuteria Lembremos que Koyreacute seguido de Maldonado (cf

p 72-73 e 81-82) indica que a mudanccedila operada no surgimento da ciecircncia moderna com

consequecircncias para a Revoluccedilatildeo Industrial eacute de ordem da precisatildeo E Koyreacute recorre ao

106

exemplo do reloacutegio que segundo ele deixa de ser um utensiacutelio impreciso para o uso co-

tidiano e torna-se um instrumento de mediccedilatildeo para uso cientiacutefico epistecircmico

Todavia natildeo foi da relojoaria dos relojoeiros que finalmente saiu a relojoaria de precisatildeo O reloacutegio dos relojoeiros nunca ultrapassou mdash e jamais poderia fazecirc-lo mdash o estaacutegio do ldquoquaserdquo e o niacutevel do ldquomais-ou-menosrdquo O reloacutegio de pre-cisatildeo o reloacutegio cronomeacutetrico tem uma origem totalmente distinta De modo algum eacute uma promoccedilatildeo do uso praacutetico do reloacutegio Ele eacute um instrumento ou seja uma criaccedilatildeo do pensamento cientiacutefico ou melhor ainda a realizaccedilatildeo consciente de uma teoria Eacute verdade que uma vez realizado um objeto teoacuterico pode se tornar um objeto praacutetico objeto de uso corrente e cotidiano [] Mas natildeo eacute a utilizaccedilatildeo de um objeto que determina a sua natureza eacute a estrutura um cronocirc-metro continua sendo um cronocircmetro mesmo que marinheiros o empreguem E isso nos explica por que natildeo se atribui aos relojoeiros mas aos saacutebios natildeo a Jost Burgi e a Isaak Thuret mas a Galileu e a Huygens (assim como a Robert Hooke) as grandes invenccedilotildees decisivas a quem tambeacutem devemos o reloacutegio de pecircndulo e o reloacutegio regulado de mola (koyreacute 1991 p 283)

A concepccedilatildeo de que os instrumentos possuem fundamentos epistemoloacutegicos isto eacute

uma teoria subjacente agrave sua concepccedilatildeo e produccedilatildeo faz sentido e justifica a distinccedilatildeo entre

teacutecnica e tecnologia No entanto Koyreacute entende que a essecircncia de um instrumento per-

manece mesmo quando eacute usado cotidianamente de modo praacutetico como um cronocircmetro

para saber somente as horas e natildeo milissegundos em um laboratoacuterio Assim quando Koyreacute

afirma que eacute a estrutura que determina a natureza de um objeto e natildeo o uso ele estaacute im-

plicitamente defendendo que a essecircncia ontoloacutegica dos objetos da classe dos instrumentos

natildeo se altera Cardoso ateacute onde pudemos entender identifica tambeacutem essas estruturas e

faz uma distinccedilatildeo entre os significados inerentes ou ldquomais ou menos lsquoinerentesrsquordquo e os natildeo

essenciais Poreacutem ele nos alerta como antes dele Koyreacute para mudanccedilas de significados

dos artefatos que podem ocorrer com o passar do tempo

Se pensarmos no artefato natildeo como uma entidade abstrata mas a partir de exemplos concretos torna-se evidente que nenhum objeto possui um significado monoliacutetico ou fixo Os artefatos existem no tempo e no espaccedilo e vatildeo portanto perdendo sentidos antigos e os adquirindo novos agrave medida que mudam de contexto (cardoso 1998 p 31)

Quando cotejamos os discursos desses dois autores devemos ter em conta que Koyreacute

tratando do mesmo objeto que Cardoso mdash o reloacutegio mdash propotildee a classe ontoloacutegica dos

107

instrumentos enquanto Cardoso a classe dos artefatos cada um com suas nuances e di-

ferenccedilas de sentido De qualquer modo ambos os autores tem uma compreensatildeo de que

os significados originaacuterios e constitutivos desses gecircneros de objetos ligados agrave estrutura

(Koyreacute) ou a essecircncia (Cardoso) tendem a se preservar e ser mais estaacuteveis que aqueles

adquiridos com o passar do tempo e a popularizaccedilatildeo de suas aplicaccedilotildees

Existem apenas dois mecanismos baacutesicos para investir o artefato de significa-dos a atribuiccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo os quais correspondem em linhas gerais aos processos paralelos de produccedilatildeodistribuiccedilatildeo e consumouso Varia o grau de estabilidade dos diversos significados (sua capacidade de lsquoaderecircnciarsquo ao artefato) mas grosso modo pode-se dizer que os significados atribuiacutedos no momento de produccedilatildeodistribuiccedilatildeo tendem a ser mais duradouros e universais do que aqueles advindos das instacircncias muacuteltiplas de apropriaccedilatildeo pelo consumouso (cardoso 1998 p 33)

Discordamos das posiccedilotildees de Koyreacute e de Cardoso acerca de propriedades que satildeo

inerentes aos objetos No entanto para compreender nossa divergecircncia eacute necessaacuterio

irmos ateacute agrave sua causa que se desloca das questotildees ontoloacutegicas tratadas neste momento

pelos dois autores e se estabelece em outra esfera o campo da teoria do conhecimento

gnoseologia conforme a figura 11

METAFIacuteSICA

ONTOLOGIA ESTEacuteTICA

ARTE

TEORIA

DO CONHECIMENTOGNOSEOLOGIA

EPIST

EMOLO

GIAFILOSOFIA DA CIEcircNCIA

CIEcircNCIAamp

TEacuteCNICA

O SER EOS ENTES EM GERAL

Figura 11 Representaccedilatildeo das esferas da ontologia e da gnoseologia e dos movimentos de reflexatildeo que precisamos empreender em cada um desses campos para identificar as caracteriacutesticas dos artefatos fonte autor

108

Grosso modo20 de um ponto de vista gnoseoloacutegico isto eacute pressupondo que o conhe-

cimento se estabelece em uma relaccedilatildeo entre sujeito e objeto21 as afirmaccedilotildees de Koyreacute e

Cardoso sinalizam para uma compreensatildeo dessa relaccedilatildeo de caraacuteter realista uma vez que

ambos os autores entendem o objeto possuindo propriedades constitutivas intriacutensecas

e reais independentes do sujeito Jaacute o idealismo posiccedilatildeo diametralmente oposta ao rea-

lismo entende que o objeto eacute construiacutedo em nossa consciecircncia Nossa posiccedilatildeo em certo

sentido fenomenalista22 procura mediar realismo e idealismo Entendemos que os objetos

satildeo constituiacutedos a partir de uma uniatildeo de elementos sensiacuteveis (empiacutericos) e inteligiacuteveis

(intelectivos) e o sujeito (enquanto sujeito do conhecimento) eacute quem procede com essa

uniatildeo no ato de conhecer

Com essa diferenciaccedilatildeo estabelecida ao retornar ao acircmbito da ontologia podemos

pensar diferentemente de Koyreacute e Cardoso os aspectos estruturais ou essenciais que

estariam segundo esses autores mais fortemente ligados ao significado iacutentimo dos ob-

jetos (sejam eles instrumentos artefatosutensiacutelios ou de outros gecircneros como artiacutesti-

cos e ateacute naturais) podem ultrapassar a fronteira de seus sentidos originais natildeo apenas

incorporando novas caracteriacutesticas mas saltando de uma classe ontoloacutegica para outra

Acreditamos que quando algueacutem faz uso de um cronocircmetro fora do acircmbito da pesquisa

cientiacutefica para o qual foi originalmente concebido tal objeto deixa de ser compreendido

ontologicamente como um instrumento de precisatildeo e se torna um artefato ou utensiacutelio

Nosso entendimento eacute de que um objeto natildeo precisa sofrer qualquer alteraccedilatildeo fiacutesica para

passar de uma classe ontoloacutegica a outra O exemplo do urinol de Marcel Duchamp que

seraacute investigado no capiacutetulo 5 eacute radical a este respeito Para transformaacute-lo (ou transfi-

guraacute-lo como diria Arthur Danto) de artefato ou utensiacutelio em obra de arte Duchamp

20 Nosso procedimento de exposiccedilatildeo e atribuiccedilatildeo de posiccedilotildees a Koyreacute e a Cardoso eacute bastante superficial e somente se justifica para indicar o ponto de origem de nossa discordacircncia com esses autores Tanto o realismo quanto o idealismo conteacutem diversas categorias (realismo ingecircnuo natural e criacutetico e idealismo subjetivo e objetivo) com inuacutemeras e ricas variantes que satildeo abordadas em detalhes por Hessen (2000)

21 Conforme afirma Hessen ldquoNo conhecimento encontram-se frente a frente a consciecircncia e o objecto o sujeito e o objecto O conhecimento apresenta-se como uma relaccedilatildeo entre estes dois elementos que nela permanecem eternamente separados um do outro O dualismo sujeito e objeto pertence agrave essecircncia do conhecimentordquo (hessen 1980 p26)

22 Com essa denominaccedilatildeo que normalmente estaacute associada agrave posiccedilatildeo de Kant natildeo pretendemos assumir sua concepccedilatildeo gnoseoloacutegica como um todo com a qual partilhamos algumas convicccedilotildees mas com reservas

109

do ponto de vista fiacutesico apenas acrescentou uma assinatura que natildeo era a sua Frente ao

nosso posicionamento temos mais um uacuteltimo ponto em que a compreensatildeo de Cardoso

nesse artigo se distingue da nossa

Natildeo cabe ao design atribuir relogiosidade a um reloacutegio pois este jaacute o possui necessariamente com ou sem a participaccedilatildeo de um designer no processo de produccedilatildeo Natildeo a funccedilatildeo do designer natildeo eacute de atribuir ao objeto aquilo que ele jaacute possui aquilo que jaacute faz parte (in haerere) da sua natureza mas de enriquececirc-lo de fazer colar mdash aderir mesmo (ad haerere) mdash significados de outros niacuteveis bem mais complexos do que aqueles baacutesicos que dizem respeito apenas agrave sua identidade essencial Conforme assinalei acima esses significados podem ser de ordens diversas desde questotildees de seguranccedila e facilidade de uso ateacute noccedilotildees de moda prestiacutegio ou sexualidade Independentemente do tipo de significado que o designer queira atribuir ao artefato existe a questatildeo da capacidade de aderecircncia do significado em questatildeo Como todos os significados

mdash com a possiacutevel exceccedilatildeo dos mais baacutesicos mdash satildeo fluidos estando sujeitos agrave transformaccedilatildeo eou subversatildeo pelos mecanismos de apropriaccedilatildeo eles podem ser considerados como sendo mais ou menos duradouros dependendo da sua capacidade de resistir a esses e outros mecanismos (cardoso 1998 p 35)

Neste ponto Cardoso define o que ele compreende como a funccedilatildeo dos designers

enriquecerem os objetos com mais significados do que os ldquobaacutesicosrdquo proacuteprios da sua

natureza De modo nenhum recusamos o valor do enriquecimento mas natildeo podemos

abrir matildeo da consciecircncia e da capacidade do design e dos designers de atuar ontoloacutegica

e epistemologicamente sobre seus projetos Quando um designer (trabalhando isolada-

mente em grupo ou como vem ocorrendo cada vez mais em equipes multidisciplinares)

desenvolve um novo artefato ou instrumento (seja esse objeto algo ldquooriginalrdquo como

uma invenccedilatildeo ou uma reuniatildeo inusitada de conceitos e ideias jaacute existentes) o mundo se

amplia com a inclusatildeo de um novo item agrave realidade Essa ampliaccedilatildeo natildeo eacute de ldquoaderecircnciardquo

de significados mas de ordem de significaccedilatildeo mais profunda existencial e ontoloacutegica E

seu fundamento mdash no acircmbito subjacente da gnoseologia mdash eacute o de se conceber o objeto

como a somatoacuteria de um mundo sensiacutevel unido ao inteligiacutevel pelo sujeito

Mas qual a relevacircncia da diferenciaccedilatildeo entre uma atuaccedilatildeo na natureza iacutentima dos

objetos e aquela que os enriquecem aleacutem de uma explicitaccedilatildeo teoacuterica ou um exerciacutecio

mental de compreensatildeo da atividade projetual dos designers Acreditamos que uma das

110

vantagens da indeterminaccedilatildeo do design eacute a possibilidade caso desejemos de franquearmos

esferas do conhecimento que teoricamente (no sentido literal dessa palavra) natildeo teriacuteamos

acesso e onde natildeo poderiacuteamos atuar caso as fronteiras desse campo fossem claramente

delimitadas Assim nos unimos agrave Flusser ao retomar a pergunta da paacutegina 78 eacute possiacutevel

garantir autonomia a cada uma dessas disciplinas (ciecircncia teacutecnica design e arte) e ao

mesmo tempo ultrapassar ou pelo menos mitigar o modelo de cisatildeo que existe entre elas

Neste sentido acreditamos que o design pode atuar natildeo construindo pontes mas efeti-

vamente sendo a ponte que conecta aacutereas Com isso tambeacutem eacute possiacutevel avanccedilarmos em

direccedilatildeo a domiacutenios ateacute entatildeo impensados como o da natureza em seu acircmbito bioloacutegico

Essa atuaccedilatildeo natildeo pode ser considerada meramente um enriquecimento por mais que a

valorizaccedilatildeo dos artefatos seja entendida como um processo em um niacutevel mais complexo

como pensa Cardoso

Com todos os riscos que Flusser aponta e devemos atentar para eles o design opera

uma ampliaccedilatildeo da realidade em outras palavras uma operaccedilatildeo ontoloacutegica como tambeacutem

procede a arte de modo expliacutecito desde Duchamp No entanto uma pergunta precisa

ser respondida com quais elementos tal ponte se concretiza Como veremos no capiacutetulo

4 o conceito aristoteacutelico de miacutemesis eacute plenamente capaz de estruturar a ldquoponterdquo entre

diversas aacutereas como tambeacutem eacute constitutivamente um princiacutepio de natureza ontoloacutegica

Mas antes eacute necessaacuterio compreender e ultrapassar a questatildeo da subjetividade e objetividade

no design e na arte um dos temas do proacuteximo capiacutetulo jaacute anunciado no atual (cf p 103-

104) com a concepccedilatildeo de Cardoso que une esses dois elementos na disciplina do design

111

3 DA ESTEacuteTICA Agrave ONTOLOGIA NA ARTE E NO DESIGN

No capiacutetulo anterior construiacutemos uma estrutura de conexotildees entre ciecircncia arte e design

que demandou um percurso circular mais direcionado aos eixos ou esferas gnoseoloacutegica

e ontoloacutegica do que agrave esteacutetica (cf figura 11 p 107) A partir da constituiccedilatildeo desse arca-

bouccedilo parcial de caraacuteter propedecircutico a convergecircncia estabelecida conduziu as ques-

totildees investigadas para o foco da ontologia confirmando que nossa busca por elementos

relacionais entre design e arte no acircmbito desta esfera eacute profiacutecua No entanto devemos

considerar que tal confluecircncia ainda carece de uma investigaccedilatildeo orientada a partir da

esteacutetica Existem trecircs razotildees para esse movimento

1 Tendo em conta que rejeitamos a hierarquizaccedilatildeo do conhecimento eacute imprescindiacutevel

garantir equiliacutebrio nas anaacutelises sem privileacutegio da ciecircncia em detrimento da arte

2 A esfera da esteacutetica sedia temas inerentes agrave arte ou seja tem autonomia em relaccedilatildeo

agraves outras duas

3 Os temas como veremos podem ser correlacionados ao design quando transpomos

o nuacutecleo esteacutetico em direccedilatildeo agrave gnoseologia e ontologia

Dentro do processo de ordenaccedilatildeo da tese os trecircs motivos listados prefiguram a segun-

da etapa do meacutetodo transposiccedilatildeo da abordagem do tema de um vieacutes esteacutetico e gnoseoloacutegico

para ontoloacutegico (cf capiacutetulo 1 p 49)

A operaccedilatildeo baacutesica do capiacutetulo atual se efetiva a partir do cotejo dos conceitos de

subjetividade e objetividade nos domiacutenios da arte que satildeo em seguida transpostos para o

design No capiacutetulo anterior jaacute haviacuteamos identificado no pensamento de Cardoso (1998)

uma contraposiccedilatildeo que interpretamos como sendo essencialmente um desdobramento

dialeacutetico desses dois conceitos Mas na concepccedilatildeo de Cardoso o centro da questatildeo era

o design em sua relaccedilatildeo de um lado com a ciecircncia em seu caraacuteter de objetividade e de

outro com a arte com sua base de subjetividade Nossa tarefa atual (pressupondo o vieacutes

da epistemologia e da gnoseologia jaacute circunscrito e apontando para criteacuterios objetivos)

eacute pensar o vieacutes da esteacutetica que incorpora a subjetividade agrave compreensatildeo dos seus objetos

A intenccedilatildeo eacute primeiramente aprofundar na esfera da esteacutetica investigando a arte e seus

112

objetos e extrair os conceitos de que necessitamos Em seguida ultrapassar os limites

dessa esfera (como ultrapassamos os da gnoseologia no capiacutetulo anterior) incorporando

suas demandas ao territoacuterio da ontologia territoacuterio esse capaz de suportar os elementos

exclusivos das duas primeiras esferas na tarefa de fundamentar as relaccedilotildees entre design e

arte (figura 12)

Para esse empreendimento primeiramente nos apropriamos de uma releitura da

antinomia kantiana acerca do belo aplicada agrave arte contemporacircnea que transpomos ao

design Em seguida a partir das conclusotildees que chegamos com Kant da impossibilidade

de compreendermos o design por uma abordagem exclusivamente esteacutetica ou episte-

moloacutegica voltamos nossa atenccedilatildeo para a viabilidade de um caminho de caracteriacutesticas

ontoloacutegicas apoiados em Heidegger A intenccedilatildeo eacute mostrar como o modo de produccedilatildeo

da arte investigado atraveacutes desse vieacutes ao mesmo tempo possibilita alargar a compreensatildeo

do que satildeo os utensiacutelios e instrumentos como tambeacutem do que entendemos ser o campo

do design em suas relaccedilotildees com a arte

METAFIacuteSICA

ESTEacuteTICA

ONTOLOGIA

O SER EOS ENTES EM GERAL

TEORIA

DO CONHECIMENTOGNOSEOLOGIA

EPIST

EMOLO

GIAFILOSOFIA DA CIEcircNCIA

CIEcircNCIAamp

TEacuteCNICAARTE

Figura 12 Representaccedilatildeo da etapa de centralizaccedilatildeo da investigaccedilatildeo na esfera da esteacutetica em sua relaccedilatildeo com a da gnoseologia e ontologia fonte autor

113

31 Kant e a abordagem esteacutetica na arte e no design

Esta primeira seccedilatildeo tem origem na discussatildeo proposta pelo filoacutesofo e teoacuterico da arte Thier-

ry de Duve no capiacutetulo Kant after Duchamp de seu livro homocircnimo (de duve 1998)

A reflexatildeo de Thierry de Duve parte de uma anaacutelise do trabalho de Clement Greenberg

criacutetico de arte e do artista e ensaiacutesta Joseph Kosuth ambos envolvidos nas polecircmicas em

torno da arte e da esteacutetica que se desenrolaram principalmente nas deacutecadas de 1960 e 1970

nos Estados Unidos Sua abordagem busca em uma antinomia kantiana o entendimento

das posiccedilotildees associadas a Greenberg e Kosuth em relaccedilatildeo a subjetividade e a objetividade

dentro do territoacuterio da arte

Com o aprofundamento dessa investigaccedilatildeo especiacutefica percebemos as discussotildees

de meados do seacuteculo xx (das quais de Duve eacute testemunha) como um ldquoponto focalrdquo de

Cassirer (1992 p 48) Elas ainda se justificam tanto por causa da crescente ampliaccedilatildeo das

fronteiras da arte no contexto contemporacircneo quanto pelas suas interseccedilotildees com outros

campos como o design que tambeacutem vecircm alargando seus limites Assim assumindo que

esse tema estabelece viacutenculos com outros campos construiacutemos trecircs hipoacuteteses para inves-

tigar exclusivamente a questatildeo da subjetividade versus objetividade no acircmbito do design

1 A questatildeo se transfere da arte e contamina o design de forma perifeacuterica

2 A questatildeo se transfere da arte e contamina o design indo aleacutem da periferia atingindo

o seu cerne conceitual

3 A questatildeo natildeo se transfere mas eacute intriacutenseca ao design e suscita de modo anaacutelogo ao

que ocorre com a arte discussotildees sobre o estatuto ontoloacutegico do design

Nenhuma dessas trecircs hipoacuteteses a princiacutepio nos parece simples de perseguir como

meta nesta primeira seccedilatildeo mas dependendo da posiccedilatildeo que assumimos somos enviados as

concepccedilotildees de design investigadas no capiacutetulo anterior que se aproximam ou se distan-

ciam do que hoje se entende como ciecircncia1 enquanto campo direcionado agrave objetividade

1 Na confirmaccedilatildeo de qualquer das trecircs possibilidades existe uma tarefa adicional e singular pela frente uma vez que as controveacutersias que partem de Kant sobre a subjetividade e a objetividade ateacute onde pudemos investigar ainda persistem no territoacuterio da arte da esteacutetica e da filosofia da arte Isto obrigaraacute em um estudo posterior a busca por respostas para o design que ainda natildeo foram encontradas para a arte

114

Thierry de Duve inicia o capiacutetulo supracitado apresentando-nos trecircs nomes no campo

da arte dentro do contexto Flower Power e guerra do Vietnatilde das deacutecadas de 1960 e 1970

Jack Burnham Joseph Beuys e Clement Greenberg Todos com afirmaccedilotildees aparentemente

coincidentes a ldquotodo ser humano eacute um artistardquo mas que trazem grandes diferenccedilas ideo-

loacutegicas quando vistas em profundidade A partir disso sua anaacutelise se pauta pela praacutetica

artiacutestica desse periacuteodo tendo como referecircncia a influecircncia dos readymades de Duchamp

sobre artistas e criacuteticos de arte mas principalmente levando em conta as posiccedilotildees de

Kosuth e de Greenberg O texto repleto de informaccedilotildees histoacutericas e teoacutericas passa pelo

romantismo alematildeo chegando ateacute Lombroso e Freud entre muitos outros pesquisadores

de aacutereas distintas da arte e retorna afinal ao seacuteculo xx Mas encoberta nessa reconstituiccedilatildeo

histoacuterica o que interessa mais a de Duve acreditamos (o tema que atravessa esse capiacutetulo

do seu livro) eacute a antinomia kantiana sobre o gosto com a sua releitura substituindo ldquoisto

eacute belordquo do julgamento esteacutetico claacutessico por ldquoisto eacute arterdquo da cultura contemporacircnea

No entanto de Duve tem uma forma peculiar de construir sua argumentaccedilatildeo que

coloca Kosuth e Greenberg como personagens opostos na antinomia apontando o que

ele considera erros e limitaccedilotildees de cada um deles Na medida em que nosso propoacutesito tem

encadeamento em dois niacuteveis isto eacute primeiro a arte e depois o design vamos reservar a

seccedilatildeo atual para explorar a antinomia kantiana do gosto no territoacuterio da arte e em seguida

na seccedilatildeo 32 investiremos na transposiccedilatildeo da problemaacutetica para o acircmbito do design com

o apoio heideggeriano

311 Subjetividade e objetividade no territoacuterio da arte

Thierry de Duve mostra-nos como Greenberg relutou durante os anos 1960 em reconhe-

cer a relevacircncia de Duchamp2 Mas quando esse criacutetico norte-americano assume a obra

de Duchamp aponta para a crenccedila em uma sobreposiccedilatildeo entre arte e esteacutetica Conforme

mostra de Duve com duas citaccedilotildees de Greenberg

2 No capiacutetulo 5 veremos em detalhe como Duchamp precede Andy Warhol com a ldquotransfiguraccedilatildeordquo mdash para usar a expressatildeo de Danto (2005) mdash de objetos do design em obras de arte

115

Demonstrou-se algo que de fato valia a pena demonstrar Arte do tipo da de Duchamp mostrou como nunca acontecera ateacute entatildeo o quatildeo ampliada pode ser a categoria da experiecircncia esteacutetica formal Embora sempre tivesse sido verdade tinha que ser demonstrado para que pudesse ser reconhecida como verdadeira A disciplina da esteacutetica recebeu nova luz (greenberg 1976 p 93 apud de duve 1998 p 130)

Desde entatildeo [dos readymades de Duchamp] tornou-se mais evidente tambeacutem que tudo o que pode ser experimentado esteticamente pode tambeacutem ser expe-rimentado enquanto arte Em resumo arte e esteacutetica natildeo soacute se sobrepotildeem mas coincidem (greenberg 1979 p 129 apud de duve 1998 p 130)

Entretanto seguindo a anaacutelise de Thierry de Duve Kosuth ao final dos anos 1960

vai em direccedilatildeo oposta apontando para uma separaccedilatildeo entre arte e esteacutetica (figura 13)

Entatildeo qualquer parte da filosofia que lidasse com a lsquobelezarsquo e consequentemente com o gosto seria de forma inevitaacutevel obrigada a discutir tambeacutem a arte Desse lsquohaacutebitorsquo surgiu a noccedilatildeo de existecircncia de ligaccedilatildeo conceitual entre arte e esteacutetica o que natildeo eacute verdadeiro (kosuth 1969 p 76 apud de duve 1998 p 131)

312 Os conceitos de act e art

Por um lado Greenberg tem em vista a pintura e escultura modernista Por outro Kosuth

procura regras para muitas das praacuteticas artiacutesticas dos anos 1960 que iam aleacutem das fronteiras

GREENBERG

sobreposiccedilatildeo e coincidecircncia entre arte e esteacutetica

separaccedilatildeo entre arte e esteacutetica

KOSUTH

Figura 13 Esquema da interpretaccedilatildeo de Thierry de Duve da posiccedilotildees de Clement Greenberg e Joseph Kosuth em relaccedilatildeo agrave arte e agrave esteacutetica fonte autor

116

dos meios tradicionais mas com uma separaccedilatildeo conceitual entre arte e esteacutetica neste caso

ou se reivindica o nome ldquoarterdquo mas ao preccedilo da esteacutetica ou fica-se com a esteacutetica sem

fazer uso do termo ldquoarterdquo Eacute a partir dessa dicotomia que de Duve apropriando-se dos

acrocircnimos act (Aesthetically Claimed Things mdash Coisas Consideradas Esteacuteticas) e art

(Aesthetically Rejected Things mdash Coisas Rejeitadas Esteticamente)3 apresenta exemplos

dessas duas categorias (figura 14)

Para act ele apresenta principalmente o Fluxus4 que com suas performances e

happenings procurava experiecircncias esteacuteticas sem que isto fosse considerado arte As

command-pieces ou intructions-pieces (figura 15) poderiam ser executadas por qualquer

um ou seja o trabalho natildeo era mais denominado arte nem o autor deveria ser mais artista

Para art temos desde o Erased de Kooning (1953) de Robert Rauschenberg (figura 16)

e o Burning Small Fires (1969) de Bruce Naumann ateacute o trabalho sem tiacutetulo (1967) de

Christine Koslov que consistia num rolo de filme de 16 mm virgem (figura 17)

3 Acrocircnimos criados pelo casal canadense Ian e Elaine Baxter que separam sua praacutetica em duas catego-rias Thierry de Duve lembra que o casal natildeo tem exatamente a mesma posiccedilatildeo de Kosuth pois art se produz a partir de coisas rejeitadas esteticamente e natildeo a partir de uma rejeiccedilatildeo agrave esteacutetica

4 Grupo de artistas de vaacuterias nacionalidades estruturado ao redor da figura de George Maciunas um artista lituanecircs radicado nos Estados Unidos

ACT

Aesthetically Claimed Things mdash Coisas Consideradas Esteacuteticas

Perfomances e happenings (experiecircncias esteacuteticas sem ser arte) Fluxus

Aesthetically Rejected Things mdash Coisas Rejeitadas Esteticamente

Erased de Kooning (arte sem esteacutetica) Robert Rauschenberg

ART

Figura 14 Esquema da interpretaccedilatildeo de Thierry De Duve dos acroacutenimos act e art criados por Ian e Elaine Baxter fonte autor

117

Figura 15 Fotografia da performance (1962) de George Maciunas para Jackson Mac Low fonte momaorg

Figura 16 Fotografia da obra de Robert Rauschen-berg (1953) criada apagando um desenho do artista Willem de Kooning fonte momaorg

Figura 17 Fotografia de obra sem tiacutetulo (1967) de Christine Koslov a partir de um rolo de filme virgem A legenda na tampa da lata tem a inscri-ccedilatildeo ldquoTransparent Film nordm2 ndash White 100ft 16mm ndash 1967 fonte henry-mooreorg

118

313 Antinomia e dilema

A partir dos exemplos anteriores dois obstaacuteculos surgem para as concepccedilotildees de Greenberg

e Kosuth Em primeiro lugar com act os trabalhos correm o risco de serem produzidos

solipsisticamente caso natildeo sejam comunicados ao mundo da arte Em segundo com

art natildeo se pode negar que os trabalhos tenham propriedades visuais e sejam passiacuteveis

de apreciaccedilatildeo esteacutetica (figura 18)

Tudo isso aponta segundo de Duve para uma contradiccedilatildeo ou antinomia se ficamos

com act (esteacutetico no sentido de Greenberg) natildeo eacute possiacutevel acreditar que a arte tenha sido

modificada em sua natureza e que o julgamento de gosto (aquele aplicado agrave arte antiga

ateacute a modernista) perdeu seus direitos Para de Duve uma possiacutevel consequecircncia dessa

concepccedilatildeo levada ao extremo eacute considerarmos o readymade uma fraude ou buscarmos

uma continuidade na histoacuteria da arte rejeitando a antiarte ou movimentos do Dadaiacutesmo

em diante Se ficarmos com art (arte no sentido de Kosuth) acreditamos que a arte

depois de Duchamp eacute conceitual e da mesma forma exagerando podemos retroagir

essa concepccedilatildeo e apagar a arte anterior a Duchamp Thierry de Duve lembra que isto eacute o

que Kosuth pretende quando afirma ldquoNo que concerne agrave arte as pinturas de Van Gogh

ACT (esteacutetico no sentido de Greenberg

Aesthetically Claimed Things mdash Coisas Consideradas Esteacuteticas

OBSTAacuteCULO risco de solipsismo em relaccedilatildeo ao mundo da arte

Aesthetically Rejected Things mdash Coisas Rejeitadas EsteticamenteOBSTAacuteCULO os trabalhos de ART continuam podendo ser apreciados esteticamente

ART (arte no sentido de Kosuth)

Figura 18 Esquema dos obstaacuteculos a cada posiccedilatildeo act e art que as impedem de cumprir seus objetivos plenamente fonte autor

119

natildeo valem mais do que sua paletardquo (kosuth 1969 p 82 apud de duve 1998 p 134)

Este dilema para de Duve eacute intoleraacutevel pois tanto act quanto art eliminam metade

dos fatos e tornam os trabalhos de arte presos a uma determinada ideologia (figura 19)

Baseado nos argumentos anteriores de Duve avanccedila entatildeo em sua criacutetica agraves posiccedilotildees

de Greenberg e Kosuth que foge ao escopo da tese e em seguida apresenta a sua saiacuteda

para o dilema art versus act apoiado em Kant Sigamos seu raciociacutenio

314 Uma releitura de Kant do belo agrave arte

A proposta de Thierry de Duve para escapar agrave antinomia eacute a de que a afirmaccedilatildeo que pro-

duziu os readymades ou seja ldquoisto eacute arterdquo expressa um julgamento esteacutetico no sentido

kantiano Para desenvolver seu argumento esse autor cita parte do paraacutegrafo 56 da Criacutetica

da faculdade do juiacutezo (figura 20)

Tese o juiacutezo de gosto natildeo se funda sobre conceitos pois do contraacuterio se poderia disputar sobre ele (decidir mediante demonstraccedilotildees)

ACT (esteacutetico no sentido de Greenberg

Aesthetically Claimed Things mdash Coisas Consideradas Esteacuteticas

EXTREMO a arte natildeo foi modificada em sua natureza mdash o readymade eacute uma fraude

Aesthetically Rejected Things mdash Coisas Rejeitadas EsteticamenteEXTREMO a arte depois de Duchamp eacute conceitual mdash natildeo existiu arte anterior

ART (arte no sentido de Kosuth)

Figura 19 Esquema do caso extremo cuja consequecircncia segundo Thierry de Duve proveacutem das posiccedilotildees adotadas por Greenberg e Kosuth fonte autor

120

Antiacutetese o juiacutezo de gosto funda-se sobre conceitos pois do contraacuterio natildeo se poderia natildeo obstante a diversidade do mesmo discutir sequer uma vez sobre ele (pretender a necessaacuteria concordacircncia de outros com este juiacutezo)

(kant 2005 p 183 sect 56)

Thierry de Duve faz questatildeo de lembrar-nos neste ponto que Kant define gosto

como ldquoa faculdade de julgar o belordquo5 acrescentando que o principal interesse dele era o

belo natural E mais uma vez cita Kant para mostrar como o filosofo alematildeo resolve a

antinomia (figura 21)

Por isso na tese dever-se-ia dizer o juiacutezo de gosto natildeo se fundamenta sobre conceitos determinados na antiacutetese poreacutem o juiacutezo de gosto contudo se funda sobre um conceito conquanto indeterminado (nomeadamente do substrato supra-sensiacutevel dos fenocircmenos) e entatildeo natildeo haveria entre eles nenhum conflito (kant 2005 p 185 sect 57)

5 Thierry de Duve alerta-nos para o fato de que tal julgamento natildeo eacute de cogniccedilatildeo (consequentemente natildeo loacutegico) mas sim esteacutetico ou seja segundo ele o ldquoisto eacute belordquo eacute o que se pode denominar julgamento esteacutetico claacutessico

TESE

SOLUCcedilAtildeO DA ANTINOMIA KANTIANA DE GOSTO

o juiacutezo de gosto funda-se sobre um conceito indeterminado

ANTIacuteTESE

o juiacutezo de gosto natildeo se funda sobre conceitos determinados

Figura 21 Esquema da resoluccedilatildeo da antinomia do gosto kantiana fonte autor

TESE

A ANTINOMIA KANTIANA DE GOSTO

o juiacutezo de gosto funda-se sobre conceitos

ANTIacuteTESE

o juiacutezo de gosto natildeo se funda sobre conceitos

Figura 20 Esquema da antinomia do gosto kantiana fonte autor

121

Mas para que possamos compreender a saiacuteda kantiana de Duve discorre sobre o con-

ceito de ldquosubstrato supra-sensiacutevelrdquo De forma bastante resumida o que se pode afirmar eacute

que este conceito eacute tratado nas trecircs Criacuteticas sendo um requisito de razatildeo necessaacuterio para

pensar a natureza (primeira Criacutetica) a liberdade eacutetica (segunda Criacutetica) e o julgamento de

gosto enquanto reivindicando validade universal (terceira Criacutetica) mesmo sendo resulta-

do de sentimento subjetivo Poreacutem o essencial eacute que apesar de subjetivo o supra-sensiacutevel

eacute um princiacutepio compartilhado com toda a humanidade Essa eacute a saiacuteda de Kant que une

subjetividade e universalidade

Quando substituiacutemos o ldquoisto eacute belordquo por ldquoisto eacute arterdquo podemos colocar qualquer

obra de arte de nossa escolha no lugar do ldquoistordquo e endossar qualquer ideia de arte que

escolhermos Se acreditarmos em um conceito de arte (ideia de arte determinada) ele

poderaacute ser contrariado pela ideia de qualquer outra pessoa Se entretanto nossa doutrina

eacute de gosto (ideia de arte indeterminada) ela pode ser contrariada tanto pelos que natildeo

compartilham de nosso gosto quanto pelos que pensam que arte natildeo eacute uma questatildeo de

gosto (figura 22)

315 Uma soluccedilatildeo incompleta ou a incompletude como soluccedilatildeo

Se a saiacuteda kantiana parece incompleta retomar o panorama da esteacutetica da eacutepoca em que

Kant a propotildee contribui para entender o que se ganha com sua posiccedilatildeo Grosso modo de

IDEIA DE ARTE DETERMINADA

APROPRIACcedilAtildeO DA SOLUCcedilAtildeO KANTIANA PARA A ARTE

doutrina de gosto contrariada por quem natildeo compartilha nosso gosto e por aqueles que pensam que arte natildeo eacute questatildeo de gosto

isto eacute arte endossa qualquer obra de arte e qualquer ideia de arte

IDEIA DE ARTE INDETERMINDA

Figura 22 Esquema da apropriaccedilatildeo e transferecircncia feita por Thierry de Duve da resoluccedilatildeo da antinomia do gosto kantiana para o universo da arte contemporacircnea fonte autor

122

um lado encontravam-se as esteacuteticas de cunho racionalista que derivavam o conceito de

belo dos conceitos de harmonia e de perfeiccedilatildeo De outro as esteacuteticas de caraacuteter empirista

com uma ideia de gosto derivado somente da sensaccedilatildeo As primeiras estavam presas a

uma universalidade que perdia a singularidade da experiecircncia artiacutestica e as uacuteltimas atadas

a uma singularidade da opiniatildeo do chamado ldquogosto natildeo se discuterdquo que as impedia de

ascender ao universal

No entanto a foacutermula de Kant apresenta uma esteacutetica universalista sem conceito

ou universalista subjetiva (distinta do universalismo conceitual ou objetivo da ciecircncia)

Este universalismo subjetivo pode ser interpretado como inacabado na medida em que

sustenta de modo paradoxal6 uma totalidade que natildeo abre matildeo da singularidade da

experiecircncia de cada um Resta saber se eacute possiacutevel para os nossos propoacutesitos aceitar uma

soluccedilatildeo dessa natureza

Do nosso ponto de vista o inacabado do conceito natildeo eacute um problema mas pelo

contraacuterio espelha a proacutepria incompletude inerente ao fazer artiacutestico contemporacircneo

em seus diversos aspectos no trabalho do artista na atuaccedilatildeo do criacutetico e na fruiccedilatildeo do

espectador que se tornou ativo Nesse sentido as palavras da filoacutesofa Virginia Figueiredo

reforccedilam a posiccedilatildeo kantiana

Eacute a insistecircncia kantiana de que o juiacutezo esteacutetico natildeo eacute capaz de nos forne-cer um conceito o que a torna estranhamente atual Pois a meu ver todo e qualquer criteacuterio objetivo ou conceito preacutevio seja ele de belo de feio ou de sublime estaacute fadado ao fracasso na sua tentativa de apreensatildeo filosoacutefica da produccedilatildeo recente da arte Num ambiente em que ldquotudo pode ser arterdquo a ne-cessidade de uma reflexatildeo singular caso a caso soacute se agrava Mesmo sem ou exatamente porque natildeo dispotildee de qualquer criteacuterio ou conceito estabelecido a priori (daiacute decorre uma das grandes dificuldades das condiccedilotildees contempo-racircneas da experiecircncia esteacutetica) o espectador natildeo pode permanecer passivo acatando tudo o que lhe colocam diante dos olhos como se fosse arte Mais do que nunca o espectador estaacute ldquoobrigadordquo ao exerciacutecio da criacutetica mais do que nunca ele tem de se perguntar como de Duve nos indicou ldquoisto eacute arterdquo (figueiredo 2008 p 37)

6 Paradoxal natildeo tem aqui a mesma conotaccedilatildeo de antinocircmico como ocorre no uso desses termos em um sentido menos rigoroso ou as vezes indiscriminado A antinomia pressupotildee uma tese e uma antiacutetese (figura 20 p 120) no interior de um raciociacutenio ou princiacutepio O paradoxo distintamente carrega em sua constituiccedilatildeo uma uacutenica tese ou conceito que contraria a opiniatildeo ou crenccedila compartilhada por uma maioria

123

316 Subjetividade e objetividade no territoacuterio do design

Mesmo aceitando Duchamp como um marco e um divisor de aacuteguas bem como constatando

o niacutevel de ampliaccedilatildeo das fronteiras da arte nos uacuteltimos cem anos e interpretando tudo isso

sob o crivo kantiano uma objeccedilatildeo poderia ser feita a uma transposiccedilatildeo subsequente do

princiacutepio kantiano da arte ao design E mesmo para aqueles que admitem o argumento de

Thierry de Duve (da passagem do belo agrave arte) franquear o uso desse princiacutepio kantiano

ao design (princiacutepio esse que eacute ao mesmo tempo subjetivo mas compartilhado por todos

os seres humanos) eacute se comprometer com um procedimento que exige detalhamento e

fundamentaccedilatildeo para se tornar claro

No entanto existe um fator externo agrave questatildeo da passagem da arte ao design que

uma vez elucidado pode minimizar o esforccedilo de compreensatildeo No nosso entendimento

parte da desconfianccedila em relaccedilatildeo ao princiacutepio kantiano natildeo vem apenas de dentro dos

ciacuterculos epistemoloacutegicos Pode vir de certa compreensatildeo disseminada em nossa cultura

em que se associa universalidade a objetividade E esses dois conceitos como vimos no

capiacutetulo anterior natildeo por coincidecircncia tambeacutem satildeo pilares da concepccedilatildeo ocidental de

ciecircncia Mas esse eacute um problema trataacutevel dentro do proacuteprio sistema de Kant uma vez que

esse autor trabalha com o conceito de universalidade subjetiva no acircmbito da esteacutetica na

Criacutetica da faculdade do juiacutezo (kant 2005) mas trabalha tambeacutem com o de universali-

dade objetiva no acircmbito das ciecircncias onde sua Criacutetica da razatildeo Pura (kant 1989) tem

inegaacutevel contribuiccedilatildeo para a teoria do conhecimento

317 Outra releitura de Kant da arte ao design

Racionalistas e empiristas contemporacircneos atrelados a soluccedilotildees preacute-kantianas que pri-

vilegiam apenas a mente ou as sensaccedilotildees diriam que eacute difiacutecil aceitar uma posiccedilatildeo como

a de Kant que procura uma mediaccedilatildeo mas inclui um paradoxo em seu interior Poreacutem

o tipo de argumento kantiano que afasta antinomias mas admite paradoxos vem se

tornando cada vez mais recorrente Como afirma Bonsiepe

124

Encontramo-nos diante de um paradoxo Projetar significa expor-se e viver com paradoxos e contradiccedilotildees mas nunca camuflaacute-los sob um manto harmoniza-dor O ato de projetar deve assumir e desvendar essas contradiccedilotildees Em uma sociedade torturada por contradiccedilotildees o design tambeacutem estaacute marcado por essas antinomias (bonsiepe 2011 p 25)

Essas ocorrecircncias natildeo se restringem somente a teorias das ciecircncias humanas e sociais (pe-

las proacuteprias caracteriacutesticas imanentes ao objeto dessas disciplinas que eacute indissociado da

complexidade do ser humano) mas encontram-se tambeacutem nas chamadas ciecircncias ldquodurasrdquo

como a fiacutesica quacircntica7 e a relativista

Assim para prosseguirmos com nosso objetivo eacute necessaacuterio avaliar em retrospecto

o que foi conquistado concordar pelo menos provisoriamente com duas construccedilotildees

teoacutericas e apostar em uma terceira elaboraccedilatildeo Esses passos podem ser sintetizados na

lista a seguir

1ordm A soluccedilatildeo de Kant para a antinomia do gosto nos domiacutenios da esteacutetica pode ser

questionada mas eacute construiacuteda com requisitos de razatildeo

2ordm A tese de Thierry de Duve transpondo a soluccedilatildeo kantiana da antinomia do gosto do

acircmbito do belo no seacuteculo xviii para o da arte contemporacircnea segue os operadores

kantianos

3ordm A tese de Thierry de Duve pode ser conduzida do acircmbito da arte contemporacircnea

para o campo do design

Portanto para avanccedilarmos eacute preciso aceitar que a foacutermula original kantiana ainda se

mostra adequada para pensar a questatildeo da subjetividade versus objetividade em disciplinas

como o design que preservam o subjetivo como parte central de seus fundamentos Mas

diante de pelo menos dois saltos conceituais devemos nos atentar para um questionamento

7 Ficaremos com apenas dois exemplos paradoxais na mecacircnica quacircntica sem recorrer ao ceacutelebre caso do Paradoxo epr (Einstein-Podolsky-Rosen) que eacute um desdobramento dessa teoria Um primeiro exemplo eacute o Princiacutepio de Complementaridade de Niels Bohr que aceita aspectos mutuamente exclu-dentes em niacutevel subatocircmico considerando-os ao mesmo tempo complementares Um segundo eacute o Princiacutepio de Incerteza de Werner Heisenberg (cujo nome jaacute aponta para um paradoxo) que derivou do formalismo quacircntico independentemente das relaccedilotildees de incerteza serem interpretadas como ligadas agraves alteraccedilotildees de condiccedilotildees produzidas pelo observador e seus instrumentos como queria inicialmente o proacuteprio Heisenberg ou serem caracteriacutesticas essenciais da mecacircnica quacircntica como acreditou Bohr (cassirer 1956)

125

de caraacuteter hermenecircutico eacute possiacutevel avanccedilar nas cadeias que se conectam por meio de uma

uacutenica foacutermula para compreender o belo a arte e o design

Nossa resposta a este tipo de inquiriccedilatildeo para justificar que podemos seguir em frente

eacute de que primeiramente um passo semelhante jaacute foi dado por Cardoso (capiacutetulo 2 p

103-104) quando de sua proposta para pensar o que caracteriza o design e que inter-

pretamos como uma dialeacutetica entre objetividade e subjetividade E essa dialeacutetica vem se

mostrando profiacutecua Em segundo um princiacutepio como o kantiano que busca validade

universal deve ser capaz de ultrapassar a provisoriedade heuriacutestica e se estabelecer como

lei Mas devemos ressaltar lei entendida como sempre passiacutevel de refutaccedilatildeo

318 A universalidade objetiva no design

Se como vimos no capiacutetulo 2 pensar a universalidade em seu caraacuteter epistecircmico leva

a conectaacute-la quase que invariavelmente com a objetividade seraacute possiacutevel encontrarmos

correspondecircncia desse par conceitual com o campo do design Ou seja o design faz uso

da universalidade objetiva ou conceitual analogamente ao que faz a ciecircncia Acreditamos

que sim mesmo que tal uso natildeo seja suficiente para categorizaacute-lo como ciecircncia Vamos

aos argumentos

Um primeiro argumento eacute de ordem histoacuterica jaacute sinalizado por Cardoso (1998) no

capiacutetulo 2 (p 102) Como uma disciplina jovem e derivada das ciecircncias sociais aplicadas

que busca fundamentos natildeo somente na sociologia antropologia e histoacuteria mas tambeacutem

em outras ciecircncias como a comunicaccedilatildeo e a psicologia e estreita cada vez mais suas re-

laccedilotildees com as ciecircncias naturais e exatas o design necessita de uma elaboraccedilatildeo discursiva

que amplie o diaacutelogo com seus pares E para isso eacute preciso evidentemente ter entre seus

pressupostos a universalidade e a objetividade natildeo somente para efetivar esse diaacutelogo

mas tambeacutem para construir suas bases metafiacutesicas Tais bases como vimos no capiacutetulo

1 desde o iniacutecio da modernidade satildeo formadoras de princiacutepios meacutetodos e criteacuterios que

ordenam novos campos de pesquisa mesmo que alguns desses campos natildeo almejem se

firmar enquanto ciecircncia

126

Exemplos dessas bases podem ser detectados nos departamentos e escolas de be-

las-artes e de muacutesica das universidades onde natildeo se cogita fazer ciecircncia em seu sentido

estrito Mas seus programas de poacutes-graduaccedilatildeo atuam com procedimentos cientiacuteficos ou

pelo menos com pressupostos metafiacutesicos tanto em seu aspecto teoacuterico para organizar

e ordenar seus meacutetodos de pesquisa quanto em seu caraacuteter pragmaacutetico para justificar e

receber as verbas8 de que necessitam como propor e executar projetos em parceria com

a iniciativa privada e com outras instituiccedilotildees

Indo aleacutem desses arranjos estruturais aos quais cada disciplina se adeacutequa existe um

segundo argumento na defesa da universalidade objetiva como imprescindiacutevel ao design

Ele estaacute expliacutecito na afirmaccedilatildeo recorrente de que o design natildeo pode prescindir da ideia

de conceito Essa ideia mesmo nos esquecendo dos pressupostos metafiacutesicos eacute inerente

aos processos que conduzem e ordenam qualquer projeto de design das fases iniciais de

concepccedilatildeo e planejamento agrave finalizaccedilatildeo e concretizaccedilatildeo do produto Ou seja o conceito

(equivalente agrave objetividade) estaacute tambeacutem na praacutetica desse campo

319 A universalidade subjetiva no design

Se aceitamos a universalidade objetiva nos territoacuterios da epistemologia e da gnoseologia

resta buscarmos confirmaccedilatildeo para a universalidade subjetiva Assim retomemos a ideia

contida na figura 22 na paacutegina 121 que representava a apropriaccedilatildeo feita por de Duve da

soluccedilatildeo kantiana para a arte contemporacircnea e faccedilamos a sua conduccedilatildeo para o design

Atentemos que essa dupla passagem vem da soluccedilatildeo de Kant para a antinomia sobre o

gosto nos domiacutenios da esteacutetica em que de Duve substitui o ldquoisto eacute belordquo pelo ldquoisto eacute arterdquo

e agora por nossa conta substituiacutemos ldquoisto eacute arterdquo pelo ldquoisto eacute designrdquo

8 A justificativa de Gui Bonsiepe apresentada no capiacutetulo 1 paacutegina 42 sobre o orccedilamento ser o motivo pelo qual algumas instituiccedilotildees de ensino se posicionam a favor da indistinccedilatildeo entre arte e design ob-viamente natildeo explica tudo acerca da defesa dessa indistinccedilatildeo No entanto no acircmbito da organizaccedilatildeo interna dessas instituiccedilotildees indica uma mescla do uso de argumentos administrativos de poliacutetica universitaacuteria juntamente com os de fundamentaccedilatildeo metafiacutesica

127

Ao substituirmos o ldquoisto eacute arterdquo pelo ldquoisto eacute designrdquo podemos colocar qualquer pro-

duto de design de nossa escolha no lugar do ldquoistordquo e endossar qualquer ideia de design que

escolhermos Se acreditarmos em um conceito de design (ideia de design determinado)

ele poderaacute ser contrariado pela ideia de qualquer outro designer Se entretanto nossa

doutrina eacute de gosto em seu sentido de convicccedilatildeo subjetiva (ideia de design indeterminado)

ela pode ser contrariada tanto pelos que natildeo compartilham de nosso gosto quanto pelos

que pensam que design natildeo eacute uma questatildeo de gosto A figura 23 representa a transferecircncia

da soluccedilatildeo kantiana para o design

Se concordarmos com essa transposiccedilatildeo ficam claros pelo menos dois pontos funda-

mentais Primeiro tanto a ideia de design determinado quanto a ideia de design indeter-

minado colocam o design em equivalecircncia com a arte e como consequecircncia eliminam

nossa primeira hipoacutetese inicial deste capiacutetulo de que a questatildeo da subjetividade versus

objetividade se transfere da arte e contamina o design de forma perifeacuterica Mas a trans-

posiccedilatildeo vai aleacutem da periferia Se por um lado o design enquanto campo tem uma histoacuteria

extremamente curta em relaccedilatildeo agrave da arte conectado agrave produccedilatildeo em seacuterie e agrave revoluccedilatildeo

industrial por outro alguns dos pressupostos que o animam (teacutecnicos artiacutesticos e cien-

tiacuteficos) caminham juntos desde suas origens gregas Deste modo cai por terra tambeacutem

a segunda hipoacutetese de contaminaccedilatildeo pela arte Resta-nos a terceira com a qual ficamos

a questatildeo da subjetividade versus objetividade eacute intriacutenseca ao design e suscita de modo

anaacutelogo ao que ocorre com a arte discussotildees sobre o estatuto ontoloacutegico do design

IDEIA DE DESIGN DETERMINADO

APROPRIACcedilAtildeO DA SOLUCcedilAtildeO KANTIANA PARA O DESIGN

doutrina de gosto contrariada por quem natildeo compartilha nossa opiniatildeo e por aqueles que pensam que design natildeo eacute questatildeo de opiniatildeo

isto eacute design endossa qualquer projeto e qualquer ideia de design

IDEIA DE DESIGN INDETERMINADO

Figura 23 Esquema da apropriaccedilatildeo e transferecircncia da resoluccedilatildeo da antinomia do gosto kantiana para o design fonte autor

128

Assim podemos dizer que aceitando-se a terceira hipoacutetese9 natildeo eacute possiacutevel pensar o

design como um campo com pretensotildees a se tornar ciecircncia pelo menos no modelo da

atualidade uma vez que a ideia de design determinado e a de design indeterminado apesar

de conduzirem a uma universalidade almejada pela ciecircncia contemplam e incorporam

tambeacutem o subjetivo Mas isso jaacute era previsiacutevel por dois motivos

1 O capiacutetulo 2 ao expor as posiccedilotildees de proeminentes autores como Maldonado Bon-

siepe Schneider Cardoso e Flusser que se movem entre as duas posiccedilotildees (determi-

naccedilatildeo e indeterminaccedilatildeo) jaacute indicava essas distintas perspectivas teoacutericas Mas faltava

explicitar tais estruturas com um procedimento como o da antinomia kantiana

2 A soluccedilatildeo original de Kant foi produzida para resolver um problema fora do acircmbito

da ciecircncia ou seja no campo da esteacutetica

Quanto agrave saiacuteda kantiana natildeo podemos nos esquecer que este autor atua de modo a

pensar soluccedilotildees dentro de um sistema mas separadamente a questatildeo do belo e a questatildeo

da ciecircncia Poreacutem no nosso caso ocorre uma mistura entre aspectos esteacuteticos artiacutesticos

teacutecnicos e epistecircmicos que tornam o design um campo de entendimento bastante com-

plexo De qualquer modo ser ou natildeo ser ciecircncia ou ser uma nova forma de ciecircncia natildeo

pode ser encarado como depreciativo como por exemplo a tradiccedilatildeo do platonismo

enfatiza O status ontoloacutegico do design ainda estaacute por se estabelecer mas sua relevacircncia

e significaccedilatildeo jaacute estatildeo garantidas em sua trajetoacuteria histoacuterica

Indo aleacutem existem algumas questotildees subjacentes ao que estamos tratando no mo-

mento mdash que seratildeo retomadas ao final da tese mdash e podem ser iluminadas com a ideia de

universalidade subjetiva no design Algumas perguntas nos guiam

bull Asinuacutemerasdefiniccedilotildeesdedesignaolongodesuacurtahistoacuteriaeaampliaccedilatildeode

seu campo de atuaccedilatildeo tecircm alguma relaccedilatildeo com a equivalente expansatildeo do universo

artiacutestico contemporacircneo

9 Corrobora empiricamente a terceira hipoacutetese de modo anaacutelogo ao procedimento de Duve com Green-berg e Kosuth uma conexatildeo com designers que possam se posicionar nos dois polos da antinomia kantiana Por exemplo podemos colocar de um lado a tradiccedilatildeo e o racionalismo de Alexandre Wollner e de outro o vanguardismo de Guto Lacaz

129

bull Asdificuldadesatuaisdeseestabelecerdefiniccedilotildeesparaodesignpodemserdevidasa

esse campo ter uma generalidade incipiente de autopromoccedilatildeo ou inerente e anaacuteloga

a disciplinas como a da filosofia

Do ponto de vista histoacuterico essas satildeo questotildees ainda muito proacuteximas de noacutes o que as

torna mais difiacuteceis de compreender e responder E por sua complexidade eacute bem provaacutevel

que as respostas a elas continuem a produzir paradoxos e outros raciociacutenios que aparentam

incompletude Mas essa incompletude nasce com as respostas ou pertence agrave essecircncia do design

Se o inacabado faz parte dessa essecircncia as palavras do escritor portuguecircs Fernando Pessoa

apontam um caminho que reforccedila a posiccedilatildeo kantiana ldquoNatildeo consigo evitar a aversatildeo que

tem o meu pensamento ao ato de acabarrdquo (pessoa sem data apud giannetti 2008

p 356) Para noacutes a forccedila dessa afirmaccedilatildeo revela menos da personalidade desse escritor e

mais da poacuteiesis artiacutestica Se natildeo pudermos admitir tal disposiccedilatildeo de espiacuterito no exerciacutecio

do design que pelo menos possamos apostar na incompletude como uma das possiacuteveis

chaves de interpretaccedilatildeo desse campo

32 Heidegger e o vieacutes ontoloacutegico na arte e no design

Pensemos nas comunidades cientiacuteficas e tecnoloacutegicas da atualidade e na sua forma de

atuaccedilatildeo Eacute a partir delas que a maioria dos campos de pesquisa e de trabalho tem seu

status estabelecido delimitado e regulado de acordo com os fundamentos teoacutericos e

pragmaacuteticos em que se baseiam Como sabemos eacute preciso que perante as comunidades

cientiacuteficas uma determinada disciplina se apresente com diversas credenciais de caraacuteter

gnoseoloacutegico e epistemoloacutegico conectadas agrave sua praacutetica efetiva para ser aceita no grupo

das ciecircncias e das teacutecnicas modernas

Deste modo em relaccedilatildeo ao design quando perguntamos sobre seu status especifica-

mente ontoloacutegico estamos procurando identificar elementos que possam garantir sua

validade enquanto disciplina dentro de uma dada concepccedilatildeo de realidade mesmo pres-

cindindo de uma fundamentaccedilatildeo epistecircmica O encaminhamento de caraacuteter ontoloacutegico

130

que apresentamos aqui propotildee um giro na questatildeo e possibilita reflexotildees sistemaacuteticas que

independem de anaacutelises calcadas em fundamentaccedilatildeo de caraacuteter cientiacutefico ou esteacutetico Tal

procedimento tem vantagens quando natildeo eacute possiacutevel estabelecer um viacutenculo direto entre

um determinado campo e as ciecircncias ou quando o viacutenculo deste campo com a esteacutetica

expotildee caracteriacutesticas do mesmo que dificultam uma possiacutevel conexatildeo com as ciecircncias

como ocorreu em nossa anaacutelise do design na seccedilatildeo 31

321 O giro em direccedilatildeo agrave ontologia

No design ocorre uma confluecircncia e um amaacutelgama entre aspectos esteacuteticos artiacutesticos

teacutecnicos e epistecircmicos que natildeo sucede de forma expliacutecita10 em campos onde a cientifi-

cidade natildeo eacute questionada Assim se por um lado o status ontoloacutegico do design ainda

estaacute por se firmar e por outro natildeo concordamos com uma hierarquia em que ciecircncia

estaacute no topo do saber e aliada agrave verdade nada melhor do que buscar em um autor con-

traacuterio a esse tipo de pensamento argumentos que possam contribuir para subsidiar a

fundamentaccedilatildeo ontoloacutegica desse campo Este autor no nosso entendimento eacute Martin

Heidegger um dos filoacutesofos que se insurge contra a tradiccedilatildeo do pensamento ocidental

de modo correlato ao que fez Nietzsche criticando ciecircncia e teacutecnica contrapondo essas

disciplinas agrave arte

Nosso propoacutesito eacute seguir o pensamento de Heidegger e explorar uma de suas ideias

fundamentais a de que a obra de arte estaacute associada agrave verdade e que contribui de forma

singular para a compreensatildeo da essecircncia dos utensiacutelios ldquodescortinandordquo uma dimensatildeo

ontoloacutegica dessa categoria de objetos Conforme afirma Heidegger em seu livro A origem

da obra de arte

10 No entanto mesmo em ciecircncias consideradas abstratas como a matemaacutetica podem existir preocu-paccedilotildees de caraacuteter natildeo estritamente formais Por exemplo quando duas respostas para determinada questatildeo satildeo encontradas a justificativa pela escolha da resposta mais simples ou com menor nuacutemero de etapas (tambeacutem entendida pelos matemaacuteticos como mais ldquofinardquo e ldquoeleganterdquo) natildeo poderia ser atri-buiacuteda a uma preocupaccedilatildeo esteacutetica se as duas soluccedilotildees forem equivalentes e igualmente precisas

131

A que domiacutenio pertence uma obra A obra instaura um certo domiacutenio ao qual pertence e que eacute aberto por ela mesma porque somente nessa abertura existe o seu ser-obra Dissemos que na obra se realiza o acontecer da verdade e exem-plificamos esse fato nos referindo ao quadro de Van Gogh Tratamos entatildeo de questionar sobre o sentido da verdade e sobre o seu acontecer (heidegger 1987 p 228)

O fato de que o texto de Heidegger explora expressotildees incomuns e ataca o problema

de modo inusitado pode dificultar neste primeiro momento o entendimento do essencial

oculta em toda a complexidade no discurso heideggeriano o que nos interessa e veremos

eacute a singular conexatildeo estabelecida por este pensador entre objetos artiacutesticos e objetos uacuteteis

Diante disso nossa hipoacutetese eacute de que na busca por fundamentaccedilatildeo aleacutem dos produ-

tos do design (especialmente os utensiacutelios e instrumentos) alcanccedilarem uma compreensatildeo

ampliada por esse modo de concepccedilatildeo da realidade o proacuteprio design pode caminhar

em direccedilatildeo a estabelecer seu status ontoloacutegico ao lado de outros campos jaacute delimitados

Voltando-nos para uma anaacutelise de nossos proacuteprios procedimentos o que faremos neste

ponto eacute atuar de modo correlato agrave seccedilatildeo anterior em que a apropriaccedilatildeo de um princiacutepio

kantiano mdash bem-sucedido em aclarar aspectos de sua investigaccedilatildeo acerca do belo mdash con-

duziu Tierry de Duve a uma proposta de alargamento das fronteiras do entendimento da

arte contemporacircnea e levou-nos posteriormente a adaptar o mesmo modelo estrutural

para o design

Pretendemos manter a mesma estrateacutegia de apropriaccedilatildeo agora com uma abordagem

de caraacuteter claramente ontoloacutegico e mediada pelas reflexotildees heideggerianas sobre a obra

de arte Utilizando-nos de tal modus operandi seguiremos desta vez apoiados principal-

mente nos estudos de Philippe Lacoue-Labarthe (1996) em busca de compreender mini-

mamente tanto a criacutetica de Heidegger agrave posiccedilatildeo platocircnica quanto agraves possiacuteveis conexotildees

natildeo declaradas de seu pensamento com alguns conceitos aristoteacutelicos A relevacircncia de

Lacoue-Labarte eacute tanto maior uma vez que como veremos este autor defende a tese da

concepccedilatildeo ontoloacutegica da miacutemesis tanto em Aristoacuteteles quanto em Heidegger Para tanto

dividimos a seccedilatildeo atual em trecircs toacutepicos

132

1 Pressupondo a criacutetica platocircnica agrave arte (exposta no capiacutetulo 2) ligada ao conceito de

miacutemesis apresentamos a oposiccedilatildeo de Heidegger a essa concepccedilatildeo

2 Avanccedilamos para a posiccedilatildeo de Heidegger que segundo Lacoue-Labarthe reelabora

o conceito de miacutemesis aristoteacutelico de modo natildeo expliacutecito na obra A origem da obra

de arte

3 Com esses elementos estabelecidos passamos a operar no registro do conceito hei-

deggeriano de obra de arte buscando comprovar nossa hipoacutetese (cf capiacutetulo 1 p 39)

sobre o design

322 A criacutetica a Platatildeo a arte natildeo eacute imitaccedilatildeo

Platatildeo no livro x do diaacutelogo A repuacuteblica (1987) ao criticar a arte tem como alvo a poesia

mas utiliza como um dos exemplos a pintura A poesia vem simplesmente aderida ao

argumento Se tal eacute a estrateacutegia platocircnica para a construccedilatildeo de seu discurso contra a arte

a de Heidegger no livro A origem da obra de arte (2004) toma o caminho contraacuterio em

favor da arte Numa oposiccedilatildeo frontal a Platatildeo Heidegger busca constituir uma ontologia

em que a arte ocupa uma posiccedilatildeo privilegiada ao mesmo tempo em que aponta a insu-

ficiecircncia dos conceitos metafiacutesicos originados no filoacutesofo ateniense para tratar o tema

Assim sendo seu caminho no texto tambeacutem eacute inverso Heidegger inicia com exemplos

da pintura e culmina com um de arquitetura

Ou seraacute que com a proposiccedilatildeo ldquoa arte eacute o pocircr-se-em-obra-da-verdaderdquo se pre-tende reanimar de novo aquela ideia em boa hora superada segundo a qual a arte seja uma imitaccedilatildeo e coacutepia do real A reproduccedilatildeo do que estaacute perante noacutes (Vorhandenen) requer aliaacutes a conformidade com o ente a adaptaccedilatildeo a este adaequatio diz a Idade Meacutedia ὁmicroοίωσις[11] diz Aristoacuteteles A conformidade com o ente vale de haacute muito como a essecircncia da verdade Mas seraacute que o que queremos dizer eacute que o quadro de Van Gogh copia um par de sapatos de cam-ponecircs que realmente estaacute aiacute e eacute uma obra porque consegue fazecirc-lo De modo nenhum (heidegger 2004 p 28)

11 Homoiosis (ὁmicroοίωσις) eacute transformaccedilatildeo de modo a tornar-se semelhante semelhanccedila similitude (ma-lhadas dezotti neves 2008 v 3 p 228)

133

Importa observar aqui que o fato de Heidegger levantar a questatildeo do conceito medieval

de adequaccedilatildeo e o de homoiosis (ὁmicroοίωσις) semelhanccedila em Aristoacuteteles natildeo significa que

ele esteja relacionando a concepccedilatildeo de imitaccedilatildeo ao pensamento aristoteacutelico Arte como

imitaccedilatildeo e coacutepia do real eacute uma concepccedilatildeo platocircnica e a criacutetica de Heidegger portanto estaacute

dirigida a Platatildeo Para Heidegger o imitar no sentido de copiar natildeo explica o processo

constituinte de uma obra de arte Mais agrave frente ele afirma

Fazemos agora a pergunta sobre a verdade em vista da obra Para que todavia nos possamos familiarizar com o que estaacute em questatildeo eacute necessaacuterio tornar de novo visiacutevel o acontecimento da verdade da obra Para esta tentativa escolhemos uma obra que natildeo[12] se conta entre as obras arquitectoacutenicas Um edifiacutecio um templo grego natildeo imita nada Estaacute ali simplesmente erguido nos vales entre os rochedos (heidegger 2004 p 32) Negrito nosso

Dado que Heidegger se recusa a pensar a imitaccedilatildeo em termos platocircnicos vamos nos

apoiar na tese de Lacoue-Labarthe sobre uma mimetologia de sua interpretaccedilatildeo da arte

Nas palavras de Lacoue-Labarthe

[] apesar da criacutetica radical agrave qual ele [Heidegger] submete todos os conceitos da esteacutetica inclusive o conceito de miacutemesis apesar da sua desconstruccedilatildeo sem resto da esteacutetica a interpretaccedilatildeo que Heidegger propotildee da arte eacute fundamentalmente uma mimetologia Eacute certo que jaacute o lembrei antes Heidegger recusa a palavra ele afasta com o maior desprezo um desprezo aliaacutes estranhamente platocircnico e filosoacutefico toda consideraccedilatildeo da ldquoimitaccedilatildeordquo e vocecircs sabem que se o exemplo maacuteximo em ldquoA Origem da Obra de Arterdquo eacute um templo eacute porque ldquoo templo natildeo eacute feito agrave imagem de nadardquo Dito isso o que ele recusa exatamente com esta pala-vra Muito explicitamente mas tambeacutem muito paradoxalmente a interpretaccedilatildeo platocircnica da miacutemesis ou seja mdash refiro-me ainda a uma passagem da Introduccedilatildeo de 35 mdash a miacutemesis compreendida a partir da idea em si mesma pensada como paradigma ou como modelo sob o horizonte da aletheia interpretada em termos de adequaccedilatildeo ou de homoiosis Ora isso natildeo impede absolutamente a tese que concerne a arte de ser a reelaboraccedilatildeo jamais abertamente apresentada como

12 A frase ldquoPara esta tentativa escolhemos uma obra que natildeo se conta entre as obras arquitectoacutenicasrdquo na traduccedilatildeo de Maria da Conceiccedilatildeo Costa (Ediccedilotildees 70) parece contradizer a frase seguinte em que Heidegger remete a um templo grego Na traduccedilatildeo da Revista Kriterion em lugar de ldquoarquitectoacutenicasrdquo encontra-se ldquorepresentativasrdquo o que torna coerente o argumento de Heidegger No entanto a traduccedilatildeo da Kriterion natildeo utiliza o verbo imitar mas sim reproduzir ldquoUma obra de arquitetura mdash um templo grego mdash nada reproduz []rdquo (heidegger 1987 p 228) Esse foi o motivo pelo qual escolhemos a citaccedilatildeo das Ediccedilotildees 70

134

tal mas tambeacutem nunca totalmente dissimulada da concepccedilatildeo aristoteacutelica da particcedilatildeo entre phusis e techne isto eacute da concepccedilatildeo ontoloacutegica da miacutemesis fazer da arte no combate (o polemos) entre terra e mundo (ou em Soacutefocles dike e techne) que eacute o proacuteprio combate do einai e do noein inaugural do pensamento ocidental o suplemento e ateacute mesmo o traccedilo ou o arqui-traccedilo originariamente suplementar e desvelador com respeito agrave proacutepria phusis (ao ser do ente) fazer da arte aquilo de que a phusis precisa para aparecer como tal eacute mdash num outro niacutevel de profundidade mdash repetir o que diz Aristoacuteteles da miacutemesis enquanto o que ldquoleva a termordquo o que a phusis por si mesma natildeo pode ldquoefetuarrdquo (lacoue-labarthe 1996 p 154-155) Negrito nosso

Esse longo trecho oferece-nos um olhar e uma nova possibilidade tanto porque natildeo

abre matildeo da oposiccedilatildeo que Heidegger faz agrave tradiccedilatildeo platocircnica mas ao mesmo tempo

reforccedila a posiccedilatildeo de Lacoue-Labarthe a partir do pensamento aristoteacutelico de uma ldquocon-

cepccedilatildeo ontoloacutegica da miacutemesisrdquo natildeo entendida como simples imitaccedilatildeo ou coacutepia Sigamos

portanto Heidegger em busca desse caminho para explicitar a proposta Labartheana

323 Poacuteiesis como produccedilatildeo phyacutesis como terra e teacutekhne como mundo

Lembrando o que tratamos no capiacutetulo 2 a produccedilatildeo mais geral poacuteiesis (ποίησις) ao atuar

como forccedila da natureza eacute delimitada como phyacutesis (φύσις) modalidade de produccedilatildeo que

se faz a partir de si mesma Um exemplo de phyacutesis eacute a transformaccedilatildeo de uma semente em

aacutervore ou como Heidegger afirma em A questatildeo da Teacutecnica ldquo[]noadventodaflorao

florescer[]rdquo(heidegger 2007 p 379) Poacuteiesis pode ser tambeacutem teacutekhne (τέχνη) mo-

dalidade de produccedilatildeo que ocorre natildeo a partir de si mesma mas a partir de outro Teacutekhne eacute

arte manual induacutestria ofiacutecio e tem por princiacutepio natildeo o fazer mas principalmente o saber

fazer a habilidade o meacutetodo o artifiacutecio o conhecimento teoacuterico que suporta uma atividade

Lacoue-Labarthe associa o conceito de teacutekhne ao conceito heideggeriano de mundo

e o conceito de phyacutesis ao de terraconformeafigura24ldquo[]atesequeconcerneaarte

deserareelaboraccedilatildeo[]daconcepccedilatildeoaristoteacutelicadaparticcedilatildeoentrephusis e techne isto

eacute da concepccedilatildeo ontoloacutegica da miacutemesis fazer da arte no combate (o polemos) entre terra

emundo[]rdquo(lacoue-labarthe 1996 p 155) Nas palavras de Heidegger

135

Aquilo em direccedilatildeo ao qual a obra se retrai permitindo que ela ressurja desse proacuteprio retraimento chamamos a Terra (die Erde) Ela estaacute sempre eclodindo de sua proacutepria reserva A terra eacute o impulso silencioso e infatigaacutevel do que eacute gratuito Sobre a Terra e na Terra o homem histoacuterico funda a sua morada no mundo Quando apresenta um mundo a obra produz (revela) a Terra Produzir deve ser pensado aqui em sentido rigoroso A obra move e manteacutem a proacutepria Terra no aberto de um mundo A obra tem o poder de fazer a Terra tornar-se Terra (heidegger 1987 p 234)

Mesmo que Heidegger ao trabalhar os conceitos de Terra e Mundo volte-se apenas

para o pensamento grego antigo sem pensar especificamente em Aristoacuteteles mas talvez

animado pelo pensamento anterior de Heraacuteclito a interpretaccedilatildeo de Lacoue-Labarthe estaacute

bem costurada e estabelecida Na traduccedilatildeo da Revista Kriterion o asterisco da citaccedilatildeo

anterior (associado agrave palavra produzir) envia para a seguinte nota da tradutora Maria Joseacute

R Campos que segue a mesma via interpretativa de Lacoue-Labarthe

PRODUCcedilAtildeO (poacuteiesis)

Phyacutesis Teacutekhne

CONCEPCcedilAtildeO GREGA DE PRODUCcedilAtildeOCRIACcedilAtildeO

PRODUCcedilAtildeO DA NATUREZA A PARTIR DE SI MESMA PRODUCcedilAtildeO A PARTIR DE OUTRO

Terra Mundo

CONCEPCcedilAtildeO DE HEIDEGGER CORRELATA Agrave PHYacuteSIS E TEacuteKHNE GREGAS

Figura 24 Representaccedilatildeo da associaccedilatildeo entre os conceitos gregos de Phyacutesis e Teacutekhne e os conceitos hei-deggerianos de Terra e Mundo fonte autor

136

Produzir executar significa em alematildeo herstellen Mas em Heidegger a palavra possui aqui um sentido especial Aleacutem de produzir significando fazer qualquer coisa de qualquer mateacuteria (produccedilatildeo artesanal) a palavra tambeacutem pode indicar manifestar demonstrar revelar o que soacute acontece na obra de arte Aiacute a mateacuteria ainda que utilizada natildeo eacute jamais utilizada a serviccedilo da utilidade da obra Na obra de arte herstellen possui o sentido de trazer agrave superfiacutecie o que estaacute oculto trazer agrave luz o sombrio manifestar o que estaacute em reserva A palavra possui em Heidegger um sentido semelhante ao de herausstellen colocar para (fora) A obra de arte revela traz agrave superfiacutecie o que haacute de mais profundo na realidade material ela revela a Terra a physis dos gregos (heidegger 1987 p 234-235) Nota da tradutora

Para compreender plenamente o significado da citaccedilatildeo anterior e da relevacircncia

do conceito de produccedilatildeo (poacuteiesis) em seus desdobramentos a partir da arte em pos-

sibilidades para o acircmbito do design eacute necessaacuterio passarmos em revista o modo como

Heidegger entende o problema da cisatildeo entre ciecircncia teacutecnica e arte na modernidade Eacute

o que analisaremos a seguir

324 Os trecircs modos de produccedilatildeo e sua influecircncia sobre o design

Tendo em conta a importacircncia do conceito de produccedilatildeo para a constituiccedilatildeo do pensamento

heideggeriano torna-se compreensiacutevel que esse autor use-o de forma recorrente em suas

reflexotildees Na verdade como veremos Heidegger entende as categorias de ciecircncia teacutecni-

ca e arte em conexatildeo com o mundo grego como trecircs modalidades de produccedilatildeo Como

afirma o filoacutesofo brasileiro Fernando Mendes Pessoa

Heidegger caracteriza a produccedilatildeo o pocircr-se em obra do real como desencobri-mento com o verbo stellen ldquopocircrrdquo estabelecendo uma distinccedilatildeo entre essas trecircs modalidades produtivas a partir do acreacutescimo de trecircs partiacuteculas diferentes a esse verbo ele caracteriza a produccedilatildeo cientiacutefica de Vor-stellen a produccedilatildeo tecnoloacutegica de Ge-stellen e a produccedilatildeo artiacutestica de Her-stellen mdash termos que para manter uma analogia na liacutengua portuguesa poderiacuteamos traduzir como pro-pocircr com-pocircr e ex-pocircr (no sentido de produzir criar) (pessoa 2009 p 195)

137

Em primeiro lugar para Heidegger a ciecircncia como um dos modos de produccedilatildeo do

real eacute o propor de uma teoria do real E na modernidade esse ldquorealrdquo se funda na concepccedilatildeo

de causa e efeito noccedilatildeo cara a filoacutesofos e cientistas desde esse periacuteodo ateacute a atualidade O

princiacutepio de causalidade eacute um recurso eficiente na descriccedilatildeo e previsatildeo de fenocircmenos o

que leva a ciecircncia a partir da modernidade seduzida por esse poder preditivo a concen-

trar-se cada vez mais em questotildees voltadas para o como os eventos se datildeo ao inveacutes de porque

eles ocorrem Natildeo eacute sem razatildeo que Descartes e toda a tradiccedilatildeo que vem em seguida de

pensadores cientistas e teoacutericos incluindo na atualidade os do design13 a favor ou contra

o cartesianismo reportam-se sempre ao Princiacutepio de Causalidade seja para reafirmar ou

criticar esse conceito como um ponto nodal para a compreensatildeo da realidade Como

afirma Heidegger em Ensaios e conferecircncias (Ciecircncia e pensamento do sentido)

A ciecircncia potildee o real E o dispotildee a propor-se num conjunto de operaccedilotildees e pro-cessamentos isto eacute numa sequumlecircncia de causas aduzidas que se podem prever Desta maneira o real pode ser previsiacutevel e tornar-se perseguido em suas conse-quumlecircncias Eacute como se assegura do real em sua objetidade [sic] Desta decorrem domiacutenios de objetos que o tratamento cientiacutefico pode entatildeo processar agrave vontade (heidegger 2012 p 48)

A criacutetica de Heidegger se insurge contra toda uma tradiccedilatildeo a partir de Platatildeo que

segundo esse pensador propotildee uma realidade coisificada em que homem e mundo satildeo

compreendidos como separados em sujeito cognoscente e objeto a se conhecer Em outras

palavras sujeito e objeto dos quais tratamos no capiacutetulo 2 e que para Heidegger estatildeo

problematicamente cindidos por uma teoria de ldquocausas aduzidasrdquo

13 Maldonado (2012) a propoacutesito de pensar a teacutecnica em suas relaccedilotildees com a sociedade usando o exemplo de um dos seus produtos mdash os oacuteculos mdash argumenta em favor dos conceitos de causa e efeito ldquoNatildeo se pode desprezar o fato de que os conceitos de causa e de agente tecircm uma notoacuteria e longa tradiccedilatildeo no pensamento filosoacutefico Basta pensar na doutrina aristoteacutelica das lsquoquatro causasrsquo e nas complexas construccedilotildees conceituais da escolaacutestica medieval sobre as relaccedilotildees de causa e efeito E ainda os sofis-ticados quebra-cabeccedilas loacutegico-epistemoloacutegicos da moderna filosofia da ciecircncia sobre esse assuntordquo (maldonado 2012 p 176) Em seguida associando causa e efeito agrave metaacutefora de ldquoempurrarrdquo e ldquopuxarrdquo entre a teacutecnica e a sociedade esse autor mostra como a questatildeo eacute ainda mais complexa ao explorar o conceito de causalidade circular ldquoNo tema que estamos discutindo a questatildeo da circularidade natildeo pode ser ignorada Para continuarmos na metaacutefora se eacute verdade que em uma certa fase eacute de fato a teacutecnica que empurrou e a sociedade que puxou eacute tambeacutem verdadeiro que em uma fase precedente foi a sociedade que empurrou e a teacutecnica que puxourdquo (maldonado 2012 p 177)

138

Em segundo a teacutecnica eacute o compor do real em sua exploraccedilatildeo Ou seja a teacutecnica a

partir da modernidade busca disponibilizar a natureza em seu propoacutesito dominando-a

e explorando-a Nas palavras de Heidegger

O desencobrimento que domina a teacutecnica moderna possui como caracteriacutestica o pocircr no sentido de explorar (Herausforderung) Esta exploraccedilatildeo se daacute e acon-tece num muacuteltiplo movimento a energia escondida na natureza eacute extraiacuteda o extraiacutedo vecirc-se transformado o transformado estocado o estocado distribuiacutedo o distribuiacutedo reprocessado (heidegger 2012 p 20)

Esse segundo modo de produccedilatildeo de exploraccedilatildeo energeacutetica do real segundo Hei-

degger eacute distinto do primeiro e torna o sujeito e o objeto da ciecircncia respectivamente forccedila

de trabalho e mateacuteria prima no acircmbito da teacutecnica Maldonado (2012) aponta que essa

preocupaccedilatildeo de Heidegger em relaccedilatildeo a esse disponibilizar e controlar que eacute pretendido

pela teacutecnica jaacute se manisfesta no livro Ser e Tempo (Sein und Zeit) obra anterior agrave Ciecircncia

e pensamento do sentido

No tom elevado que distingue seu estilo de raciociacutenio ele [Heidegger] examina a pretensatildeo (proacutepria e de outros) de querer ldquocontrolar espiritualmente a teacutecnicardquo Em resumo de querer submetecirc-la dominaacute-la Em Sein und Zeit (1927) Heidegger jaacute havia analisado as sutis implicaccedilotildees ontoloacutegicas do querer ldquocontrolarrdquomdash sem referir-se explicitamente agrave teacutecnica mdash quando introduziu a sua famosa distinccedilatildeo entre o modo de ser ldquoutilizaacutevelrdquo ldquopraacuteticordquo (Zuhandenheit) e o modo de estar

ldquopresenterdquo ldquoagrave disposiccedilatildeordquo (Vorhandensein) (maldonado 2012 p 154)

Diante da gravidade da criacutetica de Heidegger aos modos de produccedilatildeo da ciecircncia e

da teacutecnica diversas tecircm sido as apropriaccedilotildees de seus argumentos em prol de uma maior

atenccedilatildeo e precauccedilatildeo aos desdobramentos desses dois campos A discussatildeo sobre a impos-

sibilidade de neutralidade da ciecircncia e da teacutecnica as consequecircncias nefastas de se separar

sujeito e objeto e de ver o homem e a natureza a serviccedilo de um sistema de produccedilatildeo satildeo

apenas algumas das diversas questotildees que apontam para uma dimensatildeo catastroacutefica de

nossa sociedade contemporacircnea e na qual podemos sem duacutevida incluir reflexotildees sobre o

papel e a responsabilidade do design Flusser como vimos segue essa linha de raciociacutenio

Mas por outro lado pensando em todos os benefiacutecios gerados pela ciecircncia e pela

teacutecnica podemos e devemos recusar esses modos de produccedilatildeo que por milhares de anos

foram se constituindo e garantindo a formaccedilatildeo de nossa civilizaccedilatildeo levando-nos ateacute onde

139

chegamos Heidegger tem plena consciecircncia da importacircncia da ciecircncia e da teacutecnica e

natildeo as recusa simplesmente Sua intenccedilatildeo eacute (compreendendo que a ciecircncia e a teacutecnica

nos fazem construir uma visatildeo da realidade empobrecida e atuar de forma exploratoacuteria

voltada para a dominaccedilatildeo) procurar um modo de produccedilatildeo que resgate para o ser humano

o habitar do mundo em um sentido mais digno e responsaacutevel E esse modo segundo ele

se encontra na arte

Em terceiro portanto Heidegger estabelece a arte como o modo de expor o real em

sua liberdade Em uma passagem de A origem da obra de arte Heidegger explicita tal

produccedilatildeo atraveacutes da anaacutelise de uma pintura de Van Gogh

Aiacute estatildeo os sapatos sejam eles de que tipo forem com as solas e a pala de cou-ro percorridas pelas costuras e os pregos Seu material e sua forma variam de acordo com sua finalidade trabalhar danccedilar etc Tudo isto apenas reforccedila o que jaacute sabemos o ser do instrumento enquanto tal consiste em servir para alguma coisa Mas seraacute esta a realidade essencial do instrumento Natildeo devemos exploraacute-la melhor A camponesa usa seus sapatos na terra lavrada pois eacute aiacute que os sapatos satildeo o que realmente satildeo Quanto menos atenccedilatildeo a camponesa dedica a eles em seu trabalho mais eles se prestam ao serviccedilo de alguma coisa mais correspondem ao seu ser Dessa forma estaremos nos afastando sensivelmente do ser do instrumento se apenas nos detivermos em sua representaccedilatildeo geral ou na imagem desse quadro perdida no vazio onde os sapatos estatildeo desligados da ideacuteia de algueacutem que os possa estar usando [] No entanto natildeo eacute soacute isto

Observemos as sombras da abertura de seu interior jaacute gasto onde se esboccedila a fadiga do andar laborioso e eis que percebemos os passos rudes pesados e fa-tigados do camponecircs que sob um vento avassalador imprime com sua marcha lenta grandes e monoacutetonos sulcos na terra lavrada No couro engordurado pela terra feacutertil e negra e nas duas solas imoacuteveis desliza a solidatildeo dos vastos espaccedilos das tardes do campo No par de sapatos eclode o secreto apelo da Terra o cuidado pelo patildeo de cada dia na promessa do trigo as auroras glaciais as tardes enigmaacuteticas agrave espreita do inverno Atraveacutes desse instrumento o cam-ponecircs experimenta o exerciacutecio pela sobrevivecircncia da doce espera do filho que retorna agrave casa a alegria de sentir a vida o cuidado de temer a morte Se o par de sapatos eacute propriedade da Terra em sua dignidade tranquumlilidade e seguranccedila o mundo do camponecircs o resguarda Eacute o proacuteprio ser do instrumento que emerge dessa propriedade resguardada pois sob esse gesto de proteccedilatildeo ele repousa em si mesmo (heidegger 1986 p 205-206)

140

Foi necessaacuterio apresentar essa longa e instigante passagem com trechos sempre

referenciados por comentadores e especialistas de Heidegger para colocar claramente

a relevacircncia da obra de arte indo aleacutem do universo artiacutestico A obra de arte torna-se

subsidiaacuteria da compreensatildeo do utensiacutelio um tipo de ldquoenterdquo cujo entendimento natildeo se

esgota em sua utilidade O caraacuteter poeacutetico que Heidegger empresta ao texto demonstra

como um filoacutesofo desta envergadura eacute capaz de atuar no sentido de conduzir o leitor ul-

trapassando os argumentos da pura reflexatildeo sistemaacutetica Isso porque para Heidegger a

essecircncia dos instrumentos e utensiacutelios em seu significado mais profundo e sua dimensatildeo

ontoloacutegica se mostra com mais vigor a partir de nossa experiecircncia e fruiccedilatildeo da obra de

arte Conforme as palavras de Virginia Figueiredo

Eacute no sentido de uma ldquopromoccedilatildeo ontoloacutegicardquo da qual falava Arthur Danto ou de uma reversatildeo do platonismo que tento ler o famoso ensaio de Heidegger Assim retomando os resultados da ceacutelebre anaacutelise aiacute contida sobre o quadro de Van Gogh acho que se pode concluir que os sapatos no quadro mdash dizendo enfaticamente a imagem pictoacuterica dos sapatos de Van Gogh mdash exatamente porque escapam da utilidade possuem um valor ontoloacutegico muitas vezes supe-rior a qualquer sapato da realidade Satildeo os sapatos do quadro de Van Gogh que nos tornam aptos a retornando agrave experiecircncia cotidiana atribuir algum sentido a ela Satildeo os sapatos pictoacutericos que ldquosalvamrdquo do naufraacutegio do afogamento da cotidianidade os sapatos reais (figueiredo 2005 p 454-455)

Do nosso ponto de vista o discurso heideggeriano nos serve a um propoacutesito que

contribui para a formaccedilatildeo de uma consciecircncia da produccedilatildeo no acircmbito do design Sua anaacute-

lise resgata um modo de compreensatildeo das categorias de objetos que satildeo especificamente

utensiacutelios e instrumentos mas cuja utilidade eacute apenas um dos seus aspectos constituintes

Ao contraacuterio do que poderia parecer e isso eacute de suma importacircncia para nosso argumento

tais objetos a partir de um olhar proporcionado pelo modo de produccedilatildeo da arte natildeo se

desvalorizam ou se rebaixam pois natildeo satildeo apenas utilitaacuterios forjados pela teacutecnica subsi-

diaacuteria da ciecircncia Tais entes passam a carregar uma dimensatildeo ontoloacutegica que nos potildee em

contato com o mundo e com a natureza em uma relaccedilatildeo que natildeo eacute nem de conhecimento

nem de exploraccedilatildeo ou em outras palavras nem de ciecircncia nem de teacutecnica Neste sentido

as palavras de Maria Joseacute R Campos corroboram a posiccedilatildeo heideggeriana de que a arte

141

natildeo somente tem assegurado seu proacuteprio status ontoloacutegico como tambeacutem contribui de

modo fundamental para a compreensatildeo dos objetos utilitaacuterios

[] a arte possui ainda o poder de revelar que as coisas natildeo se esgotam na sua instrumentalidade pois que sua essecircncia permanece aqueacutem dos nossos projetos utilitaacuterios a arte torna manifesto o ser-instrumento do par de sapatos de campo-necircs pintado por Van Gogh A verdade das coisas natildeo se fundamenta pois senatildeo na significaccedilatildeo no sentido projetado (heidegger 1987 p 188 - Apresentaccedilatildeo)

E se a apreciaccedilatildeo das obras de arte nos leva a perceber esses outros significados talvez

tambeacutem contribua para nos colocar em uma relaccedilatildeo com os objetos do design que natildeo

seja somente de mero uso exploraccedilatildeo acumulaccedilatildeo e consumo

325 O design aleacutem da instrumentalidade e da utilidade

Diante do percurso empreendido satildeo necessaacuterias algumas consideraccedilotildees Em primeiro

lugar atentos ao contexto mais geral da discussatildeo de cunho ontoloacutegico se nossa sociedade

se estabeleceu de modo a dar a primazia ao arcabouccedilo gnoseoloacutegico e epistemoloacutegico e

seus desdobramentos cientiacutefico-tecnoloacutegicos natildeo podemos nos esquecer que este modo

de compreender a realidade tem suas vantagens mas cobra como vimos um preccedilo alto

Este eacute o alerta que permeia o discurso heideggeriano

Se Heidegger repete seus argumentos em diversas obras talvez seja porque ele tem

plena consciecircncia do quanto estamos acostumados a uma ideia de verdade apoiada em

bases cientiacuteficas E se essa ideia eacute um construto mental existem modos distintos de enten-

dimento como ele nos sugere que podem levar-nos a possibilidades ainda natildeo imaginadas

Mas podemos tambeacutem questionar Heidegger sobre o fato de ele trocar uma verdade por

outra De qualquer modo existe um risco pelo menos no acircmbito das teorias cientiacuteficas

da verdade se confundir com a essecircncia pois a doutrina essencialista tem seacuterias limita-

ccedilotildees O essencialismo eacute a concepccedilatildeo que postula que as verdadeiras teorias descrevem

as essecircncias das coisas Se for assim o cientista pode estabelecer a verdade destas teorias

Karl Popper no entanto eacute contraacuterio agrave essa concepccedilatildeo e apresenta uma incisiva criacutetica ao

142

essencialismo em seu livro Conjecturas e refutaccedilotildees (1972) Para Popper toda teoria eacute uma

hipoacutetese (conjectura) e natildeo conhecimento indubitaacutevel ldquoEstou plenamente de acordo

emqueasteoriasnatildeooferecemnenhumacerteza(quesemprepodemserrefutadas)[]rdquo

(popper 1972 p 139) Traduccedilatildeo nossa Popper natildeo eacute contra a busca do que ainda estaacute

oculto mas eacute contra a doutrina de que a ciecircncia tende agraves explicaccedilotildees uacuteltimas Em outras

palavras no acircmbito da teoria precisamos realmente de explicaccedilotildees uacuteltimas No nosso

entendimento buscaacute-las eacute como ir atraacutes de uma quimera e nos bastaria uma ontologia

soacutebria para apoiar a construccedilatildeo de teorias que nos ajudem a compreender as produccedilotildees

humanas Ateacute onde podemos ver um programa dessa magnitude mesmo abrindo matildeo

da essecircncia jaacute eacute extremamente ambicioso

Em segundo lugar outra consideraccedilatildeo em acircmbito especiacutefico eacute a de reafirmarmos

a posiccedilatildeo assumida no iniacutecio da tese de natildeo simplesmente submeter a fundamentaccedilatildeo

ontoloacutegica agraves exigecircncias gnoseoloacutegicas epistemoloacutegicas e esteacuteticas Tal proposiccedilatildeo eacute

estabelecida em dois sentidos De um lado na ampliaccedilatildeo do entendimento sobre os

objetos do design indicando um caminho a seguir aleacutem de sua instrumentalidade e uti-

lidade De outro na proposta alternativa para a compreensatildeo de algumas caracteriacutesticas

do design em sua relaccedilatildeo com a arte Apostando nesta seara eacute preciso avanccedilar em torno

de elementos que natildeo sejam estanques como os da ciecircncia e da teacutecnica criticados por

Heidegger Os conceitos aristoteacutelicos cumprem este objetivo conforme investigaremos

no proacuteximo capiacutetulo

143

4 OS CONCEITOS ARISTOTEacuteLICOS NO DESIGN E NA ARTE

Como verificamos no capiacutetulo anterior a construccedilatildeo da via ontoloacutegica possibilita avanccedilar

na compreensatildeo das relaccedilotildees entre design e arte sem precisarmos abrir matildeo da subjetivi-

dade e da incompletude no design ao mesmo tempo em que podemos prescindir de uma

credencial especificamente epistemoloacutegica Mas existe um ganho adicional nessa estrateacutegia

ao qual jaacute haviacuteamos nos referido na Introduccedilatildeo se o vieacutes ontoloacutegico iniciado por Platatildeo

em sua criacutetica agrave arte mimeacutetica eacute uma espeacutecie de fio condutor que facilita a aproximaccedilatildeo dos

autores com o seu tema o giro da epistemologia e da esteacutetica agrave ontologia coloca-nos agora

na mesma circunscriccedilatildeo desses investigadores Deste modo ao finalmente contrapormos

o pensamento de Aristoacuteteles ao de Platatildeo e transitarmos pelos seus conceitos apoiados

nos demais autores procedemos tendo um viacutenculo coerente entre todos

Na primeira seccedilatildeo deste capiacutetulo a estrateacutegia de abordagem metodoloacutegica que se-

guimos entre Aristoacuteteles e Platatildeo eacute comparativa e obviamente sincrocircnica Colocamos em

relevo as posiccedilotildees de cada um deles principalmente em trecircs obras (A repuacuteblica de Platatildeo

A poeacutetica e A fiacutesica de Aristoacuteteles) privilegiando e revelando a questatildeo da miacutemesis Como

apoio a estes textos centrais fazemos uso das anaacutelises de historiadores da filosofia como

Werner Jaeger e Claacuteudio Veloso e do filoacutesofo Philippe Lacoue-Labarthe e dos comentaacuterios

de traduccedilatildeo do helenista Eudoro de Souza da filoacutesofa Virginia Figueiredo e do linguista

e tradutor Joatildeo Camillo Penna

Na segunda seccedilatildeo a abordagem eacute diacrocircnica nossa confianccedila neste procedimento

eacute a da possibilidade de atualizar o conceito de miacutemesis e deslocaacute-lo de sua funccedilatildeo e objetos

originais ou seja aplicaacute-lo no campo do design e na arte Como vimos este tipo de con-

duta na verdade tem sido praacutetica comum a diversos pesquisadores ao longo da histoacuteria

do pensamento ocidental com a apropriaccedilatildeo (fundamentada ou natildeo) dos mais diversos

conceitos como instrumentos para alcanccedilar fins que extrapolam seu propoacutesito original

Na terceira e uacuteltima seccedilatildeo mantemos a abordagem diacrocircnica em relaccedilatildeo ao conceito

de fim em si mesmo o discurso persuasivo epidiacutectico e o discurso aberto entrelaccedilando as

concepccedilotildees de Aristoacuteteles Danto Nietzsche e Eco agraves nossas proacuteprias em uma proposta

complementar agrave aplicaccedilatildeo da miacutemesis

144

41 O fundamento ontoloacutegico do conceito de miacutemesis

Criatividade sempre foi uma palavra associada ao design Isto torna-se mais evidente

quando ao voltar nosso olhar para o passado atentamos para o fato de que a proacutepria

palavra inglesa design estaacute ligada em sua origem latina a desiacutegnio intenccedilatildeo propoacutesito

cujos sentidos acompanham em nossa tradiccedilatildeo cultural os diversos significados de cria-

ccedilatildeo E sendo criatividade uma palavra derivada de criaccedilatildeo o ciacuterculo se fecha e justifica tais

conexotildees entre conceitos O problema com essa descriccedilatildeo (representada no lado esquerdo

da figura 25) eacute que apesar de conectar elementos fundamentais na verdade natildeo esclarece

sobre o que motiva e anima essas conexotildees E mesmo considerando que tal estrutura natildeo

eacute explicativa mas somente descritiva tal concepccedilatildeo elaborada em pesquisa preacutevia1 natildeo

explicita o elemento que atua como mediador entre os trecircs termos Assim aprimorando

essa descriccedilatildeo o que propomos a seguir eacute pensar a miacutemesis metaforicamente como um

substrato onde a criatividade a criaccedilatildeo e o design estatildeo imersos e portanto conectados

por meio desse elemento conceitual (lado direito da figura 25)

Faccedilamos novamente um recuo nos deslocando do acircmbito do design e refletindo

sobre a questatildeo originaacuteria da produccedilatildeocriaccedilatildeo em seus aspectos gerais Se entendemos

o esforccedilo de construccedilatildeo do arcabouccedilo platocircnico como uma tentativa de compreender

o que subjaz agrave criaccedilatildeo em seu sentido amplo (poacuteiesis phyacutesis teacutekhne e episteacuteme) por que

1 A descriccedilatildeo do ciacuterculo criativo e a parte esquerda da figura 25 foram publicadas no artigo O conceito aristoteacutelico de miacutemesis aplicado ao processo criativo em design (silva silva 2013)

CIacuteRCULO CRIATIVO METAacuteFORA DA MEDIACcedilAtildeO

CRIATIVIDADEuma palavra unida intrinsecamente ao DESIGN

DESIGN palavra inglesa associada em sua origem latina a desiacutegnio intenccedilatildeo propoacutesito cujos sentidos acompanham em nossa tradiccedilatildeo cultural os diversos significados de CRIACcedilAtildeO

CRIACcedilAtildeOor igem da palavraCRIATIVIDADE

MIacuteMESIS

CRIACcedilAtildeO DESIGN

CRIATIVIDADE

Figura 25 Diagramas das conexotildees entre os conceitos de criatividade criaccedilatildeo e design As setas em ciacuterculo indicam que natildeo existe um ponto inicial ou final mas apenas circularidade entre os conceitos fonte autor

145

natildeo aplicar esse modelo aos nossos propoacutesitos Porque como vimos a teoria platocircnica

cinde e hierarquiza as aacutereas do conhecimento de nosso interesse desvalorizando ontolo-

gicamente a arte e a miacutemesis elementos essenciais para a nossa proposiccedilatildeo No entanto

Aristoacuteteles tendo agrave sua disposiccedilatildeo os mesmos recursos conceituais caminha em sentido

oposto ao de Platatildeo Portanto sigamos os procedimentos desse pensador

411 A inversatildeo aristoteacutelica miacutemesis mediadora ativa e criativa

Aristoacuteteles como um dos primeiros pensadores ocidentais tratou de uma variedade de

temas dentre os quais se encontra o da criaccedilatildeo Seus textos foram estudados e reinter-

pretados pela tradiccedilatildeo grega aacuterabe e latina alcanccedilando os dias de hoje O relevante para

nossos propoacutesitos eacute que o tema da criaccedilatildeo estaacute em alguns dos seus textos mutuamente

imbricado com o conceito de miacutemesis Mas diversamente do que propotildee Platatildeo Aristoacuteteles

alccedila a miacutemesis2 agrave condiccedilatildeo privilegiada de meio ou instrumento de conhecimento Tendo

a valorizaccedilatildeo desse conceito em conta ao identificar a conexatildeo entre criaccedilatildeo e miacutemesis

despertamos nossa atenccedilatildeo para outras conexotildees possiacuteveis se em Aristoacuteteles como ve-

remos a miacutemesis eacute intriacutenseca agrave criaccedilatildeo e agrave arte esse conceito pode ser estabelecido como

mediador na compreensatildeo do processo criativo em campos como o do design

Ao contraacuterio da atitude de afastamento que tem Platatildeo em relaccedilatildeo agrave arte no livro A

repuacuteblica e em outros diaacutelogos Aristoacuteteles na obra A poeacutetica busca a sua regulamenta-

ccedilatildeo e normatizaccedilatildeo aleacutem de procurar descrever o que estava ocorrendo neste campo no

tempo em que vivia Conforme Virginia Figueiredo e Joatildeo Camillo Penna Platatildeo (que

pensa em termos de uma verdade una) considera a arte tatildeo sedutora e perigosa que o

melhor a fazer eacute mantecirc-la a distacircncia para natildeo correr o risco de a ldquoimitaccedilatildeo substituir-se

ao modelordquo (figueiredo penna 2000 p 10) Neste sentido a criacutetica platocircnica se faz

2 O fato de a discussatildeo sobre a miacutemesis nos textos escolhidos de Platatildeo e Aristoacuteteles girar em torno do tema da arte natildeo significa que estamos associando arte (em seu sentido esteacutetico atual) a design O motivo dessa escolha deve-se a Aristoacuteteles e Platatildeo terem elaborado o conceito de miacutemesis no acircmbito da arte de seu tempo Isto eacute como vimos no segundo capiacutetulo uma arte entendida como teacutekhne arte manual ofiacutecio de artiacutefices e tambeacutem como poesia mas natildeo com as diferenciaccedilotildees da atualidade em seu sentido esteacutetico

146

com mais intensidade agrave arte poeacutetica em especial a autores como Homero Poreacutem se A

repuacuteblica de Platatildeo condena a arte por ser medida pelo paradigma da ideia exterior a

ela A poeacutetica de Aristoacuteteles caminha em direccedilatildeo oposta

Se a trageacutedia eacute imitaccedilatildeo de homens melhores que noacutes importa seguir o exem-plo dos bons retratistas os quais ao reproduzir a forma peculiar dos modelos respeitando embora a semelhanccedila os embelezam Assim tambeacutem imitando homens violentos ou fracos ou com tais outros defeitos de caraacuteter devem os poetas sublimaacute-los sem que deixem de ser o que satildeo assim procederam Agatatildeo e Homero para com Aquiles paradigma de rudeza (aristoacuteteles 1987 p 215)

Aquiles tambeacutem eacute o paradigma da coragem na Iliacuteada E para Aristoacuteteles natildeo existe

um paradigma da coragem externo a arte se daacute o seu proacuteprio paradigma Recusando o

mundo das ideias ele natildeo separa essecircncia e aparecircncia como faz Platatildeo Assim descolado

da referecircncia da hierarquia de um mundo inteligiacutevel o conceito de miacutemesis pode ser com-

preendido para aleacutem da concepccedilatildeo de simples imitaccedilatildeo Como afirma Fernando Santoro

A mimesis aristoteacutelica eacute um contraponto agrave mimesis de Platatildeo natildeo define o valor artiacutestico mas o valor de verdade se para Platatildeo a imitaccedilatildeo era o distanciamento da verdade e o lugar da falsidade e da ilusatildeo para Aristoacuteteles a imitaccedilatildeo eacute o lugar da semelhanccedila e da verossimilhanccedila o lugar do reconhecimento e da represen-taccedilatildeo A funccedilatildeo mimeacutetica em Aristoacuteteles nem eacute uma exclusividade das artes poeacuteticas ela se apresenta tambeacutem por exemplo na linguagem humana em sua funccedilatildeo de representar as coisas Tal funccedilatildeo a de adequar o nome ou signo em geral agrave coisa significada eacute a funccedilatildeo mimeacutetica ou representativa da linguagem lugar em que pode acontecer o verdadeiro ou o falso (santoro 2006 p 75-76)

Dois pontos destacam-se nessa citaccedilatildeo primeiro a miacutemesis entendida como tendo

uma ldquofunccedilatildeordquo eacute estabelecida segundo Santoro tambeacutem na linguagem humana de um

modo anaacutelogo ao que propomos anteriormente com a metaacutefora da mediaccedilatildeo mimeacutetica

(figura 25 p 144) confirmando assim seu status de substrato de caraacuteter representativo

com ampla atuaccedilatildeo Segundo a natildeo exclusividade de sua atuaccedilatildeo no acircmbito da arte jus-

tifica nossa intenccedilatildeo de apropriaacute-la ao design Acreditando que esta concepccedilatildeo central

no pensamento aristoteacutelico pode ser explorada contemporaneamente o proacuteximo passo

eacute compreender a defesa do caraacuteter universal da poesia (um dos campos mais relevantes da

arte ao tempo de Aristoacuteteles) Natildeo podemos nos esquecer de que a universalidade continua

sendo um atributo almejado pelos campos de pesquisa na atualidade incluindo o design

147

412 A alianccedila entre universalidade verdade e arte poeacutetica

No livro iii de A repuacuteblica de Platatildeo (1987 p 115) Soacutecrates (a propoacutesito de discorrer

sobre as trecircs formas de narrativa) pergunta a Adimanto ldquoAcaso tudo quanto dizem os

prosadores e poetas natildeo eacute uma narrativa de acontecimentos passados presentes ou futu-

rosrdquo Por outro lado o livro ix de A poeacutetica de Aristoacuteteles pode ser considerado como

um momento de confronto com Platatildeo Jaacute no primeiro paraacutegrafo deste livro Aristoacuteteles

discordadePlatatildeoaoafirmarqueldquo[]natildeoeacuteofiacuteciodepoetanarraroqueaconteceue

sim o de representar o que poderia acontecer o que quer dizer o que eacute possiacutevel segundo

a verossimilhanccedila e a necessidaderdquo (aristoacuteteles 1987 p 209) Aleacutem disso continua o

estagirita o historiador e o poeta diferem natildeo pelo estilo que empregam (prosa ou verso)

mas por tratarem respectivamente do particular e do universal Daiacute Aristoacuteteles pode

concluir(contrariamenteaoqueestudounaAcademiaPlatocircnica)queldquo[]apoesiaeacute

algodemaisfilosoacuteficoemaisseacuteriodoqueahistoacuteria[]rdquo(aristoacuteteles 1987 p 209)

A verossimilhanccedila e a necessidade3 representam a coerecircncia e conexatildeo causal dos fatos

e accedilotildees Como afirma Eudoro de Souza em comentaacuterio (aristoacuteteles 1987 p 246)

existe um ponto de contato entre poesia e histoacuteria uma vez que acontecido e aconteciacutevel

satildeo ambos verossiacutemeis Entretanto quando pensamos que o poeta trabalha no acircmbito

da possibilidade tem em matildeos algo sempre mais amplo que a realidade enquanto o his-

toriador tem que se ater com o particular acontecido A figura 26 contrapotildee a posiccedilatildeo de

Aristoacuteteles em relaccedilatildeo agrave de Platatildeo tendo como base um saber que busca o universal sem

cindir a realidade em essecircncia e aparecircncia

Ainda no livro ix Aristoacuteteles nos diz que

[] o poeta deve ser mais fabulador que versificador porque ele eacute poeta pela imitaccedilatildeo e porque imita accedilotildees E ainda que lhe aconteccedila fazer uso de sucessos reais nem por isso deixa de ser poeta pois nada impede que algumas das coisas que realmente acontecem sejam por natureza verossiacutemeis e possiacuteveis e por isso mesmo venha o poeta a ser o autor delas (aristoacuteteles 1987 p 209)

3 Em Aristoacuteteles o conceito de necessidade estaacute relacionado ao que existe somente de um determinado modo ou seja do ponto de vista ontoloacutegico aquilo que eacute necessaacuterio natildeo pode ser de outro modo

148

Seguindo ainda o comentaacuterio de Eudoro de Souza (aristoacuteteles 1987 p 246)

ldquoSe aqui ainda natildeo eacute possiacutevel falar de lsquocriaccedilatildeorsquo eacute porque para o grego lsquocriaccedilatildeorsquo sempre

significou lsquodescobrimentorsquordquo4 Assim o poeta seria o descobridor das ldquoverdadeiras relaccedilotildees

que existem entre fatosrdquo Portanto se Aristoacuteteles contraria Platatildeo ao retirar a arte poeacutetica

do mais baixo niacutevel ontoloacutegico (3ordm niacutevel na figura 26) e recolocaacute-la em primeiro plano

como entendia a tradiccedilatildeo grega antes do platonismo ao mesmo tempo ele preserva um

criteacuterio caro a Platatildeo e agrave tradiccedilatildeo posterior do pensamento ocidental a universalidade

Com essa estrateacutegia singular de contrariar Platatildeo mantendo um conceito essencial o

estagirita torna sua operaccedilatildeo robusta o suficiente para convencer aqueles que natildeo aceitam

a criacutetica platocircnica agrave arte mas concordam com a relevacircncia da universalidade como um

caraacuteter necessaacuterio de uma teoria

A operaccedilatildeo de Aristoacuteteles se desdobra em pelo menos dois pontos positivos para

nossos propoacutesitos Primeiro ao conectar arte (teacutekhne) ao conceito de universalidade

4 Platatildeo em um certo sentido espelha a concepccedilatildeo grega de realidade Talvez por isso esse pensador eacute considerado a metoniacutemia do Ocidente Se retomamos a figura 4 (cf capiacutetulo 2 p 61) temos teoria associada agrave visatildeo com a representaccedilatildeo de um olho Assim o ldquodescobrimentordquo em seu sentido grego e especialmente platocircnico significa tirar a cobertura ldquodes-cobrirrdquo

Figura 26 Diagrama da separaccedilatildeo ontoloacutegica entre essecircncia e aparecircncia em Platatildeo (esquerda) e sua in-distinccedilatildeo em Aristoacuteteles (direita) que conduz a um conceito de miacutemesis diferenciado e potencialmente capaz de abarcar o universal com consequecircncias relevantes para a arte e o design fonte autor

PLATAtildeO ARISTOacuteTELES

1ordm NIacuteVEL mdash ARTIacuteFICE NATURAL (DEUS)No mundo inteligiacutevel Deus criou uma uacutenica cama modelo de todas outras

2ordm NIacuteVEL mdash MARCENEIRONo mundo sensiacutevel (imitaccedilatildeo do inteligiacutevel) o marceneiro cria sempre coacutepias da cama ideal

3ordm NIacuteVEL mdash POETA Baseia-se no mundo sensiacutevelpara criar suas obras que satildeo imitaccedilotildees de imitaccedilotildees

MIacuteMESISConceito compreendido aleacutem da simples imitaccedilatildeo

ARTERepresentaccedilatildeo natildeo narraccedilatildeo

POESIATrata do universal natildeo do particular

POETATrabalha no acircmbito da possibilidade Tem nas matildeos algo sempre mais amplo que a realidade

VERDADE UNA DO MUNDO DAS IDEIAS A IMITACcedilAtildeO NAtildeO PODE SUBSTITUIR O MODELO

RECUSA O MUNDO DAS IDEIAS A ARTE FORNECE SEU PROacutePRIO MODELO

ESSEcircNCIA

APAREcircNCIA MIacuteMESIS

SEM HIERARQUIA E SEPARACcedilAtildeO

ENTRE ESSEcircNCIA E APAREcircNCIA

149

preserva com isso o criteacuterio de verdade que para Platatildeo soacute a teoria (episteacuteme) pode-

ria oferecer Neste sentido a manobra aristoteacutelica assegura agrave arte se manter dentro

do registro ontoloacutegico proposto por Platatildeo Segundo se eacute imitando accedilotildees que o

poeta atraveacutes da possibilidade e da verossimilhanccedila realiza seu trabalho a miacutemesis

natildeo pode mais ser entendida como mera imitaccedilatildeo ou coacutepia como queria Platatildeo Eacute

neste contexto de ultrapassamento da imitaccedilatildeo ordinaacuteria que se faz necessaacuteria uma

anaacutelise da miacutemesis na sua relaccedilatildeo com a teacutekhne e a phyacutesis

413 As relaccedilotildees entre miacutemesis teacutekhne e phyacutesis

Se como afirma Virginia Figueiredo e Joatildeo Camillo Penna (figueiredo penna 2000

p 25) o livro iv de A poeacutetica eacute compreendido pela tradiccedilatildeo como o lugar para se extrair

o conceito de miacutemesis em Aristoacuteteles entendemos que eacute necessaacuterio um consideraacutevel

esforccedilo para aclarar tal conceito Como aponta Claacuteudio Veloso (2004 p 15) ldquoantes de

tudoemlugaralgumAristoacutetelesdefineotermomicroίmicroησις[miacutemesis]rdquoNoentantoWerner

Jaeger(1986p710)indica-nosoutrafontedepesquisadestaquestatildeoldquo[]Aristoacuteteles

define a relaccedilatildeo entre a arte e a natureza dizendo que natildeo eacute esta que a arte imita mas

sim que a arte se inventou para preencher as lacunas da naturezardquo e remete a outra obra

sua Nela Jaeger diz

Eacute uma ideacuteia caracteristicamente aristoteacutelica de que a natureza eacute finalista em mais alto grau inclusive que a arte e que o finalismo que reina no trabalho seja arte ou destreza natildeo eacute senatildeo uma imitaccedilatildeo de finalismo da natureza A mesma ideacuteia acerca da relaccedilatildeo entre as duas coisas se expressa brevemente no livro ii da Fiacutesica que eacute um dos escritos mais antigos de Aristoacuteteles Tambeacutem se faz alusatildeo incidentalmente em outros lugares mas nunca tatildeo bem desenvolvida e articulada como aqui Uma expressatildeo como a seguinte eacute rigorosamente original

ldquonatildeo imita a natureza a arte senatildeo a arte agrave natureza e a arte existe para ajudar a levar a cabo o que deixa de fazer a naturezardquo (jaeger 1946 p 92-93)

Philippe Lacoue-Labarthe (2000 p 257) vai tambeacutem ateacute a Fiacutesica com a mesma in-

tenccedilatildeoldquo[]trata-secommuitacertezadeumadasmaissegurasinterpretaccedilotildeesdateoria

150

aristoteacutelica da mimese tal como a encontramos com efeito quanto ao essencial no livro

b da Fiacutesica (194a)rdquo e diz-nos em seguida

De acordo com o que diz Aristoacuteteles a teacutekhne eacute pensada literalmente como o a-creacutescimo [sic] da phyacutesis quer dizer do aparecer (phaiacutenen) como o crescer o eclodir e o desabrochar (phyacuteein) agrave luz [] Formulado de outro modo apenas a arte (a teacutekhne) eacute capaz de revelar a natureza (a phyacutesis) Ou ainda sem a teacutekh-ne a phyacutesis escapa porque em sua essecircncia a phyacutesis kryptesthai phiacutelei ela adora dissimular-se (lacoue-labarthe 2000 p 257-258)

Considerando tanto estas passagens quanto o texto do livro iv de A poeacutetica aquilo

que eacute um acreacutescimo natildeo pode ser considerado mero arremedo ou duplicaccedilatildeo O apren-

der do homem com as representaccedilotildees por exemplo ldquode animais ferozes e de cadaacuteveresrdquo

(aristoacuteteles 1987 p 203) aponta para um conceito de miacutemesis que busca reassumir

os procedimentos da natureza A miacutemesis estaacute ligada ao real empiacuterico (natildeo eacute coacutepia de

uma realidade inteligiacutevel) e natildeo vai simplesmente reproduzir a natureza porque eacute ativa e

criativa Em outras palavras a miacutemesis em Aristoacuteteles tem fundamento ontoloacutegico

42 Deslocamento do conceito de miacutemesis e sua contribuiccedilatildeo ao design e agrave arte

Com o entendimento de que a miacutemesis ao se expressar na produccedilatildeo das coisas com suas

capacidades criativas explicita seu fundamento ontoloacutegico dois passos importantes para

a tese podem ser dados ao mesmo tempo em que satildeo subsumidos a esse conceito

1ordm A confirmaccedilatildeo do potencial para a miacutemesis ser explorada na anaacutelise do design enquan-

to processo criativo e produtivo Ao delimitar (mesmo que de forma esquemaacutetica e

procurando evitar equiacutevocos hermenecircuticos) os pontos de contato entre os conceitos

de produccedilatildeo e criaccedilatildeo ao tempo de Aristoacuteteles e na atualidade poderemos deslocar

o conceito de miacutemesis para o presente e apropriaacute-lo para o design e para a arte

2ordm Ao apresentar exemplos no design do uso da miacutemesis confirmamos empiricamente

o viacutenculo de natureza ontoloacutegica entre o conceito aristoteacutelico e esse campo

151

Assim o proacuteximo passo eacute direcionar o conceito aristoteacutelico de miacutemesis em sua relaccedilatildeo

original com a arte (teacutekhne) e a natureza (phyacutesis) para uma relaccedilatildeo contemporacircnea que

dividiremos em duas categorias uma exoacutegena por conectar duas esferas distintas design

e natureza e outra endoacutegena para aspectos intriacutensecos ao design Estamos aceitando

como pressuposto que a produccedilatildeo enquanto teacutekhne possa ter seu sentido ampliado ateacute o

da produccedilatildeo (ou criaccedilatildeo a partir de algo) entendida como design na atualidade

Nossa aposta considera o conceito de teacutekhne amplo e flexiacutevel o bastante para poder

adequar-se a esta transposiccedilatildeo trazendo consigo o de miacutemesis Nesse sentido eacute impor-

tante ter em mente como jaacute foi visto no capiacutetulo 2 que teacutekhne e episteacuteme (utilizadas em

diversos contextos da Greacutecia claacutessica como palavras quase sinocircnimas)5 tecircm como uma

de suas acepccedilotildees a de conhecimento universal o que estreita seu viacutenculo com um campo

de pesquisa e de trabalho como o design Analisemos os exemplos

421 A miacutemesis exoacutegena no design acreacutescimo e processo agrave natureza

Diante das diversas possibilidades inerentes agrave miacutemesis em sua vertente aristoteacutelica toma-

remos como ponto de partida duas ideias que o conceito comporta para suportar nossos

argumentos A primeira citada anteriormente eacute a ideia de acreacutescimo Quando em 1941 o

engenheiro George de Mestral enquanto caminhava pelos Alpes voltou sua atenccedilatildeo para

os carrapichos que grudavam em suas meias e no pelo de seu catildeo ele buscava entender

um evento singular da natureza Ao perceber que os ganchos microscoacutepicos dos carrapi-

chos prendiam-se aos minuacutesculos laccedilos do tecido das meias Mestral compreendeu uma

estrateacutegia de reproduccedilatildeo de uma planta que normalmente faz uso do pelo dos animais

para espalhar suas sementes em vastos territoacuterios

5 Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro mostra a aproximaccedilatildeo das atividades da teacutekhne e da episteacuteme quando revela a intenccedilatildeo de Platatildeo no diaacutelogo Iacuteon em distanciar a atividade do poeta (rapsodo) das duas pri-meiras ldquoOra a explicaccedilatildeo eacute que a atividade do rapsodo entendida como arte mimeacutetica natildeo se daacute por teacutechne ou episteacuteme faculdades tipicamente humanas mas por forccedila divina (theiacutea dyacutenamis) e inspiraccedilatildeo divina (theiacutea moira) Enquanto o teacutecnico-epistecircmico discursa soacutebrio nos limites do discernimento (eacutem-phron) exercendo certo domiacutenio sobre o seu praacutegma determinado (a etimologia de episteacuteme remete agrave accedilatildeo de ldquocolocar-se por cimardquo) o rapsodo fala fora de si (eacutek-phron) possuiacutedo (katechoacutemenos) tomado pelo deus (eacuten-theos) entusiasmado (en-thousiaacutezon)rdquo (ribeiro 2006 p 133) Negrito nosso

152

Mestral no entanto foi aleacutem e criou o Velcro um fecho que simula as caracteriacutes-

ticas do carrapicho Mas obviamente muitos anos se passaram entre o vislumbre que

Mestral teve de um novo produto (figura 27) e a conclusatildeo de suas pesquisas entre um

mecanismo de auxiacutelio agrave reproduccedilatildeo de uma planta e um fecho de alto desempenho

vaacuterios elementos e caracteriacutesticas foram acrescentados agrave ideia original para transfor-

maacute-la naquilo que utilizamos em roupas acessoacuterios esportivos e ateacute em componentes

de naves espaciais

Neste caso se usarmos os argumentos de Aristoacuteteles a traduccedilatildeo da estrutura origi-

nal do carrapicho em um objeto produzido pelo homem eacute mimeacutetica na medida em que

reassume de modo exoacutegeno os procedimentos da natureza mas natildeo eacute coacutepia uma vez

que os acreacutescimos (que envolvem estudos pesquisas e soluccedilotildees para diversos problemas)

garantem agrave miacutemesis sua condiccedilatildeo ativa e criativa

Uma segunda ideia constitutiva do conceito de miacutemesis eacute a noccedilatildeo de processo O

poeta e escritor portuguecircs Fernando Pessoa (1967 p 21) atraiacutedo por esse conceito

aristoteacutelico tem uma interpretaccedilatildeo sinteacutetica acerca da miacutemesis que pode nos orientar

ldquoO fim da arte eacute imitar perfeitamente a Natureza Este princiacutepio elementar eacute justo se

natildeo esquecermos que imitar a Natureza natildeo quer dizer copiaacute-la mas sim imitar os seus

Figura 27 Imagem ampliada da estrutura bioloacutegica de um carrapicho (esquerda) e detalhe do projeto de George de Mestral do Velcro para registro de patente da invenccedilatildeo (direita) fontes designculturecombr e google patentscom

153

processosrdquo Assim no proacuteprio exemplo do Velcro podemos perceber como a noccedilatildeo de

processo se sobrepotildee ao desenvolvimento deste produto Mestral dedicou-se dez anos

para aperfeiccediloar sua invenccedilatildeo e adaptar os mecanismos necessaacuterios ao seu processo

de produccedilatildeo industrial

422 A miacutemesis endoacutegena no design adaptaccedilatildeo e evoluccedilatildeo

Mais um aspecto do deslocamento do conceito de miacutemesis complementar agrave relaccedilatildeo exoacute-

gena entre design e natureza eacute o caraacuteter endoacutegeno de realimentaccedilatildeo positiva que cada

produto pode e deve ter na busca para aprimorar-se O Velcro ao longo dos seus mais de

50 anos de existecircncia foi aperfeiccediloado em diversos aspectos A busca por novos materiais

e formas mais eficientes de produccedilatildeo e disposiccedilatildeo de seus componentes satildeo algumas das

inovaccedilotildees que foram implementadas No entanto a miacutemesis se preserva em todas essas

adaptaccedilotildees e mudanccedilas na medida em que a ideia original se manteacutem incorporada ao

produto orientando seu propoacutesito natildeo sendo simplesmente reproduzida (copiada) em

seus aspectos formais e estruturais

Ainda dentro da atuaccedilatildeo endoacutegena podem ocorrer evoluccedilotildees que se distanciam formal

e estruturalmente do produto sem no entanto abrir matildeo dos seus conceitos e propoacutesitos

Um exemplo disso eacute o Slidingly Engaging Fastener (sef) tambeacutem conhecido como New

Velcro e inventado por Leonard Duffy a partir de uma pesquisa de oito anos A estrutura

diferente do sef (figura 28) faz com que ele atenda a uma seacuterie de requisitos do fecho

Velcro aleacutem de ser mais duraacutevel forte silencioso e natildeo reter pelos poeira e odor como

seu antecessor

Tendo chegado a este ponto eacute importante fazer uma correlaccedilatildeo conceitual entre dois

autores distantes na histoacuteria do pensamento mas com questotildees em comum Aristoacuteteles e

Flusser O par teacutekhneepisteacuteme (entendido pelos gregos como habilidade e conhecimento

teoacuterico e desmembrado em ciecircncia teacutecnica e arte) na concepccedilatildeo de Aristoacuteteles se apropria

tanto da natureza quanto dos objetos produzidos pelo homem recorrendo agrave miacutemesis Se

em Aristoacuteteles haacute uma conexatildeo que parte da natureza (phyacutesis) em direccedilatildeo agrave arte (teacutekhne)

154

que imita os processos da primeira resultando em conhecimento humano em Flusser

a conexatildeo ou ldquoponterdquo ocorre em sentido contraacuterio partindo de um dos campos do co-

nhecimento humano o design e avanccedilando ateacute a natureza Neste contexto se justifica

com mais intensidade procurar compreender essa acepccedilatildeo da miacutemesis eacute ir ateacute um dos

fundamentos mesmos da nossa cultura resgatando um sentido ou sentidos esquecidos e

transfigurados com o tempo na histoacuteria do pensamento ocidental A figura 29 apresenta

as conexotildees que derivam da relaccedilotildees entre phyacutesis episteacuteme e teacutekhne se efetivam atraveacutes do

conceito de miacutemesis e seguem em direccedilatildeo ao design Tal conceito uma vez incorporado

ao design amplia as possibilidades de fundamentaccedilatildeo teoacuterica deste campo

Figura 28 Imagem com detalhe do projeto de Leonard Duffy do New Velcro para registro de patente da invenccedilatildeo fonte google patentscom

TECNOLOGIA

asymp aC dC 85 dC dCGreacutecia Ocidente

EPISTEacuteME

TEacuteKHNE

PHYacuteSIS NATUREZA

CIEcircNCIA

TEacuteCNICA

MIacuteMESIS

ARTE

POacuteIESIS

DESIGN

Figura 29 Linha do tempo que mostra as trecircs conexotildees que partem da phyacutesis episteacuteme e teacutekhne possibili-tando sua ligaccedilatildeo com o design na atualidade atraveacutes do conceito de miacutemesis fonte autor

155

Dado esse passo atualizar a relaccedilatildeo da miacutemesis com a teacutekhne direcionando-as ao

design nos permite operar com um conceito que pela sua riqueza de possibilidades

pode ser usado para a interpretaccedilatildeo e entendimento de diversas questotildees assim como fez

Aristoacuteteles em sua eacutepoca Quando pensamos que campos como a biocircnica e a ciberneacutetica

(para citar apenas dois) atuam de forma mimeacutetica ao transferirem conhecimentos da

biologia para diversas outras aacutereas incluindo o design a compreensatildeo do conceito de

miacutemesis cresce em importacircncia

Paralelamente a esses avanccedilos de caraacuteter mimeacutetico as instituiccedilotildees de ensino e o mer-

cado tambeacutem podem incorporar o modelo imitativo enquanto preceitos e dogmas de

caraacuteter mais reprodutivo ou de coacutepia Dijon De Moraes (2006) em seu livro Anaacutelise do

design brasileiro entre mimese e mesticcedilagem dedica um capiacutetulo inteiro agrave investigaccedilatildeo

da imitaccedilatildeo do modelo racional funcionalista alematildeo (originaacuterio da Bauhaus e da Escola

de Ulm) e agraves consequecircncias destas referecircncias (positivas e negativas) para o design local

No mercado esta praacutetica pode ser nomeada com justa razatildeo de coacutepia quando por

exemplo uma patente expira ou natildeo eacute respeitada e os concorrentes simplesmente reproduzem

o que jaacute existe muitas vezes com perda na qualidade final do produto Neste sentido pensar

a partir do crivo ontoloacutegico nos permite tambeacutem compreender a distinccedilatildeo entre criaccedilatildeo

e coacutepia em design como um rebaixamento ontoloacutegico da imitaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao original

RetomandoalgumaspalavrasdeAristoacuteteles(1987p203)ldquo[]detodoseacuteele[o

homem]omaisimitadoreporimitaccedilatildeoaprendeasprimeirasnoccedilotildeesrdquoNatildeodeixadeser

curioso o fato de que se levarmos a afirmaccedilatildeo de Aristoacuteteles ao peacute da letra o esforccedilo de

trazer o conceito de miacutemesis para o presente e para sua relaccedilatildeo com o design tambeacutem eacute

uma accedilatildeo mimeacutetica

423 A miacutemesis complementar na arte saiacuteda para o dilema de Euriacutepedes

Se nas palavras de Aristoacuteteles aprendemos as primeiras noccedilotildees atraveacutes da miacutemesis pode-

mos compreender esse conceito com um tipo de procedimento que pode ser efetuado por

qualquer ser humano Por mais que a miacutemesis em sua acepccedilatildeo aristoteacutelica possa explicar

diversas operaccedilotildees do processo criativo no design na arte e em outros campos existem

156

problemas que podem tambeacutem ser associados com a atitude mimeacutetica Em outras palavras

com a miacutemesis atraiacutemos por um lado vaacuterias possibilidades de explicaccedilatildeo do processo de

criaccedilatildeo mas por outro encontramos questionamentos a esse tipo de operaccedilatildeo Arthur

Danto (2005) por exemplo lanccedila matildeo de um dilema nietzscheano para demonstrar os

limites da apropriaccedilatildeo da miacutemesis no universo da arte No entanto acreditamos que a

saiacuteda para a contradiccedilatildeo que nos apresenta Danto se encontra dentro da proacutepria miacutemesis

em uma de suas caracteriacutesticas jaacute apresentadas a de atuar como processo Como veremos

enquanto um processo a miacutemesis aleacutem de escapar dessa contradiccedilatildeo faz a mediaccedilatildeo

com os demais conceitos aristoteacutelicos explorados por Umberto Eco e que datildeo o fecho

agraves anaacutelises deste capiacutetulo

No capiacutetulo inicial do livro A transfiguraccedilatildeo do lugar-comum Arthur Danto indaga

sobre o que eacute uma obra de arte Sua intenccedilatildeo eacute compreender a arte contemporacircnea como

manifestaccedilatildeo cultural com todas as suas caracteriacutesticas exclusivas mas que se conecta e se

entrelaccedila com diversas outras aacutereas da cultura de nosso tempo Danto introduz este pri-

meiro problema trabalhando a questatildeo da representaccedilatildeo atraveacutes do conceito de imitaccedilatildeo6

O que buscamos neste primeiro momento eacute uma possiacutevel saiacuteda para o questionamento de

Danto (apresentado sob a forma de um raciociacutenio nomeado por ele Dilema de Euriacutepedes)

correlacionando-o com algumas proposiccedilotildees de Aristoacuteteles ligadas ao conceito de miacutemesis

Em Obras de arte e meras coisas reais capiacutetulo 1 do seu livro Danto analisa inuacuteme-

ros conceitos passando pelas ideias de pensadores artistas e obras de arte ele recorre

a Wittgenstein depois a Platatildeo Soacutecrates Shakespeare Sartre Van Gogh e Aristoacuteteles

Uma das questotildees que estatildeo na origem deste trajeto eacute qual a natureza da fronteira entre

arte e natildeo arte O ponto especiacutefico que nos interessa comeccedila quando Danto ao tratar do

problema da imitaccedilatildeo conclui que a mesma ldquotem a funccedilatildeo mais importante de representar

as coisas reaisrdquo (danto 2005 p 55) Eacute importante salientar aqui que a expressatildeo ldquocoisas

reaisrdquo sinaliza a intenccedilatildeo de Danto de manter sua criacutetica agrave miacutemesis aristoteacutelica dentro

dos limites da ontologia Assim em seguida ele afirma que a representaccedilatildeo conteacutem uma

6 Com relaccedilatildeo agrave associaccedilatildeo entre representaccedilatildeo e imitaccedilatildeo Timo Maran em artigo publicado em 2003 (Mimesis as a phenomenon of semiotic communication) analisa diversas interpretaccedilotildees deste conceito indo aleacutem do ciacuterculo estrito da tradiccedilatildeo filosoacutefica e investigando a miacutemesis enquanto um fenocircmeno de comunicaccedilatildeo

157

ambiguidade e para diferenciar os dois sentidos recorre agrave Nietzsche Analisemos como

ele faz tal aproximaccedilatildeo

No livro O nascimento da trageacutedia (a mesma obra em que no capiacutetulo 2 apresentamos

a criacutetica nietzschiana agrave ciecircncia atraveacutes da arte) Nietzsche associa a origem da trageacutedia

grega aos rituais dionisiacuteacos Nesses rituais havia a crenccedila de que Dioniacutesio sempre se fazia

presente este seria o primeiro sentido de representaccedilatildeo uma (re)apresentaccedilatildeo Com o

passar do tempo o teatro traacutegico grego substituiu os rituais por reproduccedilatildeo simboacutelica

Assim o deus natildeo mais aparecia mas era representado por algueacutem (figura 30) Este seria

o segundo sentido de representaccedilatildeo algo que estaacute no lugar de outro

Dessa forma para Nietzsche Euriacutepedes destruiu a trageacutedia ao introduzir elementos

que faziam com que a representaccedilatildeo teatral se tornasse mais proacutexima da realidade possiacutevel

Esse eacute o programa euripidiano (que sacrifica uma parte do misteacuterio) e a sua contrapartida

eacute fazer arte que natildeo tenha correspondecircncia na realidade consequentemente natildeo con-

duzindo agrave prevalecircncia da imitaccedilatildeo Danto resume assim os dois programas (figura 31)

O Dilema de Euriacutepedes consiste em que uma vez completado o programa mimeacutetico o produto fica tatildeo parecido com o que se encontra na realidade que exatamente por ser idecircntico ao real cabe perguntar o que o torna uma obra de arte A tentativa de fugir ao dilema exagerando os elementos natildeo-mimeacuteticos purgados em nome do programa produz uma coisa tatildeo diferente da realidade que essa pergunta perde sentido Mas permanece outra questatildeo igualmente importante dado que no final obtemos algo que eacute descontiacutenuo com a realidade o que ainda o distingue como arte (danto 2005 p 68)

RITUAIS DIONISIacuteACOS

DOIS CONCEITOS DE REPRESENTACcedilAtildeO

Dioniacutesio natildeo presente representaccedilatildeo simboacutelica

TEATRO TRAacuteGICO GREGO

Dioniacutesio presente representaccedilatildeo como (re)apresentaccedilatildeo

Figura 30 Esquema da oposiccedilatildeo entre representaccedilatildeo e reapresentaccedilatildeo conforme a criacutetica nietzschiana ao programa euripidiano fonte autor

158

Mais agrave frente Danto afirma que

Talvez seja mesmo impossiacutevel escapar desse dilema enquanto continuarmos tentando definir a arte em funccedilatildeo de aspectos comparaacuteveis ou contrastantes com os do mundo real Mas nesse caso eacute bem possiacutevel que o dilema seja fa-talmente inescapaacutevel pois que outra coisa aleacutem de aspectos comparaacuteveis ou contrastantes poderia servir de base para a construccedilatildeo de uma teoria da arte (danto 2005 p 70)

Danto entatildeo sugere uma saiacuteda para esse dilema as convenccedilotildees Tudo aquilo que a

convenccedilatildeo aceitar como obra de arte eacute obra de arte Esta saiacuteda ele jaacute havia apontado no

iniacutecio do capiacutetulo quando o pintor J (um personagem do livro) declara que sua super-

fiacutecie vermelha eacute uma obra de arte Mas essa ldquosaiacutedardquo jaacute natildeo havia satisfeito Danto naquele

momento do texto e obviamente ainda continua natildeo o satisfazendo mdash nem a quem quer

que busque compreender o que estaacute em questatildeo Eacute uma soluccedilatildeo precaacuteria que natildeo nos

satisfaz em termos de fundamentaccedilatildeo

Neste ponto da argumentaccedilatildeo de Danto propomos uma via intermediaacuteria entre o

seus programas mimeacutetico e contramimeacutetico Se pudermos encontrar algo mediador entre

continuidade e descontinuidade com o real talvez uma parte da questatildeo possa tornar-se

mais clara Nossa intenccedilatildeo eacute escapar da contradiccedilatildeo buscando em Aristoacuteteles nos proacute-

prios elementos associados ao seu conceito de miacutemesis condiccedilotildees que possam nos ajudar

a construir uma saiacuteda para a aporia instalada no acircmbito da arte

Assim retomando a miacutemesis em Aristoacuteteles e uma de suas caracteriacutesticas fundamen-

tais a de acreacutescimo poderiacuteamos dizer que natildeo se trata de a arte ser nem contiacutenua nem

descontiacutenua mas de ser complementar com o real Desta maneira ao inverter nosso olhar

PROGRAMA MIMEacuteTICO

O DILEMA DE EURIacutePEDES

Arte descontiacutenua com o real

PROGRAMA CONTRAMIMEacuteTICO

Arte contiacutenua com o real

Figura 31 Esquema do Dilema de Euriacutepedes e a dificuldade segundo Danto de se encontrar uma definiccedilatildeo para obra de arte fonte autor

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sobre a questatildeo o fato de a teoria da contramimese estar ldquoconceitualmente entrelaccedilada

com a teoria que rejeita isto eacute a proacutepria teoria da mimeserdquo (danto 2005 p 67) natildeo

seria mais um problema como considera Danto mas parte da soluccedilatildeo (figura 32)

43 Ampliaccedilatildeo das determinaccedilotildees ontoloacutegicas nas relaccedilotildees entre design e arte

A soluccedilatildeo anterior atraveacutes da complementaridade tem caraacuteter parcial uma vez que se

restringe ao universo da arte Eacute necessaacuterio seguir em frente para saltar do acircmbito da arte e

estabelecer a reflexatildeo dentro do acircmbito do design e vice-versa Quase ao final do primeiro

capiacutetulo Danto apresenta-nos o resumo de algumas questotildees que jaacute havia desenvolvido

em momentos anteriores Uma delas acreditamos tambeacutem pode ser respondida pela

nossa proposta de soluccedilatildeo mimeacutetica mas como veremos traz um elemento a mais A

perguntadesteautordecaraacutetereminentementeontoloacutegicoeacuteldquo[]seraacutequecadanovo

item da realidade mdash digamos uma nova espeacutecie ou uma invenccedilatildeo mdash deve ser considerado

uma contribuiccedilatildeo para a arterdquo (danto 2005 p 67)

Se como vimos novos objetos de arte podem natildeo ser simplesmente descontiacutenuos

com a realidade mas complementares e revelar aspectos desta realidade que de outro

modo estariam ocultos esta segunda pergunta estaacute em parte respondida um novo item

da realidade pode ser considerado uma obra de arte No entanto porque usamos o pode

e natildeo o deve a questatildeo ainda natildeo se esgotou Ainda se poderia levantar mais uma duacutevida

a partir do que estabelecemos ao final do capiacutetulo 2 outros objetos como os instrumentos e

os dispositivos de novas tecnologias entre os quais o design eacute incorporado tambeacutem satildeo capa-

zes de revelar novos aspectos da realidade Seriam eles tambeacutem objetos de arte Aristoacuteteles

Arte complementar com o real

MIacuteMESISCONTRAMIacuteMESIS

SAIacuteDA DO DILEMA

Figura 32 Esquema do entrelaccedilamento da miacutemesis e da contramiacutemesis com a complementaridade solucio-nando o dilema entre continuidade e descontinuidade da arte com o real fonte autor

160

elabora conceitos que mais uma vez natildeo satildeo oferecidos em A poeacutetica mas que podem

nos auxiliar na resposta

431 Da arte ao design o conceito de ldquofim em si mesmordquo

Em outra obra de sua autoria A poliacutetica Aristoacuteteles faz uma distinccedilatildeo entre coisas uacuteteis

e coisas belas que visa natildeo especificamente as artes mas as atividades humanas em geral

Mantendo o espiacuterito de apropriaccedilatildeo que ateacute agora nos conduziu podemos fazer um uso

correlato dessa distinccedilatildeo para a questatildeo de Danto sobre quais itens da realidade podem

ser considerados obra de arte Como afirma Aristoacuteteles

Toda a vida estaacute dividida em trabalho e oacutecio guerra e paz e dentre as actividades umas satildeo necessaacuterias e uacuteteis e outras satildeo dignas [belas] A guerra existe em vista da paz o trabalho em funccedilatildeo do oacutecio as actividades necessaacuterias e uacuteteis em vista das honrosas [belas] (aristoacuteteles 1998 p 537) Itaacutelicos nossos

Fernando Santoro (2006 p 78) traduz as palavras ldquodignasrdquo e ldquohonrosasrdquo por ldquobelasrdquo

Concordando com esse autor privilegiamos tal sentido uma vez que no texto em grego

constam ldquoτὰ καλάrdquo (taacute kalaacute) e ldquoτῶν καλῶνrdquo (toon kaloon) palavras que nas suas primeiras

acepccedilotildees em dicionaacuterio tecircm o sentido de belo Atentando a esse ponto notemos que Aris-

toacuteteles associa o uacutetil e o negoacutecio de um lado e o belo e o oacutecio de outro Obviamente na

atualidade a arte jaacute natildeo busca mais as coisas simplesmente belas7 Mas uma caracteriacutestica

7 Quando Aristoacuteteles fala de coisas belas em conexatildeo com o oacutecio eacute importante compreender conforme afirma Fernando Santoro (2006 p 74) que para este pensador grego as coisas belas estatildeo mais ligadas agraves melhores accedilotildees humanas (principalmente a accedilatildeo teoreacutetica e contemplativa) do que propriamente aos objetos produzidos pelas diversas artes Eacute relevante tal distinccedilatildeo uma vez que a arte grega (teacutekhne) enquanto ofiacutecio era um trabalho pelo qual oleiros escultores pintores arquitetos e outros profissio-nais recebiam remuneraccedilatildeo Essa praacutetica que na Idade Meacutedia tinha como principais patrocinadores a Igreja e a Nobreza posteriormente passou a contar com os mecenas da crescente classe comerciante e natildeo perdeu seu caraacuteter de negoacutecio ateacute os dias de hoje Se uma parte dos artistas atuais aqueles que atuam no chamado campo das belas-artes entendem que sua criaccedilatildeo soacute passa agrave condiccedilatildeo de produto a ser negociado quando termina e vai para as matildeos do marchand natildeo significa que assim o seja numa sociedade capitalista por excelecircncia A proacutepria expressatildeo ldquomercado internacional de obras de arterdquo comumente utilizada no meio cultural e econocircmico faz pensar que um artista que deseje ou necessite sobreviver de sua criaccedilatildeo natildeo se arriscaria a produzir arte que natildeo estivesse de alguma maneira enga-jada no espiacuterito e tendecircncias de seu tempo Sob esse ponto de vista arte tambeacutem eacute negoacutecio

161

essencial da visatildeo aristoteacutelica ainda se preserva na arte o seu fim continua sendo ela mesma

Um objeto de arte eacute para ser fruiacutedo independentemente do modo como isso se decirc seja com

apreciaccedilatildeo culto ou estranhamento Nesse sentido podemos dizer que a arte natildeo eacute uacutetil

Mas e quanto ao que eacute uacutetil que segundo Aristoacuteteles tecircm seu fim e funccedilatildeo fora dele

mesmo Poderiacuteamos afirmar que o fim de um martelo (a sua utilidade se bem projetado)

eacute pregar pregos Mesmo um instrumento mais elaborado como um computador que pelo

seu proacuteprio conceito transformou-se em algo que exerce muacuteltiplas tarefas ainda assim

teria sua finalidade nos inuacutemeros trabalhos que executa e natildeo nele mesmo Neste sentido

a concepccedilatildeo de que a forma segue a funccedilatildeo defendida pelo modernismo no seacuteculo xx e

seus seguidores racionalistas aponta nesta direccedilatildeo

Poreacutem se nos atentarmos um pouco mais para as complexas relaccedilotildees que estabele-

cemos com as coisas em nossa sociedade contemporacircnea aqueles objetos caracterizados

primariamente como instrumentos como vimos com Rafael Cardoso se recobrem de

inuacutemeros valores carregando significados que ultrapassam a mera execuccedilatildeo de um trabalho

com um fim exterior a eles mesmos Um espremedor de frutas projetado por Philippe

Starck (figura 33) concebido para retirar o suco das frutas (ou pelo menos seu projeto

teve como uma das motivaccedilotildees uma utilidade especiacutefica no mundo humano) talvez passe

o resto dos dias em cima de uma mesa ou estante em uma residecircncia abandonado a uma

exposiccedilatildeo meramente esteacutetica

Figura 33 Fotografia do espremedor de frutas Juicy Salif (1990) de Philippe Starck projetado para a empresa italiana Alessi fonte alessicom

162

Nesse caso extremo poreacutem a cada dia mais comum o espremedor se ainda natildeo eacute uma

obra de arte institucionalizada pelo menos no acircmbito privado seu proprietaacuterio assim o

considera Mas na circunstacircncia de um artefato desses ser utilizado para espremer frutas

eacute de se supor (pelo menos eacute o que esperam os designers) que seu usuaacuterio contemporacircneo

tenha uma experiecircncia que vaacute aleacutem do simples manejo de um instrumento bem projetado

e uacutetil para um fim fora dele mesmo Este algo mais supostamente presente em um ins-

trumento pode natildeo ser fruiccedilatildeo no sentido artiacutestico mas aponta para uma caracteriacutestica

que eacute proacutepria da arte e natildeo das coisas uacuteteis o fim em si mesmo

A divisatildeo aristoteacutelica fundada no belo versus uacutetil se destaca por dois motivos Primei-

ro porque sinaliza-nos que a questatildeo eacute mais complexa do que a princiacutepio afigura-se em

uma dicotomia Segundo e mais importante com a ampliaccedilatildeo e o aprofundamento do

problema (paralelamente agrave elaboraccedilatildeo do conceito de fim em si mesmo que permite uma

maior discriminaccedilatildeo entre arte e design) tal investigaccedilatildeo detecta e expotildee caracteriacutesticas

anteriormente atribuiacutedas ao universo exclusivo da arte e que se encontram apoacutes a ava-

liaccedilatildeo imbricadas ao design Isso poderia ser encarado como um problema para aqueles

que procuram apenas a delimitaccedilatildeo desses campos mas em nossa perspectiva eacute o ponto

de inflexatildeo que indica um viacutenculo (ainda natildeo completamente compreendido) que parte

do universo artiacutestico em direccedilatildeo ao design Nesse sentido poderiacuteamos dizer que o fim

em si mesmo eacute outro liame de caracteriacutesticas semelhantes agrave ldquoPonte Flusserianardquo mas com

um sentido inverso pois um elemento essencial da arte e se encaminha para o design na

expansatildeo dos domiacutenios deste campo

A figura 34 apresenta o graacutefico com as conexotildees que partem do design defendidas

na proposta de Flusser (linhas marrom) Aleacutem delas duas conexotildees (linhas alaranjadas)

partem da arte para o design A linha 1 jaacute haviacuteamos estabelecido anteriormente no capiacutetulo

2 com o entendimento que a arte eacute historicamente uma das disciplinas que contribuiacute-

ram para a formaccedilatildeo do design A linha 2 acaba de se estabelecer com a compreensatildeo do

conceito de fim em si mesmo

Assim avanccedilamos mais dois passos no caminho de nossa hipoacutetese vimos primei-

ramente que o conceito de miacutemesis eacute adequado para a compreensatildeo de objetos onde

a funcionalidade eacute preponderante como o caso do velcro e em segundo lugar que o

163

conceito de fim em si mesmo (de modo complementar ao de miacutemesis) vai ao encontro

das possibilidades da experiecircncia do usuaacuterio com os objetos O exemplo do espremedor eacute

modelar na medida em que o design na contemporaneidade cada vez mais explora o fim

em si mesmo em busca de produzir experiecircncias ultrapassando os atributos funcionais e

instrumentais de seus objetos

432 Da arte ao design o discurso aberto e o persuasivo epidiacutectico

Depois de superar o Dilema de Euriacutepedes com a aposta numa complementaridade extraiacuteda

do conceito de miacutemesis aristoteacutelico o fecho da estrateacutegia anterior foi a partir de uma

visatildeo geral das atividades humanas apropriar-nos das distinccedilotildees (tambeacutem aristoteacutelicas)

dos pares de conceitos de uacutetilnegoacutecio e belooacutecio para identificar em quais dessas catego-

rias nossos objetos de estudo se alinham Mas o que percebemos eacute que arte e design pela

proacutepria complexidade inerente aos mesmos satildeo nuanccedilados nos seus pontos de encontro

similaridades e distanciamentos de fronteiras conceituais Assim avanccedilaremos mdash operando

da mesma maneira analiacutetica e mantendo o foco nos fundamentos ontoloacutegicos mdash sobre

FIM EM SI MESMO

asymp aC dC 7 dC 85 dC dCGreacutecia Ocidente

EPISTEacuteME

TEacuteKHNE

PHYacuteSIS NATUREZA

CIEcircNCIA

TEacuteCNICA

ARTE

TECNOLOGIA

POacuteIESIS

1 2

DESIGN

Figura 34 Linha do tempo indicando o conceito de fim em si mesmo (linha 2) em um caminho inverso ao da ldquoPonte Flusserianardquo partindo da arte em direccedilatildeo ao design fonte autor

164

outro elemento constituinte das atividades humanas a comunicaccedilatildeo A busca eacute por uma

perspectiva que amplie nosso entendimento sobre a questatildeo

Em seu livro Obra aberta Umberto Eco atento aos pressupostos de comunicaccedilatildeo da

arte e de outros campos estabelece uma distinccedilatildeo entre discurso aberto e discurso persua-

sivo Para Eco (1988 p 279-280) o discurso aberto tem duas caracteriacutesticas principais

eacute ambiacuteguo e envia-nos natildeo agraves coisas mesmas mas ao modo como o discurso as expressa

Essas duas caracteriacutesticas segundo ele satildeo proacuteprias da arte Essa ambiguidade do discurso

aberto que natildeo tem a mesma conotaccedilatildeo da anaacutelise anterior de Danto no Dilema de Eu-

riacutepedes reforccedila a distinccedilatildeo baacutesica entre arte e campos que se supotildeem direcionados apenas

agrave objetividade como a ciecircncia enquanto o discurso da arte eacute equiacutevoco o desses campos eacute

uniacutevoco ou pelo menos pretende ser

Em primeiro lugar o discurso da arte eacute ambiacuteguo porque natildeo pretende oferecer uma

definiccedilatildeo da realidade que seja plena e cabal

[] o discurso artiacutestico nos coloca numa condiccedilatildeo de ldquoestranhamentordquo de ldquodespaisamentordquo apresenta-nos as coisas de um modo novo para aleacutem dos haacutebitos conquistados infringindo as normas da linguagem agraves quais haviacuteamos sido habituados As coisas de que nos fala nos aparecem sob uma luz estranha como se as viacutessemos agora pela primeira vez precisamos fazer um esforccedilo para compreendecirc-las para tornaacute-las familiares precisamos intervir com atos de escolha construir-nos a realidade sob o impulso da mensagem esteacutetica sem que esta nos obrigue a vecirc-la de um modo predeterminado Assim a mi-nha compreensatildeo difere da sua e o discurso aberto se torna a possibilidade de discursos diversos e para cada um de noacutes eacute uma contiacutenua descoberta do mundo (eco 1988 p 280)

Como afirma Eco (1988 p 280) a mensagem que proveacutem do discurso aberto natildeo se

consuma sempre respondendo diversamente para cada um que tenha acesso ao discurso

Talvez em parte por causa dessa caracteriacutestica noacutes retornamos mais de uma vez para a fruiccedilatildeo

de uma mesma obra de arte E estando essa obra carregada de possibilidades discursivas

jaacute que eacute ambiacutegua sempre nos atingiraacute e nos ofereceraacute algo novo em sua apreciaccedilatildeo

Em segundo lugar o discurso da arte vai em direccedilatildeo ao modo como expotildee seus ob-

jetos e natildeo aos objetos mesmos Natildeo importa por exemplo se uma maccedilatilde pintada em

uma natureza morta assemelha-se mais ou menos com uma maccedilatilde real O que importa eacute

165

que ela se abre para um modo diverso de percepccedilatildeo e revela sempre algo mais Este modo

diverso de percepccedilatildeo que o discurso aberto propicia por sua capacidade de revelar algo

mais natildeo busca a simples imitaccedilatildeo Assim um elemento importante a ser ressaltado eacute que

tal caracteriacutestica ainda que natildeo explicitada ou pretendida por Eco estabelece a conexatildeo

dessa categoria de discurso com o conceito de miacutemesis em sua vertente aristoteacutelica

Em um exemplo distinto afastando-nos do modelo representacionista de arte um

ready made de Duchamp como A fonte (figura 35) natildeo tem a intenccedilatildeo ou natildeo assume

como primeira intenccedilatildeo enviar-nos ao objeto que a originou isto eacute a um urinol Como

diz Eco a arte ldquonatildeo quer agradar e nem consolar mas colocar problemas renovar a nossa

percepccedilatildeo e o nosso modo de compreender as coisasrdquo (eco 1988 p 280)

Quando vai tratar do discurso persuasivo Umberto Eco lembra-nos que o primeiro

teoacuterico a abordar essa categoria de mensagem foi Aristoacuteteles ao estudar as suas diversas

modalidades na Arte retoacuterica Tanto quanto em A poeacutetica Aristoacuteteles escreve esse tratado

visando ao mesmo tempo descrever um determinado tema e prescrever maneiras de uti-

lizar as teacutecnicas advindas do seu estudo descritivo Analisemos como Eco apresenta-nos

a divisatildeo que Aristoacuteteles faz para o discurso persuasivo

Figura 35 Fotografia de A fonte (1917) de Marcel Duchamp fonte tateorg

166

[] Persuasivos satildeo o discurso judiciaacuterio o discurso poliacutetico e o discurso da propaganda [] Ele [Aristoacuteteles] examinou os modos do discurso deliberativo (poliacutetico) judiciaacuterio e epidiacutetico (ieacute o discurso em louvor ou em reprovaccedilatildeo de qualquer coisa diriacuteamos hoje ldquoo discurso publicitaacuteriordquo) e prescreveu as regras de um discurso que partindo de ldquoopiniotildees comunsrdquo leve o ouvinte a assentir a concordar com aquele que fala Nesse sentido o discurso persuasivo quer convencer o ouvinte com base naquilo que ele jaacute sabe jaacute deseja quer ou teme O discurso persuasivo tende a confirmar o ouvinte nas suas opiniotildees e conven-ccedilotildees Natildeo lhe propotildee nada de novo natildeo o provoca mas o consola assim hoje a publicidade me induz a comprar aquilo que eu jaacute desejo e a desejar aquilo que natildeo desejo mas responde agraves minhas tendecircncias secretas fotonovelas e histoacuterias em quadrinhos me fazem rir chorar ou estremecer com os problemas de sempre os sinais de traacutefego me levam a parar ou a passar referindo-se a necessidades elementares de seguranccedila ao medo do acidente ao temor de uma multa (eco 1988 p 281) Itaacutelico nosso

Nessa citaccedilatildeo algo que nos chama a atenccedilatildeo satildeo os exemplos que Eco oferece para as

classes de discurso persuasivo de Aristoacuteteles Particularmente o epidiacutectico ou demonstra-

tivo eacute o que nos interessa por uma de suas caracteriacutesticas o elogio Natildeo eacute difiacutecil associar o

discurso epidiacutectico ao discurso subjacente ao design principalmente depois do passo dado

por Umberto Eco ao associaacute-lo agrave publicidade E podemos usar os mesmos argumentos de

Eco da citaccedilatildeo anterior mudando apenas o sujeito da oraccedilatildeo de publicidade para design

e afirmar que o design ldquome induz a comprar aquilo que eu jaacute desejo e a desejar aquilo que

natildeo desejo mas responde agraves minhas tendecircncias secretasrdquo

Assim aproveitando ainda as palavras de Eco uma vez que o discurso epidiacutectico

responde tambeacutem agraves nossas ldquotendecircncias secretasrdquo cabe ao design se antecipar a elas e criar

produtos jaacute inconscientemente desejados pelos consumidores E isso o design que se quer

estrateacutegico e que atua na relaccedilatildeo produtoconsumidorusuaacuterio sabe fazer Sabe inclusive

colocar certo ldquosaborrdquo de discurso aberto em seus produtos para atrair o consumidor e

futuro usuaacuterio ansioso por interagir criar ele mesmo sua obra personalizada e ter uma

experiecircncia iacutempar ao utilizaacute-lo para fins especiacuteficos ou natildeo Neste sentido a compreensatildeo

desses discursos aponta para uma resposta aquele algo mais detectado por noacutes anterior-

mente e atribuiacutedo a uma parcela de fim em si mesmo deslocado da esfera da arte pode se

explicar por meio da introduccedilatildeo de caracteriacutesticas do discurso aberto no design Foi o que

constatamos anteriormente com o espremedor de frutas o que conceitualmente sinaliza

167

para trabalhos como o de Philippe Starck enquanto referecircncia concreta da incorporaccedilatildeo

do discurso aberto ao universo do design

A figura 36 traz uma siacutentese da subseccedilatildeo atual Por um lado representa o movimento do

discurso aberto de Eco que parte da arte em direccedilatildeo ao design combinando seus atributos

com os conceitos aristoteacutelicos de miacutemesis (conexatildeo identificada na paacutegina 165) e de fim em

si mesmo determinada no paraacutegrafo anterior Por outro incorpora o discurso persuasivo

epidiacutectico proveniente da Retoacuterica de Aristoacuteteles no interior do design potencializando

as accedilotildees deste campo tambeacutem no acircmbito dos conceitos de miacutemeses e de fim em si mesmo

433 Do design agrave arte a metaacutefora epistemoloacutegica e os objetos sensiacuteveis

A descriccedilatildeo da subseccedilatildeo anterior elucida somente parte da questatildeo uma vez que satisfaz

somente um dos sentidos da relaccedilatildeo Aquele em que o discurso aberto proacuteprio da arte se

encaminha em direccedilatildeo ao design e pode se estabelecer em seu interior Resta ainda pensar

se ocorre o inverso eacute possiacutevel que o discurso persuasivo proacuteprio do design seja de algum

modo apropriado pela arte De novo Umberto Eco fornece subsiacutedios para iniciarmos

este segundo caminho

Atento a determinadas relaccedilotildees que se estabelecem no interior da cultura Eco percebe

a influecircncia que teorias cientiacuteficas exercem sobre grupos especiacuteficos na sociedade Entre

eles encontram-se o dos artistas interessados nos rumos das ciecircncias suas descobertas e

nas mudanccedilas culturais que as mesmas geram Tal interesse segundo Eco os conduz a

Figura 36 Esquema das origens e movimentos dos discursos aberto e persuasivo em suas conexotildees com a arte a comunicaccedilatildeo e o design fonte autor

ARISTOacuteTELESDISCU

RSO

ABER

TO

MIacuteMESIS + F

IM E

M SI

MESMO

DISCURSO PERSUASIVO

EPIDIacuteTICO

ECOARTE

RETOacuteRICA

DESIGN

168

proporem poeacuteticas baseadas nessas concepccedilotildees Na busca por explicar essa relaccedilatildeo entre

metodologia cientiacutefica e poeacutetica Eco sugere que ldquotoda forma artiacutestica pode ser encarada

[]comometaacuteforaepistemoloacutegicardquo(eco 1988 p 54) Itaacutelico nosso Assim segundo ele

em cada eacutepoca a arte incorpora por meio de metaacuteforas o modo pelo qual tanto a ciecircncia

quanto a cultura moldam as concepccedilotildees da realidade Em seguida Eco corrobora sua

hipoacutetese com exemplos posteriores agrave Idade Meacutedia ateacute o seacuteculo passado correlacionando

de modo plausiacutevel as poeacuteticas de alguns periacuteodos com as tendecircncias da ciecircncia

Natildeo eacute imprescindiacutevel concordarmos com o caraacuteter de necessidade da proposta de

Eco (explicitado com o adjetivo ldquotodardquo da citaccedilatildeo anterior) para admitirmos a plausibi-

lidade de sua concepccedilatildeo Nem tampouco eacute necessaacuterio aderirmos agrave sua visatildeo de que no

seacuteculo xx o conceito de complementaridade8 da mecacircnica quacircntica assume o posto de

ldquometaacutefora epistemoloacutegicardquo para diversos modelos adotados de poeacuteticas Eacute preciso cautela

com tal constructo evitando polarizar ou estreitar as possibilidades do universo artiacutestico

de uma eacutepoca em torno de programas cientiacuteficos No nosso entendimento o interesse

pela diversidade que eacute proacuteprio da arte conduz agrave incorporaccedilatildeo e exploraccedilatildeo de novas

descriccedilotildees da realidade propostas pela ciecircncia como ocorre tambeacutem de um modo geral

com a cultura Aleacutem disso mesmo admitindo a concepccedilatildeo de metaacutefora epistemoloacutegica

como capaz de influenciar pelo menos em parte os rumos da arte esse caminho que

parte da ciecircncia em direccedilatildeo agrave arte natildeo explica o segundo sentido da relaccedilatildeo que vai do

design ateacute agrave arte pois apesar de termos em conta a relevacircncia da objetividade no design

natildeo o entendemos como ciecircncia estrita Em outras palavras uma vez que chegamos no

capiacutetulo passado agraves transposiccedilotildees da antinomia kantiana para o campo do design natildeo

podemos simplesmente substituir naquela formulaccedilatildeo o conceito de ciecircncia pelo de design

E mesmo que isso fosse possiacutevel tal recurso natildeo abarcaria um dos componentes essenciais

de nossa proposta a saber seu vieacutes ontoloacutegico Mas essa caracteriacutestica pode ser resgatada

se retornarmos a um autor que natildeo abre matildeo da ontologia Assim deixemos essa parte

8 Sendo o princiacutepio de complementaridade da fiacutesica estabelecido a partir de descriccedilotildees experimentais de sistemas quacircnticos que se excluem mas descrevem aspectos complementares do fenocircmeno fiacutesico (como a dualidade entre onda e partiacutecula) Eco considera que na arte contemporacircnea de forma cor-relata as diversas possibilidades interpretativas se complementam e tambeacutem se excluem Jaacute em nossa proposta fundada na miacutemesis aristoteacutelica a complementaridade com o real eacute um caminho do meio e portanto natildeo excludente

169

da concepccedilatildeo de Eco que contribui indicando o caminho a natildeo se seguir e procuremos

em Danto a resposta a essa segunda parte constituinte da relaccedilatildeo A seguinte afirmaccedilatildeo

de Danto em um ensaio sobre Andy Warhol apresenta diversos elementos interligados

que podem subsidiar a construccedilatildeo deste sentido inverso da relaccedilatildeo

Tinha prometido dar alguma explicaccedilatildeo sobre como a exaltaccedilatildeo do ordinaacuterio ajudou a dar agrave arte uma consciecircncia de sua natureza filosoacutefica Os expressionistas abstratos certamente se assumiram como metafiacutesicos na pintura e acreditaram que a sua arte conectava-se com uma seacuterie de sentidos a que tinham acesso pelo inconsciente Eles usaram a linguagem da filosofia com rebuscamento e falaram com familiaridade sobre o Self o noumecircnico o Ding an sich O mundo ordinaacuterio como na grande tradiccedilatildeo vinda de Platatildeo era menosprezado como inferior como mero como alheio agrave realidade com a qual supunham-se em contato A relaccedilatildeo entre arte e realidade natildeo poderia ser constituiacuteda nas estruturas que eles tornaram possiacuteveis Soacute poderia ser quando se pudesse aceitar um objeto ordinaacuterio ie ver que alguma coisa poderia ser arte e ainda se parecer com um objeto ordinaacuterio da mesma forma que os objetos ordinaacuterios se parecem entre si Uma vez que isso foi possiacutevel ficou imediatamente claro que a arte natildeo era o que a teoria dos expressionistas abstratos havia promulgado e natildeo poderia ser filosoficamente concebida enquanto estivesse naquela forma O entendimento filosoacutefico comeccedila quando se percebe que nenhuma propriedade visiacutevel distingue a realidade da arte em geral E isso foi algo que finalmente Warhol demonstrou (danto 2001 p 112)

Na citaccedilatildeo anterior o primeiro ponto significativo para a nossa posiccedilatildeo eacute a contra-

posiccedilatildeo que Danto faz entre a atitude dos expressionistas abstratos e a atitude de Warhol

Danto identifica os primeiros com a mesma postura advinda de Platatildeo de criacutetica ao mundo

sensiacutevel ldquomundo ordinaacuteriordquo nas palavras de Danto Subjacente agrave posiccedilatildeo dos expressio-

nistas abstratos eacute que se para Platatildeo a arte enquanto imitaccedilatildeo busca seus objetos no

mundo sensiacutevel e isso como vimos no capiacutetulo 2 eacute condenado por esse filoacutesofo deve-se

afastaacute-la do mundo sensiacutevel buscando no mundo inteligiacutevel a verdadeira realidade Natildeo

sem razatildeo Danto os rotula ldquometafiacutesicos da pinturardquo

Ao unir Platatildeo ao Expressionismo Abstrato contrapondo-os agrave Pop-Art na figura de

Warhol Danto ao mesmo tempo favorece trecircs pontos em nossa posiccedilatildeo

1 Confirma a nossa escolha por Warhol uma vez que este artista conscientemente ou natildeo

faz parte dos que criticam a posiccedilatildeo platocircnica e a tradiccedilatildeo que a segue tradiccedilatildeo essa

que concebe a realidade de modo hierarquizado onde o sensiacutevel natildeo tem relevacircncia

170

2 Concomitante ao primeiro ponto se o sensiacutevel tem relevacircncia na constituiccedilatildeo da

realidade significa que o ordinaacuterio passa a ter seu status ontoloacutegico reconhecido

3 Possibilita a associaccedilatildeo dos ldquoobjetos ordinaacuteriosrdquo com os objetos de design

Analisando a lista anterior em relaccedilatildeo ao primeiro item e agrave duacutevida sobre Warhol

estar consciente do que faz enquanto artista Danto natildeo acredita na sua ingenuidade

mas cita diversos personagens da cena nova-iorquina das deacutecadas de 1960 e 1970 que

pensam assim Entre eles o escritor Thom Jones potildee nas palavras de um narrador de suas

histoacuterias a seguinte afirmaccedilatildeo

Ele [Andy Warhol] mdash o que ele tinha era como uma grande antena de raacutedio Funcionava em todas as vibraccedilotildees coacutesmicas Ele apenas fazia as coisas acho que natildeo sabia a metade delas Ele era um desses idiotas engenhosos penso Suas pinturas satildeo muito vagas Vick Natildeo consigo fazer uma leitura delas (jones Thom ldquoThe pugilist at restrdquo 1993 apud danto 2004 p 99)

A descriccedilatildeo de Jones contraacuteria agrave compreensatildeo de Danto carrega um tom criacutetico ao subs-

titiuir a consciecircncia pela inspiraccedilatildeo na caracterizaccedilatildeo de Warhol comparando-o com ldquouma

grande antena de raacutediordquo Subjacente a tal afirmaccedilatildeo encontra-se uma tradicional concepccedilatildeo

de arte enquanto atividade inspirada que vem pelo menos desde Platatildeo No diaacutelogo Iacuteon

(cf citaccedilatildeo de Ribeiro nota 5 p 151) Platatildeo afirma que o poeta e o rapsodo natildeo se guiam

por uma teacutekhne ou episteacuteme mas falam fora de si possuiacutedos pelo deus entusiasmados e

sem consciecircncia Natildeo obstante esse entendimento que Jones expressa sobre Warhol e seu

trabalho mantemos nossa posiccedilatildeo apoiados na interpretaccedilatildeo de Danto Como veremos

no proacuteximo capiacutetulo este artista tem mais a nos revelar em suas obras e afirmaccedilotildees

Quanto ao segundo ponto da lista a inclusatildeo e a defesa de Danto em favor de uma

ontologia do sensiacutevel explorando o trabalho de Warhol (e obviamente contrariando a

posiccedilatildeo platocircnica) coaduna com as concepccedilotildees em retrospecto de Bonsiepe Maldona-

do Cardoso Flusser e Aristoacuteteles Todos eles evidentemente com as particularidades

de seus interesses e objetos de estudo procuram preservar esse aspecto da realidade que

fundamenta a empiria e o pragmaacutetico de seus campos de atuaccedilatildeo

Por uacuteltimo eacute faacutecil de se identificar a equivalecircncia do terceiro ponto (entre objetos

ordinaacuterios e do design) quando pensamos que Warhol parte por exemplo de caixas de

sabatildeo e latas de sopa (figura 37) e as ldquotransfigurardquo em obras de arte Com essa implicaccedilatildeo

171

muacutetua completamos nosso movimento que sai do design e chega ateacute a arte constituindo

o inverso do caminho na seccedilatildeo anterior nessas relaccedilotildees

A figura 38 apresenta alguns dos exemplos analisados neste capiacutetulo e suas conexotildees

com a arte e o design No entanto apesar da configuraccedilatildeo simples e dos poucos elementos

que compotildeem o graacutefico devemos estar atentos para a complexidade da base conceitual que

subjaz aos trecircs objetos representados (o urinol a caixa de sabatildeo e o espremedor de frutas)

Figura 37 Fotografias da Brillo box (1964) e dos 32 quadros das latas de sopa Campbell (1962) criados por Andy Warhol fonte momaorg

Figura 38 Esquema dos dois sentidos de apropriaccedilatildeo da arte e do design fonte autor

ARTE

DESIGN

172

Do ponto de vista da aparecircncia ou do sensiacutevel natildeo eacute possiacutevel distinguir quais satildeo

obras de arte quais satildeo artefatos de design ou quais se encontram no meio do caminho

entre um campo e outro Assim como defendemos anteriormente apoiados em Danto

(2005) apesar das diferenccedilas ontoloacutegicas entre design e arte no acircmbito da experiecircncia

sensiacutevel cada vez mais torna-se difiacutecil identificar o que eacute arte e o que natildeo eacute

Existe uma circularidade na figura 38 em que a parte esquerda indica o caminho do

design ateacute a arte em que se transfiguram um urinol em A fonte e uma embalagem de sabatildeo

em poacute na Brillo Box Mas na parte direita no sentido inverso natildeo satildeo obras de arte que

se convertem em artefatos mas objetos do design que passam a incorporar caracteriacutesticas

ateacute entatildeo exclusivas do universo artiacutestico Em outras palavras se existe uma simetria nos

processos e conceitos que envolvem a passagem de um campo ao outro esta se daacute no

primeiro sentido com a arte se apropriando de objetos do design ao alterar seus significa-

dos e no segundo com o design se apropriando de conceitos da arte tambeacutem alterando os

significados de seus objetos

173

5 A PRODUCcedilAtildeO DE OBJETOS NO MUNDO SENSIacuteVEL

A partir das anaacutelises de obras de arte e objetos do design estabelecidas no capiacutetulo anterior

o caminho agora eacute de verticalizaccedilatildeo da investigaccedilatildeo na praacutexis do design e da arte man-

tendo a circunscriccedilatildeo nos nomes de Marcel Duchamp Andy Warhol e Philippe Starck

No entanto natildeo eacute nossa intenccedilatildeo proceder de forma catalograacutefica dada a existecircncia de

inuacutemeras pesquisas dessa natureza (em parte pela relevacircncia e celebridade conquistadas

pelos artistas e designer em foco) mas tambeacutem porque do ponto de vista da apresen-

taccedilatildeo de exemplos relacionados aos conceitos investigados entendemos que o capiacutetulo

anterior cumpre este papel sem procurar ser um registro empiacuterico de comprovaccedilatildeo pela

quantidade Diante dessa delimitaccedilatildeo inicial o objetivo neste capiacutetulo se concentra no

quarto e uacuteltimo item do meacutetodo (cf capiacutetulo 1 p 49) na ampliaccedilatildeo da identificaccedilatildeo dos

conceitos jaacute elaborados a partir das produccedilotildees de objetos do design e da arte tornando

mais evidentes suas estruturas

Esse procedimento acreditamos permite o aprofundamento na compreensatildeo das

trajetoacuterias e produccedilotildees desses dois campos e alguns dos consequentes desdobramentos

em suas relaccedilotildees uma vez que os trecircs nomes investigados contam com trabalhos (prin-

cipalmente Duchamp e Warhol) minimamente afastados no tempo para permitirem o

uso do criteacuterio histoacuterico dos ldquopontos focaisrdquo de Cassirer (1992) de modo mais objetivo

analiacutetico e distanciado Na medida em que os autores estudados atuam em suas aacutereas

de modo predominantemente pragmaacutetico o que normalmente se espera de artistas e

designers intensifica-se a necessidade de recorrermos a estudiosos contemporacircneos de

perfil teoacuterico especializados na pesquisa das obras e vidas desses trecircs profissionais para

suportar e corroborar nossos argumentos

Para a anaacutelise de Marcel Duchamp e Andy Warhol retornamos a dois autores centrais

aos capiacutetulos anteriores Arthur Danto e Thierry de Duve Com relaccedilatildeo a Arthur Danto

desta vez procuramos apoio principalmente em dois de seus trabalhos especiacuteficos e recentes

mais ligados agraves atuaccedilotildees dos artistas do que propriamente agrave constituiccedilatildeo de sua complexa

teoria sobre a arte Assim exploramos o artigo O filoacutesofo como Andy Warhol de 2004 e

o livro Andy Warhol Arthur C Danto de 2012 em que o proacuteprio Danto afirma buscar

174

ldquoum texto de faacutecil leitura[1] em linguagem agradaacutevelrdquo (danto 2012 p 19) E com Tierry

de Duve retomamos um artigo sobre Duchamp de 2010 O que fazer da vanguarda Ou

o que resta do seacuteculo 19 na arte do seacuteculo 20 Para Philippe Starck nos baseamos nos livros

homocircnimos Philippe Starck da historiadora do design Judith Carmel-Arthur de 2000

e da jornalista e criacutetica de arte Cristina Morozzi de 2012 assim como em um capiacutetulo do

livro organizado pela curadora de design Valeacuterie Guillaume Scritti Su Starck de 2004

escrito pelo filoacutesofo Michel Onfray Nossa abordagem em diaacutelogo com esses pesquisa-

dores constitui a base preferencial para as duas seccedilotildees deste capiacutetulo

Assumir autores de perfil teoacuterico como nossos interlocutores principais possibili-

tando a mediaccedilatildeo com Duchamp Warhol e Starck natildeo significa deixar de atentar para

as declaraccedilotildees dos dois artistas e do designer acerca de seus trabalhos Fazemos incursotildees

em textos relatos e afirmaccedilotildees de Warhol e Starck Como veremos entre as criaccedilotildees e suas

narrativas e discursos especialmente no caso de Philippe Starck podem ser identificadas

divergecircncias conceituais o que natildeo deve causar surpresa por tratar-se de um profissional

acentuadamente inclinado para o acircmbito criativo e projetivo e natildeo teoreacutetico Em certo

sentido essas afirmaccedilotildees trazem a tona algumas das caracteriacutesticas dos discursos de ma-

nifestos que permeiam a histoacuteria da arte e do design

Os manifestos em design a comeccedilar pelo nome assumido pelos designers que os

propotildeem ainda hoje guardam semelhanccedila estrutural com os manifestos em arte e se dis-

tanciam do modelo de persuasatildeo estabelecido de um modo geral pelas ciecircncias Como

sabemos as ciecircncias mesmo quando propotildeem alteraccedilotildees radicais em suas teorias publi-

cam seus enunciados de mudanccedilas preferencialmente na forma de artigos e livros Se

pensarmos do ponto de vista epistemoloacutegico por exemplo como assevera Popper (1993)

poderiacuteamos dizer grosso modo que os cientistas buscam incessantemente questionar e

falsear suas teorias Se nos apoiarmos diversamente em Kuhn (1962) admitiremos que

1 Nesta obra Danto alerta-nos que natildeo se deteraacute nos aspectos ontoloacutegicos de constituiccedilatildeo de uma teoria voltando-se mais para o artista Warhol e sua obra ldquoNatildeo vou me aprofundar aqui no que os filoacutesofos denominam ontologia da obra de arte mdash o que eacute uma obra de arte mdash quais as condiccedilotildees necessaacuterias para que um objeto seja uma obra de arte A esse respeito peccedilo ao leitor que procure meus estudos sobre filosofia da arte Em contraposiccedilatildeo os vaacuterios desafios de Andy agraves definiccedilotildees dos filoacutesofos e outros pensadores sobre a arte satildeo insignificantes se comparadas agraves caixas de super-mercadordquo (danto 2012 p 94)

175

subjacente agrave cada teoria existe uma ldquocrenccedilardquo no paradigma que a fundamenta e que parte

da comunidade cientiacutefica soacute comeccedila a questionaacute-lo quando surgem problemas profundos

e resistentes ateacute a soluccedilotildees ad hoc nessa teoria

Pode-se aderir agraves descriccedilotildees antagocircnicas de Popper ou Kuhn ou de outros epistemoacutelo-

gos contemporacircneos acerca de como e quando os cientistas questionam radicalmente suas

proacuteprias teorias e regras dispostos a abandonaacute-las por novas concepccedilotildees Diversamente disso

por tudo o que investigamos ateacute este momento sabemos que permanece uma distacircncia entre

o modelo de questionamento assumido por cientistas mas natildeo plenamente implementado

por designers e claramente avesso ao tipo de questionamento que propotildeem os artistas Com

esses elementos em consideraccedilatildeo entendemos ser imprescindiacutevel examinar os ldquopontos focaisrdquo

representados por Duchamp Warhol e Starck e suas obras tendo em conta suas posiccedilotildees

e afirmaccedilotildees mas tambeacutem o crivo da anaacutelise dos estudiosos que os investigam

51 ldquoPontos focaisrdquo na arte Andy Warhol e Marcel Duchamp

O tiacutetulo desta seccedilatildeo inicia-se deliberadamente com uma inversatildeo cronoloacutegica ao colocar

Andy Warhol que atua intensamente nos anos de 1960 e 1970 precedendo a Marcel

Duchamp que estabelece um fulcro na arte institucionalizada ainda no final da segunda

deacutecada do seacuteculo xx Subjacente a essa transgressatildeo histoacuterica encontra-se nosso interesse

(e de certo modo tambeacutem de Arthur Danto por motivos completamente distintos do

nosso) em destacar a relevacircncia de Warhol para a contemporaneidade da arte e da cultura

de um modo exclusivo em relaccedilatildeo agrave proposta radical e originaacuteria de Duchamp

Danto defende sua posiccedilatildeo em diversos momentos e obras Sua convicccedilatildeo parece em

parte ser reforccedilada por uma compreensatildeo diversa daquela de seus colegas criacuteticos de que

Warhol natildeo tinha exatamente consciecircncia do que ele mesmo propunha como arte O proacute-

prio Danto se questiona a princiacutepio sobre a relevacircncia da Pop-Art e de seus seguidores

Eu havia me mudado para Nova York apoacutes a guerra motivado por um imenso entusiasmo pela arte da Escola de Nova York na qual esperava fazer carreira como artista Eu era veterano de guerra e possuiacutea uma bagagem educacional que decidira aplicar ao estudo da filosofia Embora tivesse feito algum sucesso

176

como artista a filosofia acabou se revelando mais interessante para mim No princiacutepio de 1960 eu era professor da Universidade Coluacutembia e estava em gozo de um periacuteodo sabaacutetico na Europa onde pretendia escrever meu primeiro livro Foi na Biblioteca Americana de Paris que vi pela primeira vez um trabalho da arte pop uma reproduccedilatildeo em preto e branco publicada na revista artnews Seu tiacutetulo era O beijo de Roy Lichtenstein [figura 39] e parecia ter sido recortada da seccedilatildeo de quadrinhos de um jornal americano Basta dizer que fiquei pasmo Eu tinha certeza de que aquilo natildeo era arte mas no decorrer de minha temporada em Paris fui aos poucos elaborando a ideia de que se aquilo era arte qualquer coisa podia ser arte Tomei entatildeo a decisatildeo de ver tudo o que pudesse da arte pop quando voltasse aos Estados Unidos (danto 2012 p 11-12)

Essa perplexidade e incompreensatildeo inicial de Danto e a sua consequente recusa da

Pop-Art daacute lugar a uma visatildeo diversa em relaccedilatildeo aos seus colegas criacuteticos da eacutepoca

Eu fico frequumlentemente impressionado com a ironia de que algueacutem tatildeo inveros-siacutemil como Warhol que parecia tatildeo pouco dotado de dons e poderes intelectuais no mundo das artes tatildeo ldquomaneirordquo tatildeo ligado na baixa cultura mdash kitsch mdash pudesse ter introduzido intuiccedilotildees filosoacuteficas tatildeo aleacutem daqueles seus pares que liam Kant ou que arrotavam existencialismo citavam Kierkegaard e usavam o vocabulaacuterio mais complicado e erudito Quando eu em um ensaio que publiquei na eacutepoca da sua exposiccedilatildeo retrospectiva poacutestuma no Museu de Arte Moderna

mdash MoMA reivindiquei que ele era o mais proacuteximo de um gecircnio filosoacutefico que a arte do seacuteculo vinte havia concebido fui abordado com pouca aceitaccedilatildeo pela grande maioria dos meus amigos que o considerava num patamar intelectual muito abaixo (danto 2004 p 113)

Figura 39 Reproduccedilatildeo da pintura O beijo (1961) de Roy Lichtenstein fonte image duplicatorcom

177

Danto prossegue com sua anaacutelise procurando encontrar os elementos subjacentes agrave

icocircnica imagem de Warhol imagem essa que o proacuteprio artista ajudou a cunhar naquela

eacutepoca com suas atitudes e afirmaccedilotildees aparentemente banais E como em outras anaacutelises

do filoacutesofo a Brillo Box eacute seu exemplo preferido

Uma fotografia de Warhol entre suas caixas [figura 40] parece indistinguiacutevel de uma fotografia de um funcionaacuterio entre as caixas do supermercado Com que licenccedila podemos supor que podemos diferenciar uma obra de arte de um objeto meramente utilitaacuterio Um eacute feito de compensado e o outro de caixa de papelatildeo mas pode a diferenccedila entre arte e realidade residir numa diferenccedila que

ldquopoderia ser de outro modordquo (danto 2004 p 105-106)

Na citaccedilatildeo anterior a propoacutesito de expor a forma trivial como a arte de Warhol era

divulgada pelo proacuteprio artista Danto retoma um dos pontos que perpassa sua concepccedilatildeo

Figura 40 Fotografia da instalaccedilatildeo Warhol (1964) Stable Gallery Nova York fonte revista ars

178

ao longo de sua carreira como filoacutesofo da arte O cerne encontra-se na mesma pergunta

que jaacute vimos Danto expressar com outras palavras como diferenciar uma obra de arte de

um objeto utilitaacuterio E obviamente como filoacutesofo Danto faz o exerciacutecio de sua reflexatildeo

conectar-se com a origem ocidental desse problema

A indagaccedilatildeo sobre a definiccedilatildeo de arte fazia parte da filosofia desde o tempo de Platatildeo Mas Andy nos obrigou a repensar a questatildeo de modo inteiramente novo O novo formato da antiga questatildeo era a seguinte dados dois objetos de aparecircncia exatamente igual como eacute possiacutevel que um deles seja uma obra de arte e o outro apenas um objeto comum (danto 2012 p 92)

Acrescentando um elemento a mais agrave jaacute complexa questatildeo da diferenciaccedilatildeo Danto

lembra-nos que o projeto graacutefico das caixas de sabatildeo Brillo vendidas em supermercados

foi realizado por James Harvey que coincidentemente tambeacutem era pintor do Expres-

sionismo Abstrato estilo ao qual (como vimos no capiacutetulo anterior) a Pop-Art se opunha

frontalmente E como afirma Danto Harvey na condiccedilatildeo de autor do ldquoprojeto graacuteficordquo

da caixa de sabatildeo natildeo admitiria que esse seu trabalho de ldquoarte comercialrdquo mdash diriacuteamos

de design graacutefico mdash pudesse ser entendido como arte principalmente sendo ele um ex-

pressionista abstrato e obviamente recusando a licenciosidade da Pop-Art Nas palavras

de Danto

Harvey ficou espantado quando viu durante a inauguraccedilatildeo da exposiccedilatildeo das caixas de supermercado de Andy que a Stable Gallery estava vendendo por centenas de doacutelares as caixas que ele tinha projetado enquanto as dele natildeo valiam nada Mas Harvey com certeza natildeo julgava que suas caixas fossem arte Elas eram reconhecidamente arte comercial e como tais excelentes Deve ser possiacutevel explicar por que todo mundo se lembra da caixa de Brillo mas natildeo por exemplo das caixas de suco de maccedilatilde da Mott Natildeo cabe a Warhol o meacuterito pela genialidade do projeto graacutefico da Brillo Box o meacuterito eacute todo de Harvey mas cabe a Warhol o creacutedito por transformar em arte o que natildeo passava de um objeto absolutamente corriqueiro da vida cotidiana Foi ele quem transformou em escultura o que ningueacutem considerava arte E repetiu o feito com caixas de design ainda mais anoacutedinos que a embalagem de Brillo como a caixa de cereais Kelloggrsquos Cada uma das oito variedades de caixas era uma escultura e natildeo apenas a Brillo Box (danto 2012 p 92-93)

Esta citaccedilatildeo eacute de importacircncia capital por permitir compreender e articular alguns

dos elementos e circunstacircncias histoacutericas ligadas a criaccedilatildeo artiacutestica de Warhol e como elas

179

relacionam design e arte Danto eacute expliacutecito quanto a identificar que o artista Warhol eacute

o responsaacutevel por ldquotransformarrdquo um objeto do uso cotidiano em obra de arte escultural

a partir de um projeto graacutefico especiacutefico de outro artista que neste caso atua como de-

signer De nossa parte entendemos essa transformaccedilatildeo (ou transfiguraccedilatildeo como Danto

tambeacutem aprecia) operada pelo artista como um giro na significaccedilatildeo de um objeto e suas

caracteriacutesticas ontoloacutegicas E nisso se encontra a dupla relevacircncia de Warhol para a tese

1ordm A ocorrecircncia do giro ontoloacutegico fundamental para a nossa hipoacutetese se confirma na

accedilatildeo do artista

2ordm Essa confirmaccedilatildeo eacute explicitada em um objeto em que estaacute contida originalmente a

configuraccedilatildeo e a estrutura do design e se transforma em obra de arte

Warhol corrobora nossos argumentos ao narrar suas memoacuterias de maneira pessoal

e desprendida no livro Popismo (2013) no periacuteodo em que mdash enquanto trabalha com

ldquoarte comercialrdquomdash desperta para o mundo da arte

A pessoa que me formou como artista foi Emile de Antonio mdash quando conheci De eu era um artista comercial Nos anos 60 De ficou famoso por seus filmes sobre Nixon e McCarthy mas nos anos 50 ele havia sido agente de artistas plaacutes-ticos Fazia a ligaccedilatildeo de artistas com tudo desde cinemas de bairro ateacute lojas de departamentos e grandes corporaccedilotildees Mas soacute trabalhava com amigos se De natildeo gostasse de vocecirc natildeo se dava ao trabalho

De foi a primeira pessoa que conheci a ver a arte comercial como arte de verdade e a arte de verdade como arte comercial e ele fez todo o mundo artiacutestico de Nova York ver as coisas desse jeito tambeacutem (warhol hackett 2013 p 12)

Independentemente de Warhol creditar a Emile de Antonio a origem da compreensatildeo

de uma circularidade entre ldquoarte comercialrdquo e ldquoarte de verdaderdquo o que importa eacute a proacutepria

circularidade em si que permite a apropriaccedilatildeo de um acircmbito da realidade por outro

Diante disso eacute preciso retomar um ponto jaacute delimitado no capiacutetulo anterior (cf

p 169 - 171) derivado da contraposiccedilatildeo que propusemos entre PlatatildeoExpressionismo

Abstrato de um lado e WarholPop-Art de outro Procurando oferecer a exata dimensatildeo

da questatildeo haviacuteamos apresentado uma lista em trecircs itens indicando como a Pop-Art se

distingue e se afasta do Expressionismo Abstrato fundamentando-se na valorizaccedilatildeo do

180

mundo sensiacutevel e seus objetos ldquoordinaacuteriosrdquo Para os nossos interesses presentes vamos

nos ater aos dois uacuteltimos itens da lista (2) com a relevacircncia do sensiacutevel na constituiccedilatildeo

da realidade o ordinaacuterio passa a ter seu status ontoloacutegico reconhecido (3) a associaccedilatildeo dos

ldquoobjetos ordinaacuteriosrdquo com os objetos de design

Mas atentemos o ordinaacuterio no trabalho de Warhol natildeo se resume apenas agrave consti-

tuiccedilatildeo da imagem de suas obras O processo de produccedilatildeo tambeacutem tem sua significaccedilatildeo

Por um lado a caixa e outras obras de arte criadas por ele e montadas em seacuterie em seu

ateliecirc em uma linha de produccedilatildeo mdash natildeo sem razatildeo nomeado Factory (como conta um

de seus assistentes Gerard Malanga2) mdash mimetizam o processo da mecanizaccedilatildeo de uma

faacutebrica Por outro esse processo natildeo eacute simplesmente coacutepia de uma faacutebrica pois eacute execu-

tado manualmente por ele e seus assistentes com o cuidado e a atenccedilatildeo que suas obras

exigem Conforme Danto

Eacute como se a realidade natildeo fosse mecacircnica o suficiente para se acomodar a ima-ginaccedilatildeo de Warhol Eacute importante notar ainda que o trabalho era tatildeo central em sua concepccedilatildeo da arte que a ideia de usar como arte algo que natildeo resultasse do trabalho natildeo teria interesse nenhum para ele (danto 2012 p 77-78)

Tal imersatildeo no cotidiano da vida mescla de um lado elementos de projeto e produccedilatildeo

de objetos utilitaacuterios e de consumo como ocorre no design e de outro a criaccedilatildeo no fazer

artiacutestico Como resultado um dos seus sentidos eacute o escultural

Quando pensamos em escultura lembramos de Michelangelo Canova Rodin Brancusi ou Noguchi que criaram objetos uacutenicos de beleza e significado Antes de Warhol jamais ocorreria a algueacutem criar como escultura uma coisa semelhante a uma caixa de papelatildeo para transporte de mercadorias de consumo Warhol natildeo soacute fez exatamente isso como usou um processo que de certo modo parodiava a produccedilatildeo em massa (danto 2012 p 76)

2 Conforme Danto ldquoMalanga eacute nossa fonte principal sobre a confecccedilatildeo dessas caixas e sobre a ideia de Andy de organizar a Factory segundo linhas industriais um paradoxo porque as pessoas que participa-vam da Factory eram tudo menos robocircs lsquoAndy estava fascinado pelas prateleiras dos supermercados e pelo efeito repetitivo maquinal que criavam [hellip] Ele queria reproduzir esse efeito mas logo descobriu que a superfiacutecie de papelatildeo era impraticaacutevelrsquo Como o efeito em questatildeo eacute geralmente obtido pelo empilhamento de caixas de papelatildeo em armazeacutens e depoacutesitos eacute difiacutecil entender o que havia de errado com o papelatildeo que Warhol podia ter usado com muito menos esforccedilo simplesmente comprando as embalagens dos fabricantes e tratando-as como ready-madesrdquo (danto 2012 p 77-78)

181

Se retomarmos a fotografia de Warhol junto com as pilhas de caixas (cf figura 40

p 177) veremos como a ambiguidade do papel do artista combina com essa ldquoparoacutedia da

produccedilatildeordquo E a decisatildeo de investir um objeto de novos significados transfigurando-o de

artefato ou utensiacutelio em obra de arte recai assim sobre a responsabilidade do artista A

visatildeo de Danto se harmoniza com o que afirmamos ao final do capiacutetulo anterior (p 171-

172 sintetizada na circularidade da parte esquerda da figura 38) em que a arte se apropria

de objetos do design ao alterar seus significados

Um exemplo adicional no gecircnero da pintura mas com as mesmas caracteriacutesticas

da caixa de sabatildeo eacute o das latas de sopa Campbell que possui segundo Danto relatos

diferentes acerca de sua origem Entre aquelas que circulavam em Nova York a narrativa

da preferecircncia de Danto eacute a de que Warhol solicitou uma ideia agrave designer de interiores

Muriel Latow

Warhol disse a Latow que precisava de uma ideia ldquode grande impacto diferente de Lichtenstein e Rosenquist algo bem pessoal que natildeo pareccedila que estou fa-zendo exatamente o que eles fazemrdquo Latow respondeu-lhe que ele devia pintar alguma coisa que ldquotodo mundo vecirc todos os dias que todo mundo reconhecehellip como uma lata de sopardquo A proacutepria maneira como Warhol formulou a pergunta jaacute eliminava muitas possibilidades Ele natildeo estava interessado em pintar uma abstraccedilatildeo bonitinha e agradaacutevel ou Manhattan ao luar ou uma mulher bonita lendo uma carta perto da janela Tinha de ser algo ligado agrave cultura comum que ainda natildeo tivesse sido trabalhado por ningueacutem Algo que as pessoas comentas-sem mesmo sem ter visto (danto 2012 p 58)

Esse tipo de comportamento em relaccedilatildeo agraves ideias dos outros descrito por Danto na

citaccedilatildeo anterior eacute confirmado por Warhol em seu livro Popismo

ldquoNunca tive a menor vergonha de perguntar a algueacutem literalmente lsquoO que devo pintarrsquo porque o Pop vem de fora e que diferenccedila existe entre pedir ideacuteias a algueacutem ou procurar numa revista Henry [Henry Geldzahler curador do Me-tropolitan Museum of Art] entendeu isso mas algumas pessoas o desprezam se vocecirc pede conselho a elas natildeo querem saber nada sobre como vocecirc trabalha querem que vocecirc conserve a sua miacutestica para elas poderem te adorar sem fica-rem envergonhadas com as especificidadesrdquo (warhol hacket 2013 p 27)

Ao lado dessa atitude que pode como o proacuteprio Warhol diz incitar criacuteticas Danto

reforccedila aquela caracteriacutestica jaacute apresentada do trabalho de Warhol que desloca a atenccedilatildeo

182

do artista com uma ideia originaacuteria ponto de partida para uma obra de arte e vai ao

encontro das escolhas envolvendo os processos de criaccedilatildeo e diferentes gecircneros de arte

como as instalaccedilotildees compreendendo-os como centrais na produccedilatildeo artiacutestica Se Warhol

opta por natildeo necessariamente ser o autor da ideia ele natildeo simplesmente a executa como

um operaacuterio em uma linha de produccedilatildeo

Uma coisa eacute dizer ao artista que ele devia pintar latas de sopa outra eacute decidir como pintaacute-las A decisatildeo de Warhol envolveu mais que a mera pintura de uma lata de sopa Ele construiu um painel com trinta e duas telas (508 x 406 cm cada) organizadas em quatro fileiras de oito cada tela representando uma das variedades das sopas Campbell produzidas naquela eacutepoca mdash como uma insta-laccedilatildeo de retratos de pessoas notaacuteveis (danto 2012 p 58-59)

Tendo em consideraccedilatildeo a reconstituiccedilatildeo de alguns elementos das narrativas sobre o

processo de criaccedilatildeo de Warhol podemos assumir que Danto defende e destaca a relevacircncia

desse artista de um modo equivalente ao que entendemos como um ldquoponto focalrdquo na

histoacuteria da arte E este jaacute explicitamos anteriormente eacute um dos elementos que atua como

um dos noacutes na tese atando design e arte

Em termos ainda mais incisivos pode-se dizer que seria impossiacutevel que as caixas de Warhol fossem arte muito antes de 1964 O grande historiador da arte Heinrich Wolfflin disse que nem tudo eacute possiacutevel em todas as eacutepocas A histoacuteria da arte sempre estaacute aberta a novas possibilidades mas natildeo teria aberto a possibilidade de um objeto como uma caixa de Brillo ser arte digamos em 1874 quando a pintura impressionista era a vanguarda (danto 2012 p 91)

Mas Danto tambeacutem natildeo ignora a importacircncia histoacuterica de Duchamp Ele tem ple-

na consciecircncia de que ldquoa precedecircncia de Marcel Duchamp projeta uma certa sombra

sobre todos os subsequumlentes esforccedilos de delimitar as fronteiras da arterdquo (danto 2004

p 107) Assim ele argumenta sobre a clivagem distinta da proposta de Warhol para a

arte em relaccedilatildeo ao que aparentemente jaacute havia sido realizado em 1917 por Duchamp

com A fonte

De forma radical Danto afirma que (em princiacutepio) a indistinccedilatildeo entre obras de arte

e coisas reais decreta o que ele nomeia de ldquoO fim da Arterdquo (danto 2012 p 95) ou em

outras palavras o fim de uma histoacuteria acerca dos movimentos artiacutesticos Natildeo eacute nosso

183

propoacutesito analisar a concepccedilatildeo de Danto acerca do fim3 da arte tema que implica diversos

conceitos fora do escopo desta tese No entanto a expressatildeo fim da arte por si soacute denota

o grau de relevacircncia que este filoacutesofo atribui a Warhol natildeo somente dentro do fenocircmeno

da Pop-Art mas na histoacuteria da arte como um todo

Alguns criacuteticos me perguntam por que acho que Warhol pocircs fim agrave histoacuteria da arte da maneira como a entendiacuteamos antes mdash por que natildeo Duchamp com seus ready-mades Ora a verdade eacute que Andy fazia suas caixas enquanto Duchamp de maneira geral natildeo podia fazer seus ready-mades Soacute que nem todo objeto pode ser um ready-made jaacute que Duchamp os restringia a objetos indistinguiacuteveis do ponto de vista esteacutetico Mas por que fazer essa restriccedilatildeo a natildeo ser que se tenha uma persistente aversatildeo agrave arte retiniana (danto 2012 p 95)

Na concepccedilatildeo de Danto o que subjaz agrave posiccedilatildeo duchampiana eacute que ele criticava o

entendimento da esteacutetica claacutessica que valorizava o prazer visual ou o chamado sentido

ldquoretinianordquo ldquolsquoO deleite esteacutetico eacute o inimigo a ser derrotadorsquo mdash diz Duchamp com relaccedilatildeo

a esse gecircnero de trabalho pois os readymades segundo ele foram escolhidos precisamente

pela sua falta de interesse visualrdquo (danto 2004 p 107)

Enquanto Duchamp pode entre suas motivaccedilotildees usar ldquoo banal como um tipo de

bomba contra o conceito fortificado de arterdquo (danto 2004 p 108) e essa eacute uma atitude

natildeo soacute de Duchamp mas do movimento ao qual ele pertencia o Dadaiacutesmo Warhol

de modo distinto compreende o banal e o corriqueiro como algo que pode e deve ser

incorporado agrave arte Aleacutem disso segundo Danto Warhol com sua proposta coloca uma

pergunta de caraacuteter filosoacutefico mdash ultrapassando Duchamp que natildeo perguntou ldquopor que

todos os outros urinoacuteis natildeo eram obras de arterdquomdash ldquopor que a Brillo Box era uma obra

de arte enquanto as caixas de Brillo comuns eram meras caixas de Brillordquo (danto

2004 p 108)

Outra posiccedilatildeo que acrescenta mais elementos para a questatildeo e reforccedila os ldquopontos

focaisrdquo em Duchamp e Warhol eacute a de Tierry de Duve Em uma palestra que posterior-

mente foi publicada na forma de artigo de Duve primeiramente considera que somente

3 Danto natildeo eacute o primeiro teoacuterico a propor e tratar do tema do fim da arte Como vimos no capiacutetulo 1 (cf p 38) ele eacute precedido por filoacutesofos como Hegel Marx Nietzsche Lukacs Benjamin Heidegger Horkheimer e Adorno Para uma anaacutelise detalhada do tema ver Rodrigo Duarte (2006)

184

na deacutecada de 1960 a ldquomensagemrdquo de Duchamp foi assimilada o que em certo sentido

destaca o papel visionaacuterio deste artista

O mundo da arte natildeo acusou verdadeiramente a recepccedilatildeo da mensagem de Du-champ antes dos anos 60 quando nos rastros do neodadaacute (pop arte aliaacutes) da minimal art e da arte conceitual comeccedilou a definir-se de modo mais ou menos consciente como poacutes-duchampiano (de duve 2010 p 192)

No entanto se Duchamp foi o mensageiro para de Duve isso natildeo significa que ele

tenha sido responsaacutevel pela mensagem

Alguns ateacute atribuem o feito unicamente a Marcel Duchamp sempre ele ao inventar o ready-made Duchamp teria criado um novo gecircnero artiacutestico e um novo personagem o artista simplesmente Essa opiniatildeo comete o erro de inter-pretaccedilatildeo claacutessico ao fazer do mensageiro o responsaacutevel pela mensagem que traz Minha palestra de hoje tem o objetivo de corrigir esse erro de interpretaccedilatildeo A arte em geral natildeo substitui os meios tradicionais como a pintura e a escultura natildeo se vem juntar aos gecircneros tradicionais como a paisagem ou o nu natildeo eacute um novo estilo que se possa reconhecer por algum traccedilo comum como os ldquoismosrdquo abundantes no seacuteculo 20 A pintura e a escultura a paisagem e o nu e todos os

ldquoismosrdquo do seacuteculo 20 fazem parte ao contraacuterio da arte em geral jaacute que ela nada exclui e inclui aleacutem disso as praacuteticas recentes mdash a instalaccedilatildeo a arte conceitual ou a videoarte assim como outras que ainda natildeo tecircm nome De fato o teor da expressatildeo eacute o seguinte fazer arte com tudo e com qualquer coisa eacute hoje tecni-camente possiacutevel e institucionalmente legiacutetimo [] (de duve 2010 p 182-183)

Em outro trecho de Duve eacute mais expliacutecito em sua afirmaccedilatildeo ldquoDuchamp eacute apenas

o mensageiro Seja para o incensar ou maldizer eacute um erro de interpretaccedilatildeo atribuir ao

mensageiro a responsabilidade pelo conteuacutedo da mensagemrdquo (de duve 2010 p 186)

Quer concordemos ou natildeo com de Duve acerca do papel e consciecircncia do mensageiro

o que importa destacar no interior da posiccedilatildeo deduviana eacute o entendimento deste autor

de que a arte em geral ldquonada exclui e incluirdquo Tal compreensatildeo jaacute se encontra exposta

no capiacutetulo 3 quando vimos esse autor discordar das posiccedilotildees antagocircnicas de Clement

Greenberg e Joseph Kosuth (cf p 118-119) que se levadas ao extremo conduzem a uma

antinomia ou procurar uma continuidade na histoacuteria da arte entender o readymade

com uma fraude e rejeitar a antiarte e movimentos do Dadaiacutesmo em diante ou entender

a arte como conceitual depois do readymade e anular toda a arte anterior a Duchamp

185

Como vimos naquele momento de Duve de modo consistente recusa as duas posiccedilotildees

radicais e propotildee uma soluccedilatildeo mediadora baseada em Kant Danto de modo correlato

tambeacutem eacute partidaacuterio dessa inclusatildeo Ao final do livro A transfiguraccedilatildeo do lugar comum

eleapropoacutesitodaadmissatildeodaBrilloBoxnomundoarteafirmaldquoSuareivindicaccedilatildeo[ada

BrilloBox]pareceseraomesmotemporevolucionaacuteriaerisiacutevelelanatildeodesejasubvertera

sociedade das obras de arte mas ser admitida nela ocupando o mesmo lugar dos objetos

sublimesrdquo (danto 2005 p 296)

Atentos a esse espiacuterito de mediaccedilatildeo e inclusatildeo que atravessa as concepccedilotildees de Warhol

Danto Kant e de Duve do nosso ponto de vista tanto Duchamp quanto Warhol cum-

prem o giro ontoloacutegico com suas propostas independentemente da posiccedilatildeo que se assume

em relaccedilatildeo agrave quem tem mais relevacircncia se Duchamp ou Warhol

Quanto a aversatildeo agrave arte retiniana de Duchamp que natildeo procura mediaccedilatildeo e mostra-se

como uma das diferenccedilas entre o Dadaiacutesmo e a Pop-Art Danto acrescenta um comen-

taacuterio aos seus argumentos no tom leve que caracteriza seu livro Andy Warhol mas que

natildeo deixa de nos faz pensar sobre o sentido da vida cotidiana que Warhol e Duchamp

capturam cada um a seu modo atraveacutes dos objetos do mundo sensiacutevel (figura 41)

Uma coisa deve ser dita a respeito das Brillo Boxes elas satildeo muito bonitas Minha esposa e eu temos uma haacute anos e ainda nos maravilhamos com sua beleza Por que teriacuteamos de conviver com objetos esteticamente desinteressantes em vez de coisas tatildeo bonitas quanto a Brillo Box (danto 2012 p 95)

Figura 41 Fotografias de A fonte (1917) de Marcel Duchamp (esquerda) e da Brillo Box (1964) de Andy Warhol (direita) fontes tateorg e momaorg

186

Apesar das diferenccedilas conceituais entre os autores das anaacutelises desta seccedilatildeo acreditamos

que todos os envolvidos nas reflexotildees partilham da compreensatildeo de que na contempo-

raneidade a ampliaccedilatildeo dos domiacutenios da arte e do design leva cada um de noacutes a assumir

a responsabilidade de nossas escolhas quando decidimos sobre o que nos comove no

sentido de sermos movidos com a arte (cum-mouĕo) e tambeacutem com o design

A defesa que Danto faz da relevacircncia da Pop-Art e de Andy Warhol como ele mesmo

afirma encontra resistecircncia em outros criacuteticos americanos E Danto tambeacutem nos lembra

de mais uma interpretaccedilatildeo diametralmente oposta vinda da criacutetica europeia implicando

a Pop-Art com uma condenaccedilatildeo irocircnica agrave cultura e aos valores americanos

Estivesse ou natildeo correta a interpretaccedilatildeo dos europeus de que a arte pop conti-nha uma criacutetica da cultura dos Estados Unidos a verdade eacute que eles pelo menos perceberam que havia algo mais na nova arte do que nossos olhos americanos podiam ver De sua parte Andy ansiava por apresentar-se aos europeus como tudo menos um artista fuacutetil (danto 2012 p 9-10)

Contrabalanccedilando essas diversas posiccedilotildees criacuteticas a filoacutesofa Virginia Figueiredo

oferece sua contribuiccedilatildeo contextualizando a posiccedilatildeo de Danto

Natildeo tenho a menor ideacuteia se ele [Danto] concordaria com este epiacuteteto mas no meu modo de ver ele eacute ldquoO filoacutesofo da Pop-Artrdquo sintetizando-se aqui grossei-ramente sob o nome ldquoPop-Artrdquo a produccedilatildeo norte-americana de arte a partir do final dos anos 1950 e iniacutecio dos anos 1960) da qual talvez ele mais do que qualquer outro tentou extrair o aspecto criacutetico diminuindo a margem ambiva-lente a do elo inegaacutevel para muitos outros criacuteticos motivo de uma condenaccedilatildeo irreparaacutevel com o mercado e com a induacutestria cultural Sabe-se o quatildeo pequena foi a diferenccedila que a maioria dos criacuteticos viu entre o movimento da Pop-Art e a propaganda direta1⁶ Ainda no meu modo de ver Danto tenta pocircr a produccedilatildeo da arte contemporacircnea dos norte-americanos em sintonia com os movimentos da vanguarda europeacuteia do iniacutecio do seacuteculo xx Se natildeo em ldquosintoniardquo talvez em busca de um ldquolastrordquo ou de uma legitimaccedilatildeo histoacuterica visando agrave conquista de um lugar na histoacuteria mundial (internacional) daquela produccedilatildeo Tratava-se a meu ver portanto de um possiacutevel processo de ldquointernacionalizaccedilatildeordquo da arte norte-americana da chamada mudanccedila de referencial de Paris para Nova York Nada mais ldquopoliacuteticordquo portanto Natildeo eacute agrave toa que ele potildee em diaacutelogo de modo recorrente artistas como Andy Warhol e o francecircs Marcel Duchamp (1887-1968) (figueiredo 2005 p 449-450)

16 Cf mccarthy David Arte Pop Trad Otaciacutelio Nunes Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2002 p 35 [nota em peacute de paacutegina da autora]

187

Mas as palavras do proacuteprio Warhol natildeo negam a importacircncia que o mercado de con-

sumo tem para os norte-americanos e para ele O entendimento que Warhol tem acerca

do consumismo do qual ele natildeo vecirc problema em assumir se releva em obras como a da

figura 42 e em seu livro A filosofia de Andy Warhol de A a B e de volta a A

Comprar eacute muito mais americano que pensar e eu sou absolutamente ameri-cano Na Europa e no Oriente as pessoas gostam de comerciar mdash comprar e vender e vender e comprar satildeo basicamente mercadoras Americanos natildeo estatildeo interessados em vender mdash na verdade eles preferem jogar fora a vender O que eles realmente pensam eacute em comprar mdash pessoas dinheiro paiacuteses (warhol 2008 p 255)

Se a associaccedilatildeo da Pop-Art com o mercado induacutestria cultural e a propaganda direta

(e Warhol estaacute longe de negar tal viacutenculo) pode ser entendida como negativa por parte

da criacutetica artiacutestica por outro lado ela tambeacutem eacute indiacutecio de que a arte contemporacircnea

assume natildeo poder nem querer prescindir desses viacutenculos Esse eacute um dos pontos em co-

mum que a arte tem com diversos outros campos inclusive o design No entanto como

veremos na proacutexima seccedilatildeo consumo e consumismo satildeo caracteriacutesticas tatildeo generalizadas

e disseminadas na sociedade contemporacircnea que natildeo podem servir de paracircmetro para

as especificidades das relaccedilotildees de apenas dois campos

Figura 42 Reproduccedilatildeo do quadro 200 notas de um dolar (1962) de Andy warhol fonte sothebyscom

188

52 ldquoPonto focalrdquo no design Philippe Starck

No livro Philippe Starck da jornalista criacutetica e diretora de arte Cristina Morozzi o desig-

ner italiano Andrea Branzi abre a Apresentaccedilatildeo lembrando que Starck inicia sua carreira

ainda na deacutecada de 1970 ganhando destaque posteriormente nos anos 1980 a partir de

um trabalho para o governo de Franccedilois Mitterrand no palaacutecio Eacuteliseeacute

O presidente encarregou o jovem Starck de mobiliar o Palaacutecio do Eliseu sede do governo francecircs em Paris foi um sinal poderoso (que nenhuma outra naccedilatildeo europeacuteia tinha condiccedilotildees de acompanhar incluindo a Itaacutelia) de uma etapa na qual a cultura se tornava parte estrateacutegica de uma nova grandiosidade e cujos embaixadores no mundo eram os filoacutesofos os artistas os maestros e os jovens projetistas Philippe Starck representou o melhor natildeo soacute dessa nova e ambiciosa etapa mas tambeacutem da tradiccedilatildeo anterior formas ogivais cenografia ambiental invenccedilotildees ininterruptas de funccedilotildees novas e imprevisiacuteveis mdash um design que era simultaneamente antidesign teatro e decoraccedilatildeo urbana com arroubos de pura genialidade anunciando-se como Rei de Paris e ao mesmo tempo como Bobo da Corte (morozzi 2012 p 4)

A ambivalecircncia que caracteriza Starck retratada por Branzi entre o brilhantismo

de um ldquoReirdquo na criaccedilatildeo e a sua exposiccedilatildeo amplificada na miacutedia e no mercado como um

ldquoBobo da Corterdquo eacute algo que vende4 o conceito de designer como mais importante do que

o das empresas para as quais Starck trabalha E tal oposiccedilatildeo talvez sintetize o sentido

das palavras de Morozzi recorrendo a estudos na aacuterea da comunicaccedilatildeo para explicar a

celebridade associada agrave marca e ao nome Philippe Starck

Cristine Bauer docente da faculdade de Ciecircncia da Comunicaccedilatildeo na Universi-dade de Evry dedicou um ensaio a Le Cas Phlippe Starck ou de la Construction de la Notorieacuteteacute (Paris LrsquoHarmattan 2001) Durante um ano ela consultou os arquivos de Starck recolhendo definiccedilotildees que aparecem na foto ldquoUma lenda uma extraordinaacuteria combinaccedilatildeo de pop star e inventor maluco () astro do design francecircs que transforma tudo em design () o Picasso da deacutecada de 1990 () Philippe Starck estaacute para o design assim como uma mistura de Marcel Du-champ e Andy Warhol estaacute para a arterdquo (morozzi 2012 p 25)

4 No livro de Morozzi (2012) em detrimento da ideia de usuaacuterio os conceitos de consumo e consumidor satildeo recorrentes tanto no texto de Branzi quanto no da autora

189

De qualquer modo pelo tom das afirmaccedilotildees de Morozzi ela faz parte de um

grupo de pesquisadores que analisam o trabalho de Starck considerando que os

argumentos desse designer satildeo sempre coerentes Consequentemente ela natildeo toma

um distanciamento mais criacutetico como ocorre veremos com a historiadora do design

Judith Carmel-Arthur (2000) Morozzi afirma que ldquoNarrar paraacutebolas com palavras

e com objetos eacute a grande habilidade de Philippe Starckrdquo (morozzi 2012 p 32)

E mais a autora acredita que este designer eacute capaz de um ldquoencantamentordquo em seu

discurso

Se perguntam a Starck qual eacute o seu segredo ele responde ldquoA loquacidade Os filoacutesofos se calam por isso cabe ao designer explicar a vida e as coisasrdquo E com as palavras ele sabe encantar sempre encontrando bons argumentos Diz que seus projetos satildeo antes de tudo pretextos para contar histoacuterias e criar relacio-namentos como o Juicy Salif o espremedor da Alessi pouco eficiente como utensiacutelio mas oacutetimo para puxar uma conversa (morozzi 2012 p 25)

A ldquoloquacidaderdquo de Starck pode ser confirmada por ele mesmo quando conta acerca

do propoacutesito de seu espremedor de frutas

Philippe Starck em seu Starck Explications publicado pelo Centre Georges Pompidou por ocasiatildeo de sua mostra independente narra uma paraacutebola ldquoUm dia uma jovem recebe a sogra pela primeira vez Fica um pouco assustada e natildeo sabe o que falar Ganhara de presente o espremedor Juicy Salif A sogra pergunta lsquoMas o que eacute este objetorsquo A jovem fala de seu espremedor e a con-versa fica animada Estabelece-se um contato entre as duas mulheres que nem imaginavam que iriam se dar bemrdquo (morozzi 2012 p 32)

O tema repete-se em uma entrevista concedida agrave fotoacutegrafa e jornalista Marcelle Katz

onde ele conta sobre o seu processo de criaccedilatildeo

Certa vez em um restaurante eu tive essa visatildeo de um espremedor de limatildeo em forma de lula e comecei a projetaacute-lo e quatro anos depois ele ficou famosiacutessimo Mas para mim eacute mais uma micro-escultura simboacutelica que um objeto funcional Seu objetivo real natildeo eacute espremer milhares de limotildees mas permitir a um receacutem-casado entabular conversa com a sogra (carmel-arthur 2000 p 13)

Mas a quem a loquacidade de Starck se dirige As trecircs uacuteltimas citaccedilotildees trazem ele-

mentos comuns ao discurso de Starck que podem contribuir para entendermos estrateacutegias

190

impliacutecitas em suas narrativas aparentemente despretensiosas Primeiro a afirmaccedilatildeo do

proacuteprio designer de que um produto projetado por ele natildeo prioriza a funcionalidade

Partindo desse pressuposto expliacutecito resta a duacutevida se ele levou ou natildeo em 1990 tal pro-

posta de um projeto mais voltado a atributos natildeo funcionais agrave empresa que contratou seu

trabalho a italiana Alessi Em segundo como Branzi nos alerta Starck propotildee que ldquoa grife

do projetista eacute mais importante do que a marca da empresa que fabrica seus produtosrdquo

(morozzi 2012 p 4) Itaacutelico nosso Por exemplo a embalagem em que o espremedor eacute

vendido na atualidade tem o nome de Starck na parte superior da caixa junto agrave fotografia

do produto e a marca da empresa fabricante encontra-se na inferior Aleacutem disso uma foto

do designer eacute estampada como pano de fundo ocupando dois lados da caixa E entre os

escritos de marketing e publicidade inseridos na embalagem constam um slogan sobre

a empresa afirmando que a ldquoAlessi eacute um comerciante de felicidaderdquo e uma frase bem-hu-

morada sobre o produto ldquolsquoJuicy Salif rsquo poderia muito bem ser visto como um pequeno

alieniacutegena que passou a nos visitar em casardquo Traduccedilatildeo nossa (figura 43)

Poreacutem a despeito do discurso que orienta a divulgaccedilatildeo e venda do produto e do proacute-

prio conceito de ldquomicro-escultura simboacutelicardquo que Starck lhe atribui se nos dispusermos

Figura 43 Fotografia do espremedor de frutas da Alessi impressa na embalagem do produto fonte alessi

191

a usaacute-lo como um espremedor ele funciona com eficiecircncia5 Assim se por um lado ob-

temos a resposta para a pergunta sobre o alvo da loquacidade ser o consumidorusuaacuterio

por outro nova duacutevida se estabelece ateacute que ponto a funcionalidade natildeo eacute priorizada

Morozzi aponta para uma possiacutevel resposta que aparece entre parecircnteses

Sua grande qualidade eacute transformar o objeto banal em algo especial uacutenico a ponto de corresponder agraves expectativas inconscientes do consumidor E isso significa conferir agraves coisas normais natildeo apenas valores funcionais (no fundo a funcionalidade eacute dada como certa) mas dotaacute-las da capacidade de expressar mensagens poliacuteticas de amor de ternura impregnadas de humor (morozzi 2012 p 39)

Assim do nosso ponto de vista o que subjaz ao discurso de marketing da ldquoparaacutebolardquo

da sogra e da nora eacute o entendimento de que a funcionalidade jaacute se encontra estabeleci-

da e consequentemente pressuposta pelo designer e pelos clientes que demandam seus

projetos Starck enquanto designer sabe que a funcionalidade eacute essencial para que o seu

campo de trabalho preserve atributos como ergonomia e eficiecircncia entre outros o que

natildeo o impede de ampliar as possibilidades de significaccedilatildeo e ateacute de transfiguraccedilatildeo de seus

objetos criados Seus clientes querem vender mais em um mercado competitivo em que

os produtos tem atributos funcionais semelhantes

Atenta a esse aspecto Judith Carmel-Arthur afirma que Starck ldquoComo estrateacutegia de

marketing explora o culto agrave grife do objeto a fim de despojar os bens do significado fun-

cional primaacuterio transformando-os em artefatos de adoraccedilatildeo particular e inveja puacuteblica

simultaneamente imbui-os mais de fantasia que de fatordquo (carmel-arthur 2000 p 12)

De posse dessa interpretaccedilatildeo do artifiacutecio de Starck eacute necessaacuterio uma pausa para

cotejarmos sua proposta com outra que jaacute analisamos no capiacutetulo 2 e que seraacute frutiacutefera

5 Realizamos diversas praacuteticas informais de uso com turmas de Design na Universidade do Estado de Minas Gerais Apesar da difusatildeo da opiniatildeo inclusive entre possuidores desse artefato de que ele natildeo eacute um utensiacutelio bem projetado para sua tarefa e da inseguranccedila inicial que se sente com o apoio das matildeos em um tripeacute os estudantes se surpreendem com o seu funcionamento simples e eficiente ateacute para frutas maiores como laranjas E quanto agrave expectativa de quase todos diante da forma inusitada do espremedor de que ele natildeo conduziria o liacutequido para o recipiente de coleta comprova-se o con-traacuterio Outros atributos que os estudantes apontam satildeo a independecircncia em relaccedilatildeo agrave eletricidade e a facilidade de limpeza Entre as limitaccedilotildees identificadas o espremedor natildeo barra as sementes e natildeo permite recolher o suco em recipientes maiores que copos

192

para ampliar nossa compreensatildeo das significaccedilotildees incorporadas aos objetos de sua criaccedilatildeo

Trata-se de uma das concepccedilotildees de Rafael Cardoso Como vimos no entendimento de

Cardoso natildeo cabe ao designer atribuir ao objeto a funccedilatildeo (ou funccedilotildees que ele jaacute possui)

como no exemplo do reloacutegio e sua relogiosidade (cf p 109) e sim de enriquececirc-lo com

significados de outros niacuteveis Agrave primeira vista a concepccedilatildeo de Cardoso e a praacutetica de Starck

caminham juntas Ocorre no entanto que Starck conduz sua praacutexis em uma direccedilatildeo

diversa da proposta teoacuterica de Cardoso Como isso se daacute

Distintamente do que propotildee Cardoso Starck mitiga os sentidos funcionais originaacute-

rios dos seus projetos na sua forma e estrutura constitutiva e no discurso que ele profere

sobre os artefatos deles resultantes para os futuros consumidores e usuaacuterios Mesmo que

tais artefatos por necessidade dos fundamentos do design preservem implicitamente

sentidos e funccedilotildees subjacentes a ampliaccedilatildeo e destaque de outros significados deve se

impor e sobrepor agraves suas funccedilotildees Esta inteligente inversatildeo nos conceitos que pode ser

compreendida como parte de uma estrateacutegia de marketing e vendas tem no entanto

seus perigos

Um risco que se corre com a exaltaccedilatildeo excessiva dos sentidos e significados que vatildeo

aleacutem do que Cardoso chama de ldquobaacutesicosrdquo (cardoso 1998 p 33) eacute o que podemos de-

nominar de uma hipertrofia de caracteriacutesticas natildeo funcionais que no extremo inviabiliza

o uso de um artefato seja porque se desconhece suas funccedilotildees seja porque elas estatildeo

ocultas ou bastante dissimuladas ou porque natildeo existe interesse em utilizaacute-lo No caso

de um objeto que se adquire para uso pessoal este risco eacute menor uma vez que o usuaacuterio

normalmente o faz consciente do que compra No entanto quando um objeto eacute de uso

comunitaacuterio mesmo estando em uma residecircncia a probabilidade de um possiacutevel visitante

encontrar dificuldades em abrir (acionar) por exemplo uma torneira6 ou ligar uma sim-

ples lacircmpada tem se tornado maior e exige esforccedilos adicionais do designer para tornar

seu projeto e soluccedilotildees coesas e suas funccedilotildees identificaacuteveis

6 Eacute cada vez mais comum torneiras serem acionadas por sensores de movimento O conceito se bem elaborado e implementado tem inuacutemeras vantagens principalmente em aacutereas puacuteblicas como econo-mia no consumo de aacutegua e higienizaccedilatildeo Mas eacute fundamental que todos os usuaacuterios sejam capazes de identificar e saber usar os sistemas de acionamento Na praacutetica com a crescente ampliaccedilatildeo dos tipos de dispositivos produzidos e a falta de sinalizaccedilatildeo adequada abrir uma torneira tem cada vez mais se tornado uma tarefa de tentativa e erro um problema que natildeo pode ser ignorado pelos designers

193

Cabe ao designer saber dosar e equilibrar as caracteriacutesticas funcionais com as enri-

quecedoras para que uma espeacutecie natildeo encubra ou ateacute suprima a outra Neste sentido vale

lembrar a relevacircncia da concepccedilatildeo de Flusser de que o design enquanto uma ponte atua

na lacuna entre ciecircncia teacutecnica e arte tornando-se mais preponderante na atualidade

Um designer natildeo deve apenas projetar mas saber estabelecer a delicada proporccedilatildeo de cada

elemento constituinte de seu trabalho para ser bem-sucedido natildeo somente na criaccedilatildeo

mas tambeacutem na divulgaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo de seus produtos

Neste cenaacuterio 0utro exemplo que confirma nosso entendimento acerca das concep-

ccedilotildees de Starck que se encontram impliacutecitas agrave sua narrativa e que evidenciam o risco da

hipertrofia de caracteriacutesticas vem tambeacutem da Alessi quase uma deacutecada depois da criaccedilatildeo

do espremedor Trata-se de uma espaacutetula para bolo (figura 44) que Philippe Starck nomeia

lsquoCeci nrsquoest pas une truellersquo se inspirando em uma frase do quadro de Reneacute Magritte A

traiccedilatildeo das imagens de 1929 (figura 45) O instrumento disponiacutevel para compra no site

da Alessi vem com um aviso esclarecedor ldquoProduzido desde 1998 apesar de seu atraente

nomelsquoCecinrsquoestpasunetruellersquo[Estanatildeoeacuteumacolherdepedreiro]eacutetatildeosoacutelidoefaacutecil

de manusear quanto a espaacutetula de um pedreirordquo7 Traduccedilatildeo nossa

7 lt httpswwwalessicomit_itdesignersdalla-p-alla-sphilippe-starckpala-per-torta-ceci-n-es-t-pas-une-truelle-90078html gt

Figura 44 Fotografia da espaacutetula para bolo Ceci nrsquoest pas une truelle (1998) de Philippe Starck projetada para a Alessi fonte alessicom

194

Para compreender a associaccedilatildeo que Starck propotildee entre a obra de arte e sua espaacutetula eacute

preciso antes retomar a polecircmica que o quadro de Magritte provocou e que ainda hoje tem

ressonacircncias na arte filosofia e cultura Na base dessa polecircmica estaacute a frase que pertence

ao quadro e natildeo foi escrita mas pintada por Magritte ldquoCeci nrsquoest pas une piperdquo ldquoIsto

natildeo eacute um cachimbordquo e que eacute parafraseada por Starck ao nomear sua espaacutetula Novamente

recorremos agrave Virginia Figueiredo para uma siacutentese da questatildeo em relaccedilatildeo ao quadro de

Magritte A filoacutesofa divide sua anaacutelise e reflexatildeo em trecircs momentos interpretativos dos

quais para os nossos propoacutesitos fazemos uso apenas do primeiro

A perspectiva do primeiro momento leva a seacuterio o comentaacuterio (na verdade irocircnico) de Magritte e conclui com a obediecircncia do pintor natildeo soacute agrave concepccedilatildeo platocircnica da arte mas tambeacutem ao papel tradicional (de designaccedilatildeo ou repre-sentaccedilatildeo) das palavras Aqui ldquoplatonismordquo deveraacute ser entendido abrupta e grosseiramente enquanto uma concepccedilatildeo da essecircncia da arte como ilusatildeo ou coacutepia da coacutepia isso quer dizer que a pintura na sua realidade de ldquosuperfiacutecie preenchida unidimensionalmente por coresrdquo natildeo tem o menor direito de reivin-dicar qualquer estatuto ontoloacutegico A cama pintada jamais poderia ter realidade (ou verdade) para Platatildeo na medida em que apenas a Ideacuteia eacute essencialmente real como todo mundo jaacute sabe Segundo essa hierarquia agrave cama pintada natildeo eacute concedido sequer compartilhar da realidade que tem a cama do marceneiro sobre a qual se pode seguramente dormir jaacute que a utilidade sempre foi um cri-teacuterio inquestionaacutevel de valor das coisas Estamos por conseguinte no ambiente claacutessico da representaccedilatildeo E Magritte concordando com o irredutiacutevel Platatildeo sussurra ldquoO famoso cachimbo Como fui censurado por isso E entretanto Vocecircs podem encher de fumo o meu cachimbo Natildeo natildeo eacute mesmo Ele eacute apenas

Figura 45 Reproduccedilatildeo da pintura A traiccedilatildeo das imagens (1929) de Reneacute Magritte fonte lacmaorg

195

uma representaccedilatildeo Portanto se eu tivesse escrito no meu quadro lsquoisto eacute um cachimborsquo eu teria mentidordquo 1⁰ (figueiredo 2005 p 446-447)

10 Reneacute Magritte citado na contra-capa da 3ordf ediccedilatildeo brasileira de foucault Isto natildeo eacute um cachimbo [nota em peacute de paacutegina da autora]

Independente de Starck estar a par dessas implicaccedilotildees platocircnicas mais profundas ou

natildeo e da ironia8 de Magritte o certo eacute que ele explora a celebridade adquirida pelo quadro

talvez pela polecircmica culturalmente disseminada especialmente na Europa e Estados Unidos

e a direciona para um puacuteblico alvo que de algum modo jaacute esteve em contato com a obra de

Magritte ou com a discussatildeo em torno dela No entanto na hipoacutetese de faltar conhecimento

dos meandros artiacutesticos a algum provaacutevel comprador a Alessi acrescenta a frase de reforccedilo

junto agrave foto do produto como garantia da funcionalidade do objeto E supondo-se que os

usuaacuterios utilizem tal objeto para cortar bolo como no caso do espremedor o ato corriqueiro

pode se tornar assunto para outras conversas de usuaacuterios em um encontro celebraccedilatildeo ou

festa Mas se compararmos a paacute com o espremedor o risco de hipertrofia de caracteriacutesticas

natildeo funcionais parece ser maior nesse segundo produto jaacute que a empresa que o comercializa

sente necessidade de lanccedilar matildeo de explicaccedilotildees adicionais acerca de suas funccedilotildees

Este tipo de diaacutelogo expliacutecito com a arte e com a histoacuteria da arte ocorre em outros tra-

balhos de Starck O projeto de algumas de suas escovas de dentes como a Dr Kiss para a

Alessi trazem referecircncias a uma seacuterie de esculturas de Constantin Brancusi Paacutessaro no Espaccedilo

criadas entre 1923 e 1940 (figura 46) Carmel-Arthur descreve esses utensiacutelios e aponta para

as intenccedilotildees que ela acredita o designer tem ao fazer ligaccedilotildees com a obra de arte

A base alargada cocircnica da Escova de Dentes para LrsquoOreacuteal de 1990 funciona como um significante que orienta o usuaacuterioobservador no reino da histoacuteria da escultura A base ou ldquopedestalrdquo sustenta o que chamou corretamente de haste

ldquoagrave la Brancusirdquo da escova propiciando ao proprietaacuterio consciente do design e da arte um sentimento de confiante erudiccedilatildeo uma recompensa por reconhecer

8 Em um segundo momento Figueiredo (2005 p 453) reforccedila seu entendimento sobre a ironia de Magritte ldquoSe adotamos a perspectiva estritamente loacutegica a conclusatildeo desse segundo momen-to eacute que sendo a frase lsquoIsso natildeo eacute um cachimborsquo essencialmente irocircnica ela eacute ao mesmo tempo verdadeira e falsa Como dizia Suzuki sendo a ironia o ponto de indiferenccedila entre o real e o ideal2⁷ lsquoela eacute inteiramente uma coisa e ao mesmo tempo inteiramente outrarsquo A frase entatildeo po-deria enunciar que lsquoIsto tanto eacute quanto natildeo eacute um cachimborsquo ou simplesmente lsquoIsto eacute e natildeo eacute um cachimborsquo Ambivalente por excelecircncia esse momento aleacutem de provisoacuterio nada pode decidirrdquo 27 Cf suzuki O gecircnio romacircntico p 178 [nota em peacute de paacutegina da autora]

196

as referecircncias de que o objeto eacute portador e a citaccedilatildeo do Paacutessaro no Espaccedilo de Constantin Brancusi de 1925 (carmel-arthur 2000 p 20)

Se concordarmos com a autora independentemente dos atributos de uso de uma escova

de dentes Starck explora intencionalmente a associaccedilatildeo que o ldquoproprietaacuterio consciente do

design e da arterdquo consegue fazer entre os dois tipos de objetos Mas em um produto como

esse de uso estritamente pessoal o designer pode abusar da hipertrofia por entender que

aqueles que a adquirem sabem do que se trata Na verdade se nos mantemos dentro da

metaacutefora de Flusser de que o design eacute uma ponte ela deve ser soacutelida e ampla o suficiente

para os designers poderem se movimentar tanto na direccedilatildeo da arte quanto na da ciecircncia

sem que essa estrutura de ligaccedilatildeo se abale preservando seus fundamentos (figura 47)

Figura 47 Esquema da possibilidade de o designer se movimentar entre ciecircncia e arte enquanto a ponte do design se manteacutem estruturada fonte autor

DESIGN

ARTECIEcircNCIA

DESIGNER

Figura 46 Fotografia de uma das esculturas Paacutessaro no Espaccedilo (1928) de Constantin Brancusi (esquerda) e fotografia da escova de dentes Dr Kiss (1996) de Philippe Starck (direita) fonte momaorg

197

Paralelamente a essas conexotildees e movimentaccedilotildees em direccedilatildeo ao mundo da arte existe

outro elemento conceitual que Starck explora Quando por exemplo ele discursa sobre

as qualidades intriacutensecas de sua cadeira La Marie (figura 48) entre as inuacutemeras que pro-

jetou suas palavras para caracterizar a criaccedilatildeo remetem a conceitos que podem oferecer

indiacutecios adicionais acerca dos caminhos que este designer percorre em seus trabalhos

Sobre Marie a cadeira para a Kartell ele diz por exemplo que conseguiu ldquofazer o maacuteximo com o miacutenimo menos material quase natildeo haacute material menos pre-senccedila de fato eacute totalmente transparente E apesar de tudo oferece o maacuteximo de serviccedilos mdash resistecircncia leveza e possibilidade de ser empilhada Trata-se de um objeto sem idade extremamente honesto e profundamente moderno Um objeto quase ideal Vocecirc natildeo a vecirc pois eacute totalmente transparente Mas se quiser vecirc-la encontraraacute algo formidaacutevel Trata-se de uma verdadeira faccedilanha tecnoloacutegica com uma uacutenica modelagem um objeto transparenterdquo (morozzi 2012 p 25)

Denominaccedilotildees como ldquoimaterialidaderdquo ldquotransparecircnciardquo ldquoquase idealrdquo e ldquouacutenica mo-

delagemrdquo remetendo agrave atributos de qualidade superior mdash comprovando o interesse do

designer em ldquorecorrerrdquo aos avanccedilos da ciecircncia e da tecnologia como propotildee Bonsiepe

Figura 48 Fotografia da cadeira La Marie (1998) de Philippe Starck projetada para a empresa Kartell fonte kartellcom

198

(2011 p 17) e oferecendo equiliacutebrio agrave Ponte Flusseriana mdash podem ser facilmente asso-

ciadas com a conhecida posiccedilatildeo platocircnica investigada no capiacutetulo 2 Mas a duacutevida sobre

a compreensatildeo que o proacuteprio Starck tem de conceitos dessa natureza que podem de

algum modo fundamentar os processos que guiam seus projetos permanece Em entre-

vista concedida a Cristina Morozzi em 2011 a propoacutesito da relevacircncia de seus projetos

sua resposta eacute ambiacutegua

Cristina Morozzi Dos seus projetos quais gostaria de conservar

Philippe Starck Natildeo conservaria nenhum pois os projetos satildeo mateacuteria O que eu gostaria de conservar do meu trabalho eacute apenas um ponto de vista um espiacuterito uma loacutegica uma batalha uma rebeliatildeo uma poesia um humor e pontos fracos

CM E o que gostaria de jogar fora

PS Teoricamente tudo eacute para jogar fora natildeo haacute nenhum interesse em se ocupar da mateacuteria A mateacuteria A mateacuteria transpira a mateacuteria fede a mateacuteria sua a mateacuteria morre Investir na mateacuteria eacute um peacutessimo investimento Natildeo haacute histoacuteria Natildeo haacute motivos para conservaacute-la (MOROZZI 2012 p 104-105) Itaacutelicos nossos

Ao mesmo tempo em que como um possiacutevel herdeiro do platonismo Starck critica

enfaticamente a materialidade entendendo-a como pereciacutevel contraria esse ideal teoacuterico

de Platatildeo colocando sua atividade projetiva tambeacutem no acircmbito da mateacuteria Essa afirma-

ccedilatildeo que por si soacute jaacute seria um problema se agrava logo em seguida quando ele declara

que ldquoteoricamente tudo eacute para jogar forardquo Onde restaria o espaccedilo para o teoacuterico em seu

trabalho lugar no qual ele mesmo indica ser o patamar de onde constroacutei suas afirmaccedilotildees

Mas ao contraacuterio do que possa parecer Starck estaacute atento agrave importacircncia da teoria

na fundamentaccedilatildeo de projetos Carmel-Arthur a propoacutesito de enfatizar a relevacircncia que

Starck daacute para estabelecer sua identidade em um sentido linguiacutestico lembra-nos que

ele sempre ldquobatizardquo seus produtos com nomes conduzindo a uma associaccedilatildeo entre suas

obras rotuladas e ele mesmo E em seguida cita uma afirmaccedilatildeo de Starck muito anterior

agrave entrevista com Morozzi (1978-9) para o International Design Yearbook ldquoCreio ser

tarefa dos designers passar mais tempo produzindo signos e menos produzindo objetosrdquo

(carmel-arthur 2000 p 11)

Poderiacuteamos considerar que as declaraccedilotildees (proferidas durante uma entrevista) carre-

gam por vezes contradiccedilotildees proacuteprias do discurso oral diversamente de um texto escrito

199

refletido e elaborado previamente No entanto essa possibilidade natildeo pode levar em

consideraccedilatildeo o testemunho de sua entrevistadora Cristina Morozzi ao afirmar que ldquoEle

responde concentrado Acompanha as perguntas com atenccedilatildeo As respostas satildeo precisas

seguras definitivas Ele natildeo daacute opiniotildees mas faz afirmaccedilotildees cristalinas puras confirmando

suas convicccedilotildeesrdquo (morozzi 2012 p 104)

Em relaccedilatildeo agraves entrevistas Judith Carmel-Arthur confirma a posiccedilatildeo de Morozzi

ao afirmar que ldquoSuas entrevistas satildeo normativas Satildeo cronometradas e formuladas para

disseminar o consumo e dizem o que eacute e o que deixa de ser um ldquobomrdquo designrdquo (carmel

-arthur 2000 p 13) Mas atenta ao fundamento do consumo a autora vai em outra

direccedilatildeo e reforccedila uma suspeita ldquoNo entanto as entrevistas devem ser lidas igualmente

como confissotildees autopromocionais apontadas diretamente para o bolso do consumidor

de Starckrdquo (carmel-arthur 2000 p 14) E vai aleacutem

Eacute justo dizer que Starck tentou gerar um discurso genuiacuteno entre si e o mundo do design Eacute o que enfatiza a narrativa pessoal oferecida por suas numerosas entrevistas compensando a ausecircncia de informaccedilatildeo igualmente valiosa no contexto do design contemporacircneo no qual pouco se sabe dos designers (carmel-arthur 2000 p 14)

Apesar da relevacircncia do apelo consumista identificada no trabalho de Starck que

pode distinguir aquilo que ele afirma do que efetivamente ele produz devemos nos per-

guntar ateacute que ponto as conexotildees expliacutecitas com obras de arte como nos projetos da

escova de dentes e da espaacutetula de bolo satildeo estabelecidas por um interesse conceitual de

Starck em seu trabalho e portanto fazem sentido para os nossos propoacutesitos de relaccedilotildees

entre o design e a arte em seu acircmbito ontoloacutegico Talvez natildeo saibamos a resposta Poreacutem

observando a mesma questatildeo da perspectiva de Andy Warhol (que tambeacutem se envolveu

com o tema e a polecircmica do consumismo) entendemos que natildeo faz sentido considerar

o valor do consumo como um elemento comum ao design e agrave arte para ser incluiacutedo no

recorte da nossa investigaccedilatildeo das relaccedilotildees entre esses campos Em outras palavras na

contemporaneidade o capitalismo enraizado eacute uma reacutegua que impotildee medidas e paracircme-

tros que garantem a sobrevivecircncia de profissotildees enquanto eliminam outras Quais dessas

atividades escapam dessa reacutegua Se houver as que escaparem satildeo exceccedilotildees e obviamente

200

asseguram ao consumismo senatildeo universalidade generalidade suficiente para natildeo poder

ser usado como indicador privilegiado de relaccedilotildees entre dois campos

Assim em um caminho diverso um autor que pode ajudar a avanccedilarmos no entendi-

mento ou a encontramos uma siacutentese de alguns elementos constituintes do trabalho de

Starck eacute o filoacutesofo Michel Onfray No livro Scritti su Starck de 2004 (organizado por

Valeacuterie Guillaume) Onfray escreve o capiacutetulo Anatomia di alcuni sortilegi Traduzimos o

tiacutetulo por Anatomia de alguns fetiches e natildeo feiticcedilos uma vez que Onfray ao longo de seu

texto alude ao conceito de fetiche de mercadoria Nos limitaremos a poucos trechos deste

capiacutetulo de 13 paacuteginas dado que Michel Onfray na maior parte de sua escrita apresenta

um discurso em tom elogioso como dissemos que ocorre com o texto de Morozzi o

que frusta a expectativa de uma criacutetica de caraacuteter mais assertivo em texto de um filoacutesofo

Sintoma de um tipo de narrativa que lembra as apresentaccedilotildees de um cataacutelogo de expo-

siccedilatildeo de arte (e natildeo sabemos se o texto de Onfray originalmente teve esse propoacutesito) eacute

que a palavra artista eacute a preferida pelo autor para caracterizar Starck ao longo de todo

o texto Os exemplos a seguir mostram o estilo narrativo com que o filoacutesofo conduz a

maior parte de sua anaacutelise

Designer certamente arquiteto evidentemente criador de formas e de objetos infaliacuteveis designer claro e outras atividades correspondentes se vocecirc realmente quer roacutetulos Mas esses vastos mundos testemunham uma universalidade de uma totalidade que indica adequadamente o artista aquele que procede de um demiurgo e transforma poderosamente tudo o que toca (guillaume 2004 p 60) Traduccedilatildeo nossa

O real imanente o voluntarismo da construccedilatildeo a celebraccedilatildeo das formas orgacircnicas a cenografia do bizarro a paixatildeo pela anamorfose a sublimaccedilatildeo do sangue frio a dialeacutetica das formas e forccedilas eacute assim que circunscrevemos o xamanismo que eacute tudo trabalhar nos objetos de Philippe Starck Palavras de objetos comunica-ccedilotildees de coisas interaccedilotildees de homens e moacuteveis de vida e materiais glossolalia necessaacuteria para atingir ritmos melodias cantadas sussurradas ouvimos uma muacutesica de cerimocircnias de magia de misteacuterio uma melodia eacute surpreendida do misticismo pagatildeo uma voz que veio do nada nutrida pelo espiacuterito dos animais a alma dos animais e a respiraccedilatildeo dos materiais Couro papel alumiacutenio ma-deira epoacutexido vidro accedilo modulam agrave maneira de antepassados equipados para cerimocircnias xamacircnicas (guillaume 2004 p 68) Traduccedilatildeo nossa

201

No entanto uma das questotildees colocadas por esse autor se releva de nosso interesse

pois estaacute ligada ao tema da relaccedilatildeo entre o mundo dos objetos utilitaacuterios e o das obras de

arte Onfray identifica em Starck o que apontamos no capiacutetulo anterior como caracteriacutes-

tica de um modo de projetar atento ao mesmo tempo agrave vida cotidiana e agraves conceituaccedilotildees

e dinacircmicas da arte contemporacircnea

Com Starck os objetos resolvem por si mesmos imediata e violentamente a antiga antinomia entre o artigo ordinaacuterio e a obra de arte o fim do mundo mutilado no qual a trivialidade da vida cotidiana encontra a natureza excep-cional da criaccedilatildeo esteacutetica superando a oposiccedilatildeo entre detalhes materiais do mundo impuro e invisibilidade abstrata do puro universo artiacutestico aboliccedilatildeo da contradiccedilatildeo entre a rua e o museu a casa particular e a coleccedilatildeo puacuteblica A arte natildeo mais serve para especular acumular valores na esperanccedila de que eles sejam impostos jaacute natildeo tem a funccedilatildeo de agir como um siacutembolo social de uma classe com problemas de legitimidade e identidade ou reconhecimento tribal faz parte da realidade transfigura-a e cancela as separaccedilotildees entre o museu e o cotidiano Com ele e graccedilas a ele vocecirc pode viver em casa como em um museu (guillaume 2004 p 60-61) Traduccedilatildeo nossa

Essa ldquotransfiguraccedilatildeordquo9 de elementos das obras de arte em objetos ordinaacuterios eacute com-

preendida por Onfray em sentido inverso ao que vai do cotidiano agrave galeria de arte ou

ao museu Neste caminho o cotidiano representado pela ldquocasardquo pode se transfigurar em

museu uma realidade que natildeo nos atrai10 Se Onfray apresenta essa possibilidade somente

como uma hipeacuterbole dramaacutetica que reforccedila sua posiccedilatildeo ou se acredita que tal condiccedilatildeo

possa se efetivar independente de desejarmos ou natildeo que nossas casas assemelhem-se a

museus ou galerias e algumas delas jaacute o satildeo o relevante eacute que esse autor tambeacutem aponta

para a relaccedilatildeo inversa que investigamos da apropriaccedilatildeo do design de conceitos da arte

Nesse sentido a visatildeo de Onfray estaacute em sintonia com o que afirmamos ao final do ca-

piacutetulo anterior (p 171-172 sintetizada na circularidade da parte direita da figura 38) em

que o design ao tomar posse de conceitos da arte tambeacutem altera os significados de seus

objetos E Onfray acrescenta

9 O conceito de transfiguraccedilatildeo ateacute onde sabemos foi primeiramente empregado nesta temaacutetica por Danto

10 O filme Mon Oncle (1958) de Jacques Tati eacute um prenuacutencio da ideia de casas-museus Com um olhar bem-humorado o cineasta apresenta sua visatildeo criacutetica sobre conceitos de modernizaccedilatildeo na arquitetura influenciando o cotidiano da vida francesa do final da deacutecada de 1950

202

A praacutetica do objeto que difunde a arte de forma infinitesimal homeopaacutetica mas cotidiana resulta em uma interessante aristocratizaccedilatildeo do consumidor Cada indiviacuteduo colocado na presenccedila de um objeto pensado desejado criado pro-duzido e vendido por Philippe Starck vecirc sua casa transformada em um museu Invertendo o movimento habitual que leva o amante da arte para as galerias de arte Starck percebe o desejo querido pelos poetas que aspiram a uma poesia ativa e saem agraves ruas Para fazer isso ele entra no particular desce do pedestal onde as elites os burgueses os esnobes os conservadores o mantecircm e entatildeo integra em si os menores detalhes da vida cotidiana Quando Duchamp convidou a abo-liccedilatildeo de aacutereas artiacutesticas esterilizadas ele abriu o caminho para sonhadores que surpreendem com estranheza criam o bizarro solicitam o inesperado depois fazem poesia na mais banal existecircncia no momento mais inesperado no lugar mais inesperado menos apropriado (guillaume 2004 p 69) Traduccedilatildeo nossa

Seja aristocratizaccedilatildeo ou mais provavelmente seu oposto democratizaccedilatildeo e apesar

de natildeo sabermos se Michel Onfray distingue design e arte diante de sua proposta natildeo

eacute surpresa que este filoacutesofo sele seu entendimento desse movimento do design (do qual

Starck eacute um legiacutetimo representante) com a arte de outro francecircs Marcel Duchamp

Se Duchamp e Warhol satildeo ldquopontos focaisrdquo na arte em parte pela conversatildeo de arte-

fatos em obras de arte Philippe Starck se apresenta como ldquoponto focalrdquo no design natildeo

somente pelo movimento que ele realiza no sentido inverso com os objetos do design

incorporando caracteriacutesticas exclusivas do universo artiacutestico Com isso ele de modo cor-

relato aos dois artistas opera um giro na significaccedilatildeo desses objetos e suas caracteriacutesticas

ontoloacutegicas mas tambeacutem incorpora os demais conceitos que investigamos anteriormente

e que corroboram a segunda parte de nossa hipoacutetese (cf capiacutetulo 1 p 39) e conclui o

objetivo do uacuteltimo item do meacutetodo (cf capiacutetulo 1 p 49)

Assim em retrospecto desta segunda seccedilatildeo devemos atentar para a mimetizaccedilatildeo ine-

rente a diversos projetos de Starck desde oacuteculos com articulaccedilotildees derivadas de princiacutepios

de estruturas oacutesseas ateacute bancos com formas inusitadas (figura 49) sem nos esquecermos

do tatildeo referenciado espremedor que o proacuteprio Starck disse ser inspirado na forma de uma

lula Objetos monstruosos nas palavras de Onfray que fazem de Starck um ldquodemiurgo

malignordquo ldquoum inventor e criador de quimerasrdquo (guillaume 2004 p 66) e como

tambeacutem propotildee Flusser de modo apreensivo por considerar a criaccedilatildeo de ldquoquimeras de

bacteacuteriasrdquo um problema de design (flusser 2007 p 49-50)

203

Ao analisar mais objetos aleacutem dos investigados no capitulo 4 percebemos que os

conceitos aristoteacutelicos de belo versus uacutetil e de fim em si mesmo satildeo recorrentes na proposta

de Starck No entanto como vimos podem caminhar perigosamente em direccedilatildeo agrave hi-

pertrofia de elementos natildeo funcionais em um artefato Se natildeo o transfiguram em obra de

arte podem levaacute-lo agrave condiccedilatildeo de objeto de adorno com uma ambiguidade subjacente

do discurso aberto de Umberto Eco

Por uacuteltimo ao lado desses conceitos aparece o do discurso persuasivo epidiacutectico de

Aristoacuteteles nas declaraccedilotildees do proacuteprio Starck defendendo sua obra e buscando convencer

o consumidor sempre atento aos interesses da publicidade e do mercado

Figura 49 Fotografia do banco WW (1990) de Phili-ppe Starck projetado para o cineasta Wim Wenders e produzido pela empresa Vitra fonte starckcom

204

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao concluir-se uma pesquisa existe uma expectativa de caraacuteter cientiacutefico nas conheci-

das expressotildees empregadas por Kuhn (1987) de soluccedilatildeo de ldquoenigmasrdquo ou de resoluccedilatildeo

de ldquoquebra-cabeccedilasrdquo No entanto a ideia de consideraccedilotildees finais eacute mais proacutexima das

investigaccedilotildees que envolvem filosofia na medida em que o exerciacutecio da reflexatildeo nessa

aacuterea eacute antes de tudo indagaccedilatildeo e natildeo necessariamente resposta definitiva Nesse sentido

compreendemos o sentimento do poeta Fernando Pessoa (cf capiacutetulo 3 p 129) e a sua

aversatildeo ao ato de acabar Natildeo eacute mera coincidecircncia que filosofia e poesia de algum modo

se conectem em um mesmo zelo pelo exerciacutecio do percurso empreendido Portanto para

noacutes o tiacutetulo Consideraccedilotildees Finais expressa melhor nossas intenccedilotildees do que Conclusatildeo

Retomando o percurso da tese no capiacutetulo 2 partimos da cisatildeo e hierarquizaccedilatildeo pla-

tocircnica da ciecircncia teacutecnica e arte direcionando o foco desta etapa a primeira do meacutetodo

(cf capiacutetulo 1 p 49) mais para as esferas gnoseoloacutegica e ontoloacutegica do que para a esteacutetica

Nesse momento propedecircutico intensificar e estreitar a articulaccedilatildeo do tema explorando

o diaacutelogo com Maldonado Bonsiepe Schneider Cardoso e Flusser em contraponto agraves

ideias de Koyreacute foram estrateacutegias decisivas para explicitar as consequecircncias dessa cisatildeo

e hierarquizaccedilatildeo no acircmbito do design e da arte

No capiacutetulo 3 com a investigaccedilatildeo sendo direcionada para a esfera esteacutetica e poste-

riormente para a ontoloacutegica estabelecemos um niacutevel de compreensatildeo das relaccedilotildees entre

design e arte preservando ao lado dos conceitos de universalidade e objetividade dois

outros elementos essenciais a esses campos a subjetividade e a incompletude confirmando

assim a primeira parte de nossa hipoacutetese (cf capiacutetulo 1 p 39) Este percurso apoiado nas

reflexotildees de Kant e Thierry de Duve sobre a esteacutetica e nas investigaccedilotildees de Heidegger e

Lacoue-Labarthe sobre ontologia nos permitiu ao mesmo tempo transpor a via epis-

temoloacutegica e demonstrar a capacidade da arte de ampliar a compreensatildeo dos objetos do

design indo aleacutem da instrumentalidade e utilidade Deste modo concluiacutemos a segunda

etapa do meacutetodo

Centrado em Aristoacuteteles o capiacutetulo 4 natildeo trata simplesmente de pensar as relaccedilotildees

entre design e arte mas de ir ateacute os fundamentos daquelas relaccedilotildees que se sustentam em

205

bases ontoloacutegicas Apoiados principalmente em Danto Nietzsche e Eco procedemos

finalmente com o deslocamento dos conceitos aristoteacutelicos para nossos propoacutesitos

Em seguida avanccedilamos da abordagem de cunho mais teoacuterico para seus aspectos mais

pragmaacuteticos ratificando as reflexotildees na esfera da produccedilatildeo com a anaacutelise de objetos do

design e de obras de arte representativos de nossa posiccedilatildeo O procedimento de rastreio

dos conceitos aristoteacutelicos nos exemplos do velcro do espremedor de frutas da Brillo

Box e das latas de sopa Campbel explorados tanto no design quanto na arte encerrou

a terceira etapa do meacutetodo e confirmou a segunda parte da hipoacutetese tendo seu aacutepice ao

compor o quadro das interconexotildees desses dois campos Essa praacutexis com a funccedilatildeo de

corroboraccedilatildeo no mundo sensiacutevel foi ampliada no uacuteltimo capiacutetulo

Atentos ao trabalho de Duchamp Warhol e Starck no capiacutetulo 5 dirigimos nossa

atenccedilatildeo para a praacutetica da arte e do design em seu sentido mais abrangente encerrando

o quarto e uacuteltimo item do meacutetodo Esse contraponto pragmaacutetico da teoria anterior

particularmente em relaccedilatildeo ao design contribuiu para percebemos que com o decorrer

do tempo e a crescente produccedilatildeo praacutetica esse campo se vecirc diante de um duplo desafio

construir sua identidade e justificar sua existecircncia para se estabelecer em peacute de igualdade

com outros campos e dialogar com eles com jaacute ocorre em sua relaccedilatildeo com a arte

Algumas caracteriacutesticas que explicitamos talvez natildeo fossem relevantes se o design natildeo

atuasse de modo interdisciplinar Mas que disciplina contemporacircnea escapa da interdis-

ciplinaridade Aleacutem disso existe a necessidade de certo ldquoegordquo centralizador de ideias que

as aacutereas de pesquisa e trabalho apresentam Esse nuacutecleo que natildeo deixa de ser no nosso

entendimento uma antropomorfizaccedilatildeo das disciplinas conduzida por seus membros

cobra uma identidade dessas aacutereas Por que seria diferente com o design

Poreacutem uma fundamentaccedilatildeo de caraacuteter ontoloacutegico se bem elaborada pode contribuir

para contornar as exigecircncias de exclusividade de bases epistemoloacutegicas quando cobradas

de um ponto de vista ortodoxo E se natildeo for possiacutevel ou natildeo se desejar contornar tais

exigecircncias o design pode assumir-se enquanto uma disciplina indefinida em sua essecircncia

Tal posiccedilatildeo de incompletude aleacutem de natildeo retirar relevacircncia do design acrescenta algo

a autodeterminaccedilatildeo de seu status ontoloacutegico assim como acontece com a arte por de-

finiccedilatildeo indefinida Esta pode ser mais uma caracteriacutestica a compartilhar com a arte sem

206

necessariamente confundir os dois campos E se for para ser indefinido e inacabado que

o design se assuma enquanto tal para natildeo correr o risco de dissolver-se na generalidade

Se por um lado a comprovaccedilatildeo de nossa hipoacutetese de que os fundamentos das rela-

ccedilotildees entre design e arte firma seus alicerces mais profundos no territoacuterio da ontologia

(cf capiacutetulo 3) com os embriotildees da interlocuccedilatildeo entre esses dois campos remontando

ao pensamento grego antigo (cf capiacutetulo 4) por outro a trajetoacuteria seguida ateacute essas

afirmaccedilotildees gera como eacute previsiacutevel em pesquisas de natureza reflexiva novos elementos

e possibilidades natildeo completamente compreendidas Como tais elementos enquanto

desdobramentos do tema satildeo inerentes agrave tese acreditamos que possam ser nesse mo-

mento de exame retrospectivo melhor delineados Admitindo a importacircncia dessa tarefa

retomamos o tema da natureza e essecircncia do design

Procederemos somente com o compromisso de demarcaccedilatildeo do assunto aceitando

que sua completa exploraccedilatildeo demanda espaccedilo maior do que o reservado para essa etapa

No entanto devido ao fato de que o tema emerge ainda na metade do desenvolvimento

da tese na clivagem teoacuterica que separa Kant de Heidegger e se manteacutem dentro do nosso

nuacutecleo propositivo dos fundamentos das relaccedilotildees entre design e arte buscamos pelo

menos fixar alguns marcos a partir de um memento que conduz agrave nossa compreensatildeo

atual da questatildeo

Ao teacutermino da primeira seccedilatildeo sobre Kant (cf capiacutetulo 3 p 128-129) em que chegamos

agrave concepccedilatildeo de design determinado e indeterminado e a consequente formulaccedilatildeo de uma

universalidade subjetiva nesse campo nos confrontamos com duas questotildees Propusemos

respondecirc-las ao final da tese considerando a impossibilidade de compreendecirc-las em toda

a sua extensatildeo naquelas circunstacircncias e etapa As questotildees eram

bull Asinuacutemerasdefiniccedilotildeesdedesignaolongodesuacurtahistoacuteriaeaampliaccedilatildeode

seu campo de atuaccedilatildeo tecircm alguma relaccedilatildeo com a equivalente expansatildeo do universo

artiacutestico contemporacircneo

bull Asdificuldadesatuaisdeseestabelecerdefiniccedilotildeesparaodesignpodemserdevidasa

esse campo ter uma generalidade incipiente de autopromoccedilatildeo ou inerente e anaacuteloga

a disciplinas como a da filosofia

207

Em relaccedilatildeo agrave primeira indagaccedilatildeo apoacutes as investigaccedilotildees empreendidas especialmente

tendo em conta os estudos sobre Duchamp e Warhol no capiacutetulo 5 a resposta eacute que a

expansatildeo do universo artiacutestico efetivamente contribui para a proliferaccedilatildeo de definiccedilotildees

sobre o design E com mais convicccedilatildeo do que no capiacutetulo 3 consideramos que a incom-

pletude do design (decorrente dessa indeterminaccedilatildeo) eacute essencial a esse campo devendo

ser acrescida agraves chaves de interpretaccedilatildeo das suas relaccedilotildees com a arte

A segunda pergunta eacute uma decorrecircncia da primeira e por admitir trecircs respostas distintas

torna-se uma questatildeo de escolha orientada ao passos que foram dados posteriormente agrave

sua formulaccedilatildeo Ficamos com a terceira possibilidade acreditando que uma generalidade

inerente e anaacuteloga agrave filosofia tem raiacutezes no modo de atuaccedilatildeo do design Neste sentido

Arthur Danto estabelece uma proposiccedilatildeo especificamente para a arte mas passiacutevel de ser

conduzida para o territoacuterio do design contribuindo para se natildeo elucidar completamente

a questatildeo pelo menos justificar a nossa escolha

Uma das teses de Danto repetidamente defendida por este autor natildeo somente nos

trecircs escritos selecionados nesta investigaccedilatildeo O filoacutesofo como Andy Warhol (2004) A

transfiguraccedilatildeo do lugar comum (2005) e Andy Warhol Arthur C Danto (2012) se fixa de

maneira persistente na ideia de uma natureza filosoacutefica da arte De nossa parte concor-

damos com essa concepccedilatildeo de Danto jaacute defendida por Aristoacuteteles na obra A poeacutetica (cf

capiacutetulo 4 p 147) tanto pelos seus argumentos que expusemos em distintos momentos

da tese mas tambeacutem por uma constataccedilatildeo factual explorada por este pensador

A natureza da filosofia eacute de tal sorte que ela parece estar logicamente co-implicada com todos os objetos de que se ocupa Se esse raciociacutenio for correto deve-se pocircr em evidecircncia uma pergunta raramente formulada na filosofia da arte por que a arte faz parte das coisas sobre as quais pode haver uma filosofia e por que eacute um fato histoacuterico que nenhum grande pensador de Platatildeo e Aristoacuteteles a Heidegger e Wittgenstein deixou de dizer alguma coisa sobre esse tema (danto 2005 p 99)

Tal constataccedilatildeo de Danto e tambeacutem de outros autores corrobora seus argumentos

de um ponto de vista histoacuterico No entanto o mais relevante para o momento eacute que

se a filosofia realmente efetiva uma ldquoco-implicaccedilatildeordquo com seus objetos de estudo (e essa

convicccedilatildeo foi se sedimentando em nossa consciecircncia durante a escrita da tese) natildeo basta

208

assumi-la apenas como um dos fundamentos na constituiccedilatildeo de uma teoria do design

como sugerem entre outros designers Bonsiepe (2011) Buumlrdek (2006) e Maldonado

(2012) Podemos propor uma consequecircncia (que o proacuteprio Danto entende no acircmbito

da arte como de caraacuteter ldquoloacutegicordquo) derivada dessa co-implicaccedilatildeo da filosofia com os seus

objetos um componente filosoacutefico na natureza do design

No entanto de modo oposto ao nosso raciociacutenio a identificaccedilatildeo de uma essecircncia do

design correlata agrave da filosofia pode ser entendida como apenas uma inferecircncia indevida

a partir de uma vinculaccedilatildeo de elementos comuns aos dois campos Afinal diversas aacutereas

buscam na filosofia bases para constituiccedilatildeo de princiacutepios e fundamentos e apesar disso

natildeo satildeo consideradas detentoras de uma natureza filosoacutefica As ciecircncias modernas por

exemplo nasceram da filosofia e no entanto satildeo compreendidas tanto por epistemoacutelogos

quanto por cientistas como tendo natureza especulativa distinta de sua matriz originaacuteria1

Diante da oposiccedilatildeo entre a visatildeo anterior e a nossa a gnoseologia pode contribuir

para escaparmos desse dilema Uma das distinccedilotildees que essa disciplina faz entre filosofia e

ciecircncia diz respeito agraves classes de pergunta que esses campos encaminham ateacute seus objetos

de estudo como assinalamos anteriormente (cf capiacutetulo 3 p 137) Grosso modo a filosofia

de caraacuteter generalista questiona mais o ldquoque eacuterdquo e o ldquoporquecirc eacuterdquo da realidade enquanto as

ciecircncias especialistas e cada vez mais voltadas aos aspectos descritivos e preditivos dos

fenocircmenos se detecircm principalmente em compreender ldquocomordquo tais eventos ocorrem ou

podem ser previstos

Assim apoiados nesses pressupostos da gnoseologia obtemos condiccedilotildees miacutenimas

para prosseguirmos em nossa proposiccedilatildeo sobre o design Como ponto de partida se

aceitamos a afirmaccedilatildeo de uma essecircncia filosoacutefica nesse campo de imediato satildeo geradas

duas consequecircncias positivas Uma para as relaccedilotildees entre design e arte e outra exclusiva

ao design

1 A filosofia eacute incorporada como mais um elemento comum ao design e agrave arte auxi-

liando a compreender a riqueza e intensificando suas relaccedilotildees

1 Se instituiccedilotildees como o cnpq (httplattescnpqbrwebdgparvore-do-conhecimento) ao categoriza-rem as aacutereas do conhecimento colocam a filosofia sob a classe das ciecircncias humanas natildeo significa que do ponto de vista conceitual essa disciplina natildeo tenha caracteriacutesticas distintas daquilo que a ciecircncia moderna e contemporacircnea estabeleceu para si mesma

209

2 Independentemente de circunscrever o design dentro de uma determinaccedilatildeo ou aacuterea

especiacutefica do conhecimento torna-se expliacutecita sua associaccedilatildeo com a reflexatildeo de carac-

teriacutesticas filosoacuteficas o que reforccedila nossa posiccedilatildeo de que o design faz uso das ciecircncias

mas natildeo eacute uma delas (cf capiacutetulo 3 p 127-129)

Acreditamos na relevacircncia desses dois resultados por entendecirc-los como conquistas para

ambos os campos Quanto a comprovar sua origem como fundados na natureza filosoacutefica

do design em primeiro lugar eacute importante retornar a alguns dos autores investigados na

tese e agraves suas posiccedilotildees que de forma distinta anteveem e prenunciam essas ldquoco-implicaccedilotildeesrdquo

Gui Bonsiepe (2011 p 181) (cf capiacutetulo 1 p 42) autoriza especificamente a disciplina da

filosofia distinguir design de arte Vileacutem Flusser (2007 p 48-50) (cf capiacutetulo 2 p 98-

100) impotildee ao design parte consideraacutevel da responsabilidade (normalmente cobrada da

filosofia e da ciecircncia) sobre pensar e equacionar os fins e responsabilidades do homem e

suas produccedilotildees perante a natureza Rafael Cardoso e Philippe Starck compreendem alguns

aspectos constituintes do design de modo semelhante embora matizado para o primeiro

ldquo[]odesigneacuteemuacuteltimaanaacuteliseumprocessodeinvestirosobjetosdesignificados[]rdquo

(cardoso1998p29)eosegundoacreditaldquo[]sertarefadosdesignerspassarmais

tempo produzindo signos e menos produzindo objetosrdquo (carmel-arthur 2000 p

11) Em ambos o design estaacute mais associado agrave etapa do projeto2

2 Essa separaccedilatildeo entre elaboraccedilatildeo de conceitosplanos e execuccedilatildeo jaacute se encontra estabelecida desde a cultura grega claacutessica O sentido de saber fazer da teacutekhne se revela por exemplo nos trabalhos de Phiacutedias (c 490ndash430 aC) Encarregado das obras puacuteblicas de Atenas por seu governante Peacutericles (494ndash429 aC) orientou e fiscalizou as equipes que produziram templos preacutedios puacuteblicos e escultu-ras (woodford 1982 p 52) Esse sentido segue ao longo da histoacuteria passando pelo Renascimento onde a produccedilatildeo de obras arquitetocircnicas de esculturas e pinturas deixadas a cargo de mestres eram executadas em parte por uma equipe Na atualidade com os avanccedilos da teacutecnica e a exigecircncia cada vez maior de conhecimentos especiacuteficos para a produccedilatildeo de obras com novos materiais o conceito de saber fazer estaacute atrelado agrave especializaccedilatildeo pela proacutepria dificuldade de os profissionais dominarem aacutereas em raacutepida expansatildeo Nesse sentido a atuaccedilatildeo de parte dos artistas e designers tende a se concentrar no acircmbito conceitual e criativo transferindo a produccedilatildeo a profissionais especializados na execuccedilatildeo Exemplos disso no acircmbito da arte satildeo as gigantescas esculturas em metal de Tomie Ohtake E em design editorial a especializaccedilatildeo com exceccedilotildees confina os designers na etapa projetiva e no maacuteximo ao acompanhamento (produccedilatildeo graacutefica) da execuccedilatildeo que fica a cargo das graacuteficas No entanto os avanccedilos recentes da tecnologia e a reduccedilatildeo de custo de equipamentos como cncs e impressoras 3d tecircm propiciado em nichos especiacuteficos um caminho diverso para aqueles que se propotildeem a atuar desde a concepccedilatildeo ateacute o produto acabado

210

Nas posiccedilotildees anteriores algumas de modo mais evidente do que outras os autores

buscam estabelecer o design como um domiacutenio em que no nosso entendimento as inten-

ccedilotildees e motivaccedilotildees originaacuterias nos projetos estatildeo ligadas agrave possibilidade de ampliaccedilatildeo da

realidade que satildeo assumidas pelos designers como mais relevantes do que a constataccedilatildeo

ou descriccedilatildeo de como a realidade eacute Se os designers em sua praacutetica tecircm plena consciecircncia

desse modus operandi eacute algo que demanda outra investigaccedilatildeo

Em segundo lugar (indo aleacutem da questatildeo da universalidade subjetiva analisada no

capiacutetulo 3) agora podemos afirmar que a indeterminaccedilatildeo do design se deve tambeacutem agrave

indeterminaccedilatildeo de seus objetos Recordemos que a Ponte Flusseriana representada em

sua forma mais ampliada na figura 10 (cf capiacutetulo 2 p100) expande consideravelmente

os acircmbitos de atuaccedilatildeo do design e dos designers conectando natildeo somente ciecircncia e arte

mas alcanccedilando ateacute os domiacutenios da natureza Enquanto as ciecircncias tradicionais mantecircm

seus objetos circunscritos aos seus princiacutepios paradigmas e leis e se aprofundam em

descriccedilotildees cada vez mais precisas desses objetos o design pode conceber ou participar da

elaboraccedilatildeo de novos conceitos e objetos fiacutesicos ou desmaterializados sem extrapolar seus

limites de atuaccedilatildeo Por exemplo a estrutura da World Wide Web e outras instacircncias de

realidades virtuais como as concepccedilotildees computadorizadas em trecircs e quatro dimensotildees

receberam e ainda continuam a receber significativas contribuiccedilotildees do design em suas

constantes implementaccedilotildees

O alargamento de fronteiras direcionado a conceitos e objetos a partir de um afasta-

mento do senso comum e de uma busca por problematizaccedilatildeo da realidade ou ateacute da criaccedilatildeo

de novos problemas3 eacute antes de tudo inerente agrave filosofia desde os seus primoacuterdios Essa

rica caracteriacutestica natildeo se dissemina a todos os campos do conhecimento pelas proacuteprias

especificidades necessidades e prioridades de cada aacuterea E uma parte apreciaacutevel dessas

3 Um exemplo de limitaccedilatildeo que o senso comum impotildee ateacute aos ciacuterculos da reflexatildeo filosoacutefica vem de Pierre Aubenque Este historiador da filosofia com o propoacutesito de ressaltar a originalidade de determinados problemas e conceitos filosoacuteficos como o da ontologia afirma que ldquoO problema do ser mdash no sentido da questatildeo O que eacute o ser3⁸mdash eacute o menos natural de todos os problemas aquele que o senso comum nunca se colocou aquele que nem a filosofia preacute-aristoteacutelica nem a tradiccedilatildeo imediatamente posterior se colocaram enquanto tal aquele que tradiccedilotildees outras que as ocidentais jamais conjecturaram ou abordaram (aubenq ue 2012 p 22)

38 Aristoacuteteles natildeo se fez tanto como o pensamento grego em seu conjunto esta outra questatildeoPor que haacute o ser em vez do nada [nota em peacute de paacutegina do autor]

211

aacutereas objetiva apenas solucionar problemas o que natildeo eacute pouco Mas o mesmo natildeo ocorre

com a arte e com o design

Pode-se recorrer a um mundo inteligiacutevel para pensar a infinidade de possibilidades

do mundo sensiacutevel tanto na natureza quanto na produccedilatildeo humana O exemplo da cama

(cf capiacutetulo 2 p 66-70) mdash que poderia ser uma cadeira ou qualquer outro objeto que

solicita a atenccedilatildeo do designer para ser concebido mdash eacute simboacutelico e estrutural na medida

em que estabelece a essecircncia da poacuteiesis em suas vertentes de episteacuteme e teacutekhne No entanto

acreditamos que o design e os designers estatildeo cada vez mais conscientes e dispostos a natildeo

simplesmente atuarem solucionando enigmas e quebra-cabeccedilas mas em uma atitude que

vai aleacutem desses protocolos e ao mesmo tempo afastando-se do senso comum criarem novos

problemas antes de solucionaacute-los Em outras palavras ateacute onde podemos compreender o

projeto de uma cadeira ou outro objeto que natildeo eacute previsto (preacute-visto mdash prae-uidĕo) pelos

usuaacuterios natildeo eacute uma antevisatildeo mas antes de tudo um problema inventado com base em

teoria e que pode gerar diversas soluccedilotildees

Esta capacidade de problematizar herdada da filosofia pelo design tambeacutem estaacute des-

crita por Umberto Eco (cf capiacutetulo 4 p 165) como essencial agrave arte que ldquonatildeo quer agradar

e nem consolar mas colocar problemas renovar a nossa percepccedilatildeo e o nosso modo de

compreender as coisasrdquo (eco 1988 p 280) O que enfatizamos eacute que o problema que

normalmente4 se estabelece antes da soluccedilatildeo natildeo necessita ser dado somente pela phyacutesis

(natureza) mas tambeacutem pode ser produzido pelas mentes criativas

Neste ponto aquela advertecircncia platocircnica (de caraacuteter pedagoacutegico) para que cada

profissional cuide de seu trabalho e deixe os demais ldquoem pazrdquo (platatildeo 1987 p 74)

reforccedila certa concepccedilatildeo do design que Cardoso questiona tambeacutem pedagogicamente

Segundo o senso comum mdash ainda ensinado em algumas escolas mdash ldquodesigner natildeo eacute artistardquo tampouco artesatildeo arquiteto engenheiro estilista marqueteiro publicitaacuterio e assim por diante Em meio a tantas advertecircncias sobre o que os

4 O problema surge normalmente mas natildeo necessariamente antes de sua soluccedilatildeo Tal inversatildeo eacute comum na matemaacutetica Em diversas ocasiotildees essa ciecircncia contrariou a ideia do problema ser estabelecido em primeiro lugar Por exemplo os polinocircmios propostos por Sergei Bernstein foram criados sem a intenccedilatildeo deste matemaacutetico de aplicaacute-los como soluccedilatildeo a problemas da induacutestria de automoacuteveis ou de fontes tipograacuteficas digitais e estruturas 3d computadorizadas que surgiriam anos depois (silva 2016 p 41-42)

212

alunos natildeo devem ser esquece-se muitas vezes de lhes dizer o que de fato eles podem vir a ser A resposta vem em duas partes por um lado natildeo satildeo nada disso por outro satildeo tudo isso e mais (cardoso 2016 p 231)

Nas primeiras liccedilotildees de filosofia aprendemos que o conceito de senso comum eacute dia-

metralmente oposto agrave atitude criacutetica e com certeza Cardoso sabe disso O paradoxo

presente nas palavras desse autor que compreendemos e aceitamos como inerente ao de-

sign reforccedila nossa convicccedilatildeo de que uma complementaridade natildeo excludente seraacute sempre

bem-vinda a esse campo Resta propor com mais ecircnfase agraves novas geraccedilotildees de designers

que a incompletude pode ser uma virtude

213

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  • CAPA
  • PAacuteGINAS PREacute-TEXTUAIS
    • Folha de Rosto
    • Ficha Catalograacutefica - verso Folha de Rosto
    • Folha de Aprovaccedilatildeo
    • Dedicatoacuteria
    • Agradecimentos
    • Epiacutegrafe
    • Resumo
    • Abstract
    • Lista de Ilustraccedilotildees
    • Lista de fontes na Internet
    • Sumaacuterio
      • PAacuteGINAS TEXTUAIS
        • 1 INTRODUCcedilAtildeO
          • 11 Estrutura do texto
          • 12 Percursos preacutevios
          • 13 Questotildees norteadoras
            • 2 ORIGENS E CONSEQUEcircNCIAS DA HIERARQUIZACcedilAtildeO DA CIEcircNCIA TEacuteCNICA E ARTE
              • 21 A essecircncia compartilhada de quatro conceitos gregos
                • 211 Phyacutesis
                • 212 Poacuteiesis
                • 213 Teacutekhne
                • 214 Episteacuteme
                  • 22 Hierarquia platocircnica cisatildeo e ruptura
                    • 221 A metafiacutesica impliacutecita ao tema da cidade ideal
                    • 222 O argumento ontoloacutegico contra a arte mimeacutetica
                    • 223 Desdobramentos da hierarquizaccedilatildeo do conhecimento
                      • 23 Design entre ciecircncia teacutecnica e arte
                        • 231 Afastamentos aproximaccedilotildees e interaccedilotildees
                        • 232 Artifiacutecios fronteiras moacuteveis e pontes
                        • 233 Essecircncia ontoloacutegica e epistemoloacutegica
                            • 3 DA ESTEacuteTICA Agrave ONTOLOGIA NA ARTE E NO DESIGN
                              • 31 Kant e a abordagem esteacutetica na arte e no design
                                • 311 Subjetividade e objetividade no territoacuterio da arte
                                • 312 Os conceitos de ACT e ART
                                • 313 Antinomia e dilema
                                • 314 Uma releitura de Kant do belo agrave arte
                                • 315 Uma soluccedilatildeo incompleta ou a incompletude como soluccedilatildeo
                                • 316 Subjetividade e objetividade no territoacuterio do design
                                • 317 Outra releitura de Kant da arte ao design
                                • 318 A universalidade objetiva no design
                                • 319 A universalidade subjetiva no design
                                  • 32 Heidegger e o vieacutes ontoloacutegico na arte e no design
                                    • 321 O giro em direccedilatildeo agrave ontologia
                                    • 322 A criacutetica a Platatildeo a arte natildeo eacute imitaccedilatildeo
                                    • 323 Poacuteiesis como produccedilatildeo phyacutesis como terra e teacutekhne como mundo
                                    • 324 Os trecircs modos de produccedilatildeo e sua influecircncia sobre o design
                                    • 325 O design aleacutem da instrumentalidade e da utilidade
                                        • 4 OS CONCEITOS ARISTOTEacuteLICOS NO DESIGN E NA ARTE
                                          • 41 O fundamento ontoloacutegico do conceito de miacutemesis
                                            • 411 A inversatildeo aristoteacutelica miacutemesis mediadora ativa e criativa
                                            • 412 A alianccedila entre universalidade verdade e arte poeacutetica
                                            • 413 As relaccedilotildees entre miacutemesis teacutekhne e phyacutesis
                                              • 42 Deslocamento do conceito de miacutemesis e sua contribuiccedilatildeo ao design e agrave arte
                                                • 421 A miacutemesis exoacutegena no design acreacutescimo e processo agrave natureza
                                                • 422 A miacutemesis endoacutegena no design adaptaccedilatildeo e evoluccedilatildeo
                                                • 423 A miacutemesis complementar na arte saiacuteda parar o dilema de Euriacutepedes
                                                  • 43 Ampliaccedilatildeo das determinaccedilotildees ontoloacutegicas nas relaccedilotildees entre design e arte
                                                    • 431 Da arte ao design o conceito de fim em si mesmo
                                                    • 432 Da arte ao design o discurso aberto e o persuasivo epidiacutectico
                                                    • 433 Do design agrave arte a metaacutefora epistemoloacutegica e os objetos sensiacuteveis
                                                        • 5 A PRODUCcedilAtildeO DE OBJETOS NO MUNDO SENSIacuteVEL
                                                          • 51 Pontos focais na arte Andy Warhol e Marcel Duchamp
                                                          • 52 Ponto focal no design Philippe Starck
                                                            • CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
                                                              • PAacuteGINAS POacuteS-TEXTUAIS
                                                                • REFEREcircNCIAS
                                                                      1. Button 100
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Page 2: Os fundamentos ontológicos das relações entre design e arte

SEacuteRGIO LUCIANO DA SILVA

OS FUNDAMENTOS ONTOLOacuteGICOS DAS RELACcedilOtildeES ENTRE

DESIGN E ARTE

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Poacutes-Gra-

duaccedilatildeo em Design da Escola de Design da Universidade

do Estado de Minas Gerais como requisito parcial para

a obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Doutor em Design

Aacuterea de Concentraccedilatildeo Design

Linha de Pesquisa Cultura Gestatildeo e Processos em Design

Orientador Prof Dr Dijon De Moraes

Belo Horizonte

2019

AUTORIZO A REPRODUCcedilAtildeO E DIVULGACcedilAtildeO TOTAL OU PARCIAL DESTE

TRABALHO POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETROcircNICO

PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA DESDE QUE CITADA A FONTE

Bibliotecaacuteria responsaacutevel Gilza Helena Teixeira CRB61725

S586f Silva Seacutergio Luciano da

Os fundamentos ontoloacutegicos das relaccedilotildees entre design e arte [manuscrito] Seacutergio Luciano da Silva -- 2019

224 f enc il color 31 cm

Tese (doutorado) ndash Universidade do Estado de Mina s Gerais Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Design 2019

Orientador Prof Dr Dijon de Moraes

Bibliograa f 213-224

1 Ontologia - Tese 2 Metafiacutesica 3 Epistemologia 4 Esteacutetica ndash arte 5 Comunicaccedilatildeo I Moraes Dijon de II Universidade do Estado de Minas Gerais Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Design III Tiacutetulo

CDU 68701

Para Alice e Janaiacutena

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais que transformaram seus sonhos e projetos nos meus

Agrave Alice pelas leituras atentas criacuteticas isentas e apoio incondicional

Agrave Janaiacutena e ao Thiago por continuarem acreditando

Ao Alecir por todas as horas de companheirismo e reflexotildees sobre ontologia e outras ldquometafiacutesicasrdquo

Ao Felipe pela parceria e pelas traduccedilotildees

Agrave Luciana por seu apoio e disponibilidade

Ao Claacuteudio Santos Ricardo Portilho e Vacircnia Myrrha pelas referecircncias bibliograacuteficas

Ao Professor Dijon De Moraes pelo apoio e orientaccedilatildeo inclusive nos difiacuteceis momentos finais

Ao Professor Gui Bonsiepe por gentilmente ceder o manuscrito de uma conferecircncia de sua autoria antes de sua publicaccedilatildeo

Ao Professor Seacutergio Antocircnio por toda generosidade e estiacutemulo

Agrave Professora Rita Ribeiro por insistir comigo sobre a relevacircncia de Flusser

Ao Professor Ricardo Fenati que me despertou do ldquosono dogmaacuteticordquo para a epistemologia

Agrave Professora Virginia Figueiredo que abriu meus olhos para a esteacutetica claacutessica

Ao Professor Rodrigo Duarte por me apresentar ao pensamento de Arthur Danto

Aos Professores Gustavo Arauacutejo Ana Arauacutejo e Raquel Teles Yehezkel pelos ensinamentos de grego latim e hebraico

Ao Professor Paulo Bernardo Ferreira Vaz pelas valiosas sugestotildees

Agrave Professora Angeacutelica Adverse pelas inumeraacuteveis e detalhadas sugestotildees

Ao Rodrigo Stenner pela dedicaccedilatildeo competecircncia e carinho

Aos estudantes da Escola de Design da uemg com os quais aprendi muito

Ao ppgd da Escola de Design da uemg que me acolheu desde 2009

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior ndash Brasil (CAPES) ndash Coacutedigo de Financiamento 001

Natildeo somos daqueles que soacute em meio aos livros estimulados por

livros vecircm a ter pensamentos mdash eacute nosso haacutebito pensar ao ar

livre andando saltando subindo danccedilando preferivelmente

em montes solitaacuterios ou proacuteximos ao mar onde mesmo as

trilhas se tornam pensativas

nietzsche mdash a gaia ciecircncia

RESUMO

SILVA S L Os fundamentos ontoloacutegicos das relaccedilotildees entre design e arte 2019

224 f Tese (Doutorado) ndash Escola de Design Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Design da

Universidade do Estado de Minas Gerais Belo Horizonte 2019

Esta tese aborda os fundamentos das relaccedilotildees entre design e arte investigando especi-

ficamente suas estruturas ontoloacutegicas Seu pressuposto eacute que design e arte satildeo campos

distintos e criam conceitos e objetos em categorias tambeacutem ontologicamente distintas

Aleacutem disso design e arte estabelecem interlocuccedilatildeo e conduzem para seus espaccedilos de

atuaccedilatildeo especiacutefica elementos conceituais empregados por ambos os campos cujos em-

briotildees remontam ao pensamento grego antigo O objetivo eacute explicitar tais fundamentos

compartilhados a partir da seleccedilatildeo e do estudo especiacutefico dos conceitos de ldquomiacutemesisrdquo de

ldquobelordquo versus ldquouacutetilrdquo e de ldquofim em si mesmordquo e do ldquodiscurso epidiacutecticordquo extraiacutedos da obra de

Aristoacuteteles O meacutetodo se divide em quatro etapas A primeira parte das origens platocircnicas

da cisatildeo e hierarquizaccedilatildeo da ciecircncia teacutecnica e arte contrapotildee as reflexotildees epistemoloacutegicas

de Alexandre Koyreacute Tomaacutes Maldonado Gui Bonsiepe Beat Schneider Rafael Cardoso

e Vileacutem Flusser estabelecendo as consequecircncias para o design e para a arte A segunda

apoiada nas reflexotildees de Kant Thierry de Duve Heidegger e Lacoue-Labarthe avanccedila

no acircmbito esteacutetico e ontoloacutegico ampliando a compreensatildeo dos objetos do design a partir

das obras de arte A terceira reelabora os conceitos aristoteacutelicos para o design e para a arte

contemporacircnea com o suporte teoacuterico de Arthur Danto Umberto Eco e Nietzsche A

quarta rastreia nos projetos de Philippe Starck e nas obras de Andy Warhol os conceitos

teoricamente reelaborados na etapa anterior comprovando a relevacircncia de seus funda-

mentos ontoloacutegicos na praacutetica contemporacircnea

Palavras-chave Teoria e Criacutetica do Design Ontologia Metafiacutesica Epistemologia Esteacute-

tica Comunicaccedilatildeo

ABSTRACT

SILVA S L The ontological foundations of the relations between design and art 2019

224 f Thesis (Doctorate) ndash Escola de Design Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Design

da Universidade do Estado de Minas Gerais Belo Horizonte 2019

This thesis approaches the foundations of the relations between design and art focusing

on its ontological structures Its assumption is that design and art are distinct fields and

create concepts and objects in categories ontologically distinct as well In addition de-

sign and art establish interlocution and lead to their specific spaces of action conceptual

elements employed by both fields whose embryos go back to ancient Greek thought The

objective is to expose such shared foundations on the basis of the concepts of ldquomimesisrdquo

ldquobeautifulrdquo versus ldquousefulrdquo the ldquoend in itself rdquo and the ldquoepidictic discourserdquo extracted from

the work of Aristotle The method was divided into four stages The first stage takes into

consideration the Platonic origins of the split and hierarchy of science technique and

art contrasting the epistemological reflections of Alexandre Koyreacute Tomaacutes Maldonado

Gui Bonsiepe Beat Schneider Rafael Cardoso and Vileacutem Flusser then establishing the

consequences for the design and for the art The second stage based on the reflections

of Kant Thierry de Duve Heidegger and Lacoue-Labarthe advances in the aesthetic

and ontological scope extending the understanding of the objects of the design from

the works of art The third stage reworked the Aristotelian concepts for the design and

for contemporary art with the theoretical support of Arthur Danto Umberto Eco and

Nietzsche The fourth stage investigates the projects of Philippe Starck and in the works

of Andy Warhol the concepts theoretically reworked in the previous stage proving the

relevance of its ontological foundations in contemporary practice

Key words Theory and Critique of Design Ontology Metaphysics Epistemology

Aesthetics Communication

LISTA DE ILUSTRACcedilOtildeES

Figura 1 Representaccedilatildeo de aacutereas articuladas na tese Dentro da aacuterea azul se situam

outros campos de atuaccedilatildeo da filosofia natildeo representados Ciecircncia teacutecnica e

arte natildeo estatildeo representados como aacutereas mas como objetos de estudo fonte

autor 24

Figura 2 Linha do tempo indicando desdobramento do conceito grego de poacuteiesis (pro-

duccedilatildeo) em episteacuteme (ciecircncia) e teacutekhne (arte) e posteriormente sua divisatildeo em

ciecircncia teacutecnica e arte em seus sentidos modernos fonte autor 45

Figura 3 Linha do tempo indicando os sucessivos desdobramentos do conceito de

poacuteiesis (produccedilatildeo) no periacuteodo claacutessico greco-latino fonte autor 61

Figura 4 Representaccedilatildeo das trecircs categorias de produccedilatildeo e a relaccedilatildeo das produccedilotildees huma-

nas (teacutekhne e episteacuteme) com seus fundamentos teoacutericos fonte autor 61

Figura 5 Representaccedilatildeo na teoria platocircnica do primeiro niacutevel ontoloacutegico e seu pro-

dutor o demiurgo ou artiacutefice natural fonte autor 68

Figura 6 Representaccedilatildeo na teoria platocircnica do segundo niacutevel ontoloacutegico e seu produtor

o artiacutefice humano fonte autor 69

Figura 7 Representaccedilatildeo dos trecircs niacuteveis ontoloacutegicos reunidos na hierarquia da metafiacutesica

platocircnica O artiacutefice natural e os artiacutefices humanos como o marceneiro satildeo

produtores (poieteacutes ποιητής) enquanto que os artistas como o pintor o poeta

e o ator satildeo apenas imitadores (mimeteacutes μιμητής) fonte autor 69

Figura 8 Linha do tempo indicando desdobramento do conceito grego de poacuteiesis

(produccedilatildeo) em episteacuteme (ciecircncia) e teacutekhne (arte) Apoacutes a cisatildeo entre ciecircncia

teacutecnica e arte se incorpora a tecnologia um elo de ligaccedilatildeo teoacuterico entre ciecircncia

e teacutecnica fonte autor 74

Figura 9 Linha do tempo acrescentando o design com as influecircncias que esse campo

acolheu e as conexotildees que Flusser propotildee como desdobramento de suas ati-

vidades fonte autor 96

Figura 10 Linha do tempo incluindo aleacutem da ligaccedilatildeo entre ciecircncia e natureza a proposta

de Flusser para a ligaccedilatildeo entre design e natureza fonte autor 100

Figura 11 Representaccedilatildeo das esferas da ontologia e da gnoseologia e dos movimentos

de reflexatildeo que precisamos empreender em cada um desses campos para

identificar as caracteriacutesticas dos artefatos fonte autor 107

Figura 12 Representaccedilatildeo da etapa de centralizaccedilatildeo da investigaccedilatildeo na esfera da esteacutetica

em sua relaccedilatildeo com a da gnoseologia e ontologia fonte autor 112

Figura 13 Esquema da interpretaccedilatildeo de Thierry de Duve da posiccedilotildees de Clement Green-

berg e Joseph Kosuth em relaccedilatildeo agrave arte e agrave esteacutetica fonte autor 115

Figura 14 Esquema da interpretaccedilatildeo de Thierry De Duve dos acrocircnimos act e art

criados por Ian e Elaine Baxter fonte autor 116

Figura 15 Fotografia da performance (1962) de George Maciunas para Jackson Mac

Low fonte momaorg 117

Figura 16 Fotografia da obra de Robert Rauschenberg (1953) criada apagando um de-

senho do artista Willem de Kooning fonte momaorg 117

Figura 17 Fotografia de obra sem tiacutetulo (1967) de Christine Koslov a partir de um rolo

de filme virgem A legenda na tampa da lata tem a inscriccedilatildeo ldquoTransparent

Film nordm2 ndash White 100ft 16mm ndash 1967rdquo fonte henry-mooreorg 117

Figura 18 Esquema dos obstaacuteculos a cada posiccedilatildeo act e art que as impedem de

cumprir seus objetivos plenamente fonte autor 118

Figura 19 Esquema do caso extremo cuja consequecircncia segundo Thierry de Duve pro-

veacutem das posiccedilotildees adotadas por Greenberg e Kosuth fonte autor 119

Figura 20 Esquema da antinomia do gosto kantiana fonte autor 120

Figura 21 Esquema da resoluccedilatildeo da antinomia do gosto kantiana fonte autor 120

Figura 22 Esquema da apropriaccedilatildeo e transferecircncia feita por Thierry de Duve da resolu-

ccedilatildeo da antinomia do gosto kantiana para o universo da arte contemporacircnea

fonte autor 121

Figura 23 Esquema da apropriaccedilatildeo e transferecircncia da resoluccedilatildeo da antinomia do gosto

kantiana para o design fonte autor 127

Figura 24 Representaccedilatildeo da associaccedilatildeo entre os conceitos gregos de Phyacutesis e Teacutekhne e

os conceitos heideggerianos de Terra e Mundo fonte autor 135

Figura 25 Diagramas das conexotildees entre os conceitos de criatividade criaccedilatildeo e design

As setas em ciacuterculo indicam que natildeo existe um ponto inicial ou final mas

apenas circularidade entre os conceitos fonte autor 144

Figura 26 Diagrama da separaccedilatildeo ontoloacutegica entre essecircncia e aparecircncia em Platatildeo (es-

querda) e sua indistinccedilatildeo em Aristoacuteteles (direita) que conduz a um conceito

de miacutemesis diferenciado e potencialmente capaz de abarcar o universal com

consequecircncias relevantes para a arte e o design fonte autor 148

Figura 27 Imagem ampliada da estrutura bioloacutegica de um carrapicho (esquerda) e de-

talhe do projeto de George de Mestral do Velcro para registro de patente da

invenccedilatildeo (direita) fontes designculturecombr e google patents

com 152

Figura 28 Imagem com detalhe do projeto de Leonard Duffy do New Velcro para registro

de patente da invenccedilatildeo fonte google patentscom 154

Figura 29 Linha do tempo que mostra as trecircs conexotildees que partem da phyacutesis episteacuteme

e teacutekhne possibilitando sua ligaccedilatildeo com o design na atualidade atraveacutes do

conceito de miacutemesis fonte autor 154

Figura 30 Esquema da oposiccedilatildeo entre representaccedilatildeo e reapresentaccedilatildeo conforme a criacutetica

nietzschiana ao programa euripidiano fonte autor 157

Figura 31 Esquema do Dilema de Euriacutepedes e a dificuldade segundo Danto de se en-

contrar uma definiccedilatildeo para obra de arte fonte autor 158

Figura 32 Esquema do entrelaccedilamento da miacutemesis e da contramiacutemesis com a comple-

mentaridade solucionando o dilema entre continuidade e descontinuidade

da arte com o real fonte autor 159

Figura 33 Fotografia do espremedor de frutas Juicy Salif (1990) de Philippe Starck

projetado para a empresa italiana Alessi fonte alessicom 161

Figura 34 Linha do tempo indicando o conceito de fim em si mesmo (linha 2) em um

caminho inverso ao da ldquoPonte Flusserianardquo partindo da arte em direccedilatildeo ao

design fonte autor 163

Figura 35 Fotografia de A fonte (1917) de Marcel Duchamp fonte tateorg 165

Figura 36 Esquema das origens e movimentos dos discursos aberto e persuasivo em suas

conexotildees com a arte a comunicaccedilatildeo e o design fonte autor 167

Figura 37 Fotografias da Brillo box (1964) e dos 32 quadros das latas de sopa Campbell

(1962) criados por Andy Warhol fonte momaorg 171

Figura 38 Esquema dos dois sentidos de apropriaccedilatildeo da arte e do design fonte

autor 171

Figura 39 Reproduccedilatildeo da pintura O beijo (1961) de Roy Lichtenstein fonte ima-

geduplicatorcom 176

Figura 40 Fotografia da instalaccedilatildeo Warhol (1964) Stable Gallery Nova York fonte

revista ars 177

Figura 41 Fotografias de A fonte (1917) de Marcel Duchamp (esquerda) e da Brillo Box

(1964) de Andy Warhol (direita) fontes tateorg e momaorg 185

Figura 42 Reproduccedilatildeo do quadro 200 notas de um dolar (1962) de Andy warhol

fonte sothebyscom 187

Figura 43 Fotografia do espremedor de frutas da Alessi impressa na embalagem do

produto fonte alessicom 190

Figura 44 Fotografia da espaacutetula para bolo Ceci nrsquoest pas une truelle (1998) de Philippe

Starck projetada para a Alessi fonte alessicom 193

Figura 45 Reproduccedilatildeo da pintura A traiccedilatildeo das imagens (1929) de Reneacute Magritte

fonte lacmaorg 194

Figura 46 Figura 46 Fotografia de uma das esculturas Paacutessaro no Espaccedilo (1928) de

Constantin Brancusi (esquerda) e fotografia da escova de dentes Dr Kiss

(1996) de Philippe Starck (direita) fonte momaorg

Figura 47 Esquema da possibilidade de o designer se movimentar entre ciecircncia e arte

enquanto a ponte do design se manteacutem estruturada fonte autor 196

Figura 48 Fotografia da cadeira La Marie (1998) de Philippe Starck projetada para a

empresa Kartell fonte kartellcom 197

Figura 49 Fotografia do banco WW (1990) de Philippe Starck projetado para o cineasta

Wim Wenders e produzido pela empresa Vitra fonte starckcom 203

LISTA DE FONTES NA INTERNET

alessicom Web Site Alessi lt wwwalessicom gt

designculturecombr Web Site Design Culture lt wwwdesignculturecombr gt

google patents Web Site Google Patentslt httpspatentsgooglecom gt

henri-mooreorg Web Site Henry Moore Foundation lt wwwhenry-mooreorg gt

imageduplicatorcom Web Site Image Duplicator lt wwwimageduplicatorcom gt

kartellcom Web Site Kartell companylt wwwkartellcomgt

lacmaorg Web Site Los Angeles County Museum of Artlt wwwlacmaorg gt

momaorg Web Site Museum of Modern Art lt wwwmomaorg gt

revista ars Web Site Revista Ars (ECAUSP)lt www2ecauspbrcaparshtm gt

sothebyscom Web Site Sothebyrsquoslt wwwsothebyscom gt

starckcom Web Site Phillipe Starcklt wwwstarckcom gt

tateorg Web Site Galleries Tatelt wwwtateorguk gt

SUMAacuteRIO

1 INTRODUCcedilAtildeO 16

11 Estrutura do texto 16

12 Percursos preacutevios 25

13 Questotildees norteadoras 32

2 ORIGENS E CONSEQUEcircNCIAS DA HIERARQUIZACcedilAtildeO DA CIEcircNCIA

TEacuteCNICA E ARTE 53

21 A essecircncia compartilhada de quatro conceitos gregos 54

211 Phyacutesis 54

212 Poacuteiesis 56

213 Teacutekhne 58

214 Episteacuteme 60

22 Hierarquia platocircnica cisatildeo e ruptura 62

221 A metafiacutesica impliacutecita ao tema da cidade ideal 65

222 O argumento ontoloacutegico contra a arte mimeacutetica 66

223 Desdobramentos da hierarquizaccedilatildeo do conhecimento 72

23 Design entre ciecircncia teacutecnica e arte 78

231 Afastamentos aproximaccedilotildees e interaccedilotildees 80

232 Artifiacutecios fronteiras moacuteveis e pontes 86

233 Essecircncia ontoloacutegica e epistemoloacutegica 101

3 DA ESTEacuteTICA Agrave ONTOLOGIA NA ARTE E NO DESIGN 111

31 Kant e a abordagem esteacutetica na arte e no design 113

311 Subjetividade e objetividade no territoacuterio da arte 114

312 Os conceitos de act e art 115

313 Antinomia e dilema 118

314 Uma releitura de Kant do belo agrave arte 119

315 Uma soluccedilatildeo incompleta ou a incompletude como soluccedilatildeo 121

316 Subjetividade e objetividade no territoacuterio do design 123

317 Outra releitura de Kant da arte ao design 123

318 A universalidade objetiva no design 125

319 A universalidade subjetiva no design 126

32 Heidegger e o vieacutes ontoloacutegico na arte e no design 129

321 O giro em direccedilatildeo agrave ontologia 130

322 A criacutetica a Platatildeo a arte natildeo eacute imitaccedilatildeo 132

323 Poacuteiesis como produccedilatildeo phyacutesis como terra e teacutekhne como mundo 134

324 Os trecircs modos de produccedilatildeo e sua influecircncia sobre o design 136

325 O design aleacutem da instrumentalidade e da utilidade 141

4 OS CONCEITOS ARISTOTEacuteLICOS NO DESIGN E NA ARTE 143

41 O fundamento ontoloacutegico do conceito de miacutemesis 144

411 A inversatildeo aristoteacutelica miacutemesis mediadora ativa e criativa 145

412 A alianccedila entre universalidade verdade e arte poeacutetica 147

413 As relaccedilotildees entre miacutemesis teacutekhne e phyacutesis 149

42 Deslocamento do conceito de miacutemesis e sua contribuiccedilatildeo ao design e agrave arte 150

421 A miacutemesis exoacutegena no design acreacutescimo e processo agrave natureza 151

422 A miacutemesis endoacutegena no design adaptaccedilatildeo e evoluccedilatildeo 153

423 A miacutemesis complementar na arte saiacuteda para o dilema de Euriacutepedes 155

43 Ampliaccedilatildeo das determinaccedilotildees ontoloacutegicas nas relaccedilotildees entre design e arte 159

431 Da arte ao design o conceito de ldquofim em si mesmordquo 160

432 Da arte ao design o discurso aberto e o persuasivo epidiacutectico 163

433 Do design agrave arte a metaacutefora epistemoloacutegica e os objetos sensiacuteveis 167

5 A PRODUCcedilAtildeO DE OBJETOS NO MUNDO SENSIacuteVEL 173

51 ldquoPontos focaisrdquo na arte Andy Warhol e Marcel Duchamp 175

52 ldquoPonto focalrdquo no design Philippe Starck 188

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 204

REFEREcircNCIAS 213

16

1 INTRODUCcedilAtildeO

Neste capiacutetulo a primeira seccedilatildeo Estrutura do texto explicita elementos que compotildeem

formalmente a escrita da tese como o modo de transliteraccedilatildeo de palavras de origem grega

o uso de imagens e graacuteficos e a definiccedilatildeo de alguns poucos termos de origem filosoacutefica

empregados na teoria subjacente agrave arte e ao design imprescindiacuteveis agrave compreensatildeo do

texto que os segue Em seguida os Percursos preacutevios resgatam e narram os motivos pelos

quais me debrucei haacute alguns anos sobre uma questatildeo e ainda hoje percorro os caminhos

para a sua compreensatildeo A seccedilatildeo seguinte Questotildees norteadoras apresenta e delimita tema

objetivo pressuposto hipoacutetese e demais elementos conceituais que fornecem o escopo da

tese Assim os Percursos apresentam uma narrativa de cunho pessoal na primeira pessoa

do singular e em seguida o discurso vai para o plural considerando que a tese propotildee

minhas reflexotildees em conjunto com as contribuiccedilotildees de meu orientador e de todos aqueles

que de algum modo deram suporte ao texto final

11 Estrutura do texto

Em escritos de ciecircncias humanas e sociais especialmente em reflexotildees de cunho filosoacutefico

eacute pouco comum o uso de diagramas ou ilustraccedilotildees mesmo quando o autor em se tratando

da aacuterea de esteacutetica cita uma obra de artista expondo seus detalhes A quase exclusividade

do uso das palavras eacute uma tradiccedilatildeo que garante ao escritor um controle miacutenimo sobre seu

discurso e argumentaccedilatildeo e aos potenciais leitores uma reduccedilatildeo nas possibilidades her-

menecircuticas minimizando interpretaccedilotildees duvidosas As exceccedilotildees ocorrem por exemplo

em textos de loacutegica onde o uso de diagramas tem uma funccedilatildeo correlata agrave das equaccedilotildees

em trabalhos de matemaacutetica permitindo condensar cadeias de raciociacutenio mais extensas

e apresentar uma visatildeo do todo em determinada questatildeo sem introduzir ambiguidade

Temos em conta esses fatores mas a tese se estabelece no territoacuterio do design disciplina

que tem como um de seus ramos mais proeminentes o design graacutefico e a infografia Como

defende o designer Gui Bonsiepe

17

Pode-se cair facilmente na armadilha de uma tendecircncia antivisual quando a teoria privilegia exclusivamente a linguagem ou mais ainda declara a lingua-gem como uacutenica forma epistecircmica A partir do chamado lsquogiro visualrsquo (iconic turn) nas ciecircncias que foi possibilitado pelo desenvolvimento da tecnologia digital e da informaacutetica o domiacutenio visual passou a ser reconhecido como um domiacutenio constitutivo epistemoloacutegico A pretensatildeo absolutista da linguagem como forma primordial do conhecimento vem perdendo espaccedilo embora ainda represente uma tradiccedilatildeo poderosa uma fortaleza institucional da discursivida-de Essa tradiccedilatildeo cria consideraacuteveis dificuldades para o avanccedilo da visualidade (bonsiepe 2011 p 184)

Neste sentido consideramos oportuno e optamos pelo uso de ilustraccedilotildees com caraacuteter

complementar ao texto como normalmente acontece no uso de infograacuteficos desenhos

e fotografias

Palavras de origem grega costumam ser transliteradas com grafias diversas por autores

de diferentes liacutenguas Por exemplo τέχνη aparece nas citaccedilotildees ora como teacuteckne ora como

teacutekhne e ateacute como techne Mantivemos a escolha de cada autor nas citaccedilotildees e optamos por

unificar somente a nossa grafia1

A nomenclatura associada a teorias princiacutepios e conceitos especialmente aqueles

advindos da filosofia utilizados por autores de aacutereas correlatas (apesar de estar firme-

mente estabelecida nos territoacuterios da esteacutetica e da arte) natildeo estaacute necessariamente ligada

agrave praacutetica do design No entanto com a ampliaccedilatildeo dos trabalhos teoacutericos desse campo

cada vez mais se faz presente nas suas pesquisas Poreacutem termos que derivam da filosofia

sofrem alteraccedilotildees e ganham definiccedilotildees divergentes ao serem empregados por pensadores

de diversas eacutepocas e com distintas posiccedilotildees ideoloacutegicas Assim decidimos apresentar

imediatamente uma lista com os termos e expressotildees mais recorrentes na tese para re-

duzir equiacutevocos hermenecircuticos e ambiguidades e ao mesmo tempo indicar algumas de

nossas filiaccedilotildees ideoloacutegicas dentro da filosofia do design e da arte tornando mais claros

os motivos de nossas posiccedilotildees e escolhas metodoloacutegicas

bull Epistemologia filosofia da ciecircncia teoria do conhecimento e gnoseologia mdash Joseacute

Ferrater Mora (1979) em seu Diccionario de filosofia afirma que epistemologia pode

ser entendida como sinocircnimo de teoria do conhecimento e de gnoseologia No entanto

1 Na transliteraccedilatildeo do alfabeto grego para o latino nos apoiamos na Gramaacutetica Grega de Antocircnio Freire S J (freire 1997) e no meacutetodo Hellenikaacute (brandatildeo saraiva lage 2005)

18

com a tendecircncia a se aproximar gnoseologia de teoria do conhecimento em seu

sentido de conhecimento geral a epistemologia passou a ser compreendida como

teoria do conhecimento cientiacutefico tendo como referecircncias as questotildees que provecircm

especificamente das ciecircncias No Dicionaacuterio filosoacutefico Comte-Sponville (2011) reforccedila

esta distinccedilatildeo e delimita mais os trecircs termos

[Epistemologia] eacute a parte da filosofia que versa sobre uma ou vaacuterias ciecircncias em particular e natildeo sobre o saber geral (teoria do conhecimento gnoseologia)Uma teoria do conhecimento se situaria a montante do saber ela se pergunta em que condiccedilotildees as ciecircncias satildeo possiacuteveis Uma epistemologia a jusante ela se interroga menos sobre as condiccedilotildees das ciecircncias do que sobre sua histoacuteria seus meacutetodos seus conceitos seus paradigmas Seraacute quase sempre regional ou plural (a epistemologia da matemaacutetica natildeo eacute a da fiacutesica que natildeo eacute a da biolo-gia) Eacute filosofia aplicada como quase sempre eacute poreacutem mais no terreno das ciecircncias do que no seu O epistemoacutelogo acampa em terra estrangeira (em geral eacute um cientista que se lanccedilou na filosofia ou um filoacutesofo que se interessa pelas ciecircncias) (comte-sponville 2011 p 196-197)

Na tese nos apoiamos na delimitaccedilatildeo de Comte-Sponville para assumir a epistemologia

como um campo regional inserido dentro da teoria do conhecimentognoseologia

e portanto limitado aos estudos daquelas aacutereas que se assumiram e se entendem

como ciecircncia ou derivadas dela como eacute o caso da teacutecnica E a teoria do conheci-

mentognoseologia como a aacuterea de abrangecircncia maior refletindo sobre as condiccedilotildees

das ciecircncias ou seja suas possibilidades origens e essecircncia2 Por uacuteltimo Filosofia da

2 Essa divisatildeo mdash em origem possibilidade e essecircncia mdash eacute relevante para a constituiccedilatildeo de uma teoria do design Johannes Hessen (2000) em seu livro Teoria do conhecimento apresenta essa triacuteade subdivi-dindo-a em inuacutemeras posiccedilotildees e representantes que se firmaram ao longo da histoacuteria do pensamento Assim a origem do conhecimento eacute compreendida a partir das posiccedilotildees do dogmatismo ceticismo relativismo pragmatismo e criticismo A possibilidade do conhecimento a partir do racionalismo em-pirismo intelectualismo e apriorismo E a essecircncia do conhecimento a partir do objetivismo subjeti-vismo realismo idealismo e fenomenalismo Portanto quando se faz a distinccedilatildeo entre os problemas do conhecimento em seu acircmbito geral e preacutevio agraves ciecircncias daquelas questotildees que se estabelecem no interior de ciecircncias jaacute fundadas e de outros campos de pesquisa pressupotildee-se a adesatildeo por parte dos pesquisadores a cada uma das posiccedilotildees gnoseoloacutegicas anteriores Assim por exemplo no acircmbito do design quando Maldonado (2012) refletindo sobre a teacutecnica afirma que ldquoDessauer deixa subenten-dido mdash platocircnica e aristotelicamente mdash que as formas dos objetos teacutecnicos jaacute estariam presentes em um cataacutelogo ideal das formas preexistentes E que a teacutecnica natildeo faria outra coisa a natildeo ser deixaacute-las expliacutecitasrdquo (maldonado 2012 p 153) ele claramente explora as posiccedilotildees gnoseoloacutegicas assumidas por Dessauer correlacionando-as com as suas em busca de fundamentar atraveacutes da teoria do conhe-cimento sua proacutepria epistemologia sobre a teacutecnica no design

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ciecircncia eacute uma expressatildeo que natildeo consta como verbete nas mais de 3500 paacuteginas do

dicionaacuterio de Ferrater Mora (1979) nem no dicionaacuterio de Comte-Sponville (2011)

mas que estaacute associada agraves investigaccedilotildees acerca das estruturas das teorias cientiacuteficas

modernas e contemporacircneas como ocorre com epistemologia Apesar da natildeo expli-

citaccedilatildeo em verbete Ferrater Mora ao expor o pensamento de epistemoacutelogos como

Alexandre Koyreacute Karl Popper e Thomas Kuhn aponta a filosofia da ciecircncia como

aacuterea de atuaccedilatildeo desses estudiosos A relevacircncia dessa aacuterea aumenta uma vez que

teoacutericos do design como Tomaacutes Maldonado (2012) confirmam sua atuaccedilatildeo dentro

dela No caso de Maldonado como suas investigaccedilotildees avanccedilam em direccedilatildeo a temas

especiacuteficos da teacutecnica que nos interessam dialogando com autores como Koyreacute e

Kuhn entre outros3 esse autor inclui como aacuterea de sua atuaccedilatildeo aleacutem da filosofia

da ciecircncia a filosofia da teacutecnica de uso menos comum Na tese optamos pelo uso

de epistemologia para a maioria das situaccedilotildees mas entendemos filosofia da ciecircncia

como um sinocircnimo de epistemologia

bull Ontologia mdash Aacuterea da filosofia que estuda o ser ou os entes em sua generalidade O

historiador da filosofia Pierre Aubenque (2012) em seu livro O problema do ser em

Aristoacuteteles nos alerta para dificuldades de diversas ordens que se enfrenta quando o

tema de estudo eacute a ontologia

Porque vivemos no pensamento aristoteacutelico do ser mdash isso seria somente porque ele reflete na gramaacutetica de inspiraccedilatildeo aristoteacutelica atraveacutes da qual pensamos e falamos nossa linguagem mdash desaprendemos a perceber o que havia de sur-preendente e talvez de eternamente surpreendente na questatildeo O que eacute o ser Eacute por isso que parece interessante nos perguntarmos por que Aristoacuteteles fez essa questatildeo que natildeo eacute evidente e como chegou a fazecirc-la enquanto tal O problema do ser eacute o mais problemaacutetico dos problemas natildeo somente no sentido de que ele natildeo seraacute talvez jamais inteiramente respondido mas no sentido de que eacute jaacute um problema de saber por que noacutes nos questionamos acerca desse problema (aubenque 2012 p 22)

3 No livro Cultura sociedade e teacutecnica (2012) a lista de autores oriundos da filosofia da ciecircncia com os quais Maldonado manteacutem interlocuccedilatildeo eacute longa Entre aqueles citados por Maldonado que produziram obras em temas subsidiaacuterios da tese merecem destaque (aleacutem de Alexandre Koyreacute e Thomas Kuhn) o disciacutepulo de Karl Popper Imre Lakatos e os fiacutesicos Isaac Newton e Werner Heisenberg que tambeacutem fizeram incursotildees em teoria do conhecimento

20

Neste espiacuterito de perplexidade diante da condiccedilatildeo imanente da linguagem do pen-

samento e do ser Umberto Eco (1998) inicia o primeiro capiacutetulo do seu livro Kant

e o ornitorrinco tratando desse problema

Pascal (Fragmento 1655) percebera isso muito bem ldquoNatildeo podemos nos preparar para definir o ser sem incorrer neste absurdo porque natildeo podemos definir uma palavra sem comeccedilarmos pelo termo eacute expresso ou subentendido Entatildeo para definir o ser eacute preciso dizer eacute e assim usar o termo definido na definiccedilatildeordquo O que natildeo eacute o mesmo que dizer com Gorgia que natildeo podemos falar do ser falamos muito dele ateacute demais a natildeo ser que esta palavra maacutegica nos sirva para definir quase tudo mas natildeo seja definida por nada Em semacircntica falariacuteamos de um primitivo o mais primitivo de todos (eco 1998 p 17)

Concordando com Aubenque e Eco assumimos que eacute preciso ir aleacutem desse ldquopro-

blemardquo e falar sobre o ser No entanto a ontologia como os demais ramos da filo-

sofia chega agrave atualidade acumulando diversas variantes de significado derivadas da

trajetoacuteria histoacuterica do pensamento ocidental ao passar pelos estudiosos que vecircm se

dedicando a essa aacuterea e seus temas Assim considerando-a em seu caraacuteter mais geral

ontologia carrega o sentido de reflexatildeo e busca por compreensatildeo da dimensatildeo mais

ampla da realidade em que cada ente que a compotildee (finito ou infinito material ou

imaterial) tem sua existecircncia estabelecida definida e validada ou natildeo dependendo

do modo como cada pesquisador elabora sua teoria Por exemplo se entendermos

a arte como um ente da realidade na concepccedilatildeo platocircnica ela eacute mera imitaccedilatildeo coacute-

pia natildeo existindo enquanto um elemento essencial consequentemente natildeo sendo

legitimada na ontologia proposta por esse pensador Jaacute para a ontologia aristoteacutelica

e tambeacutem para a nossa na tese como a realidade natildeo se estabelece em separado em

um mundo das ideias o mundo sensiacutevel em que vivemos e agimos incluindo a arte

e o design tem existecircncia real ou seja tem fundamento ontoloacutegico

bull Metafiacutesica mdash Androcircnico de Rodes no seacuteculo i aC ao editar as obras de Aristoacuteteles

se deparou com uma seacuterie de livros acerca do ser e dos primeiros princiacutepios e causas

que hoje poderiam ser classificados como escritos de ontologia No entanto como

editor Androcircnico decidiu ordenar esses livros e inseri-los apoacutes o tratado sobre a fiacutesica

com o tiacutetulo de Metagrave tagrave physikaacute (depois da fiacutesica) expressatildeo que natildeo se encontra na

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obra de Aristoacuteteles4 Ocorre que em grego o antepositivo metagrave natildeo se restringe ao

significado de ldquodepois derdquo tendo outras acepccedilotildees como ldquoaleacutem derdquo Com o passar do

tempo o sentido aleacutem de foi incorporado pela tradiccedilatildeo do pensamento ao conceito

de metafiacutesica e essa aacuterea se firmou como aquela que trata dos temas que estatildeo aleacutem

da fiacutesica e das ciecircncias da natureza e tambeacutem de um modo geral dos assuntos que

ultrapassam o conhecimento cientiacutefico ou empiacuterico Uma das possibilidades de

se entender a metafiacutesica eacute consideraacute-la como uma disciplina impossiacutevel enquanto

almejando o conhecimento de uma realidade transcendente Essa eacute por exemplo a

posiccedilatildeo do empirismo (incluindo o positivismo e o neopositivismo ou positivismo

loacutegico contemporacircneo) Outra agrave qual aderimos eacute entendecirc-la natildeo como referente

a uma realidade espiritual ou divina mas como um conjunto de conceitos e prin-

ciacutepios que formam uma base natildeo empiacuterica tatildeo fundamental quanto a experiecircncia

sensiacutevel para a constituiccedilatildeo das ciecircncias e de outros campos Em ciecircncias humanas

e sociais a distinccedilatildeo entre metafiacutesica e ciecircncia talvez seja difiacutecil de se explicitar pelo

proacuteprio entrelaccedilamento dos temas que tecircm como centro de interesse o ser humano

e suas idiossincrasias Poreacutem ao se pensar de modo correlato acerca de uma ciecircncia

da natureza como a fiacutesica (tanto pelas suas caracteriacutesticas empiacutericas e matemaacuteticas

quanto pela sua precedecircncia histoacuterica em relaccedilatildeo agraves demais ciecircncias que se reflete

na evidente distinccedilatildeo morfoloacutegica dos termos originaacuterios fiacutesica e metafiacutesica) acredi-

tamos torna-se mais clara a posiccedilatildeo com a qual nos identificamos e que exploramos

na tese no acircmbito das ciecircncias humanas e sociais Assim um exemplo que aponta

para a concepccedilatildeo com a qual estamos alinhados vem do filoacutesofo da ciecircncia Edwin

Arthur Burtt (1983) em seu livro As bases metafiacutesicas da ciecircncia moderna

Newton natildeo encontrava rival como cientista mdash mas eacute possiacutevel que natildeo estivesse infenso a criacuteticas como metafiacutesico Ele tentou escrupulosamente pelo menos em seu trabalho experimental evitar a metafiacutesica Desprezava as hipoacuteteses que para ele significavam proposiccedilotildees explicativas natildeo-deduzidas imediatamente dos fenocircmenos Ao mesmo tempo seguindo seus ilustres predecessores dava ou presumia respostas definidas a questotildees fundamentais como a natureza

4 O tiacutetulo Metafiacutesica dado agrave obra de Aristoacuteteles eacute complexo e problemaacutetico Tanto que Pierre Aubenque em O problema do ser em Aristoacuteteles (2012) dedica um capiacutetulo inteiro (A ciecircncia sem nome) buscando elucidar suas origens histoacutericas

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do espaccedilo e do tempo e da mateacuteria e as relaccedilotildees do homem com os objetos de seu conhecimento e satildeo justamente essas respostas que constituem a metafiacutesica O fato de que o tratamento por ele dado a estes grandes temas mdash que se impocircs ao mundo culto pelo peso de seu prestiacutegio cientiacutefico mdash cobria-se com a roupagem do positivismo pode ter-se tornado um perigo em si mesmo Tal fato pode ter contribuiacutedo significativamente para insinuar um conjunto de ideacuteias aceitas acriticamente a respeito do mundo no cenaacuterio intelectual comum do homem moderno (burtt 1983 p 24) Itaacutelico nosso

O ldquoperigordquo da roupagem positivista de que nos fala Burtt tambeacutem foi questionado

no neopositivismo contemporacircneo por exemplo por Karl Popper e por Thomas

Kuhn ao proporem concepccedilotildees distintas da ciecircncia atual mas que natildeo abrem matildeo da

metafiacutesica Retornando agraves ciecircncias humanas e sociais compreendemos a metafiacutesica

como um vasto campo no interior da filosofia que inclui conjecturas e hipoacuteteses e

como afirma Burtt (1983 p 24) abriga tambeacutem reflexotildees sobre ldquoas relaccedilotildees do homem

com os objetos de seu conhecimentordquo no nosso caso sobre design e arte Corrobora

nossa posiccedilatildeo o questionamento do historiador da arte e do design Rafael Cardoso

(2016) agraves ideias positivistas amplamente disseminadas nos ciacuterculos da ciecircncia e da

histoacuteria da ciecircncia desde o seacuteculo xix5 e que acabaram por encontrar espaccedilo no

acircmbito de diversas ciecircncias sociais incluindo o design Conforme suas palavras no

livro Design para um mundo complexo

Ao longo do seacuteculo xx o lado criativo do design foi sistematicamente subestimado e ateacute combatido por um ideaacuterio que ansiava firmar a metodologia projetual em bases supostamente cientiacuteficas distanciando-a das artes plaacutesticas e do artesanato Tal postura reflete uma bagagem intelectual positivista bastante rasa herdada do seacuteculo xix junto com o marxismo de panfleto que alguns designers e arqui-tetos modernistas proclamavam a tiacutetulo de ideologia (cardoso 2016 p 245)

5 O epistemoacutelogo Wolgang Stegmuumlller foi preciso ao resumir a criacutetica de Thomas Kuhn agrave visatildeo positivista que passou a permear as concepccedilotildees da historia da ciecircncia no seacuteculo xix com seacuterias consequecircncias para as ciecircncias particulares ldquoAs verdadeiras raiacutezes do movimento positivista estariam segundo Kuhn em outro ponto grosseiramente falando estariam nas introduccedilotildees e nos prefaacutecios de obras de fiacutesica e de quiacutemica do seacuteculo xix Mas natildeo seriam competentes cientistas os autores dessas obras Certamente enquanto cientistas estudiosos de fenocircmenos naturais Lamentavelmente contudo esses autores tambeacutem se julgaram aptos historiadores de suas disciplinas discorrendo naqueles prefaacutecios e naque-las introduccedilotildees a respeito de aspectos da histoacuteria dos assuntos tratados mdash campo que infelizmente ignoravam por completo Assim nasceu uma errocircnea concepccedilatildeo das ciecircncias naturais vistas em sua condiccedilatildeo de manifestaccedilotildees culturais e sociais e assim surgiram os mal-entendidos a propoacutesito da histoacuteria de tais ciecircnciasrdquo (stegmuumlller 1977 v 2 p 361)

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Neste sentido eacute portanto imprescindiacutevel tambeacutem pensar conceitos caros agrave arte e

ao design como os de criaccedilatildeo e criatividade entendendo-os como pertencentes agraves

reflexotildees da metafiacutesica pois satildeo inerentes a ela

bull Esteacutetica mdash O filoacutesofo Rodrigo Duarte (2005) ao discorrer sobre a descontinuidade

das questotildees de esteacutetica em relaccedilatildeo a de outros temas recorda que essa disciplina

nasceu recentemente no seacuteculo xviii Conforme suas palavras

Mesmo considerando que ao longo da histoacuteria as discussotildees esteacuteticas natildeo te-nham tido a mesma continuidade que as eacuteticas ou metafiacutesicas tambeacutem nesse acircmbito haacute questotildees colocadas por Platatildeo e Aristoacuteteles como o tema da miacutemesis por exemplo que ateacute hoje natildeo perderam a relevacircncia sendo mesmo recorrentes atraveacutes dos seacuteculos Quando menciono a descontinuidade na esteacutetica tenho em mente que com o referido nome essa disciplina filosoacutefica eacute um produto tipicamente moderno tendo aparecido pela primeira vez na obra homocircnima de Alexander von Baumgarten de 1750 (duarte 2005 p 377)

Se para Baumgarten o problema da esteacutetica claacutessica se circunscreve ao problema do

belo para Comte-Sponville (2011) a esteacutetica contemporacircnea recoloca a questatildeo em

outro contexto e com elementos diversos

ldquoEsteacutetica mdash O estudo ou a teoria do belo Considera-se habitualmente que eacute muito mais uma parte da filosofia do que das Belas-Artes Eacute justo O conceito de belo natildeo eacute belo O conceito de obra de arte natildeo eacute uma obra de arte Eacute por isso que os artistas desconfiam dos esteticistas que tomam o belo por um pensamentordquo (comte-sponville 2011 p 213)

Quanto agrave nossa posiccedilatildeo no desenvolvimento da tese os temas de esteacutetica e nossos

interesses vatildeo aleacutem da questatildeo do belo natildeo somente porque a arte contemporacircnea

ultrapassou sobremaneira esse referencial claacutessico mas porque as proposiccedilotildees esteacuteticas

dizem respeito tambeacutem ao campo do design

Tendo como referecircncia essa lista terminoloacutegica a seguir na figura 1 apresentamos

uma ordenaccedilatildeo e hierarquizaccedilatildeo de algumas das aacutereas da filosofia que seratildeo tematizadas

na tese O graacutefico inclui trecircs objetos de estudo dessas aacutereas mdash ciecircncia teacutecnica e arte mdash mas

natildeo propriamente o design A natildeo explicitaccedilatildeo do design se deve como veremos a certa

indeterminaccedilatildeo desse campo que no estaacutegio atual de seu desenvolvimento tanto pode

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ser abordado como objeto de estudo por qualquer das disciplinas filosoacuteficas do graacutefico

quanto pode ser entendido como pertencendo agrave ciecircncia agrave teacutecnica e agrave arte

Ressaltamos que o graacutefico representa o nosso entendimento e obviamente existem

muitas outras ordenaccedilotildees6 estabelecidas Entre essas classificaccedilotildees encontram-se aque-

las que eliminam aacutereas apresentadas no graacutefico (como a dos empiristas que excluem a

6 As divergecircncias na classificaccedilatildeo das aacutereas da filosofia eacute tatildeo antiga quanto a disciplina De autor para autor somam-se a essas diferentes ordenaccedilotildees o problema dos significados da terminologia adota-dos por cada estudioso gerando inuacutemeras variantes Tal situaccedilatildeo se agrava quando esse arcabouccedilo eacute conduzido para outros campos como o design No entanto a filosofia diversamente de outras aacutereas do conhecimento sempre retorna agraves mesmas questotildees mdash por sua proacutepria escolha e decisatildeo que eacute a de primeiramente problematizar mdash e seu vocabulaacuterio necessitar ser enriquecido enquanto ela estabelece suas proposiccedilotildees Assim novas divisotildees e tambeacutem acepccedilotildees satildeo bem-vindas a esse campo como ocorre em um dicionaacuterio A exemplo disso o dicionaacuterio Ferrater Mora inicia o verbete filosofia afirmando que ldquoentre os problemas que se colocam com relaccedilatildeo agrave filosofia estatildeo (i) o do termo lsquofilosofiarsquo (ii) o da origem da filosofia (iii) o da sua significaccedilatildeo e da divisatildeo da filosofia em diversas disciplinas Desses problemas (iii) eacute o mais discutido e o que ocuparaacute a maior parte do presente verbeterdquo (ferrater mora 1987 v 2 p 1175-1176) Itaacutelico nosso traduccedilatildeo nossa

FILOSOFIA

METAFIacuteSICA

ESTEacuteTICA

ONTOLOGIA

TEORIA

DO CONHECIMENTOGNOSEOLOGIA

EPIST

EMOLO

GIAFILOSOFIA DA CIEcircNCIA

CIEcircNCIAamp

TEacuteCNICAARTE

O SER EOS ENTES EM GERAL

Figura 1 Representaccedilatildeo de aacutereas articuladas na tese Dentro da aacuterea azul se situam outros campos de atuaccedilatildeo da filosofia natildeo representados Ciecircncia teacutecnica e arte natildeo estatildeo representados como aacutereas mas como objetos de estudo fonte autor

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metafiacutesica) ou aquelas que constroem uma hierarquizaccedilatildeo diferente (como a proposta

por Heidegger que retira a ontologia do interior da metafiacutesica e opotildee radicalmente essas

duas aacutereas) De qualquer modo a siacutentese da lista anterior disposta na figura 1 tem seus

propoacutesitos busca esclarecer ao leitor uma hierarquia e um espectro de aacutereas com os quais

identificamos os temas da tese e contribui como uma espeacutecie de fio condutor na demar-

caccedilatildeo do caminho enquanto nos movemos no interior dos capiacutetulos

Uma uacuteltima ressalva deve ser feita com relaccedilatildeo agrave escrita da tese No periacuteodo de sua

elaboraccedilatildeo algumas partes foram apresentadas em congressos e outras submetidas a

perioacutedicos na forma de artigos o que naturalmente produziu criacuteticas ao nosso trabalho

tanto por parte de avaliadores quanto de outros pesquisadores Parte dessas criacuteticas foi

respondida com correccedilotildees de rumo e ajustes no texto Outras pelo seu caraacuteter mais espe-

ciacutefico foram incorporadas na forma de perguntas colocadas por interlocutores hipoteacuteti-

cos e potenciais uma vez que infelizmente na eacutepoca natildeo os pudemos identificar Nesse

sentido tais interlocutores natildeo pretendem ter funccedilatildeo retoacuterica no texto mas assumem

seu papel de questionar nossas posiccedilotildees os quais procuramos responder

12 Percursos preacutevios

No ano de 2005 apoacutes a conclusatildeo de minha especializaccedilatildeo em teoria do conhecimento

com um tema em Descartes na Universidade Federal de Minas Gerais tendo compreen-

dido as consequecircncias problemaacuteticas tanto da visatildeo mecanicista do mundo proposta

pelos racionalistas quanto pela sua contraparte empirista busquei concepccedilotildees diversas

e alternativas Naquele momento voltei minha atenccedilatildeo para as conexotildees existentes entre

ciecircncia teacutecnica criaccedilatildeo e criatividade e elegi o design e a arte como uma nova direccedilatildeo

de trabalho Meus primeiros estudos em design ligavam temas da escrita e da tipografia

com projetos que eu implementava para o mercado editorial e se concretizaram tambeacutem

na dissertaccedilatildeo de mestrado na Escola de Design da Universidade do Estado de Minas

Gerais Paralelamente a esses temas especiacuteficos do design graacutefico e da gnoseologia (aacuterea

preferencial desde minha graduaccedilatildeo) direcionei parte do meu tempo para pesquisas no

campo da esteacutetica claacutessica um territoacuterio naquele momento por mim ainda natildeo explorado

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Assim o primeiro passo foi retornar ao meu departamento de origem e cursar uma

disciplina sobre a Poeacutetica de Aristoacuteteles texto claacutessico cuja leitura eacute obrigatoacuteria em es-

tudos de esteacutetica e cujo autor eu jaacute conhecia de pesquisas anteriores voltadas agrave teoria do

conhecimento e agrave ontologia Uma pergunta me movia mas soacute alcanccedilou uma formulaccedilatildeo

mais clara alguns anos depois em quais tipos de fundamentos eacute possiacutevel compreender as

relaccedilotildees entre design e arte

A decisatildeo de frequentar disciplinas isoladas em esteacutetica e filosofia da arte proporcio-

nou-me o alargamento da visatildeo sobre essa aacuterea Aleacutem disso levou-me ao conviacutevio com

pesquisadores de belas-artes comunicaccedilatildeo letras ciecircncias sociais histoacuteria juntamente

com os originaacuterios da filosofia Como consequecircncia forneceu-me campo feacutertil para a

abordagem e o debate de questotildees que se entrelaccedilam ampliando as possibilidades de

reflexatildeo e produzindo discussotildees com esses pesquisadores elementos essenciais para a

elaboraccedilatildeo de um tema comparativo como o meu

O contato com as reflexotildees de Vileacutem Flusser um caso raro de filoacutesofo que leva o de-

bate para o interior do design natildeo somente acrescentou controveacutersias agraves discussotildees mas

tambeacutem indicou pontos em comum com o meu tema Naquele momento a comunidade

acadecircmica voltava sua atenccedilatildeo para esse autor creio que em parte devido agrave publicaccedilatildeo de

algumas de suas obras ateacute entatildeo ineacuteditas que colocam em pauta filosofia design arte e

comunicaccedilatildeo Seu livro poacutestumo O mundo codificado por uma filosofia do design e da

comunicaccedilatildeo de 2007 revela no proacuteprio tiacutetulo essa conexatildeo e torna-se no meu entendi-

mento uma provocaccedilatildeo agrave filosofia no sentido de desafiaacute-la a pensar questotildees fora de um

confortaacutevel ciacuterculo de conhecimento jaacute estabelecido Outro exemplo eacute a sua conferecircncia

Criaccedilatildeo cientiacutefica e artiacutestica (1982) que apesar de localizar a cisatildeo entre arte e ciecircncia na

modernidade (periacuteodo que considero muito distante no tempo em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo

de uma das minhas hipoacuteteses) reforccedilou a crenccedila no valor da problematizaccedilatildeo da sepa-

raccedilatildeo entre esses dois campos

Como desdobramento dessas leituras cheguei ateacute Rafael Cardoso em seu artigo

Design Cultura material e o fetichismo dos objetos (1998) Cardoso historiador da arte

e do design organiza e prefacia O mundo codificado de Flusser (2005) Ao investigar um

pouco mais encontrei aleacutem de algumas concepccedilotildees concordantes entre esses dois autores

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uma questatildeo relevante para o encaminhamento da tese uma controveacutersia natildeo expliacutecita

que os coloca em posiccedilotildees ontologicamente distintas em relaccedilatildeo ao ato de projetar do

design Neste sentido independentemente das discordacircncias que tenho em relaccedilatildeo agraves

posiccedilotildees de Flusser foi um estiacutemulo encontrar um filoacutesofo disposto a especular sobre o

design colocando esse campo em um lugar de destaque na reflexatildeo teoacuterica e natildeo apenas

no acircmbito da produccedilatildeo

Somou-se a isso a defesa que o teoacuterico do design Bernhard Buumlrdek (2006) faz da filo-

sofia credenciando-a como um dos instrumentos a serem empregados na constituiccedilatildeo de

fundamentos do design Esses autores fortaleceram minha decisatildeo de abordar o problema

das relaccedilotildees entre design e arte com o auxiacutelio de conceitos filosoacuteficos

Uma vez que minha atenccedilatildeo natildeo se restringia ao campo artiacutestico ou do design mas

se concentrava nas bases das relaccedilotildees entre design e arte cursei outras disciplinas que

pudessem contribuir para o entendimento das diferenccedilas entre objetos artiacutesticos e demais

objetos da produccedilatildeo humana As reflexotildees sobre esteacutetica e filosofia da arte em Arthur

Danto cumpriram essa funccedilatildeo na medida em que esse autor em busca da compreensatildeo

do universo da arte contrapotildee objetos de arte a outros objetos como os artefatos e a

atividade de criaccedilatildeo dos artistas a outras atividades Nas suas palavras

Creio que subsistem perplexidades anaacutelogas na anaacuteloga teoria da arte segundo a qual um objeto material (ou artefato) eacute uma obra de arte quando o arcabou-ccedilo institucional do mundo da arte assim o considera A teoria institucional da arte natildeo explica embora permita justificar por que a Fonte de Duchamp passou de mera coisa a obra de arte por que aquele urinol especiacutefico mereceu tatildeo impressionante promoccedilatildeo enquanto outros urinoacuteis obviamente idecircnticos a ele continuaram relegados a uma categoria ontologicamente degradada[7] A teoria deixa ainda em aberto o problema de outros objetos indiscerniacuteveis dos quais um eacute uma obra de arte e o outro natildeo (danto 2005 p 39)

Talvez pelo fato de ter se envolvido anteriormente em questotildees de filosofia analiacutetica

o estilo dialeacutetico como Danto empreende suas anaacutelises esteacuteticas especialmente em seu

livro A transfiguraccedilatildeo do lugar-comum uma filosofia da arte (2005) aleacutem de ser o gatilho

7 Como veremos no capiacutetulo 3 Heidegger natildeo compartilha essa ideia de rebaixamento ontoloacutegico dos demais objetos em relaccedilatildeo agrave arte Ao contraacuterio de Danto para ele a arte eacute essencial para ampliar a compreensatildeo dos chamados objetos utilitaacuterios ou utensiacutelios

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para investigaccedilotildees subsequentes contribuiu para assegurar-me de assumir um pressuposto

ontoloacutegico na pesquisa sem perder de vista os fundamentos gnoseoloacutegicos adquiridos an-

teriormente Nessa trajetoacuteria busquei outros autores que possibilitassem pensar elementos

relacionais ao design e agrave arte na mesma clivagem

Reler a Obra aberta (1988) de Umberto Eco com novos objetivos em mente e um

novo olhar me fez avanccedilar na compreensatildeo de uma das categorias de discursos persuasivos

elaborados por Aristoacuteteles (o epidiacutectico) que se mostrou potencialmente feacutertil para o an-

damento da pesquisa Ao mesmo tempo tal leitura despertou-me para uma convergecircncia

teoacuterica e conceitual diversos estudiosos (entre eles Eco e Danto) ao refletirem sobre os

discursos na comunicaccedilatildeo e as formas de expressatildeo da arte da ciecircncia ou de campos de

algum modo a eles relacionados invariavelmente retornam ao pensamento aristoteacutelico

seja de forma criacutetica ou como fundamento e apoio agraves suas investigaccedilotildees

Assim quando em 2007 cheguei a uma primeira seleccedilatildeo das obras de Aristoacuteteles jaacute

estava orientado para o tema dos discursos aristoteacutelicos assim como para o conceito de

miacutemesis (estudado anteriormente na obra A poeacutetica) entendendo-os como relevantes

para a abordar alguns dos fundamentos das relaccedilotildees entre design e arte Tal recorte

contemplado em duas obras A poeacutetica (1987) e A retoacuterica (1964) foi ampliado em 2010

incluindo A poliacutetica (1986) e A fiacutesica (2009) Essas obras tambeacutem foram essenciais para

a compreensatildeo do que Umberto Eco nomeia como discurso aberto em contraposiccedilatildeo ao

discurso persuasivo em comunicaccedilatildeo

Aleacutem disso A poeacutetica e A fiacutesica forneceram as bases para o entendimento do conceito

aristoteacutelico de miacutemesis um dos elementos centrais na tese A fiacutesica em especial apresenta

o conceito de miacutemesis atrelado aos conceitos gregos de natureza (phyacutesis) e de arte (teacutekh-

ne) Nessa sequecircncia de conexotildees pude compreender como esses trecircs conceitos estatildeo

subsumidos ao conceito mais geral de produccedilatildeocriaccedilatildeo (poacuteiesis) que eacute determinante

para saber como os gregos entendiam as produccedilotildees humanas Mas nesse aspecto o que

eacute mais relevante para o tema e que tambeacutem se encontra no livro A fiacutesica satildeo aquelas

produccedilotildees que se constituem a partir de princiacutepios que estabelecem natildeo um fazer mas

um saber fazer uma teacutekhne dos quais entendo que o design eacute um dos herdeiros tardios

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A compreensatildeo dos fundamentos dessas produccedilotildees se completou com a anaacutelise que

Aristoacuteteles procede na obra A poliacutetica8 sobre as atividades humanas onde ele apresenta a

distinccedilatildeo nos conceitos de coisas uacuteteis coisas belas e de fim em si mesmo Esses conceitos

compotildeem o nuacutecleo da reflexatildeo acerca de caracteriacutesticas distintivas dos objetos de design

e dos objetos artiacutesticos

A partir dessas pesquisas identifiquei um distanciamento entre meus estudos de teoria

do conhecimento e de esteacutetica Essa falta de articulaccedilatildeo entre aacutereas soacute foi compreendida

quando em 2012 pude investigar pensadores alijados da tradiccedilatildeo epistemoloacutegica e criacuteticos

dela como Friedrich Nietzsche e Martin Heidegger Deste modo em um niacutevel subsidiaacuterio

A origem da obra de arte (2004) e A questatildeo da teacutecnica (2007) de Heidegger e O nascimento

da trageacutedia (1992) de Nietzsche contribuem de forma decisiva para a compreensatildeo do

momento histoacuterico da cisatildeo entre ciecircncia e arte no mundo grego Aleacutem disso concorrem

para o entendimento de conceitos gregos fundamentais como o de poacuteiesis phyacutesis episteacuteme

e teacutekhne em interpretaccedilotildees criacuteticas e opostas agrave visatildeo que a epistemologia tradicional tem

dos conceitos contemporacircneos de ciecircncia teacutecnica e arte

Com os estudos que efetuei sobre esses dois pensadores a partir do embate de

concepccedilotildees antinocircmicas pude assegurar-me de uma proposta de mediaccedilatildeo como soluccedilatildeo

de contradiccedilotildees ligadas por exemplo agrave objetividade e subjetividade de campos como o

design e a arte no capiacutetulo 3

Na cadeia de conexotildees retomei tambeacutem um livro de leitura bastante anterior Lingua-

gem e mito (1992) de Ernst Cassirer que fechou o ciacuterculo no diaacutelogo com esses autores

Com isso estabeleci reflexotildees sobre o mito de Prometeu enquanto arqueacutetipo da ciecircncia

e da teacutecnica e o conceito de mediaccedilatildeo como possibilidade de soluccedilatildeo de antinomias que

surgiram ao longo das investigaccedilotildees

Tambeacutem me apoiei em Cassirer na obra Determinism and indeterminism in modern

physics historical and systematic studies of the problem of causality (1956) utilizando sua

8 Do mesmo modo que as questotildees e os conceitos se entrelaccedilam no pensamento antigo as obras claacutessicas natildeo tecircm uma temaacutetica claramente delimitada como passa a ocorrer na modernidade Deste modo encontra-se por exemplo em uma obra com o tiacutetulo de A poliacutetica aleacutem dos temas proacuteprios ao nome questotildees que hoje seriam classificadas dentro da esteacutetica Esse natildeo eacute um procedimento exclusivo de Aristoacuteteles Platatildeo tem um dos momentos cruciais da sua criacutetica ontoloacutegica agrave arte mimeacutetica em sua obra A repuacuteblica

30

interpretaccedilatildeo dos princiacutepios de complementaridade indeterminaccedilatildeo e causalidade na

fiacutesica quacircntica Este autor contribui tanto ao entendimento do conceito de ldquometaacutefora

epistemoloacutegicardquo de Eco aplicada ao mundo da arte mdash em especial a arte contemporacircnea

e as conexotildees que Eco faz com a fiacutesica quacircntica mdash bem como subsidia as minhas apro-

priaccedilotildees e criacuteticas a esses conceitos no design

Por indicaccedilatildeo de meu orientador que identificou a estreita relaccedilatildeo entre os temas da

filosofia da teacutecnica e do design com as reflexotildees de Tomaacutes Maldonado pude acrescentar

autores e temas que subsidiam as minhas consideraccedilotildees sobre as distinccedilotildees entre ciecircncia

teacutecnica arte e design Neste sentido os capiacutetulos Pensar a teacutecnica hoje A ldquoidade projetualrdquo

e Daniel Defoe e Os oacuteculos levados a seacuterio do livro Cultura sociedade e teacutecnica trazem agrave tona

o debate de temas proacuteprios do design que Maldonado (2012) explora em profundidade

Ao construir o quadro geral de autores e temas percebi que o retorno a Aristoacuteteles

estava claramente vinculado a Platatildeo Natildeo era possiacutevel construir os argumentos em tor-

no das minhas posiccedilotildees sem me referir de algum modo agraves concepccedilotildees platocircnicas Essa

necessidade se deu por pelo menos dois motivos

Em primeiro lugar os autores centrais para a constituiccedilatildeo do arcabouccedilo da tese re-

tornam expliacutecita ou implicitamente a Platatildeo Aristoacuteteles trata de forma oposta e criacutetica a

seu mestre os conceitos de arte e de miacutemesis que me interessam Nietzsche e Heidegger

mesmo de modo distinto tambeacutem se insurgem contra Platatildeo e a tradiccedilatildeo ocidental esta-

belecida em torno da concepccedilatildeo de ciecircncia teacutecnica e arte em certo sentido derivada das

influecircncias teoacutericas desse pensador Desses embates extraiacute elementos para compreender

natildeo somente a cisatildeo mas tambeacutem a hierarquizaccedilatildeo entre campos do saber que manti-

nham uma equivalecircncia na antiguidade preacute-platocircnica Na esteira desses autores tambeacutem

se direcionam Eco e Danto tendo em Platatildeo o catalizador inicial de questotildees que movem

o pensamento no Ocidente

Em segundo talvez o mais relevante motivo se as preocupaccedilotildees de Platatildeo satildeo de

ordem gnoseoloacutegica o tratamento que ele oferece para distinguir e hierarquizar ciecircncia

teacutecnica e arte eacute de caraacuteter ontoloacutegico Sua obra A repuacuteblica (1987) mdash especialmente o livro

x mdash traz uma criacutetica radical agrave arte mimeacutetica natildeo sem razatildeo conhecida como a Criacutetica

ontoloacutegica Essa abordagem inevitavelmente obriga aqueles que discordam ou natildeo de

Platatildeo a discutirem a questatildeo passando de algum modo pelo crivo ontoloacutegico

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Quanto a mim jaacute estava persuadido da relevacircncia de uma abordagem que leva em

conta o problema do ser quando investiguei O princiacutepio de causalidade e a prova ontoloacutegica

da existecircncia de Deus em Descartes Mas entre esse estudo realizado haacute mais de 20 anos e

uma trajetoacuteria que culminaria no tema de doutorado soacute me tornei plenamente consciente

da relevacircncia da ontologia em minhas investigaccedilotildees quando o design e a arte se uniram

em um tema de pesquisa Percebi entatildeo seus desdobramentos expliacutecitos ou impliacutecitos em

trabalhos de autores contemporacircneos como Heidegger Danto e Flusser

Ao longo desse percurso em diversos momentos surpreendi-me com algumas con-

tradiccedilotildees A contribuiccedilatildeo de Kant um filoacutesofo das mediaccedilotildees que dirige sua atenccedilatildeo para

antinomias e paradoxos e de seu leitor e interprete contemporacircneo Thierry de Duve

(com suas anaacutelises sobre a guinada na arte contemporacircnea a partir de Marcel Duchamp)

foi determinante para eu natildeo desistir dessa empreitada complexa e guiou-me no caminho

que ultrapassa os limites da esteacutetica e da gnoseologia

Durante o processo de recorte e interconexatildeo entre autores e temas uma uacuteltima

demanda se fez presente ampliar a identificaccedilatildeo dos conceitos teoricamente reelaborados

nos processos do design e na praacutetica artiacutestica No caso da arte o caminho se descortinou

rapidamente uma vez que as reflexotildees de Arthur Danto inserem a Pop-Art como

protagonista Dentro deste contexto Danto elege Andy Warhol como uma de suas

principais referecircncias nas discussotildees sobre arte contemporacircnea Ao ler uma citaccedilatildeo

do escritor Edmund White em um ensaio de Danto tive a certeza de que Warhol natildeo

poderia deixar de ser incluiacutedo

Andy tomou todas as definiccedilotildees concebiacuteveis da palavra arte para desafiaacute-la A arte revela o traccedilo da matildeo do artista Andy optou pela serigrafia Um trabalho de arte eacute um objeto uacutenico Andy surgiu com os muacuteltiplos Um pintor pinta Andy fez cinema A arte eacute divorciada do comercial e do utilitaacuterio Andy se especiali-zou nas latas de sopa Campbell e Notas de Doacutelar A pintura pode ser definida em contraste com a fotografia Andy recicla meras fotografias Um trabalho de arte eacute o que um artista assina prova do seu trabalho criativo de suas intenccedilotildees Andy assinava qualquer objeto (danto 2001 p 106)

Warhol aleacutem de artista e um dos iacutecones da Pop-Art tambeacutem trabalhou no acircmbito

da publicidade e do design e suas obras de arte tecircm a contribuiccedilatildeo e a interseccedilatildeo desses

campos Essa conexatildeo DantondashPop-ArtndashWarhol foi oportuna para o momento de colocar

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a prova no mundo sensiacutevel a tese e o ensaio O filoacutesofo como Andy Warhol (2001) junta-

mente com os livros A filosofia de Andy Warhol (2010) e Popism de Andy Warhol (2010)

deram suporte a esta etapa Para contemplar o design nesse recorte optei por Philippe

Starck Minha intenccedilatildeo foi destacar como no caso da arte um designer reconhecido pelo

conjunto de sua produccedilatildeo que bordeja segundo criacuteticos o universo da arte Os livros

homocircnimos Philippe Starck de Judith Carmel-Arthur (2000) e de Cristina Morozzi

(2012) foram referecircncias em que me apoiei

Essa trajetoacuteria envolve diversos autores que tecircm espectros ideoloacutegicos distintos

Nesse sentido me inspirei na habilidade de Danto e Eco em construir seus raciociacutenios

percorrendo autores e temas na histoacuteria do pensamento Minha intenccedilatildeo eacute balizar cada

uma das contribuiccedilotildees de todos esses autores entendendo os conceitos e princiacutepios

dos quais me aproprio e que uma vez adaptados ou alterados para o propoacutesito da tese

proporcionam parte da base para o percurso empreendido

13 Questotildees norteadoras

As relaccedilotildees que diversos campos cientiacuteficos e tecnoloacutegicos tecircm estabelecido entre si

tornam-se cada vez mais objeto de reflexatildeo de pesquisadores que atuam nos territoacuterios

mais especiacuteficos da epistemologia ou naqueles de acircmbito mais geral da teoria do conhe-

cimento Esses estudiosos apoiando-se na metafiacutesica ou recorrendo agrave ontologia buscam

compreensatildeo dos fundamentos dessas relaccedilotildees e em domiacutenios especiacuteficos podem reavaliar

os princiacutepios e as metas que orientam o avanccedilo do saber Se aacutereas como as das matemaacuteticas

ainda se mantecircm ou acreditam se manter em certa medida imunes agraves influecircncias de ou-

tras o mesmo natildeo ocorre com as ciecircncias humanas sociais sociais aplicadas e ateacute com as

ciecircncias naturais e fiacutesicas Quando se trata de analisar as relaccedilotildees e interlocuccedilotildees de dois

ou mais campos cientiacuteficos quaisquer tal tarefa por mais complexa que seja encontra ao

seu dispor elementos estruturais desses campos jaacute secularmente elaborados Assim se for

necessaacuterio recuar ateacute essas bases ainda se atua com aacutereas do conhecimento plenamente

33

estabelecidas e com delimitaccedilatildeo teoacuterica experimental e pragmaacutetica que as suportam o

que minimamente orienta o trabalho do pesquisador

No entanto eacute necessaacuterio refletir sobre as bases dessas relaccedilotildees quando as mesmas

envolvem aacutereas que natildeo concentram seus interesses em elaboraccedilotildees de caraacuteter cientiacutefico

ou na delimitaccedilatildeo das suas fronteiras de atuaccedilatildeo como ocorre com a arte Eacute preciso

tambeacutem o mesmo cuidado com campos que ainda estatildeo constituindo seus fundamentos

teoacutericos como o design

O design enquanto um campo que emerge das ciecircncias sociais aplicadas tem ao seu

dispor e pode se apropriar dos subsiacutedios conceituais provenientes da comunicaccedilatildeo da

sociologia e da filosofia bem como dos avanccedilos tecnoloacutegicos das diversas engenharias e da

ciberneacutetica Poreacutem ainda carece mdash em parte por sua constituiccedilatildeo histoacuterica relativamente

recente e talvez pela constante movimentaccedilatildeo de suas fronteiras de atuaccedilatildeo mdash de um corpo

organizado coerente e delimitado de fundamentos assim como de uma definiccedilatildeo unifi-

cada de seu conceito enquanto aacuterea Conforme afirma o teoacuterico e designer Gui Bonsiepe

Simultaneamente emerge a contradiccedilatildeo entre a difusatildeo do termo design e os limites da teorizaccedilatildeo do fenocircmeno O design eacute hoje um fenocircmeno teoricamente inexplorado apesar de achar-se difundida sua presenccedila na vida cotidiana e na economia Como se explica esta falta de teoria Evitando dar uma resposta simplista se pode sustentar que existe uma correlaccedilatildeo entre a fragilidade do discurso projetual e a carecircncia de uma teoria convincente do design O design eacute ateacute agora um domiacutenio sem fundamento (bonsiepe 1993 p21) Itaacutelicos nossos traduccedilatildeo nossa

Mais de uma deacutecada depois do que escreveu Bonsiepe o designer e historiador do

design Bernhard Buumlrdek sinaliza para os mesmos problemas Buumlrdek tambeacutem encontra-se

entre aqueles pesquisadores que defendem a constituiccedilatildeo de uma teoria do design atenta

aos alicerces das ciecircncias humanas Seus argumentos tecircm em consideraccedilatildeo particularmente

a filosofia quando se trata de refletir sobre aspectos teoacutericos e metodoloacutegicos dos quais

o design ainda necessita

No desenvolvimento da metodologia e teoria do design as ciecircncias humanas tecircm um papel muito especial A constante crise dos sentidos da disciplina faz sentir uma maior necessidade de reflexatildeo e teoria de filosofia Por isso eacute necessaacuterio

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verificar que aspectos da teoria do design ou da metodologia do design tecircm fundamento na filosofia europeia[9] (buumlrdek 2006 p 227)

Nesta mesma direccedilatildeo satildeo conduzidos os argumentos mais recentes do designer e

historiador do design Beat Schneider ao apontar para algumas lacunas do design que

reforccedilam a necessidade de reflexatildeo sobre as bases teoacutericas desse campo

[] eacute preciso abordar os pontos fracos do design Entre eles estaacute a falta de um debate sobre o gecircnero na profissatildeo assim como o seu lado sexista e o eurocen-trismo do design Mas eacute sobretudo a deficiecircncia teoacuterica da profissatildeo do design que se expressa na fatal natildeo teorizaccedilatildeo do contexto econocircmico social e poliacutetico (SCHNEIDER 2010 p 193)

Sintoma dessas indeterminaccedilotildees eacute o fato de o design antes do seacuteculo xx mas es-

pecialmente nos uacuteltimos cem anos apresentar e defender diversas propostas agraves vezes

sobre a forma de manifestos que buscam tanto uma definiccedilatildeo do campo quanto de suas

atividades Beat Schneider ao analisar a questatildeo recua bastante no tempo em uma busca

etimoloacutegica para a palavra ldquodesignrdquo Este autor tambeacutem afirma que o verbete design

consta no Oxford English Dictionary10 pela primeira vez em 1588 Tendo como ponto

de partida essa data Schneider11 (2010 p 195-196) apresenta uma seacuterie de definiccedilotildees do

design histoacuterica e geograficamente localizadas

9 Buumlrdek tambeacutem indica como meacutetodos a fenomenologia de Husserl e a hermenecircutica de Schleiermacher Dilthey e Gadamer teorias filosoacuteficas essas que segundo ele jaacute se encontram minimamente aplicadas em pesquisas de design (burdek 2006 p 239-251) Eacute importante ressaltar que tais teorias podem tambeacutem ser empregadas em outras aacutereas do conhecimento posicionadas nem sempre especificamente dentro das ciecircncias humanas e sociais como ocorre por exemplo com a Teoria geral dos sistemas do bioacutelogo e filoacutesofo Ludwig von Bertalanffy e de seu disciacutepulo Ervin Laszlo Bertalanffy (2012) busca nos sistemas um fundamento comum agrave biologia e demais ciecircncias naturais assim como agraves ciecircncias sociais e histoacutericas Quanto ao eurocentrismo de Buumlrdek poderemos pelo menos atenuaacute-lo se atuarmos localmente criando maiores oportunidades para o intercacircmbio natildeo somente entre os ramos tradicio-nais da filosofia e do design mas entre esse e as diversas aacutereas das ciecircncias humanas e sociais

10 Ao retirar essa definiccedilatildeo do Oxford English Dictionary Schneider natildeo diz que este dicionaacuterio tambeacutem informa como origem do verbo designare (designar) natildeo o italiano mas o latim e que a forma subs-tantivada deriva do italiano para o francecircs De qualquer modo natildeo podemos nos esquecer de que tanto o italiano quanto o francecircs satildeo liacutenguas neolatinas o que faz recuar a palavra a um periacuteodo muito anterior a 1588 Aleacutem disso se o termo proveacutem do latim e vai para o inglecircs mdash uma liacutengua de origem natildeo itaacutelica mdash posteriormente retorna agraves liacutenguas neolatinas como o italiano o francecircs o espanhol e o portuguecircs com acepccedilotildees diversas das originais em latim

11 Na constituiccedilatildeo da lista Schneider tem como referecircncia Bernhard Buumlrdek Gui Bonsiepe Alan Findeli Victor Papanek e Cordula Meier

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bull Renascimentoldquo[]disegno interno significava o esboccedilo de uma obra de arte a ser

realizada o projeto o desenho e de uma forma bem geneacuterica a ideia em que se ba-

seava um trabalho Jaacute o disegno esterno significava a obra executadardquo (schneider

2010 p 195) O conceito de disegno neste momento natildeo se distingue de modo

claro da arte mas apresenta uma divisatildeo entre processo (disegno interno) e resultado

(disegno esterno)

bull Seacuteculoxix com projetos de objetos para a induacutestria surge a tematizaccedilatildeo sobre o

significado do ldquonovo fenocircmenordquo12 ldquoTratava-se em sua maior parte da sua distinccedilatildeo

de um lado perante a arte e de outro perante o artesanato ou as chamadas lsquoartes e

ofiacuteciosrdquo (schneider 2010 p 195) Nos paiacuteses de liacutengua alematilde apoacutes 1865 satildeo pro-

postos vaacuterios termos para tentar definir a atividade da profissatildeo Kunstgewerbe (artes

aplicadas agrave induacutestria) Kunsthandwerk (artes e ofiacutecios) Kunstindustrie (induacutestria

artiacutestica) Werkkunst (arte fabril) angewandter Kunst (arte aplicada) e dekorativer

Kunst (arte decorativa)

bull Seacuteculoxx (antes de 1970) ainda persiste nos paiacuteses de liacutengua alematilde uma terminologia

vernacular como industrieller Formgebung (conformaccedilatildeo de produtos industriais)

Industrie-Entwurf (projeto industrial) Industrie-Formgestaltung (configuraccedilatildeo de

produtos industriais) e Gestaltung (criaccedilatildeoconfiguraccedilatildeo de produtos)

bull Seacuteculoxx (apoacutes 1970) o termo design alcanccedila inclusive os paiacuteses de liacutengua alematilde

Nas deacutecadas finais desse seacuteculo na Franccedila o termo passa a substituir arts deacutecoratifs

A lista de Schneider poderia ser bastante ampliada se o autor incluiacutesse juntamente

com essa terminologia em grande parte de liacutengua alematilde os diversos conceitos que cada

12 Tanto Schneider quanto Bonsiepe (cf citaccedilatildeo p 33) fazem uso do termo fenocircmeno associando-0 ao design Ateacute onde pudemos ver esses autores natildeo explicitam de qual acepccedilatildeo de fenocircmeno se trata Tendo em conta que Schneider entende ldquoo design como ciecircncia jovemrdquo (schneider 2010 p 193) e Bonsiepe tem expectativa de que no futuro as perspectivas da cogniccedilatildeo da ciecircncia e do projeto no design ldquoacabem se fundindordquo (bonsiepe 2011 p 19) conjecturamos que fenocircmeno possa significar objeto do conhecimento no sentido lato estabelecido desde Kant Se assim for o design eacute um tema de teoria do conhecimento ou mais especificamente de filosofia da ciecircncia para Bonsiepe assim como o eacute para Maldonado (2010) Com relaccedilatildeo a Schneider como veremos no capiacutetulo 2 sua posiccedilatildeo conduz a um ciacuterculo vicioso

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termo agregou ao longo de suas trajetoacuterias em escolas como a Bauhaus e Ulm entre

outras espalhadas pelo mundo Mas para o argumento de Schneider e tambeacutem para o

nosso mais relevante do que um glossaacuterio histoacuterico exaustivo eacute sua conclusatildeo de que ainda

ldquohoje natildeo eacute possiacutevel uma definiccedilatildeo precisa e unitaacuteria do conceitordquo de design (schneider

2010 p 196) Tal imprecisatildeo segundo ele existe por vaacuterios motivos O primeiro seria as

mudanccedilas de significado que ocorreram desde o Renascimento ateacute a atualidade O se-

gundo diz respeito ao acircmbito de aplicaccedilatildeo do design que continua a crescer O terceiro

as ldquosituaccedilotildeesrdquo em que o termo design estaacute associado ldquocomo um procedimento (o ato ou

a atividade de projetar) ao resultado desse processo (um design um esboccedilo um plano ou

modelo) ou a produtos que foram gerados por meio de um design (design de objetos)rdquo

(schneider 2010 p 196)

Aleacutem da identificaccedilatildeo de todas essas variaccedilotildees terminoloacutegicas e conceituais o autor

acrescenta mais um problema agrave indeterminaccedilatildeo do conceito de design

Hoje nos meios especializados haacute um descontentamento com o uso inflacionaacuterio do conceito E sobretudo para escapar agrave restriccedilatildeo dominante agrave pura designaccedilatildeo de objetos Gui Bonsiepe por exemplo propotildee para a liacutengua alematilde os termos Entwerfen e EntwerferIn (projeto e projetista) Para o francecircs Alain Findeli pocircs em discussatildeo os termos projet e projecteur (schneider 2010 p 196)

Neste sentido podemos constatar no miacutenimo uma incongruecircncia quando a palavra

design eacute incorporada a outras liacutenguas Qual seja o uso generalizado do termo exclusivamente

em inglecircs natildeo garante a unidade do conceito Natildeo podemos nos esquecer de acrescentar a

esse desacordo e ao uso inflacionaacuterio de que nos fala Schneider o surgimento de novas

categorias ao lado das tradicionais design graacutefico e design de produto13 Tais subdivisotildees

e especialidades vecircm se impondo com o uso de substantivos e adjetivos incorporados ao

13 Schneider considera ateacute mesmo design graacutefico e design de produto como categorias ldquoquestionaacuteveisrdquo tanto do ponto de vista da teoria quanto da praacutetica O autor afirma que as escolas tecircm dificuldades com estas subdivisotildees tradicionais argumentando que se baseiam na segunda e terceira dimensatildeo fiacutesica (schneider 2010 p 205) Discordamos da subdivisatildeo tradicional indicada por Schneider Para noacutes o design graacutefico natildeo pode ser pensado sem a terceira dimensatildeo por exemplo os projetos editoriais e de sinalizaccedilatildeo satildeo estruturalmente tridimensionais Poreacutem enquanto atuando no ensino de design graacutefico entendemos que existe uma crescente especializaccedilatildeo nos projetos das duas catego-rias que favorece a separaccedilatildeo em aacutereas dentro dos cursos Mas com o avanccedilo da desmaterializaccedilatildeo dos produtos e a compreensatildeo de que design graacutefico tambeacutem gera produtos a divisatildeo talvez soacute faccedila sentido no acircmbito curricular

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termo design que em alguns casos poderiam ou deveriam ser inerentes ao seu conceito

como design ecoloacutegico ou ecodesign e design estrateacutegico entre outros Acerca deste tema

Bonsiepe eacute provocativo ao afirmar que ldquoagraves vezes tenho a impressatildeo de que um designer

que aspire a dois minutos de fama se sente obrigado a inventar um roacutetulo que sirva como

marca para se diferenciar dos demais profissionaisrdquo (bonsiepe 2011 p 17) Em recente

conferecircncia em seu discurso Bonsiepe foi taxativo ao exemplificar algumas consequecircn-

cias dessa indeterminaccedilatildeo

Haacute alguns anos ocorre um fenocircmeno surpreendente o uso inflacionaacuterio da palavra ldquodisentildeordquo ou ldquodesignrdquo atraente devido agrave sua imprecisatildeo e polissemia Eacute a proacutepria indeterminaccedilatildeo do conceito de ldquodesignrdquo que o torna tatildeo atraente A crescente atratividade da palavra ldquodesignrdquo manifesta-se de forma ilustrativa no uso do termo amplamente difundido ldquodesign thinkingrdquo Se com este termo quer referir-se agrave forma especiacutefica como os designers abordam um problema isso natildeo eacute uma novidade para os profissionais de design Talvez possa estimular o interesse em revelar o funcionamento dessa capacidade supostamente especiacutefica O perigo no entanto consiste em fazer supor ou insinuar-se que um diploma em design thinking habilita para fazer design profissionalmente fazer projetos de forma concreta Portanto natildeo eacute de surpreender-se que por exemplo um conhecido cientista da anaacutelise de interfaces digitais e artefatos materiais ques-tione a legitimidade do uso desse conceito que para ele eacute o que se conhece pelo antigo termo ldquocriatividaderdquo (Donald Norman) Suponhamos que haja algo como medical thinking e certificados para medical thinking Natildeo obstante um paciente consultaraacute um meacutedico de cura competente e natildeo um medical thinking que nunca curou um paciente em sua vida (bonsiepe 2019) Traduccedilatildeo nossa

Um uacuteltimo exemplo de compreensatildeo do design enquanto um campo de indeterminaccedilatildeo

e limitaccedilotildees que carrega um tom otimista e esperanccediloso eacute a posiccedilatildeo de Rafael Cardoso

Precisamos pensar com ousadia imaginar o que o design pode vir a ser para aleacutem das circunstacircncias imediatas e das limitaccedilotildees passadas Pensar em design natildeo como um corpo de doutrinas fixo e imutaacutevel mas como um campo em plena evoluccedilatildeo Algo que cresce de modo contiacutenuo e se transforma ao crescer Um caminho que se revela ao ser percorrido O design eacute muito maior e mais dinacircmico do que qualquer uma de suas manifestaccedilotildees especiacuteficas Trata-se de uma aacuterea por demais complexa e multifacetada para caber em qualquer defini-ccedilatildeo estreita muito menos para ser reduzida agrave praacutetica de determinado indiviacuteduo ou escola Campo jovem o design encontra-se ainda em fase de aprendizado e experimentaccedilatildeo (cardoso 2016 p 238)

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Em contraposiccedilatildeo ao design a arte cujo conceito em seu sentido ocidental e lato vem

modificando-se desde os gregos preserva seu nome com as respectivas traduccedilotildees para

diversas liacutenguas Aleacutem disso conforme afirma Umberto Eco apesar de a arte produzir

obras apoiando-se em programas de produccedilatildeo (poeacuteticas) e estar de algum modo ligada

aos diversos elementos da cultura inclusive a campos cientiacuteficos e tecnoloacutegicos o dis-

curso da mesma natildeo busca a univocidade como o da ciecircncia (eco 1988) Na atualidade

a dificuldade ateacute de falarmos sobre programas de produccedilatildeo e de uma histoacuteria da arte

contemporacircnea reforccedilam os problemas em se encontrar definiccedilotildees natildeo efecircmeras para

a arte Nesse contexto a questatildeo eacute ainda podemos falar de uma histoacuteria da arte na con-

temporaneidade A esse propoacutesito Rodrigo Duarte (2006) no livro Arte no pensamento

apresenta uma anaacutelise sobre O tema do fim da arte na esteacutetica contemporacircnea Depois de

percorrer as concepccedilotildees de pensadores que trataram diferentemente dessa questatildeo desde

Hegel Marx Nietzsche Lukacs Benjamin Heidegger Horkheimer e Adorno Duarte

chega aos dias atuais com a visatildeo de Arthur Danto e afirma

Danto reconhece que a designaccedilatildeo lsquocontemporacircneorsquo eacute fraca mas diante da constataccedilatildeo de que lsquopoacutes-modernorsquo mdash outro roacutetulo possiacutevel para a produccedilatildeo artiacutestica atual mdash eacute muito forte ele manifesta sua preferecircncia pela denomi-naccedilatildeo lsquoarte poacutes-histoacutericarsquo Essa significa dentre outras coisas que os filoacutesofos devem carregar a responsabilidade pela compreensatildeo das obras e os artistas podem simplesmente usufruir a liberdade de estar para aleacutem da histoacuteria (duarte 2006 p 408)

Concordando com Duarte e Danto se assumimos tal responsabilidade eacute preciso

enfrentar o indeterminado Poreacutem de certo modo tal indeterminaccedilatildeo ou uma recusa

por determinaccedilatildeo da proacutepria arte se revela no tom de perplexidade do proacuteprio Danto

Definir arte eacute uma tarefa tatildeo esquiva que a quase cocircmica inaplicabilidade das definiccedilotildees filosoacuteficas da arte agrave proacutepria arte tem sido explicada pelos poucos que perceberam nessa inaplicabilidade um problema como resultado da inde-finibilidade da arte (danto 2005 p 26)

Consequentemente as lacunas apontadas por Bonsiepe Buumlrdek e Schneider nos

fundamentos do design a condiccedilatildeo refrataacuteria da arte a esses gecircneros de fundamentos

indicadas por Eco Duarte e Danto assim como a indeterminaccedilatildeo de ambos os campos

39

por si soacute justificam e abrem espaccedilo para investigaccedilotildees sobre a essecircncia constituiccedilatildeo e

limites de cada um deles no interior de suas proacuteprias esferas de atuaccedilatildeo De um lado o

esforccedilo pela constituiccedilatildeo de uma teoria dentro do campo do design e de outro a esteacutetica

a filosofia da arte e os estudos criacuteticos de belas-artes no territoacuterio da arte acolhem em

seus espaccedilos especiacuteficos pesquisas sobre seus proacuteprios fundamentos Estudos dessa cate-

goria analiacuteticos mas com menos frequecircncia comparativos satildeo usuais e procedem quase

sempre isoladamente dentro de cada aacuterea como entre outros fazem Bonsiepe (1993 2011)

e Buumlrdek (2006) com o design e Heidegger (2004) e Danto (2005) com a arte

Nosso objetivo eacute nos deslocarmos das anaacutelises habituais natildeo elegendo uma dessas

aacutereas (design ou arte) em separado mas aquilo que funda as suas relaccedilotildees Procurando

delimitar os passos a serem seguidos concentramos nossa proposta em um pressuposto

seguido de uma hipoacutetese a se realizar em duas etapas subsequentes

Pressuposto

Distinccedilatildeo entre design e arte a partir da compreensatildeo de que esses dois campos criam

conceitos e objetos em categorias ontologicamente distintas

Hipoacutetese

a) Como consequecircncia do pressuposto a compreensatildeo dos fundamentos das relaccedilotildees

entre design e arte natildeo pode se dar unicamente no acircmbito da teoria do conhecimento

e da esteacutetica mas necessita avanccedilar ateacute o territoacuterio da ontologia Esta transposiccedilatildeo de

aacutereas deve ser construiacuteda com o apoio das reflexotildees de Imamnuel Kant e Thierry de

Duve sobre a esteacutetica e as de Martin Heidegger e Lacoue-Labarthe sobre a ontologia

b) Apesar dessa distinccedilatildeo design e arte estabelecem interlocuccedilatildeo e carreiam para seus

espaccedilos de atuaccedilatildeo especiacutefica elementos conceituais empregados e compartilhados

por ambos os campos cujos embriotildees remontam ao pensamento grego antigo Assim

os fundamentos das relaccedilotildees entre design e arte devem ser explicitados a partir da

seleccedilatildeo e do estudo especiacutefico dos conceitos de miacutemesis de belo e uacutetil e de fim em si

mesmo e do discurso epidiacutectico todos extraiacutedos da obra de Aristoacuteteles e conectados

agraves reflexotildees de Arthur Danto e Umberto Eco na atualidade

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Devemos ressaltar que do ponto de vista loacutegico e argumentativo primeiro eacute preciso

distinguir para em seguida buscar relaccedilotildees Aleacutem disso no nosso entendimento a distin-

ccedilatildeo entre design e arte apesar de atentar para o resultado das produccedilotildees eacute voltada para

os fundamentos desses dois campos Como veremos no capiacutetulo 5 com a anaacutelise de obras

de Philippe Starck e Andy Warhol e da relevante precedecircncia de Marcel Duchamp cada

vez mais o resultado do trabalho de designers e artistas apresenta caracteriacutesticas comuns

agraves duas aacutereas o que pode ensejar a defesa de que design e arte satildeo campos indistintos po-

siccedilatildeo da qual discordamos No entanto como a ausecircncia de unanimidade entre designers

artistas e teoacutericos nesta questatildeo permanece eacute importante vermos alguns exemplos14 de

posiccedilotildees a favor e contra tal distinccedilatildeo

O filoacutesofo e teoacuterico da arte Thierry de Duve (2010) no artigo O que fazer da

vanguarda Ou o que resta do seacuteculo 19 na arte do seacuteculo 20 apresenta o artista Marcel

Duchamp como um ldquomensageirordquo da arte contemporacircnea com o entendimento de que

todos podem ser artistas e tudo pode ser arte Em suas palavras

A pintura e a escultura a paisagem e o nu e todos os ldquoismosrdquo do seacuteculo 20 fazem parte ao contraacuterio da arte em geral jaacute que ela nada exclui e inclui aleacutem disso as praacuteticas recentes mdash a instalaccedilatildeo a arte conceitual ou a videoarte assim como outras que ainda natildeo tecircm nome De fato o teor da expressatildeo eacute o seguinte fazer arte com tudo e com qualquer coisa eacute hoje tecnicamente possiacutevel e institucional-mente legiacutetimo como bem percebeu Suzi Gablik Decerto nem tudo eacute arte A priori poreacutem qualquer coisa pode secirc-lo A arte em geral eacute o nome da novidade de que Duchamp foi mensageiro Esse nome substitui a denominaccedilatildeo geneacuterica

ldquobelas-artesrdquo que corresponde agrave situaccedilatildeo que encarnavam a Academia a Escola e o sistema das belas-artes antes que sua falecircncia fosse declarada pelas vanguardas histoacutericas Portanto qualquer coisa pode ser arte qualquer um pode ser artista Para quem essa eacute uma novidade ruim para quem eacute boa (de duve 2010 p182)

Arthur Danto (2005) eacute outro teoacuterico que invoca esta possibilidade apontando espe-

cificamente para os objetos criados

[] em fases de estabilidade artiacutestica costumava-se pensar que as obras de arte possuiacuteam certas propriedades cuja ausecircncia bastava para pocircr seriamente em duacutevida seu status de arte Mas esse tempo jaacute passou haacute muito e assim como

14 Um estudo extenso e pormenorizado que entre outros temas aborda as posiccedilotildees de designers artistas e teoacutericos sobre a polecircmica em torno da distinccedilatildeo entre design e arte foi elaborado por Andreacute Stolarski (2012) em sua dissertaccedilatildeo de mestrado

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qualquer coisa pode expressar qualquer coisa desde que se conheccedilam as conven-ccedilotildees pertinentes e os fatores que explicam seu status como expressatildeo qualquer coisa pode ser uma obra de arte natildeo haacute condiccedilotildees necessaacuterias enunciaacuteveis na forma de predicados de um lugar Decerto natildeo se deve concluir do fato de que qualquer coisa pode ser uma obra de arte que qualquer coisa o seja A maacutequina de escrever que estou usando poderia ser uma obra de arte mas natildeo eacute O que torna tatildeo interessante o conceito de arte eacute que dizer que minha maacutequina de escrever poderia ser uma obra de arte natildeo eacute o mesmo que dizer que ela eacute um sanduiacuteche de presunto embora um certo sanduiacuteche ateacute pudesse ser (e quem sabe se jaacute natildeo eacute) um objeto de arte Mas a explicaccedilatildeo disso natildeo se encontra unicamente na concepccedilatildeo de que uma obra de arte eacute um objeto relacional a razatildeo deve ser mais profunda (danto 2005 p 113)

Essa abertura proporcionada pela arte contemporacircnea pode conduzir a direccedilotildees que

a primeira vista natildeo seriam previsiacuteveis Paradoxalmente as reflexotildees de Thierry de Duve

e Arthur Danto localizadas exclusivamente no territoacuterio da arte apesar de defenderem

uma distinccedilatildeo da arte e seus objetos em relaccedilatildeo a outros campos e outros objetos podem

ensejar argumentos como sinaliza Andreacute Stolarski (2012) agravequeles que de modo contraacuterio

se dispotildeem a ver nas palavras todos podem ser artistas e tudo pode ser arte uma porta para

a indistinccedilatildeo entre design e arte

Em um sentido diverso da possibilidade anterior mas tambeacutem defendendo a indis-

tinccedilatildeo entre design e arte existe o argumento da indefiniccedilatildeo das fronteiras ou ateacute em

casos extremos da ausecircncia de fronteiras desses dois campos Esse eacute o caso por exemplo

do artista plaacutestico Almir Mavignier Atentemos para a transcriccedilatildeo que os criacuteticos de arte

Daniela Name e Felipe Scovino (2008) fazem da afirmaccedilatildeo de Mavignier no cataacutelogo

Diaacutelogo concreto mdash design e construtivismo no Brasil

Em 1957 Mavignier comeccedilou sua produccedilatildeo de cartazes quando legitima ldquoarte eacute design Pintura e cartaz satildeo objetos a pintura fascina e o cartaz informa A fronteira entre os dois eacute instaacutevel porque ambos podem fascinar A fim de reco-nhececirc-la fui estudar em Ulm [onde] aprendi que a fronteira natildeo existerdquo (name scovino 2008 p 48)

Eacute no miacutenimo surpreendente saber que Mavignier atribui a ausecircncia de fronteiras

entre design e arte ao seu aprendizado na renomada escola racionalista e funcionalista

onde Gui Bonsiepe tambeacutem estudou e lecionou Bonsiepe assume posiccedilatildeo diametralmente

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oposta a Mavignier e coloca a filosofia como capaz de refutar a indistinccedilatildeo entre design e

arte No entanto Bonsiepe considera a posiccedilatildeo assumida em favor da indistinccedilatildeo dentro

das instituiccedilotildees de ensino uma possiacutevel convenccedilatildeo que favorece orccedilamentos Conforme

suas palavras ldquoHaacute muito tempo dispomos de conceitos filosoacuteficos para fazer distinccedilatildeo

entre arte e design Classificar design em categorias artiacutesticas soacute pode ser explicado por

criteacuterios da poliacutetica de distribuiccedilatildeo de verbas nas universidadesrdquo (Bonsiepe 2011 p 181)

Nesse contexto o autor natildeo nos diz como tal refutaccedilatildeo deve ocorrer mas defende clara-

mente a distinccedilatildeo E o mais importante coloca a filosofia como o territoacuterio de decisatildeo o

que seraacute de interesse como veremos para o capiacutetulo 2

Outra defesa de certa distinccedilatildeo difundida na atualidade eacute a do teoacuterico da comuni-

caccedilatildeo Andreacute Villas Boas (1998) mas que natildeo coaduna com a nossa proposta tambeacutem de

distinccedilatildeo por sustentar seus argumentos de modo diverso e em outras bases A esse pro-

poacutesito citamos a criacutetica agrave posiccedilatildeo de Villas Boas feita por outro teoacuterico da comunicaccedilatildeo

Carlos Alberto Barbosa

[] o design para o autor ldquo() eacute realizado para reproduccedilatildeo eacute reproduziacutevel e eacute efetivamente reproduzido a partir de um original (ainda que virtual) Do contraacuterio eacute uma peccedila uacutenica circunscrita ao campo da arte (o manuscrito me-dieval por exemplo ()rdquo (villas-boas 1998 p 12) Tal perspectiva parece natildeo levar em conta as obras de arte mecanicamente reproduziacuteveis as tais que foram objeto do famoso ensaio A obra de arte na eacutepoca de sua reproduti-bilidade teacutecnica de Walter Benjamin no qual a proacutepria noccedilatildeo de ldquooriginalrdquo eacute colocada em jogo O entendimento sobre o que eacute arte para Villas-Boas diz respeito notadamente a uma produccedilatildeo de peccedila uacutenica Mais adiante o autor cerca um pouco mais seu conceito e se debruccedila sobre o campo do projeto de design ldquo() satildeo peccedilas de design graacutefico todos aqueles projetos graacuteficos que tecircm como fim comunicar atraveacutes de elementos visuais (textuais ou natildeo) uma dada mensagem para persuadir o observador guiar sua leitura ou vender um produtordquo (villas-boas 1998 p 12ndash13) Talvez isso cerque de forma mais efetiva o campo do design Deve ser um projeto que vise a reproduccedilatildeo tendo como fim a persuasatildeo e a venda Seraacute que a partir do advento da Induacutestria Cultural e sua radicalizaccedilatildeo explicitada pela tecnologia associada ao consumo em massa a arte por vezes natildeo se insere tambeacutem nessa categoria de ldquoper-suasatildeo e vendardquo principalmente se levarmos em conta uma sociedade que soacute percebe a obra de arte como mercadoria o que entatildeo tambeacutem a aproximaria do campo do design (barbosa 2003 p 52)

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Existem vaacuterias implicaccedilotildees na citaccedilatildeo anterior e a aproximaccedilatildeo da arte com o design

eacute uma das intenccedilotildees de Barbosa Mas o relevante para os nossos propoacutesitos eacute que a criacutetica

de Barbosa que se estende a outras posiccedilotildees como agrave de Rafael Cardoso mostra que a

questatildeo da distinccedilatildeo entre design e arte eacute antes de tudo intrincada No entanto longe de

ser um ldquoproblemardquo em um sentido negativo acreditamos eacute justamente esse emaranhado

envolvendo a questatildeo que nos impotildee a necessidade de uma distinccedilatildeo ontoloacutegica que

conecta como veremos cada elemento aparentemente divergente na tese

Diante desses exemplos nossa posiccedilatildeo pela distinccedilatildeo entre design e arte enquanto

pressuposto busca um ponto delimitado de diferenciaccedilatildeo sem incorrer em definiccedilotildees que

tambeacutem defendem a distinccedilatildeo mas apropriam-se de elementos mutaacuteveis tornando-se

rapidamente obsoletas Natildeo podemos nos esquecer de que tanto a arte quanto o design

estatildeo sempre se reinventando o que torna essa tarefa mais difiacutecil

Assim nossa premissa estabelece suas bases na clivagem ontoloacutegica que Danto propotildee

para separar objetos artiacutesticos de outros objetos e consequentemente distinguir a arte de

outros campos Nas suas palavras

[] aprender que um objeto eacute uma obra de arte eacute saber que ele tem qualidades que faltam ao seu siacutemile natildeo transfigurado e que provocaraacute reaccedilotildees esteacuteticas diferentes E isso natildeo eacute institucional mas ontoloacutegico mdash estamos lidando com ordens de coisas completamente diferentes (danto 2005 p 157)

Acreditamos que essa delimitaccedilatildeo inicial ao colocar objetos da arte contrapondo-se

a outros objetos aceita implicitamente os do design na oposiccedilatildeo Deste modo entende-

mos tal dicotomia em princiacutepio como condiccedilatildeo necessaacuteria apenas enquanto pressuposto

e natildeo como causa15 sendo portanto somente o primeiro passo no encaminhamento de

nossa hipoacutetese Indo aleacutem do acircmbito da esteacutetica e da posiccedilatildeo de Danto como veremos

15 Assumimos o significado de condiccedilatildeo necessaacuteria como distinto do significado de causa Causa tem sentido positivo eacute aquilo que produz o efeito Condiccedilatildeo necessaacuteria (oposta agrave condiccedilatildeo suficiente de sentido positivo) tem sentido negativo eacute aquilo sem o qual natildeo se produz o efeito (condiccedilatildeo sine qua non) Tal condiccedilatildeo determina que a existecircncia do elemento condicionante natildeo implica na existecircncia do condicionado Em outras palavras nosso pressuposto enquanto condiccedilatildeo necessaacuteria estabelece o paracircmetro ontoloacutegico (elemento condicionante) e aponta em uma direccedilatildeo de pesquisa mas natildeo eacute conclusivo e natildeo nos garante nada aleacutem do seu ponto de partida Assim iniciando com o pressuposto precisamos percorrer todo o caminho da hipoacutetese para confirmaacute-la ou natildeo como ocorre de praxe em uma tese

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no capiacutetulo 3 Heidegger com propoacutesito e estrateacutegias diversas agraves empregadas por Danto

corrobora nosso pressuposto ao especificar em sua anaacutelise os objetos que se contrapotildeem

aos artiacutesticos enquanto objetos uacuteteis E avanccedila em um ponto essencial ao defender

a tese de que a apreciaccedilatildeo das obras de arte nos coloca em contato com significados

mais profundos para os objetos utilitaacuterios Essa defesa abre portas para pensarmos os

objetos do design para aleacutem do mero uso consumo e exploraccedilatildeo ou seja indo aleacutem da

utilidade e da instrumentalidade E ir aleacutem do uacutetil e instrumental acreditamos eacute funda-

mental para a compreensatildeo dos objetos de design que expandiram seus significados na

contemporaneidade

Neste ponto uma questatildeo de ordem histoacuterica precisa ser levantada Porque retornar

a Platatildeo e a Aristoacuteteles Em nossos estudos sobre as origens da linguagem e do mito e

suas possiacuteveis influecircncias na constituiccedilatildeo dos discursos cientiacuteficos e tecnoloacutegicos uma

afirmaccedilatildeo de Ernst Cassirer nos marcou e nos guia desde entatildeo

[] toda reflexatildeo histoacuterica genuiacutena em lugar de se perder na percepccedilatildeo do meramente uacutenico deve buscar aqueles momentos ldquopejadosrdquo do acontecer para onde confluem como para pontos focais seacuteries inteiras de eventos Em tais pontos fases temporais largamente separadas entre si conectam-se em um todo unitaacuterio para a concepccedilatildeo e a compreensatildeo histoacuterica Ao serem certos momentos destacados da corrente uniforme do tempo estabelecendo relaccedilotildees e concatenando-se em seacuteries iluminam-se com isso justamente a origem e a meta de todo acontecer seu de onde (Woher) e seu para onde (Wohin) (cassirer 1992 p 48)

Considerando que design e arte satildeo campos distintos e natildeo encontrando respostas

suficientes para as semelhanccedilas e diferenccedilas na atualidade nos inspiramos em Cassirer e

recuamos na histoacuteria do pensamento ocidental Na busca pelo periacuteodo histoacuterico em que

as teorias que originaram os fundamentos desses campos se constituiacuteram chegamos ao

pensamento grego Foi na polecircmica de Platatildeo em favor da ciecircncia grega e contra a arte

que o pensamento de Aristoacuteteles criacutetico de Platatildeo emergiu em apoio e base de nossa

hipoacutetese Apropriando-nos das palavras de Cassirer em Platatildeo e Aristoacuteteles encontram-

se os ldquopontos focaisrdquo e descortinaram-se a origem e a meta o onde e o para onde da tese

A centralidade desses dois pensadores em torno de nosso tema e de outros assuntos

subsidiaacuterios se justifica dado que estatildeo entre os primeiros a abordar questotildees sobre a

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constituiccedilatildeo da realidade como a entendemos Apesar de essa primazia natildeo ser sempre

deles mas de seus antecessores os chamados preacute-socraacuteticos encontramos no bojo dos

sistemas platocircnico e aristoteacutelico conceitos e soluccedilotildees que se tornaram referecircncia para as

reflexotildees posteriores inclusive contemporacircneas

Platatildeo eacute o ponto fulcral de onde nossas questotildees partem Deste modo necessitamos

sempre retornar a Platatildeo Fazemos isso ao longo do texto como tambeacutem quase todos os

autores referenciados na tese Aristoacuteteles faz o contraponto e encaminha os problemas na

direccedilatildeo que desejamos normalmente discordando de Platatildeo neste tema Como os con-

ceitos e criteacuterios aos quais aderimos na constituiccedilatildeo baacutesica de nosso texto satildeo de origem

aristoteacutelica cabe justificar o motivo pelo qual elegemos esse pensador para o centro da

proposiccedilatildeo de nossas questotildees Examinemos como isso ocorre

Um dos pontos que atrai nossa atenccedilatildeo para a obra aristoteacutelica eacute o fato de que ao

tempo em que seus textos foram escritos o Ocidente ensaiava os primeiros passos na cons-

tituiccedilatildeo de teorias gerais acerca do mundo e do saber Como consequecircncia as diversas

aacutereas e ramificaccedilotildees do conhecimento que com o passar dos seacuteculos e milecircnios foram

sendo delimitadas ainda natildeo estavam claramente definidas (figura 2)

Deste modo os conceitos elaborados por pensadores desse periacuteodo incluindo Aris-

toacuteteles tecircm uma plasticidade e satildeo concebidos para abarcar diversos domiacutenios teoacutericos

e praacuteticos certamente indo aleacutem daquilo que passamos a compreender sob o nome de

filosofia Ir ao nascedouro de aacutereas do conhecimento e de conceitos com tais propriedades

Figura 2 Linha do tempo indicando desdobramento do conceito grego de poacuteiesis (produccedilatildeo) em episteacuteme (ciecircncia) e teacutekhne (arte) e posteriormente sua divisatildeo em ciecircncia teacutecnica e arte em seus sentidos moder-nos fonte autor

asymp aC dC dCGreacutecia Ocidente

EPISTEacuteME

TEacuteKHNE

CIEcircNCIA

TEacuteCNICA

ARTE

POacuteIESIS

PERIacuteODO DE PLAacuteSTICIDADEENTRE OS CONCEITOS

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auxilia no rastreamento de elementos que permanecem compartilhados ainda hoje mesmo

quando tais aacutereas e as disciplinas delas derivadas satildeo agora distintas

Essas concepccedilotildees dadas a suas pretensotildees agrave universalidade aliadas a uma variedade

de possibilidades hermenecircuticas vecircm mobilizando pesquisadores ao longo da histoacuteria

interessados em anaacutelises de cunho geral mas tambeacutem de natureza epistemoloacutegica gno-

seoloacutegica e ontoloacutegica visando instaurar fundamentos em campos culturais cientiacuteficos

e tecnoloacutegicos Aleacutem disso Aristoacuteteles eacute um daqueles pensadores em que as teorias e os

conceitos que nos interessam vecircm sendo interpretados reinterpretados e aplicados ou

criticados nos mais diversos campos na teoria literaacuteria nas artes plaacutesticas nas anaacutelises da

esteacutetica na linguiacutestica e na comunicaccedilatildeo Entre os pesquisadores envolvidos com estudos

sobre a obra de Aristoacuteteles e seus desdobramentos no presente elegemos dois estudiosos

em campos distintos para ratificar nossa posiccedilatildeo

Jacyntho Lins Brandatildeo das letras claacutessicas ao estudar a obra A retoacuterica de Aristoacuteteles

que conteacutem um dos gecircneros de discursos abordados em nossa pesquisa afirma

Num mundo como o contemporacircneo em que eacute a ciecircncia que se tornou o discurso autorizado por excelecircncia (difundido pelos meios modernos de comunicaccedilatildeo) natildeo seria razoaacutevel admitir que [] a retoacuterica eacute que eacute hoje um tipo de literatura para a multidatildeo (atraveacutes dos jornais da televisatildeo da publicidade) e que a ciecircn-cia por seu lado eacute uma espeacutecie de retoacuterica popular (basta lembrar o quanto o discurso poliacutetico se converteu em econocircmico isto eacute supostamente cientiacutefico) (brandatildeo 2007 p 19)

Fernando Santoro da filosofia e esteacutetica ao retomar a obra A poeacutetica de Aristoacuteteles

eacute enfaacutetico ao defender a relevacircncia que os conceitos elaborados por esse pensador ainda

manteacutem na contemporaneidade

Portanto ainda que Aristoacuteteles natildeo tenha pensado sobre as artes tal como as entendemos hoje o que ele escreveu foi decisivo ao longo da histoacuteria das artes ocidentais especialmente apoacutes o Renascimento A Poeacutetica de Aristoacuteteles muitas vezes chegou a determinar os cacircnones de vaacuterios estilos principalmente os de inspiraccedilatildeo claacutessica classicismos e neoclassicismos diversos E mesmo quando se queria contestar alguma tradiccedilatildeo ou escola artiacutestica a Poeacutetica serviu quando natildeo era o modelo a seguir de modelo a contestar como por exemplo ao se cri-ticar o naturalismo ou o figurativismo ou as famosas prescriccedilotildees de unidade (de tempo de espaccedilo de accedilatildeo) Assim se Aristoacuteteles natildeo abordou as artes tal como

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as entendemos hoje em contrapartida ele foi decisivo para o que entendemos hoje como arte Muitas das clivagens dos valores das categorias e dos princiacutepios das teorias esteacuteticas modernas e contemporacircneas tecircm origem nas especulaccedilotildees de Aristoacuteteles sobre a poesia eacutepica sobre a muacutesica e sobre a poesia dramaacutetica (santoro 2006 p 77)

Tal potecircncia das especulaccedilotildees contida nos textos de Aristoacuteteles eacute um dos elementos

que subsidiam este trabalho Eacute tambeacutem por isso que nos apoiamos como veremos nos

estudos de Heidegger Danto e Eco Esses teoacutericos contemporacircneos cada um a seu modo

compartilham desse olhar interessado na aurora do pensamento grego e instauram re-

flexotildees conectando as indagaccedilotildees aristoteacutelicas com problemas da atualidade indagaccedilotildees

estas que iluminam e fomentam nossas proacuteprias questotildees

No entanto como Aristoacuteteles atuou natildeo somente como filoacutesofo no sentido estrito

mas produziu conhecimento em biologia fiacutesica e outros campos cientiacuteficos ocorre de

criacuteticas procedentes agraves suas concepccedilotildees ligadas agraves ciecircncias naturais serem indevidamente

estendidas para o acircmbito de conceitos metafiacutesicos e ontoloacutegicos Um exemplo claacutessico e

um truiacutesmo em ciecircncias naturais eacute a afirmaccedilatildeo de que a fiacutesica de Aristoacuteteles eacute ultrapassada

e completamente distinta de qualquer concepccedilatildeo da natureza em pensadores posteriores

a Galileu ou que uma visatildeo aristoteacutelica de coacutesmos natildeo se sustenta diante da concepccedilatildeo de

universo infinito do mundo moderno O que natildeo se expotildee de modo imediato quando

se mostra tal incongruecircncia entre a teoria fiacutesica antiga e a moderna eacute a impossibilidade

de correspondecircncia entre a base metafiacutesica da fiacutesica aristoteacutelica que essencialmente eacute

qualitativa e a da fiacutesica newtoniana quantitativa

Mas esse exemplo adequado ao acircmbito especiacutefico da fiacutesica moderna natildeo deve ser

impedimento para um pesquisador fazer conexotildees que ultrapassam a esfera estrita de

determinado campo em direccedilatildeo agrave fundamentaccedilatildeo de uma teoria cientiacutefica Para nos

mantermos dentro do escopo da fiacutesica sigamos as palavras do filoacutesofo da ciecircncia e

epistemoacutelogo F S Northrop na introduccedilatildeo do livro Fiacutesica e Filosofia de Heisenberg

A tese mais nova e importante deste livro talvez seja a afirmaccedilatildeo feita pelo autor de que a mecacircnica quacircntica reviveu o conceito aristoteacutelico de potencialidade na fiacutesica moderna Consequecircncia disso eacute que a mecacircnica quacircntica eacute igualmente importante para a ontologia e a epistemologia (heisenberg 1987 p 11)

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Em outras palavras seria questionaacutevel tentar unir ou correlacionar conceitos fiacutesicos

aristoteacutelicos e modernos em uma mesma concepccedilatildeo de natureza fiacutesica pois tal pretensatildeo

levaria a contradiccedilotildees Mas quando se recua da ciecircncia para a epistemologia buscando

fundamentaccedilatildeo ou se retrocede ainda mais na esfera da metafiacutesica seja no acircmbito da

teoria do conhecimento da esteacutetica ou da ontologia os conceitos mdash que natildeo satildeo mais

das ciecircncias mas dos pilares que as fundam mdash tornam-se mais propensos a intercacircmbios

e passiacuteveis de serem explorados em vaacuterios campos como o da arte e do design Assim a

plasticidade dessa categoria de conceitos eacute ainda maior quando envolve esteacutetica retoacuterica

e arte como eacute o nosso caso com Aristoacuteteles e os autores modernos e contemporacircneos a

ele relacionados

Um exemplo eacute o conceito de coacutesmos aristoteacutelico que aleacutem de associado agrave sua fiacutesica

expressa uma ordem e uma harmonia que natildeo eacute de cunho matemaacuteticoquantitativo

Natildeo sem razatildeo o radical κόσμος (coacutesmos) eacute a base de palavras como κοσμητής (cosmeteacutes)

cujo significado eacute daquele que potildee ordem dispotildee e regula como procedem o deus Zeus

e tambeacutem o profissional decorador na antiga Greacutecia (malhadas dezotti neves

2008 v 3 p 87-88) Faz sentido portanto que a palavra cosmeacutetico usada na atualidade

derive desse radical Em qualquer dos casos o conceito de coacutesmos aristoteacutelico antes de

ser uma concepccedilatildeo fiacutesica tem caraacuteter metafiacutesico E a ecircnfase de Aristoacuteteles a uma essecircncia

qualitativa desse conceito o coloca em uma posiccedilatildeo privilegiada para abordarmos os

temas da arte e do design

Acreditamos que a defesa desses teoacutericos seja satisfatoacuteria e possa pelo menos mitigar

as criacuteticas de caraacuteter hermenecircutico agrave distacircncia temporal dos mais de 2300 anos que nos

separam das especulaccedilotildees e das teorias aristoteacutelicas Ainda assim algum criacutetico atento

agrave estrutura das concepccedilotildees aristoteacutelicas poderia opor argumentos baseados na ideia de

finalismo deste pensador tanto nos seus conceitos de natureza quanto de arte que satildeo

desdobramentos da teoria das quatro causas Natildeo faz parte do tema enveredar por essa

teoria mas como ela pode ser associada a diversas espeacutecies de determinismo e consequen-

temente ser entendida como limitadora agraves possibilidades de compreensatildeo das relaccedilotildees

entre design e arte somos obrigados a justificar minimamente o finalismo aristoteacutelico

ou pelo menos natildeo consideraacute-lo como nocivo agraves reflexotildees ligadas a esses dois campos A

esse respeito no acircmbito mais amplo da reflexatildeo filosoacutefica Aristoacuteteles entende que uma

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das caracteriacutesticas do homem eacute exercer accedilotildees voluntaacuterias mas nos atendo especificamente

ao campo do design chamamos novamente em nossa defesa Carlos A Barbosa

A questatildeo eacute que a causa final na visatildeo aristoteacutelica eacute a que daacute iniacutecio e tambeacutem dirige todo o processo ou accedilatildeo De nada adiantaria ou talvez nem mesmo existiria um juiacutezo uacutenico para os casos semelhantes se antes natildeo se apresentasse uma razatildeo ou uma finalidade para tal juiacutezo Um designer por exemplo natildeo sai simplesmente projetando para ver se chega em algo Na verdade esse ldquoalgordquo ao qual o designer pretende chegar pressupotildee um uso o qual orienta e determina a necessidade do projeto Ou seja o projeto de design eacute movido pela sua finali-dade que eacute aquilo que se pretende com o projeto ou para que se pretende um objeto (barbosa 2003 p 58)

Diante de um pensador da envergadura de Aristoacuteteles como apontou Fernando San-

toro tanto as defesas quanto as contestaccedilotildees e querelas enriquecem e ampliam as possibi-

lidades de reflexatildeo quando o tema em questatildeo tem raiacutezes que partem de investigaccedilotildees em

sua eacutepoca e continuam a reverberar no modo como concebemos a realidade atualmente

Com relaccedilatildeo ao meacutetodo compreendendo-o em seu sentido originaacuterio de caminho

ele foi efetivado nas seguintes etapas na tese cada uma circunscrita a um capiacutetulo

1 Origens platocircnicas da cisatildeo e hierarquizaccedilatildeo da ciecircncia teacutecnica e arte e suas conse-

quecircncias para o design e para a arte (capiacutetulo 2)

2 Transposiccedilatildeo da abordagem do tema de um vieacutes esteacutetico e gnoseoloacutegico para onto-

loacutegico (capiacutetulo 3)

3 Rastreamento identificaccedilatildeo anaacutelise e reelaboraccedilatildeo dos conceitos aristoteacutelicos de

miacutemesis coisas belas coisas uacuteteis o fim em si mesmo e o discurso epidiacutectico para o design

e a arte contemporacircnea (capiacutetulo 4)

4 Ampliaccedilatildeo na identificaccedilatildeo dos conceitos teoricamente reelaborados na praacutetica

artiacutestica de Andy Warhol precedido historicamente por Marcel Duchamp e nos

projetos de design de Philippe Starck (capiacutetulo 5)

Com esse roteiro estabelecido falta explicitar os caminhos contidos no meacutetodo que

tornaram possiacutevel avanccedilar de modo coerente Ao tratarmos acerca dessa estrutura guia

consideramos necessaacuterio justificar a inclusatildeo de autores de espectros ideoloacutegicos distintos

no bojo das discussotildees

50

Acreditamos que a inclusatildeo de autores de correntes divergentes e ateacute opostas na busca

de consenso em um constructo teoacuterico somente eacute um problema se ao final chega-se a uma

antinomia na teoria Aleacutem disso nossa proposta natildeo eacute unir pensadores que dialogam entre

si tendo em conta uma filiaccedilatildeo genealoacutegica comum Ao contraacuterio articular discordacircncias

em torno dos fundamentos das relaccedilotildees entre design e arte mdash buscando inteligibilidade a

partir de uma abordagem centrada no vieacutes ontoloacutegico mdash eacute o que traz unidade e coerecircncia

interna ao tema Polecircmicas que surgiram no periacuteodo claacutessico da cultura grega seguiram

em frente na histoacuteria das ideias e ainda permanecem em alguns casos sob formas diver-

sas e (em determinadas circunstacircncias) impliacutecitas na atualidade Natildeo temos a pretensatildeo

de alinhar nosso pensamento com uma corrente especiacutefica mas selecionar autores que

tendo estabelecido uma questatildeo como objeto de estudo procuram submetecirc-la ao exame

mesmo diante de posiccedilotildees discordantes Esse eacute um desafio metodoloacutegico que guia esta tese

Para atender aos cruzamentos de conteuacutedos sobre as relaccedilotildees das aacutereas pesquisadas

com os autores estabelecemos padrotildees que conduzem aos diversos toacutepicos da tese O

resultado foi um meacutetodo de estrutura hiacutebrida constituiacutedo de elementos habituais nas

pesquisas em ciecircncias humanas e sociais O que fizemos foi incorporar estrateacutegias de

abordagem jaacute existentes que nos permitiram controlar melhor os percursos

1ordf Analiacutetica mdash garantir a decomposiccedilatildeo dos diversos conceitos compreender suas parti-

cularidades e testar suas possibilidades de aplicaccedilatildeo na atualidade bem como limites

2ordf Comparativa mdash ser capaz de identificar e descrever elementos comuns aos dois campos

investigados design e arte contemporacircnea descrevendo as interligaccedilotildees descobertas

3ordf Diacrocircnica e sincrocircnica mdash uma vez que parte dos conceitos extraiacutedos procede de

autores do passado (Platatildeo e Aristoacuteteles) em cotejo com autores contemporacircneos a

abordagem diacrocircnica necessariamente atenta agrave hermenecircutica apoia-se principalmen-

te nas anaacutelises e interpretaccedilotildees de estudiosos contemporacircneos como Arthur Danto

Thierry de Duve Martin Heidegger Philippe Lacoue-Labarthe e Umberto Eco O

propoacutesito eacute assegurar que a transposiccedilatildeo desses conceitos para o presente preserve seu

vigor e validade Na abordagem sincrocircnica por outro lado dirigimos nossa atenccedilatildeo

a autores contemporacircneos como Vileacutem Flusser Rafael Cardoso Tomaacutes Maldonado

Gui Bonsiepe e Beat Schneider e privilegiamos mais a tomada de posiccedilatildeo deles em

51

relaccedilatildeo aos conceitos jaacute estabelecidos Esse giro intencional assegura que o embate

se fixe no presente uma vez que o tema se concentra nos fundamentos de campos

da atualidade design e arte Com isso acreditamos obtemos um leque maior de

possibilidades na discussatildeo tendo em conta as significativas diferenccedilas ideoloacutegicas

que esses estudiosos apresentam no tratamento dos conceitos

4ordf Sinteacutetica mdash comprovar a hipoacutetese e sua validaccedilatildeo ateacute onde eacute possiacutevel em uma tese

no acircmbito das ciecircncias humanas e sociais

A variaccedilatildeo dessas estrateacutegias combinando-as quando necessaacuterio a um tratamento

especiacutefico (como por exemplo anaacutelise comparativa diacrocircnica ou anaacutelise comparativa

sincrocircnica) tornou a abordagem flexiacutevel agraves nossas necessidades Apesar de cada estudioso

ter suas particularidades na aplicaccedilatildeo de recursos analiacuteticos e comparativos Danto de

Duve Heidegger Lacoue-Labarthe Eco e outros autores modernos e contemporacircneos

estudados fazem uso recorrente desses procedimentos o que favorece nossa abordagem

Como jaacute pode ser constatado neste primeiro capiacutetulo as escolhas tanto do tema

quanto da perspectiva adotada e dos autores envolvidos na construccedilatildeo de nosso cami-

nho nos conduzem invariavelmente a retornar em periacuteodos histoacutericos constituintes do

pensamento da ciecircncia do design e da arte em diversos momentos do texto Estamos

perseguindo o que Cassirer (1992 p 48) acertadamente nomeou de ldquopontos focaisrdquo ldquopara

ondeconfluem[]seacuteriesinteirasdeeventosrdquoContudotemosconsciecircnciadequeessa

tese natildeo eacute sobre histoacuteria do design da arte ou da filosofia Mas sabemos que existe sempre

o risco de se avanccedilar sobre o sedutor territoacuterio da histoacuteria dessas disciplinas e deixar de

lado a reflexatildeo sobre a trama das ideias propostas Portanto concentramos esforccedilos em

mantermos demarcados os temas de contextualizaccedilatildeo Mas natildeo abrimos matildeo da histoacuteria

da filosofia ou de qualquer outra disciplina quando elas contribuem para a genealogia

dos objetos estudados Assim ocorreu no atual capiacutetulo na anaacutelise da indeterminaccedilatildeo

do design e da arte e seraacute no proacuteximo na transposiccedilatildeo de quatro conceitos gregos que

ainda satildeo potencialmente fecundos e influentes na atualidade Atentos especificamente

ao acircmbito da historiografia nos esforccedilamos tambeacutem no sentido de buscar equiliacutebrio no

tratamento do tema das relaccedilotildees tendo consciecircncia da longa histoacuteria da arte ocidental

em comparaccedilatildeo com o curto periacuteodo formal da histoacuteria do design

52

Outro ponto que precisa ser ressaltado eacute que apesar da ampliaccedilatildeo do interesse em

torno do tema das relaccedilotildees entre design e arte se confirmar com mais estudos debates e

publicaccedilotildees ateacute onde pudemos averiguar natildeo encontramos autores que o tratem sob o

crivo da ontologia Natildeo entendemos a falta de bibliografia especiacutefica como um problema

Ao contraacuterio tal situaccedilatildeo eacute oportunidade estimulante de se avanccedilar em um novo territoacuterio

No entanto o diaacutelogo com os autores especialmente os do design torna-se agraves vezes mais

difiacutecil de se efetivar uma vez que os temas relacionados agrave nossa pesquisa se encontram

esparsos em artigos e livros dedicados a outras questotildees

Aleacutem disso apesar da proposta daquilo que atualmente eacute nomeado uma ldquofilosofia do

designrdquo estar avanccedilando nas reflexotildees sobre design sentimos falta em alguns autores de

uma caracteriacutestica usual aos teoacutericos das ciecircncias humanas e sociais a de explicitar suas

filiaccedilotildees ideoloacutegicas ou a que linhas de pensamento eles se contrapotildeem ao defenderem

suas proacuteprias posiccedilotildees Nesses casos somos obrigados a um adicional exerciacutecio de her-

menecircutica buscando razotildees subjacentes aos textos as vezes em frases curtas e palavras

extraindo delas nossa interpretaccedilatildeo Dadas essas circunstacircncias trazer os fundamentos

ontoloacutegicos para o debate nas relaccedilotildees entre design e arte eacute tarefa que exige a inserccedilatildeo de

elementos propedecircuticos de origem filosoacutefica (como a lista terminoloacutegica do iniacutecio deste

capiacutetulo) que pode se tornar enfadonha para parte dos leitores Por tudo isso quanto

ao escopo da tese procuramos natildeo avanccedilar em direccedilatildeo a abordagens de acircmbito pedagoacute-

gico social e econocircmico entre outras igualmente relevantes e produtivas para se pensar

as bases das relaccedilotildees entre design e arte mas privilegiamos o enfoque ontoloacutegico que

acreditamos precede aos demais

53

2 ORIGENS E CONSEQUEcircNCIAS DA HIERARQUIZACcedilAtildeO DA

CIEcircNCIA TEacuteCNICA E ARTE

Tendo o escopo da tese delimitado iniciamos o capiacutetulo atual com algumas consideraccedilotildees

sobre a intenccedilatildeo que nos guia e jaacute se encontra anunciada quando apresentamos o graacutefico

da figura 2 (p 45) a propoacutesito das origens histoacutericas de nosso tema As definiccedilotildees de

phyacutesis poacuteiesis episteacuteme e teacutekhne tecircm um entrelaccedilamento de suas essecircncias proacuteprio da

visatildeo de mundo grega mas que foi se esgarccedilando com o passar dos seacuteculos e chegam agrave

atualidade separadas nas ideias de natureza produccedilatildeo ciecircncia e arte O presente capiacute-

tulo efetiva a primeira das quatro etapas do meacutetodo ou seja busca uma compreensatildeo

preliminar de alguns elementos constituintes e comuns ao design e agrave arte que no nosso

entendimento foram herdados de um periacuteodo na histoacuteria do pensamento onde uma

cisatildeo e hierarquizaccedilatildeo dos conceitos de ciecircncia teacutecnica e arte estavam em andamento

Assim eacute preciso retornar a essa eacutepoca para compreender as razotildees desse processo O

texto se divide em trecircs partes

Na primeira seccedilatildeo iniciamos com as quatro concepccedilotildees gregas anteriores como

parte da formaccedilatildeo da estrutura do pensamento claacutessico que nos chancelam a entrada no

universo teoacuterico de Platatildeo acerca do conhecimento

Na segunda seccedilatildeo tendo em conta a divisatildeo e hierarquizaccedilatildeo que a teoria platocircnica

propotildee para o conhecimento e as produccedilotildees humanas analisamos a ruptura que se esta-

belece ainda na Greacutecia antiga entre ciecircncia entendida como conhecimento verdadeiro

(episteacuteme) e arte mimeacutetica enquanto mera coacutepia no mundo sensiacutevel

Na terceira frente a influecircncia quase hegemocircnica dessa concepccedilatildeo de origem platocircnica

nos ciacuterculos cientiacuteficos da contemporaneidade partimos das descriccedilotildees de Koyreacute e das

criacuteticas de Nietzsche para destacarmos as nuances das posiccedilotildees de Tomaacutes Maldonado

Gui Bonsiepe Rafael Cardoso e Beat Schneider no emaranhado das relaccedilotildees entre ciecircncia

teacutecnica design e arte E em busca de um contraponto conceitual criticamos a visatildeo do

platonismo apoiando-n0s nas posiccedilotildees de cada um desses quatro autores Em seguida de

posse de alguns conceitos de Vileacutem Flusser e Rafael Cardoso encaminhamos as reflexotildees

para conexotildees especiacuteficas entre design ciecircncia teacutecnica e arte e propomos uma primeira

incursatildeo no acircmbito da ontologia contrapondo as concepccedilotildees desses dois autores

54

21 A essecircncia compartilhada de quatro conceitos gregos

Para a anaacutelise das palavras gregas phyacutesis poacuteiesis teacutekhne e episteacuteme buscamos definiccedilotildees

principalmente no Diccionario de Filosofia Joseacute Ferrater Mora (1979) e no Dicionaacuterio

Grego-Portuguecircs (dgp) de Malhadas Dezotti e Neves (2006ndash2010) Nossa intenccedilatildeo

foi equilibrar os conteuacutedos mais especiacuteficos do primeiro leacutexico com os mais gerais do

segundo A especificidade do Diccionario de Filosofia Ferrater Mora expliacutecita no proacuteprio

nome se comprova em verbetes que privilegiam os sentidos ligados agrave filosofia e aacutereas cor-

relatas Por outro lado de forma complementar o Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs (dgp)

tem como proposta atender ldquodiversas aacutereas do conhecimentordquo sendo ldquoum dicionaacuterio de

liacutengua isto eacute natildeo-enciclopeacutedicordquo (malhadas dezotti neves 2006 v 1 p vii)

Aleacutem disso ambos os dicionaacuterios privilegiam o momento histoacuterico de nosso interesse

o Ferrater Mora inicia cada verbete discorrendo sobre a origem da entrada enunciada

normalmente a antiguidade claacutessica e o dgp concentra-se na liacutengua grega antiga natildeo

incluindo o leacutexico moderno

Em relaccedilatildeo agrave pesquisa dos conceitos subjacentes a essas quatro palavras nos apoiamos

sobretudo em dois autores Novamente Ferrater Mora (1979) por seu direcionamento

a temas filosoacuteficos e por suas anaacutelises circunscreverem tambeacutem as posteriores traduccedilotildees

dessas palavras para o latim E Heidegger (2012) por fazer um caminho no tempo na

direccedilatildeo inversa agrave de Ferrater Mora incorporando aos seus estudos filoloacutegicos o momento

do pensamento preacute-socraacutetico imediatamente anterior ao periacuteodo claacutessico de Platatildeo e

Aristoacuteteles Nesse sentido a contribuiccedilatildeo de ambos eacute relevante para a compreensatildeo de um

contexto histoacuterico mais alargado da cisatildeo entre ciecircncia teacutecnica e arte Passemos entatildeo

agraves palavras e seus conceitos

211 Phyacutesis

Entre os gregos a ideia de phyacutesis (φύσις) corresponde ao real enquanto independente

ou seja aquilo que existe por si Phyacutesis pode ser empregada em vaacuterios sentidos Talvez o

55

mais comum dos seus significados seja a ideia de reuniatildeo ou totalidade dos seres naturais

ou natureza Nesse sentido geral como afirma Ferrater Mora (1979 v 3 p 2309) ocorre

o emprego da grafia com maiuacutescula como um nome proacuteprio ldquoa Naturezardquo

Em uma acepccedilatildeo especiacutefica e independente da anterior natureza determina a essecircn-

cia de um ser particular como por exemplo ao afirmar-se que a natureza do homem eacute

a razatildeo a poliacutetica ou a guerra Entre os diversos sentidos da palavra acumulados desde

entatildeo essas duas acepccedilotildees (uma abrangente outra restritiva) se preservaram ateacute os dias

de hoje o que favorece de algum modo nosso entendimento acerca deste conceito pelo

menos nesses dois aspectos

Tal eacute a importacircncia da palavra em sua origem que Ferrater Mora inclui em seu Dic-

cionario de Filosofia aleacutem do verbete natureza o verbete phyacutesis considerando o

segundo uma introduccedilatildeo ao primeiro A este propoacutesito ele afirma

Geralmente traduz-se φύσις [phyacutesis] por lsquonaturezarsquo [] Com efeito φύσις eacute o nome que corresponde ao verbo φύω [phyacuteo] (infinitivo φύειν [phyacuteein]) o qual significa ldquoproduzirrdquo ldquofazer crescerrdquo ldquoengendrarrdquo ldquocrescerrdquo formar-serdquo etc [] daiacute φύσας [phyacutesas] ldquoengendradorrdquo ldquogeradorrdquo ldquoprogenitorrdquo quer dizer ldquopairdquo Analogamente natura [latim] eacute o nome que corresponde ao verbo nascor (in-finitivo nasci) que significa ldquonascerrdquo ldquoformar-serdquo ldquocomeccedilarrdquo ldquoser produzidordquo como em ex me natus est ldquonascido de mim (eacute meu filho)rdquo Daiacute que φύσις [phyacutesis] equivale (pelo menos em grande parte) a natura e seja traduzido por lsquonaturezarsquo enquanto que ldquoo que surgerdquo ldquoo que nascerdquo ldquoo que eacute engendrado (ou engendra)rdquo e por isso tambeacutem certa qualidade inata ou propriedade que pertence agrave coisa de que se trata e que faz que esta coisa seja o que eacute em virtude de um princiacutepio proacuteprio seu (ferrater mora 1979 v 3 p 2569) Traduccedilatildeo nossa

A variedade de significados de phyacutesis na liacutengua grega tambeacutem se mostra no Dicionaacuterio

de Grego-Portuguecircs (dgp) tanto pelo espaccedilo maior dedicado ao verbete quanto pelas

15 acepccedilotildees das quais apresentamos em resumo as oito primeiras

1 natureza qualidade natural qualidade ou propriedade constitutiva maneira de ser [] 2 natureza do corpo compleiccedilatildeo fiacutesica forma exterior talhe es-tatura etc [] 3 natureza do espiacuterito ou da alma disposiccedilatildeo natural iacutendole caraacuteter [] 4 instinto (de animal) 5 ordem natural natureza [] 6 gera-ccedilatildeo nascimento [] 7 Fil natureza como princiacutepio origem 8 constituiccedilatildeo geral das coisas natureza universo mundo criado [] (malhadas dezotti neves 2010 v 5 p 225)

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Como podemos observar no dgp somente a partir da quinta acepccedilatildeo os significados

se aproximam mais de conceitos filosoacuteficos Mas tendo em vista a semelhanccedila do sentido

de palavras como engendrar gerar e produzir empregadas nos dois dicionaacuterios consta-

tamos que o conceito de produccedilatildeo perpassa diversas acepccedilotildees de phyacutesis Isso jaacute era de se

esperar uma vez que como afirmamos a natureza eacute aquilo que existe por si Portanto

esta existecircncia espontacircnea exige capacidade de autoproduccedilatildeo

Faccedilamos uma pausa para refletir sobre o que se conquista ateacute aqui A identificaccedilatildeo

desse liame entre natureza e produccedilatildeo eacute decisiva para a nossa abordagem Estaacutevamos nos

referindo a esse tipo de viacutenculo quando no capiacutetulo 1 defendemos a ideia de plasticidade

dos conceitos gregos que abarcam diferentes domiacutenios teoacutericos e praacuteticos O conceito de

produccedilatildeo que ateacute este momento se apresenta como constituinte da phyacutesis iraacute se revelar

tambeacutem nas anaacutelises da teacutekhne e da episteacuteme Para tanto eacute necessaacuterio compreender pro-

duccedilatildeo primariamente em seu sentido lato como poacuteiesis

212 Poacuteiesis

Normalmente traduzida como produccedilatildeo poacuteiesis (ποίησις) tambeacutem tem vaacuterias acepccedilotildees

por seu emprego em diversas aacutereas e circunstacircncias desde o uso comum e cotidiano na

vida grega ateacute no discurso mitoloacutegico artiacutestico e filosoacutefico Eacute fundamentalmente uma

concepccedilatildeo abstrata por sua caracteriacutestica de generalidade Dela derivam seus modos

particulares e concretos E como ocorre com os conceitos de caraacuteter geral a compreen-

satildeo da abstraccedilatildeo favorece ao entendimento de suas manifestaccedilotildees concretas e vice-versa

Algumas acepccedilotildees no dgp mostram isso

1 accedilatildeo de fazer criaccedilatildeo 2 crist a criaccedilatildeo ie o mundo criado 3 fabrica-ccedilatildeo confecccedilatildeo de (trabalho manual) gen 4 accedilatildeo de compor obras poeacuteticas 5 faculdade de compor obras poeacuteticas arte da poesia 6 composiccedilatildeo poeacutetica obra poeacutetica poema 7 arte poeacutetica [] (malhadas dezotti neves 2009 v 4 p 101)

57

Heidegger confirma e reforccedila a abrangecircncia da poacuteiesis ao afirmar que ela abarca tanto

as produccedilotildees humanas como as da natureza indicando uma classificaccedilatildeo ou ordenaccedilatildeo

em graus de importacircncia na constituiccedilatildeo da realidade

Tudo agora depende de se pensar a pro-duccedilatildeo[1] e o pro-duzir em toda a sua amplitude e ao mesmo tempo no sentido dos gregos Uma pro-duccedilatildeo ποίησις [poacuteiesis] natildeo eacute apenas a confecccedilatildeo artesanal e nem somente levar a aparecer e conformar poeacutetica e artisticamente a imagem e o quadro Tambeacutem a φύσις [phyacutesis] o surgir e elevar-se por si mesmo eacute uma pro-duccedilatildeo eacute ποίησις [poacuteiesis] A φύσις [phyacutesis] eacute ateacute a maacutexima ποίησις [poacuteiesis] Pois o vigente φύσει [phyacutesei] tem em si mesmo (ἐν ἐαυτῷ) [en eautoacutei] o eclodir da pro-duccedilatildeo Enquanto o que eacute produzido pelo artesanato e pela arte por exemplo o caacutelice de prata natildeo possui o eclodir da pro-duccedilatildeo em si mesmo mas em um outro (ἐν αλλῷ) [en alloacutei] no artesatildeo e no artista (heidegger 2012 p 16)

A densidade do texto de Heidegger exige uma anaacutelise por partes Existem pelo

menos trecircs pontos que se entrelaccedilam na citaccedilatildeo anterior que merecem ser explicitados

Primeiramente Heidegger subsume phyacutesis agrave poacuteiesis e a classifica como o mais alto niacutevel

de produccedilatildeo Tal viacutenculo entre poacuteiesis e phyacutesis dentro de uma hierarquia mais do que

apontar para a essecircncia comum de natureza e produccedilatildeo apresenta a natureza como um

entre outros tipos de produccedilatildeo Heidegger no entanto atenta para um segundo pon-

to o que justifica a posiccedilatildeo ldquomaacuteximardquo da phyacutesis dentro do gecircnero das produccedilotildees eacute sua

1 Heidegger tem um estilo de escrita que separa palavras e une outras para reforccedilar sentidos que natildeo se expressam explicitamente na grafia normal Isso segundo ele pode gerar ldquomal-entendidosrdquo Mas a liacutengua em que ele escreve favorece a esse tipo de intervenccedilatildeo Como afirma Fernando Mendes Pessoa

ldquoHeidegger utiliza-se de um recurso que a liacutengua alematilde oferece em sua possibilidade de compor palavras atraveacutes da junccedilatildeo de diferentes partiacuteculas a um mesmo radical dando diversas nuances a seu sentidordquo (pessoa 2009 p 195) Aleacutem disso o proacuteprio Heidegger a propoacutesito do uso incomum que ele oferece por exemplo para a palavra ldquoGestellrdquo (composiccedilatildeo) como teacutecnica considera uma estravagacircncia e se justifica ldquoSoacute que esta extravagacircncia eacute um antigo costume do pensamento E os pensadores tornam-se extravagantes precisamente quando tecircm de pensar o mais elevado Noacutes epigonais jaacute natildeo possuiacutemos condiccedilatildeo de avaliar o significado do fato de Platatildeo aventurar-se a utilizar a palavra εἶδος [eidos] para dizer a essecircncia de tudo e de cada coisa Pois na linguagem de todo dia εἶδος [eidos] diz a visatildeo que uma coisa visiacutevel nos apresenta agrave percepccedilatildeo sensiacutevel Ora Platatildeo pretende da palavra algo inteiramente extraordinaacuterio Pretende designar o que jamais se poderaacute perceber com os olhos E a extravagacircncia natildeo termina aiacute Pois ἰδέα [idea] natildeo evoca apenas o perfil natildeo sensiacutevel do que se vecirc sensivelmente Ιδέα [idea] o perfil significa e eacute tambeacutem o que perfaz a essecircncia de tudo que se pode ouvir tocar sentir de tudo que de alguma maneira se nos torna acessiacutevel Comparado com o que Platatildeo pretende da liacutengua e do pensamento neste e em outros casos o uso que ousamos agora fazer da palavra ldquoGestellrdquo com-posiccedilatildeo para dizer a essecircncia da teacutecnica moderna eacute quase inocente E natildeo obstante continua sendo uma pretensatildeo sujeita a muitos mal-entendidosrdquo (heidegger 2012 p 23-24)

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capacidade de autoproduccedilatildeo sua autonomia ou com suas palavras ldquoo surgir e elevar-se

por si mesmordquo O terceiro ponto eacute que a percepccedilatildeo da diferenciaccedilatildeo entre produccedilatildeo natu-

ral e produccedilatildeo humana ocorre justamente pelo entendimento de que produccedilatildeo humana

natildeo eacute autoproduccedilatildeo mas produccedilatildeo em um ldquooutrordquo Se a coesatildeo e organizaccedilatildeo em torno

desses trecircs pontos apresenta seu nuacutecleo na ideia de produccedilatildeo a uacuteltima delas por natildeo ser

em si mesma conduz nossa anaacutelise para a teacutekhne

213 Teacutekhne

Teacutekhne (τέχνη) eacute mais uma palavra com muitas acepccedilotildees pois tambeacutem acrescenta aos

sentidos de uso comum os de caraacuteter e emprego filosoacutefico que foram sendo atribuiacutedos

pelos pensadores gregos Conforme o que define o dgp

1 destreza manual habilidade 2 exerciacutecio de uma habilidade manual ofiacutecio profissatildeo [] 3 arte habilidade [] 4 conhecimento teoacuterico metodologia 5 artifiacutecio astuacutecia intriga maquinaccedilatildeo 6 meio expediente [] 7 produto de uma arte obra de arte obra 8 tratado sobre uma arte [] (malhadas dezotti neves 2010 v 5 p 122)

Considerando que a ordem de numeraccedilatildeo das acepccedilotildees em um dicionaacuterio procede

dos significados mais evidentes e usuais para os menos comuns ou mais exclusivos a seacuteti-

ma posiccedilatildeo deve indicar um sentido subjacente ou especiacutefico ligado agrave palavra produccedilatildeo

ou pelo menos com o resultado de uma produccedilatildeo isto eacute seu ldquoprodutordquo Uma vez que

importa dados os nossos propoacutesitos buscarmos relacionar cada nova palavra e conceito

com os demais jaacute descritos vamos direto para a seacutetima acepccedilatildeo Associar teacutekhne a produto

como faz o dicionaacuterio a insere dentro do domiacutenio da poacuteiesis E Heidegger argumenta na

mesma direccedilatildeo

τέχνικόν [teacutekhnikoacuten] diz o que pertence agrave τέχνη [teacutekhne] Devemos considerar duas coisas com relaccedilatildeo ao sentido desta palavra De um lado τέχνη [teacutekhne] natildeo constitui apenas a palavra do fazer na habilidade artesanal mas tambeacutem do fazer da grande arte e das belas-artes A τέχνη [teacutekhne] pertence agrave pro-duccedilatildeo a ποίησις [poacuteiesis] eacute portanto algo poeacutetico (heidegger 2012 p 17)

59

Na citaccedilatildeo anterior o mais relevante para a nossa anaacutelise eacute a identificaccedilatildeo do viacutencu-

lo entre teacutekhne e poacuteiesis equivalente ao que Heidegger reconhece ocorrer entre phyacutesis e

poacuteiesis A consequecircncia eacute que ambas podem ser entendidas como produccedilatildeo Aleacutem disso

o filoacutesofo indica o emprego ambivalente da palavra tanto no trabalho artesanal quanto

no das belas-artes significados que se concentram nas trecircs primeiras acepccedilotildees do dgp

Essas por serem atividades profissionais pressupotildeem produccedilatildeo e conhecimento poreacutem

carregam o sentido mais comum de habilidade associada ao uso das matildeos como ofiacutecio

ou arte Ferrater Mora de modo semelhante mostra como os conceitos de teacutekhne e arte

se imbricam em algumas acepccedilotildees

Os gregos usavam o termo τέχνη [teacutekhne] (com frequecircncia traduzido por ars lsquoartersquo e que eacute a raiz etimoloacutegica de lsquoteacutecnicarsquo para designar uma habilidade mediante a qual se faz algo mdash geralmente se transforma uma realidade natural em uma realidade ldquoartificialrdquomdash A teacutechne natildeo eacute no entanto qualquer habilidade senatildeo uma que segue certas regras por meio das quais se consegue algo Por isso existe uma teacutechne da navegaccedilatildeo (ldquoarte da navegaccedilatildeordquo) uma teacutechne da caccedila (ldquoarte da caccedilardquo) uma teacutechne do governo (ldquoa arte de governarrdquo) etc (ferrater mora 1979 v 4 p 2569) Traduccedilatildeo nossa

O trecho acima eacute o prenuacutencio do duplo caminho que teacutekhne iraacute seguir historicamente

quando por um lado for traduzida por ars (arte) na liacutengua e cultura latina e por outro

passar etimologicamente tambeacutem para o latim com o conceito diverso de teacutecnica Aten-

temos aqui para a duplicidade de sentidos de teacutekhne apontada por Ferrater Mora como

trabalho artesanal e belas-artes que se aproxima da ambivalecircncia indicada por Heidegger

Ainda uma uacuteltima questatildeo em relaccedilatildeo agrave citaccedilatildeo anterior eacute a particularidade da teacutekhne

em funccedilatildeo de sua necessidade de ldquoregrasrdquo Tal especificidade eacute correlata agrave quarta acepccedilatildeo

do dgp que relaciona teacutekhne com conhecimento teoacuterico e metodologia Esse acordo de

sentidos entre teacutekhne conhecimento teoacuterico e metodologia eacute tambeacutem confirmado por

Heidegger na permuta de significados que ocorre entre os conceitos de teacutekhne e espisteacuteme

[] o que vale considerar ainda a propoacutesito da palavra τέχνη [teacutekhne] eacute de maior peso Τέχνη [teacutekhne] ocorre desde cedo ateacute o tempo de Platatildeo juntamente com a palavra ἐπιστήμη [episteacuteme] Ambas satildeo palavras para o conhecimento em seu sentido mais amplo Dizem ser versado em alguma coisa dizem entender do assunto (heidegger 2012 p 17)

60

Se a quarta acepccedilatildeo do dgp tambeacutem se destaca ao relacionar teacutekhne com conheci-

mento o que mais sobressai nesse caso eacute ser conhecimento no acircmbito teoacuterico Natildeo sem

razatildeo Heidegger declara tal relaccedilatildeo ser ldquode maior pesordquo O conhecimento especificado

enquanto ldquoteoacutericordquo atrai a atenccedilatildeo uma vez que na esfera da filosofia episteacuteme deteacutem a

primazia para exprimir um saber especulativo distinto do saber praacutetico Tal proximidade

de sentidos nos leva ateacute a anaacutelise da ultima palavra episteacuteme

214 Episteacuteme

Diferentemente das palavras anteriores episteacuteme (ἐπιστήμη) no dgp somente apresenta

quatro acepccedilotildees

1 experiecircncia habilidade destreza em algo [] 2 conhecimento saber 3 conhecimento cientiacutefico ciecircncia (op a τέχνη [teacutekhne] e a ἐμπειρία [empeiriacutea] e a δόξα [doacutexa]) 4 aplicaccedilatildeo do espiacuterito estudo (malhadas dezotti neves 2007 v 2 p 131)

Apesar do nuacutemero reduzido de sentidos que creditamos agrave especificidade da palavra

os conceitos envolvidos satildeo complexos e isto se mostra na oposiccedilatildeo entre a primeira e a

terceira acepccedilotildees Essa oposiccedilatildeo (indicada pela abreviaturaldquooprdquo no dgp) contrapotildee expe-

riecircncia (empeiriacutea) agrave ciecircncia Outras duas oposiccedilotildees satildeo entre ciecircncia e teacutekhne e ciecircncia e

doacutexa (opiniatildeo) No nosso entendimento considerando a posiccedilatildeo de Platatildeo que veremos

a seguir diriacuteamos que ao inveacutes de pura oposiccedilatildeo ocorreria a partir desse pensador uma

subordinaccedilatildeo em niacuteveis de conhecimento em que episteacuteme se estabelece no topo do saber

teacutekhne em um niacutevel intermediaacuterio e empeiriacutea (experiecircncia sensiacutevel) e doacutexa (opiniatildeo) no

mais baixo niacutevel do senso comum estabelecido no cotidiano

O nuacutemero de variantes de significado das palavras analisadas ateacute aqui eacute muito maior

do que essa exposiccedilatildeo pode mostrar Nossa seleccedilatildeo teve como principal criteacuterio as caracte-

riacutesticas em comum dessas palavras privilegiando suas relaccedilotildees com o conceito de produccedilatildeo

Complementando a anaacutelise apresentamos dois graacuteficos O da figura 3 sintetiza o que foi

exposto ateacute aqui Ele retoma a linha do tempo do graacutefico da figura 2 (cf capiacutetulo 1 p 45)

acrescentando o conceito de phyacutesis e restringindo-se o periacuteodo agrave antiguidade greco-latina

61

O graacutefico da figura 4 manteacutem a estrutura matriz de poacuteiesis da figura 3 e associa as

produccedilotildees humanas agrave teoria pela proacutepria caracteriacutestica do pensamento grego que entende

tanto episteacuteme quanto teacutekhne como um saber que antecede e subsidia o fazer Na origem

de teoria no uso cotidiano da liacutengua teoroacutes (θεωρός) se referia ao espectador dos jogos

oliacutempicos e de outros espetaacuteculos Teoriacutea (θεωρία) significa accedilatildeo de ver de observar con-

templar examinar e especular Sua relaccedilatildeo com o olhar aproxima-a do sentido da palavra

oida (οἶδα) mdash que significa ao mesmo tempo ver e compreender Isso eacute mais um indiacutecio

do quanto os gregos associavam a visatildeo ao conhecimento E o Ocidente eacute herdeiro desse

modo de compreender a realidade

Figura 3 Linha do tempo indicando os sucessivos desdobramentos do conceito de poacuteiesis (produccedilatildeo) no periacuteodo claacutessico greco-latino fonte autor

asymp aC

PERIacuteODO DE PLAacuteSTICIDADEENTRE OS CONCEITOS

EPISTEacuteME

TEacuteKHNE

PHYacuteSIS

SCIENTIA

TECHNICUS

ARS

NATURA

POacuteIESIS

Greacutecia

Figura 4 Representaccedilatildeo das trecircs categorias de produccedilatildeo e a relaccedilatildeo das produccedilotildees humanas (teacutekhne e episteacuteme) com seus fundamentos teoacutericos fonte autor

NATURALTEOacuteRICA TEOacuteRICAPRAacuteTICA

POacuteIESIS

PHYacuteSISTEacuteKHNEEPISTEacuteME

PRODUCcedilAtildeO GERAL

62

22 Hierarquia platocircnica cisatildeo e ruptura

Platatildeo herda os conceitos de phyacutesis poacuteiesis teacutekhne e episteacuteme de seus antecessores e os

reelabora para fundamentar sua teoria acerca do conhecimento No acircmbito de nossa pes-

quisa selecionamos na obra deste pensador o diaacutelogo A repuacuteblica percorrendo algumas

de suas passagens e seguindo seus passos para identificar a hierarquizaccedilatildeo e classificaccedilatildeo

dos tipos de conhecimento e produccedilatildeo humana

A repuacuteblica trata o tema de nosso interesse em trechos distintos como de praxe

em um diaacutelogo platocircnico Nesses momentos Platatildeo constroacutei argumentos tendo como

opositor principal Homero reconhecido na eacutepoca como o grande educador da Greacutecia

A intenccedilatildeo expliacutecita de Platatildeo eacute substituir a poesia pela filosofia reivindicando para esta

uacuteltima o primado da educaccedilatildeo e conduzindo os filoacutesofos ao governo da cidade Para noacutes no

entanto o que importa satildeo as estrateacutegias impliacutecitas a essa intenccedilatildeo Nelas como veremos

estaacute a metafiacutesica de Platatildeo que critica e afasta a arte poeacutetica2 da ciecircncia e da teacutecnica O

diaacutelogo platocircnico tem como protagonista Soacutecrates e alguns disciacutepulos que se revesam na

discussatildeo dos temas Nos trechos analisados os personagens concentram sua reflexatildeo em

torno da proposta de criaccedilatildeo de uma cidade justa Para tanto Soacutecrates argumenta sobre

o imperativo de que cada fundador da cidade trabalhe no ofiacutecio que conheccedila melhor

Ƕ Por Zeus que nada me admira mdash disse eu mdash Ao ouvir-te falar penso tambeacutem que em primeiro lugar cada um de noacutes natildeo nasceu igual a outro mas com naturezas diferentes cada um para a execuccedilatildeo de sua tarefa Ou natildeo te parece

Ƕ Parece-me Ƕ Como assim Uma pessoa faraacute melhor em trabalhar sozinho em muitos ofiacutecios ou quando for soacute um a executar um

Ƕ Quando for um soacute a executar um Ƕ Mas julgo eu que eacute tambeacutem evidente que se algueacutem deixar fugir a oportunidade de fazer uma coisa perde-a

Ƕ Eacute evidente

2 A criacutetica platocircnica agrave arte pode ser dividida em trecircs partes A primeira (de conteuacutedo) vai do fim do livro ii ao iniacutecio do livro iii A segunda (ligada agrave forma ao estilo) inicia-se em 392c e avanccedila pelo livro iii A terceira (ontoloacutegica) vai do iniacutecio do livro x ateacute 608b sendo a mais contundente e relevante para os nossos propoacutesitos

63

Ƕ Eacute que creio eu a obra natildeo espera pelo lazer do obreiro mas forccedila eacute que o obreiro acompanhe o seu trabalho sem ser agrave maneira de um passatempo

Ƕ Eacute forccediloso Ƕ Por conseguinte o resultado eacute mais rico mais belo e mais faacutecil quando cada pessoa fizer uma soacute coisa de acordo com a sua natureza e na ocasiatildeo proacutepria deixando em paz as outras

Ƕ Absolutamente (platatildeo 1987 p 74)

Se os homens possuem naturezas distintas a teacutekhne mdash arte em seu sentido de ofiacutecio

pressupondo um conhecimento que cada profissional deve dominar mdash se impotildee como

criteacuterio de separaccedilatildeo entre as atividades mas tambeacutem de hierarquizaccedilatildeo dos saberes Aqui

a intenccedilatildeo impliacutecita de Platatildeo eacute que a compreensatildeo sobre o domiacutenio da arte ou das diver-

sas artes ultrapasse o acircmbito gnoseoloacutegico em busca de seus fundamentos ontoloacutegicos

Como afirma o filoacutesofo Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro

Afinal de contas em se tratando de viajar por alto mar natildeo eacute indiferente admitir a opiniatildeo do piloto ou a do leigo Um primeiro sentido de ldquoarterdquo eacute esse uma com-petecircncia que se aprende e se exercita pela qual os que de fato a aprenderam e a exercitaram se distinguem dos demais constituindo-se em autoridades ldquonaturaisrdquo nos seus respectivos domiacutenios Mas o ponto mais importante natildeo eacute de ordem gnosioloacutegica e sim ontoloacutegica os domiacutenios de coisas teriam um modo de ser proacuteprio teriam um ldquoem-sirdquo vale dizer que o experiente conheceria e dominaria pouco a pouco tirando partido posteriormente daquilo que natildeo escolheu mas a que se rendeu a essecircncia da proacutepria coisa A existecircncia de vaacuterias artes parece atestar que sim (ribeiro 2006 p 104)

No entanto essa proposta subjacente ao texto de Platatildeo mdash de um domiacutenio de um

territoacuterio real da teacutekhne que pode ser acessado atraveacutes do aprendizado mdash eacute apresentada em

um processo dialoacutegico em que o discurso de Soacutecrates caminha no sentido de constituir

uma cidade justa e portanto livre de tudo o que segundo ele eacute supeacuterfluo E os disciacutepulos

que ouvem na roda do diaacutelogo suas sugestotildees para uma cidade saudaacutevel onde o que mais

importa eacute a subsistecircncia humana discordam da consequente simplicidade de vida a que

seus habitantes devem se submeter Glaacuteucon eacute o mais ousado deles ao replicar

Ƕ Se estivesses a organizar oacute Soacutecrates mdash interveio ele mdash uma cidade de porcos natildeo precisavas de outra forragem para eles

Ƕ Mas entatildeo como haacute-de ser oacute Glaacuteucon

64

Ƕ O costume mdash respondeu ele mdash Acho que devem reclinar-se em leitos se natildeo quiserem que se sintam infelizes e que jantem agrave mesa iguarias como hoje haacute e sobremesas

Ƕ Seja mdash disse eu mdash Compreendo Natildeo estamos apenas a examinar ao que parece a origem de uma cidade mas uma cidade de luxo Talvez natildeo seja mau Efectivamente ao estudarmos uma cidade dessas depressa podemos desco-brir de onde surgem nas cidades a justiccedila e a injusticcedila A verdadeira cidade parece-me ser aquela que descrevemos como uma coisa satilde mas se quiserdes observaremos tambeacutem a que estaacute inchada de humores Nada o impede Bem estas determinaccedilotildees natildeo bastam ao que parece a certas pessoas nem este pas-sadio mas acrescentar-lhes-atildeo leitos mesas e outros objectos e ainda iguarias perfumes e incenso cortesatildes e guloseimas e cada uma destas coisas em toda a sua variedade Em especial natildeo mais se colocaraacute entre as coisas necessaacuterias o que dissemos primeiro mdash habitaccedilotildees vestuaacuterio e calccedilado mdash ir-se-aacute buscar a pintura e o colorido e entender-se-aacute que se deve possuir ouro marfim e preciosidades dessa espeacutecie Eacute ou natildeo

Ƕ Eacute mdash respondeu ele (platatildeo 1987 p 79)

A consequecircncia imediata de se aceitar o ldquoluxordquo na cidade eacute a obrigatoriedade de trazer

para ela os artiacutefices que com suas respectivas artes possam produzir e prover as demais

aspiraccedilotildees dos cidadatildeos Poreacutem junto com esses produtores que tem domiacutenio de uma

teacutekhne precisam vir tambeacutem aqueles cujo trabalho Platatildeo entende como imitaccedilatildeo Nas

palavras de Soacutecrates

Ƕ Portanto temos de tornar a cidade maior A que era satilde natildeo eacute bastante mas temos de a encher de uma multidatildeo de pessoas que jaacute natildeo se encontra na cidade por ser necessaacuteria como os caccediladores de toda a espeacutecie e imitadores muitos dos quais satildeo os que se ocupam de desenho e cores muitos outros da arte das Musas ou seja os poetas e seus servidores mdash rapsodos actores coreutas empresaacuterios mdash artiacutefices que fabriquem toda a espeacutecie de utensiacutelios sobretudo adereccedilos femi-ninos E em especial precisaremos de mais servidores Ou natildeo te parece que careceremos de pedagogos amas governantes accedilafatas cabeleireiros e ainda cozinheiros e marchantes (platatildeo 1987 p 80)

A narrativa de Platatildeo impressiona por sua semelhanccedila com a histoacuteria dos problemas

e das necessidades de uma cidade contemporacircnea em crescimento E as consequecircncias

tambeacutem a longo prazo com mais pessoas na cidade a terra se torna escassa e com a falta

de espaccedilo para pastagens lavoura e outras atividades de subsistecircncia segue-se a falta de

alimentos o que conduz agrave guerra contra outras cidades

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221 A metafiacutesica impliacutecita ao tema da cidade ideal

Cabe neste ponto uma ressalva os textos antigos normalmente natildeo tratam separada-

mente temas de poliacutetica justiccedila eacutetica loacutegica ciecircncia e arte entre outros Assim como

jaacute dissemos eacute preciso nos manter atentos pois paralelamente a essa narrativa hipoteacutetica

sobre a origem e constituiccedilatildeo de uma Cidade Estado (poacutelis) estaacute impliacutecita a metafiacutesica

platocircnica com a divisatildeo que nos interessa explicitar a hierarquia dos tipos de saberes e

produccedilatildeo como a teacutekhne em sua relaccedilatildeo com a episteacuteme De um lado encontra-se a classe

dos artiacutefices que tecircm um conhecimento e uma teacutekhne que oferece suporte ao seu trabalho

realizando somente um tipo de obra em que satildeo capacitados e tecircm domiacutenio De outro a

dos artiacutefices que produzem obras que satildeo imitaccedilotildees Essa segunda classe depreciada3 por

Platatildeo tem como representantes maacuteximos os poetas Como afirma Ribeiro

Se a arte em sentido lato portanto estaacute no homem desde o comeccedilo a arte em sentido estrito surge quando o homem supera o patamar da mera subsistecircncia e se entrega agrave dimensatildeo supeacuterflua de sua existecircncia O preccedilo dessa superaccedilatildeo eacute cariacutessimo mas o fato de os homens estarem sempre dispostos a pagaacute-lo revela o elemento traacutegico de sua condiccedilatildeo (ribeiro 2006 p 111)

Portanto para fazer a guerra eacute necessaacuterio uma nova classe de profissionais os guerreiros

ou ldquoguardiotildeesrdquo com uma teacutekhne especiacutefica ou uma ciecircncia (episteacuteme) especiacutefica como

prefere Platatildeo neste trecho4dodiaacutelogoldquoEssaciecircnciaeacutedavigilacircncia[]eencontra-se

naqueles chefes que agora mesmo classificamos de guardiotildees perfeitosrdquo (platatildeo 1987 p

178) Assim o proacuteximo passo eacute pensar como educar essa classe desde a infacircncia pois ela

iraacute proteger a cidade e fazer guerra quando necessaacuterio E a educaccedilatildeo depende da literatura

3 Tal depreciaccedilatildeo eacute relativa Platatildeo critica um procedimento do qual ele tambeacutem faz intenso uso Con-forme Ribeiro ldquoPlatatildeo ele mesmo usou mais imitaccedilatildeo que narraccedilatildeo em seus diaacutelogos filosoacuteficos e mesmo no caso da narraccedilatildeo sempre pocircs outrem a narrar por ele Natildeo obstante reclamar por uma esteacutetica ldquomais austera e menos apraziacutevelrdquo (austeroteacutero kaigrave aedesteacutero) seu texto eacute na histoacuteria da filoso-fia aquele em que mais interveacutem o elemento pateacutetico pela presenccedila dramaacutetica natildeo raro traacutegica ou cocircmica dos personagens E eacute tambeacutem o mais apraziacutevelrdquo (ribeiro 2006 p 121)

4 Nesta parte de A Repuacuteblica Platatildeo associa episteacuteme natildeo somente agrave profissatildeo dos guardiotildees como tam-beacutem de outras das quais ele normalmente trata como teacutekhne Assim nesse momento ao inveacutes de arte temos ldquociecircncia dos carpinteirosrdquo ldquociecircncia da construccedilatildeordquo ldquociecircncia dos utensiacutelios de madeirardquo ldquociecircncia de trabalhar objetos de bronzerdquo etc (platatildeo 1987 p 177) Isso comprova como afirmou Heidegger anteriormente que tambeacutem Platatildeo explora a ambivalecircncia dos conceitos de teacutekhne e episteacuteme

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Ƕ Mas haacute duas espeacutecies de literatura uma verdadeira e outra falsa Ƕ Haacute Ƕ E ambas seratildeo ensinadas mas primeiro a falsa Ƕ Natildeo entendo o que queres dizer Ƕ Natildeo compreendes mdash disse eu mdash que primeiro ensinamos faacutebulas agraves crianccedilas Ora no conjunto as faacutebulas satildeo mentiras embora contenham algumas verdades E servimo-nos de faacutebulas para as crianccedilas antes de as mandarmos para os ginaacutesios

Ƕ Assim eacute (platatildeo 1987 p 87)

As palavras de Soacutecrates demonstram a estrateacutegia de Platatildeo de fechar o cerco em torno

dos poetas e rapsodos sob o argumento de que os guerreiros devem ser corajosos e natildeo dar

ouvidos a histoacuterias que estimulam a ira o medo e outras emoccedilotildees que prejudiquem suas

accedilotildeesldquo[]quantomaispoeacuteticasmenosdevemserouvidasporcrianccedilaseporhomens

que devem ser livres e temer a escravatura mais do que a morterdquo (platatildeo 1987 p 178)

222 O argumento ontoloacutegico contra a arte mimeacutetica

No fundamento de uma decisatildeo de caraacuteter pedagoacutegico (educar com excelecircncia os guar-

diotildees) encontra-se a divisatildeo platocircnica em trecircs niacuteveis da produccedilatildeo (poacuteiesis) que buscamos O

passo final de Soacutecrates eacute associar o poeta e outros artistas como o pintor e o tragedioacutegrafo

ao mais baixo niacutevel de uma hierarquia ontoloacutegica em que o resultado de seus trabalhos

natildeo satildeo entendidos como produccedilatildeo mas somente imitaccedilatildeo (miacutemesis)

Ƕ Acaso natildeo existem trecircs formas de cama Uma que eacute a forma natural e da qual diremos segundo entendo que Deus a confeccionou Ou que outro Ser poderia fazecirc-lo

Ƕ Nenhum outro julgo eu Ƕ Outra a que executou o marceneiro Ƕ Sim Ƕ Outra feita pelo pintor Ou natildeo Ƕ Seja Ƕ Logo pintor marceneiro Deus esses trecircs seres presidem aos tipos de leito Ƕ Satildeo trecircs Ƕ Ora Deus ou porque natildeo quis ou porque era necessaacuterio que ele natildeo fabricasse mais do que uma cama natural confeccionou assim aquela uacutenica cama a cama real Mas duas camas desse tipo ou mais eacute coisa que Deus natildeo criou nem criaraacute

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Ƕ Como assim Ƕ Eacute que se fizesse apenas duas apareceria outra cuja ideia aquelas duas realizariam e essa seria a cama real natildeo as outras duas

Ƕ Exactamente Ƕ Por saber isso julgo eu eacute que Deus querendo ser realmente o autor de uma cama real e natildeo de uma qualquer nem um marceneiro qualquer criou-a na sua natureza essencial una

Ƕ Assim parece Ƕ Queres entatildeo que o intitulemos artiacutefice natural da cama ou algo de semelhante Ƕ Eacute justo uma vez que foi ele o criador disso e de tudo o mais na sua natureza essencial

Ƕ E quanto ao marceneiro Acaso natildeo lhe chamaremos o artiacutefice da cama Ƕ Chamaremos Ƕ E do pintor diremos tambeacutem que eacute o artiacutefice e autor de tal moacutevel Ƕ De modo algum Ƕ Entatildeo que diraacutes que ele eacute em relaccedilatildeo agrave cama Ƕ O tiacutetulo que me parece que se lhe ajusta melhor eacute o de imitador daquilo de que os outros satildeo artiacutefices

Ƕ Seja mdash concordei eu mdash Chamas por conseguinte ao autor aquilo que estaacute trecircs pontos afastado da realidade um imitador

Ƕ Exactamente Ƕ Logo tambeacutem o tragedioacutegrafo seraacute assim (se na verdade eacute um imitador) como se fosse o terceiro depois do rei e da verdade e bem assim todos os outros imitadores (platatildeo 1987 p 455)

Esta longa exposiccedilatildeo faz parte daquilo que ficou conhecido como o argumento

ontoloacutegico de Platatildeo contra a arte mimeacutetica e tem sido motivo de estudo e debate desde

a antiguidade O ponto fundamental para o nosso tema eacute a divisatildeo que este pensador

estabelece para a realidade em trecircs esferas com caracteriacutesticas ontoloacutegicas distintas

Grosso modo a primeira e mais elevada esfera de onde derivam as demais eacute a do

mundo inteligiacutevel ou mundo das ideias Do ponto de vista ontoloacutegico essa eacute a realidade

e laacute se encontra um ldquomodelordquo (παραδειγμαmdashparadeigma) universal para cada ente Pla-

tatildeo nomeia ora como ldquoDeusrdquo ora ldquodemiurgordquo ora ldquoartiacutefice naturalrdquo aquele que fabrica ou

modela cada elemento da realidade a partir de ideias preexistentes O conceito de pree-

xistecircncia das ideias pode parecer extravagante mas ele tem mais proximidade ao conceito

de produccedilatildeo empregado ateacute agora do que ao de criaccedilatildeo Esta questatildeo seraacute retomada ainda

neste capiacutetulo nas anaacutelises sobre as concepccedilotildees de Flusser mas para o momento importa

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saber que o conceito de produccedilatildeo (poacuteiesis) difere do conceito de criaccedilatildeo (creatio) no sen-

tido hebraico-cristatildeo de criaccedilatildeo a partir do nada (creatio ex nihilo) Produccedilatildeo pressupotildee

uma mateacuteria primordial desordenada e sem forma (χάοςmdashcaos) que pela accedilatildeo (poacuteiesis)

do demiurgo daacute origem ao coacutesmos (κόσμος) o universo ordenado Conforme a figura 5

A segunda esfera eacute a do mundo sensiacutevel e temporal Ela compartilha ou ldquoparticipardquo

dos modelos eternos da realidade transcendente da primeira esfera mas eacute imperfeita

e aparente A essecircncia da realidade natildeo se encontra nela poreacutem os artiacutefices humanos

atraveacutes do conhecimento (teacutekhneepisteacuteme) tecircm acesso aos modelos ideais e os aplicam

na confecccedilatildeo dos objetos e utensiacutelios e demais artefatos do mundo humano Assim por

exemplo uma uacutenica ideia de cama em sua plenitude e perfeiccedilatildeo permite aos marceneiros

produzirem toda a diversidade de camas existentes Como afirma Ribeiro

Uma coisa pelo menos estaacute totalmente a cargo do artista o remate o efetivo pocircr matildeos agrave obra Dizer que ele obedece a um modelo significa dizer que natildeo cria arbitrariamente [] Nenhuma obra esgota o ser do modelo que imita mas de alguma maneira a criaccedilatildeo contiacutenua de obras pereniza na dimensatildeo temporal nos limites do ser mortal o caraacuteter eterno desse modelo (ribeiro 2006 p 128)

Se o mundo inteligiacutevel eacute a realidade laacute eacute o lugar da verdade Portanto o mundo sensiacutevel

se encontra ontologicamente abaixo do primeiro Na forma de se expressar Platatildeo estaacute

dois pontos afastado da realidade e tambeacutem da verdade Entretanto eacute por ter em mente

o modelo eterno da cama que o marceneiro mesmo executando uma coacutepia imperfeita

da ideia pode carregar o tiacutetulo de ldquoartiacuteficerdquo Conforme a figura 6

Figura 5 Representaccedilatildeo na teoria platocircnica do primeiro niacutevel ontoloacutegico e seu produtor o demiurgo ou artiacutefice natural fonte autor

ARTIacuteFICE NATURAL1ordm NIacuteVEL

MODELOS PERFEITOSE UNIVERSAIS

MATEacuteRIA PREEXISTENTEIDEIAS

DEMIURGO

MUNDO INTELIGIacuteVELREALIDADE

CAOS

Tudo em sua natureza essencial

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Agrave terceira e uacuteltima esfera pertencem todos os que segundo Platatildeo natildeo efetivamente

produzem mas imitam O pintor por exemplo ao produzir uma imagem de uma cama

natildeo vai ateacute agrave ideia de cama mas recorre apenas agrave cama do marceneiro como guia Neste

sentido o pintor ldquoestaacute trecircs pontos afastado da realidaderdquo A figura 7 incorpora o mais

baixo niacutevel ontoloacutegico aos demais superiores e completa o quadro da hierarquia platocircnica

Figura 6 Representaccedilatildeo na teoria platocircnica do segundo niacutevel ontoloacutegico e seu produtor o artiacutefice hu-mano fonte autor

ARTIacuteFICE HUMANO2ordm NIacuteVEL

MATEacuteRIA PREEXISTENTEMODELOS PERFEITOS

E UNIVERSAISIDEIAS

MARCENEIRO

MUNDO INTELIGIacuteVELREALIDADE

MUNDO SENSIacuteVELAPAREcircNCIAS

TEacuteKH

NEE

PIST

EacuteME

Figura 7 Representaccedilatildeo dos trecircs niacuteveis ontoloacutegicos reunidos na hierarquia da metafiacutesica platocircnica O artiacutefice natural e os artiacutefices humanos como o marceneiro satildeo produtores (poieteacutesmdashποιητής) enquanto que os artistas como o pintor o poeta e o ator satildeo apenas imitadores (mimeteacutesmdashμιμητής) fonte autor

ARTIacuteFICE NATURAL1ordm NIacuteVEL

IMITADOR3ordm NIacuteVEL

ARTIacuteFICE HUMANO2ordm NIacuteVEL

MATEacuteRIA PREEXISTENTEMODELOS PERFEITOS

E UNIVERSAISIDEIAS

PINTOR

MARCENEIRO

DEMIURGO

MUNDO INTELIGIacuteVELREALIDADE

MUNDO SENSIacuteVELAPAREcircNCIAS

CAOS

TEacuteKH

NEE

PIST

EacuteME

MIacuteMESIS

Tudo em sua natureza essencial

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O problema da miacutemesis tem lugar privilegiado na discussatildeo platocircnica sobre o criteacuterio

diferenciador entre o conhecimento (episteacuteme) que busca a universalidade e consequente-

mente a verdade orientando as produccedilotildees e a mimeacutetica que eacute apenas aparecircncia e conduz

agraves coacutepias e agrave falsidade Ribeiro resume este ponto explicitando a diferenccedila e a distacircncia

que separa arte enquanto pura teacutekhne da arte mimeacutetica

Mas que mal haacute em ser imitador Todo demiurgo tambeacutem natildeo ldquoimitardquo algo Repetir-se-ia aqui o dogma de que um estaacute dois pontos afastado da verdade (da ideacuteia) enquanto o outro estaacute trecircs por imitar natildeo diretamente a ideacuteia mas seu homocircnimo sensiacutevel e o lugar-comum de que a obra de arte seria a coacutepia da coacutepia Importante poreacutem eacute interpretaacute-los A imitaccedilatildeo fracassa por natildeo corres-ponder ao modo de ser da teacutechne pressuposto como criteacuterio Em primeiro lugar a mimeacutetica imita toda e qualquer coisa como algueacutem que caminha com um espelho nas matildeos reproduzindo os seres naturais e artificiais com que cruza no caminho natildeo se deteacutem como a teacutechne sobre um campo determinado do real [] Homero imita um general um meacutedico e um arauto sem ser perito em nenhum desses domiacutenios Aleacutem disso a mimeacutetica natildeo se preocupa em conhecer como eacute em si e por si mesmo o real correspondente a cada arte que imita jaacute que lhe basta o aparente (phainoacutemenon) para agradar o grande puacuteblico ignorante que julga pela cor (chrocircma) e formato (schecircma) A mimeacutetica natildeo eacute conhecimento (episteacuteme) natildeo se ateacutem agraves determinaccedilotildees universais e necessaacuterias das coisas [] (ribeiro 2006 p 125-126)

Essa busca por um ldquoreal correspondente a cada arterdquo assim como a subordinaccedilatildeo ldquoagraves

determinaccedilotildees universais e necessaacuterias das coisasrdquo que colocamos em relevo na citaccedilatildeo

anterior proacuteprio da pura teacutekhne e mais ainda da episteacuteme satildeo elementos que se preser-

varam como valores intriacutensecos ao conhecimento na trajetoacuteria posterior do pensamento

impondo assim uma hierarquia do saber

Ao teacutermino dessa exposiccedilatildeo sobre Platatildeo um dos pontos que consideramos relevante

sobre a teoria desse pensador para o presente capiacutetulo estaacute ligado a um elemento que

natildeo se encontra agrave primeira vista expliacutecito em sua concepccedilatildeo hierarquizada do conheci-

mento Esse elemento pode ser extraiacutedo de sua metafiacutesica quando entendemos que este

autor procura uma ordem e permanecircncia que natildeo encontra no mundo sensiacutevel em fluxo

e devir Para Platatildeo natildeo eacute possiacutevel aceitar que a verdade possa estar em um lugar em que

tudo muda o tempo todo E a busca por estabilidade exige delimitaccedilotildees que distinguam

cada componente da realidade dos demais Uma cama deve ser somente uma cama e um

71

marceneiro somente um marceneiro Aquilo que natildeo se encaixa nesse criteacuterio eacute confuso

e indeterminado e portanto natildeo tem lugar ontoloacutegico assegurado em sua concepccedilatildeo da

realidade Mas como vimos no capiacutetulo anterior a questatildeo eacute que a arte e o design por

motivos diversos satildeo indeterminados Portanto eacute necessaacuterio avanccedilar sobre alguns desdo-

bramentos da posiccedilatildeo platocircnica e buscar autores que discordam parcial ou inteiramente

dela para estabelecer um modelo alternativo de conhecimento e realidade ou pelo

menos reelaborar essa concepccedilatildeo de modo a tornaacute-la capaz de mediar a indeterminaccedilatildeo

e a heterogeneidade como propriedades a se preservar

Uma ressalva deve ser feita acerca do tom criacutetico que assumimos em relaccedilatildeo agrave posiccedilatildeo

de Platatildeo Apoacutes 20 seacuteculos de histoacuteria do pensamento ocidental torna-se difiacutecil avaliar

ateacute onde reverberam as suas concepccedilotildees Muito foi dito e natildeo soacute por filoacutesofos sobre a

influecircncia de suas ideias desde a sua contribuiccedilatildeo na formaccedilatildeo do nosso modo de pensar

a vida no acircmbito do senso comum ateacute na construccedilatildeo de elaboradas e abstratas teorias

acerca da realidade Haacute algum tempo eacute lugar comum entre as citaccedilotildees acerca deste pen-

sador a frase do filoacutesofo Alfred North Whitehead ldquoA caracterizaccedilatildeo geral mais segura da

tradiccedilatildeo filosoacutefica europeacuteia eacute que ela consiste em uma seacuterie de notas de rodapeacute a Platatildeordquo

(whitehead 1978 p 39) Traduccedilatildeo nossa Independentemente de se entender tal afir-

maccedilatildeo como retoacuterica5 aceitar ou natildeo a onipresenccedila das ideias desse pensador ou pelo

menos a ubiquidade e recorrecircncia de temas primeiramente por ele propostos parte do

que se credita a Platatildeo foi inspirado em sua metafiacutesica mas estabelecido depois dele e

portanto natildeo pode ser de sua exclusiva responsabilidade para o bem ou para o mal

Subjacente a essa concepccedilatildeo um paracircmetro que orienta o entendimento do tipo de

princiacutepio ordenador da realidade que Platatildeo persegue tem destaque natildeo somente em

seus diaacutelogos No portal da Academia Platocircnica havia uma inscriccedilatildeo com a advertecircncia

ldquoQuem natildeo eacute geocircmetra natildeo entrerdquo (cornelli gabriele 2007 p 420) A forccedila dessa

frase se revela no fato de que ela serve de inspiraccedilatildeo ateacute hoje natildeo soacute para racionalistas mas

tambeacutem para seus opositores empiristas que neste ponto concordam entre si seguros

da validade universal da matemaacutetica Se a matemaacutetica constroacutei seus objetos sem necessi-

dade da experiecircncia sensiacutevel seus fundamentos estatildeo em consonacircncia com concepccedilotildees

5 Essa frase antes de ser publicada no livro Process and Reality foi proferida em uma palestra de Whi-tehead na Gifford Lectures da Universidade de Edimburgo durante as seccedilotildees de 1927 e 1928

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metafiacutesicas de mundos transcendentes O mundo das ideias platocircnico eacute somente o pri-

meiro representante deste tipo de paradigma que com muitos opositores ainda se faz

presente na atualidade

223 Desdobramentos da hierarquizaccedilatildeo do conhecimento

Na Idade Meacutedia um interluacutedio apoiado no pensamento de Aristoacuteteles havia estabelecido

uma concepccedilatildeo qualitativa que explicava de modo diverso tanto a natureza quanto o ho-

mem No entanto os aspectos quantitativos caros a um racionalista e matemaacutetico como

Platatildeo satildeo retomados com forccedila no pensamento daqueles que iratildeo direcionar os rumos

do conhecimento natural a partir da modernidade Copeacuternico Kepler Galileu e Descar-

tes entre outros Assim contrariando uma visatildeo qualitativa da realidade se estabelecem

a partir da Renascenccedila as bases de uma nova concepccedilatildeo de ciecircncia de caraacuteter descritivo

apoiada em equaccedilotildees nuacutemeros e medidas precisas (burtt 1983) Tal estrutura (aliada

aos conceitos de universalidade e de necessidade apontados por Ribeiro na subseccedilatildeo an-

terior) prosperaraacute em parte pelos resultados extraordinaacuterios de suas realizaccedilotildees praacuteticas

no acircmbito da teacutecnica mas que natildeo eacute bem-sucedida em explicar o homem e seus valores

qualitativos Vale ressaltar as palavras de Maldonado sobre trecircs pilares da modernidade

cientiacutefica e tecnoloacutegica base da revoluccedilatildeo industrial dos seacuteculos xvii e xviii que fomen-

taraacute aspectos formais de disciplinas como o design ldquoUm universo no qual a observaccedilatildeo

escrupulosa a mediccedilatildeo acurada e a quantificaccedilatildeo exata transformaram-se nos trecircs elementos

que sustentam o mundo do engenho estrutural e funcionalrdquo (maldonado 2012 p 178)

A precisatildeo na mediccedilatildeo de que nos fala Maldonado eacute um dos elementos centrais que

o historiador da ciecircncia Alexandre Koyreacute recorre para justificar e tornar inteligiacutevel a

nascente tecnologia da modernidade

De minha parte acredito que a histoacuteria ou melhor a preacute-histoacuteria da revoluccedilatildeo teacutecnica dos seacuteculos xvii e xviii confirma a concepccedilatildeo cartesiana de que foi em consequumlecircncia de uma conversatildeo da ἐπιστήμη [episteacuteme] na τέχνη [teacutekhne] que a maacutequina eoteacutecnica⁹ se transformou na maacutequina moderna (paleoteacutecnica) pois foi essa conversatildeo em outros termos foi a tecnologia nascente que atribuiu agrave

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segunda aquilo que forma o seu caraacuteter proacuteprio e a distingue radicalmente da primeira ou seja nada mais do que a precisatildeo (koyreacute 1991 p 275)

⁹ Emprego a terminologia extremamente sugestiva do Sr Lewis Mumford Tech-nics and Civilisation 4ordf ed New York 1946 [nota em peacute de paacutegina do autor]

Em outra passagem o autor alerta para a imprecisatildeo do caacutelculo nos periacuteodos histoacute-

ricos anteriores

[] consideremos que o homem do Renascimento o homem da Idade Meacutedia (e a mesma coisa vale tambeacutem para o homem antigo) natildeo sabia calcular E natildeo estava habituado a fazecirc-lo Sabia sem duacutevida bastante bem11 jaacute que a ciecircncia antiga elaborou e desenvolveu os meacutetodos e os meios apropriados executar caacutelculos astronocircmicos mas natildeo sabia mdash12 jaacute que a ciecircncia antiga se preocupou pouco ou nada com isso mdash executar caacutelculos numeacutericos (koyreacute 1991 p 275)

11 Os astrocircnomos o sabiam 12 O comum dos mortais Mesmo as pessoas instruiacute-das [notas em peacute de paacutegina do autor]

Isso natildeo significa que Koyreacute natildeo valorize e natildeo compreenda a habilidade dos estu-

diosos e profissionais anteriores e a relevacircncia de seu trabalho em um periacuteodo em que

a teacutekhne (como vimos) tem componentes teacutecnicos e artiacutesticos mesclados Com plena

consciecircncia disso Koyreacute recorre a uma longa citaccedilatildeo do historiador Lucien Febvre acerca

das conquistas ateacute aquele momento que reproduzimos a seguir

Atualmente noacutes natildeo falamos ou falamos cada vez menos (e jaacute haacute algum tempo) da Noite da Idade Meacutedia Nem do Renascimento como um guerreiro vitorioso que dissipou as trevas para sempre Isso porque prevalecendo o bom senso natildeo poderiacuteamos continuar acreditando nessas obliteraccedilotildees totais de que nos falavam antigamente obliteraccedilotildees da curiosidade humana obliteraccedilotildees do espiacuterito de observaccedilatildeo e se preferirmos obliteraccedilatildeo de invenccedilatildeo Isso porque conside-ramos afinal que uma eacutepoca que teve arquitetos com a envergadura dos que conceberam e construiacuteram nossas grandes basiacutelicas romacircnticas Cluny Veacutezelay Saint-Sernin etc e nossas grandes catedrais goacuteticas Paris Chartres Amiens Reims Bourges e as poderosas fortalezas dos grandes barotildees Coucy Pierre-fonds Chacircteau-Gaillard com todos os problemas de geometria de mecacircnica de transporte de levantamento de materiais pesados de manutenccedilatildeo que seme-lhantes construccedilotildees supotildeem todo o tesouro de experiecircncias bem-sucedidas e de insucessos consignados que esse trabalho ao mesmo tempo exige e alimenta mdash a uma eacutepoca assim seria ridiacuteculo negar em bloco e sem discernimento o espiacuterito de observaccedilatildeo e o espiacuterito de inovaccedilatildeo Olhando com atenccedilatildeo os homens que

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inventaram ou reinventaram ou adotaram e implantaram em nossa civilizaccedilatildeo do Ocidente a atrelagem dos cavalos pelo peito a ferradura o estribo o botatildeo o moinho de vento e de aacutegua a plaina a buacutessola a poacutelvora para canhatildeo o papel a imprensa etc mdash esses homens bem que fizeram jus ao espiacuterito da invenccedilatildeo e da humanidade (febvre 1946 apud koyreacute 1991 p 274)

No entanto sua posiccedilatildeo eacute de defesa de um ideal em que a ciecircncia quantificada (diriacutea-

mos de inspiraccedilatildeo platocircnica) iraacute se impor sobre a teacutecnica e estabelecer o que ele define

como tecnologia ldquofazer a teoria da praacuteticardquo (koyre 1991 p 267) A figura 8 apresenta

a linha do tempo com a inclusatildeo do conceito de tecnologia proposto por Koyreacute e seu

aporte a partir da segunda metade do seacuteculo xvii para a teacutecnica com consequecircncias

revolucionaacuterias sobre a nascente induacutestria e seus derivados

Se avaliarmos a histoacuteria da ciecircncia tendo em conta particularmente autores que refor-

mularam essa disciplina ao longo do seacuteculo xx como Koyreacute (1982) Burtt (1983) e Koestler

(1989) podemos afirmar que a partir do seacuteculo xv a confianccedila nos aspectos quantitativos

em detrimento dos qualitativos cresce em todas as aacutereas do conhecimento com a busca e

seleccedilatildeo de elementos que demonstrem caracteriacutesticas universais numericamente calculaacute-

veis e aliadas agrave objetividade no que passou a ser conhecido como a mathesis universalis

Os meacutetodos derivados desse modo de explicar parte da realidade foram corroborados

pelo sucesso que as pioneiras ciecircncias naturais alcanccedilaram a partir do seacuteculo xvii com

a matematizaccedilatildeo de seus fundamentos Se tal proposta gnoseoloacutegica foi parcialmente

aceita como verdade porque funciona em seus desdobramentos cientiacuteficos tecnoloacutegicos

Figura 8 Linha do tempo indicando desdobramento do conceito grego de poacuteiesis (produccedilatildeo) em episteacuteme (ciecircncia) e teacutekhne (arte) Apoacutes a cisatildeo entre ciecircncia teacutecnica e arte a tecnologia eacute estabelecida como um elo de ligaccedilatildeo teoacutericopraacutetico entre ciecircncia e teacutecnica fonte autor

asymp aC dC 7 dC dCGreacutecia Ocidente

EPISTEME

TEacuteKHNE

CIEcircNCIA

TEacuteCNICA

ARTE

POacuteIESIS

TECNOLOGIA

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e teacutecnicos com os inegaacuteveis resultados da industrializaccedilatildeo o avanccedilo e hipertrofia desse

empreendimento conhecido como cientificismo levou agrave extremos na tentativa de exportar

esse modelo bem-sucedido nas ciecircncias naturais para disciplinas de aacutereas humanas

No entanto parte dos estudiosos das ciecircncias humanas e sociais desde o seacuteculo xix

discorda dessas posiccedilotildees Subjacente a esse questionamento se encontram as diferenccedilas

entre diversos conceitos que foram reelaborados entre os quais estatildeo os de natureza fiacutesica

e natureza humana Como hoje sabemos esse segundo conceito estaacute longe de ser descrito

satisfatoriamente como o primeiro por um modelo quantitativo

Nesse periacuteodo ateacute a virada do seacuteculo xx Nietzsche eacute um dos que se destaca indo

aleacutem do papel criacutetico que a gnoseologia na figura de Kant6 teve em relaccedilatildeo agraves bases

das ciecircncias Como um precursor agraves interpelaccedilotildees de Heidegger ele se insurge contra a

hegemonia da racionalidade cientiacutefica e a questiona de forma radical desde o seu primei-

ro livro O nascimento da trageacutedia publicado em 1872 No prefaacutecio da segunda ediccedilatildeo

dessa obra que Nietzsche intitula de uma ldquotentativa de autocriacuteticardquo seu questionamento

carregado de um tom pessoal aponta para um argumento distinto das criacuteticas de base

epistemoloacutegica daquele periacuteodo Para este pensador soacute eacute possiacutevel compreender o ldquopro-

blemardquo da ciecircncia se nos situarmos fora de seus domiacutenios E mais importante cabe agrave arte

essa tarefa inquiridora

O que consegui entatildeo apreender algo terriacutevel e perigoso um problema com chi-fres natildeo necessariamente um touro por certo em todo caso um novo problema hoje eu diria que foi o problema da ciecircncia mesma mdash a ciecircncia entendida pela primeira vez como problemaacutetica como questionaacutevel Mas o livro em que se ex-travasava a minha coragem e a minha suspicaacutecia juvenis mdash que livro impossiacutevel teria de brotar de uma tarefa tatildeo contraacuteria agrave juventude Edificado a partir de puras vivecircncias proacuteprias prematuras e demasiado verdes que afloravam todas agrave soleira do comunicaacutevel colocado sobre o terreno da arte mdash pois o problema da ciecircncia natildeo pode ser reconhecido no terreno da ciecircncia mdash []

[] ante um olhar mais velho cem vezes mais exigente poreacutem de maneira alguma mais frio nem mais estranho agravequela tarefa de que este livro temeraacuterio ousou pela primeira vez aproximar-se mdash ver a ciecircncia com a oacuteptica do artista mas a arte com a da vida (nietzsche 2013 p 12-13)

6 Kant assumindo para si a tarefa de uma criacutetica gnoseoloacutegica dos extremos racionalista e empirista busca uma mediaccedilatildeo e nomeia suas obras principais como Criacutetica da razatildeo pura Criacutetica da razatildeo praacutetica e Criacutetica da faculdade de julgar Ao contraacuterio de Kant Nietzsche natildeo propotildee mediaccedilatildeo

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Uma reaccedilatildeo dessa magnitude que seraacute um ideaacuterio perseguido por Nietzsche nas suas

obras posteriores ateacute a sua morte em 1900 tem relevacircncia natildeo somente pela sua criacutetica agrave

ciecircncia em um contexto de crescente valorizaccedilatildeo do conhecimento fundado em meacutetodos

racionais mas tambeacutem porque nega uma hierarquia em que a arte estaria submetida agrave

ciecircncia e a eleva agrave condiccedilatildeo superior de instacircncia avaliadora da episteacuteme

Este giro conceitual em clara oposiccedilatildeo agrave ordenaccedilatildeo de inspiraccedilatildeo platocircnica influencia

opositores desde o iniacutecio do seacuteculo xx ateacute os dias de hoje natildeo somente na arte mas nos

demais campos que partilham elementos qualitativos com ela Mas a efervescecircncia cultural

e de constituiccedilatildeo de disciplinas do saber natildeo se reduz a uma simples divisatildeo entre dois

polos opostos O tom da criacutetica nietzschiana eacute sintoma de uma eacutepoca em que os valores

tradicionais e modelos estabelecidos sofrem questionamentos constantes com novas

teorias ideias e movimentos nas mais variadas aacutereas com as obras de Duchamp Freud

Piaget e Darwin provocando mudanccedilas radicais na arte e na ciecircncia influenciando a

cultura e atingindo ateacute a fiacutesica que avanccedilava com estabilidade e linearidade Por exemplo

algumas concepccedilotildees de Plank e Einstein publicadas ainda na primeira deacutecada do seacuteculo

xx comprovam quebras de paradigma no cerne de ciecircncias ldquodurasrdquo Tais mudanccedilas aliadas

agrave efervescecircncia cultural refletem como veremos com Eco no capiacutetulo 4 naquilo que este

autor nomeia de ldquometaacutefora epistemoloacutegicardquo em uma circularidade que retorna agrave arte Essas

inter-relaccedilotildees atravessam o seacuteculo xx e se ampliam Assim uma visatildeo natildeo hierarquizada

do saber continua a ser um modo criacutetico no sentido nietzschiano de assumir a crescente

pluralidade de aacutereas como um valor Rafael Cardoso adota este preceito no livro Design

para um mundo complexo Como historiador da arte e do design ele insiste na defesa da

equidade entre os campos

Arte eacute um meio de acesso ao desconhecido em peacute de igualdade com a ciecircncia a filosofia a religiatildeo mdash enfim os poucos caminhos que o ser humano encon-trou para relacionar seu interior com o universo que o cerca mdash e nesse sentido design eacute uma categoria subordinada mais agrave arte que aos outros trecircs citados (cardoso 2016 p 246)

Devemos atentar para a questatildeo de que mesmo defendendo a igualdade entre arte e

ciecircncia Cardoso natildeo escapa de manter-se adepto a uma hierarquia onde o design em certo

sentido subordina-se agrave arte Beat Schneider outro historiador do design aparentemente

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se aproxima da declaraccedilatildeo de Cardoso acerca da submissatildeo do design agrave arte No entanto

Schneider natildeo afirma como Cardoso que compreende o design como um campo su-

bordinado agrave arte mas de um ponto de vista mais descritivo do que prescritivo considera

com inflexatildeo criacutetica que o design ldquoentendeu-se como subcategoria da disciplina arterdquo

Examinemos a afirmaccedilatildeo de Schneider contextualizada

De uma perspectiva histoacuterica podemos encontrar uma razatildeo para o impedimento da discussatildeo teoacuterica no ocircnus artiacutestico presente no autoentendimento do design O design entendeu-se como subcategoria da disciplina arte e natildeo como disciplina autocircnoma e deixou com excessiva frequecircncia a teoria e o registro histoacuterico a cargo da ciecircncia e da histoacuteria da arte Uma tradiccedilatildeo forte e ateacute agora dominante na histoacuteria do design desde a industrializaccedilatildeo ateacute a atualidade eacute marcada pela motivaccedilatildeo artiacutestica pela inspiraccedilatildeo artiacutestica para um design expressivo Essa tradiccedilatildeo se manifesta na tendecircncia a fetichizar a proacutepria praacutetica como artiacutestica e desobrigar-se agrave argumentaccedilatildeo racional e cultivar a aura do design de autor Nesse contexto eacute recorrente o mito do ldquodesigner-artistardquo criativo que com seu

ldquobomrdquo design organiza as coisas do mundo (schneider 2010 p 260)

A posiccedilatildeo de Cardoso inclina-se claramente para a defesa da arte como um ldquocaminhordquo

que permite ao homem se relacionar com o universo e neste sentido o autor justifica a

sua relevacircncia para a disciplina do design mais do que a ciecircncia a filosofia e a religiatildeo

Por outro lado Schneider entende de modo negativo certa influecircncia da arte sobre o

design por sua inspiraccedilatildeo e fetichizaccedilatildeo da praacutetica deste campo pois segundo ele tende

a reduzir o compromisso com a ldquodiscussatildeo teoacutericarsquo e com a ldquoargumentaccedilatildeo racionalrdquo

Indo aleacutem das diferenccedilas entre as posiccedilotildees desses dois autores que satildeo relevantes para

a compreensatildeo das nuances nas relaccedilotildees entre os campos na atualidade devemos estar

atentos ao questionamento sobre a real necessidade de uma hierarquizaccedilatildeo e da consta-

taccedilatildeo de uma categorizaccedilatildeo em niacuteveis que estabelece a dependecircncia entre aacutereas do saber

As abordagens de Cardoso e Schneider nos fazem pensar que o proacuteprio Nietzsche mdash ao

colocar a arte como o lugar e a instacircncia para uma criacutetica procedente da ciecircncia mdash talvez

natildeo deixe de refletir dentro de um modelo hieraacuterquico e de dependecircncia entre campos

De qualquer modo a questatildeo natildeo nos parece simples Em oposiccedilatildeo agrave ideia de depen-

decircncia defender a autonomia pode conduzir agrave incongruecircncias Isso porque a definiccedilatildeo

de autonomia (em seu sentido originaacuterio de ser governado por suas proacuteprias leis e deter-

minaccedilotildees) pressupotildee separaccedilatildeo Entatildeo como pensar a ideia de independecircncia sem a sua

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contraparte de ruptura Em outras palavras eacute possiacutevel garantir autonomia a cada uma

dessas disciplinas e ao mesmo tempo ultrapassar ou pelo menos mitigar o modelo de cisatildeo

que existe entre elas Apesar das dificuldades nossa aposta eacute que sim tendo em conta que

os elos de ligaccedilatildeo jaacute existem vecircm do passado e satildeo os pontos comuns agrave ciecircncia e agrave teacutecnica

que se conectam agrave arte e ao design

23 Design entre ciecircncia teacutecnica e arte

Natildeo acreditamos que seja possiacutevel retornar a uma compreensatildeo da realidade como um coacutesmos

harmocircnico em que cada ramo do saber esteja intimamente relacionado aos demais e natildeo

hierarquizados como na antiguidade preacute-platocircnica Mas eacute importante ter esse referencial

em mente para pensarmos duas espeacutecies de dificuldades com as quais precisamos lidar na

contemporaneidade Uma inerente agrave fragmentaccedilatildeo que enfrentamos no acircmbito geral da

cultura e do saber que se estabelece de forma acentuada desde o advento da modernidade

Outra consequecircncia da hierarquizaccedilatildeo do conhecimento que afeta diversas aacutereas mas

diretamente duas de nosso interesse design e arte Diante disso Tomaacutes Maldonado se

apresenta como um dos criacuteticos importantes para nossa anaacutelise pois une seus argumen-

tos provenientes de conhecimentos no design e na arte7 com um interesse na filosofia da

ciecircncia e da teacutecnica questionando a tradiccedilatildeo idealista proveniente de Platatildeo Conforme

ele afirma no capitulo Pensar a teacutecnica hoje do livro Cultura sociedade e teacutecnica

Vivemos atualmente em um momento particularmente inovador da longa (e atribulada) histoacuteria da reflexatildeo sobre a teacutecnica Constata-se nas uacuteltimas deacutecadas uma tendecircncia cada vez maior de afastamento daquelas interpretaccedilotildees com vieacutes idealista que sempre dificultaram as tentativas de se fazer reflexatildeo sobre a teacutecnica

[] Basta pensar por exemplo na contribuiccedilatildeo de E Zschimmer (1914) e F Dessauer (1927 e 1959) dois engenheiros-cientistas-filoacutesofos de filiaccedilatildeo hege-liana e kantiana respectivamente [] esses estudiosos estavam convencidos de que as respostas agraves questotildees levantadas pela teacutecnica deveriam ser buscadas

7 Maldonado formou-se pela Academia de Belas Artes de Buenos Aires em 1939 e participou do movi-mento de Arte Concreta da Argentina entre os anos de 1943 e 1954 antes de se tornar professor de design e reitor na Alemanha na escola de Ulm

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dentro da proacutepria teacutecnica A teacutecnica seria uma realidade autocircnoma um sistema fechado que se desenvolve e se autoexplicaria sem ter de recorrer a fatores exoacute-genos Poder-se-ia dizer mdash utilizando um termo agora muito na moda mdash que a teacutecnica eacute autopoieacutetica

Dessauer deixa subentendido mdash platocircnica e aristotelicamente mdash que as formas dos objetos teacutecnicos jaacute estariam presentes em um cataacutelogo ideal das formas preexistentes E que a teacutecnica natildeo faria outra coisa a natildeo ser deixaacute-las expliacutecitas (maldonado 2012 p 153)

Trecircs pontos interligados na citaccedilatildeo anterior devem ser destacados Primeiro a criacutetica

de Maldonado estaacute dirigida agraves interpretaccedilotildees que se apoiam no idealismo Segundo a

delimitaccedilatildeo da forma mais atual desse idealismo estaacute vinculada ao conceito de autopoiese

ou autoproduccedilatildeo Terceiro (promovendo a conexatildeo dos dois primeiros pontos) este autor

faz uma clara remissatildeo dessa concepccedilatildeo de teacutecnica ao ideaacuterio platocircnico ao relacionaacute-la

com ldquorealidade autocircnomardquo e ldquocataacutelogo ideal das formas preexistentesrdquo

Natildeo haacute duacutevida da criacutetica direta de Maldonado agrave posiccedilatildeo platocircnica Mas devemos fazer

duas ressalvas A primeira eacute que (como vimos na seccedilatildeo 1 deste capiacutetulo) na antiguidade

o conceito de poacuteiesis na sua especificaccedilatildeo de existecircncia espontacircnea eacute autoproduccedilatildeo e estaacute

intrinsecamente associado agrave natureza (phyacutesis) Mas o mesmo natildeo ocorre na sua especifi-

caccedilatildeo enquanto episteacuteme ou teacutekhne No entanto seguindo as palavras de Maldonado que

fala de ldquoautopoieacuteticardquo afirmando ser um termo da moda podemos supor que talvez ele se

refira agrave ldquoautopoieserdquo palavra cunhada pelo bioacutelogo e epistemoacutelogo Humberto Matura-

na na deacutecada de 1970 para caracterizar a capacidade dos seres vivos de produzirem a si

proacuteprios e que ficou em evidecircncia com os debates em torno da relevacircncia dos sistemas8

na compreensatildeo dos fenocircmenos bioloacutegicos Apesar do neologismo autopoiese tambeacutem

remeter agrave phyacutesis grega tanto no conceito quanto na etimologia e raiz da palavra poiese se

Maldonado estaacute apenas se apropriando de sua designaccedilatildeo contemporacircnea relacionada agrave

biologia e aplicando-a a uma concepccedilatildeo de teacutecnica entendida como endoacutegena a ressalva

pode ser mitigada

8 Conforme afirmam Humberto Maturana e Francisco Varela no livro De maacutequinas y seres vivos au-topoiesis la organizacioacuten de lo vivo sobre a delimitaccedilatildeo do conceito de autopoiese ldquoA compreensatildeo do caraacuteter sistecircmico dos fenocircmenos que envolvem a vivecircncia possibilitada pela teoria da autopoiese permite explicar a origem dos seres vivos na terra ou em qualquer parte do cosmo como o surgi-mento espontacircneo de um ser vivo como entidade discreta assim como ocorre a dinacircmica molecular autopoieacutetica como um fenocircmeno sistecircmicordquo (maturana varela 2003 p 24) Traduccedilatildeo nossa

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A segunda ressalva diz respeito a inclusatildeo do nome de Aristoacuteteles alinhando-o com

o pensamento platocircnico Como veremos no capiacutetulo 4 Aristoacuteteles se opotildee frontalmente

a um mundo de formas ideais preexistentes ou a um ldquocataacutelogordquo Essa eacute uma das posiccedilotildees

fundamentais de Aristoacuteteles que o potildee historicamente como o primeiro a discordar de

Platatildeo e com argumentos suficientes para justificar nossa escolha de colocaacute-lo no centro

da discussatildeo sobre a criacutetica agrave hierarquia do conhecimento No entanto essa restriccedilatildeo natildeo

invalida a posiccedilatildeo tambeacutem criacutetica de Maldonado em relaccedilatildeo a uma concepccedilatildeo de teacutecnica

entendida como ldquoum sistema fechadordquo Mas eacute importante tambeacutem atentar que mesmo nas

concepccedilotildees de tendecircncia ldquoplatocircnicardquo com ldquorealidades autocircnomasrdquo a teacutecnica compreen-

dida como um campo separado da ciecircncia estaacute cada vez mais atrelada e hierarquicamente

submetida a uma teoria que a fundamenta e que se efetiva atraveacutes da tecnologia como

vimos na definiccedilatildeo de Koyreacute (cf p 72-73)

Aleacutem de Maldonado identificamos a disposiccedilatildeo de outros pesquisadores em buscar

elementos comuns e a integraccedilatildeo de fenocircmenos em campos distintos na forma de novas

teorias ou princiacutepios organizadores alguns defendendo somente as conexotildees de seus

objetos de estudo e outros apostando em um caraacuteter holiacutestico ou totalizante de seus

fundamentos Analisemos em recorte como esse processo vem ocorrendo

231 Afastamentos aproximaccedilotildees e interaccedilotildees

De acordo com o graacutefico da figura 1 (cf capiacutetulo 1 p 24) o ciacuterculo da epistemologia

incorpora ciecircncia e teacutecnica como seus objetos de estudo Deste modo selecionamos um

grupo de epistemoacutelogos que se tornaram referecircncia para a compreensatildeo das relaccedilotildees dessas

duas aacutereas para subsidiar nossa anaacutelise das posiccedilotildees de Maldonado Bonsiepe Schneider

e Cardoso contextualizando ciecircncia e teacutecnica com o design

O seacuteculo xx eacute proliacutefico em obras como as de Edwin A Burtt (1983) e Alexandre

Koyreacute (1982) O conhecimento acumulado a partir desses autores que se especializaram

em histoacuteria da ciecircncia influenciou mais de uma geraccedilatildeo de pesquisadores como Arthur

Koestler (1989) e Thomas S Kuhn (1987) contribuindo inclusive para os ceacutelebres

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debates desse uacuteltimo contra Karl R Popper (1972 1975 1993) e suas posiccedilotildees Seus es-

tudos compotildeem um quadro rico e heterogecircneo calcado na histoacuteria dessas ciecircncias e de

seus desdobramentos para a teacutecnica demonstrando a construccedilatildeo de relaccedilotildees e avanccedilos

pragmaacuteticos jaacute centenaacuterios Tais relaccedilotildees entre as teorias e as suas aplicaccedilotildees interessam

a vaacuterios campos inclusive ao design Os trabalhos de Tomaacutes Maldonado como vimos

unem esses temas e autores explorando a histoacuteria da ciecircncia e da teacutecnica na busca por

compreensatildeo de aspectos intriacutensecos ao design Eacute o que se pode constatar em Os oacuteculos

levados a seacuterio onde os avanccedilos na estrutura da teacutecnica e da funcionalidade derivam dos

fundamentos de teorias das ciecircncias naturais

As lentes abriram o caminho para o desenvolvimento das primeiras lunetas e os primeiros microscoacutepios compostos Prenunciaram ainda o advento da oacutetica fina e de altiacutessima precisatildeo ou seja daquele conjunto de instrumentos e de aparelhos que serviram de alicerce para a poderosa revoluccedilatildeo que nos levou do lsquomundo da aproximaccedilatildeo ao universo da precisatildeorsquo para utilizar a feliz expressatildeo de A Koyreacute (1961) (maldonado 2012 p 178)

Neste capiacutetulo exemplar do livro Cultura sociedade e teacutecnica Maldonado discursa natildeo

somente como designer mas tambeacutem como epistemoacutelogo e busca explicar a invenccedilatildeo

de objetos que incorporam design como os oacuteculos rastreando sua origem na histoacuteria

das ciecircncias e da teacutecnica Com os subsiacutedios teoacutericos de Alexandre Koyreacute argumenta de

modo analiacutetico em favor de uma aproximaccedilatildeo dessas duas aacutereas E do mesmo modo no

capiacutetulo Pensar a teacutecnica hoje Maldonado reforccedila a atenccedilatildeo concentrada na atualidade

no acircmbito da ciecircncia e da teacutecnica agrave discussatildeo dos seus fundamentos

Trata-se da velha questatildeo da atualidade ou natildeo das estrateacutegias cognitivas que desde F Bacon propiciaram alcanccedilar formidaacuteveis resultados nos campos da descoberta cientiacutefica e da inovaccedilatildeo tecnoloacutegica Ela permanece no centro do debate entre os filoacutesofos e cientistas Eacute cada vez menor o nuacutemero daqueles que atribuem uma validade universal e uma objetividade absoluta agrave metodologia da pesquisa tecnociecircntiacutefica Outros a colocam em discussatildeo em nome do pluralismo e do relativismo outros ainda levantam a hipoacutetese de uma mediaccedilatildeo entre essas duas posiccedilotildees extremas ou entatildeo rejeitam a ambas Eacute um debate que no fundo refere-se aos fundamentos loacutegico-epistemoloacutegicos do empreendimento cientiacutefico (maldonado 2012 p 155)

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Apesar de natildeo citar neste ponto quais autores estatildeo no centro deste debate Maldonado

identifica uma reduccedilatildeo no nuacutemero de estudiosos que privilegiam conceitos (como vi-

mos anteriormente) caros agrave ciecircncia ortodoxa quantitativa como ldquovalidade universalrdquo e

ldquoobjetividade absolutardquo Tal percepccedilatildeo de Maldonado eacute sintoma de seu posicionamento

atento a uma flexibilizaccedilatildeo de princiacutepios que podem conduzir a uma relativizaccedilatildeo de

elementos riacutegidos do platonismo E supomos que seu entendimento da conexatildeo entre

ciecircncia e teacutecnica eacute forte o bastante para levaacute-lo agrave fusatildeo desses dois conceitos no neologismo

ldquotecnocientiacuteficardquo Mas poderiacuteamos tambeacutem supor um sinal de hierarquia ou pelo menos

de causa e efeito preservado na descriccedilatildeo de Maldonado ao falar dos ldquoformidaacuteveis resul-

tadosrdquo ordenando em primeiro lugar o campo da ldquodescoberta cientiacuteficardquo e em segundo o

da ldquoinovaccedilatildeo tecnoloacutegicardquo Depois de seacuteculos de confianccedila em tal ordenaccedilatildeo faz parte ateacute

do senso comum9 considerar ciecircncia em primeiro e teacutecnica em segundo o que se reflete

tambeacutem na forma como escrevemos Mas Maldonado tem consciecircncia da complexidade

das relaccedilotildees entre ciecircncia e teacutecnica Tanto que mais uma vez no seu capiacutetulo sobre os

oacuteculos destaca a importacircncia de reconsiderarmos a questatildeo

Novamente se propotildee a velha ideia que satildeo os doutos mdash e natildeo os praacuteticos mdash os principais protagonistas da inovaccedilatildeo tecnoloacutegica Essa ideia estaacute no centro das controveacutersias de muitas invenccedilotildees Quem foi por exemplo o inventor da maacute-quina a vapor o douto Denis Papin ou o praacutetico Thomas Newcomen O douto Joseph Black ou o douto-praacutetico James Watt (maldonado 2012 p 182)

Acerca dessa polecircmica que Maldonado insere no cerne da causalidade (2012 p

176-177) Koyreacute diria que natildeo importa quem foi o autor se um ldquodoutordquo ou um ldquopraacuteticordquo

mas que qualquer dos dois protagonistas precisou necessariamente de fundamentaccedilatildeo

teoacuterica para guiar seu projeto ldquotecnoloacutegicordquo dado o niacutevel de complexidade deste tipo de

invenccedilatildeo Com relaccedilatildeo a Maldonado podemos afirmar que dessa complexidade pode

derivar o ldquopluralismordquo de que ele nos fala associando-o a busca por elementos comuns e

relaccedilotildees entre os campos (rotulada sob certas circunstacircncias de interdisciplinaridade) tatildeo

9 Como afirma Koyreacute em nota do seu consagrado ensaio ldquoDo mundo do lsquomais-ou-menosrsquo ao universo da precisatildeordquo reverenciado por Maldonado ldquoO senso comum natildeo eacute alguma coisa de absolutamente constante noacutes natildeo examinamos mais a aboacutebada celeste Da mesma forma o pensamenteo teacutecnico tradicional as regras dos ofiacutecios a τέχνη [teacutekhne] pode absorver mdash e o fez no decorrer da histoacuteria mdash elementos do saber cientiacuteficordquo (koyreacute 1991 p 287)

83

caracteriacutestica de nossa eacutepoca e que pode ser incorporada tambeacutem aos objetivos teoacutericos

do design Em suas palavras

Torna-se cada vez mais claro que somente seraacute possiacutevel desenvolver uma histoacuteria da teacutecnica mais proacutexima aos nossos problemas atuais com a cola-boraccedilatildeo dos filoacutesofos historiadores etnoacutelogos engenheiros economistas psicoacutelogos e socioacutelogos [] Eacute improvaacutevel que se possa estudar a teacutecnica sem recorrer a tal cooperaccedilatildeo interdisciplinar Cada estudioso deveria procurar assimilar o saber oriundo de outras disciplinas mesmo permanecendo fiel agraves particularidades do seu proacuteprio campo de pesquisa Esse saber seria capaz de tornar o seu trabalho menos parcial e portanto mais verdadeiro e concreto (maldonado 2012 p 159)

Reflexotildees dessa natureza indicam que as divisotildees que ocorreram na ciecircncia e na teacutecni-

ca principalmente a partir da eacutepoca moderna tecircm um movimento em direccedilatildeo contraacuteria

ou de refluxo na busca por um entendimento integral dos fenocircmenos O pensamento

sistecircmico defendido por entre outros Rafael Cardoso eacute mais uma prova do interesse

de pesquisadores do design em avanccedilar na seara das conexotildees entre os campos Partindo

da mesma linhagem de epistemoacutelogos com a qual Maldonado dialoga Cardoso explora

um caminho diverso e se insurge contra uma concepccedilatildeo do design enquanto ciecircncia de

cunho analiacutetico

A maior e mais importante contribuiccedilatildeo que o design tem a fazer para equacionar os desafios do nosso mundo complexo eacute o pensamento sistecircmico Poucas aacutereas estatildeo habituadas a considerar os problemas de modo tatildeo integrado e comunicante O procedimento metodoloacutegico baacutesico em qualquer atividade cientiacutefica eacute recor-tar e fracionar o problema para constituir uma situaccedilatildeo experimental passiacutevel de averiguaccedilatildeo Esse meacutetodo funciona extremamente bem para uma seacuterie de anaacutelises mas eacute de pouca valia para lidar com a elaboraccedilatildeo de grandes sistemas complexos sua manutenccedilatildeo e planejamento Quando os problemas atravessam saberes e disciplinas por exemplo eacute limitado o que cada uma delas pode fazer para resolver o todo Assim como outras aacutereas projetuais mdash em especial a enge-nharia e a arquitetura mdash o design parte de uma abordagem diferente Em vez de fracionar o problema para reduzir as variaacuteveis o designer visa gerar alternativas cada uma das quais tende a ser uacutenica e totalizante Sua meta eacute viabilizar uma soluccedilatildeo e natildeo garantir a reprodutibilidade do experimento mdash construccedilatildeo e natildeo desconstruccedilatildeo ldquofactibilidaderdquo e natildeo ldquofalseabilidaderdquo partidos e funccedilotildees em vez de conjeturas e refutaccedilotildees (cardoso 2016 p 243-244)

84

A desvinculaccedilatildeo de Cardoso de uma epistemologia apropriada agraves ciecircncias naturais

segundo ele natildeo adequada ao design natildeo apresenta na citaccedilatildeo anterior um autor expliacutecito

(como o faz Maldonado com Koyreacute) talvez por uma questatildeo de estilo Mas eacute possiacutevel

identificar que Cardoso estaacute se referindo a Popper ao fazer uso dos termos ldquofalseabilidaderdquo

e ldquoconjeturas e refutaccedilotildeesrdquo respectivamente um conceito e um tiacutetulo de uma das obras

mais influentes desse epistemoacutelogo E portanto ao propor a siacutentese e a factibilidade ao

inveacutes da anaacutelise e falseabilidade reitera sua posiccedilatildeo de afastar o design de uma concepccedilatildeo

de ciecircncia stricto sensu Tal posiccedilatildeo faz sentido se o design recorre frequentemente ao

argumento de que eacute um campo com fronteiras pouco definidas e que trabalha transver-

salmente em conjunto com outras disciplinas

Beat Schneider a propoacutesito dessas fronteiras e da complexidade dos campos tambeacutem

recomenda a interdisciplinaridade

O pensamento e a reflexatildeo satildeo uma parte do processo de criaccedilatildeo Deles pode partir a teoria mdash no sentido de uma reflexividade que problematiza o processo de criaccedilatildeo Hoje essa reflexividade faz-se mais necessaacuteria do que nunca pois tanto a praacutetica social e teacutecnica quanto a praacutetica do design tornaram-se muito complexas O design precisa de uma teoria que corresponda agrave sua complexi-dade Essa complexidade do design estaacute em seu objeto e em sua constituiccedilatildeo interdisciplinar e transdisciplinar Uma rede de muitas disciplinas cientiacuteficas das aacutereas das ciecircncias humanas sociais e da engenharia disciplinas da induacutestria comeacutercio administraccedilatildeo e cultura bem como a complexa multiplicidade de usuaacuterios participam do processo de design e da resoluccedilatildeo comum de tarefas (schneider 2010 p 266)

Compartilhando com Cardoso a essecircncia projetual do design Schneider no entanto

considera este campo como ciecircncia Depois de haver nomeado o ldquodesign como ciecircncia

jovemrdquo (schneider 2010 p 193) este autor discorre sobre as atividade deste campo

ldquoSua tarefa eacute contribuir enquanto ciecircncia para tornar nosso complexo mundo visiacutevel e

legiacutevel Ela se situa no contexto normativo da tradiccedilatildeo iluminista da alfabetizaccedilatildeo e da

democratizaccedilatildeo do saber e do conhecimentordquo (schneider 2010 p 266)

Bonsiepe tambeacutem resguarda o mesmo acircmbito projetual que Cardoso e Schneider

e almeja uma interaccedilatildeo entre design entendido como projeto e ciecircncias enquanto

conhecimento

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Enquanto as ciecircncias enxergam o mundo sob a perspectiva da cogniccedilatildeo as disciplinas de design o enxergam sob a perspectiva do projeto Essas duas perspectivas diferentes que oxalaacute no futuro acabem se fundindo Estou con-vencido de que no futuro haveraacute uma interaccedilatildeo frutiacutefera entre o mundo das ciecircncias e o mundo do projeto que hoje se daacute no maacuteximo esporadicamente (bonsiepe 2011 p 17)

Mas eacute importante atentar que tal interaccedilatildeo de perspectivas na concepccedilatildeo de Bonsiepe

natildeo significa transformar o design em ciecircncia

A atitude de colocar o projeto relacionado com as ciecircncias natildeo deve ser in-terpretada como um postulado por um design cientiacutefico ou para transformar design em ciecircncia Seria grotesco querer projetar um cinzeiro baseando-se em conhecimentos cientiacuteficos Deveria ser criada uma correspondecircncia entre complexidade temaacutetica e metodologia O design deve recorrer a conhecimentos cientiacuteficos quando a temaacutetica o exige Por exemplo quando se quer projetar uma nova embalagem para leite que minimize os impactos ecoloacutegicos (ecological footprints) (bonsiepe 2011 p 17)

A posiccedilatildeo assumida por Bonsiepe tem aspectos que nos atraem pois tambeacutem natildeo

consideramos um problema recorrer a conhecimentos cientiacuteficos de outras aacutereas Pelo

contraacuterio esse procedimento de natildeo reinventar a roda eacute cada vez mais comum em dis-

ciplinas que ampliam sua atuaccedilatildeo em novos territoacuterios Mas como veremos no capiacutetulo

3 natildeo ser ciecircncia natildeo implica que o design natildeo se caracterize enquanto campo de conhe-

cimento O atributo da cogniccedilatildeo natildeo eacute exclusividade da ciecircncia

Portanto acreditamos que quando Bonsiepe afirma que os dois campos enxergam o

mundo com perspectivas diferentes ele natildeo estabelece categorias estanques o que para noacutes

eacute essencial na medida em que natildeo compreendemos o design isolado ou enrijecido em suas

fronteiras com outras aacutereas sejam elas cientiacuteficas teacutecnicas ou artiacutesticas Diriacuteamos que o

expressivo uso por Bonsiepe da palavra ldquoenxergarrdquo une ciecircncia e design em atividades

de caracteriacutesticas comuns em que a ldquoperspectivardquo apenas direciona a visatildeo para aspectos

distintos de uma mesma realidade Se for assim o liame proposto por esse autor para as

concepccedilotildees de ciecircncia e design retoma de forma elegante o legado conceitual de teoria

em sua origem na Antiguidade Como evidenciamos (cf capiacutetulo 1 p 61) teoria (θεωρία)

denota accedilatildeo de ver de observar contemplar examinar e especular E sua relaccedilatildeo com o

olhar aproxima-a de oida (οἶδα) significando ao mesmo tempo ver e compreender

86

232 Artifiacutecios fronteiras moacuteveis e pontes

Diante do quadro construiacutedo na subseccedilatildeo anterior eacute necessaacuteria uma anaacutelise em retros-

pecto cotejando as posiccedilotildees dos quatro autores e implicando-as com a nova etapa Ini-

ciando por Bonsiepe estaacute claro seu entendimento a respeito da distinccedilatildeo entre ciecircncia e

design assim como sua expectativa de uma futura interaccedilatildeo efetiva entre esses campos

Maldonado nos escritos analisados apesar de natildeo ser tatildeo expliacutecito a esse respeito tem um

crivo epistemoloacutegico semelhante ao de Bonsiepe Mas a posiccedilatildeo de Bonsiepe se conecta

com outro aspecto do seu pensamento que exploramos anteriormente (cf capiacutetulo 1 p

42) sendo importante retomar neste momento Naquele ponto ele distingue tambeacutem

categoricamente design de arte Bonsiepe (para justificar sua adesatildeo agrave distinccedilatildeo entre

esses campos) poderia estabelecer como territoacuterios de argumentaccedilatildeo a ciecircncia ou o de-

sign como faz Schneider ou ateacute mesmo a arte caso estivesse em sintonia com uma visatildeo

por exemplo Nietzschiana No entanto como vimos esse autor firma a filosofia como a

disciplina capaz de explicitar essa distinccedilatildeo o que confirma sua atuaccedilatildeo coerente como

epistemoacutelogo e designer e natildeo como cientista

Schneider por seu lado ao entender o design como ciecircncia e a arte como um ldquoocircnusrdquo

para esse campo argumenta ora como um cientista que precisa se assegurar de fundamentos

estabelecidos para o design (recentemente estabelecidos uma vez que para ele este campo

eacute ldquociecircncia jovemrdquo) ora como epistemoacutelogo em busca de fundamentos Assim sua criacutetica

agrave falta de fundamentos do design fragiliza a sua defesa dessa disciplina enquanto ciecircncia

A questatildeo do modo como a encaminha Schneider leva a um ciacuterculo vicioso pois de um

ponto de vista epistemoloacutegico e portanto de fundamentaccedilatildeo de um campo cientiacutefico

para se imputar o tiacutetulo de ciecircncia a uma disciplina eacute necessaacuterio que a mesma jaacute tenha

posse sobre os alicerces especiacuteficos de tal categoria de conhecimento

Quanto a Cardoso pelas nuances de seu pensamento e o entrelaccedilamento de temas

que nos interessam sua posiccedilatildeo precisa ser investigada com mais detalhes Sua pesquisa

chama a nossa atenccedilatildeo natildeo somente por suas reflexotildees de caraacuteter epistemoloacutegico que no

nosso entendimento mesmo implicitamente questionam de modo mais radical a hierar-

quia e a ruptura de inspiraccedilatildeo platocircnica mas tambeacutem porque como veremos avanccedila para

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o territoacuterio da ontologia buscando fundamentos para o design Aliado a esse enfoque

Cardoso se liga ao pensamento de Flusser com acordos e desacordos entre ambos que

fornecem a mateacuteria prima tanto para a subseccedilatildeo atual quanto para a uacuteltima deste capiacutetulo

As ligaccedilotildees entre o pensamento de Rafael Cardoso e o de Vileacutem Flusser natildeo se res-

tringem somente aos temas que esses dois autores abordam Cardoso interessado na obra

flusseriana organizou e escreveu a Introduccedilatildeo do livro ldquoO mundo codificado por uma

filosofia do design e da comunicaccedilatildeordquo de Flusser (2007) cujo subtiacutetulo sinaliza para a

relevacircncia e a singularidade dessa obra em teoria e reflexatildeo filosoacutefica no acircmbito do design

e da comunicaccedilatildeo Em tom de advertecircncia Cardoso afirma

Flusser eacute um pensador de causas e natildeo de comportamentos por conseguinte ele natildeo hesita em ultrapassar as limitaccedilotildees metodoloacutegicas necessaacuterias ao pensa-mento de cunho histoacuterico Para aacutereas marcadas desde sempre pelo predomiacutenio de abordagens e pressupostos advindos das ciecircncias sociais mdash como eacute o caso tanto da comunicaccedilatildeo quanto do design mdash o efeito eacute surpreendente e enriquecedor Passado o susto inicial eacute melhor dizer visto que o autor eacute afeito a generalizaccedilotildees e aproximaccedilotildees capazes de provocar ataques de apoplexia em qualquer cientista social ortodoxo (flusser 2007 p 11)

Se essas caracteriacutesticas dos textos flusserianos que aparecem ateacute certo ponto disfarccedila-

das com as provocaccedilotildees de seu autor perdem na contextualizaccedilatildeo histoacuterica e socioloacutegica

ganham ao aprofundarem-se nas matrizes estruturantes do pensamento ocidental ainda

preservadas na atualidade que eacute o foco de nosso interesse Assim concordando com

Cardoso essa transposiccedilatildeo de limites tem seu valor genuiacuteno enquanto reflexatildeo filosoacutefica

por voltar-se para as causas Para o nosso propoacutesito abordaremos especificamente dois

pequenos escritos de Flusser reunidos como capiacutetulos do livro O mundo codificado mas jaacute

publicados anteriormente como ensaios separados ldquoSobre a palavra designrdquo e ldquoA alavanca

contra-atacardquo Apesar do peculiar tiacutetulo do segundo texto natildeo explicitar o seu propoacutesito

como veremos as duas investigaccedilotildees tratam de temas correlacionados

Sobre a palavra design eacute um escrito de apenas seis paacuteginas mas seminal Como carac-

teriacutestico das produccedilotildees de filoacutelogos e filoacutesofos o texto comeccedila com definiccedilotildees de palavras

e conceitos indo ateacute suas origens para assim construir argumentos

Em inglecircs a palavra design funciona como substantivo e tambeacutem como verbo (circunstacircncia que caracteriza muito bem o espiacuterito da liacutengua inglesa) Como

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substantivo significa entre outras coisas ldquopropoacutesitordquo ldquoplanordquo ldquointenccedilatildeordquo ldquometardquo ldquoesquema malignordquo ldquoconspiraccedilatildeordquo ldquoformardquo ldquoestrutura baacutesicardquo e todos esses e outros significados estatildeo relacionados a ldquoastuacuteciardquo e a ldquofrauderdquo Na situaccedilatildeo de verbo mdash to design mdash significa entre outras coisas ldquotramar algordquo ldquosimularrdquo ldquopro-jetarrsquorsquo ldquoesquematizarrdquo ldquoconfigurarrdquo ldquoproceder de modo estrateacutegicordquo (flusser 2007 p 181)

Flusser apresenta essas acepccedilotildees com a clara intenccedilatildeo de reforccedilar os sentidos do con-

ceito de astuacutecia fraude simulaccedilatildeo e trama que eacute o centro de seu interesse Esse propoacutesito

eacute confirmado quando ele tambeacutem natildeo deixa duacutevidas impondo o mesmo crivo ao definir

a atuaccedilatildeo do designer

A palavra design ocorre em um contexto de astuacutecias e fraudes O designer eacute portanto um conspirador malicioso que se dedica a engendrar armadilhas Outros termos tambeacutem bastante significativos aparecem nesse contexto como por exemplo as palavras ldquomecacircnicardquo e ldquomaacutequinardquo Em grego mechos designa um mecanismo que tem por objeto enganar uma armadilha e o cavalo de Troia eacute um exemplo disso Ulisses eacute chamado polymechanikos o que traduziacuteamos no coleacutegio como ldquoo astuciosordquo (der Listenreiche) (flusser 2007 p 182)

Comparada aos demais autores que investigamos ateacute o momento essa eacute uma anaacutelise

e posiccedilatildeo incomum10 Flusser transita do conceito de design para o de designer e deste

para o de mecacircnica e de maacutequina conectando seus significados com o que ele entende

ser sua essecircncia comum a astuacutecia Indo ateacute a origem dessa palavra ele a associa a Odisseus

(ou Ulisses como ficou conhecido no Ocidente) heroacutei grego e personagem da Odisseia

construiacutedo por Homero para encarnar um caraacuteter uacutenico com o epiacuteteto de o astuto

Neste ponto importa compreender esse elemento fundamental na dinacircmica do texto

flusseriano porque este autor para pensar o conceito de astuacutecia e demais elementos a ele

associados movimenta-se entre um sentido positivo (de sagacidade e habilidade estrateacutegi-

ca) e outro negativo (de fraude e conspiraccedilatildeo) em uma dialeacutetica proacutepria da sua exposiccedilatildeo

Para tanto e seguindo a trilha aberta por Flusser no acircmbito da mitologia grega eacute preciso

10 Entre os anos de 2013 e 2017 lecionamos na Escola de Design da Universidade do Estado de Minas Gerais para estudantes dos cursos de Design e de Artes Visuais em turmas do 1ordm 2ordm 4ordm 5ordm e 7ordm pe-riacuteodos Nas diversas oportunidades em que esse ensaio de Flusser foi investigado e discutido em sala de aula para nossa surpresa (e apesar de natildeo procedermos com nenhuma pesquisa empiacuterica) um nuacutemero expressivo de estudantes concordou com Flusser acerca da associaccedilatildeo do conceito de astuacutecia ao design e aos designers

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nos determos mesmo que de forma natildeo aprofundada sobre narrativas de origem e de

conquista do conhecimento em nossa cultura Faremos isso tanto em sua vertente grega

quanto na do texto biacuteblico da tradiccedilatildeo judaico-cristatilde uma vez que no nosso entendimen-

to as diferenciaccedilotildees desses escritos trazem elementos correlatos aos que Flusser explora

no tratamento de seu tema Investigaremos especificamente os atributos que tornaram

o ser humano distinto dos outros seres e o destacaram da natureza O tema cresce em

complexidade e importacircncia na medida em que as duas narrativas a serem investigadas

contecircm elementos em oposiccedilatildeo como nas contraposiccedilotildees do ensaio de Flusser

Entre as diversas cosmogonias que de algum modo influenciaram e continuam a

ter relevacircncia nas concepccedilotildees de realidade no Ocidente a de origem grega eacute uma das

que se destaca por sua capacidade de conectar os discursos primordiais miacuteticos com o

subsequente pensamento racional da filosofia Como apresentamos (cf p 56-58) a con-

cepccedilatildeo da poacuteiesis se insere nessa categoria em que um deus ou demiurgo produz o cosmos

a partir do caos uma massa preexistente e informe De modo distinto dessa construccedilatildeo

encontra-se a narrativa biacuteblica em que Deus produz ou mais exatamente cria o mundo

a partir do nada (ex nihilo) Tal diferenciaccedilatildeo entre concepccedilotildees eacute essencial pois se traduz

em duas espeacutecies de caminhos para o ato criativo Grosso modo na concepccedilatildeo grega exis-

tem modelos a se descobrir para efetivar a produccedilatildeo que carreia a racionalizaccedilatildeo para o

interior do processo criativo Na judaico-cristatilde se natildeo eacute possiacutevel explicar racionalmente

tal processo elementos como a imaginaccedilatildeo a originalidade e a subjetividade conduzem

agrave ideia de inspiraccedilatildeo divina e de gecircnio criativo como o liame entre os correlatos criador

e criatura e artista e criaccedilatildeo Ao longo da histoacuteria da cultura ocidental essas duas visotildees

se alternaram e disputam ainda hoje a primazia da explicaccedilatildeo dos processos criativos11

Seguindo adiante nas duas cosmogecircneses de um lado temos o mito de Prometeu cujo

personagem principal um semideus astuto e capaz de antever o futuro daacute tiacutetulo agrave narrati-

va Prometeu com o objetivo de salvar a raccedila humana da extinccedilatildeo furta o conhecimento

11 Para uma anaacutelise comparativa dessas duas concepccedilotildees com suas caracteriacutesticas e seus pontos fortes e fracos ver o artigo A Teoria de Soluccedilatildeo de Problemas Inventivos (TRIZ) como complementar aos pro-cessos intuitivos de criatividade no design (silva S domingues F dias M R A C 2017) Nessa investigaccedilatildeo defendemos a ideia de que se natildeo for possiacutevel unificar as duas visotildees (a intuitiva e a racional) em um mesmo procedimento pelo menos eacute aceitaacutevel trabalhar com ambas como instru-mentos complementares e natildeo excludentes de suporte agrave criaccedilatildeo potencializando-os mutuamente

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teacutecnico da deusa Athenaacute e o fogo e a arte de plasmar metais do deus Hefestos Com isso

ele garante aos homens condiccedilotildees de sobreviver diante dos elementos da natureza em

peacute de igualdade com os outros seres vivos O ser humano que natildeo tinha acesso a esses

conhecimentos tendo-os recebido como presentes garante sua sobrevivecircncia Mas uma

vez de posse desse saber a humanidade natildeo cessa de ampliaacute-lo elevando-se em relaccedilatildeo aos

demais seres buscando controlar a natureza em benefiacutecio proacuteprio e consequentemente

aproximando seus atributos aos da divindade

No livro biacuteblico do Gecircnesis haacute uma narrativa correlata que fala de uma aacutervore do

conhecimento do bem e do mal e seu fruto acessiacutevel apesar de ser expressamente proi-

bido para a mulher e o homem sob pena de morrerem A Serpente o mais astuto dos

animais atua de modo a enganar a mulher e convencecirc-la a comer e a dar de comer ao

homem Adatildeo e Eva antes de comerem do fruto vivendo no Eacuteden natildeo correm o risco

de perecerem Mas o castigo dado a eles pela transgressatildeo se estende tambeacutem agrave toda a sua

descendecircncia com a perda do paraiacuteso e da vida eterna e a aquisiccedilatildeo de uma capacidade

de conhecer que natildeo eacute apenas do bem mas tambeacutem do mal

Nosso propoacutesito em relaccedilatildeo agraves duas narrativas apesar das inuacutemeras semelhanccedilas

entre elas eacute ressaltar as diferenccedilas12 para confrontaacute-las com o pensamento de Flusser em

uma busca por compreensatildeo de suas ideias sobre o design a arte a ciecircncia e a teacutecnica No

Prometeu a humanidade natildeo vivia em um paraiacuteso mas correndo o risco de extinccedilatildeo por

natildeo ter as proteccedilotildees e capacidades naturais dos demais seres vivos Aleacutem disso a puniccedilatildeo

que os humanos sofreram apoacutes o furto de Prometeu de serem obrigados a trabalhar para

sobreviver eacute apenas uma parte do que padece o homem biacuteblico com a expulsatildeo do pa-

raiacuteso O titatilde Prometeu apesar de ser condenado a ficar preso a uma rocha e ter o fiacutegado

dilacerado todos os dias por uma ave de rapina permanece na sua condiccedilatildeo de imortal

12 Na histoacuteria de Prometeu existiam variantes orais que foram cristalizadas em inuacutemeras versotildees de poetas e tragedioacutegrafos ao contraacuterio do texto unificado da Biacuteblia Assim destacam-se entre outros autores Hesiacuteodo Eacutesquilo e ateacute Platatildeo que narram com diferenccedilas a histoacuteria de Prometeu Conforme afirma o classicista Junito de Souza Brandatildeo ldquoO mito como jaacute se assinalou vive em variantes ora a obra de arte de conteuacutedo mitoloacutegico somente pode apresentar e eacute natural uma de suas variantes Acontece que dado o imenso prestiacutegio da poesia na Greacutecia a variante apresentada por um grande poeta impunha-se agrave consciecircncia puacuteblica tornando-se um mito canocircnico com esquecimento das demais variantes talvez artisticamente menos eficazes mas nem por isso menos importantes do ponto de vista religiosordquo (brandatildeo 1986 p 27)

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Assim comparando a Serpente a Prometeu ambos satildeo astutos e catalizadores do

processo da aquisiccedilatildeo do conhecimento e nos dois casos fazem uso de um ardil No en-

tanto Prometeu eacute retratado como heroacutei enaltecido como benfeitor da raccedila humana e

natildeo perde seu status de semideus ao passo que a Serpente eacute descrita como o ser maldito

que engana e desencadeia os males sobre a humanidade sendo punida com uma vida

rastejante alimentando-se de poacute Aleacutem disso o conhecimento adquirido pelos protegi-

dos de Prometeu eacute algo valioso que encerra uma visatildeo virtuosa e nobre na faculdade de

conhecer enquanto que o conhecimento advindo do fruto biacuteblico estaacute cindido em um

maniqueiacutesmo que o torna um risco constante para a humanidade

Deste modo um espiacuterito positivo e em certo sentido ateacute otimista em relaccedilatildeo ao

conhecimento e ao ato de conhecer perpassa e reaparece em outras histoacuterias formadoras

e estruturantes da cultura grega como a Iliacuteada e a Odisseia de Homero de que Flusser se

apropria a propoacutesito de elaborar seu raciociacutenio Como eacute sabido o personagem Ulisses no

livro da Iliacuteada usando de seu atributo principal a astuacutecia esconde-se com seus guerreiros

em um grande cavalo de madeira que eacute a chave para a vitoacuteria contra a cidade de Iacutelion

(Troia) No livro seguinte Odisseia esse heroacutei consegue enfrentar com engenhosidade

toda a sorte de dificuldades e aventuras e retornar a salvo agrave sua terra e lar

A disposiccedilatildeo grega de entender a astuacutecia em sua acepccedilatildeo de valor a se preservar res-

surge em outras narrativas como por exemplo na lenda do Noacute Goacuterdio Essa histoacuteria narra

a soluccedilatildeo inusitada que Alexandre o Grande teria dado para desfazer um noacute em cordas

aparentemente impossiacutevel de ser desatado Apoacutes um tempo estudando a amarraccedilatildeo Ale-

xandre desembainha sua espada e corta o noacute Essa atitude entendida pela tradiccedilatildeo grega

positivamente como sagacidade engenhosidade e arguacutecia tambeacutem pode ser interpretada

negativamente como fraude ardil ou trapaccedila Como Flusser transita entre duas acepccedilotildees

e medidas valorativas consideramos essa dupla visatildeo (grega e judaico-cristatilde) uma chave

de leitura para compreender a proposta desse autor para o design

Apoacutes definir design e designer Flusser com o mesmo meacutetodo etimoloacutegico procura

caracterizar tanto a teacutecnica quanto a arte indo ateacute as suas raiacutezes gregas que satildeo comuns

Sigamos seus passos

92

Outra palavra usada nesse mesmo contexto eacute ldquoteacutecnicardquo Em grego techneacute significa ldquoarterdquo e estaacute relacionada com tekton (ldquocarpinteirordquo) A ideia fundamental eacute a de que a madeira (em grego hyleacute) eacute um material amorfo que recebe do artista o teacutecnico uma forma ou melhor em que o artista provoca o aparecimento da forma (flusser 2007 p 182)

Essa descriccedilatildeo estaacute claramente vinculada ao conceito de produccedilatildeo demiuacutergica em que

preexiste um ldquomaterial amorfordquo (equivalente ao caos) que deve ser trabalhado e enforma-

do pelo artista Em seguida ele avanccedila para a liacutengua latina com o mesmo procedimento

etimoloacutegico e vieacutes em torno da fraude enquanto um artifiacutecio

O equivalente latino do termo grego techneacute eacute ars que significa na verdade ldquomanobrardquo (Dreh) O diminutivo de ars eacute articulum mdash pequena arte mdash e indica algo que gira ao redor de algo (como por exemplo a articulaccedilatildeo da matildeo) Ars quer dizer portanto algo como ldquoarticulabilidaderdquo ou ldquoagilidaderdquo e artifex (ldquoartistardquo) quer dizer ldquoimpostorrdquo O verdadeiro artista eacute um prestidigitador o que se pode perceber por meio das palavras ldquoartifiacuteciordquo ldquoartificialrdquo e ateacute mesmo

ldquoartilhariardquo (flusser 2007 p 183)

Aqui Flusser vai aleacutem das definiccedilotildees claacutessicas gregas de artista e se alinha especifica-

mente com o conceito platocircnico de artista pois poderiacuteamos afirmar que um impostor ou

prestidigitador eacute na essecircncia um imitador Eacute importante destacar que esses termos se ligam

na origem com outros com os quais atualmente natildeo fazemos normalmente conexatildeo Por

exemplo o mesmo sentido de impostor se encontra tambeacutem em um dos significados de

hipoacutecrita que em sua origem grega tem como uma das suas acepccedilotildees principais a de ator

Tendo essas associaccedilotildees estabelecidas Flusser pode entatildeo retomar a questatildeo do design

na atualidade indicando o problema (que segundo ele se instaura no periacuteodo moderno)

e defender sua tese acerca do papel do design neste contexto

Essas consideraccedilotildees explicam de certo modo por que a palavra design pocircde ocupar o espaccedilo que lhe eacute conferido no discurso contemporacircneo As palavras design maacutequina teacutecnica ars e Kunst[13] estatildeo fortemente inter-relacionadas cada um dos conceitos eacute impensaacutevel sem os demais e todos eles derivam de uma mesma perspectiva existencial diante do mundo No entanto essa co-nexatildeo interna foi negada durante seacuteculos (pelo menos desde a Renascenccedila)

13 Nesse ensaio Flusser tcheco nascido em Praga tambeacutem apresenta o correlato de cada palavra defi-nida em alematildeo Na medida em que natildeo incluiacutemos essa liacutengua ao escopo de nossa anaacutelise natildeo nos estendemos sobre essas comparaccedilotildees

93

A cultura moderna burguesa fez uma separaccedilatildeo brusca entre o mundo das artes e o mundo da teacutecnica e das maacutequinas de modo que a cultura se dividiu em dois ramos estranhos entre si por um lado o ramo cientiacutefico quantificaacutevel ldquodurordquo e por outro o ramo esteacutetico qualificador ldquobrandordquo Essa separaccedilatildeo desastrosa comeccedilou a se tornar insustentaacutevel no final do seacuteculo xix (flusser 2007 p 183)

A citaccedilatildeo anterior merece especial atenccedilatildeo Flusser defende uma ldquointer-relaccedilatildeordquo entre

os conceitos de design e maacutequina teacutecnica e arte com a qual concordamos pelo menos

em parte Nossa posiccedilatildeo difere desse autor quanto ao momento em que ocorreu a cisatildeo

entre esses conceitos Para Flusser tal separaccedilatildeo entre ciecircncia teacutecnica e arte ocorre ldquopelo

menosrdquo a partir da Renascenccedila enquanto para noacutes como afirmamos anteriormente ela

se inicia com Platatildeo com uma teoria acerca da realidade que cinde o conhecimento em

aacutereas Mas o mais importante para noacutes tal teoria tambeacutem hierarquiza o conhecimento

Independentemente dessas diferenccedilas a proposta de Flusser para atenuar essa ldquoseparaccedilatildeo

desastrosardquo ou ldquobrechardquo entendida com ldquoinsustentaacutevelrdquo eacute relevante

A palavra design entrou nessa brecha como uma espeacutecie de ponte entre esses dois mundos E isso foi possiacutevel porque essa palavra exprime a conexatildeo interna entre teacutecnica e arte E por isso design significa aproximadamente aquele lugar em que arte e teacutecnica (e consequentemente pensamentos valorativo e cientiacutefico) caminham juntas com pesos equivalentes tornando possiacutevel uma nova forma de cultura (flusser 2007 p 183)

Devemos nos manter atentos ao alerta anterior de Cardoso sobre a forma de Flusser

conduzir seus raciociacutenios e expressar suas ideias Por exemplo nas duas uacuteltimas citaccedilotildees

ele natildeo se preocupa em explicitar a diferenccedila entre ciecircncia e teacutecnica permutando o uso

desses conceitos Como vimos essa tambeacutem eacute uma postura adotada por Platatildeo em alguns

de seus diaacutelogos em relaccedilatildeo agrave teacutekhne e agrave espisteacuteme

Ao mesmo tempo Flusser natildeo assume com todas as letras a existecircncia na atualidade

de uma hierarquizaccedilatildeo do conhecimento Mas tal consciecircncia se manifesta em poucas

palavras quando ele qualifica o design para estabelecer a arte e a teacutecnica ldquocom pesos

equivalentesrdquo Essa visatildeo peculiar difere do pensamento de Cardoso que natildeo considera

necessaacuteria a accedilatildeo do design para instituir a equidade entre a arte e outros campos ldquoArte

eacute um meio de acesso ao desconhecido em peacute de igualdade com a ciecircncia a filosofia a

religiatildeo[]rdquo(cardoso 2016 p 246)

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Quando Flusser emprega o termo ldquoconexatildeo internardquo pode parecer que ele compreende

design e arte como indistintos No entanto as palavras ldquocaminham juntasrdquo indicam que

seguem uma mesma direccedilatildeo mas natildeo de indistinccedilatildeo entre aacutereas Isso se torna mais claro

com o seu conceito de ldquoponterdquo pois a indistinccedilatildeo natildeo carece desse artifiacutecio de ligaccedilatildeo Assim

paradoxalmente o ponto de vista de Flusser um filoacutesofo que procura ligar design e arte

natildeo necessariamente se opotildee agrave posiccedilatildeo de Bonsiepe um designer que pensa a filosofia

para distinguir design e arte Aleacutem disso podemos afirmar que ambos concordam com

outra conexatildeo aquela entre design e ciecircnciateacutecnica Lembremos o que Bonsiepe diz a

esse respeito ldquoEstou convencido de que no futuro haveraacute uma interaccedilatildeo frutiacutefera entre

mundo das ciecircncias e o mundo do projeto que hoje se daacute no maacuteximo esporadicamenterdquo

(bonsiepe 2011 p 17)

Ateacute aqui mesmo com o modo natildeo usual de conduzir sua reflexatildeo Flusser chega a

algumas conclusotildees semelhantes agraves de autores do design como Cardoso e Bonsiepe Mas

a questatildeo da astuacutecia ainda precisa ser esclarecida Flusser sabe disso e propotildee assumirmos

esse caraacuteter que segundo ele eacute inerente agrave nossa cultura

A cultura para a qual o design poderaacute melhor preparar o caminho seraacute aquela consciente de sua astuacutecia A pergunta eacute a quem e ao que enganamos quando nos inscrevemos na cultura (na teacutecnica e na arte em suma no design) Vamos a um exemplo a alavanca eacute uma maacutequina simples Seu design imita o braccedilo humano trata-se de um braccedilo artificial Sua teacutecnica provavelmente eacute tatildeo antiga quanto a espeacutecie Homo sapiens talvez ateacute mais E o objetivo dessa maacutequina desse design dessa arte dessa teacutecnica eacute enganar a gravidade trapacear as leis da natureza e ardilosamente liberar-nos de nossas condiccedilotildees naturais por meio da exploraccedilatildeo estrateacutegica de uma lei natural Por intermeacutedio de uma alavanca mdash e apesar de nosso proacuteprio peso mdash podemos nos lanccedilar ateacute as estrelas se for o caso e se nos derem um ponto de apoio somos capazes de tirar o mundo de sua oacuterbita Esse eacute o design que estaacute na base de toda cultura enganar a natureza por meio da teacutecnica substituir o natural pelo artificial e construir maacutequinas de onde surja um deus que somos noacutes mesmos Em suma o design que estaacute por traacutes de toda cultura consiste em com astuacutecia nos transformar de simples mamiacuteferos condicionados pela natureza em artistas livres (flusser 2007 p 184)

O exemplo da alavanca que seraacute retomado no segundo ensaio de Flusser jaacute aparece

aqui de modo a explorar o aspecto positivo e diriacuteamos culturalmente grego da astuacutecia

ou seja nos libertar como artistas para alcanccedilarmos as estrelas e ateacute nos tornarmos deuses

95

Mas a dialeacutetica de Flusser natildeo para neste ponto Ele entende que ldquoum ser humano eacute um

design contra a naturezardquo e que ldquose o design continuar se tornando cada vez mais o foco

de interesse e as questotildees referentes a ele passarem a ocupar o lugar das preocupaccedilotildees

concernentes agrave ideia certamente natildeo pisaremos em chatildeo firmerdquo (flusser 2007 p 185) E

em um movimento de oposiccedilatildeo Flusser aponta o que pagamos por assumirmos a astuacutecia

como inerente agrave nossa cultura

Como explicar essa desvalorizaccedilatildeo de todos os valores Pelo fato de que graccedilas agrave palavra design comeccedilamos a nos tornar conscientes de que toda cultura eacute uma trapaccedila de que somos trapaceiros trapaceados e de que todo envolvimento com a cultura eacute uma espeacutecie de autoengano [] Mas o preccedilo que pagamos por isso eacute a renuacutencia agrave verdade e agrave autenticidade O que a alavanca faz de fato eacute tirar de oacuterbita tudo o que eacute verdadeiro e autecircntico e substituiacute-lo mecanicamente por artefatos desenhados com perfeiccedilatildeo Desse modo todos os artefatos adquirem o mesmo valor que as canetas de plaacutestico convertem-se em gadgets descartaacuteveis E isso se evidencia no mais tardar quando morremos Pois apesar de todas as estrateacutegias teacutecnicas e artiacutesticas (apesar da arquitetura do hospital e do design do leito de morte) o fato eacute que morremos como todos os mamiacuteferos A palavra design adquiriu a posiccedilatildeo central que tem hoje no discurso cotidiano porque estamos comeccedilando (e provavelmente com razatildeo) a perder a feacute na arte e na teacutecnica como fontes de valores Porque estamos comeccedilando a entrever o design que haacute por traacutes delas (flusser 2007 p 185-186)

Nesse ponto claramente o tom e a argumentaccedilatildeo flusseriana procuram identificar

os aspectos negativos de assumirmos o que ele entende como um modo de vida artificial

sem verdade e autenticidade Flusser acredita que junto com a identificaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo

da astuacutecia e a busca pela perfeiccedilatildeo renunciamos a diversos valores na arte e na teacutecnica

Poreacutem natildeo concordamos com Flusser que a perda ou rejeiccedilatildeo desses valores possa ser

creditada agrave astuacutecia inerente ao homem e aos princiacutepios que constituem a essecircncia do

design A ambivalecircncia que este autor explora nesse conceito (que associamos agrave cultura

ocidental ora em direccedilatildeo a uma compreensatildeo da vida como um ldquopresenterdquo de Prometeu

ora como a perda da imortalidade e da existecircncia apraziacutevel pela cilada da Serpente biacuteblica)

natildeo indica a real causa das possibilidades que o design enquanto ponte pode nos oferecer

No nosso entendimento o perigo no uso que fazemos da astuacutecia natildeo diz respeito

propriamente a posse que temos dela mas agrave nossa capacidade de discernir valores e agraves

direccedilotildees que nossas escolhas conscientes podem nos levar Flusser no fundo parece

96

ciente disso quando afirma ao final do seu texto que ldquoEste ensaio segue um design

determinado ele quer trazer agrave luz os aspectos peacuterfidos e ardilosos da palavra design que

normalmente costumam ser ocultadosrdquo (flusser 2007 p 186) E aponta que outros

caminhospoderiamserseguidosmasconcluildquo[]eacuteexatamenteassimtudodepende

do designrdquo (flusser 2007 p 186) Natildeo consideramos essa afirmaccedilatildeo como retoacuterica O

conceito de ponte que Flusser propotildee eacute potente o suficiente para fazer pensar sobre as

possibilidades que o design tem enquanto um camp0 com fronteiras moacuteveis A ampliaccedilatildeo

expressiva dessas fronteiras estaacute representada no graacutefico da figura 9 onde linhas partem

do design em direccedilatildeo agrave arte teacutecnica tecnologia e ciecircncia O proacuteximo passo eacute de modo

anaacutelogo percorrer o segundo ensaio deste autor ldquoA alavanca contra-atacardquo atentando

para uma conexatildeo inesperada entre o design e a natureza

Existe um liame visiacutevel entre o primeiro e segundo ensaio Da mesma forma que Flusser

coloca a astuacutecia no centro da discussatildeo no primeiro ele o faz conduzindo esse caraacuteter de

artifiacutecio para o conceito de alavanca no segundo Nessa reflexatildeo de quatro paacuteginas no-

vamente ele inicia com uma definiccedilatildeo ldquoAs maacutequinas satildeo simulaccedilotildees dos oacutergatildeos do corpo

humanordquo (flusser 2007 p 46) Em seguida ele retoma os primoacuterdios da vida humana

imaginando na preacute-histoacuteria alguns instrumentos que contribuiacuteram para o desenvolvimento

de nossa espeacutecie Tanto a alavanca quanto a faca de pedra satildeo enquadradas na categoria

de ldquomaacutequinas inorgacircnicasrdquo enquanto o burro o chacal (que podemos interpretar como

DESIGN

asymp aC dC 7 dC 85 dC dCGreacutecia Ocidente

EPISTEacuteME

TEacuteKHNE TEacuteCNICA

ARTE

TECNOLOGIA

POacuteIESIS CIEcircNCIA

Figura 9 Linha do tempo acrescentando o design com as influecircncias que esse campo acolheu e as conexotildees que Flusser propotildee como desdobramento de suas atividades fonte autor

97

o catildeo) e o escravo pertencem agrave classe das ldquomaacutequinas orgacircnicasrdquo Ao criteacuterio de distinccedilatildeo

entre maacutequinas vivas e inanimadas seguem-se as vantagens e desvantagens de cada um

desses gecircneros As inorgacircnicas satildeo mais fortes resistentes e consequentemente duram mais

No entanto satildeo ldquoestuacutepidasrdquo Jaacute as orgacircnicas duram menos mas por sua complexidade satildeo

consideradas ldquointeligentesrdquo14 (flusser 2007 p 46-47) Em seguida em um salto (na

expressatildeo de Cassirer para outro ldquoponto focalrdquo da histoacuteria) este autor aborda a eacutepoca da

Revoluccedilatildeo Industrial onde uma inflexatildeo e mudanccedila sensiacutevel ocorrem

A maacutequina industrial se distingue da preacute-industrial pelo fato de que aquela tem como base uma teoria cientiacutefica Certamente a alavanca preacute-industrial tambeacutem tem a lei da alavanca em seu bojo mas somente a industrial sabe que a tem Habitualmente isso se expressa assim as maacutequinas preacute-industriais fo-ram fabricadas empiricamente ao passo que as industriais o satildeo tecnicamente (flusser 2007 p 47)

Aqui a semelhanccedila da posiccedilatildeo de Flusser com a que apresentamos de Koyreacute eacute evidente

Para Koyreacute (1991) as teorias cientiacuteficas satildeo o fundamento da diferenciaccedilatildeo que conduz

da teacutecnica agrave tecnologia ao passo que para Flusser essas mesmas teorias distinguem maacute-

quinas preacute-industriais e industriais Ateacute o periacuteodo histoacuterico em que esse processo ocorre

eacute o mesmo para ambos os autores Flusser natildeo faz uso dos mesmos termos de Koyreacute mas

eacute clara sua aderecircncia a essa compreensatildeo que se mostraraacute uma das bases para ele pensar

o design Natildeo sem razatildeo na figura 9 preservamos o elemento da tecnologia e sua linha

de derivaccedilatildeo que vai da ciecircncia ateacute o design

As teorias a respeito do ldquomundo inorgacircnicordquo que possibilitaram as maacutequinas da Re-

voluccedilatildeo Industrial trazem vantagens em relaccedilatildeo agraves duas classes de maacutequinas anteriores

Mas e quanto ao homem e sua relaccedilatildeo com esses instrumentos Flusser prossegue em seu

raciociacutenio mostrando a inversatildeo que ocorre

Daiacute que a partir da Revoluccedilatildeo Industrial o boi deu lugar agrave locomotiva e o cavalo ao aviatildeo O boi e o cavalo eram impossiacuteveis de ser feitos tecnicamente Com relaccedilatildeo aos escravos a coisa era ainda mais complicada As maacutequinas teacutecnicas natildeo apenas iam se tornando cada vez mais eficazes como tambeacutem maiores e

14 O proacuteprio Flusser insere aspas ao se referir agrave caracteriacutestica ldquoestuacutepidardquo ou ldquointeligenterdquo destacando o sentido figurativo desses termos nessa situaccedilatildeo

98

mais caras Desse modo a relaccedilatildeo ldquohomem-maacutequinardquo inverteu-se de tal modo que as maacutequinas natildeo serviam aos homens mas estes serviam a elas Haviam-se convertido em escravos relativamente inteligentes de maacutequinas relativamente estuacutepidas (flusser 2007 p 47)

Simultaneamente ele se pergunta acerca de uma nova fronteira que precisava ser

ultrapassadapelaciecircncialdquo[]emrelaccedilatildeoaomundoorgacircnicoasteoriaserambastante

escassas Que leis tem o burro no seu ventre Natildeo soacute o proacuteprio burro as desconhecia

como tambeacutem os cientistas pouco sabiam sobre elasrdquo (flusser 2007 p 47) Esse passo

eacute importante porque marca um giro em direccedilatildeo agrave natureza aacutepice do ensaio Assim ele vai

da revoluccedilatildeo dos seacuteculos xviii e xix de caraacuteter predominantemente inorgacircnico para

a do xx que volta parte das suas atenccedilotildees para o mundo orgacircnico Nas suas palavras

Mas essa natildeo eacute a mudanccedila realmente importante Muito mais significativo eacute o fato de que estamos comeccedilando a dispor tambeacutem de teorias que se aplicam ao mundo orgacircnico Comeccedilamos a saber que leis o burro traz no ventre Em consequecircncia em breve poderemos fabricar tecnologicamente bois cavalos escravos e superescravos Isso seraacute chamado provavelmente a segunda Revo-luccedilatildeo Industrial ou a Revoluccedilatildeo Industrial ldquobioloacutegicardquo (flusser 2007 p 48)

Flusser chama a nossa atenccedilatildeo para um ramo da ciecircncia que avanccedila em uma aacuterea natildeo

pensada pela tradiccedilatildeo Lembremos que a poacuteiesis em sua vertente de phyacutesis eacute uma atividade

exclusiva da natureza com os seus atributos de autonomia e autoproduccedilatildeo Tendo em

conta a extraordinaacuteria ampliaccedilatildeo do conhecimento que vem ocorrendo desde meados

do seacuteculo xx (a partir da elaboraccedilatildeo de teorias como a do dna) tornou-se inevitaacutevel a

ligaccedilatildeo e o gradativo controle da ciecircncia (episteacuteme) sobre a produccedilatildeo natural (phyacutesis) em

um niacutevel de compreensatildeo natildeo imaginado pelos gregos e a tradiccedilatildeo que se seguiu ateacute aquele

momento Assim apoacutes mostrar que estamos unindo as vantagens do mundo inorgacircnico

com as do orgacircnico Flusser afirma o resultado dessa hibridizaccedilatildeo Metaforizada pelo

autor nas figuras dos ldquochacais de pedrardquo tal ingerecircncia da produccedilatildeo teoacuterica na produccedilatildeo

natural pode tornar as maacutequinas resultantes mais espertas e levaacute-las a nos contra-atacar

como uma alavanca que devolve o golpe causando dor (flusser 2007 p 48-49)

A velha alavanca nos devolveu o golpe movemos os braccedilos como se fossem ala-vancas e isso desde que passamos a dispor delas Imitamos os nossos imitadores Desde que criamos ovelhas nos comportamos como rebanhos e necessitamos de

99

pastores Atualmente esse contra-ataque das maacutequinas estaacute se tornando mais evidente os jovens danccedilam como robocircs os poliacuteticos tomam decisotildees de acordo com cenaacuterios computadorizados os cientistas pensam digitalmente e os artistas desenham com maacutequinas de plotagem Por conseguinte toda futura fabricaccedilatildeo de maacutequinas tambeacutem deveraacute levar em conta o contragolpe da alavanca Jaacute natildeo eacute possiacutevel construir maacutequinas considerando apenas a economia e a ecologia Eacute preciso pensar tambeacutem como essas maacutequinas nos devolveratildeo seus golpes Uma tarefa difiacutecil se levarmos em consideraccedilatildeo que na atualidade a maioria das maacutequinas eacute construiacuteda por ldquomaacutequinas inteligentesrdquo e noacutes apenas observamos o processo para intervir ocasionalmente (flusser 2007 p 49)

Essa visatildeo impressiona em seu aspecto preditivo uma vez que este ensaio de Flusser

foi escrito ainda no seacuteculo xx15 No entanto sua proposta mais radical com a qual ele

encerra o ensaio natildeo diz respeito a essas antecipaccedilotildees e exerciacutecios de futurologia mas

tem a ver com sua decisatildeo de colocar o design no centro da ldquoRevoluccedilatildeo Industrial lsquobioloacute-

gicarsquordquo e se perguntar sobre a capacidade do designer de elaborar soluccedilotildees para os efeitos

do contragolpe da alavanca

Esse eacute um problema de design como devem ser as maacutequinas para que seu con-tragolpe natildeo nos cause dor Ou melhor como devem ser essas maacutequinas para que o contragolpe nos faccedila bem Como deveratildeo ser os chacais de pedra para que natildeo nos esfarrapem e para que noacutes mesmos natildeo nos comportemos como chacais Naturalmente podemos projetaacute-los de modo a que nos lambam em vez de morder-nos Mas queremos realmente ser lambidos Satildeo questotildees difiacuteceis porque ningueacutem sabe de fato como quer ser No entanto devemos debater essas questotildees antes de comeccedilarmos a projetar chacais de pedra (ou talvez clones de invertebrados ou quimeras de bacteacuterias) E essas questotildees satildeo ainda mais inte-ressantes do que qualquer chacal de pedra ou qualquer futuro super-humano Seraacute que o designer estaraacute preparado para colocaacute-las (flusser 2007 p 49-50)

15 Natildeo encontramos referecircncia agrave data da publicaccedilatildeo original deste ensaio mas Flusser morre em 1991 o que distancia suas reflexotildees dos raacutepidos avanccedilos cientiacuteficos e tecnoloacutegicos do seacuteculo atual e reforccedila o tom profeacutetico de sua narrativa Sua preocupaccedilatildeo eacute compartilhada por outros teoacutericos e escritores desse periacuteodo O teor de suas palavras lembra tambeacutem a efervescecircncia dos temas de ficccedilatildeo cientiacutefica de claacutessicos da literatura como os livros Admiraacutevel mundo novo (1932) de Aldous Huxley Eu robocirc (1950) de Isaac Asimov Androides sonham com ovelhas eleacutetricas (1968) de Philip K Dick levado ao cinema por Ridley Scott em Blade Runner o caccedilador de androides (1982) e o conto Sentinela (1951) de Arthur C Clarke que foi a base para o filme 2001 uma odisseia no espaccedilo (1968) de Stanley Kubrick Os escritos de Flusser parecem estar em constante diaacutelogo com esses autores e obras

100

Eacute notaacutevel que Flusser um filoacutesofo transfira pelo menos em parte a responsabilidade

de reflexatildeo sobre os fins do homem e da natureza da esfera da filosofia e da ciecircncia para

o acircmbito do design incluindo o designer no ldquodebaterdquo dessas questotildees que devem se-

gundo ele e com razatildeo preceder aos projetos A figura 10 apresenta duas novas conexotildees

uma entre ciecircncia e natureza e outra surpreendentemente representando a concepccedilatildeo

de Flusser entre design e natureza

Talvez o deslocamento ou rearranjo de compromissos esteja associado ao conceito

de projeto com o qual Flusser abarca tambeacutem o mundo bioloacutegico em suas ldquoquimeras de

bacteacuteriasrdquo Neste sentido podemos afirmar que novamente Bonsiepe tem uma compreen-

satildeo alinhada com a proposta flusseriana

Natildeo se pode mais restringir o conceito de projeto agraves disciplinas projetuais como ocorre na arquitetura no design industrial e no design de comunicaccedilatildeo visual pois nas disciplinas cientiacuteficas tambeacutem haacute projeto Quando um grupo de enge-nheiros agrocircnomos desenvolveu uma nova merenda com base na semente de algaroba acrescida de sais minerais e vitaminas baacutesicas para escolares realizou um claro exemplo de projeto

Portanto jaacute registramos uma zona de contato entre ciecircncias e projeto embora ainda natildeo tenhamos ateacute o momento uma teoria projetual que abarque todas as manifestaccedilotildees projetuais como na engenharia geneacutetica que sem duacutevida alguma deve ser considerada uma disciplina projetual cientiacutefica (bonsiepe 2011 p 19)

DESIGN

asymp aC dC 7 dC 85 dC dCGreacutecia Ocidente

EPISTEacuteME

TEacuteKHNE

PHYacuteSIS NATUREZA

CIEcircNCIA

TEacuteCNICA

ARTE

TECNOLOGIA

POacuteIESIS

Figura 10 Linha do tempo incluindo aleacutem da ligaccedilatildeo entre ciecircncia e natureza a proposta de Flusser para a ligaccedilatildeo entre design e natureza fonte autor

101

Na citaccedilatildeo anterior nossa atenccedilatildeo se concentra na semelhanccedila entre a ideia de ldquozona

de contatordquo em Bonsiepe e a de ldquoponterdquo em Flusser As possibilidades que esses dois con-

ceitos liberam para o design e outros campos atuarem como conectores entre aacutereas do

conhecimento satildeo substanciais e promissoras Bonsiepe expotildee sua ideia sobre uma ldquoteoria

projetualrdquo como um viacutenculo entre diversas aacutereas Atuando como epistemoacutelogo propotildee

de modo perspicaz uma disciplina que do modo como entendemos exerceria (enquanto

um substrato metafiacutesico) suporte agrave etapa de projeto do qual os campos implicados em

praacuteticas projetivas poderiam usufruir De modo similar agrave visatildeo de Bonsiepe a ideia de

Flusser no entanto nos atrai mais pelos diversos desdobramentos que pudemos identificar

e que tem proximidade com nossa abordagem

1 Apesar da semelhanccedila conceitual diferentemente da zona de contato na ideia de

ponte o design eacute a proacutepria ponte

2 A ponte liga ciecircncia de um lado e arte do outro o que eacute um modo de nos esquivarmos

da cisatildeo entre aacutereas do saber

3 A ponte tambeacutem permite reconsiderar se o problema da hierarquizaccedilatildeo do conheci-

mento advinda da cisatildeo em aacutereas pode ser eventualmente mitigado ou ateacute eliminado

4 A possibilidade de quebra ou supressatildeo parcial da hierarquia aponta um caminho

para avanccedilarmos na reflexatildeo sobre o estatuto ontoloacutegico do design e da arte

Para os nossos propoacutesitos o quarto desdobramento eacute o mais relevante Para ser ex-

plicitado eacute necessaacuterio avanccedilarmos um pouco mais contrapondo ao conceito de ldquoponterdquo

de Flusser (2007) o de ldquorelogiosidade do reloacutegiordquo de Cardoso (1998)

233 Essecircncia ontoloacutegica e epistemoloacutegica

Rafael Cardoso no artigo ldquoDesign cultura material e o fetichismo dos objetosrdquo (1998)

apesar de considerado por ele mesmo mais um ensaio ou ldquoum exerciacutecio de especulaccedilatildeordquo

aprofunda-se ao longo de 29 paacuteginas em um amplo espectro de questotildees No entanto

nosso interesse se restringe aos dois niacuteveis de significados propostos para o que este autor

102

nomeia como ldquoartefatosrdquo16 No primeiro niacutevel encontram-se os significados essenciais em

seus aspectos ontoloacutegicos e epistemoloacutegicos No segundo incorporam-se os significados

natildeo inerentes dessa classe de objetos Como outros autores investigados ateacute aqui Cardoso

elabora algumas definiccedilotildees chave para formar uma base de onde partem suas ideias

Na verdade o design graacutefico moderno conta com um verdadeiro arsenal de me-canismos para despertar uma vasta gama de emoccedilotildees sendo o desejo e a cobiccedila as mais empregadas atualmente para fins mercadoloacutegicos Partamos entatildeo para um esboccedilo de definiccedilatildeo o design eacute em uacuteltima anaacutelise um processo de investir os objetos de significados significados estes que podem variar infinitamente de forma e de funccedilatildeo e eacute nesse sentido que ele se insere em uma ampla tradiccedilatildeo lsquofetichistarsquo (cardoso 1998 p 28-29)

Considerando que a atribuiccedilatildeo de significaccedilatildeo estaacute longe de se restringir aos aspectos

materiais essa definiccedilatildeo de design como ldquoum processo de investir os objetos de significadosrdquo

por si soacute jaacute indica uma compreensatildeo do design que natildeo necessariamente estaacute vinculada agrave

produccedilatildeo material Cardoso partindo desse ldquoesboccedilordquo busca delimitar o campo do design

em relaccedilatildeo agrave arte ao artesanato e agrave ciecircncia empregando a palavra artifiacutecio o que obvia-

mente remete ao uso anterior dado por Flusser

O que eu quero enfatizar aqui eacute que o esforccedilo histoacuterico do design para afastar-se do sentido artesanal e individualista da tradiccedilatildeo artiacutestica ocidental e para acercar-se de uma pretensa objetividade cientiacutefica e tecnoloacutegica acarretou entre outros resultados uma relativa perda de consciecircncia do teor artificioso do campo Natildeo quero dizer de modo algum que o design natildeo passe de uma espeacutecie de artifiacutecio no sentido pejorativo de fingimento ou artimanha Quero antes recuperar o sentido mais primitivo da palavra artifiacutecio o de habilidade ou engenho de inventividade e mdash por que natildeo dizer mdash de criatividade O ato de projetar tem na sua essecircncia um componente baacutesico de criaccedilatildeo de artifiacutecio que natildeo difere substancialmente daquele mesmo elemento factiacutecio (no sentido de lsquofeiturarsquo) que estaacute por traacutes do artesanato da arte e ateacute da magia segundo Kris e Kurz26 Em todos esses casos o artifiacutecio da coisa consiste em dar forma agraves ideacuteias em gerar o fato material e concreto a partir de um ponto eminentemente imaterial e abstrato O que distingue o design de grande parte do artesanato da arte e mdash presumo eu mdash da magia eacute que no design o fato material (factum)

16 Cardoso estabelece os artefatos como uma das particularizaccedilotildees dos objetos ldquoMais correta do que lsquoob-jetorsquo no contexto atual seria a palavra lsquoartefatorsquo a qual se refere especificamente aos objetos produzidos pelo trabalho humano em contraposiccedilatildeo aos objetos naturais ou acidentaisrdquo (cardoso 1998 p 19)

103

que se pretende gerar natildeo eacute feito (factus) pelo mesmo indiviacuteduo que deu iniacutecio ao processo ao conceber a ideacuteia (cardoso 1998 p 29-30)

26 Ernst Kris amp Otto Kurz Legend myth and magic in the image of the artist (New Haven Yale University Press 1981) [nota em peacute de paacutegina do autor]

Independentemente de ser discutiacutevel qual sentido da palavra artifiacutecio eacute o mais primi-

tivo17 se o de engenho ou de fingimento a posiccedilatildeo de Cardoso indica sua predileccedilatildeo pela

primeira acepccedilatildeo bem justificada por estar associada agrave criatividade e diriacuteamos um sentido

positivo e grego se nos lembrarmos da correlaccedilatildeo com a dialeacutetica de Flusser acerca da

astuacutecia Essa determinaccedilatildeo eacute reforccedilada uma vez que logo em seguida na mesma citaccedilatildeo

ele explicita que entende por artifiacutecio o ldquodar forma agraves ideiasrdquo partindo do imaterial e do

abstrato o que reflete um caraacuteter aleacutem de grego platocircnico

Assim Cardoso propotildee o design como uma esfera de concepccedilatildeo de ideias o que do

nosso ponto de vista implica mesmo de modo impliacutecito aceitar um componente platocirc-

nico de objetividade Mas em contraponto a essa posiccedilatildeo ele caminha tambeacutem em um

sentido inverso de valorizar a criatividade da arte criticando o ldquoesforccedilo histoacutericordquo18 do

design de se afastar dos aspectos individualistas e artesanais e se aproximar de elementos

como a objetividade normalmente associados agrave ciecircncia e tecnologia Por fim Cardoso

une esses elementos diversos em uma caracterizaccedilatildeo complexa do design

Quero sugerir portanto que a atividade do design caracteriza-se mais como um exerciacutecio de processos mentais (artifiacutecioengenho) do que de processos manuais (artes aplicadas ou plaacutesticas propriamente ditas) e como tanto assemelha-se ao fetichismo que tambeacutem forja uma ligaccedilatildeo entre o imaterial e o material sem passar necessariamente pela feitura27 (cardoso 1998 p 30)

27 Ignorando por um momento o fato de que o designer depende tradicio-nalmente de meios de expressatildeo manuais e ateacute artiacutesticos para transmitir as

17 No nosso entendimento pelo menos ateacute pudemos investigar etimologicamente eacute difiacutecil precisar qual eacute o sentido mais primitivo para a palavra artifiacutecio

18 A afirmaccedilatildeo de Cardoso sobre ldquoo esforccedilo histoacuterico do design para afastar-se do sentido artesanal e individualista da tradiccedilatildeo artiacutestica ocidental e para acercar-se de uma pretensa objetividade cientiacutefica e tecnoloacutegica []rdquo (cardoso 1998 p 29-30) confirma a oposiccedilatildeo frontal que jaacute anunciamos ante-riormente (p 77) entre ele e Schneider Lembremos que Schneider entende que ldquouma tradiccedilatildeo forte e ateacute agora dominante na histoacuteria do design desde a industrializaccedilatildeo ateacute a atualidade eacute marcada pela motivaccedilatildeo artiacutestica pela inspiraccedilatildeo artiacutestica para um design expressivo Essa tradiccedilatildeo se manifesta na tendecircncia a fetichizar a proacutepria praacutetica como artiacutestica e desobrigar-se agrave argumentaccedilatildeo racional e cultivar a aura do design de autorrdquo (schneider 2010 p 260) Itaacutelico nosso

104

suas concepccedilotildees Esta questatildeo tem que ser sempre levada em consideraccedilatildeo ao problematizar a relaccedilatildeo entre design e arte [nota em peacute de paacutegina do autor]

Aqui se condensa mais um ponto relevante da comunhatildeo de ideias de Cardoso e

de Flusser Com articulaccedilatildeo distinta Cardoso partilha da visatildeo de Flusser de reconexatildeo

entre aacutereas do saber mesmo que ele natildeo assuma explicitamente neste artigo uma criacutetica e

proposiccedilatildeo de superaccedilatildeo da cisatildeo dessas aacutereas Deste modo os componentes em oposiccedilatildeo

dialeticamente mesclados por Cardoso em sua definiccedilatildeo do design mdash de um lado uma

objetividade de cunho platocircnico e epistecircmico e de outro um fetichismo quase maacutegico

subjetivo e por que natildeo dizer artiacutestico mdash natildeo satildeo difiacuteceis de ser associados com o conceito

da Ponte Flusseriana

Paralelamente a isso os dois constituintes desse conceito tecircm algo em comum

conectam segundo Cardoso o imaterial com o material natildeo sendo nos dois casos me-

diados necessariamente nessa ligaccedilatildeo pela operaccedilatildeo do fazer Para este autor o design

caracteriza-se portanto por ser um ldquoprocesso mentalrdquo sem a intervenccedilatildeo da execuccedilatildeo

material ficando a produccedilatildeo a cargo de outros profissionais que natildeo o designer E tal de-

terminaccedilatildeo entre conceito abstrato e fazer concreto em outras palavras projeto e execuccedilatildeo

pode ser comprovada na praacutetica com os seus ganhos e perdas para o ser humano desde

a Revoluccedilatildeo Industrial quando a divisatildeo de tarefas entre designers e artesatildeosoperaacuterios

torna-se evidente

Em complemento a esses argumentos no livro ldquoUma introduccedilatildeo agrave histoacuteria do designrdquo

publicado uma deacutecada depois desse artigo Cardoso confirma seu entendimento acerca

da separaccedilatildeo entre projeto e execuccedilatildeo ao discorrer com inuacutemeros exemplos19 sobre

19 Tal separaccedilatildeo se confirma tambeacutem ateacute nas atividades em que a parte projetual define a maior parte das estruturas que guiaratildeo a execuccedilatildeo como no caso dos projetos editoriais de livros e a criaccedilatildeo de faces tipograacuteficas Nesses projetos o imaterial espantosamente equivale ao digital e pode em certo sentido prescindir do mundo material como no caso dos e-books e suas fontes tipograacuteficas Em relaccedilatildeo agraves fontes a ocorrecircncia da divisatildeo de seu processo de produccedilatildeo entre projeto e execuccedilatildeo eacute ainda mais recuada no tempo Desde o periacuteodo da tipografia mecacircnica que se inicia com Gutenberg o trabalho conceitual da criaccedilatildeo das formas dos tipos ou de seu conjunto a face tipograacutefica pelos ldquodesignersrdquo de faces se diferenciava da produccedilatildeo fiacutesica da fonte tipograacutefica pelos puncionistas profissionais que geravam as matrizes para a posterior produccedilatildeo das letras em ligas de chumbo Mas neste caso especiacutefico em que a separaccedilatildeo de tarefas vai ateacute a terminologia (de um lado faces de tipo e de outro fontes tipograacuteficas) tal divisatildeo natildeo impedia nem impede na atualidade de um mesmo profissional atuar em ambas as eta-pas Para mais detalhes ver silva SL Faces e Fontes Multiescrita fundamentos e criteacuterios do design tipograacutefico 1ordf ed Belo Horizonte Adaequatio Editora 2016 lt wwwfacesefontescombr gt

105

as diferenccedilas entre as etapas de planejamento e de produccedilatildeo que permitiram reduzir o

tempo de fabricaccedilatildeo baratear o custo com a matildeo de obra especializada ao colocar cada

trabalhador executando uma tarefa simples e repetitiva separada das demais ldquoEm vez de

contratar muitos artesatildeos habilitados bastava um bom designer para gerar o projeto um bom

gerente para supervisionar a produccedilatildeo e um grande nuacutemero de operaacuterios sem qualificaccedilatildeo

nenhuma para executar as etapas de preferecircncia como meros operadores de maacutequinasrdquo (car-

doso 2008 p 34)

Retornando ao artigo de 1998 atentemos para como esse autor constroacutei a ligaccedilatildeo

entre os conceitos de design e designer com dois niacuteveis de significados dos objetos na

categoria de artefatos

Quero sugerir aqui que os artefatos mesmo natildeo possuindo significados perma-nentes ou fixos satildeo capazes de conter significados ligados tatildeo intimamente agrave sua natureza fiacutesica e concreta que estes podem ser considerados mais ou menos lsquoinerentesrsquo ou seja estaacuteveis em um grau infinitamente maior do que qualquer significado verbal [] (cardoso 1998 p 32)

Cardoso estabelece entatildeo outra diferenciaccedilatildeo que nos interessa por distinguir dois

aspectos de significaccedilatildeo quanto agrave essecircncia desses objetos Eacute importante destacar a rele-

vacircncia da abordagem de Cardoso operando uma clivagem entre aspectos ontoloacutegicos

e epistemoloacutegicos de um lado e aspectos natildeo essenciais de outro em um escrito de 20

anos atraacutes Ateacute onde pesquisamos abordagens expliacutecitas dessa natureza calcadas nessa

espeacutecie de diferenciaccedilatildeo ainda satildeo pouco exploradas em textos sobre teoria do design

Avancemos na linha de raciociacutenio deste autor

[] mesmo que natildeo funcione e mesmo que seja apropriado para outro uso (eg como um peso de papel ou um elemento decorativo) o reloacutegio reteacutem pelo menos dois niacuteveis de significaccedilatildeo que dificilmente satildeo apagados primeiramente a sua identificaccedilatildeo como exemplar de uma classe especiacutefica de objetos (a sua essecircncia ontoloacutegica) e em segundo lugar o fato de remeter agrave mediccedilatildeo da passagem do tempo (a sua essecircncia epistemoloacutegica) (cardoso 1998 p 32)

Acreditamos que a escolha que Cardoso faz do reloacutegio como exemplo para as duas

classes de objetos natildeo eacute arbitraacuteria Lembremos que Koyreacute seguido de Maldonado (cf

p 72-73 e 81-82) indica que a mudanccedila operada no surgimento da ciecircncia moderna com

consequecircncias para a Revoluccedilatildeo Industrial eacute de ordem da precisatildeo E Koyreacute recorre ao

106

exemplo do reloacutegio que segundo ele deixa de ser um utensiacutelio impreciso para o uso co-

tidiano e torna-se um instrumento de mediccedilatildeo para uso cientiacutefico epistecircmico

Todavia natildeo foi da relojoaria dos relojoeiros que finalmente saiu a relojoaria de precisatildeo O reloacutegio dos relojoeiros nunca ultrapassou mdash e jamais poderia fazecirc-lo mdash o estaacutegio do ldquoquaserdquo e o niacutevel do ldquomais-ou-menosrdquo O reloacutegio de pre-cisatildeo o reloacutegio cronomeacutetrico tem uma origem totalmente distinta De modo algum eacute uma promoccedilatildeo do uso praacutetico do reloacutegio Ele eacute um instrumento ou seja uma criaccedilatildeo do pensamento cientiacutefico ou melhor ainda a realizaccedilatildeo consciente de uma teoria Eacute verdade que uma vez realizado um objeto teoacuterico pode se tornar um objeto praacutetico objeto de uso corrente e cotidiano [] Mas natildeo eacute a utilizaccedilatildeo de um objeto que determina a sua natureza eacute a estrutura um cronocirc-metro continua sendo um cronocircmetro mesmo que marinheiros o empreguem E isso nos explica por que natildeo se atribui aos relojoeiros mas aos saacutebios natildeo a Jost Burgi e a Isaak Thuret mas a Galileu e a Huygens (assim como a Robert Hooke) as grandes invenccedilotildees decisivas a quem tambeacutem devemos o reloacutegio de pecircndulo e o reloacutegio regulado de mola (koyreacute 1991 p 283)

A concepccedilatildeo de que os instrumentos possuem fundamentos epistemoloacutegicos isto eacute

uma teoria subjacente agrave sua concepccedilatildeo e produccedilatildeo faz sentido e justifica a distinccedilatildeo entre

teacutecnica e tecnologia No entanto Koyreacute entende que a essecircncia de um instrumento per-

manece mesmo quando eacute usado cotidianamente de modo praacutetico como um cronocircmetro

para saber somente as horas e natildeo milissegundos em um laboratoacuterio Assim quando Koyreacute

afirma que eacute a estrutura que determina a natureza de um objeto e natildeo o uso ele estaacute im-

plicitamente defendendo que a essecircncia ontoloacutegica dos objetos da classe dos instrumentos

natildeo se altera Cardoso ateacute onde pudemos entender identifica tambeacutem essas estruturas e

faz uma distinccedilatildeo entre os significados inerentes ou ldquomais ou menos lsquoinerentesrsquordquo e os natildeo

essenciais Poreacutem ele nos alerta como antes dele Koyreacute para mudanccedilas de significados

dos artefatos que podem ocorrer com o passar do tempo

Se pensarmos no artefato natildeo como uma entidade abstrata mas a partir de exemplos concretos torna-se evidente que nenhum objeto possui um significado monoliacutetico ou fixo Os artefatos existem no tempo e no espaccedilo e vatildeo portanto perdendo sentidos antigos e os adquirindo novos agrave medida que mudam de contexto (cardoso 1998 p 31)

Quando cotejamos os discursos desses dois autores devemos ter em conta que Koyreacute

tratando do mesmo objeto que Cardoso mdash o reloacutegio mdash propotildee a classe ontoloacutegica dos

107

instrumentos enquanto Cardoso a classe dos artefatos cada um com suas nuances e di-

ferenccedilas de sentido De qualquer modo ambos os autores tem uma compreensatildeo de que

os significados originaacuterios e constitutivos desses gecircneros de objetos ligados agrave estrutura

(Koyreacute) ou a essecircncia (Cardoso) tendem a se preservar e ser mais estaacuteveis que aqueles

adquiridos com o passar do tempo e a popularizaccedilatildeo de suas aplicaccedilotildees

Existem apenas dois mecanismos baacutesicos para investir o artefato de significa-dos a atribuiccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo os quais correspondem em linhas gerais aos processos paralelos de produccedilatildeodistribuiccedilatildeo e consumouso Varia o grau de estabilidade dos diversos significados (sua capacidade de lsquoaderecircnciarsquo ao artefato) mas grosso modo pode-se dizer que os significados atribuiacutedos no momento de produccedilatildeodistribuiccedilatildeo tendem a ser mais duradouros e universais do que aqueles advindos das instacircncias muacuteltiplas de apropriaccedilatildeo pelo consumouso (cardoso 1998 p 33)

Discordamos das posiccedilotildees de Koyreacute e de Cardoso acerca de propriedades que satildeo

inerentes aos objetos No entanto para compreender nossa divergecircncia eacute necessaacuterio

irmos ateacute agrave sua causa que se desloca das questotildees ontoloacutegicas tratadas neste momento

pelos dois autores e se estabelece em outra esfera o campo da teoria do conhecimento

gnoseologia conforme a figura 11

METAFIacuteSICA

ONTOLOGIA ESTEacuteTICA

ARTE

TEORIA

DO CONHECIMENTOGNOSEOLOGIA

EPIST

EMOLO

GIAFILOSOFIA DA CIEcircNCIA

CIEcircNCIAamp

TEacuteCNICA

O SER EOS ENTES EM GERAL

Figura 11 Representaccedilatildeo das esferas da ontologia e da gnoseologia e dos movimentos de reflexatildeo que precisamos empreender em cada um desses campos para identificar as caracteriacutesticas dos artefatos fonte autor

108

Grosso modo20 de um ponto de vista gnoseoloacutegico isto eacute pressupondo que o conhe-

cimento se estabelece em uma relaccedilatildeo entre sujeito e objeto21 as afirmaccedilotildees de Koyreacute e

Cardoso sinalizam para uma compreensatildeo dessa relaccedilatildeo de caraacuteter realista uma vez que

ambos os autores entendem o objeto possuindo propriedades constitutivas intriacutensecas

e reais independentes do sujeito Jaacute o idealismo posiccedilatildeo diametralmente oposta ao rea-

lismo entende que o objeto eacute construiacutedo em nossa consciecircncia Nossa posiccedilatildeo em certo

sentido fenomenalista22 procura mediar realismo e idealismo Entendemos que os objetos

satildeo constituiacutedos a partir de uma uniatildeo de elementos sensiacuteveis (empiacutericos) e inteligiacuteveis

(intelectivos) e o sujeito (enquanto sujeito do conhecimento) eacute quem procede com essa

uniatildeo no ato de conhecer

Com essa diferenciaccedilatildeo estabelecida ao retornar ao acircmbito da ontologia podemos

pensar diferentemente de Koyreacute e Cardoso os aspectos estruturais ou essenciais que

estariam segundo esses autores mais fortemente ligados ao significado iacutentimo dos ob-

jetos (sejam eles instrumentos artefatosutensiacutelios ou de outros gecircneros como artiacutesti-

cos e ateacute naturais) podem ultrapassar a fronteira de seus sentidos originais natildeo apenas

incorporando novas caracteriacutesticas mas saltando de uma classe ontoloacutegica para outra

Acreditamos que quando algueacutem faz uso de um cronocircmetro fora do acircmbito da pesquisa

cientiacutefica para o qual foi originalmente concebido tal objeto deixa de ser compreendido

ontologicamente como um instrumento de precisatildeo e se torna um artefato ou utensiacutelio

Nosso entendimento eacute de que um objeto natildeo precisa sofrer qualquer alteraccedilatildeo fiacutesica para

passar de uma classe ontoloacutegica a outra O exemplo do urinol de Marcel Duchamp que

seraacute investigado no capiacutetulo 5 eacute radical a este respeito Para transformaacute-lo (ou transfi-

guraacute-lo como diria Arthur Danto) de artefato ou utensiacutelio em obra de arte Duchamp

20 Nosso procedimento de exposiccedilatildeo e atribuiccedilatildeo de posiccedilotildees a Koyreacute e a Cardoso eacute bastante superficial e somente se justifica para indicar o ponto de origem de nossa discordacircncia com esses autores Tanto o realismo quanto o idealismo conteacutem diversas categorias (realismo ingecircnuo natural e criacutetico e idealismo subjetivo e objetivo) com inuacutemeras e ricas variantes que satildeo abordadas em detalhes por Hessen (2000)

21 Conforme afirma Hessen ldquoNo conhecimento encontram-se frente a frente a consciecircncia e o objecto o sujeito e o objecto O conhecimento apresenta-se como uma relaccedilatildeo entre estes dois elementos que nela permanecem eternamente separados um do outro O dualismo sujeito e objeto pertence agrave essecircncia do conhecimentordquo (hessen 1980 p26)

22 Com essa denominaccedilatildeo que normalmente estaacute associada agrave posiccedilatildeo de Kant natildeo pretendemos assumir sua concepccedilatildeo gnoseoloacutegica como um todo com a qual partilhamos algumas convicccedilotildees mas com reservas

109

do ponto de vista fiacutesico apenas acrescentou uma assinatura que natildeo era a sua Frente ao

nosso posicionamento temos mais um uacuteltimo ponto em que a compreensatildeo de Cardoso

nesse artigo se distingue da nossa

Natildeo cabe ao design atribuir relogiosidade a um reloacutegio pois este jaacute o possui necessariamente com ou sem a participaccedilatildeo de um designer no processo de produccedilatildeo Natildeo a funccedilatildeo do designer natildeo eacute de atribuir ao objeto aquilo que ele jaacute possui aquilo que jaacute faz parte (in haerere) da sua natureza mas de enriquececirc-lo de fazer colar mdash aderir mesmo (ad haerere) mdash significados de outros niacuteveis bem mais complexos do que aqueles baacutesicos que dizem respeito apenas agrave sua identidade essencial Conforme assinalei acima esses significados podem ser de ordens diversas desde questotildees de seguranccedila e facilidade de uso ateacute noccedilotildees de moda prestiacutegio ou sexualidade Independentemente do tipo de significado que o designer queira atribuir ao artefato existe a questatildeo da capacidade de aderecircncia do significado em questatildeo Como todos os significados

mdash com a possiacutevel exceccedilatildeo dos mais baacutesicos mdash satildeo fluidos estando sujeitos agrave transformaccedilatildeo eou subversatildeo pelos mecanismos de apropriaccedilatildeo eles podem ser considerados como sendo mais ou menos duradouros dependendo da sua capacidade de resistir a esses e outros mecanismos (cardoso 1998 p 35)

Neste ponto Cardoso define o que ele compreende como a funccedilatildeo dos designers

enriquecerem os objetos com mais significados do que os ldquobaacutesicosrdquo proacuteprios da sua

natureza De modo nenhum recusamos o valor do enriquecimento mas natildeo podemos

abrir matildeo da consciecircncia e da capacidade do design e dos designers de atuar ontoloacutegica

e epistemologicamente sobre seus projetos Quando um designer (trabalhando isolada-

mente em grupo ou como vem ocorrendo cada vez mais em equipes multidisciplinares)

desenvolve um novo artefato ou instrumento (seja esse objeto algo ldquooriginalrdquo como

uma invenccedilatildeo ou uma reuniatildeo inusitada de conceitos e ideias jaacute existentes) o mundo se

amplia com a inclusatildeo de um novo item agrave realidade Essa ampliaccedilatildeo natildeo eacute de ldquoaderecircnciardquo

de significados mas de ordem de significaccedilatildeo mais profunda existencial e ontoloacutegica E

seu fundamento mdash no acircmbito subjacente da gnoseologia mdash eacute o de se conceber o objeto

como a somatoacuteria de um mundo sensiacutevel unido ao inteligiacutevel pelo sujeito

Mas qual a relevacircncia da diferenciaccedilatildeo entre uma atuaccedilatildeo na natureza iacutentima dos

objetos e aquela que os enriquecem aleacutem de uma explicitaccedilatildeo teoacuterica ou um exerciacutecio

mental de compreensatildeo da atividade projetual dos designers Acreditamos que uma das

110

vantagens da indeterminaccedilatildeo do design eacute a possibilidade caso desejemos de franquearmos

esferas do conhecimento que teoricamente (no sentido literal dessa palavra) natildeo teriacuteamos

acesso e onde natildeo poderiacuteamos atuar caso as fronteiras desse campo fossem claramente

delimitadas Assim nos unimos agrave Flusser ao retomar a pergunta da paacutegina 78 eacute possiacutevel

garantir autonomia a cada uma dessas disciplinas (ciecircncia teacutecnica design e arte) e ao

mesmo tempo ultrapassar ou pelo menos mitigar o modelo de cisatildeo que existe entre elas

Neste sentido acreditamos que o design pode atuar natildeo construindo pontes mas efeti-

vamente sendo a ponte que conecta aacutereas Com isso tambeacutem eacute possiacutevel avanccedilarmos em

direccedilatildeo a domiacutenios ateacute entatildeo impensados como o da natureza em seu acircmbito bioloacutegico

Essa atuaccedilatildeo natildeo pode ser considerada meramente um enriquecimento por mais que a

valorizaccedilatildeo dos artefatos seja entendida como um processo em um niacutevel mais complexo

como pensa Cardoso

Com todos os riscos que Flusser aponta e devemos atentar para eles o design opera

uma ampliaccedilatildeo da realidade em outras palavras uma operaccedilatildeo ontoloacutegica como tambeacutem

procede a arte de modo expliacutecito desde Duchamp No entanto uma pergunta precisa

ser respondida com quais elementos tal ponte se concretiza Como veremos no capiacutetulo

4 o conceito aristoteacutelico de miacutemesis eacute plenamente capaz de estruturar a ldquoponterdquo entre

diversas aacutereas como tambeacutem eacute constitutivamente um princiacutepio de natureza ontoloacutegica

Mas antes eacute necessaacuterio compreender e ultrapassar a questatildeo da subjetividade e objetividade

no design e na arte um dos temas do proacuteximo capiacutetulo jaacute anunciado no atual (cf p 103-

104) com a concepccedilatildeo de Cardoso que une esses dois elementos na disciplina do design

111

3 DA ESTEacuteTICA Agrave ONTOLOGIA NA ARTE E NO DESIGN

No capiacutetulo anterior construiacutemos uma estrutura de conexotildees entre ciecircncia arte e design

que demandou um percurso circular mais direcionado aos eixos ou esferas gnoseoloacutegica

e ontoloacutegica do que agrave esteacutetica (cf figura 11 p 107) A partir da constituiccedilatildeo desse arca-

bouccedilo parcial de caraacuteter propedecircutico a convergecircncia estabelecida conduziu as ques-

totildees investigadas para o foco da ontologia confirmando que nossa busca por elementos

relacionais entre design e arte no acircmbito desta esfera eacute profiacutecua No entanto devemos

considerar que tal confluecircncia ainda carece de uma investigaccedilatildeo orientada a partir da

esteacutetica Existem trecircs razotildees para esse movimento

1 Tendo em conta que rejeitamos a hierarquizaccedilatildeo do conhecimento eacute imprescindiacutevel

garantir equiliacutebrio nas anaacutelises sem privileacutegio da ciecircncia em detrimento da arte

2 A esfera da esteacutetica sedia temas inerentes agrave arte ou seja tem autonomia em relaccedilatildeo

agraves outras duas

3 Os temas como veremos podem ser correlacionados ao design quando transpomos

o nuacutecleo esteacutetico em direccedilatildeo agrave gnoseologia e ontologia

Dentro do processo de ordenaccedilatildeo da tese os trecircs motivos listados prefiguram a segun-

da etapa do meacutetodo transposiccedilatildeo da abordagem do tema de um vieacutes esteacutetico e gnoseoloacutegico

para ontoloacutegico (cf capiacutetulo 1 p 49)

A operaccedilatildeo baacutesica do capiacutetulo atual se efetiva a partir do cotejo dos conceitos de

subjetividade e objetividade nos domiacutenios da arte que satildeo em seguida transpostos para o

design No capiacutetulo anterior jaacute haviacuteamos identificado no pensamento de Cardoso (1998)

uma contraposiccedilatildeo que interpretamos como sendo essencialmente um desdobramento

dialeacutetico desses dois conceitos Mas na concepccedilatildeo de Cardoso o centro da questatildeo era

o design em sua relaccedilatildeo de um lado com a ciecircncia em seu caraacuteter de objetividade e de

outro com a arte com sua base de subjetividade Nossa tarefa atual (pressupondo o vieacutes

da epistemologia e da gnoseologia jaacute circunscrito e apontando para criteacuterios objetivos)

eacute pensar o vieacutes da esteacutetica que incorpora a subjetividade agrave compreensatildeo dos seus objetos

A intenccedilatildeo eacute primeiramente aprofundar na esfera da esteacutetica investigando a arte e seus

112

objetos e extrair os conceitos de que necessitamos Em seguida ultrapassar os limites

dessa esfera (como ultrapassamos os da gnoseologia no capiacutetulo anterior) incorporando

suas demandas ao territoacuterio da ontologia territoacuterio esse capaz de suportar os elementos

exclusivos das duas primeiras esferas na tarefa de fundamentar as relaccedilotildees entre design e

arte (figura 12)

Para esse empreendimento primeiramente nos apropriamos de uma releitura da

antinomia kantiana acerca do belo aplicada agrave arte contemporacircnea que transpomos ao

design Em seguida a partir das conclusotildees que chegamos com Kant da impossibilidade

de compreendermos o design por uma abordagem exclusivamente esteacutetica ou episte-

moloacutegica voltamos nossa atenccedilatildeo para a viabilidade de um caminho de caracteriacutesticas

ontoloacutegicas apoiados em Heidegger A intenccedilatildeo eacute mostrar como o modo de produccedilatildeo

da arte investigado atraveacutes desse vieacutes ao mesmo tempo possibilita alargar a compreensatildeo

do que satildeo os utensiacutelios e instrumentos como tambeacutem do que entendemos ser o campo

do design em suas relaccedilotildees com a arte

METAFIacuteSICA

ESTEacuteTICA

ONTOLOGIA

O SER EOS ENTES EM GERAL

TEORIA

DO CONHECIMENTOGNOSEOLOGIA

EPIST

EMOLO

GIAFILOSOFIA DA CIEcircNCIA

CIEcircNCIAamp

TEacuteCNICAARTE

Figura 12 Representaccedilatildeo da etapa de centralizaccedilatildeo da investigaccedilatildeo na esfera da esteacutetica em sua relaccedilatildeo com a da gnoseologia e ontologia fonte autor

113

31 Kant e a abordagem esteacutetica na arte e no design

Esta primeira seccedilatildeo tem origem na discussatildeo proposta pelo filoacutesofo e teoacuterico da arte Thier-

ry de Duve no capiacutetulo Kant after Duchamp de seu livro homocircnimo (de duve 1998)

A reflexatildeo de Thierry de Duve parte de uma anaacutelise do trabalho de Clement Greenberg

criacutetico de arte e do artista e ensaiacutesta Joseph Kosuth ambos envolvidos nas polecircmicas em

torno da arte e da esteacutetica que se desenrolaram principalmente nas deacutecadas de 1960 e 1970

nos Estados Unidos Sua abordagem busca em uma antinomia kantiana o entendimento

das posiccedilotildees associadas a Greenberg e Kosuth em relaccedilatildeo a subjetividade e a objetividade

dentro do territoacuterio da arte

Com o aprofundamento dessa investigaccedilatildeo especiacutefica percebemos as discussotildees

de meados do seacuteculo xx (das quais de Duve eacute testemunha) como um ldquoponto focalrdquo de

Cassirer (1992 p 48) Elas ainda se justificam tanto por causa da crescente ampliaccedilatildeo das

fronteiras da arte no contexto contemporacircneo quanto pelas suas interseccedilotildees com outros

campos como o design que tambeacutem vecircm alargando seus limites Assim assumindo que

esse tema estabelece viacutenculos com outros campos construiacutemos trecircs hipoacuteteses para inves-

tigar exclusivamente a questatildeo da subjetividade versus objetividade no acircmbito do design

1 A questatildeo se transfere da arte e contamina o design de forma perifeacuterica

2 A questatildeo se transfere da arte e contamina o design indo aleacutem da periferia atingindo

o seu cerne conceitual

3 A questatildeo natildeo se transfere mas eacute intriacutenseca ao design e suscita de modo anaacutelogo ao

que ocorre com a arte discussotildees sobre o estatuto ontoloacutegico do design

Nenhuma dessas trecircs hipoacuteteses a princiacutepio nos parece simples de perseguir como

meta nesta primeira seccedilatildeo mas dependendo da posiccedilatildeo que assumimos somos enviados as

concepccedilotildees de design investigadas no capiacutetulo anterior que se aproximam ou se distan-

ciam do que hoje se entende como ciecircncia1 enquanto campo direcionado agrave objetividade

1 Na confirmaccedilatildeo de qualquer das trecircs possibilidades existe uma tarefa adicional e singular pela frente uma vez que as controveacutersias que partem de Kant sobre a subjetividade e a objetividade ateacute onde pudemos investigar ainda persistem no territoacuterio da arte da esteacutetica e da filosofia da arte Isto obrigaraacute em um estudo posterior a busca por respostas para o design que ainda natildeo foram encontradas para a arte

114

Thierry de Duve inicia o capiacutetulo supracitado apresentando-nos trecircs nomes no campo

da arte dentro do contexto Flower Power e guerra do Vietnatilde das deacutecadas de 1960 e 1970

Jack Burnham Joseph Beuys e Clement Greenberg Todos com afirmaccedilotildees aparentemente

coincidentes a ldquotodo ser humano eacute um artistardquo mas que trazem grandes diferenccedilas ideo-

loacutegicas quando vistas em profundidade A partir disso sua anaacutelise se pauta pela praacutetica

artiacutestica desse periacuteodo tendo como referecircncia a influecircncia dos readymades de Duchamp

sobre artistas e criacuteticos de arte mas principalmente levando em conta as posiccedilotildees de

Kosuth e de Greenberg O texto repleto de informaccedilotildees histoacutericas e teoacutericas passa pelo

romantismo alematildeo chegando ateacute Lombroso e Freud entre muitos outros pesquisadores

de aacutereas distintas da arte e retorna afinal ao seacuteculo xx Mas encoberta nessa reconstituiccedilatildeo

histoacuterica o que interessa mais a de Duve acreditamos (o tema que atravessa esse capiacutetulo

do seu livro) eacute a antinomia kantiana sobre o gosto com a sua releitura substituindo ldquoisto

eacute belordquo do julgamento esteacutetico claacutessico por ldquoisto eacute arterdquo da cultura contemporacircnea

No entanto de Duve tem uma forma peculiar de construir sua argumentaccedilatildeo que

coloca Kosuth e Greenberg como personagens opostos na antinomia apontando o que

ele considera erros e limitaccedilotildees de cada um deles Na medida em que nosso propoacutesito tem

encadeamento em dois niacuteveis isto eacute primeiro a arte e depois o design vamos reservar a

seccedilatildeo atual para explorar a antinomia kantiana do gosto no territoacuterio da arte e em seguida

na seccedilatildeo 32 investiremos na transposiccedilatildeo da problemaacutetica para o acircmbito do design com

o apoio heideggeriano

311 Subjetividade e objetividade no territoacuterio da arte

Thierry de Duve mostra-nos como Greenberg relutou durante os anos 1960 em reconhe-

cer a relevacircncia de Duchamp2 Mas quando esse criacutetico norte-americano assume a obra

de Duchamp aponta para a crenccedila em uma sobreposiccedilatildeo entre arte e esteacutetica Conforme

mostra de Duve com duas citaccedilotildees de Greenberg

2 No capiacutetulo 5 veremos em detalhe como Duchamp precede Andy Warhol com a ldquotransfiguraccedilatildeordquo mdash para usar a expressatildeo de Danto (2005) mdash de objetos do design em obras de arte

115

Demonstrou-se algo que de fato valia a pena demonstrar Arte do tipo da de Duchamp mostrou como nunca acontecera ateacute entatildeo o quatildeo ampliada pode ser a categoria da experiecircncia esteacutetica formal Embora sempre tivesse sido verdade tinha que ser demonstrado para que pudesse ser reconhecida como verdadeira A disciplina da esteacutetica recebeu nova luz (greenberg 1976 p 93 apud de duve 1998 p 130)

Desde entatildeo [dos readymades de Duchamp] tornou-se mais evidente tambeacutem que tudo o que pode ser experimentado esteticamente pode tambeacutem ser expe-rimentado enquanto arte Em resumo arte e esteacutetica natildeo soacute se sobrepotildeem mas coincidem (greenberg 1979 p 129 apud de duve 1998 p 130)

Entretanto seguindo a anaacutelise de Thierry de Duve Kosuth ao final dos anos 1960

vai em direccedilatildeo oposta apontando para uma separaccedilatildeo entre arte e esteacutetica (figura 13)

Entatildeo qualquer parte da filosofia que lidasse com a lsquobelezarsquo e consequentemente com o gosto seria de forma inevitaacutevel obrigada a discutir tambeacutem a arte Desse lsquohaacutebitorsquo surgiu a noccedilatildeo de existecircncia de ligaccedilatildeo conceitual entre arte e esteacutetica o que natildeo eacute verdadeiro (kosuth 1969 p 76 apud de duve 1998 p 131)

312 Os conceitos de act e art

Por um lado Greenberg tem em vista a pintura e escultura modernista Por outro Kosuth

procura regras para muitas das praacuteticas artiacutesticas dos anos 1960 que iam aleacutem das fronteiras

GREENBERG

sobreposiccedilatildeo e coincidecircncia entre arte e esteacutetica

separaccedilatildeo entre arte e esteacutetica

KOSUTH

Figura 13 Esquema da interpretaccedilatildeo de Thierry de Duve da posiccedilotildees de Clement Greenberg e Joseph Kosuth em relaccedilatildeo agrave arte e agrave esteacutetica fonte autor

116

dos meios tradicionais mas com uma separaccedilatildeo conceitual entre arte e esteacutetica neste caso

ou se reivindica o nome ldquoarterdquo mas ao preccedilo da esteacutetica ou fica-se com a esteacutetica sem

fazer uso do termo ldquoarterdquo Eacute a partir dessa dicotomia que de Duve apropriando-se dos

acrocircnimos act (Aesthetically Claimed Things mdash Coisas Consideradas Esteacuteticas) e art

(Aesthetically Rejected Things mdash Coisas Rejeitadas Esteticamente)3 apresenta exemplos

dessas duas categorias (figura 14)

Para act ele apresenta principalmente o Fluxus4 que com suas performances e

happenings procurava experiecircncias esteacuteticas sem que isto fosse considerado arte As

command-pieces ou intructions-pieces (figura 15) poderiam ser executadas por qualquer

um ou seja o trabalho natildeo era mais denominado arte nem o autor deveria ser mais artista

Para art temos desde o Erased de Kooning (1953) de Robert Rauschenberg (figura 16)

e o Burning Small Fires (1969) de Bruce Naumann ateacute o trabalho sem tiacutetulo (1967) de

Christine Koslov que consistia num rolo de filme de 16 mm virgem (figura 17)

3 Acrocircnimos criados pelo casal canadense Ian e Elaine Baxter que separam sua praacutetica em duas catego-rias Thierry de Duve lembra que o casal natildeo tem exatamente a mesma posiccedilatildeo de Kosuth pois art se produz a partir de coisas rejeitadas esteticamente e natildeo a partir de uma rejeiccedilatildeo agrave esteacutetica

4 Grupo de artistas de vaacuterias nacionalidades estruturado ao redor da figura de George Maciunas um artista lituanecircs radicado nos Estados Unidos

ACT

Aesthetically Claimed Things mdash Coisas Consideradas Esteacuteticas

Perfomances e happenings (experiecircncias esteacuteticas sem ser arte) Fluxus

Aesthetically Rejected Things mdash Coisas Rejeitadas Esteticamente

Erased de Kooning (arte sem esteacutetica) Robert Rauschenberg

ART

Figura 14 Esquema da interpretaccedilatildeo de Thierry De Duve dos acroacutenimos act e art criados por Ian e Elaine Baxter fonte autor

117

Figura 15 Fotografia da performance (1962) de George Maciunas para Jackson Mac Low fonte momaorg

Figura 16 Fotografia da obra de Robert Rauschen-berg (1953) criada apagando um desenho do artista Willem de Kooning fonte momaorg

Figura 17 Fotografia de obra sem tiacutetulo (1967) de Christine Koslov a partir de um rolo de filme virgem A legenda na tampa da lata tem a inscri-ccedilatildeo ldquoTransparent Film nordm2 ndash White 100ft 16mm ndash 1967 fonte henry-mooreorg

118

313 Antinomia e dilema

A partir dos exemplos anteriores dois obstaacuteculos surgem para as concepccedilotildees de Greenberg

e Kosuth Em primeiro lugar com act os trabalhos correm o risco de serem produzidos

solipsisticamente caso natildeo sejam comunicados ao mundo da arte Em segundo com

art natildeo se pode negar que os trabalhos tenham propriedades visuais e sejam passiacuteveis

de apreciaccedilatildeo esteacutetica (figura 18)

Tudo isso aponta segundo de Duve para uma contradiccedilatildeo ou antinomia se ficamos

com act (esteacutetico no sentido de Greenberg) natildeo eacute possiacutevel acreditar que a arte tenha sido

modificada em sua natureza e que o julgamento de gosto (aquele aplicado agrave arte antiga

ateacute a modernista) perdeu seus direitos Para de Duve uma possiacutevel consequecircncia dessa

concepccedilatildeo levada ao extremo eacute considerarmos o readymade uma fraude ou buscarmos

uma continuidade na histoacuteria da arte rejeitando a antiarte ou movimentos do Dadaiacutesmo

em diante Se ficarmos com art (arte no sentido de Kosuth) acreditamos que a arte

depois de Duchamp eacute conceitual e da mesma forma exagerando podemos retroagir

essa concepccedilatildeo e apagar a arte anterior a Duchamp Thierry de Duve lembra que isto eacute o

que Kosuth pretende quando afirma ldquoNo que concerne agrave arte as pinturas de Van Gogh

ACT (esteacutetico no sentido de Greenberg

Aesthetically Claimed Things mdash Coisas Consideradas Esteacuteticas

OBSTAacuteCULO risco de solipsismo em relaccedilatildeo ao mundo da arte

Aesthetically Rejected Things mdash Coisas Rejeitadas EsteticamenteOBSTAacuteCULO os trabalhos de ART continuam podendo ser apreciados esteticamente

ART (arte no sentido de Kosuth)

Figura 18 Esquema dos obstaacuteculos a cada posiccedilatildeo act e art que as impedem de cumprir seus objetivos plenamente fonte autor

119

natildeo valem mais do que sua paletardquo (kosuth 1969 p 82 apud de duve 1998 p 134)

Este dilema para de Duve eacute intoleraacutevel pois tanto act quanto art eliminam metade

dos fatos e tornam os trabalhos de arte presos a uma determinada ideologia (figura 19)

Baseado nos argumentos anteriores de Duve avanccedila entatildeo em sua criacutetica agraves posiccedilotildees

de Greenberg e Kosuth que foge ao escopo da tese e em seguida apresenta a sua saiacuteda

para o dilema art versus act apoiado em Kant Sigamos seu raciociacutenio

314 Uma releitura de Kant do belo agrave arte

A proposta de Thierry de Duve para escapar agrave antinomia eacute a de que a afirmaccedilatildeo que pro-

duziu os readymades ou seja ldquoisto eacute arterdquo expressa um julgamento esteacutetico no sentido

kantiano Para desenvolver seu argumento esse autor cita parte do paraacutegrafo 56 da Criacutetica

da faculdade do juiacutezo (figura 20)

Tese o juiacutezo de gosto natildeo se funda sobre conceitos pois do contraacuterio se poderia disputar sobre ele (decidir mediante demonstraccedilotildees)

ACT (esteacutetico no sentido de Greenberg

Aesthetically Claimed Things mdash Coisas Consideradas Esteacuteticas

EXTREMO a arte natildeo foi modificada em sua natureza mdash o readymade eacute uma fraude

Aesthetically Rejected Things mdash Coisas Rejeitadas EsteticamenteEXTREMO a arte depois de Duchamp eacute conceitual mdash natildeo existiu arte anterior

ART (arte no sentido de Kosuth)

Figura 19 Esquema do caso extremo cuja consequecircncia segundo Thierry de Duve proveacutem das posiccedilotildees adotadas por Greenberg e Kosuth fonte autor

120

Antiacutetese o juiacutezo de gosto funda-se sobre conceitos pois do contraacuterio natildeo se poderia natildeo obstante a diversidade do mesmo discutir sequer uma vez sobre ele (pretender a necessaacuteria concordacircncia de outros com este juiacutezo)

(kant 2005 p 183 sect 56)

Thierry de Duve faz questatildeo de lembrar-nos neste ponto que Kant define gosto

como ldquoa faculdade de julgar o belordquo5 acrescentando que o principal interesse dele era o

belo natural E mais uma vez cita Kant para mostrar como o filosofo alematildeo resolve a

antinomia (figura 21)

Por isso na tese dever-se-ia dizer o juiacutezo de gosto natildeo se fundamenta sobre conceitos determinados na antiacutetese poreacutem o juiacutezo de gosto contudo se funda sobre um conceito conquanto indeterminado (nomeadamente do substrato supra-sensiacutevel dos fenocircmenos) e entatildeo natildeo haveria entre eles nenhum conflito (kant 2005 p 185 sect 57)

5 Thierry de Duve alerta-nos para o fato de que tal julgamento natildeo eacute de cogniccedilatildeo (consequentemente natildeo loacutegico) mas sim esteacutetico ou seja segundo ele o ldquoisto eacute belordquo eacute o que se pode denominar julgamento esteacutetico claacutessico

TESE

SOLUCcedilAtildeO DA ANTINOMIA KANTIANA DE GOSTO

o juiacutezo de gosto funda-se sobre um conceito indeterminado

ANTIacuteTESE

o juiacutezo de gosto natildeo se funda sobre conceitos determinados

Figura 21 Esquema da resoluccedilatildeo da antinomia do gosto kantiana fonte autor

TESE

A ANTINOMIA KANTIANA DE GOSTO

o juiacutezo de gosto funda-se sobre conceitos

ANTIacuteTESE

o juiacutezo de gosto natildeo se funda sobre conceitos

Figura 20 Esquema da antinomia do gosto kantiana fonte autor

121

Mas para que possamos compreender a saiacuteda kantiana de Duve discorre sobre o con-

ceito de ldquosubstrato supra-sensiacutevelrdquo De forma bastante resumida o que se pode afirmar eacute

que este conceito eacute tratado nas trecircs Criacuteticas sendo um requisito de razatildeo necessaacuterio para

pensar a natureza (primeira Criacutetica) a liberdade eacutetica (segunda Criacutetica) e o julgamento de

gosto enquanto reivindicando validade universal (terceira Criacutetica) mesmo sendo resulta-

do de sentimento subjetivo Poreacutem o essencial eacute que apesar de subjetivo o supra-sensiacutevel

eacute um princiacutepio compartilhado com toda a humanidade Essa eacute a saiacuteda de Kant que une

subjetividade e universalidade

Quando substituiacutemos o ldquoisto eacute belordquo por ldquoisto eacute arterdquo podemos colocar qualquer

obra de arte de nossa escolha no lugar do ldquoistordquo e endossar qualquer ideia de arte que

escolhermos Se acreditarmos em um conceito de arte (ideia de arte determinada) ele

poderaacute ser contrariado pela ideia de qualquer outra pessoa Se entretanto nossa doutrina

eacute de gosto (ideia de arte indeterminada) ela pode ser contrariada tanto pelos que natildeo

compartilham de nosso gosto quanto pelos que pensam que arte natildeo eacute uma questatildeo de

gosto (figura 22)

315 Uma soluccedilatildeo incompleta ou a incompletude como soluccedilatildeo

Se a saiacuteda kantiana parece incompleta retomar o panorama da esteacutetica da eacutepoca em que

Kant a propotildee contribui para entender o que se ganha com sua posiccedilatildeo Grosso modo de

IDEIA DE ARTE DETERMINADA

APROPRIACcedilAtildeO DA SOLUCcedilAtildeO KANTIANA PARA A ARTE

doutrina de gosto contrariada por quem natildeo compartilha nosso gosto e por aqueles que pensam que arte natildeo eacute questatildeo de gosto

isto eacute arte endossa qualquer obra de arte e qualquer ideia de arte

IDEIA DE ARTE INDETERMINDA

Figura 22 Esquema da apropriaccedilatildeo e transferecircncia feita por Thierry de Duve da resoluccedilatildeo da antinomia do gosto kantiana para o universo da arte contemporacircnea fonte autor

122

um lado encontravam-se as esteacuteticas de cunho racionalista que derivavam o conceito de

belo dos conceitos de harmonia e de perfeiccedilatildeo De outro as esteacuteticas de caraacuteter empirista

com uma ideia de gosto derivado somente da sensaccedilatildeo As primeiras estavam presas a

uma universalidade que perdia a singularidade da experiecircncia artiacutestica e as uacuteltimas atadas

a uma singularidade da opiniatildeo do chamado ldquogosto natildeo se discuterdquo que as impedia de

ascender ao universal

No entanto a foacutermula de Kant apresenta uma esteacutetica universalista sem conceito

ou universalista subjetiva (distinta do universalismo conceitual ou objetivo da ciecircncia)

Este universalismo subjetivo pode ser interpretado como inacabado na medida em que

sustenta de modo paradoxal6 uma totalidade que natildeo abre matildeo da singularidade da

experiecircncia de cada um Resta saber se eacute possiacutevel para os nossos propoacutesitos aceitar uma

soluccedilatildeo dessa natureza

Do nosso ponto de vista o inacabado do conceito natildeo eacute um problema mas pelo

contraacuterio espelha a proacutepria incompletude inerente ao fazer artiacutestico contemporacircneo

em seus diversos aspectos no trabalho do artista na atuaccedilatildeo do criacutetico e na fruiccedilatildeo do

espectador que se tornou ativo Nesse sentido as palavras da filoacutesofa Virginia Figueiredo

reforccedilam a posiccedilatildeo kantiana

Eacute a insistecircncia kantiana de que o juiacutezo esteacutetico natildeo eacute capaz de nos forne-cer um conceito o que a torna estranhamente atual Pois a meu ver todo e qualquer criteacuterio objetivo ou conceito preacutevio seja ele de belo de feio ou de sublime estaacute fadado ao fracasso na sua tentativa de apreensatildeo filosoacutefica da produccedilatildeo recente da arte Num ambiente em que ldquotudo pode ser arterdquo a ne-cessidade de uma reflexatildeo singular caso a caso soacute se agrava Mesmo sem ou exatamente porque natildeo dispotildee de qualquer criteacuterio ou conceito estabelecido a priori (daiacute decorre uma das grandes dificuldades das condiccedilotildees contempo-racircneas da experiecircncia esteacutetica) o espectador natildeo pode permanecer passivo acatando tudo o que lhe colocam diante dos olhos como se fosse arte Mais do que nunca o espectador estaacute ldquoobrigadordquo ao exerciacutecio da criacutetica mais do que nunca ele tem de se perguntar como de Duve nos indicou ldquoisto eacute arterdquo (figueiredo 2008 p 37)

6 Paradoxal natildeo tem aqui a mesma conotaccedilatildeo de antinocircmico como ocorre no uso desses termos em um sentido menos rigoroso ou as vezes indiscriminado A antinomia pressupotildee uma tese e uma antiacutetese (figura 20 p 120) no interior de um raciociacutenio ou princiacutepio O paradoxo distintamente carrega em sua constituiccedilatildeo uma uacutenica tese ou conceito que contraria a opiniatildeo ou crenccedila compartilhada por uma maioria

123

316 Subjetividade e objetividade no territoacuterio do design

Mesmo aceitando Duchamp como um marco e um divisor de aacuteguas bem como constatando

o niacutevel de ampliaccedilatildeo das fronteiras da arte nos uacuteltimos cem anos e interpretando tudo isso

sob o crivo kantiano uma objeccedilatildeo poderia ser feita a uma transposiccedilatildeo subsequente do

princiacutepio kantiano da arte ao design E mesmo para aqueles que admitem o argumento de

Thierry de Duve (da passagem do belo agrave arte) franquear o uso desse princiacutepio kantiano

ao design (princiacutepio esse que eacute ao mesmo tempo subjetivo mas compartilhado por todos

os seres humanos) eacute se comprometer com um procedimento que exige detalhamento e

fundamentaccedilatildeo para se tornar claro

No entanto existe um fator externo agrave questatildeo da passagem da arte ao design que

uma vez elucidado pode minimizar o esforccedilo de compreensatildeo No nosso entendimento

parte da desconfianccedila em relaccedilatildeo ao princiacutepio kantiano natildeo vem apenas de dentro dos

ciacuterculos epistemoloacutegicos Pode vir de certa compreensatildeo disseminada em nossa cultura

em que se associa universalidade a objetividade E esses dois conceitos como vimos no

capiacutetulo anterior natildeo por coincidecircncia tambeacutem satildeo pilares da concepccedilatildeo ocidental de

ciecircncia Mas esse eacute um problema trataacutevel dentro do proacuteprio sistema de Kant uma vez que

esse autor trabalha com o conceito de universalidade subjetiva no acircmbito da esteacutetica na

Criacutetica da faculdade do juiacutezo (kant 2005) mas trabalha tambeacutem com o de universali-

dade objetiva no acircmbito das ciecircncias onde sua Criacutetica da razatildeo Pura (kant 1989) tem

inegaacutevel contribuiccedilatildeo para a teoria do conhecimento

317 Outra releitura de Kant da arte ao design

Racionalistas e empiristas contemporacircneos atrelados a soluccedilotildees preacute-kantianas que pri-

vilegiam apenas a mente ou as sensaccedilotildees diriam que eacute difiacutecil aceitar uma posiccedilatildeo como

a de Kant que procura uma mediaccedilatildeo mas inclui um paradoxo em seu interior Poreacutem

o tipo de argumento kantiano que afasta antinomias mas admite paradoxos vem se

tornando cada vez mais recorrente Como afirma Bonsiepe

124

Encontramo-nos diante de um paradoxo Projetar significa expor-se e viver com paradoxos e contradiccedilotildees mas nunca camuflaacute-los sob um manto harmoniza-dor O ato de projetar deve assumir e desvendar essas contradiccedilotildees Em uma sociedade torturada por contradiccedilotildees o design tambeacutem estaacute marcado por essas antinomias (bonsiepe 2011 p 25)

Essas ocorrecircncias natildeo se restringem somente a teorias das ciecircncias humanas e sociais (pe-

las proacuteprias caracteriacutesticas imanentes ao objeto dessas disciplinas que eacute indissociado da

complexidade do ser humano) mas encontram-se tambeacutem nas chamadas ciecircncias ldquodurasrdquo

como a fiacutesica quacircntica7 e a relativista

Assim para prosseguirmos com nosso objetivo eacute necessaacuterio avaliar em retrospecto

o que foi conquistado concordar pelo menos provisoriamente com duas construccedilotildees

teoacutericas e apostar em uma terceira elaboraccedilatildeo Esses passos podem ser sintetizados na

lista a seguir

1ordm A soluccedilatildeo de Kant para a antinomia do gosto nos domiacutenios da esteacutetica pode ser

questionada mas eacute construiacuteda com requisitos de razatildeo

2ordm A tese de Thierry de Duve transpondo a soluccedilatildeo kantiana da antinomia do gosto do

acircmbito do belo no seacuteculo xviii para o da arte contemporacircnea segue os operadores

kantianos

3ordm A tese de Thierry de Duve pode ser conduzida do acircmbito da arte contemporacircnea

para o campo do design

Portanto para avanccedilarmos eacute preciso aceitar que a foacutermula original kantiana ainda se

mostra adequada para pensar a questatildeo da subjetividade versus objetividade em disciplinas

como o design que preservam o subjetivo como parte central de seus fundamentos Mas

diante de pelo menos dois saltos conceituais devemos nos atentar para um questionamento

7 Ficaremos com apenas dois exemplos paradoxais na mecacircnica quacircntica sem recorrer ao ceacutelebre caso do Paradoxo epr (Einstein-Podolsky-Rosen) que eacute um desdobramento dessa teoria Um primeiro exemplo eacute o Princiacutepio de Complementaridade de Niels Bohr que aceita aspectos mutuamente exclu-dentes em niacutevel subatocircmico considerando-os ao mesmo tempo complementares Um segundo eacute o Princiacutepio de Incerteza de Werner Heisenberg (cujo nome jaacute aponta para um paradoxo) que derivou do formalismo quacircntico independentemente das relaccedilotildees de incerteza serem interpretadas como ligadas agraves alteraccedilotildees de condiccedilotildees produzidas pelo observador e seus instrumentos como queria inicialmente o proacuteprio Heisenberg ou serem caracteriacutesticas essenciais da mecacircnica quacircntica como acreditou Bohr (cassirer 1956)

125

de caraacuteter hermenecircutico eacute possiacutevel avanccedilar nas cadeias que se conectam por meio de uma

uacutenica foacutermula para compreender o belo a arte e o design

Nossa resposta a este tipo de inquiriccedilatildeo para justificar que podemos seguir em frente

eacute de que primeiramente um passo semelhante jaacute foi dado por Cardoso (capiacutetulo 2 p

103-104) quando de sua proposta para pensar o que caracteriza o design e que inter-

pretamos como uma dialeacutetica entre objetividade e subjetividade E essa dialeacutetica vem se

mostrando profiacutecua Em segundo um princiacutepio como o kantiano que busca validade

universal deve ser capaz de ultrapassar a provisoriedade heuriacutestica e se estabelecer como

lei Mas devemos ressaltar lei entendida como sempre passiacutevel de refutaccedilatildeo

318 A universalidade objetiva no design

Se como vimos no capiacutetulo 2 pensar a universalidade em seu caraacuteter epistecircmico leva

a conectaacute-la quase que invariavelmente com a objetividade seraacute possiacutevel encontrarmos

correspondecircncia desse par conceitual com o campo do design Ou seja o design faz uso

da universalidade objetiva ou conceitual analogamente ao que faz a ciecircncia Acreditamos

que sim mesmo que tal uso natildeo seja suficiente para categorizaacute-lo como ciecircncia Vamos

aos argumentos

Um primeiro argumento eacute de ordem histoacuterica jaacute sinalizado por Cardoso (1998) no

capiacutetulo 2 (p 102) Como uma disciplina jovem e derivada das ciecircncias sociais aplicadas

que busca fundamentos natildeo somente na sociologia antropologia e histoacuteria mas tambeacutem

em outras ciecircncias como a comunicaccedilatildeo e a psicologia e estreita cada vez mais suas re-

laccedilotildees com as ciecircncias naturais e exatas o design necessita de uma elaboraccedilatildeo discursiva

que amplie o diaacutelogo com seus pares E para isso eacute preciso evidentemente ter entre seus

pressupostos a universalidade e a objetividade natildeo somente para efetivar esse diaacutelogo

mas tambeacutem para construir suas bases metafiacutesicas Tais bases como vimos no capiacutetulo

1 desde o iniacutecio da modernidade satildeo formadoras de princiacutepios meacutetodos e criteacuterios que

ordenam novos campos de pesquisa mesmo que alguns desses campos natildeo almejem se

firmar enquanto ciecircncia

126

Exemplos dessas bases podem ser detectados nos departamentos e escolas de be-

las-artes e de muacutesica das universidades onde natildeo se cogita fazer ciecircncia em seu sentido

estrito Mas seus programas de poacutes-graduaccedilatildeo atuam com procedimentos cientiacuteficos ou

pelo menos com pressupostos metafiacutesicos tanto em seu aspecto teoacuterico para organizar

e ordenar seus meacutetodos de pesquisa quanto em seu caraacuteter pragmaacutetico para justificar e

receber as verbas8 de que necessitam como propor e executar projetos em parceria com

a iniciativa privada e com outras instituiccedilotildees

Indo aleacutem desses arranjos estruturais aos quais cada disciplina se adeacutequa existe um

segundo argumento na defesa da universalidade objetiva como imprescindiacutevel ao design

Ele estaacute expliacutecito na afirmaccedilatildeo recorrente de que o design natildeo pode prescindir da ideia

de conceito Essa ideia mesmo nos esquecendo dos pressupostos metafiacutesicos eacute inerente

aos processos que conduzem e ordenam qualquer projeto de design das fases iniciais de

concepccedilatildeo e planejamento agrave finalizaccedilatildeo e concretizaccedilatildeo do produto Ou seja o conceito

(equivalente agrave objetividade) estaacute tambeacutem na praacutetica desse campo

319 A universalidade subjetiva no design

Se aceitamos a universalidade objetiva nos territoacuterios da epistemologia e da gnoseologia

resta buscarmos confirmaccedilatildeo para a universalidade subjetiva Assim retomemos a ideia

contida na figura 22 na paacutegina 121 que representava a apropriaccedilatildeo feita por de Duve da

soluccedilatildeo kantiana para a arte contemporacircnea e faccedilamos a sua conduccedilatildeo para o design

Atentemos que essa dupla passagem vem da soluccedilatildeo de Kant para a antinomia sobre o

gosto nos domiacutenios da esteacutetica em que de Duve substitui o ldquoisto eacute belordquo pelo ldquoisto eacute arterdquo

e agora por nossa conta substituiacutemos ldquoisto eacute arterdquo pelo ldquoisto eacute designrdquo

8 A justificativa de Gui Bonsiepe apresentada no capiacutetulo 1 paacutegina 42 sobre o orccedilamento ser o motivo pelo qual algumas instituiccedilotildees de ensino se posicionam a favor da indistinccedilatildeo entre arte e design ob-viamente natildeo explica tudo acerca da defesa dessa indistinccedilatildeo No entanto no acircmbito da organizaccedilatildeo interna dessas instituiccedilotildees indica uma mescla do uso de argumentos administrativos de poliacutetica universitaacuteria juntamente com os de fundamentaccedilatildeo metafiacutesica

127

Ao substituirmos o ldquoisto eacute arterdquo pelo ldquoisto eacute designrdquo podemos colocar qualquer pro-

duto de design de nossa escolha no lugar do ldquoistordquo e endossar qualquer ideia de design que

escolhermos Se acreditarmos em um conceito de design (ideia de design determinado)

ele poderaacute ser contrariado pela ideia de qualquer outro designer Se entretanto nossa

doutrina eacute de gosto em seu sentido de convicccedilatildeo subjetiva (ideia de design indeterminado)

ela pode ser contrariada tanto pelos que natildeo compartilham de nosso gosto quanto pelos

que pensam que design natildeo eacute uma questatildeo de gosto A figura 23 representa a transferecircncia

da soluccedilatildeo kantiana para o design

Se concordarmos com essa transposiccedilatildeo ficam claros pelo menos dois pontos funda-

mentais Primeiro tanto a ideia de design determinado quanto a ideia de design indeter-

minado colocam o design em equivalecircncia com a arte e como consequecircncia eliminam

nossa primeira hipoacutetese inicial deste capiacutetulo de que a questatildeo da subjetividade versus

objetividade se transfere da arte e contamina o design de forma perifeacuterica Mas a trans-

posiccedilatildeo vai aleacutem da periferia Se por um lado o design enquanto campo tem uma histoacuteria

extremamente curta em relaccedilatildeo agrave da arte conectado agrave produccedilatildeo em seacuterie e agrave revoluccedilatildeo

industrial por outro alguns dos pressupostos que o animam (teacutecnicos artiacutesticos e cien-

tiacuteficos) caminham juntos desde suas origens gregas Deste modo cai por terra tambeacutem

a segunda hipoacutetese de contaminaccedilatildeo pela arte Resta-nos a terceira com a qual ficamos

a questatildeo da subjetividade versus objetividade eacute intriacutenseca ao design e suscita de modo

anaacutelogo ao que ocorre com a arte discussotildees sobre o estatuto ontoloacutegico do design

IDEIA DE DESIGN DETERMINADO

APROPRIACcedilAtildeO DA SOLUCcedilAtildeO KANTIANA PARA O DESIGN

doutrina de gosto contrariada por quem natildeo compartilha nossa opiniatildeo e por aqueles que pensam que design natildeo eacute questatildeo de opiniatildeo

isto eacute design endossa qualquer projeto e qualquer ideia de design

IDEIA DE DESIGN INDETERMINADO

Figura 23 Esquema da apropriaccedilatildeo e transferecircncia da resoluccedilatildeo da antinomia do gosto kantiana para o design fonte autor

128

Assim podemos dizer que aceitando-se a terceira hipoacutetese9 natildeo eacute possiacutevel pensar o

design como um campo com pretensotildees a se tornar ciecircncia pelo menos no modelo da

atualidade uma vez que a ideia de design determinado e a de design indeterminado apesar

de conduzirem a uma universalidade almejada pela ciecircncia contemplam e incorporam

tambeacutem o subjetivo Mas isso jaacute era previsiacutevel por dois motivos

1 O capiacutetulo 2 ao expor as posiccedilotildees de proeminentes autores como Maldonado Bon-

siepe Schneider Cardoso e Flusser que se movem entre as duas posiccedilotildees (determi-

naccedilatildeo e indeterminaccedilatildeo) jaacute indicava essas distintas perspectivas teoacutericas Mas faltava

explicitar tais estruturas com um procedimento como o da antinomia kantiana

2 A soluccedilatildeo original de Kant foi produzida para resolver um problema fora do acircmbito

da ciecircncia ou seja no campo da esteacutetica

Quanto agrave saiacuteda kantiana natildeo podemos nos esquecer que este autor atua de modo a

pensar soluccedilotildees dentro de um sistema mas separadamente a questatildeo do belo e a questatildeo

da ciecircncia Poreacutem no nosso caso ocorre uma mistura entre aspectos esteacuteticos artiacutesticos

teacutecnicos e epistecircmicos que tornam o design um campo de entendimento bastante com-

plexo De qualquer modo ser ou natildeo ser ciecircncia ou ser uma nova forma de ciecircncia natildeo

pode ser encarado como depreciativo como por exemplo a tradiccedilatildeo do platonismo

enfatiza O status ontoloacutegico do design ainda estaacute por se estabelecer mas sua relevacircncia

e significaccedilatildeo jaacute estatildeo garantidas em sua trajetoacuteria histoacuterica

Indo aleacutem existem algumas questotildees subjacentes ao que estamos tratando no mo-

mento mdash que seratildeo retomadas ao final da tese mdash e podem ser iluminadas com a ideia de

universalidade subjetiva no design Algumas perguntas nos guiam

bull Asinuacutemerasdefiniccedilotildeesdedesignaolongodesuacurtahistoacuteriaeaampliaccedilatildeode

seu campo de atuaccedilatildeo tecircm alguma relaccedilatildeo com a equivalente expansatildeo do universo

artiacutestico contemporacircneo

9 Corrobora empiricamente a terceira hipoacutetese de modo anaacutelogo ao procedimento de Duve com Green-berg e Kosuth uma conexatildeo com designers que possam se posicionar nos dois polos da antinomia kantiana Por exemplo podemos colocar de um lado a tradiccedilatildeo e o racionalismo de Alexandre Wollner e de outro o vanguardismo de Guto Lacaz

129

bull Asdificuldadesatuaisdeseestabelecerdefiniccedilotildeesparaodesignpodemserdevidasa

esse campo ter uma generalidade incipiente de autopromoccedilatildeo ou inerente e anaacuteloga

a disciplinas como a da filosofia

Do ponto de vista histoacuterico essas satildeo questotildees ainda muito proacuteximas de noacutes o que as

torna mais difiacuteceis de compreender e responder E por sua complexidade eacute bem provaacutevel

que as respostas a elas continuem a produzir paradoxos e outros raciociacutenios que aparentam

incompletude Mas essa incompletude nasce com as respostas ou pertence agrave essecircncia do design

Se o inacabado faz parte dessa essecircncia as palavras do escritor portuguecircs Fernando Pessoa

apontam um caminho que reforccedila a posiccedilatildeo kantiana ldquoNatildeo consigo evitar a aversatildeo que

tem o meu pensamento ao ato de acabarrdquo (pessoa sem data apud giannetti 2008

p 356) Para noacutes a forccedila dessa afirmaccedilatildeo revela menos da personalidade desse escritor e

mais da poacuteiesis artiacutestica Se natildeo pudermos admitir tal disposiccedilatildeo de espiacuterito no exerciacutecio

do design que pelo menos possamos apostar na incompletude como uma das possiacuteveis

chaves de interpretaccedilatildeo desse campo

32 Heidegger e o vieacutes ontoloacutegico na arte e no design

Pensemos nas comunidades cientiacuteficas e tecnoloacutegicas da atualidade e na sua forma de

atuaccedilatildeo Eacute a partir delas que a maioria dos campos de pesquisa e de trabalho tem seu

status estabelecido delimitado e regulado de acordo com os fundamentos teoacutericos e

pragmaacuteticos em que se baseiam Como sabemos eacute preciso que perante as comunidades

cientiacuteficas uma determinada disciplina se apresente com diversas credenciais de caraacuteter

gnoseoloacutegico e epistemoloacutegico conectadas agrave sua praacutetica efetiva para ser aceita no grupo

das ciecircncias e das teacutecnicas modernas

Deste modo em relaccedilatildeo ao design quando perguntamos sobre seu status especifica-

mente ontoloacutegico estamos procurando identificar elementos que possam garantir sua

validade enquanto disciplina dentro de uma dada concepccedilatildeo de realidade mesmo pres-

cindindo de uma fundamentaccedilatildeo epistecircmica O encaminhamento de caraacuteter ontoloacutegico

130

que apresentamos aqui propotildee um giro na questatildeo e possibilita reflexotildees sistemaacuteticas que

independem de anaacutelises calcadas em fundamentaccedilatildeo de caraacuteter cientiacutefico ou esteacutetico Tal

procedimento tem vantagens quando natildeo eacute possiacutevel estabelecer um viacutenculo direto entre

um determinado campo e as ciecircncias ou quando o viacutenculo deste campo com a esteacutetica

expotildee caracteriacutesticas do mesmo que dificultam uma possiacutevel conexatildeo com as ciecircncias

como ocorreu em nossa anaacutelise do design na seccedilatildeo 31

321 O giro em direccedilatildeo agrave ontologia

No design ocorre uma confluecircncia e um amaacutelgama entre aspectos esteacuteticos artiacutesticos

teacutecnicos e epistecircmicos que natildeo sucede de forma expliacutecita10 em campos onde a cientifi-

cidade natildeo eacute questionada Assim se por um lado o status ontoloacutegico do design ainda

estaacute por se firmar e por outro natildeo concordamos com uma hierarquia em que ciecircncia

estaacute no topo do saber e aliada agrave verdade nada melhor do que buscar em um autor con-

traacuterio a esse tipo de pensamento argumentos que possam contribuir para subsidiar a

fundamentaccedilatildeo ontoloacutegica desse campo Este autor no nosso entendimento eacute Martin

Heidegger um dos filoacutesofos que se insurge contra a tradiccedilatildeo do pensamento ocidental

de modo correlato ao que fez Nietzsche criticando ciecircncia e teacutecnica contrapondo essas

disciplinas agrave arte

Nosso propoacutesito eacute seguir o pensamento de Heidegger e explorar uma de suas ideias

fundamentais a de que a obra de arte estaacute associada agrave verdade e que contribui de forma

singular para a compreensatildeo da essecircncia dos utensiacutelios ldquodescortinandordquo uma dimensatildeo

ontoloacutegica dessa categoria de objetos Conforme afirma Heidegger em seu livro A origem

da obra de arte

10 No entanto mesmo em ciecircncias consideradas abstratas como a matemaacutetica podem existir preocu-paccedilotildees de caraacuteter natildeo estritamente formais Por exemplo quando duas respostas para determinada questatildeo satildeo encontradas a justificativa pela escolha da resposta mais simples ou com menor nuacutemero de etapas (tambeacutem entendida pelos matemaacuteticos como mais ldquofinardquo e ldquoeleganterdquo) natildeo poderia ser atri-buiacuteda a uma preocupaccedilatildeo esteacutetica se as duas soluccedilotildees forem equivalentes e igualmente precisas

131

A que domiacutenio pertence uma obra A obra instaura um certo domiacutenio ao qual pertence e que eacute aberto por ela mesma porque somente nessa abertura existe o seu ser-obra Dissemos que na obra se realiza o acontecer da verdade e exem-plificamos esse fato nos referindo ao quadro de Van Gogh Tratamos entatildeo de questionar sobre o sentido da verdade e sobre o seu acontecer (heidegger 1987 p 228)

O fato de que o texto de Heidegger explora expressotildees incomuns e ataca o problema

de modo inusitado pode dificultar neste primeiro momento o entendimento do essencial

oculta em toda a complexidade no discurso heideggeriano o que nos interessa e veremos

eacute a singular conexatildeo estabelecida por este pensador entre objetos artiacutesticos e objetos uacuteteis

Diante disso nossa hipoacutetese eacute de que na busca por fundamentaccedilatildeo aleacutem dos produ-

tos do design (especialmente os utensiacutelios e instrumentos) alcanccedilarem uma compreensatildeo

ampliada por esse modo de concepccedilatildeo da realidade o proacuteprio design pode caminhar

em direccedilatildeo a estabelecer seu status ontoloacutegico ao lado de outros campos jaacute delimitados

Voltando-nos para uma anaacutelise de nossos proacuteprios procedimentos o que faremos neste

ponto eacute atuar de modo correlato agrave seccedilatildeo anterior em que a apropriaccedilatildeo de um princiacutepio

kantiano mdash bem-sucedido em aclarar aspectos de sua investigaccedilatildeo acerca do belo mdash con-

duziu Tierry de Duve a uma proposta de alargamento das fronteiras do entendimento da

arte contemporacircnea e levou-nos posteriormente a adaptar o mesmo modelo estrutural

para o design

Pretendemos manter a mesma estrateacutegia de apropriaccedilatildeo agora com uma abordagem

de caraacuteter claramente ontoloacutegico e mediada pelas reflexotildees heideggerianas sobre a obra

de arte Utilizando-nos de tal modus operandi seguiremos desta vez apoiados principal-

mente nos estudos de Philippe Lacoue-Labarthe (1996) em busca de compreender mini-

mamente tanto a criacutetica de Heidegger agrave posiccedilatildeo platocircnica quanto agraves possiacuteveis conexotildees

natildeo declaradas de seu pensamento com alguns conceitos aristoteacutelicos A relevacircncia de

Lacoue-Labarte eacute tanto maior uma vez que como veremos este autor defende a tese da

concepccedilatildeo ontoloacutegica da miacutemesis tanto em Aristoacuteteles quanto em Heidegger Para tanto

dividimos a seccedilatildeo atual em trecircs toacutepicos

132

1 Pressupondo a criacutetica platocircnica agrave arte (exposta no capiacutetulo 2) ligada ao conceito de

miacutemesis apresentamos a oposiccedilatildeo de Heidegger a essa concepccedilatildeo

2 Avanccedilamos para a posiccedilatildeo de Heidegger que segundo Lacoue-Labarthe reelabora

o conceito de miacutemesis aristoteacutelico de modo natildeo expliacutecito na obra A origem da obra

de arte

3 Com esses elementos estabelecidos passamos a operar no registro do conceito hei-

deggeriano de obra de arte buscando comprovar nossa hipoacutetese (cf capiacutetulo 1 p 39)

sobre o design

322 A criacutetica a Platatildeo a arte natildeo eacute imitaccedilatildeo

Platatildeo no livro x do diaacutelogo A repuacuteblica (1987) ao criticar a arte tem como alvo a poesia

mas utiliza como um dos exemplos a pintura A poesia vem simplesmente aderida ao

argumento Se tal eacute a estrateacutegia platocircnica para a construccedilatildeo de seu discurso contra a arte

a de Heidegger no livro A origem da obra de arte (2004) toma o caminho contraacuterio em

favor da arte Numa oposiccedilatildeo frontal a Platatildeo Heidegger busca constituir uma ontologia

em que a arte ocupa uma posiccedilatildeo privilegiada ao mesmo tempo em que aponta a insu-

ficiecircncia dos conceitos metafiacutesicos originados no filoacutesofo ateniense para tratar o tema

Assim sendo seu caminho no texto tambeacutem eacute inverso Heidegger inicia com exemplos

da pintura e culmina com um de arquitetura

Ou seraacute que com a proposiccedilatildeo ldquoa arte eacute o pocircr-se-em-obra-da-verdaderdquo se pre-tende reanimar de novo aquela ideia em boa hora superada segundo a qual a arte seja uma imitaccedilatildeo e coacutepia do real A reproduccedilatildeo do que estaacute perante noacutes (Vorhandenen) requer aliaacutes a conformidade com o ente a adaptaccedilatildeo a este adaequatio diz a Idade Meacutedia ὁmicroοίωσις[11] diz Aristoacuteteles A conformidade com o ente vale de haacute muito como a essecircncia da verdade Mas seraacute que o que queremos dizer eacute que o quadro de Van Gogh copia um par de sapatos de cam-ponecircs que realmente estaacute aiacute e eacute uma obra porque consegue fazecirc-lo De modo nenhum (heidegger 2004 p 28)

11 Homoiosis (ὁmicroοίωσις) eacute transformaccedilatildeo de modo a tornar-se semelhante semelhanccedila similitude (ma-lhadas dezotti neves 2008 v 3 p 228)

133

Importa observar aqui que o fato de Heidegger levantar a questatildeo do conceito medieval

de adequaccedilatildeo e o de homoiosis (ὁmicroοίωσις) semelhanccedila em Aristoacuteteles natildeo significa que

ele esteja relacionando a concepccedilatildeo de imitaccedilatildeo ao pensamento aristoteacutelico Arte como

imitaccedilatildeo e coacutepia do real eacute uma concepccedilatildeo platocircnica e a criacutetica de Heidegger portanto estaacute

dirigida a Platatildeo Para Heidegger o imitar no sentido de copiar natildeo explica o processo

constituinte de uma obra de arte Mais agrave frente ele afirma

Fazemos agora a pergunta sobre a verdade em vista da obra Para que todavia nos possamos familiarizar com o que estaacute em questatildeo eacute necessaacuterio tornar de novo visiacutevel o acontecimento da verdade da obra Para esta tentativa escolhemos uma obra que natildeo[12] se conta entre as obras arquitectoacutenicas Um edifiacutecio um templo grego natildeo imita nada Estaacute ali simplesmente erguido nos vales entre os rochedos (heidegger 2004 p 32) Negrito nosso

Dado que Heidegger se recusa a pensar a imitaccedilatildeo em termos platocircnicos vamos nos

apoiar na tese de Lacoue-Labarthe sobre uma mimetologia de sua interpretaccedilatildeo da arte

Nas palavras de Lacoue-Labarthe

[] apesar da criacutetica radical agrave qual ele [Heidegger] submete todos os conceitos da esteacutetica inclusive o conceito de miacutemesis apesar da sua desconstruccedilatildeo sem resto da esteacutetica a interpretaccedilatildeo que Heidegger propotildee da arte eacute fundamentalmente uma mimetologia Eacute certo que jaacute o lembrei antes Heidegger recusa a palavra ele afasta com o maior desprezo um desprezo aliaacutes estranhamente platocircnico e filosoacutefico toda consideraccedilatildeo da ldquoimitaccedilatildeordquo e vocecircs sabem que se o exemplo maacuteximo em ldquoA Origem da Obra de Arterdquo eacute um templo eacute porque ldquoo templo natildeo eacute feito agrave imagem de nadardquo Dito isso o que ele recusa exatamente com esta pala-vra Muito explicitamente mas tambeacutem muito paradoxalmente a interpretaccedilatildeo platocircnica da miacutemesis ou seja mdash refiro-me ainda a uma passagem da Introduccedilatildeo de 35 mdash a miacutemesis compreendida a partir da idea em si mesma pensada como paradigma ou como modelo sob o horizonte da aletheia interpretada em termos de adequaccedilatildeo ou de homoiosis Ora isso natildeo impede absolutamente a tese que concerne a arte de ser a reelaboraccedilatildeo jamais abertamente apresentada como

12 A frase ldquoPara esta tentativa escolhemos uma obra que natildeo se conta entre as obras arquitectoacutenicasrdquo na traduccedilatildeo de Maria da Conceiccedilatildeo Costa (Ediccedilotildees 70) parece contradizer a frase seguinte em que Heidegger remete a um templo grego Na traduccedilatildeo da Revista Kriterion em lugar de ldquoarquitectoacutenicasrdquo encontra-se ldquorepresentativasrdquo o que torna coerente o argumento de Heidegger No entanto a traduccedilatildeo da Kriterion natildeo utiliza o verbo imitar mas sim reproduzir ldquoUma obra de arquitetura mdash um templo grego mdash nada reproduz []rdquo (heidegger 1987 p 228) Esse foi o motivo pelo qual escolhemos a citaccedilatildeo das Ediccedilotildees 70

134

tal mas tambeacutem nunca totalmente dissimulada da concepccedilatildeo aristoteacutelica da particcedilatildeo entre phusis e techne isto eacute da concepccedilatildeo ontoloacutegica da miacutemesis fazer da arte no combate (o polemos) entre terra e mundo (ou em Soacutefocles dike e techne) que eacute o proacuteprio combate do einai e do noein inaugural do pensamento ocidental o suplemento e ateacute mesmo o traccedilo ou o arqui-traccedilo originariamente suplementar e desvelador com respeito agrave proacutepria phusis (ao ser do ente) fazer da arte aquilo de que a phusis precisa para aparecer como tal eacute mdash num outro niacutevel de profundidade mdash repetir o que diz Aristoacuteteles da miacutemesis enquanto o que ldquoleva a termordquo o que a phusis por si mesma natildeo pode ldquoefetuarrdquo (lacoue-labarthe 1996 p 154-155) Negrito nosso

Esse longo trecho oferece-nos um olhar e uma nova possibilidade tanto porque natildeo

abre matildeo da oposiccedilatildeo que Heidegger faz agrave tradiccedilatildeo platocircnica mas ao mesmo tempo

reforccedila a posiccedilatildeo de Lacoue-Labarthe a partir do pensamento aristoteacutelico de uma ldquocon-

cepccedilatildeo ontoloacutegica da miacutemesisrdquo natildeo entendida como simples imitaccedilatildeo ou coacutepia Sigamos

portanto Heidegger em busca desse caminho para explicitar a proposta Labartheana

323 Poacuteiesis como produccedilatildeo phyacutesis como terra e teacutekhne como mundo

Lembrando o que tratamos no capiacutetulo 2 a produccedilatildeo mais geral poacuteiesis (ποίησις) ao atuar

como forccedila da natureza eacute delimitada como phyacutesis (φύσις) modalidade de produccedilatildeo que

se faz a partir de si mesma Um exemplo de phyacutesis eacute a transformaccedilatildeo de uma semente em

aacutervore ou como Heidegger afirma em A questatildeo da Teacutecnica ldquo[]noadventodaflorao

florescer[]rdquo(heidegger 2007 p 379) Poacuteiesis pode ser tambeacutem teacutekhne (τέχνη) mo-

dalidade de produccedilatildeo que ocorre natildeo a partir de si mesma mas a partir de outro Teacutekhne eacute

arte manual induacutestria ofiacutecio e tem por princiacutepio natildeo o fazer mas principalmente o saber

fazer a habilidade o meacutetodo o artifiacutecio o conhecimento teoacuterico que suporta uma atividade

Lacoue-Labarthe associa o conceito de teacutekhne ao conceito heideggeriano de mundo

e o conceito de phyacutesis ao de terraconformeafigura24ldquo[]atesequeconcerneaarte

deserareelaboraccedilatildeo[]daconcepccedilatildeoaristoteacutelicadaparticcedilatildeoentrephusis e techne isto

eacute da concepccedilatildeo ontoloacutegica da miacutemesis fazer da arte no combate (o polemos) entre terra

emundo[]rdquo(lacoue-labarthe 1996 p 155) Nas palavras de Heidegger

135

Aquilo em direccedilatildeo ao qual a obra se retrai permitindo que ela ressurja desse proacuteprio retraimento chamamos a Terra (die Erde) Ela estaacute sempre eclodindo de sua proacutepria reserva A terra eacute o impulso silencioso e infatigaacutevel do que eacute gratuito Sobre a Terra e na Terra o homem histoacuterico funda a sua morada no mundo Quando apresenta um mundo a obra produz (revela) a Terra Produzir deve ser pensado aqui em sentido rigoroso A obra move e manteacutem a proacutepria Terra no aberto de um mundo A obra tem o poder de fazer a Terra tornar-se Terra (heidegger 1987 p 234)

Mesmo que Heidegger ao trabalhar os conceitos de Terra e Mundo volte-se apenas

para o pensamento grego antigo sem pensar especificamente em Aristoacuteteles mas talvez

animado pelo pensamento anterior de Heraacuteclito a interpretaccedilatildeo de Lacoue-Labarthe estaacute

bem costurada e estabelecida Na traduccedilatildeo da Revista Kriterion o asterisco da citaccedilatildeo

anterior (associado agrave palavra produzir) envia para a seguinte nota da tradutora Maria Joseacute

R Campos que segue a mesma via interpretativa de Lacoue-Labarthe

PRODUCcedilAtildeO (poacuteiesis)

Phyacutesis Teacutekhne

CONCEPCcedilAtildeO GREGA DE PRODUCcedilAtildeOCRIACcedilAtildeO

PRODUCcedilAtildeO DA NATUREZA A PARTIR DE SI MESMA PRODUCcedilAtildeO A PARTIR DE OUTRO

Terra Mundo

CONCEPCcedilAtildeO DE HEIDEGGER CORRELATA Agrave PHYacuteSIS E TEacuteKHNE GREGAS

Figura 24 Representaccedilatildeo da associaccedilatildeo entre os conceitos gregos de Phyacutesis e Teacutekhne e os conceitos hei-deggerianos de Terra e Mundo fonte autor

136

Produzir executar significa em alematildeo herstellen Mas em Heidegger a palavra possui aqui um sentido especial Aleacutem de produzir significando fazer qualquer coisa de qualquer mateacuteria (produccedilatildeo artesanal) a palavra tambeacutem pode indicar manifestar demonstrar revelar o que soacute acontece na obra de arte Aiacute a mateacuteria ainda que utilizada natildeo eacute jamais utilizada a serviccedilo da utilidade da obra Na obra de arte herstellen possui o sentido de trazer agrave superfiacutecie o que estaacute oculto trazer agrave luz o sombrio manifestar o que estaacute em reserva A palavra possui em Heidegger um sentido semelhante ao de herausstellen colocar para (fora) A obra de arte revela traz agrave superfiacutecie o que haacute de mais profundo na realidade material ela revela a Terra a physis dos gregos (heidegger 1987 p 234-235) Nota da tradutora

Para compreender plenamente o significado da citaccedilatildeo anterior e da relevacircncia

do conceito de produccedilatildeo (poacuteiesis) em seus desdobramentos a partir da arte em pos-

sibilidades para o acircmbito do design eacute necessaacuterio passarmos em revista o modo como

Heidegger entende o problema da cisatildeo entre ciecircncia teacutecnica e arte na modernidade Eacute

o que analisaremos a seguir

324 Os trecircs modos de produccedilatildeo e sua influecircncia sobre o design

Tendo em conta a importacircncia do conceito de produccedilatildeo para a constituiccedilatildeo do pensamento

heideggeriano torna-se compreensiacutevel que esse autor use-o de forma recorrente em suas

reflexotildees Na verdade como veremos Heidegger entende as categorias de ciecircncia teacutecni-

ca e arte em conexatildeo com o mundo grego como trecircs modalidades de produccedilatildeo Como

afirma o filoacutesofo brasileiro Fernando Mendes Pessoa

Heidegger caracteriza a produccedilatildeo o pocircr-se em obra do real como desencobri-mento com o verbo stellen ldquopocircrrdquo estabelecendo uma distinccedilatildeo entre essas trecircs modalidades produtivas a partir do acreacutescimo de trecircs partiacuteculas diferentes a esse verbo ele caracteriza a produccedilatildeo cientiacutefica de Vor-stellen a produccedilatildeo tecnoloacutegica de Ge-stellen e a produccedilatildeo artiacutestica de Her-stellen mdash termos que para manter uma analogia na liacutengua portuguesa poderiacuteamos traduzir como pro-pocircr com-pocircr e ex-pocircr (no sentido de produzir criar) (pessoa 2009 p 195)

137

Em primeiro lugar para Heidegger a ciecircncia como um dos modos de produccedilatildeo do

real eacute o propor de uma teoria do real E na modernidade esse ldquorealrdquo se funda na concepccedilatildeo

de causa e efeito noccedilatildeo cara a filoacutesofos e cientistas desde esse periacuteodo ateacute a atualidade O

princiacutepio de causalidade eacute um recurso eficiente na descriccedilatildeo e previsatildeo de fenocircmenos o

que leva a ciecircncia a partir da modernidade seduzida por esse poder preditivo a concen-

trar-se cada vez mais em questotildees voltadas para o como os eventos se datildeo ao inveacutes de porque

eles ocorrem Natildeo eacute sem razatildeo que Descartes e toda a tradiccedilatildeo que vem em seguida de

pensadores cientistas e teoacutericos incluindo na atualidade os do design13 a favor ou contra

o cartesianismo reportam-se sempre ao Princiacutepio de Causalidade seja para reafirmar ou

criticar esse conceito como um ponto nodal para a compreensatildeo da realidade Como

afirma Heidegger em Ensaios e conferecircncias (Ciecircncia e pensamento do sentido)

A ciecircncia potildee o real E o dispotildee a propor-se num conjunto de operaccedilotildees e pro-cessamentos isto eacute numa sequumlecircncia de causas aduzidas que se podem prever Desta maneira o real pode ser previsiacutevel e tornar-se perseguido em suas conse-quumlecircncias Eacute como se assegura do real em sua objetidade [sic] Desta decorrem domiacutenios de objetos que o tratamento cientiacutefico pode entatildeo processar agrave vontade (heidegger 2012 p 48)

A criacutetica de Heidegger se insurge contra toda uma tradiccedilatildeo a partir de Platatildeo que

segundo esse pensador propotildee uma realidade coisificada em que homem e mundo satildeo

compreendidos como separados em sujeito cognoscente e objeto a se conhecer Em outras

palavras sujeito e objeto dos quais tratamos no capiacutetulo 2 e que para Heidegger estatildeo

problematicamente cindidos por uma teoria de ldquocausas aduzidasrdquo

13 Maldonado (2012) a propoacutesito de pensar a teacutecnica em suas relaccedilotildees com a sociedade usando o exemplo de um dos seus produtos mdash os oacuteculos mdash argumenta em favor dos conceitos de causa e efeito ldquoNatildeo se pode desprezar o fato de que os conceitos de causa e de agente tecircm uma notoacuteria e longa tradiccedilatildeo no pensamento filosoacutefico Basta pensar na doutrina aristoteacutelica das lsquoquatro causasrsquo e nas complexas construccedilotildees conceituais da escolaacutestica medieval sobre as relaccedilotildees de causa e efeito E ainda os sofis-ticados quebra-cabeccedilas loacutegico-epistemoloacutegicos da moderna filosofia da ciecircncia sobre esse assuntordquo (maldonado 2012 p 176) Em seguida associando causa e efeito agrave metaacutefora de ldquoempurrarrdquo e ldquopuxarrdquo entre a teacutecnica e a sociedade esse autor mostra como a questatildeo eacute ainda mais complexa ao explorar o conceito de causalidade circular ldquoNo tema que estamos discutindo a questatildeo da circularidade natildeo pode ser ignorada Para continuarmos na metaacutefora se eacute verdade que em uma certa fase eacute de fato a teacutecnica que empurrou e a sociedade que puxou eacute tambeacutem verdadeiro que em uma fase precedente foi a sociedade que empurrou e a teacutecnica que puxourdquo (maldonado 2012 p 177)

138

Em segundo a teacutecnica eacute o compor do real em sua exploraccedilatildeo Ou seja a teacutecnica a

partir da modernidade busca disponibilizar a natureza em seu propoacutesito dominando-a

e explorando-a Nas palavras de Heidegger

O desencobrimento que domina a teacutecnica moderna possui como caracteriacutestica o pocircr no sentido de explorar (Herausforderung) Esta exploraccedilatildeo se daacute e acon-tece num muacuteltiplo movimento a energia escondida na natureza eacute extraiacuteda o extraiacutedo vecirc-se transformado o transformado estocado o estocado distribuiacutedo o distribuiacutedo reprocessado (heidegger 2012 p 20)

Esse segundo modo de produccedilatildeo de exploraccedilatildeo energeacutetica do real segundo Hei-

degger eacute distinto do primeiro e torna o sujeito e o objeto da ciecircncia respectivamente forccedila

de trabalho e mateacuteria prima no acircmbito da teacutecnica Maldonado (2012) aponta que essa

preocupaccedilatildeo de Heidegger em relaccedilatildeo a esse disponibilizar e controlar que eacute pretendido

pela teacutecnica jaacute se manisfesta no livro Ser e Tempo (Sein und Zeit) obra anterior agrave Ciecircncia

e pensamento do sentido

No tom elevado que distingue seu estilo de raciociacutenio ele [Heidegger] examina a pretensatildeo (proacutepria e de outros) de querer ldquocontrolar espiritualmente a teacutecnicardquo Em resumo de querer submetecirc-la dominaacute-la Em Sein und Zeit (1927) Heidegger jaacute havia analisado as sutis implicaccedilotildees ontoloacutegicas do querer ldquocontrolarrdquomdash sem referir-se explicitamente agrave teacutecnica mdash quando introduziu a sua famosa distinccedilatildeo entre o modo de ser ldquoutilizaacutevelrdquo ldquopraacuteticordquo (Zuhandenheit) e o modo de estar

ldquopresenterdquo ldquoagrave disposiccedilatildeordquo (Vorhandensein) (maldonado 2012 p 154)

Diante da gravidade da criacutetica de Heidegger aos modos de produccedilatildeo da ciecircncia e

da teacutecnica diversas tecircm sido as apropriaccedilotildees de seus argumentos em prol de uma maior

atenccedilatildeo e precauccedilatildeo aos desdobramentos desses dois campos A discussatildeo sobre a impos-

sibilidade de neutralidade da ciecircncia e da teacutecnica as consequecircncias nefastas de se separar

sujeito e objeto e de ver o homem e a natureza a serviccedilo de um sistema de produccedilatildeo satildeo

apenas algumas das diversas questotildees que apontam para uma dimensatildeo catastroacutefica de

nossa sociedade contemporacircnea e na qual podemos sem duacutevida incluir reflexotildees sobre o

papel e a responsabilidade do design Flusser como vimos segue essa linha de raciociacutenio

Mas por outro lado pensando em todos os benefiacutecios gerados pela ciecircncia e pela

teacutecnica podemos e devemos recusar esses modos de produccedilatildeo que por milhares de anos

foram se constituindo e garantindo a formaccedilatildeo de nossa civilizaccedilatildeo levando-nos ateacute onde

139

chegamos Heidegger tem plena consciecircncia da importacircncia da ciecircncia e da teacutecnica e

natildeo as recusa simplesmente Sua intenccedilatildeo eacute (compreendendo que a ciecircncia e a teacutecnica

nos fazem construir uma visatildeo da realidade empobrecida e atuar de forma exploratoacuteria

voltada para a dominaccedilatildeo) procurar um modo de produccedilatildeo que resgate para o ser humano

o habitar do mundo em um sentido mais digno e responsaacutevel E esse modo segundo ele

se encontra na arte

Em terceiro portanto Heidegger estabelece a arte como o modo de expor o real em

sua liberdade Em uma passagem de A origem da obra de arte Heidegger explicita tal

produccedilatildeo atraveacutes da anaacutelise de uma pintura de Van Gogh

Aiacute estatildeo os sapatos sejam eles de que tipo forem com as solas e a pala de cou-ro percorridas pelas costuras e os pregos Seu material e sua forma variam de acordo com sua finalidade trabalhar danccedilar etc Tudo isto apenas reforccedila o que jaacute sabemos o ser do instrumento enquanto tal consiste em servir para alguma coisa Mas seraacute esta a realidade essencial do instrumento Natildeo devemos exploraacute-la melhor A camponesa usa seus sapatos na terra lavrada pois eacute aiacute que os sapatos satildeo o que realmente satildeo Quanto menos atenccedilatildeo a camponesa dedica a eles em seu trabalho mais eles se prestam ao serviccedilo de alguma coisa mais correspondem ao seu ser Dessa forma estaremos nos afastando sensivelmente do ser do instrumento se apenas nos detivermos em sua representaccedilatildeo geral ou na imagem desse quadro perdida no vazio onde os sapatos estatildeo desligados da ideacuteia de algueacutem que os possa estar usando [] No entanto natildeo eacute soacute isto

Observemos as sombras da abertura de seu interior jaacute gasto onde se esboccedila a fadiga do andar laborioso e eis que percebemos os passos rudes pesados e fa-tigados do camponecircs que sob um vento avassalador imprime com sua marcha lenta grandes e monoacutetonos sulcos na terra lavrada No couro engordurado pela terra feacutertil e negra e nas duas solas imoacuteveis desliza a solidatildeo dos vastos espaccedilos das tardes do campo No par de sapatos eclode o secreto apelo da Terra o cuidado pelo patildeo de cada dia na promessa do trigo as auroras glaciais as tardes enigmaacuteticas agrave espreita do inverno Atraveacutes desse instrumento o cam-ponecircs experimenta o exerciacutecio pela sobrevivecircncia da doce espera do filho que retorna agrave casa a alegria de sentir a vida o cuidado de temer a morte Se o par de sapatos eacute propriedade da Terra em sua dignidade tranquumlilidade e seguranccedila o mundo do camponecircs o resguarda Eacute o proacuteprio ser do instrumento que emerge dessa propriedade resguardada pois sob esse gesto de proteccedilatildeo ele repousa em si mesmo (heidegger 1986 p 205-206)

140

Foi necessaacuterio apresentar essa longa e instigante passagem com trechos sempre

referenciados por comentadores e especialistas de Heidegger para colocar claramente

a relevacircncia da obra de arte indo aleacutem do universo artiacutestico A obra de arte torna-se

subsidiaacuteria da compreensatildeo do utensiacutelio um tipo de ldquoenterdquo cujo entendimento natildeo se

esgota em sua utilidade O caraacuteter poeacutetico que Heidegger empresta ao texto demonstra

como um filoacutesofo desta envergadura eacute capaz de atuar no sentido de conduzir o leitor ul-

trapassando os argumentos da pura reflexatildeo sistemaacutetica Isso porque para Heidegger a

essecircncia dos instrumentos e utensiacutelios em seu significado mais profundo e sua dimensatildeo

ontoloacutegica se mostra com mais vigor a partir de nossa experiecircncia e fruiccedilatildeo da obra de

arte Conforme as palavras de Virginia Figueiredo

Eacute no sentido de uma ldquopromoccedilatildeo ontoloacutegicardquo da qual falava Arthur Danto ou de uma reversatildeo do platonismo que tento ler o famoso ensaio de Heidegger Assim retomando os resultados da ceacutelebre anaacutelise aiacute contida sobre o quadro de Van Gogh acho que se pode concluir que os sapatos no quadro mdash dizendo enfaticamente a imagem pictoacuterica dos sapatos de Van Gogh mdash exatamente porque escapam da utilidade possuem um valor ontoloacutegico muitas vezes supe-rior a qualquer sapato da realidade Satildeo os sapatos do quadro de Van Gogh que nos tornam aptos a retornando agrave experiecircncia cotidiana atribuir algum sentido a ela Satildeo os sapatos pictoacutericos que ldquosalvamrdquo do naufraacutegio do afogamento da cotidianidade os sapatos reais (figueiredo 2005 p 454-455)

Do nosso ponto de vista o discurso heideggeriano nos serve a um propoacutesito que

contribui para a formaccedilatildeo de uma consciecircncia da produccedilatildeo no acircmbito do design Sua anaacute-

lise resgata um modo de compreensatildeo das categorias de objetos que satildeo especificamente

utensiacutelios e instrumentos mas cuja utilidade eacute apenas um dos seus aspectos constituintes

Ao contraacuterio do que poderia parecer e isso eacute de suma importacircncia para nosso argumento

tais objetos a partir de um olhar proporcionado pelo modo de produccedilatildeo da arte natildeo se

desvalorizam ou se rebaixam pois natildeo satildeo apenas utilitaacuterios forjados pela teacutecnica subsi-

diaacuteria da ciecircncia Tais entes passam a carregar uma dimensatildeo ontoloacutegica que nos potildee em

contato com o mundo e com a natureza em uma relaccedilatildeo que natildeo eacute nem de conhecimento

nem de exploraccedilatildeo ou em outras palavras nem de ciecircncia nem de teacutecnica Neste sentido

as palavras de Maria Joseacute R Campos corroboram a posiccedilatildeo heideggeriana de que a arte

141

natildeo somente tem assegurado seu proacuteprio status ontoloacutegico como tambeacutem contribui de

modo fundamental para a compreensatildeo dos objetos utilitaacuterios

[] a arte possui ainda o poder de revelar que as coisas natildeo se esgotam na sua instrumentalidade pois que sua essecircncia permanece aqueacutem dos nossos projetos utilitaacuterios a arte torna manifesto o ser-instrumento do par de sapatos de campo-necircs pintado por Van Gogh A verdade das coisas natildeo se fundamenta pois senatildeo na significaccedilatildeo no sentido projetado (heidegger 1987 p 188 - Apresentaccedilatildeo)

E se a apreciaccedilatildeo das obras de arte nos leva a perceber esses outros significados talvez

tambeacutem contribua para nos colocar em uma relaccedilatildeo com os objetos do design que natildeo

seja somente de mero uso exploraccedilatildeo acumulaccedilatildeo e consumo

325 O design aleacutem da instrumentalidade e da utilidade

Diante do percurso empreendido satildeo necessaacuterias algumas consideraccedilotildees Em primeiro

lugar atentos ao contexto mais geral da discussatildeo de cunho ontoloacutegico se nossa sociedade

se estabeleceu de modo a dar a primazia ao arcabouccedilo gnoseoloacutegico e epistemoloacutegico e

seus desdobramentos cientiacutefico-tecnoloacutegicos natildeo podemos nos esquecer que este modo

de compreender a realidade tem suas vantagens mas cobra como vimos um preccedilo alto

Este eacute o alerta que permeia o discurso heideggeriano

Se Heidegger repete seus argumentos em diversas obras talvez seja porque ele tem

plena consciecircncia do quanto estamos acostumados a uma ideia de verdade apoiada em

bases cientiacuteficas E se essa ideia eacute um construto mental existem modos distintos de enten-

dimento como ele nos sugere que podem levar-nos a possibilidades ainda natildeo imaginadas

Mas podemos tambeacutem questionar Heidegger sobre o fato de ele trocar uma verdade por

outra De qualquer modo existe um risco pelo menos no acircmbito das teorias cientiacuteficas

da verdade se confundir com a essecircncia pois a doutrina essencialista tem seacuterias limita-

ccedilotildees O essencialismo eacute a concepccedilatildeo que postula que as verdadeiras teorias descrevem

as essecircncias das coisas Se for assim o cientista pode estabelecer a verdade destas teorias

Karl Popper no entanto eacute contraacuterio agrave essa concepccedilatildeo e apresenta uma incisiva criacutetica ao

142

essencialismo em seu livro Conjecturas e refutaccedilotildees (1972) Para Popper toda teoria eacute uma

hipoacutetese (conjectura) e natildeo conhecimento indubitaacutevel ldquoEstou plenamente de acordo

emqueasteoriasnatildeooferecemnenhumacerteza(quesemprepodemserrefutadas)[]rdquo

(popper 1972 p 139) Traduccedilatildeo nossa Popper natildeo eacute contra a busca do que ainda estaacute

oculto mas eacute contra a doutrina de que a ciecircncia tende agraves explicaccedilotildees uacuteltimas Em outras

palavras no acircmbito da teoria precisamos realmente de explicaccedilotildees uacuteltimas No nosso

entendimento buscaacute-las eacute como ir atraacutes de uma quimera e nos bastaria uma ontologia

soacutebria para apoiar a construccedilatildeo de teorias que nos ajudem a compreender as produccedilotildees

humanas Ateacute onde podemos ver um programa dessa magnitude mesmo abrindo matildeo

da essecircncia jaacute eacute extremamente ambicioso

Em segundo lugar outra consideraccedilatildeo em acircmbito especiacutefico eacute a de reafirmarmos

a posiccedilatildeo assumida no iniacutecio da tese de natildeo simplesmente submeter a fundamentaccedilatildeo

ontoloacutegica agraves exigecircncias gnoseoloacutegicas epistemoloacutegicas e esteacuteticas Tal proposiccedilatildeo eacute

estabelecida em dois sentidos De um lado na ampliaccedilatildeo do entendimento sobre os

objetos do design indicando um caminho a seguir aleacutem de sua instrumentalidade e uti-

lidade De outro na proposta alternativa para a compreensatildeo de algumas caracteriacutesticas

do design em sua relaccedilatildeo com a arte Apostando nesta seara eacute preciso avanccedilar em torno

de elementos que natildeo sejam estanques como os da ciecircncia e da teacutecnica criticados por

Heidegger Os conceitos aristoteacutelicos cumprem este objetivo conforme investigaremos

no proacuteximo capiacutetulo

143

4 OS CONCEITOS ARISTOTEacuteLICOS NO DESIGN E NA ARTE

Como verificamos no capiacutetulo anterior a construccedilatildeo da via ontoloacutegica possibilita avanccedilar

na compreensatildeo das relaccedilotildees entre design e arte sem precisarmos abrir matildeo da subjetivi-

dade e da incompletude no design ao mesmo tempo em que podemos prescindir de uma

credencial especificamente epistemoloacutegica Mas existe um ganho adicional nessa estrateacutegia

ao qual jaacute haviacuteamos nos referido na Introduccedilatildeo se o vieacutes ontoloacutegico iniciado por Platatildeo

em sua criacutetica agrave arte mimeacutetica eacute uma espeacutecie de fio condutor que facilita a aproximaccedilatildeo dos

autores com o seu tema o giro da epistemologia e da esteacutetica agrave ontologia coloca-nos agora

na mesma circunscriccedilatildeo desses investigadores Deste modo ao finalmente contrapormos

o pensamento de Aristoacuteteles ao de Platatildeo e transitarmos pelos seus conceitos apoiados

nos demais autores procedemos tendo um viacutenculo coerente entre todos

Na primeira seccedilatildeo deste capiacutetulo a estrateacutegia de abordagem metodoloacutegica que se-

guimos entre Aristoacuteteles e Platatildeo eacute comparativa e obviamente sincrocircnica Colocamos em

relevo as posiccedilotildees de cada um deles principalmente em trecircs obras (A repuacuteblica de Platatildeo

A poeacutetica e A fiacutesica de Aristoacuteteles) privilegiando e revelando a questatildeo da miacutemesis Como

apoio a estes textos centrais fazemos uso das anaacutelises de historiadores da filosofia como

Werner Jaeger e Claacuteudio Veloso e do filoacutesofo Philippe Lacoue-Labarthe e dos comentaacuterios

de traduccedilatildeo do helenista Eudoro de Souza da filoacutesofa Virginia Figueiredo e do linguista

e tradutor Joatildeo Camillo Penna

Na segunda seccedilatildeo a abordagem eacute diacrocircnica nossa confianccedila neste procedimento

eacute a da possibilidade de atualizar o conceito de miacutemesis e deslocaacute-lo de sua funccedilatildeo e objetos

originais ou seja aplicaacute-lo no campo do design e na arte Como vimos este tipo de con-

duta na verdade tem sido praacutetica comum a diversos pesquisadores ao longo da histoacuteria

do pensamento ocidental com a apropriaccedilatildeo (fundamentada ou natildeo) dos mais diversos

conceitos como instrumentos para alcanccedilar fins que extrapolam seu propoacutesito original

Na terceira e uacuteltima seccedilatildeo mantemos a abordagem diacrocircnica em relaccedilatildeo ao conceito

de fim em si mesmo o discurso persuasivo epidiacutectico e o discurso aberto entrelaccedilando as

concepccedilotildees de Aristoacuteteles Danto Nietzsche e Eco agraves nossas proacuteprias em uma proposta

complementar agrave aplicaccedilatildeo da miacutemesis

144

41 O fundamento ontoloacutegico do conceito de miacutemesis

Criatividade sempre foi uma palavra associada ao design Isto torna-se mais evidente

quando ao voltar nosso olhar para o passado atentamos para o fato de que a proacutepria

palavra inglesa design estaacute ligada em sua origem latina a desiacutegnio intenccedilatildeo propoacutesito

cujos sentidos acompanham em nossa tradiccedilatildeo cultural os diversos significados de cria-

ccedilatildeo E sendo criatividade uma palavra derivada de criaccedilatildeo o ciacuterculo se fecha e justifica tais

conexotildees entre conceitos O problema com essa descriccedilatildeo (representada no lado esquerdo

da figura 25) eacute que apesar de conectar elementos fundamentais na verdade natildeo esclarece

sobre o que motiva e anima essas conexotildees E mesmo considerando que tal estrutura natildeo

eacute explicativa mas somente descritiva tal concepccedilatildeo elaborada em pesquisa preacutevia1 natildeo

explicita o elemento que atua como mediador entre os trecircs termos Assim aprimorando

essa descriccedilatildeo o que propomos a seguir eacute pensar a miacutemesis metaforicamente como um

substrato onde a criatividade a criaccedilatildeo e o design estatildeo imersos e portanto conectados

por meio desse elemento conceitual (lado direito da figura 25)

Faccedilamos novamente um recuo nos deslocando do acircmbito do design e refletindo

sobre a questatildeo originaacuteria da produccedilatildeocriaccedilatildeo em seus aspectos gerais Se entendemos

o esforccedilo de construccedilatildeo do arcabouccedilo platocircnico como uma tentativa de compreender

o que subjaz agrave criaccedilatildeo em seu sentido amplo (poacuteiesis phyacutesis teacutekhne e episteacuteme) por que

1 A descriccedilatildeo do ciacuterculo criativo e a parte esquerda da figura 25 foram publicadas no artigo O conceito aristoteacutelico de miacutemesis aplicado ao processo criativo em design (silva silva 2013)

CIacuteRCULO CRIATIVO METAacuteFORA DA MEDIACcedilAtildeO

CRIATIVIDADEuma palavra unida intrinsecamente ao DESIGN

DESIGN palavra inglesa associada em sua origem latina a desiacutegnio intenccedilatildeo propoacutesito cujos sentidos acompanham em nossa tradiccedilatildeo cultural os diversos significados de CRIACcedilAtildeO

CRIACcedilAtildeOor igem da palavraCRIATIVIDADE

MIacuteMESIS

CRIACcedilAtildeO DESIGN

CRIATIVIDADE

Figura 25 Diagramas das conexotildees entre os conceitos de criatividade criaccedilatildeo e design As setas em ciacuterculo indicam que natildeo existe um ponto inicial ou final mas apenas circularidade entre os conceitos fonte autor

145

natildeo aplicar esse modelo aos nossos propoacutesitos Porque como vimos a teoria platocircnica

cinde e hierarquiza as aacutereas do conhecimento de nosso interesse desvalorizando ontolo-

gicamente a arte e a miacutemesis elementos essenciais para a nossa proposiccedilatildeo No entanto

Aristoacuteteles tendo agrave sua disposiccedilatildeo os mesmos recursos conceituais caminha em sentido

oposto ao de Platatildeo Portanto sigamos os procedimentos desse pensador

411 A inversatildeo aristoteacutelica miacutemesis mediadora ativa e criativa

Aristoacuteteles como um dos primeiros pensadores ocidentais tratou de uma variedade de

temas dentre os quais se encontra o da criaccedilatildeo Seus textos foram estudados e reinter-

pretados pela tradiccedilatildeo grega aacuterabe e latina alcanccedilando os dias de hoje O relevante para

nossos propoacutesitos eacute que o tema da criaccedilatildeo estaacute em alguns dos seus textos mutuamente

imbricado com o conceito de miacutemesis Mas diversamente do que propotildee Platatildeo Aristoacuteteles

alccedila a miacutemesis2 agrave condiccedilatildeo privilegiada de meio ou instrumento de conhecimento Tendo

a valorizaccedilatildeo desse conceito em conta ao identificar a conexatildeo entre criaccedilatildeo e miacutemesis

despertamos nossa atenccedilatildeo para outras conexotildees possiacuteveis se em Aristoacuteteles como ve-

remos a miacutemesis eacute intriacutenseca agrave criaccedilatildeo e agrave arte esse conceito pode ser estabelecido como

mediador na compreensatildeo do processo criativo em campos como o do design

Ao contraacuterio da atitude de afastamento que tem Platatildeo em relaccedilatildeo agrave arte no livro A

repuacuteblica e em outros diaacutelogos Aristoacuteteles na obra A poeacutetica busca a sua regulamenta-

ccedilatildeo e normatizaccedilatildeo aleacutem de procurar descrever o que estava ocorrendo neste campo no

tempo em que vivia Conforme Virginia Figueiredo e Joatildeo Camillo Penna Platatildeo (que

pensa em termos de uma verdade una) considera a arte tatildeo sedutora e perigosa que o

melhor a fazer eacute mantecirc-la a distacircncia para natildeo correr o risco de a ldquoimitaccedilatildeo substituir-se

ao modelordquo (figueiredo penna 2000 p 10) Neste sentido a criacutetica platocircnica se faz

2 O fato de a discussatildeo sobre a miacutemesis nos textos escolhidos de Platatildeo e Aristoacuteteles girar em torno do tema da arte natildeo significa que estamos associando arte (em seu sentido esteacutetico atual) a design O motivo dessa escolha deve-se a Aristoacuteteles e Platatildeo terem elaborado o conceito de miacutemesis no acircmbito da arte de seu tempo Isto eacute como vimos no segundo capiacutetulo uma arte entendida como teacutekhne arte manual ofiacutecio de artiacutefices e tambeacutem como poesia mas natildeo com as diferenciaccedilotildees da atualidade em seu sentido esteacutetico

146

com mais intensidade agrave arte poeacutetica em especial a autores como Homero Poreacutem se A

repuacuteblica de Platatildeo condena a arte por ser medida pelo paradigma da ideia exterior a

ela A poeacutetica de Aristoacuteteles caminha em direccedilatildeo oposta

Se a trageacutedia eacute imitaccedilatildeo de homens melhores que noacutes importa seguir o exem-plo dos bons retratistas os quais ao reproduzir a forma peculiar dos modelos respeitando embora a semelhanccedila os embelezam Assim tambeacutem imitando homens violentos ou fracos ou com tais outros defeitos de caraacuteter devem os poetas sublimaacute-los sem que deixem de ser o que satildeo assim procederam Agatatildeo e Homero para com Aquiles paradigma de rudeza (aristoacuteteles 1987 p 215)

Aquiles tambeacutem eacute o paradigma da coragem na Iliacuteada E para Aristoacuteteles natildeo existe

um paradigma da coragem externo a arte se daacute o seu proacuteprio paradigma Recusando o

mundo das ideias ele natildeo separa essecircncia e aparecircncia como faz Platatildeo Assim descolado

da referecircncia da hierarquia de um mundo inteligiacutevel o conceito de miacutemesis pode ser com-

preendido para aleacutem da concepccedilatildeo de simples imitaccedilatildeo Como afirma Fernando Santoro

A mimesis aristoteacutelica eacute um contraponto agrave mimesis de Platatildeo natildeo define o valor artiacutestico mas o valor de verdade se para Platatildeo a imitaccedilatildeo era o distanciamento da verdade e o lugar da falsidade e da ilusatildeo para Aristoacuteteles a imitaccedilatildeo eacute o lugar da semelhanccedila e da verossimilhanccedila o lugar do reconhecimento e da represen-taccedilatildeo A funccedilatildeo mimeacutetica em Aristoacuteteles nem eacute uma exclusividade das artes poeacuteticas ela se apresenta tambeacutem por exemplo na linguagem humana em sua funccedilatildeo de representar as coisas Tal funccedilatildeo a de adequar o nome ou signo em geral agrave coisa significada eacute a funccedilatildeo mimeacutetica ou representativa da linguagem lugar em que pode acontecer o verdadeiro ou o falso (santoro 2006 p 75-76)

Dois pontos destacam-se nessa citaccedilatildeo primeiro a miacutemesis entendida como tendo

uma ldquofunccedilatildeordquo eacute estabelecida segundo Santoro tambeacutem na linguagem humana de um

modo anaacutelogo ao que propomos anteriormente com a metaacutefora da mediaccedilatildeo mimeacutetica

(figura 25 p 144) confirmando assim seu status de substrato de caraacuteter representativo

com ampla atuaccedilatildeo Segundo a natildeo exclusividade de sua atuaccedilatildeo no acircmbito da arte jus-

tifica nossa intenccedilatildeo de apropriaacute-la ao design Acreditando que esta concepccedilatildeo central

no pensamento aristoteacutelico pode ser explorada contemporaneamente o proacuteximo passo

eacute compreender a defesa do caraacuteter universal da poesia (um dos campos mais relevantes da

arte ao tempo de Aristoacuteteles) Natildeo podemos nos esquecer de que a universalidade continua

sendo um atributo almejado pelos campos de pesquisa na atualidade incluindo o design

147

412 A alianccedila entre universalidade verdade e arte poeacutetica

No livro iii de A repuacuteblica de Platatildeo (1987 p 115) Soacutecrates (a propoacutesito de discorrer

sobre as trecircs formas de narrativa) pergunta a Adimanto ldquoAcaso tudo quanto dizem os

prosadores e poetas natildeo eacute uma narrativa de acontecimentos passados presentes ou futu-

rosrdquo Por outro lado o livro ix de A poeacutetica de Aristoacuteteles pode ser considerado como

um momento de confronto com Platatildeo Jaacute no primeiro paraacutegrafo deste livro Aristoacuteteles

discordadePlatatildeoaoafirmarqueldquo[]natildeoeacuteofiacuteciodepoetanarraroqueaconteceue

sim o de representar o que poderia acontecer o que quer dizer o que eacute possiacutevel segundo

a verossimilhanccedila e a necessidaderdquo (aristoacuteteles 1987 p 209) Aleacutem disso continua o

estagirita o historiador e o poeta diferem natildeo pelo estilo que empregam (prosa ou verso)

mas por tratarem respectivamente do particular e do universal Daiacute Aristoacuteteles pode

concluir(contrariamenteaoqueestudounaAcademiaPlatocircnica)queldquo[]apoesiaeacute

algodemaisfilosoacuteficoemaisseacuteriodoqueahistoacuteria[]rdquo(aristoacuteteles 1987 p 209)

A verossimilhanccedila e a necessidade3 representam a coerecircncia e conexatildeo causal dos fatos

e accedilotildees Como afirma Eudoro de Souza em comentaacuterio (aristoacuteteles 1987 p 246)

existe um ponto de contato entre poesia e histoacuteria uma vez que acontecido e aconteciacutevel

satildeo ambos verossiacutemeis Entretanto quando pensamos que o poeta trabalha no acircmbito

da possibilidade tem em matildeos algo sempre mais amplo que a realidade enquanto o his-

toriador tem que se ater com o particular acontecido A figura 26 contrapotildee a posiccedilatildeo de

Aristoacuteteles em relaccedilatildeo agrave de Platatildeo tendo como base um saber que busca o universal sem

cindir a realidade em essecircncia e aparecircncia

Ainda no livro ix Aristoacuteteles nos diz que

[] o poeta deve ser mais fabulador que versificador porque ele eacute poeta pela imitaccedilatildeo e porque imita accedilotildees E ainda que lhe aconteccedila fazer uso de sucessos reais nem por isso deixa de ser poeta pois nada impede que algumas das coisas que realmente acontecem sejam por natureza verossiacutemeis e possiacuteveis e por isso mesmo venha o poeta a ser o autor delas (aristoacuteteles 1987 p 209)

3 Em Aristoacuteteles o conceito de necessidade estaacute relacionado ao que existe somente de um determinado modo ou seja do ponto de vista ontoloacutegico aquilo que eacute necessaacuterio natildeo pode ser de outro modo

148

Seguindo ainda o comentaacuterio de Eudoro de Souza (aristoacuteteles 1987 p 246)

ldquoSe aqui ainda natildeo eacute possiacutevel falar de lsquocriaccedilatildeorsquo eacute porque para o grego lsquocriaccedilatildeorsquo sempre

significou lsquodescobrimentorsquordquo4 Assim o poeta seria o descobridor das ldquoverdadeiras relaccedilotildees

que existem entre fatosrdquo Portanto se Aristoacuteteles contraria Platatildeo ao retirar a arte poeacutetica

do mais baixo niacutevel ontoloacutegico (3ordm niacutevel na figura 26) e recolocaacute-la em primeiro plano

como entendia a tradiccedilatildeo grega antes do platonismo ao mesmo tempo ele preserva um

criteacuterio caro a Platatildeo e agrave tradiccedilatildeo posterior do pensamento ocidental a universalidade

Com essa estrateacutegia singular de contrariar Platatildeo mantendo um conceito essencial o

estagirita torna sua operaccedilatildeo robusta o suficiente para convencer aqueles que natildeo aceitam

a criacutetica platocircnica agrave arte mas concordam com a relevacircncia da universalidade como um

caraacuteter necessaacuterio de uma teoria

A operaccedilatildeo de Aristoacuteteles se desdobra em pelo menos dois pontos positivos para

nossos propoacutesitos Primeiro ao conectar arte (teacutekhne) ao conceito de universalidade

4 Platatildeo em um certo sentido espelha a concepccedilatildeo grega de realidade Talvez por isso esse pensador eacute considerado a metoniacutemia do Ocidente Se retomamos a figura 4 (cf capiacutetulo 2 p 61) temos teoria associada agrave visatildeo com a representaccedilatildeo de um olho Assim o ldquodescobrimentordquo em seu sentido grego e especialmente platocircnico significa tirar a cobertura ldquodes-cobrirrdquo

Figura 26 Diagrama da separaccedilatildeo ontoloacutegica entre essecircncia e aparecircncia em Platatildeo (esquerda) e sua in-distinccedilatildeo em Aristoacuteteles (direita) que conduz a um conceito de miacutemesis diferenciado e potencialmente capaz de abarcar o universal com consequecircncias relevantes para a arte e o design fonte autor

PLATAtildeO ARISTOacuteTELES

1ordm NIacuteVEL mdash ARTIacuteFICE NATURAL (DEUS)No mundo inteligiacutevel Deus criou uma uacutenica cama modelo de todas outras

2ordm NIacuteVEL mdash MARCENEIRONo mundo sensiacutevel (imitaccedilatildeo do inteligiacutevel) o marceneiro cria sempre coacutepias da cama ideal

3ordm NIacuteVEL mdash POETA Baseia-se no mundo sensiacutevelpara criar suas obras que satildeo imitaccedilotildees de imitaccedilotildees

MIacuteMESISConceito compreendido aleacutem da simples imitaccedilatildeo

ARTERepresentaccedilatildeo natildeo narraccedilatildeo

POESIATrata do universal natildeo do particular

POETATrabalha no acircmbito da possibilidade Tem nas matildeos algo sempre mais amplo que a realidade

VERDADE UNA DO MUNDO DAS IDEIAS A IMITACcedilAtildeO NAtildeO PODE SUBSTITUIR O MODELO

RECUSA O MUNDO DAS IDEIAS A ARTE FORNECE SEU PROacutePRIO MODELO

ESSEcircNCIA

APAREcircNCIA MIacuteMESIS

SEM HIERARQUIA E SEPARACcedilAtildeO

ENTRE ESSEcircNCIA E APAREcircNCIA

149

preserva com isso o criteacuterio de verdade que para Platatildeo soacute a teoria (episteacuteme) pode-

ria oferecer Neste sentido a manobra aristoteacutelica assegura agrave arte se manter dentro

do registro ontoloacutegico proposto por Platatildeo Segundo se eacute imitando accedilotildees que o

poeta atraveacutes da possibilidade e da verossimilhanccedila realiza seu trabalho a miacutemesis

natildeo pode mais ser entendida como mera imitaccedilatildeo ou coacutepia como queria Platatildeo Eacute

neste contexto de ultrapassamento da imitaccedilatildeo ordinaacuteria que se faz necessaacuteria uma

anaacutelise da miacutemesis na sua relaccedilatildeo com a teacutekhne e a phyacutesis

413 As relaccedilotildees entre miacutemesis teacutekhne e phyacutesis

Se como afirma Virginia Figueiredo e Joatildeo Camillo Penna (figueiredo penna 2000

p 25) o livro iv de A poeacutetica eacute compreendido pela tradiccedilatildeo como o lugar para se extrair

o conceito de miacutemesis em Aristoacuteteles entendemos que eacute necessaacuterio um consideraacutevel

esforccedilo para aclarar tal conceito Como aponta Claacuteudio Veloso (2004 p 15) ldquoantes de

tudoemlugaralgumAristoacutetelesdefineotermomicroίmicroησις[miacutemesis]rdquoNoentantoWerner

Jaeger(1986p710)indica-nosoutrafontedepesquisadestaquestatildeoldquo[]Aristoacuteteles

define a relaccedilatildeo entre a arte e a natureza dizendo que natildeo eacute esta que a arte imita mas

sim que a arte se inventou para preencher as lacunas da naturezardquo e remete a outra obra

sua Nela Jaeger diz

Eacute uma ideacuteia caracteristicamente aristoteacutelica de que a natureza eacute finalista em mais alto grau inclusive que a arte e que o finalismo que reina no trabalho seja arte ou destreza natildeo eacute senatildeo uma imitaccedilatildeo de finalismo da natureza A mesma ideacuteia acerca da relaccedilatildeo entre as duas coisas se expressa brevemente no livro ii da Fiacutesica que eacute um dos escritos mais antigos de Aristoacuteteles Tambeacutem se faz alusatildeo incidentalmente em outros lugares mas nunca tatildeo bem desenvolvida e articulada como aqui Uma expressatildeo como a seguinte eacute rigorosamente original

ldquonatildeo imita a natureza a arte senatildeo a arte agrave natureza e a arte existe para ajudar a levar a cabo o que deixa de fazer a naturezardquo (jaeger 1946 p 92-93)

Philippe Lacoue-Labarthe (2000 p 257) vai tambeacutem ateacute a Fiacutesica com a mesma in-

tenccedilatildeoldquo[]trata-secommuitacertezadeumadasmaissegurasinterpretaccedilotildeesdateoria

150

aristoteacutelica da mimese tal como a encontramos com efeito quanto ao essencial no livro

b da Fiacutesica (194a)rdquo e diz-nos em seguida

De acordo com o que diz Aristoacuteteles a teacutekhne eacute pensada literalmente como o a-creacutescimo [sic] da phyacutesis quer dizer do aparecer (phaiacutenen) como o crescer o eclodir e o desabrochar (phyacuteein) agrave luz [] Formulado de outro modo apenas a arte (a teacutekhne) eacute capaz de revelar a natureza (a phyacutesis) Ou ainda sem a teacutekh-ne a phyacutesis escapa porque em sua essecircncia a phyacutesis kryptesthai phiacutelei ela adora dissimular-se (lacoue-labarthe 2000 p 257-258)

Considerando tanto estas passagens quanto o texto do livro iv de A poeacutetica aquilo

que eacute um acreacutescimo natildeo pode ser considerado mero arremedo ou duplicaccedilatildeo O apren-

der do homem com as representaccedilotildees por exemplo ldquode animais ferozes e de cadaacuteveresrdquo

(aristoacuteteles 1987 p 203) aponta para um conceito de miacutemesis que busca reassumir

os procedimentos da natureza A miacutemesis estaacute ligada ao real empiacuterico (natildeo eacute coacutepia de

uma realidade inteligiacutevel) e natildeo vai simplesmente reproduzir a natureza porque eacute ativa e

criativa Em outras palavras a miacutemesis em Aristoacuteteles tem fundamento ontoloacutegico

42 Deslocamento do conceito de miacutemesis e sua contribuiccedilatildeo ao design e agrave arte

Com o entendimento de que a miacutemesis ao se expressar na produccedilatildeo das coisas com suas

capacidades criativas explicita seu fundamento ontoloacutegico dois passos importantes para

a tese podem ser dados ao mesmo tempo em que satildeo subsumidos a esse conceito

1ordm A confirmaccedilatildeo do potencial para a miacutemesis ser explorada na anaacutelise do design enquan-

to processo criativo e produtivo Ao delimitar (mesmo que de forma esquemaacutetica e

procurando evitar equiacutevocos hermenecircuticos) os pontos de contato entre os conceitos

de produccedilatildeo e criaccedilatildeo ao tempo de Aristoacuteteles e na atualidade poderemos deslocar

o conceito de miacutemesis para o presente e apropriaacute-lo para o design e para a arte

2ordm Ao apresentar exemplos no design do uso da miacutemesis confirmamos empiricamente

o viacutenculo de natureza ontoloacutegica entre o conceito aristoteacutelico e esse campo

151

Assim o proacuteximo passo eacute direcionar o conceito aristoteacutelico de miacutemesis em sua relaccedilatildeo

original com a arte (teacutekhne) e a natureza (phyacutesis) para uma relaccedilatildeo contemporacircnea que

dividiremos em duas categorias uma exoacutegena por conectar duas esferas distintas design

e natureza e outra endoacutegena para aspectos intriacutensecos ao design Estamos aceitando

como pressuposto que a produccedilatildeo enquanto teacutekhne possa ter seu sentido ampliado ateacute o

da produccedilatildeo (ou criaccedilatildeo a partir de algo) entendida como design na atualidade

Nossa aposta considera o conceito de teacutekhne amplo e flexiacutevel o bastante para poder

adequar-se a esta transposiccedilatildeo trazendo consigo o de miacutemesis Nesse sentido eacute impor-

tante ter em mente como jaacute foi visto no capiacutetulo 2 que teacutekhne e episteacuteme (utilizadas em

diversos contextos da Greacutecia claacutessica como palavras quase sinocircnimas)5 tecircm como uma

de suas acepccedilotildees a de conhecimento universal o que estreita seu viacutenculo com um campo

de pesquisa e de trabalho como o design Analisemos os exemplos

421 A miacutemesis exoacutegena no design acreacutescimo e processo agrave natureza

Diante das diversas possibilidades inerentes agrave miacutemesis em sua vertente aristoteacutelica toma-

remos como ponto de partida duas ideias que o conceito comporta para suportar nossos

argumentos A primeira citada anteriormente eacute a ideia de acreacutescimo Quando em 1941 o

engenheiro George de Mestral enquanto caminhava pelos Alpes voltou sua atenccedilatildeo para

os carrapichos que grudavam em suas meias e no pelo de seu catildeo ele buscava entender

um evento singular da natureza Ao perceber que os ganchos microscoacutepicos dos carrapi-

chos prendiam-se aos minuacutesculos laccedilos do tecido das meias Mestral compreendeu uma

estrateacutegia de reproduccedilatildeo de uma planta que normalmente faz uso do pelo dos animais

para espalhar suas sementes em vastos territoacuterios

5 Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro mostra a aproximaccedilatildeo das atividades da teacutekhne e da episteacuteme quando revela a intenccedilatildeo de Platatildeo no diaacutelogo Iacuteon em distanciar a atividade do poeta (rapsodo) das duas pri-meiras ldquoOra a explicaccedilatildeo eacute que a atividade do rapsodo entendida como arte mimeacutetica natildeo se daacute por teacutechne ou episteacuteme faculdades tipicamente humanas mas por forccedila divina (theiacutea dyacutenamis) e inspiraccedilatildeo divina (theiacutea moira) Enquanto o teacutecnico-epistecircmico discursa soacutebrio nos limites do discernimento (eacutem-phron) exercendo certo domiacutenio sobre o seu praacutegma determinado (a etimologia de episteacuteme remete agrave accedilatildeo de ldquocolocar-se por cimardquo) o rapsodo fala fora de si (eacutek-phron) possuiacutedo (katechoacutemenos) tomado pelo deus (eacuten-theos) entusiasmado (en-thousiaacutezon)rdquo (ribeiro 2006 p 133) Negrito nosso

152

Mestral no entanto foi aleacutem e criou o Velcro um fecho que simula as caracteriacutes-

ticas do carrapicho Mas obviamente muitos anos se passaram entre o vislumbre que

Mestral teve de um novo produto (figura 27) e a conclusatildeo de suas pesquisas entre um

mecanismo de auxiacutelio agrave reproduccedilatildeo de uma planta e um fecho de alto desempenho

vaacuterios elementos e caracteriacutesticas foram acrescentados agrave ideia original para transfor-

maacute-la naquilo que utilizamos em roupas acessoacuterios esportivos e ateacute em componentes

de naves espaciais

Neste caso se usarmos os argumentos de Aristoacuteteles a traduccedilatildeo da estrutura origi-

nal do carrapicho em um objeto produzido pelo homem eacute mimeacutetica na medida em que

reassume de modo exoacutegeno os procedimentos da natureza mas natildeo eacute coacutepia uma vez

que os acreacutescimos (que envolvem estudos pesquisas e soluccedilotildees para diversos problemas)

garantem agrave miacutemesis sua condiccedilatildeo ativa e criativa

Uma segunda ideia constitutiva do conceito de miacutemesis eacute a noccedilatildeo de processo O

poeta e escritor portuguecircs Fernando Pessoa (1967 p 21) atraiacutedo por esse conceito

aristoteacutelico tem uma interpretaccedilatildeo sinteacutetica acerca da miacutemesis que pode nos orientar

ldquoO fim da arte eacute imitar perfeitamente a Natureza Este princiacutepio elementar eacute justo se

natildeo esquecermos que imitar a Natureza natildeo quer dizer copiaacute-la mas sim imitar os seus

Figura 27 Imagem ampliada da estrutura bioloacutegica de um carrapicho (esquerda) e detalhe do projeto de George de Mestral do Velcro para registro de patente da invenccedilatildeo (direita) fontes designculturecombr e google patentscom

153

processosrdquo Assim no proacuteprio exemplo do Velcro podemos perceber como a noccedilatildeo de

processo se sobrepotildee ao desenvolvimento deste produto Mestral dedicou-se dez anos

para aperfeiccediloar sua invenccedilatildeo e adaptar os mecanismos necessaacuterios ao seu processo

de produccedilatildeo industrial

422 A miacutemesis endoacutegena no design adaptaccedilatildeo e evoluccedilatildeo

Mais um aspecto do deslocamento do conceito de miacutemesis complementar agrave relaccedilatildeo exoacute-

gena entre design e natureza eacute o caraacuteter endoacutegeno de realimentaccedilatildeo positiva que cada

produto pode e deve ter na busca para aprimorar-se O Velcro ao longo dos seus mais de

50 anos de existecircncia foi aperfeiccediloado em diversos aspectos A busca por novos materiais

e formas mais eficientes de produccedilatildeo e disposiccedilatildeo de seus componentes satildeo algumas das

inovaccedilotildees que foram implementadas No entanto a miacutemesis se preserva em todas essas

adaptaccedilotildees e mudanccedilas na medida em que a ideia original se manteacutem incorporada ao

produto orientando seu propoacutesito natildeo sendo simplesmente reproduzida (copiada) em

seus aspectos formais e estruturais

Ainda dentro da atuaccedilatildeo endoacutegena podem ocorrer evoluccedilotildees que se distanciam formal

e estruturalmente do produto sem no entanto abrir matildeo dos seus conceitos e propoacutesitos

Um exemplo disso eacute o Slidingly Engaging Fastener (sef) tambeacutem conhecido como New

Velcro e inventado por Leonard Duffy a partir de uma pesquisa de oito anos A estrutura

diferente do sef (figura 28) faz com que ele atenda a uma seacuterie de requisitos do fecho

Velcro aleacutem de ser mais duraacutevel forte silencioso e natildeo reter pelos poeira e odor como

seu antecessor

Tendo chegado a este ponto eacute importante fazer uma correlaccedilatildeo conceitual entre dois

autores distantes na histoacuteria do pensamento mas com questotildees em comum Aristoacuteteles e

Flusser O par teacutekhneepisteacuteme (entendido pelos gregos como habilidade e conhecimento

teoacuterico e desmembrado em ciecircncia teacutecnica e arte) na concepccedilatildeo de Aristoacuteteles se apropria

tanto da natureza quanto dos objetos produzidos pelo homem recorrendo agrave miacutemesis Se

em Aristoacuteteles haacute uma conexatildeo que parte da natureza (phyacutesis) em direccedilatildeo agrave arte (teacutekhne)

154

que imita os processos da primeira resultando em conhecimento humano em Flusser

a conexatildeo ou ldquoponterdquo ocorre em sentido contraacuterio partindo de um dos campos do co-

nhecimento humano o design e avanccedilando ateacute a natureza Neste contexto se justifica

com mais intensidade procurar compreender essa acepccedilatildeo da miacutemesis eacute ir ateacute um dos

fundamentos mesmos da nossa cultura resgatando um sentido ou sentidos esquecidos e

transfigurados com o tempo na histoacuteria do pensamento ocidental A figura 29 apresenta

as conexotildees que derivam da relaccedilotildees entre phyacutesis episteacuteme e teacutekhne se efetivam atraveacutes do

conceito de miacutemesis e seguem em direccedilatildeo ao design Tal conceito uma vez incorporado

ao design amplia as possibilidades de fundamentaccedilatildeo teoacuterica deste campo

Figura 28 Imagem com detalhe do projeto de Leonard Duffy do New Velcro para registro de patente da invenccedilatildeo fonte google patentscom

TECNOLOGIA

asymp aC dC 85 dC dCGreacutecia Ocidente

EPISTEacuteME

TEacuteKHNE

PHYacuteSIS NATUREZA

CIEcircNCIA

TEacuteCNICA

MIacuteMESIS

ARTE

POacuteIESIS

DESIGN

Figura 29 Linha do tempo que mostra as trecircs conexotildees que partem da phyacutesis episteacuteme e teacutekhne possibili-tando sua ligaccedilatildeo com o design na atualidade atraveacutes do conceito de miacutemesis fonte autor

155

Dado esse passo atualizar a relaccedilatildeo da miacutemesis com a teacutekhne direcionando-as ao

design nos permite operar com um conceito que pela sua riqueza de possibilidades

pode ser usado para a interpretaccedilatildeo e entendimento de diversas questotildees assim como fez

Aristoacuteteles em sua eacutepoca Quando pensamos que campos como a biocircnica e a ciberneacutetica

(para citar apenas dois) atuam de forma mimeacutetica ao transferirem conhecimentos da

biologia para diversas outras aacutereas incluindo o design a compreensatildeo do conceito de

miacutemesis cresce em importacircncia

Paralelamente a esses avanccedilos de caraacuteter mimeacutetico as instituiccedilotildees de ensino e o mer-

cado tambeacutem podem incorporar o modelo imitativo enquanto preceitos e dogmas de

caraacuteter mais reprodutivo ou de coacutepia Dijon De Moraes (2006) em seu livro Anaacutelise do

design brasileiro entre mimese e mesticcedilagem dedica um capiacutetulo inteiro agrave investigaccedilatildeo

da imitaccedilatildeo do modelo racional funcionalista alematildeo (originaacuterio da Bauhaus e da Escola

de Ulm) e agraves consequecircncias destas referecircncias (positivas e negativas) para o design local

No mercado esta praacutetica pode ser nomeada com justa razatildeo de coacutepia quando por

exemplo uma patente expira ou natildeo eacute respeitada e os concorrentes simplesmente reproduzem

o que jaacute existe muitas vezes com perda na qualidade final do produto Neste sentido pensar

a partir do crivo ontoloacutegico nos permite tambeacutem compreender a distinccedilatildeo entre criaccedilatildeo

e coacutepia em design como um rebaixamento ontoloacutegico da imitaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao original

RetomandoalgumaspalavrasdeAristoacuteteles(1987p203)ldquo[]detodoseacuteele[o

homem]omaisimitadoreporimitaccedilatildeoaprendeasprimeirasnoccedilotildeesrdquoNatildeodeixadeser

curioso o fato de que se levarmos a afirmaccedilatildeo de Aristoacuteteles ao peacute da letra o esforccedilo de

trazer o conceito de miacutemesis para o presente e para sua relaccedilatildeo com o design tambeacutem eacute

uma accedilatildeo mimeacutetica

423 A miacutemesis complementar na arte saiacuteda para o dilema de Euriacutepedes

Se nas palavras de Aristoacuteteles aprendemos as primeiras noccedilotildees atraveacutes da miacutemesis pode-

mos compreender esse conceito com um tipo de procedimento que pode ser efetuado por

qualquer ser humano Por mais que a miacutemesis em sua acepccedilatildeo aristoteacutelica possa explicar

diversas operaccedilotildees do processo criativo no design na arte e em outros campos existem

156

problemas que podem tambeacutem ser associados com a atitude mimeacutetica Em outras palavras

com a miacutemesis atraiacutemos por um lado vaacuterias possibilidades de explicaccedilatildeo do processo de

criaccedilatildeo mas por outro encontramos questionamentos a esse tipo de operaccedilatildeo Arthur

Danto (2005) por exemplo lanccedila matildeo de um dilema nietzscheano para demonstrar os

limites da apropriaccedilatildeo da miacutemesis no universo da arte No entanto acreditamos que a

saiacuteda para a contradiccedilatildeo que nos apresenta Danto se encontra dentro da proacutepria miacutemesis

em uma de suas caracteriacutesticas jaacute apresentadas a de atuar como processo Como veremos

enquanto um processo a miacutemesis aleacutem de escapar dessa contradiccedilatildeo faz a mediaccedilatildeo

com os demais conceitos aristoteacutelicos explorados por Umberto Eco e que datildeo o fecho

agraves anaacutelises deste capiacutetulo

No capiacutetulo inicial do livro A transfiguraccedilatildeo do lugar-comum Arthur Danto indaga

sobre o que eacute uma obra de arte Sua intenccedilatildeo eacute compreender a arte contemporacircnea como

manifestaccedilatildeo cultural com todas as suas caracteriacutesticas exclusivas mas que se conecta e se

entrelaccedila com diversas outras aacutereas da cultura de nosso tempo Danto introduz este pri-

meiro problema trabalhando a questatildeo da representaccedilatildeo atraveacutes do conceito de imitaccedilatildeo6

O que buscamos neste primeiro momento eacute uma possiacutevel saiacuteda para o questionamento de

Danto (apresentado sob a forma de um raciociacutenio nomeado por ele Dilema de Euriacutepedes)

correlacionando-o com algumas proposiccedilotildees de Aristoacuteteles ligadas ao conceito de miacutemesis

Em Obras de arte e meras coisas reais capiacutetulo 1 do seu livro Danto analisa inuacuteme-

ros conceitos passando pelas ideias de pensadores artistas e obras de arte ele recorre

a Wittgenstein depois a Platatildeo Soacutecrates Shakespeare Sartre Van Gogh e Aristoacuteteles

Uma das questotildees que estatildeo na origem deste trajeto eacute qual a natureza da fronteira entre

arte e natildeo arte O ponto especiacutefico que nos interessa comeccedila quando Danto ao tratar do

problema da imitaccedilatildeo conclui que a mesma ldquotem a funccedilatildeo mais importante de representar

as coisas reaisrdquo (danto 2005 p 55) Eacute importante salientar aqui que a expressatildeo ldquocoisas

reaisrdquo sinaliza a intenccedilatildeo de Danto de manter sua criacutetica agrave miacutemesis aristoteacutelica dentro

dos limites da ontologia Assim em seguida ele afirma que a representaccedilatildeo conteacutem uma

6 Com relaccedilatildeo agrave associaccedilatildeo entre representaccedilatildeo e imitaccedilatildeo Timo Maran em artigo publicado em 2003 (Mimesis as a phenomenon of semiotic communication) analisa diversas interpretaccedilotildees deste conceito indo aleacutem do ciacuterculo estrito da tradiccedilatildeo filosoacutefica e investigando a miacutemesis enquanto um fenocircmeno de comunicaccedilatildeo

157

ambiguidade e para diferenciar os dois sentidos recorre agrave Nietzsche Analisemos como

ele faz tal aproximaccedilatildeo

No livro O nascimento da trageacutedia (a mesma obra em que no capiacutetulo 2 apresentamos

a criacutetica nietzschiana agrave ciecircncia atraveacutes da arte) Nietzsche associa a origem da trageacutedia

grega aos rituais dionisiacuteacos Nesses rituais havia a crenccedila de que Dioniacutesio sempre se fazia

presente este seria o primeiro sentido de representaccedilatildeo uma (re)apresentaccedilatildeo Com o

passar do tempo o teatro traacutegico grego substituiu os rituais por reproduccedilatildeo simboacutelica

Assim o deus natildeo mais aparecia mas era representado por algueacutem (figura 30) Este seria

o segundo sentido de representaccedilatildeo algo que estaacute no lugar de outro

Dessa forma para Nietzsche Euriacutepedes destruiu a trageacutedia ao introduzir elementos

que faziam com que a representaccedilatildeo teatral se tornasse mais proacutexima da realidade possiacutevel

Esse eacute o programa euripidiano (que sacrifica uma parte do misteacuterio) e a sua contrapartida

eacute fazer arte que natildeo tenha correspondecircncia na realidade consequentemente natildeo con-

duzindo agrave prevalecircncia da imitaccedilatildeo Danto resume assim os dois programas (figura 31)

O Dilema de Euriacutepedes consiste em que uma vez completado o programa mimeacutetico o produto fica tatildeo parecido com o que se encontra na realidade que exatamente por ser idecircntico ao real cabe perguntar o que o torna uma obra de arte A tentativa de fugir ao dilema exagerando os elementos natildeo-mimeacuteticos purgados em nome do programa produz uma coisa tatildeo diferente da realidade que essa pergunta perde sentido Mas permanece outra questatildeo igualmente importante dado que no final obtemos algo que eacute descontiacutenuo com a realidade o que ainda o distingue como arte (danto 2005 p 68)

RITUAIS DIONISIacuteACOS

DOIS CONCEITOS DE REPRESENTACcedilAtildeO

Dioniacutesio natildeo presente representaccedilatildeo simboacutelica

TEATRO TRAacuteGICO GREGO

Dioniacutesio presente representaccedilatildeo como (re)apresentaccedilatildeo

Figura 30 Esquema da oposiccedilatildeo entre representaccedilatildeo e reapresentaccedilatildeo conforme a criacutetica nietzschiana ao programa euripidiano fonte autor

158

Mais agrave frente Danto afirma que

Talvez seja mesmo impossiacutevel escapar desse dilema enquanto continuarmos tentando definir a arte em funccedilatildeo de aspectos comparaacuteveis ou contrastantes com os do mundo real Mas nesse caso eacute bem possiacutevel que o dilema seja fa-talmente inescapaacutevel pois que outra coisa aleacutem de aspectos comparaacuteveis ou contrastantes poderia servir de base para a construccedilatildeo de uma teoria da arte (danto 2005 p 70)

Danto entatildeo sugere uma saiacuteda para esse dilema as convenccedilotildees Tudo aquilo que a

convenccedilatildeo aceitar como obra de arte eacute obra de arte Esta saiacuteda ele jaacute havia apontado no

iniacutecio do capiacutetulo quando o pintor J (um personagem do livro) declara que sua super-

fiacutecie vermelha eacute uma obra de arte Mas essa ldquosaiacutedardquo jaacute natildeo havia satisfeito Danto naquele

momento do texto e obviamente ainda continua natildeo o satisfazendo mdash nem a quem quer

que busque compreender o que estaacute em questatildeo Eacute uma soluccedilatildeo precaacuteria que natildeo nos

satisfaz em termos de fundamentaccedilatildeo

Neste ponto da argumentaccedilatildeo de Danto propomos uma via intermediaacuteria entre o

seus programas mimeacutetico e contramimeacutetico Se pudermos encontrar algo mediador entre

continuidade e descontinuidade com o real talvez uma parte da questatildeo possa tornar-se

mais clara Nossa intenccedilatildeo eacute escapar da contradiccedilatildeo buscando em Aristoacuteteles nos proacute-

prios elementos associados ao seu conceito de miacutemesis condiccedilotildees que possam nos ajudar

a construir uma saiacuteda para a aporia instalada no acircmbito da arte

Assim retomando a miacutemesis em Aristoacuteteles e uma de suas caracteriacutesticas fundamen-

tais a de acreacutescimo poderiacuteamos dizer que natildeo se trata de a arte ser nem contiacutenua nem

descontiacutenua mas de ser complementar com o real Desta maneira ao inverter nosso olhar

PROGRAMA MIMEacuteTICO

O DILEMA DE EURIacutePEDES

Arte descontiacutenua com o real

PROGRAMA CONTRAMIMEacuteTICO

Arte contiacutenua com o real

Figura 31 Esquema do Dilema de Euriacutepedes e a dificuldade segundo Danto de se encontrar uma definiccedilatildeo para obra de arte fonte autor

159

sobre a questatildeo o fato de a teoria da contramimese estar ldquoconceitualmente entrelaccedilada

com a teoria que rejeita isto eacute a proacutepria teoria da mimeserdquo (danto 2005 p 67) natildeo

seria mais um problema como considera Danto mas parte da soluccedilatildeo (figura 32)

43 Ampliaccedilatildeo das determinaccedilotildees ontoloacutegicas nas relaccedilotildees entre design e arte

A soluccedilatildeo anterior atraveacutes da complementaridade tem caraacuteter parcial uma vez que se

restringe ao universo da arte Eacute necessaacuterio seguir em frente para saltar do acircmbito da arte e

estabelecer a reflexatildeo dentro do acircmbito do design e vice-versa Quase ao final do primeiro

capiacutetulo Danto apresenta-nos o resumo de algumas questotildees que jaacute havia desenvolvido

em momentos anteriores Uma delas acreditamos tambeacutem pode ser respondida pela

nossa proposta de soluccedilatildeo mimeacutetica mas como veremos traz um elemento a mais A

perguntadesteautordecaraacutetereminentementeontoloacutegicoeacuteldquo[]seraacutequecadanovo

item da realidade mdash digamos uma nova espeacutecie ou uma invenccedilatildeo mdash deve ser considerado

uma contribuiccedilatildeo para a arterdquo (danto 2005 p 67)

Se como vimos novos objetos de arte podem natildeo ser simplesmente descontiacutenuos

com a realidade mas complementares e revelar aspectos desta realidade que de outro

modo estariam ocultos esta segunda pergunta estaacute em parte respondida um novo item

da realidade pode ser considerado uma obra de arte No entanto porque usamos o pode

e natildeo o deve a questatildeo ainda natildeo se esgotou Ainda se poderia levantar mais uma duacutevida

a partir do que estabelecemos ao final do capiacutetulo 2 outros objetos como os instrumentos e

os dispositivos de novas tecnologias entre os quais o design eacute incorporado tambeacutem satildeo capa-

zes de revelar novos aspectos da realidade Seriam eles tambeacutem objetos de arte Aristoacuteteles

Arte complementar com o real

MIacuteMESISCONTRAMIacuteMESIS

SAIacuteDA DO DILEMA

Figura 32 Esquema do entrelaccedilamento da miacutemesis e da contramiacutemesis com a complementaridade solucio-nando o dilema entre continuidade e descontinuidade da arte com o real fonte autor

160

elabora conceitos que mais uma vez natildeo satildeo oferecidos em A poeacutetica mas que podem

nos auxiliar na resposta

431 Da arte ao design o conceito de ldquofim em si mesmordquo

Em outra obra de sua autoria A poliacutetica Aristoacuteteles faz uma distinccedilatildeo entre coisas uacuteteis

e coisas belas que visa natildeo especificamente as artes mas as atividades humanas em geral

Mantendo o espiacuterito de apropriaccedilatildeo que ateacute agora nos conduziu podemos fazer um uso

correlato dessa distinccedilatildeo para a questatildeo de Danto sobre quais itens da realidade podem

ser considerados obra de arte Como afirma Aristoacuteteles

Toda a vida estaacute dividida em trabalho e oacutecio guerra e paz e dentre as actividades umas satildeo necessaacuterias e uacuteteis e outras satildeo dignas [belas] A guerra existe em vista da paz o trabalho em funccedilatildeo do oacutecio as actividades necessaacuterias e uacuteteis em vista das honrosas [belas] (aristoacuteteles 1998 p 537) Itaacutelicos nossos

Fernando Santoro (2006 p 78) traduz as palavras ldquodignasrdquo e ldquohonrosasrdquo por ldquobelasrdquo

Concordando com esse autor privilegiamos tal sentido uma vez que no texto em grego

constam ldquoτὰ καλάrdquo (taacute kalaacute) e ldquoτῶν καλῶνrdquo (toon kaloon) palavras que nas suas primeiras

acepccedilotildees em dicionaacuterio tecircm o sentido de belo Atentando a esse ponto notemos que Aris-

toacuteteles associa o uacutetil e o negoacutecio de um lado e o belo e o oacutecio de outro Obviamente na

atualidade a arte jaacute natildeo busca mais as coisas simplesmente belas7 Mas uma caracteriacutestica

7 Quando Aristoacuteteles fala de coisas belas em conexatildeo com o oacutecio eacute importante compreender conforme afirma Fernando Santoro (2006 p 74) que para este pensador grego as coisas belas estatildeo mais ligadas agraves melhores accedilotildees humanas (principalmente a accedilatildeo teoreacutetica e contemplativa) do que propriamente aos objetos produzidos pelas diversas artes Eacute relevante tal distinccedilatildeo uma vez que a arte grega (teacutekhne) enquanto ofiacutecio era um trabalho pelo qual oleiros escultores pintores arquitetos e outros profissio-nais recebiam remuneraccedilatildeo Essa praacutetica que na Idade Meacutedia tinha como principais patrocinadores a Igreja e a Nobreza posteriormente passou a contar com os mecenas da crescente classe comerciante e natildeo perdeu seu caraacuteter de negoacutecio ateacute os dias de hoje Se uma parte dos artistas atuais aqueles que atuam no chamado campo das belas-artes entendem que sua criaccedilatildeo soacute passa agrave condiccedilatildeo de produto a ser negociado quando termina e vai para as matildeos do marchand natildeo significa que assim o seja numa sociedade capitalista por excelecircncia A proacutepria expressatildeo ldquomercado internacional de obras de arterdquo comumente utilizada no meio cultural e econocircmico faz pensar que um artista que deseje ou necessite sobreviver de sua criaccedilatildeo natildeo se arriscaria a produzir arte que natildeo estivesse de alguma maneira enga-jada no espiacuterito e tendecircncias de seu tempo Sob esse ponto de vista arte tambeacutem eacute negoacutecio

161

essencial da visatildeo aristoteacutelica ainda se preserva na arte o seu fim continua sendo ela mesma

Um objeto de arte eacute para ser fruiacutedo independentemente do modo como isso se decirc seja com

apreciaccedilatildeo culto ou estranhamento Nesse sentido podemos dizer que a arte natildeo eacute uacutetil

Mas e quanto ao que eacute uacutetil que segundo Aristoacuteteles tecircm seu fim e funccedilatildeo fora dele

mesmo Poderiacuteamos afirmar que o fim de um martelo (a sua utilidade se bem projetado)

eacute pregar pregos Mesmo um instrumento mais elaborado como um computador que pelo

seu proacuteprio conceito transformou-se em algo que exerce muacuteltiplas tarefas ainda assim

teria sua finalidade nos inuacutemeros trabalhos que executa e natildeo nele mesmo Neste sentido

a concepccedilatildeo de que a forma segue a funccedilatildeo defendida pelo modernismo no seacuteculo xx e

seus seguidores racionalistas aponta nesta direccedilatildeo

Poreacutem se nos atentarmos um pouco mais para as complexas relaccedilotildees que estabele-

cemos com as coisas em nossa sociedade contemporacircnea aqueles objetos caracterizados

primariamente como instrumentos como vimos com Rafael Cardoso se recobrem de

inuacutemeros valores carregando significados que ultrapassam a mera execuccedilatildeo de um trabalho

com um fim exterior a eles mesmos Um espremedor de frutas projetado por Philippe

Starck (figura 33) concebido para retirar o suco das frutas (ou pelo menos seu projeto

teve como uma das motivaccedilotildees uma utilidade especiacutefica no mundo humano) talvez passe

o resto dos dias em cima de uma mesa ou estante em uma residecircncia abandonado a uma

exposiccedilatildeo meramente esteacutetica

Figura 33 Fotografia do espremedor de frutas Juicy Salif (1990) de Philippe Starck projetado para a empresa italiana Alessi fonte alessicom

162

Nesse caso extremo poreacutem a cada dia mais comum o espremedor se ainda natildeo eacute uma

obra de arte institucionalizada pelo menos no acircmbito privado seu proprietaacuterio assim o

considera Mas na circunstacircncia de um artefato desses ser utilizado para espremer frutas

eacute de se supor (pelo menos eacute o que esperam os designers) que seu usuaacuterio contemporacircneo

tenha uma experiecircncia que vaacute aleacutem do simples manejo de um instrumento bem projetado

e uacutetil para um fim fora dele mesmo Este algo mais supostamente presente em um ins-

trumento pode natildeo ser fruiccedilatildeo no sentido artiacutestico mas aponta para uma caracteriacutestica

que eacute proacutepria da arte e natildeo das coisas uacuteteis o fim em si mesmo

A divisatildeo aristoteacutelica fundada no belo versus uacutetil se destaca por dois motivos Primei-

ro porque sinaliza-nos que a questatildeo eacute mais complexa do que a princiacutepio afigura-se em

uma dicotomia Segundo e mais importante com a ampliaccedilatildeo e o aprofundamento do

problema (paralelamente agrave elaboraccedilatildeo do conceito de fim em si mesmo que permite uma

maior discriminaccedilatildeo entre arte e design) tal investigaccedilatildeo detecta e expotildee caracteriacutesticas

anteriormente atribuiacutedas ao universo exclusivo da arte e que se encontram apoacutes a ava-

liaccedilatildeo imbricadas ao design Isso poderia ser encarado como um problema para aqueles

que procuram apenas a delimitaccedilatildeo desses campos mas em nossa perspectiva eacute o ponto

de inflexatildeo que indica um viacutenculo (ainda natildeo completamente compreendido) que parte

do universo artiacutestico em direccedilatildeo ao design Nesse sentido poderiacuteamos dizer que o fim

em si mesmo eacute outro liame de caracteriacutesticas semelhantes agrave ldquoPonte Flusserianardquo mas com

um sentido inverso pois um elemento essencial da arte e se encaminha para o design na

expansatildeo dos domiacutenios deste campo

A figura 34 apresenta o graacutefico com as conexotildees que partem do design defendidas

na proposta de Flusser (linhas marrom) Aleacutem delas duas conexotildees (linhas alaranjadas)

partem da arte para o design A linha 1 jaacute haviacuteamos estabelecido anteriormente no capiacutetulo

2 com o entendimento que a arte eacute historicamente uma das disciplinas que contribuiacute-

ram para a formaccedilatildeo do design A linha 2 acaba de se estabelecer com a compreensatildeo do

conceito de fim em si mesmo

Assim avanccedilamos mais dois passos no caminho de nossa hipoacutetese vimos primei-

ramente que o conceito de miacutemesis eacute adequado para a compreensatildeo de objetos onde

a funcionalidade eacute preponderante como o caso do velcro e em segundo lugar que o

163

conceito de fim em si mesmo (de modo complementar ao de miacutemesis) vai ao encontro

das possibilidades da experiecircncia do usuaacuterio com os objetos O exemplo do espremedor eacute

modelar na medida em que o design na contemporaneidade cada vez mais explora o fim

em si mesmo em busca de produzir experiecircncias ultrapassando os atributos funcionais e

instrumentais de seus objetos

432 Da arte ao design o discurso aberto e o persuasivo epidiacutectico

Depois de superar o Dilema de Euriacutepedes com a aposta numa complementaridade extraiacuteda

do conceito de miacutemesis aristoteacutelico o fecho da estrateacutegia anterior foi a partir de uma

visatildeo geral das atividades humanas apropriar-nos das distinccedilotildees (tambeacutem aristoteacutelicas)

dos pares de conceitos de uacutetilnegoacutecio e belooacutecio para identificar em quais dessas catego-

rias nossos objetos de estudo se alinham Mas o que percebemos eacute que arte e design pela

proacutepria complexidade inerente aos mesmos satildeo nuanccedilados nos seus pontos de encontro

similaridades e distanciamentos de fronteiras conceituais Assim avanccedilaremos mdash operando

da mesma maneira analiacutetica e mantendo o foco nos fundamentos ontoloacutegicos mdash sobre

FIM EM SI MESMO

asymp aC dC 7 dC 85 dC dCGreacutecia Ocidente

EPISTEacuteME

TEacuteKHNE

PHYacuteSIS NATUREZA

CIEcircNCIA

TEacuteCNICA

ARTE

TECNOLOGIA

POacuteIESIS

1 2

DESIGN

Figura 34 Linha do tempo indicando o conceito de fim em si mesmo (linha 2) em um caminho inverso ao da ldquoPonte Flusserianardquo partindo da arte em direccedilatildeo ao design fonte autor

164

outro elemento constituinte das atividades humanas a comunicaccedilatildeo A busca eacute por uma

perspectiva que amplie nosso entendimento sobre a questatildeo

Em seu livro Obra aberta Umberto Eco atento aos pressupostos de comunicaccedilatildeo da

arte e de outros campos estabelece uma distinccedilatildeo entre discurso aberto e discurso persua-

sivo Para Eco (1988 p 279-280) o discurso aberto tem duas caracteriacutesticas principais

eacute ambiacuteguo e envia-nos natildeo agraves coisas mesmas mas ao modo como o discurso as expressa

Essas duas caracteriacutesticas segundo ele satildeo proacuteprias da arte Essa ambiguidade do discurso

aberto que natildeo tem a mesma conotaccedilatildeo da anaacutelise anterior de Danto no Dilema de Eu-

riacutepedes reforccedila a distinccedilatildeo baacutesica entre arte e campos que se supotildeem direcionados apenas

agrave objetividade como a ciecircncia enquanto o discurso da arte eacute equiacutevoco o desses campos eacute

uniacutevoco ou pelo menos pretende ser

Em primeiro lugar o discurso da arte eacute ambiacuteguo porque natildeo pretende oferecer uma

definiccedilatildeo da realidade que seja plena e cabal

[] o discurso artiacutestico nos coloca numa condiccedilatildeo de ldquoestranhamentordquo de ldquodespaisamentordquo apresenta-nos as coisas de um modo novo para aleacutem dos haacutebitos conquistados infringindo as normas da linguagem agraves quais haviacuteamos sido habituados As coisas de que nos fala nos aparecem sob uma luz estranha como se as viacutessemos agora pela primeira vez precisamos fazer um esforccedilo para compreendecirc-las para tornaacute-las familiares precisamos intervir com atos de escolha construir-nos a realidade sob o impulso da mensagem esteacutetica sem que esta nos obrigue a vecirc-la de um modo predeterminado Assim a mi-nha compreensatildeo difere da sua e o discurso aberto se torna a possibilidade de discursos diversos e para cada um de noacutes eacute uma contiacutenua descoberta do mundo (eco 1988 p 280)

Como afirma Eco (1988 p 280) a mensagem que proveacutem do discurso aberto natildeo se

consuma sempre respondendo diversamente para cada um que tenha acesso ao discurso

Talvez em parte por causa dessa caracteriacutestica noacutes retornamos mais de uma vez para a fruiccedilatildeo

de uma mesma obra de arte E estando essa obra carregada de possibilidades discursivas

jaacute que eacute ambiacutegua sempre nos atingiraacute e nos ofereceraacute algo novo em sua apreciaccedilatildeo

Em segundo lugar o discurso da arte vai em direccedilatildeo ao modo como expotildee seus ob-

jetos e natildeo aos objetos mesmos Natildeo importa por exemplo se uma maccedilatilde pintada em

uma natureza morta assemelha-se mais ou menos com uma maccedilatilde real O que importa eacute

165

que ela se abre para um modo diverso de percepccedilatildeo e revela sempre algo mais Este modo

diverso de percepccedilatildeo que o discurso aberto propicia por sua capacidade de revelar algo

mais natildeo busca a simples imitaccedilatildeo Assim um elemento importante a ser ressaltado eacute que

tal caracteriacutestica ainda que natildeo explicitada ou pretendida por Eco estabelece a conexatildeo

dessa categoria de discurso com o conceito de miacutemesis em sua vertente aristoteacutelica

Em um exemplo distinto afastando-nos do modelo representacionista de arte um

ready made de Duchamp como A fonte (figura 35) natildeo tem a intenccedilatildeo ou natildeo assume

como primeira intenccedilatildeo enviar-nos ao objeto que a originou isto eacute a um urinol Como

diz Eco a arte ldquonatildeo quer agradar e nem consolar mas colocar problemas renovar a nossa

percepccedilatildeo e o nosso modo de compreender as coisasrdquo (eco 1988 p 280)

Quando vai tratar do discurso persuasivo Umberto Eco lembra-nos que o primeiro

teoacuterico a abordar essa categoria de mensagem foi Aristoacuteteles ao estudar as suas diversas

modalidades na Arte retoacuterica Tanto quanto em A poeacutetica Aristoacuteteles escreve esse tratado

visando ao mesmo tempo descrever um determinado tema e prescrever maneiras de uti-

lizar as teacutecnicas advindas do seu estudo descritivo Analisemos como Eco apresenta-nos

a divisatildeo que Aristoacuteteles faz para o discurso persuasivo

Figura 35 Fotografia de A fonte (1917) de Marcel Duchamp fonte tateorg

166

[] Persuasivos satildeo o discurso judiciaacuterio o discurso poliacutetico e o discurso da propaganda [] Ele [Aristoacuteteles] examinou os modos do discurso deliberativo (poliacutetico) judiciaacuterio e epidiacutetico (ieacute o discurso em louvor ou em reprovaccedilatildeo de qualquer coisa diriacuteamos hoje ldquoo discurso publicitaacuteriordquo) e prescreveu as regras de um discurso que partindo de ldquoopiniotildees comunsrdquo leve o ouvinte a assentir a concordar com aquele que fala Nesse sentido o discurso persuasivo quer convencer o ouvinte com base naquilo que ele jaacute sabe jaacute deseja quer ou teme O discurso persuasivo tende a confirmar o ouvinte nas suas opiniotildees e conven-ccedilotildees Natildeo lhe propotildee nada de novo natildeo o provoca mas o consola assim hoje a publicidade me induz a comprar aquilo que eu jaacute desejo e a desejar aquilo que natildeo desejo mas responde agraves minhas tendecircncias secretas fotonovelas e histoacuterias em quadrinhos me fazem rir chorar ou estremecer com os problemas de sempre os sinais de traacutefego me levam a parar ou a passar referindo-se a necessidades elementares de seguranccedila ao medo do acidente ao temor de uma multa (eco 1988 p 281) Itaacutelico nosso

Nessa citaccedilatildeo algo que nos chama a atenccedilatildeo satildeo os exemplos que Eco oferece para as

classes de discurso persuasivo de Aristoacuteteles Particularmente o epidiacutectico ou demonstra-

tivo eacute o que nos interessa por uma de suas caracteriacutesticas o elogio Natildeo eacute difiacutecil associar o

discurso epidiacutectico ao discurso subjacente ao design principalmente depois do passo dado

por Umberto Eco ao associaacute-lo agrave publicidade E podemos usar os mesmos argumentos de

Eco da citaccedilatildeo anterior mudando apenas o sujeito da oraccedilatildeo de publicidade para design

e afirmar que o design ldquome induz a comprar aquilo que eu jaacute desejo e a desejar aquilo que

natildeo desejo mas responde agraves minhas tendecircncias secretasrdquo

Assim aproveitando ainda as palavras de Eco uma vez que o discurso epidiacutectico

responde tambeacutem agraves nossas ldquotendecircncias secretasrdquo cabe ao design se antecipar a elas e criar

produtos jaacute inconscientemente desejados pelos consumidores E isso o design que se quer

estrateacutegico e que atua na relaccedilatildeo produtoconsumidorusuaacuterio sabe fazer Sabe inclusive

colocar certo ldquosaborrdquo de discurso aberto em seus produtos para atrair o consumidor e

futuro usuaacuterio ansioso por interagir criar ele mesmo sua obra personalizada e ter uma

experiecircncia iacutempar ao utilizaacute-lo para fins especiacuteficos ou natildeo Neste sentido a compreensatildeo

desses discursos aponta para uma resposta aquele algo mais detectado por noacutes anterior-

mente e atribuiacutedo a uma parcela de fim em si mesmo deslocado da esfera da arte pode se

explicar por meio da introduccedilatildeo de caracteriacutesticas do discurso aberto no design Foi o que

constatamos anteriormente com o espremedor de frutas o que conceitualmente sinaliza

167

para trabalhos como o de Philippe Starck enquanto referecircncia concreta da incorporaccedilatildeo

do discurso aberto ao universo do design

A figura 36 traz uma siacutentese da subseccedilatildeo atual Por um lado representa o movimento do

discurso aberto de Eco que parte da arte em direccedilatildeo ao design combinando seus atributos

com os conceitos aristoteacutelicos de miacutemesis (conexatildeo identificada na paacutegina 165) e de fim em

si mesmo determinada no paraacutegrafo anterior Por outro incorpora o discurso persuasivo

epidiacutectico proveniente da Retoacuterica de Aristoacuteteles no interior do design potencializando

as accedilotildees deste campo tambeacutem no acircmbito dos conceitos de miacutemeses e de fim em si mesmo

433 Do design agrave arte a metaacutefora epistemoloacutegica e os objetos sensiacuteveis

A descriccedilatildeo da subseccedilatildeo anterior elucida somente parte da questatildeo uma vez que satisfaz

somente um dos sentidos da relaccedilatildeo Aquele em que o discurso aberto proacuteprio da arte se

encaminha em direccedilatildeo ao design e pode se estabelecer em seu interior Resta ainda pensar

se ocorre o inverso eacute possiacutevel que o discurso persuasivo proacuteprio do design seja de algum

modo apropriado pela arte De novo Umberto Eco fornece subsiacutedios para iniciarmos

este segundo caminho

Atento a determinadas relaccedilotildees que se estabelecem no interior da cultura Eco percebe

a influecircncia que teorias cientiacuteficas exercem sobre grupos especiacuteficos na sociedade Entre

eles encontram-se o dos artistas interessados nos rumos das ciecircncias suas descobertas e

nas mudanccedilas culturais que as mesmas geram Tal interesse segundo Eco os conduz a

Figura 36 Esquema das origens e movimentos dos discursos aberto e persuasivo em suas conexotildees com a arte a comunicaccedilatildeo e o design fonte autor

ARISTOacuteTELESDISCU

RSO

ABER

TO

MIacuteMESIS + F

IM E

M SI

MESMO

DISCURSO PERSUASIVO

EPIDIacuteTICO

ECOARTE

RETOacuteRICA

DESIGN

168

proporem poeacuteticas baseadas nessas concepccedilotildees Na busca por explicar essa relaccedilatildeo entre

metodologia cientiacutefica e poeacutetica Eco sugere que ldquotoda forma artiacutestica pode ser encarada

[]comometaacuteforaepistemoloacutegicardquo(eco 1988 p 54) Itaacutelico nosso Assim segundo ele

em cada eacutepoca a arte incorpora por meio de metaacuteforas o modo pelo qual tanto a ciecircncia

quanto a cultura moldam as concepccedilotildees da realidade Em seguida Eco corrobora sua

hipoacutetese com exemplos posteriores agrave Idade Meacutedia ateacute o seacuteculo passado correlacionando

de modo plausiacutevel as poeacuteticas de alguns periacuteodos com as tendecircncias da ciecircncia

Natildeo eacute imprescindiacutevel concordarmos com o caraacuteter de necessidade da proposta de

Eco (explicitado com o adjetivo ldquotodardquo da citaccedilatildeo anterior) para admitirmos a plausibi-

lidade de sua concepccedilatildeo Nem tampouco eacute necessaacuterio aderirmos agrave sua visatildeo de que no

seacuteculo xx o conceito de complementaridade8 da mecacircnica quacircntica assume o posto de

ldquometaacutefora epistemoloacutegicardquo para diversos modelos adotados de poeacuteticas Eacute preciso cautela

com tal constructo evitando polarizar ou estreitar as possibilidades do universo artiacutestico

de uma eacutepoca em torno de programas cientiacuteficos No nosso entendimento o interesse

pela diversidade que eacute proacuteprio da arte conduz agrave incorporaccedilatildeo e exploraccedilatildeo de novas

descriccedilotildees da realidade propostas pela ciecircncia como ocorre tambeacutem de um modo geral

com a cultura Aleacutem disso mesmo admitindo a concepccedilatildeo de metaacutefora epistemoloacutegica

como capaz de influenciar pelo menos em parte os rumos da arte esse caminho que

parte da ciecircncia em direccedilatildeo agrave arte natildeo explica o segundo sentido da relaccedilatildeo que vai do

design ateacute agrave arte pois apesar de termos em conta a relevacircncia da objetividade no design

natildeo o entendemos como ciecircncia estrita Em outras palavras uma vez que chegamos no

capiacutetulo passado agraves transposiccedilotildees da antinomia kantiana para o campo do design natildeo

podemos simplesmente substituir naquela formulaccedilatildeo o conceito de ciecircncia pelo de design

E mesmo que isso fosse possiacutevel tal recurso natildeo abarcaria um dos componentes essenciais

de nossa proposta a saber seu vieacutes ontoloacutegico Mas essa caracteriacutestica pode ser resgatada

se retornarmos a um autor que natildeo abre matildeo da ontologia Assim deixemos essa parte

8 Sendo o princiacutepio de complementaridade da fiacutesica estabelecido a partir de descriccedilotildees experimentais de sistemas quacircnticos que se excluem mas descrevem aspectos complementares do fenocircmeno fiacutesico (como a dualidade entre onda e partiacutecula) Eco considera que na arte contemporacircnea de forma cor-relata as diversas possibilidades interpretativas se complementam e tambeacutem se excluem Jaacute em nossa proposta fundada na miacutemesis aristoteacutelica a complementaridade com o real eacute um caminho do meio e portanto natildeo excludente

169

da concepccedilatildeo de Eco que contribui indicando o caminho a natildeo se seguir e procuremos

em Danto a resposta a essa segunda parte constituinte da relaccedilatildeo A seguinte afirmaccedilatildeo

de Danto em um ensaio sobre Andy Warhol apresenta diversos elementos interligados

que podem subsidiar a construccedilatildeo deste sentido inverso da relaccedilatildeo

Tinha prometido dar alguma explicaccedilatildeo sobre como a exaltaccedilatildeo do ordinaacuterio ajudou a dar agrave arte uma consciecircncia de sua natureza filosoacutefica Os expressionistas abstratos certamente se assumiram como metafiacutesicos na pintura e acreditaram que a sua arte conectava-se com uma seacuterie de sentidos a que tinham acesso pelo inconsciente Eles usaram a linguagem da filosofia com rebuscamento e falaram com familiaridade sobre o Self o noumecircnico o Ding an sich O mundo ordinaacuterio como na grande tradiccedilatildeo vinda de Platatildeo era menosprezado como inferior como mero como alheio agrave realidade com a qual supunham-se em contato A relaccedilatildeo entre arte e realidade natildeo poderia ser constituiacuteda nas estruturas que eles tornaram possiacuteveis Soacute poderia ser quando se pudesse aceitar um objeto ordinaacuterio ie ver que alguma coisa poderia ser arte e ainda se parecer com um objeto ordinaacuterio da mesma forma que os objetos ordinaacuterios se parecem entre si Uma vez que isso foi possiacutevel ficou imediatamente claro que a arte natildeo era o que a teoria dos expressionistas abstratos havia promulgado e natildeo poderia ser filosoficamente concebida enquanto estivesse naquela forma O entendimento filosoacutefico comeccedila quando se percebe que nenhuma propriedade visiacutevel distingue a realidade da arte em geral E isso foi algo que finalmente Warhol demonstrou (danto 2001 p 112)

Na citaccedilatildeo anterior o primeiro ponto significativo para a nossa posiccedilatildeo eacute a contra-

posiccedilatildeo que Danto faz entre a atitude dos expressionistas abstratos e a atitude de Warhol

Danto identifica os primeiros com a mesma postura advinda de Platatildeo de criacutetica ao mundo

sensiacutevel ldquomundo ordinaacuteriordquo nas palavras de Danto Subjacente agrave posiccedilatildeo dos expressio-

nistas abstratos eacute que se para Platatildeo a arte enquanto imitaccedilatildeo busca seus objetos no

mundo sensiacutevel e isso como vimos no capiacutetulo 2 eacute condenado por esse filoacutesofo deve-se

afastaacute-la do mundo sensiacutevel buscando no mundo inteligiacutevel a verdadeira realidade Natildeo

sem razatildeo Danto os rotula ldquometafiacutesicos da pinturardquo

Ao unir Platatildeo ao Expressionismo Abstrato contrapondo-os agrave Pop-Art na figura de

Warhol Danto ao mesmo tempo favorece trecircs pontos em nossa posiccedilatildeo

1 Confirma a nossa escolha por Warhol uma vez que este artista conscientemente ou natildeo

faz parte dos que criticam a posiccedilatildeo platocircnica e a tradiccedilatildeo que a segue tradiccedilatildeo essa

que concebe a realidade de modo hierarquizado onde o sensiacutevel natildeo tem relevacircncia

170

2 Concomitante ao primeiro ponto se o sensiacutevel tem relevacircncia na constituiccedilatildeo da

realidade significa que o ordinaacuterio passa a ter seu status ontoloacutegico reconhecido

3 Possibilita a associaccedilatildeo dos ldquoobjetos ordinaacuteriosrdquo com os objetos de design

Analisando a lista anterior em relaccedilatildeo ao primeiro item e agrave duacutevida sobre Warhol

estar consciente do que faz enquanto artista Danto natildeo acredita na sua ingenuidade

mas cita diversos personagens da cena nova-iorquina das deacutecadas de 1960 e 1970 que

pensam assim Entre eles o escritor Thom Jones potildee nas palavras de um narrador de suas

histoacuterias a seguinte afirmaccedilatildeo

Ele [Andy Warhol] mdash o que ele tinha era como uma grande antena de raacutedio Funcionava em todas as vibraccedilotildees coacutesmicas Ele apenas fazia as coisas acho que natildeo sabia a metade delas Ele era um desses idiotas engenhosos penso Suas pinturas satildeo muito vagas Vick Natildeo consigo fazer uma leitura delas (jones Thom ldquoThe pugilist at restrdquo 1993 apud danto 2004 p 99)

A descriccedilatildeo de Jones contraacuteria agrave compreensatildeo de Danto carrega um tom criacutetico ao subs-

titiuir a consciecircncia pela inspiraccedilatildeo na caracterizaccedilatildeo de Warhol comparando-o com ldquouma

grande antena de raacutediordquo Subjacente a tal afirmaccedilatildeo encontra-se uma tradicional concepccedilatildeo

de arte enquanto atividade inspirada que vem pelo menos desde Platatildeo No diaacutelogo Iacuteon

(cf citaccedilatildeo de Ribeiro nota 5 p 151) Platatildeo afirma que o poeta e o rapsodo natildeo se guiam

por uma teacutekhne ou episteacuteme mas falam fora de si possuiacutedos pelo deus entusiasmados e

sem consciecircncia Natildeo obstante esse entendimento que Jones expressa sobre Warhol e seu

trabalho mantemos nossa posiccedilatildeo apoiados na interpretaccedilatildeo de Danto Como veremos

no proacuteximo capiacutetulo este artista tem mais a nos revelar em suas obras e afirmaccedilotildees

Quanto ao segundo ponto da lista a inclusatildeo e a defesa de Danto em favor de uma

ontologia do sensiacutevel explorando o trabalho de Warhol (e obviamente contrariando a

posiccedilatildeo platocircnica) coaduna com as concepccedilotildees em retrospecto de Bonsiepe Maldona-

do Cardoso Flusser e Aristoacuteteles Todos eles evidentemente com as particularidades

de seus interesses e objetos de estudo procuram preservar esse aspecto da realidade que

fundamenta a empiria e o pragmaacutetico de seus campos de atuaccedilatildeo

Por uacuteltimo eacute faacutecil de se identificar a equivalecircncia do terceiro ponto (entre objetos

ordinaacuterios e do design) quando pensamos que Warhol parte por exemplo de caixas de

sabatildeo e latas de sopa (figura 37) e as ldquotransfigurardquo em obras de arte Com essa implicaccedilatildeo

171

muacutetua completamos nosso movimento que sai do design e chega ateacute a arte constituindo

o inverso do caminho na seccedilatildeo anterior nessas relaccedilotildees

A figura 38 apresenta alguns dos exemplos analisados neste capiacutetulo e suas conexotildees

com a arte e o design No entanto apesar da configuraccedilatildeo simples e dos poucos elementos

que compotildeem o graacutefico devemos estar atentos para a complexidade da base conceitual que

subjaz aos trecircs objetos representados (o urinol a caixa de sabatildeo e o espremedor de frutas)

Figura 37 Fotografias da Brillo box (1964) e dos 32 quadros das latas de sopa Campbell (1962) criados por Andy Warhol fonte momaorg

Figura 38 Esquema dos dois sentidos de apropriaccedilatildeo da arte e do design fonte autor

ARTE

DESIGN

172

Do ponto de vista da aparecircncia ou do sensiacutevel natildeo eacute possiacutevel distinguir quais satildeo

obras de arte quais satildeo artefatos de design ou quais se encontram no meio do caminho

entre um campo e outro Assim como defendemos anteriormente apoiados em Danto

(2005) apesar das diferenccedilas ontoloacutegicas entre design e arte no acircmbito da experiecircncia

sensiacutevel cada vez mais torna-se difiacutecil identificar o que eacute arte e o que natildeo eacute

Existe uma circularidade na figura 38 em que a parte esquerda indica o caminho do

design ateacute a arte em que se transfiguram um urinol em A fonte e uma embalagem de sabatildeo

em poacute na Brillo Box Mas na parte direita no sentido inverso natildeo satildeo obras de arte que

se convertem em artefatos mas objetos do design que passam a incorporar caracteriacutesticas

ateacute entatildeo exclusivas do universo artiacutestico Em outras palavras se existe uma simetria nos

processos e conceitos que envolvem a passagem de um campo ao outro esta se daacute no

primeiro sentido com a arte se apropriando de objetos do design ao alterar seus significa-

dos e no segundo com o design se apropriando de conceitos da arte tambeacutem alterando os

significados de seus objetos

173

5 A PRODUCcedilAtildeO DE OBJETOS NO MUNDO SENSIacuteVEL

A partir das anaacutelises de obras de arte e objetos do design estabelecidas no capiacutetulo anterior

o caminho agora eacute de verticalizaccedilatildeo da investigaccedilatildeo na praacutexis do design e da arte man-

tendo a circunscriccedilatildeo nos nomes de Marcel Duchamp Andy Warhol e Philippe Starck

No entanto natildeo eacute nossa intenccedilatildeo proceder de forma catalograacutefica dada a existecircncia de

inuacutemeras pesquisas dessa natureza (em parte pela relevacircncia e celebridade conquistadas

pelos artistas e designer em foco) mas tambeacutem porque do ponto de vista da apresen-

taccedilatildeo de exemplos relacionados aos conceitos investigados entendemos que o capiacutetulo

anterior cumpre este papel sem procurar ser um registro empiacuterico de comprovaccedilatildeo pela

quantidade Diante dessa delimitaccedilatildeo inicial o objetivo neste capiacutetulo se concentra no

quarto e uacuteltimo item do meacutetodo (cf capiacutetulo 1 p 49) na ampliaccedilatildeo da identificaccedilatildeo dos

conceitos jaacute elaborados a partir das produccedilotildees de objetos do design e da arte tornando

mais evidentes suas estruturas

Esse procedimento acreditamos permite o aprofundamento na compreensatildeo das

trajetoacuterias e produccedilotildees desses dois campos e alguns dos consequentes desdobramentos

em suas relaccedilotildees uma vez que os trecircs nomes investigados contam com trabalhos (prin-

cipalmente Duchamp e Warhol) minimamente afastados no tempo para permitirem o

uso do criteacuterio histoacuterico dos ldquopontos focaisrdquo de Cassirer (1992) de modo mais objetivo

analiacutetico e distanciado Na medida em que os autores estudados atuam em suas aacutereas

de modo predominantemente pragmaacutetico o que normalmente se espera de artistas e

designers intensifica-se a necessidade de recorrermos a estudiosos contemporacircneos de

perfil teoacuterico especializados na pesquisa das obras e vidas desses trecircs profissionais para

suportar e corroborar nossos argumentos

Para a anaacutelise de Marcel Duchamp e Andy Warhol retornamos a dois autores centrais

aos capiacutetulos anteriores Arthur Danto e Thierry de Duve Com relaccedilatildeo a Arthur Danto

desta vez procuramos apoio principalmente em dois de seus trabalhos especiacuteficos e recentes

mais ligados agraves atuaccedilotildees dos artistas do que propriamente agrave constituiccedilatildeo de sua complexa

teoria sobre a arte Assim exploramos o artigo O filoacutesofo como Andy Warhol de 2004 e

o livro Andy Warhol Arthur C Danto de 2012 em que o proacuteprio Danto afirma buscar

174

ldquoum texto de faacutecil leitura[1] em linguagem agradaacutevelrdquo (danto 2012 p 19) E com Tierry

de Duve retomamos um artigo sobre Duchamp de 2010 O que fazer da vanguarda Ou

o que resta do seacuteculo 19 na arte do seacuteculo 20 Para Philippe Starck nos baseamos nos livros

homocircnimos Philippe Starck da historiadora do design Judith Carmel-Arthur de 2000

e da jornalista e criacutetica de arte Cristina Morozzi de 2012 assim como em um capiacutetulo do

livro organizado pela curadora de design Valeacuterie Guillaume Scritti Su Starck de 2004

escrito pelo filoacutesofo Michel Onfray Nossa abordagem em diaacutelogo com esses pesquisa-

dores constitui a base preferencial para as duas seccedilotildees deste capiacutetulo

Assumir autores de perfil teoacuterico como nossos interlocutores principais possibili-

tando a mediaccedilatildeo com Duchamp Warhol e Starck natildeo significa deixar de atentar para

as declaraccedilotildees dos dois artistas e do designer acerca de seus trabalhos Fazemos incursotildees

em textos relatos e afirmaccedilotildees de Warhol e Starck Como veremos entre as criaccedilotildees e suas

narrativas e discursos especialmente no caso de Philippe Starck podem ser identificadas

divergecircncias conceituais o que natildeo deve causar surpresa por tratar-se de um profissional

acentuadamente inclinado para o acircmbito criativo e projetivo e natildeo teoreacutetico Em certo

sentido essas afirmaccedilotildees trazem a tona algumas das caracteriacutesticas dos discursos de ma-

nifestos que permeiam a histoacuteria da arte e do design

Os manifestos em design a comeccedilar pelo nome assumido pelos designers que os

propotildeem ainda hoje guardam semelhanccedila estrutural com os manifestos em arte e se dis-

tanciam do modelo de persuasatildeo estabelecido de um modo geral pelas ciecircncias Como

sabemos as ciecircncias mesmo quando propotildeem alteraccedilotildees radicais em suas teorias publi-

cam seus enunciados de mudanccedilas preferencialmente na forma de artigos e livros Se

pensarmos do ponto de vista epistemoloacutegico por exemplo como assevera Popper (1993)

poderiacuteamos dizer grosso modo que os cientistas buscam incessantemente questionar e

falsear suas teorias Se nos apoiarmos diversamente em Kuhn (1962) admitiremos que

1 Nesta obra Danto alerta-nos que natildeo se deteraacute nos aspectos ontoloacutegicos de constituiccedilatildeo de uma teoria voltando-se mais para o artista Warhol e sua obra ldquoNatildeo vou me aprofundar aqui no que os filoacutesofos denominam ontologia da obra de arte mdash o que eacute uma obra de arte mdash quais as condiccedilotildees necessaacuterias para que um objeto seja uma obra de arte A esse respeito peccedilo ao leitor que procure meus estudos sobre filosofia da arte Em contraposiccedilatildeo os vaacuterios desafios de Andy agraves definiccedilotildees dos filoacutesofos e outros pensadores sobre a arte satildeo insignificantes se comparadas agraves caixas de super-mercadordquo (danto 2012 p 94)

175

subjacente agrave cada teoria existe uma ldquocrenccedilardquo no paradigma que a fundamenta e que parte

da comunidade cientiacutefica soacute comeccedila a questionaacute-lo quando surgem problemas profundos

e resistentes ateacute a soluccedilotildees ad hoc nessa teoria

Pode-se aderir agraves descriccedilotildees antagocircnicas de Popper ou Kuhn ou de outros epistemoacutelo-

gos contemporacircneos acerca de como e quando os cientistas questionam radicalmente suas

proacuteprias teorias e regras dispostos a abandonaacute-las por novas concepccedilotildees Diversamente disso

por tudo o que investigamos ateacute este momento sabemos que permanece uma distacircncia entre

o modelo de questionamento assumido por cientistas mas natildeo plenamente implementado

por designers e claramente avesso ao tipo de questionamento que propotildeem os artistas Com

esses elementos em consideraccedilatildeo entendemos ser imprescindiacutevel examinar os ldquopontos focaisrdquo

representados por Duchamp Warhol e Starck e suas obras tendo em conta suas posiccedilotildees

e afirmaccedilotildees mas tambeacutem o crivo da anaacutelise dos estudiosos que os investigam

51 ldquoPontos focaisrdquo na arte Andy Warhol e Marcel Duchamp

O tiacutetulo desta seccedilatildeo inicia-se deliberadamente com uma inversatildeo cronoloacutegica ao colocar

Andy Warhol que atua intensamente nos anos de 1960 e 1970 precedendo a Marcel

Duchamp que estabelece um fulcro na arte institucionalizada ainda no final da segunda

deacutecada do seacuteculo xx Subjacente a essa transgressatildeo histoacuterica encontra-se nosso interesse

(e de certo modo tambeacutem de Arthur Danto por motivos completamente distintos do

nosso) em destacar a relevacircncia de Warhol para a contemporaneidade da arte e da cultura

de um modo exclusivo em relaccedilatildeo agrave proposta radical e originaacuteria de Duchamp

Danto defende sua posiccedilatildeo em diversos momentos e obras Sua convicccedilatildeo parece em

parte ser reforccedilada por uma compreensatildeo diversa daquela de seus colegas criacuteticos de que

Warhol natildeo tinha exatamente consciecircncia do que ele mesmo propunha como arte O proacute-

prio Danto se questiona a princiacutepio sobre a relevacircncia da Pop-Art e de seus seguidores

Eu havia me mudado para Nova York apoacutes a guerra motivado por um imenso entusiasmo pela arte da Escola de Nova York na qual esperava fazer carreira como artista Eu era veterano de guerra e possuiacutea uma bagagem educacional que decidira aplicar ao estudo da filosofia Embora tivesse feito algum sucesso

176

como artista a filosofia acabou se revelando mais interessante para mim No princiacutepio de 1960 eu era professor da Universidade Coluacutembia e estava em gozo de um periacuteodo sabaacutetico na Europa onde pretendia escrever meu primeiro livro Foi na Biblioteca Americana de Paris que vi pela primeira vez um trabalho da arte pop uma reproduccedilatildeo em preto e branco publicada na revista artnews Seu tiacutetulo era O beijo de Roy Lichtenstein [figura 39] e parecia ter sido recortada da seccedilatildeo de quadrinhos de um jornal americano Basta dizer que fiquei pasmo Eu tinha certeza de que aquilo natildeo era arte mas no decorrer de minha temporada em Paris fui aos poucos elaborando a ideia de que se aquilo era arte qualquer coisa podia ser arte Tomei entatildeo a decisatildeo de ver tudo o que pudesse da arte pop quando voltasse aos Estados Unidos (danto 2012 p 11-12)

Essa perplexidade e incompreensatildeo inicial de Danto e a sua consequente recusa da

Pop-Art daacute lugar a uma visatildeo diversa em relaccedilatildeo aos seus colegas criacuteticos da eacutepoca

Eu fico frequumlentemente impressionado com a ironia de que algueacutem tatildeo inveros-siacutemil como Warhol que parecia tatildeo pouco dotado de dons e poderes intelectuais no mundo das artes tatildeo ldquomaneirordquo tatildeo ligado na baixa cultura mdash kitsch mdash pudesse ter introduzido intuiccedilotildees filosoacuteficas tatildeo aleacutem daqueles seus pares que liam Kant ou que arrotavam existencialismo citavam Kierkegaard e usavam o vocabulaacuterio mais complicado e erudito Quando eu em um ensaio que publiquei na eacutepoca da sua exposiccedilatildeo retrospectiva poacutestuma no Museu de Arte Moderna

mdash MoMA reivindiquei que ele era o mais proacuteximo de um gecircnio filosoacutefico que a arte do seacuteculo vinte havia concebido fui abordado com pouca aceitaccedilatildeo pela grande maioria dos meus amigos que o considerava num patamar intelectual muito abaixo (danto 2004 p 113)

Figura 39 Reproduccedilatildeo da pintura O beijo (1961) de Roy Lichtenstein fonte image duplicatorcom

177

Danto prossegue com sua anaacutelise procurando encontrar os elementos subjacentes agrave

icocircnica imagem de Warhol imagem essa que o proacuteprio artista ajudou a cunhar naquela

eacutepoca com suas atitudes e afirmaccedilotildees aparentemente banais E como em outras anaacutelises

do filoacutesofo a Brillo Box eacute seu exemplo preferido

Uma fotografia de Warhol entre suas caixas [figura 40] parece indistinguiacutevel de uma fotografia de um funcionaacuterio entre as caixas do supermercado Com que licenccedila podemos supor que podemos diferenciar uma obra de arte de um objeto meramente utilitaacuterio Um eacute feito de compensado e o outro de caixa de papelatildeo mas pode a diferenccedila entre arte e realidade residir numa diferenccedila que

ldquopoderia ser de outro modordquo (danto 2004 p 105-106)

Na citaccedilatildeo anterior a propoacutesito de expor a forma trivial como a arte de Warhol era

divulgada pelo proacuteprio artista Danto retoma um dos pontos que perpassa sua concepccedilatildeo

Figura 40 Fotografia da instalaccedilatildeo Warhol (1964) Stable Gallery Nova York fonte revista ars

178

ao longo de sua carreira como filoacutesofo da arte O cerne encontra-se na mesma pergunta

que jaacute vimos Danto expressar com outras palavras como diferenciar uma obra de arte de

um objeto utilitaacuterio E obviamente como filoacutesofo Danto faz o exerciacutecio de sua reflexatildeo

conectar-se com a origem ocidental desse problema

A indagaccedilatildeo sobre a definiccedilatildeo de arte fazia parte da filosofia desde o tempo de Platatildeo Mas Andy nos obrigou a repensar a questatildeo de modo inteiramente novo O novo formato da antiga questatildeo era a seguinte dados dois objetos de aparecircncia exatamente igual como eacute possiacutevel que um deles seja uma obra de arte e o outro apenas um objeto comum (danto 2012 p 92)

Acrescentando um elemento a mais agrave jaacute complexa questatildeo da diferenciaccedilatildeo Danto

lembra-nos que o projeto graacutefico das caixas de sabatildeo Brillo vendidas em supermercados

foi realizado por James Harvey que coincidentemente tambeacutem era pintor do Expres-

sionismo Abstrato estilo ao qual (como vimos no capiacutetulo anterior) a Pop-Art se opunha

frontalmente E como afirma Danto Harvey na condiccedilatildeo de autor do ldquoprojeto graacuteficordquo

da caixa de sabatildeo natildeo admitiria que esse seu trabalho de ldquoarte comercialrdquo mdash diriacuteamos

de design graacutefico mdash pudesse ser entendido como arte principalmente sendo ele um ex-

pressionista abstrato e obviamente recusando a licenciosidade da Pop-Art Nas palavras

de Danto

Harvey ficou espantado quando viu durante a inauguraccedilatildeo da exposiccedilatildeo das caixas de supermercado de Andy que a Stable Gallery estava vendendo por centenas de doacutelares as caixas que ele tinha projetado enquanto as dele natildeo valiam nada Mas Harvey com certeza natildeo julgava que suas caixas fossem arte Elas eram reconhecidamente arte comercial e como tais excelentes Deve ser possiacutevel explicar por que todo mundo se lembra da caixa de Brillo mas natildeo por exemplo das caixas de suco de maccedilatilde da Mott Natildeo cabe a Warhol o meacuterito pela genialidade do projeto graacutefico da Brillo Box o meacuterito eacute todo de Harvey mas cabe a Warhol o creacutedito por transformar em arte o que natildeo passava de um objeto absolutamente corriqueiro da vida cotidiana Foi ele quem transformou em escultura o que ningueacutem considerava arte E repetiu o feito com caixas de design ainda mais anoacutedinos que a embalagem de Brillo como a caixa de cereais Kelloggrsquos Cada uma das oito variedades de caixas era uma escultura e natildeo apenas a Brillo Box (danto 2012 p 92-93)

Esta citaccedilatildeo eacute de importacircncia capital por permitir compreender e articular alguns

dos elementos e circunstacircncias histoacutericas ligadas a criaccedilatildeo artiacutestica de Warhol e como elas

179

relacionam design e arte Danto eacute expliacutecito quanto a identificar que o artista Warhol eacute

o responsaacutevel por ldquotransformarrdquo um objeto do uso cotidiano em obra de arte escultural

a partir de um projeto graacutefico especiacutefico de outro artista que neste caso atua como de-

signer De nossa parte entendemos essa transformaccedilatildeo (ou transfiguraccedilatildeo como Danto

tambeacutem aprecia) operada pelo artista como um giro na significaccedilatildeo de um objeto e suas

caracteriacutesticas ontoloacutegicas E nisso se encontra a dupla relevacircncia de Warhol para a tese

1ordm A ocorrecircncia do giro ontoloacutegico fundamental para a nossa hipoacutetese se confirma na

accedilatildeo do artista

2ordm Essa confirmaccedilatildeo eacute explicitada em um objeto em que estaacute contida originalmente a

configuraccedilatildeo e a estrutura do design e se transforma em obra de arte

Warhol corrobora nossos argumentos ao narrar suas memoacuterias de maneira pessoal

e desprendida no livro Popismo (2013) no periacuteodo em que mdash enquanto trabalha com

ldquoarte comercialrdquomdash desperta para o mundo da arte

A pessoa que me formou como artista foi Emile de Antonio mdash quando conheci De eu era um artista comercial Nos anos 60 De ficou famoso por seus filmes sobre Nixon e McCarthy mas nos anos 50 ele havia sido agente de artistas plaacutes-ticos Fazia a ligaccedilatildeo de artistas com tudo desde cinemas de bairro ateacute lojas de departamentos e grandes corporaccedilotildees Mas soacute trabalhava com amigos se De natildeo gostasse de vocecirc natildeo se dava ao trabalho

De foi a primeira pessoa que conheci a ver a arte comercial como arte de verdade e a arte de verdade como arte comercial e ele fez todo o mundo artiacutestico de Nova York ver as coisas desse jeito tambeacutem (warhol hackett 2013 p 12)

Independentemente de Warhol creditar a Emile de Antonio a origem da compreensatildeo

de uma circularidade entre ldquoarte comercialrdquo e ldquoarte de verdaderdquo o que importa eacute a proacutepria

circularidade em si que permite a apropriaccedilatildeo de um acircmbito da realidade por outro

Diante disso eacute preciso retomar um ponto jaacute delimitado no capiacutetulo anterior (cf

p 169 - 171) derivado da contraposiccedilatildeo que propusemos entre PlatatildeoExpressionismo

Abstrato de um lado e WarholPop-Art de outro Procurando oferecer a exata dimensatildeo

da questatildeo haviacuteamos apresentado uma lista em trecircs itens indicando como a Pop-Art se

distingue e se afasta do Expressionismo Abstrato fundamentando-se na valorizaccedilatildeo do

180

mundo sensiacutevel e seus objetos ldquoordinaacuteriosrdquo Para os nossos interesses presentes vamos

nos ater aos dois uacuteltimos itens da lista (2) com a relevacircncia do sensiacutevel na constituiccedilatildeo

da realidade o ordinaacuterio passa a ter seu status ontoloacutegico reconhecido (3) a associaccedilatildeo dos

ldquoobjetos ordinaacuteriosrdquo com os objetos de design

Mas atentemos o ordinaacuterio no trabalho de Warhol natildeo se resume apenas agrave consti-

tuiccedilatildeo da imagem de suas obras O processo de produccedilatildeo tambeacutem tem sua significaccedilatildeo

Por um lado a caixa e outras obras de arte criadas por ele e montadas em seacuterie em seu

ateliecirc em uma linha de produccedilatildeo mdash natildeo sem razatildeo nomeado Factory (como conta um

de seus assistentes Gerard Malanga2) mdash mimetizam o processo da mecanizaccedilatildeo de uma

faacutebrica Por outro esse processo natildeo eacute simplesmente coacutepia de uma faacutebrica pois eacute execu-

tado manualmente por ele e seus assistentes com o cuidado e a atenccedilatildeo que suas obras

exigem Conforme Danto

Eacute como se a realidade natildeo fosse mecacircnica o suficiente para se acomodar a ima-ginaccedilatildeo de Warhol Eacute importante notar ainda que o trabalho era tatildeo central em sua concepccedilatildeo da arte que a ideia de usar como arte algo que natildeo resultasse do trabalho natildeo teria interesse nenhum para ele (danto 2012 p 77-78)

Tal imersatildeo no cotidiano da vida mescla de um lado elementos de projeto e produccedilatildeo

de objetos utilitaacuterios e de consumo como ocorre no design e de outro a criaccedilatildeo no fazer

artiacutestico Como resultado um dos seus sentidos eacute o escultural

Quando pensamos em escultura lembramos de Michelangelo Canova Rodin Brancusi ou Noguchi que criaram objetos uacutenicos de beleza e significado Antes de Warhol jamais ocorreria a algueacutem criar como escultura uma coisa semelhante a uma caixa de papelatildeo para transporte de mercadorias de consumo Warhol natildeo soacute fez exatamente isso como usou um processo que de certo modo parodiava a produccedilatildeo em massa (danto 2012 p 76)

2 Conforme Danto ldquoMalanga eacute nossa fonte principal sobre a confecccedilatildeo dessas caixas e sobre a ideia de Andy de organizar a Factory segundo linhas industriais um paradoxo porque as pessoas que participa-vam da Factory eram tudo menos robocircs lsquoAndy estava fascinado pelas prateleiras dos supermercados e pelo efeito repetitivo maquinal que criavam [hellip] Ele queria reproduzir esse efeito mas logo descobriu que a superfiacutecie de papelatildeo era impraticaacutevelrsquo Como o efeito em questatildeo eacute geralmente obtido pelo empilhamento de caixas de papelatildeo em armazeacutens e depoacutesitos eacute difiacutecil entender o que havia de errado com o papelatildeo que Warhol podia ter usado com muito menos esforccedilo simplesmente comprando as embalagens dos fabricantes e tratando-as como ready-madesrdquo (danto 2012 p 77-78)

181

Se retomarmos a fotografia de Warhol junto com as pilhas de caixas (cf figura 40

p 177) veremos como a ambiguidade do papel do artista combina com essa ldquoparoacutedia da

produccedilatildeordquo E a decisatildeo de investir um objeto de novos significados transfigurando-o de

artefato ou utensiacutelio em obra de arte recai assim sobre a responsabilidade do artista A

visatildeo de Danto se harmoniza com o que afirmamos ao final do capiacutetulo anterior (p 171-

172 sintetizada na circularidade da parte esquerda da figura 38) em que a arte se apropria

de objetos do design ao alterar seus significados

Um exemplo adicional no gecircnero da pintura mas com as mesmas caracteriacutesticas

da caixa de sabatildeo eacute o das latas de sopa Campbell que possui segundo Danto relatos

diferentes acerca de sua origem Entre aquelas que circulavam em Nova York a narrativa

da preferecircncia de Danto eacute a de que Warhol solicitou uma ideia agrave designer de interiores

Muriel Latow

Warhol disse a Latow que precisava de uma ideia ldquode grande impacto diferente de Lichtenstein e Rosenquist algo bem pessoal que natildeo pareccedila que estou fa-zendo exatamente o que eles fazemrdquo Latow respondeu-lhe que ele devia pintar alguma coisa que ldquotodo mundo vecirc todos os dias que todo mundo reconhecehellip como uma lata de sopardquo A proacutepria maneira como Warhol formulou a pergunta jaacute eliminava muitas possibilidades Ele natildeo estava interessado em pintar uma abstraccedilatildeo bonitinha e agradaacutevel ou Manhattan ao luar ou uma mulher bonita lendo uma carta perto da janela Tinha de ser algo ligado agrave cultura comum que ainda natildeo tivesse sido trabalhado por ningueacutem Algo que as pessoas comentas-sem mesmo sem ter visto (danto 2012 p 58)

Esse tipo de comportamento em relaccedilatildeo agraves ideias dos outros descrito por Danto na

citaccedilatildeo anterior eacute confirmado por Warhol em seu livro Popismo

ldquoNunca tive a menor vergonha de perguntar a algueacutem literalmente lsquoO que devo pintarrsquo porque o Pop vem de fora e que diferenccedila existe entre pedir ideacuteias a algueacutem ou procurar numa revista Henry [Henry Geldzahler curador do Me-tropolitan Museum of Art] entendeu isso mas algumas pessoas o desprezam se vocecirc pede conselho a elas natildeo querem saber nada sobre como vocecirc trabalha querem que vocecirc conserve a sua miacutestica para elas poderem te adorar sem fica-rem envergonhadas com as especificidadesrdquo (warhol hacket 2013 p 27)

Ao lado dessa atitude que pode como o proacuteprio Warhol diz incitar criacuteticas Danto

reforccedila aquela caracteriacutestica jaacute apresentada do trabalho de Warhol que desloca a atenccedilatildeo

182

do artista com uma ideia originaacuteria ponto de partida para uma obra de arte e vai ao

encontro das escolhas envolvendo os processos de criaccedilatildeo e diferentes gecircneros de arte

como as instalaccedilotildees compreendendo-os como centrais na produccedilatildeo artiacutestica Se Warhol

opta por natildeo necessariamente ser o autor da ideia ele natildeo simplesmente a executa como

um operaacuterio em uma linha de produccedilatildeo

Uma coisa eacute dizer ao artista que ele devia pintar latas de sopa outra eacute decidir como pintaacute-las A decisatildeo de Warhol envolveu mais que a mera pintura de uma lata de sopa Ele construiu um painel com trinta e duas telas (508 x 406 cm cada) organizadas em quatro fileiras de oito cada tela representando uma das variedades das sopas Campbell produzidas naquela eacutepoca mdash como uma insta-laccedilatildeo de retratos de pessoas notaacuteveis (danto 2012 p 58-59)

Tendo em consideraccedilatildeo a reconstituiccedilatildeo de alguns elementos das narrativas sobre o

processo de criaccedilatildeo de Warhol podemos assumir que Danto defende e destaca a relevacircncia

desse artista de um modo equivalente ao que entendemos como um ldquoponto focalrdquo na

histoacuteria da arte E este jaacute explicitamos anteriormente eacute um dos elementos que atua como

um dos noacutes na tese atando design e arte

Em termos ainda mais incisivos pode-se dizer que seria impossiacutevel que as caixas de Warhol fossem arte muito antes de 1964 O grande historiador da arte Heinrich Wolfflin disse que nem tudo eacute possiacutevel em todas as eacutepocas A histoacuteria da arte sempre estaacute aberta a novas possibilidades mas natildeo teria aberto a possibilidade de um objeto como uma caixa de Brillo ser arte digamos em 1874 quando a pintura impressionista era a vanguarda (danto 2012 p 91)

Mas Danto tambeacutem natildeo ignora a importacircncia histoacuterica de Duchamp Ele tem ple-

na consciecircncia de que ldquoa precedecircncia de Marcel Duchamp projeta uma certa sombra

sobre todos os subsequumlentes esforccedilos de delimitar as fronteiras da arterdquo (danto 2004

p 107) Assim ele argumenta sobre a clivagem distinta da proposta de Warhol para a

arte em relaccedilatildeo ao que aparentemente jaacute havia sido realizado em 1917 por Duchamp

com A fonte

De forma radical Danto afirma que (em princiacutepio) a indistinccedilatildeo entre obras de arte

e coisas reais decreta o que ele nomeia de ldquoO fim da Arterdquo (danto 2012 p 95) ou em

outras palavras o fim de uma histoacuteria acerca dos movimentos artiacutesticos Natildeo eacute nosso

183

propoacutesito analisar a concepccedilatildeo de Danto acerca do fim3 da arte tema que implica diversos

conceitos fora do escopo desta tese No entanto a expressatildeo fim da arte por si soacute denota

o grau de relevacircncia que este filoacutesofo atribui a Warhol natildeo somente dentro do fenocircmeno

da Pop-Art mas na histoacuteria da arte como um todo

Alguns criacuteticos me perguntam por que acho que Warhol pocircs fim agrave histoacuteria da arte da maneira como a entendiacuteamos antes mdash por que natildeo Duchamp com seus ready-mades Ora a verdade eacute que Andy fazia suas caixas enquanto Duchamp de maneira geral natildeo podia fazer seus ready-mades Soacute que nem todo objeto pode ser um ready-made jaacute que Duchamp os restringia a objetos indistinguiacuteveis do ponto de vista esteacutetico Mas por que fazer essa restriccedilatildeo a natildeo ser que se tenha uma persistente aversatildeo agrave arte retiniana (danto 2012 p 95)

Na concepccedilatildeo de Danto o que subjaz agrave posiccedilatildeo duchampiana eacute que ele criticava o

entendimento da esteacutetica claacutessica que valorizava o prazer visual ou o chamado sentido

ldquoretinianordquo ldquolsquoO deleite esteacutetico eacute o inimigo a ser derrotadorsquo mdash diz Duchamp com relaccedilatildeo

a esse gecircnero de trabalho pois os readymades segundo ele foram escolhidos precisamente

pela sua falta de interesse visualrdquo (danto 2004 p 107)

Enquanto Duchamp pode entre suas motivaccedilotildees usar ldquoo banal como um tipo de

bomba contra o conceito fortificado de arterdquo (danto 2004 p 108) e essa eacute uma atitude

natildeo soacute de Duchamp mas do movimento ao qual ele pertencia o Dadaiacutesmo Warhol

de modo distinto compreende o banal e o corriqueiro como algo que pode e deve ser

incorporado agrave arte Aleacutem disso segundo Danto Warhol com sua proposta coloca uma

pergunta de caraacuteter filosoacutefico mdash ultrapassando Duchamp que natildeo perguntou ldquopor que

todos os outros urinoacuteis natildeo eram obras de arterdquomdash ldquopor que a Brillo Box era uma obra

de arte enquanto as caixas de Brillo comuns eram meras caixas de Brillordquo (danto

2004 p 108)

Outra posiccedilatildeo que acrescenta mais elementos para a questatildeo e reforccedila os ldquopontos

focaisrdquo em Duchamp e Warhol eacute a de Tierry de Duve Em uma palestra que posterior-

mente foi publicada na forma de artigo de Duve primeiramente considera que somente

3 Danto natildeo eacute o primeiro teoacuterico a propor e tratar do tema do fim da arte Como vimos no capiacutetulo 1 (cf p 38) ele eacute precedido por filoacutesofos como Hegel Marx Nietzsche Lukacs Benjamin Heidegger Horkheimer e Adorno Para uma anaacutelise detalhada do tema ver Rodrigo Duarte (2006)

184

na deacutecada de 1960 a ldquomensagemrdquo de Duchamp foi assimilada o que em certo sentido

destaca o papel visionaacuterio deste artista

O mundo da arte natildeo acusou verdadeiramente a recepccedilatildeo da mensagem de Du-champ antes dos anos 60 quando nos rastros do neodadaacute (pop arte aliaacutes) da minimal art e da arte conceitual comeccedilou a definir-se de modo mais ou menos consciente como poacutes-duchampiano (de duve 2010 p 192)

No entanto se Duchamp foi o mensageiro para de Duve isso natildeo significa que ele

tenha sido responsaacutevel pela mensagem

Alguns ateacute atribuem o feito unicamente a Marcel Duchamp sempre ele ao inventar o ready-made Duchamp teria criado um novo gecircnero artiacutestico e um novo personagem o artista simplesmente Essa opiniatildeo comete o erro de inter-pretaccedilatildeo claacutessico ao fazer do mensageiro o responsaacutevel pela mensagem que traz Minha palestra de hoje tem o objetivo de corrigir esse erro de interpretaccedilatildeo A arte em geral natildeo substitui os meios tradicionais como a pintura e a escultura natildeo se vem juntar aos gecircneros tradicionais como a paisagem ou o nu natildeo eacute um novo estilo que se possa reconhecer por algum traccedilo comum como os ldquoismosrdquo abundantes no seacuteculo 20 A pintura e a escultura a paisagem e o nu e todos os

ldquoismosrdquo do seacuteculo 20 fazem parte ao contraacuterio da arte em geral jaacute que ela nada exclui e inclui aleacutem disso as praacuteticas recentes mdash a instalaccedilatildeo a arte conceitual ou a videoarte assim como outras que ainda natildeo tecircm nome De fato o teor da expressatildeo eacute o seguinte fazer arte com tudo e com qualquer coisa eacute hoje tecni-camente possiacutevel e institucionalmente legiacutetimo [] (de duve 2010 p 182-183)

Em outro trecho de Duve eacute mais expliacutecito em sua afirmaccedilatildeo ldquoDuchamp eacute apenas

o mensageiro Seja para o incensar ou maldizer eacute um erro de interpretaccedilatildeo atribuir ao

mensageiro a responsabilidade pelo conteuacutedo da mensagemrdquo (de duve 2010 p 186)

Quer concordemos ou natildeo com de Duve acerca do papel e consciecircncia do mensageiro

o que importa destacar no interior da posiccedilatildeo deduviana eacute o entendimento deste autor

de que a arte em geral ldquonada exclui e incluirdquo Tal compreensatildeo jaacute se encontra exposta

no capiacutetulo 3 quando vimos esse autor discordar das posiccedilotildees antagocircnicas de Clement

Greenberg e Joseph Kosuth (cf p 118-119) que se levadas ao extremo conduzem a uma

antinomia ou procurar uma continuidade na histoacuteria da arte entender o readymade

com uma fraude e rejeitar a antiarte e movimentos do Dadaiacutesmo em diante ou entender

a arte como conceitual depois do readymade e anular toda a arte anterior a Duchamp

185

Como vimos naquele momento de Duve de modo consistente recusa as duas posiccedilotildees

radicais e propotildee uma soluccedilatildeo mediadora baseada em Kant Danto de modo correlato

tambeacutem eacute partidaacuterio dessa inclusatildeo Ao final do livro A transfiguraccedilatildeo do lugar comum

eleapropoacutesitodaadmissatildeodaBrilloBoxnomundoarteafirmaldquoSuareivindicaccedilatildeo[ada

BrilloBox]pareceseraomesmotemporevolucionaacuteriaerisiacutevelelanatildeodesejasubvertera

sociedade das obras de arte mas ser admitida nela ocupando o mesmo lugar dos objetos

sublimesrdquo (danto 2005 p 296)

Atentos a esse espiacuterito de mediaccedilatildeo e inclusatildeo que atravessa as concepccedilotildees de Warhol

Danto Kant e de Duve do nosso ponto de vista tanto Duchamp quanto Warhol cum-

prem o giro ontoloacutegico com suas propostas independentemente da posiccedilatildeo que se assume

em relaccedilatildeo agrave quem tem mais relevacircncia se Duchamp ou Warhol

Quanto a aversatildeo agrave arte retiniana de Duchamp que natildeo procura mediaccedilatildeo e mostra-se

como uma das diferenccedilas entre o Dadaiacutesmo e a Pop-Art Danto acrescenta um comen-

taacuterio aos seus argumentos no tom leve que caracteriza seu livro Andy Warhol mas que

natildeo deixa de nos faz pensar sobre o sentido da vida cotidiana que Warhol e Duchamp

capturam cada um a seu modo atraveacutes dos objetos do mundo sensiacutevel (figura 41)

Uma coisa deve ser dita a respeito das Brillo Boxes elas satildeo muito bonitas Minha esposa e eu temos uma haacute anos e ainda nos maravilhamos com sua beleza Por que teriacuteamos de conviver com objetos esteticamente desinteressantes em vez de coisas tatildeo bonitas quanto a Brillo Box (danto 2012 p 95)

Figura 41 Fotografias de A fonte (1917) de Marcel Duchamp (esquerda) e da Brillo Box (1964) de Andy Warhol (direita) fontes tateorg e momaorg

186

Apesar das diferenccedilas conceituais entre os autores das anaacutelises desta seccedilatildeo acreditamos

que todos os envolvidos nas reflexotildees partilham da compreensatildeo de que na contempo-

raneidade a ampliaccedilatildeo dos domiacutenios da arte e do design leva cada um de noacutes a assumir

a responsabilidade de nossas escolhas quando decidimos sobre o que nos comove no

sentido de sermos movidos com a arte (cum-mouĕo) e tambeacutem com o design

A defesa que Danto faz da relevacircncia da Pop-Art e de Andy Warhol como ele mesmo

afirma encontra resistecircncia em outros criacuteticos americanos E Danto tambeacutem nos lembra

de mais uma interpretaccedilatildeo diametralmente oposta vinda da criacutetica europeia implicando

a Pop-Art com uma condenaccedilatildeo irocircnica agrave cultura e aos valores americanos

Estivesse ou natildeo correta a interpretaccedilatildeo dos europeus de que a arte pop conti-nha uma criacutetica da cultura dos Estados Unidos a verdade eacute que eles pelo menos perceberam que havia algo mais na nova arte do que nossos olhos americanos podiam ver De sua parte Andy ansiava por apresentar-se aos europeus como tudo menos um artista fuacutetil (danto 2012 p 9-10)

Contrabalanccedilando essas diversas posiccedilotildees criacuteticas a filoacutesofa Virginia Figueiredo

oferece sua contribuiccedilatildeo contextualizando a posiccedilatildeo de Danto

Natildeo tenho a menor ideacuteia se ele [Danto] concordaria com este epiacuteteto mas no meu modo de ver ele eacute ldquoO filoacutesofo da Pop-Artrdquo sintetizando-se aqui grossei-ramente sob o nome ldquoPop-Artrdquo a produccedilatildeo norte-americana de arte a partir do final dos anos 1950 e iniacutecio dos anos 1960) da qual talvez ele mais do que qualquer outro tentou extrair o aspecto criacutetico diminuindo a margem ambiva-lente a do elo inegaacutevel para muitos outros criacuteticos motivo de uma condenaccedilatildeo irreparaacutevel com o mercado e com a induacutestria cultural Sabe-se o quatildeo pequena foi a diferenccedila que a maioria dos criacuteticos viu entre o movimento da Pop-Art e a propaganda direta1⁶ Ainda no meu modo de ver Danto tenta pocircr a produccedilatildeo da arte contemporacircnea dos norte-americanos em sintonia com os movimentos da vanguarda europeacuteia do iniacutecio do seacuteculo xx Se natildeo em ldquosintoniardquo talvez em busca de um ldquolastrordquo ou de uma legitimaccedilatildeo histoacuterica visando agrave conquista de um lugar na histoacuteria mundial (internacional) daquela produccedilatildeo Tratava-se a meu ver portanto de um possiacutevel processo de ldquointernacionalizaccedilatildeordquo da arte norte-americana da chamada mudanccedila de referencial de Paris para Nova York Nada mais ldquopoliacuteticordquo portanto Natildeo eacute agrave toa que ele potildee em diaacutelogo de modo recorrente artistas como Andy Warhol e o francecircs Marcel Duchamp (1887-1968) (figueiredo 2005 p 449-450)

16 Cf mccarthy David Arte Pop Trad Otaciacutelio Nunes Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2002 p 35 [nota em peacute de paacutegina da autora]

187

Mas as palavras do proacuteprio Warhol natildeo negam a importacircncia que o mercado de con-

sumo tem para os norte-americanos e para ele O entendimento que Warhol tem acerca

do consumismo do qual ele natildeo vecirc problema em assumir se releva em obras como a da

figura 42 e em seu livro A filosofia de Andy Warhol de A a B e de volta a A

Comprar eacute muito mais americano que pensar e eu sou absolutamente ameri-cano Na Europa e no Oriente as pessoas gostam de comerciar mdash comprar e vender e vender e comprar satildeo basicamente mercadoras Americanos natildeo estatildeo interessados em vender mdash na verdade eles preferem jogar fora a vender O que eles realmente pensam eacute em comprar mdash pessoas dinheiro paiacuteses (warhol 2008 p 255)

Se a associaccedilatildeo da Pop-Art com o mercado induacutestria cultural e a propaganda direta

(e Warhol estaacute longe de negar tal viacutenculo) pode ser entendida como negativa por parte

da criacutetica artiacutestica por outro lado ela tambeacutem eacute indiacutecio de que a arte contemporacircnea

assume natildeo poder nem querer prescindir desses viacutenculos Esse eacute um dos pontos em co-

mum que a arte tem com diversos outros campos inclusive o design No entanto como

veremos na proacutexima seccedilatildeo consumo e consumismo satildeo caracteriacutesticas tatildeo generalizadas

e disseminadas na sociedade contemporacircnea que natildeo podem servir de paracircmetro para

as especificidades das relaccedilotildees de apenas dois campos

Figura 42 Reproduccedilatildeo do quadro 200 notas de um dolar (1962) de Andy warhol fonte sothebyscom

188

52 ldquoPonto focalrdquo no design Philippe Starck

No livro Philippe Starck da jornalista criacutetica e diretora de arte Cristina Morozzi o desig-

ner italiano Andrea Branzi abre a Apresentaccedilatildeo lembrando que Starck inicia sua carreira

ainda na deacutecada de 1970 ganhando destaque posteriormente nos anos 1980 a partir de

um trabalho para o governo de Franccedilois Mitterrand no palaacutecio Eacuteliseeacute

O presidente encarregou o jovem Starck de mobiliar o Palaacutecio do Eliseu sede do governo francecircs em Paris foi um sinal poderoso (que nenhuma outra naccedilatildeo europeacuteia tinha condiccedilotildees de acompanhar incluindo a Itaacutelia) de uma etapa na qual a cultura se tornava parte estrateacutegica de uma nova grandiosidade e cujos embaixadores no mundo eram os filoacutesofos os artistas os maestros e os jovens projetistas Philippe Starck representou o melhor natildeo soacute dessa nova e ambiciosa etapa mas tambeacutem da tradiccedilatildeo anterior formas ogivais cenografia ambiental invenccedilotildees ininterruptas de funccedilotildees novas e imprevisiacuteveis mdash um design que era simultaneamente antidesign teatro e decoraccedilatildeo urbana com arroubos de pura genialidade anunciando-se como Rei de Paris e ao mesmo tempo como Bobo da Corte (morozzi 2012 p 4)

A ambivalecircncia que caracteriza Starck retratada por Branzi entre o brilhantismo

de um ldquoReirdquo na criaccedilatildeo e a sua exposiccedilatildeo amplificada na miacutedia e no mercado como um

ldquoBobo da Corterdquo eacute algo que vende4 o conceito de designer como mais importante do que

o das empresas para as quais Starck trabalha E tal oposiccedilatildeo talvez sintetize o sentido

das palavras de Morozzi recorrendo a estudos na aacuterea da comunicaccedilatildeo para explicar a

celebridade associada agrave marca e ao nome Philippe Starck

Cristine Bauer docente da faculdade de Ciecircncia da Comunicaccedilatildeo na Universi-dade de Evry dedicou um ensaio a Le Cas Phlippe Starck ou de la Construction de la Notorieacuteteacute (Paris LrsquoHarmattan 2001) Durante um ano ela consultou os arquivos de Starck recolhendo definiccedilotildees que aparecem na foto ldquoUma lenda uma extraordinaacuteria combinaccedilatildeo de pop star e inventor maluco () astro do design francecircs que transforma tudo em design () o Picasso da deacutecada de 1990 () Philippe Starck estaacute para o design assim como uma mistura de Marcel Du-champ e Andy Warhol estaacute para a arterdquo (morozzi 2012 p 25)

4 No livro de Morozzi (2012) em detrimento da ideia de usuaacuterio os conceitos de consumo e consumidor satildeo recorrentes tanto no texto de Branzi quanto no da autora

189

De qualquer modo pelo tom das afirmaccedilotildees de Morozzi ela faz parte de um

grupo de pesquisadores que analisam o trabalho de Starck considerando que os

argumentos desse designer satildeo sempre coerentes Consequentemente ela natildeo toma

um distanciamento mais criacutetico como ocorre veremos com a historiadora do design

Judith Carmel-Arthur (2000) Morozzi afirma que ldquoNarrar paraacutebolas com palavras

e com objetos eacute a grande habilidade de Philippe Starckrdquo (morozzi 2012 p 32)

E mais a autora acredita que este designer eacute capaz de um ldquoencantamentordquo em seu

discurso

Se perguntam a Starck qual eacute o seu segredo ele responde ldquoA loquacidade Os filoacutesofos se calam por isso cabe ao designer explicar a vida e as coisasrdquo E com as palavras ele sabe encantar sempre encontrando bons argumentos Diz que seus projetos satildeo antes de tudo pretextos para contar histoacuterias e criar relacio-namentos como o Juicy Salif o espremedor da Alessi pouco eficiente como utensiacutelio mas oacutetimo para puxar uma conversa (morozzi 2012 p 25)

A ldquoloquacidaderdquo de Starck pode ser confirmada por ele mesmo quando conta acerca

do propoacutesito de seu espremedor de frutas

Philippe Starck em seu Starck Explications publicado pelo Centre Georges Pompidou por ocasiatildeo de sua mostra independente narra uma paraacutebola ldquoUm dia uma jovem recebe a sogra pela primeira vez Fica um pouco assustada e natildeo sabe o que falar Ganhara de presente o espremedor Juicy Salif A sogra pergunta lsquoMas o que eacute este objetorsquo A jovem fala de seu espremedor e a con-versa fica animada Estabelece-se um contato entre as duas mulheres que nem imaginavam que iriam se dar bemrdquo (morozzi 2012 p 32)

O tema repete-se em uma entrevista concedida agrave fotoacutegrafa e jornalista Marcelle Katz

onde ele conta sobre o seu processo de criaccedilatildeo

Certa vez em um restaurante eu tive essa visatildeo de um espremedor de limatildeo em forma de lula e comecei a projetaacute-lo e quatro anos depois ele ficou famosiacutessimo Mas para mim eacute mais uma micro-escultura simboacutelica que um objeto funcional Seu objetivo real natildeo eacute espremer milhares de limotildees mas permitir a um receacutem-casado entabular conversa com a sogra (carmel-arthur 2000 p 13)

Mas a quem a loquacidade de Starck se dirige As trecircs uacuteltimas citaccedilotildees trazem ele-

mentos comuns ao discurso de Starck que podem contribuir para entendermos estrateacutegias

190

impliacutecitas em suas narrativas aparentemente despretensiosas Primeiro a afirmaccedilatildeo do

proacuteprio designer de que um produto projetado por ele natildeo prioriza a funcionalidade

Partindo desse pressuposto expliacutecito resta a duacutevida se ele levou ou natildeo em 1990 tal pro-

posta de um projeto mais voltado a atributos natildeo funcionais agrave empresa que contratou seu

trabalho a italiana Alessi Em segundo como Branzi nos alerta Starck propotildee que ldquoa grife

do projetista eacute mais importante do que a marca da empresa que fabrica seus produtosrdquo

(morozzi 2012 p 4) Itaacutelico nosso Por exemplo a embalagem em que o espremedor eacute

vendido na atualidade tem o nome de Starck na parte superior da caixa junto agrave fotografia

do produto e a marca da empresa fabricante encontra-se na inferior Aleacutem disso uma foto

do designer eacute estampada como pano de fundo ocupando dois lados da caixa E entre os

escritos de marketing e publicidade inseridos na embalagem constam um slogan sobre

a empresa afirmando que a ldquoAlessi eacute um comerciante de felicidaderdquo e uma frase bem-hu-

morada sobre o produto ldquolsquoJuicy Salif rsquo poderia muito bem ser visto como um pequeno

alieniacutegena que passou a nos visitar em casardquo Traduccedilatildeo nossa (figura 43)

Poreacutem a despeito do discurso que orienta a divulgaccedilatildeo e venda do produto e do proacute-

prio conceito de ldquomicro-escultura simboacutelicardquo que Starck lhe atribui se nos dispusermos

Figura 43 Fotografia do espremedor de frutas da Alessi impressa na embalagem do produto fonte alessi

191

a usaacute-lo como um espremedor ele funciona com eficiecircncia5 Assim se por um lado ob-

temos a resposta para a pergunta sobre o alvo da loquacidade ser o consumidorusuaacuterio

por outro nova duacutevida se estabelece ateacute que ponto a funcionalidade natildeo eacute priorizada

Morozzi aponta para uma possiacutevel resposta que aparece entre parecircnteses

Sua grande qualidade eacute transformar o objeto banal em algo especial uacutenico a ponto de corresponder agraves expectativas inconscientes do consumidor E isso significa conferir agraves coisas normais natildeo apenas valores funcionais (no fundo a funcionalidade eacute dada como certa) mas dotaacute-las da capacidade de expressar mensagens poliacuteticas de amor de ternura impregnadas de humor (morozzi 2012 p 39)

Assim do nosso ponto de vista o que subjaz ao discurso de marketing da ldquoparaacutebolardquo

da sogra e da nora eacute o entendimento de que a funcionalidade jaacute se encontra estabeleci-

da e consequentemente pressuposta pelo designer e pelos clientes que demandam seus

projetos Starck enquanto designer sabe que a funcionalidade eacute essencial para que o seu

campo de trabalho preserve atributos como ergonomia e eficiecircncia entre outros o que

natildeo o impede de ampliar as possibilidades de significaccedilatildeo e ateacute de transfiguraccedilatildeo de seus

objetos criados Seus clientes querem vender mais em um mercado competitivo em que

os produtos tem atributos funcionais semelhantes

Atenta a esse aspecto Judith Carmel-Arthur afirma que Starck ldquoComo estrateacutegia de

marketing explora o culto agrave grife do objeto a fim de despojar os bens do significado fun-

cional primaacuterio transformando-os em artefatos de adoraccedilatildeo particular e inveja puacuteblica

simultaneamente imbui-os mais de fantasia que de fatordquo (carmel-arthur 2000 p 12)

De posse dessa interpretaccedilatildeo do artifiacutecio de Starck eacute necessaacuterio uma pausa para

cotejarmos sua proposta com outra que jaacute analisamos no capiacutetulo 2 e que seraacute frutiacutefera

5 Realizamos diversas praacuteticas informais de uso com turmas de Design na Universidade do Estado de Minas Gerais Apesar da difusatildeo da opiniatildeo inclusive entre possuidores desse artefato de que ele natildeo eacute um utensiacutelio bem projetado para sua tarefa e da inseguranccedila inicial que se sente com o apoio das matildeos em um tripeacute os estudantes se surpreendem com o seu funcionamento simples e eficiente ateacute para frutas maiores como laranjas E quanto agrave expectativa de quase todos diante da forma inusitada do espremedor de que ele natildeo conduziria o liacutequido para o recipiente de coleta comprova-se o con-traacuterio Outros atributos que os estudantes apontam satildeo a independecircncia em relaccedilatildeo agrave eletricidade e a facilidade de limpeza Entre as limitaccedilotildees identificadas o espremedor natildeo barra as sementes e natildeo permite recolher o suco em recipientes maiores que copos

192

para ampliar nossa compreensatildeo das significaccedilotildees incorporadas aos objetos de sua criaccedilatildeo

Trata-se de uma das concepccedilotildees de Rafael Cardoso Como vimos no entendimento de

Cardoso natildeo cabe ao designer atribuir ao objeto a funccedilatildeo (ou funccedilotildees que ele jaacute possui)

como no exemplo do reloacutegio e sua relogiosidade (cf p 109) e sim de enriquececirc-lo com

significados de outros niacuteveis Agrave primeira vista a concepccedilatildeo de Cardoso e a praacutetica de Starck

caminham juntas Ocorre no entanto que Starck conduz sua praacutexis em uma direccedilatildeo

diversa da proposta teoacuterica de Cardoso Como isso se daacute

Distintamente do que propotildee Cardoso Starck mitiga os sentidos funcionais originaacute-

rios dos seus projetos na sua forma e estrutura constitutiva e no discurso que ele profere

sobre os artefatos deles resultantes para os futuros consumidores e usuaacuterios Mesmo que

tais artefatos por necessidade dos fundamentos do design preservem implicitamente

sentidos e funccedilotildees subjacentes a ampliaccedilatildeo e destaque de outros significados deve se

impor e sobrepor agraves suas funccedilotildees Esta inteligente inversatildeo nos conceitos que pode ser

compreendida como parte de uma estrateacutegia de marketing e vendas tem no entanto

seus perigos

Um risco que se corre com a exaltaccedilatildeo excessiva dos sentidos e significados que vatildeo

aleacutem do que Cardoso chama de ldquobaacutesicosrdquo (cardoso 1998 p 33) eacute o que podemos de-

nominar de uma hipertrofia de caracteriacutesticas natildeo funcionais que no extremo inviabiliza

o uso de um artefato seja porque se desconhece suas funccedilotildees seja porque elas estatildeo

ocultas ou bastante dissimuladas ou porque natildeo existe interesse em utilizaacute-lo No caso

de um objeto que se adquire para uso pessoal este risco eacute menor uma vez que o usuaacuterio

normalmente o faz consciente do que compra No entanto quando um objeto eacute de uso

comunitaacuterio mesmo estando em uma residecircncia a probabilidade de um possiacutevel visitante

encontrar dificuldades em abrir (acionar) por exemplo uma torneira6 ou ligar uma sim-

ples lacircmpada tem se tornado maior e exige esforccedilos adicionais do designer para tornar

seu projeto e soluccedilotildees coesas e suas funccedilotildees identificaacuteveis

6 Eacute cada vez mais comum torneiras serem acionadas por sensores de movimento O conceito se bem elaborado e implementado tem inuacutemeras vantagens principalmente em aacutereas puacuteblicas como econo-mia no consumo de aacutegua e higienizaccedilatildeo Mas eacute fundamental que todos os usuaacuterios sejam capazes de identificar e saber usar os sistemas de acionamento Na praacutetica com a crescente ampliaccedilatildeo dos tipos de dispositivos produzidos e a falta de sinalizaccedilatildeo adequada abrir uma torneira tem cada vez mais se tornado uma tarefa de tentativa e erro um problema que natildeo pode ser ignorado pelos designers

193

Cabe ao designer saber dosar e equilibrar as caracteriacutesticas funcionais com as enri-

quecedoras para que uma espeacutecie natildeo encubra ou ateacute suprima a outra Neste sentido vale

lembrar a relevacircncia da concepccedilatildeo de Flusser de que o design enquanto uma ponte atua

na lacuna entre ciecircncia teacutecnica e arte tornando-se mais preponderante na atualidade

Um designer natildeo deve apenas projetar mas saber estabelecer a delicada proporccedilatildeo de cada

elemento constituinte de seu trabalho para ser bem-sucedido natildeo somente na criaccedilatildeo

mas tambeacutem na divulgaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo de seus produtos

Neste cenaacuterio 0utro exemplo que confirma nosso entendimento acerca das concep-

ccedilotildees de Starck que se encontram impliacutecitas agrave sua narrativa e que evidenciam o risco da

hipertrofia de caracteriacutesticas vem tambeacutem da Alessi quase uma deacutecada depois da criaccedilatildeo

do espremedor Trata-se de uma espaacutetula para bolo (figura 44) que Philippe Starck nomeia

lsquoCeci nrsquoest pas une truellersquo se inspirando em uma frase do quadro de Reneacute Magritte A

traiccedilatildeo das imagens de 1929 (figura 45) O instrumento disponiacutevel para compra no site

da Alessi vem com um aviso esclarecedor ldquoProduzido desde 1998 apesar de seu atraente

nomelsquoCecinrsquoestpasunetruellersquo[Estanatildeoeacuteumacolherdepedreiro]eacutetatildeosoacutelidoefaacutecil

de manusear quanto a espaacutetula de um pedreirordquo7 Traduccedilatildeo nossa

7 lt httpswwwalessicomit_itdesignersdalla-p-alla-sphilippe-starckpala-per-torta-ceci-n-es-t-pas-une-truelle-90078html gt

Figura 44 Fotografia da espaacutetula para bolo Ceci nrsquoest pas une truelle (1998) de Philippe Starck projetada para a Alessi fonte alessicom

194

Para compreender a associaccedilatildeo que Starck propotildee entre a obra de arte e sua espaacutetula eacute

preciso antes retomar a polecircmica que o quadro de Magritte provocou e que ainda hoje tem

ressonacircncias na arte filosofia e cultura Na base dessa polecircmica estaacute a frase que pertence

ao quadro e natildeo foi escrita mas pintada por Magritte ldquoCeci nrsquoest pas une piperdquo ldquoIsto

natildeo eacute um cachimbordquo e que eacute parafraseada por Starck ao nomear sua espaacutetula Novamente

recorremos agrave Virginia Figueiredo para uma siacutentese da questatildeo em relaccedilatildeo ao quadro de

Magritte A filoacutesofa divide sua anaacutelise e reflexatildeo em trecircs momentos interpretativos dos

quais para os nossos propoacutesitos fazemos uso apenas do primeiro

A perspectiva do primeiro momento leva a seacuterio o comentaacuterio (na verdade irocircnico) de Magritte e conclui com a obediecircncia do pintor natildeo soacute agrave concepccedilatildeo platocircnica da arte mas tambeacutem ao papel tradicional (de designaccedilatildeo ou repre-sentaccedilatildeo) das palavras Aqui ldquoplatonismordquo deveraacute ser entendido abrupta e grosseiramente enquanto uma concepccedilatildeo da essecircncia da arte como ilusatildeo ou coacutepia da coacutepia isso quer dizer que a pintura na sua realidade de ldquosuperfiacutecie preenchida unidimensionalmente por coresrdquo natildeo tem o menor direito de reivin-dicar qualquer estatuto ontoloacutegico A cama pintada jamais poderia ter realidade (ou verdade) para Platatildeo na medida em que apenas a Ideacuteia eacute essencialmente real como todo mundo jaacute sabe Segundo essa hierarquia agrave cama pintada natildeo eacute concedido sequer compartilhar da realidade que tem a cama do marceneiro sobre a qual se pode seguramente dormir jaacute que a utilidade sempre foi um cri-teacuterio inquestionaacutevel de valor das coisas Estamos por conseguinte no ambiente claacutessico da representaccedilatildeo E Magritte concordando com o irredutiacutevel Platatildeo sussurra ldquoO famoso cachimbo Como fui censurado por isso E entretanto Vocecircs podem encher de fumo o meu cachimbo Natildeo natildeo eacute mesmo Ele eacute apenas

Figura 45 Reproduccedilatildeo da pintura A traiccedilatildeo das imagens (1929) de Reneacute Magritte fonte lacmaorg

195

uma representaccedilatildeo Portanto se eu tivesse escrito no meu quadro lsquoisto eacute um cachimborsquo eu teria mentidordquo 1⁰ (figueiredo 2005 p 446-447)

10 Reneacute Magritte citado na contra-capa da 3ordf ediccedilatildeo brasileira de foucault Isto natildeo eacute um cachimbo [nota em peacute de paacutegina da autora]

Independente de Starck estar a par dessas implicaccedilotildees platocircnicas mais profundas ou

natildeo e da ironia8 de Magritte o certo eacute que ele explora a celebridade adquirida pelo quadro

talvez pela polecircmica culturalmente disseminada especialmente na Europa e Estados Unidos

e a direciona para um puacuteblico alvo que de algum modo jaacute esteve em contato com a obra de

Magritte ou com a discussatildeo em torno dela No entanto na hipoacutetese de faltar conhecimento

dos meandros artiacutesticos a algum provaacutevel comprador a Alessi acrescenta a frase de reforccedilo

junto agrave foto do produto como garantia da funcionalidade do objeto E supondo-se que os

usuaacuterios utilizem tal objeto para cortar bolo como no caso do espremedor o ato corriqueiro

pode se tornar assunto para outras conversas de usuaacuterios em um encontro celebraccedilatildeo ou

festa Mas se compararmos a paacute com o espremedor o risco de hipertrofia de caracteriacutesticas

natildeo funcionais parece ser maior nesse segundo produto jaacute que a empresa que o comercializa

sente necessidade de lanccedilar matildeo de explicaccedilotildees adicionais acerca de suas funccedilotildees

Este tipo de diaacutelogo expliacutecito com a arte e com a histoacuteria da arte ocorre em outros tra-

balhos de Starck O projeto de algumas de suas escovas de dentes como a Dr Kiss para a

Alessi trazem referecircncias a uma seacuterie de esculturas de Constantin Brancusi Paacutessaro no Espaccedilo

criadas entre 1923 e 1940 (figura 46) Carmel-Arthur descreve esses utensiacutelios e aponta para

as intenccedilotildees que ela acredita o designer tem ao fazer ligaccedilotildees com a obra de arte

A base alargada cocircnica da Escova de Dentes para LrsquoOreacuteal de 1990 funciona como um significante que orienta o usuaacuterioobservador no reino da histoacuteria da escultura A base ou ldquopedestalrdquo sustenta o que chamou corretamente de haste

ldquoagrave la Brancusirdquo da escova propiciando ao proprietaacuterio consciente do design e da arte um sentimento de confiante erudiccedilatildeo uma recompensa por reconhecer

8 Em um segundo momento Figueiredo (2005 p 453) reforccedila seu entendimento sobre a ironia de Magritte ldquoSe adotamos a perspectiva estritamente loacutegica a conclusatildeo desse segundo momen-to eacute que sendo a frase lsquoIsso natildeo eacute um cachimborsquo essencialmente irocircnica ela eacute ao mesmo tempo verdadeira e falsa Como dizia Suzuki sendo a ironia o ponto de indiferenccedila entre o real e o ideal2⁷ lsquoela eacute inteiramente uma coisa e ao mesmo tempo inteiramente outrarsquo A frase entatildeo po-deria enunciar que lsquoIsto tanto eacute quanto natildeo eacute um cachimborsquo ou simplesmente lsquoIsto eacute e natildeo eacute um cachimborsquo Ambivalente por excelecircncia esse momento aleacutem de provisoacuterio nada pode decidirrdquo 27 Cf suzuki O gecircnio romacircntico p 178 [nota em peacute de paacutegina da autora]

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as referecircncias de que o objeto eacute portador e a citaccedilatildeo do Paacutessaro no Espaccedilo de Constantin Brancusi de 1925 (carmel-arthur 2000 p 20)

Se concordarmos com a autora independentemente dos atributos de uso de uma escova

de dentes Starck explora intencionalmente a associaccedilatildeo que o ldquoproprietaacuterio consciente do

design e da arterdquo consegue fazer entre os dois tipos de objetos Mas em um produto como

esse de uso estritamente pessoal o designer pode abusar da hipertrofia por entender que

aqueles que a adquirem sabem do que se trata Na verdade se nos mantemos dentro da

metaacutefora de Flusser de que o design eacute uma ponte ela deve ser soacutelida e ampla o suficiente

para os designers poderem se movimentar tanto na direccedilatildeo da arte quanto na da ciecircncia

sem que essa estrutura de ligaccedilatildeo se abale preservando seus fundamentos (figura 47)

Figura 47 Esquema da possibilidade de o designer se movimentar entre ciecircncia e arte enquanto a ponte do design se manteacutem estruturada fonte autor

DESIGN

ARTECIEcircNCIA

DESIGNER

Figura 46 Fotografia de uma das esculturas Paacutessaro no Espaccedilo (1928) de Constantin Brancusi (esquerda) e fotografia da escova de dentes Dr Kiss (1996) de Philippe Starck (direita) fonte momaorg

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Paralelamente a essas conexotildees e movimentaccedilotildees em direccedilatildeo ao mundo da arte existe

outro elemento conceitual que Starck explora Quando por exemplo ele discursa sobre

as qualidades intriacutensecas de sua cadeira La Marie (figura 48) entre as inuacutemeras que pro-

jetou suas palavras para caracterizar a criaccedilatildeo remetem a conceitos que podem oferecer

indiacutecios adicionais acerca dos caminhos que este designer percorre em seus trabalhos

Sobre Marie a cadeira para a Kartell ele diz por exemplo que conseguiu ldquofazer o maacuteximo com o miacutenimo menos material quase natildeo haacute material menos pre-senccedila de fato eacute totalmente transparente E apesar de tudo oferece o maacuteximo de serviccedilos mdash resistecircncia leveza e possibilidade de ser empilhada Trata-se de um objeto sem idade extremamente honesto e profundamente moderno Um objeto quase ideal Vocecirc natildeo a vecirc pois eacute totalmente transparente Mas se quiser vecirc-la encontraraacute algo formidaacutevel Trata-se de uma verdadeira faccedilanha tecnoloacutegica com uma uacutenica modelagem um objeto transparenterdquo (morozzi 2012 p 25)

Denominaccedilotildees como ldquoimaterialidaderdquo ldquotransparecircnciardquo ldquoquase idealrdquo e ldquouacutenica mo-

delagemrdquo remetendo agrave atributos de qualidade superior mdash comprovando o interesse do

designer em ldquorecorrerrdquo aos avanccedilos da ciecircncia e da tecnologia como propotildee Bonsiepe

Figura 48 Fotografia da cadeira La Marie (1998) de Philippe Starck projetada para a empresa Kartell fonte kartellcom

198

(2011 p 17) e oferecendo equiliacutebrio agrave Ponte Flusseriana mdash podem ser facilmente asso-

ciadas com a conhecida posiccedilatildeo platocircnica investigada no capiacutetulo 2 Mas a duacutevida sobre

a compreensatildeo que o proacuteprio Starck tem de conceitos dessa natureza que podem de

algum modo fundamentar os processos que guiam seus projetos permanece Em entre-

vista concedida a Cristina Morozzi em 2011 a propoacutesito da relevacircncia de seus projetos

sua resposta eacute ambiacutegua

Cristina Morozzi Dos seus projetos quais gostaria de conservar

Philippe Starck Natildeo conservaria nenhum pois os projetos satildeo mateacuteria O que eu gostaria de conservar do meu trabalho eacute apenas um ponto de vista um espiacuterito uma loacutegica uma batalha uma rebeliatildeo uma poesia um humor e pontos fracos

CM E o que gostaria de jogar fora

PS Teoricamente tudo eacute para jogar fora natildeo haacute nenhum interesse em se ocupar da mateacuteria A mateacuteria A mateacuteria transpira a mateacuteria fede a mateacuteria sua a mateacuteria morre Investir na mateacuteria eacute um peacutessimo investimento Natildeo haacute histoacuteria Natildeo haacute motivos para conservaacute-la (MOROZZI 2012 p 104-105) Itaacutelicos nossos

Ao mesmo tempo em que como um possiacutevel herdeiro do platonismo Starck critica

enfaticamente a materialidade entendendo-a como pereciacutevel contraria esse ideal teoacuterico

de Platatildeo colocando sua atividade projetiva tambeacutem no acircmbito da mateacuteria Essa afirma-

ccedilatildeo que por si soacute jaacute seria um problema se agrava logo em seguida quando ele declara

que ldquoteoricamente tudo eacute para jogar forardquo Onde restaria o espaccedilo para o teoacuterico em seu

trabalho lugar no qual ele mesmo indica ser o patamar de onde constroacutei suas afirmaccedilotildees

Mas ao contraacuterio do que possa parecer Starck estaacute atento agrave importacircncia da teoria

na fundamentaccedilatildeo de projetos Carmel-Arthur a propoacutesito de enfatizar a relevacircncia que

Starck daacute para estabelecer sua identidade em um sentido linguiacutestico lembra-nos que

ele sempre ldquobatizardquo seus produtos com nomes conduzindo a uma associaccedilatildeo entre suas

obras rotuladas e ele mesmo E em seguida cita uma afirmaccedilatildeo de Starck muito anterior

agrave entrevista com Morozzi (1978-9) para o International Design Yearbook ldquoCreio ser

tarefa dos designers passar mais tempo produzindo signos e menos produzindo objetosrdquo

(carmel-arthur 2000 p 11)

Poderiacuteamos considerar que as declaraccedilotildees (proferidas durante uma entrevista) carre-

gam por vezes contradiccedilotildees proacuteprias do discurso oral diversamente de um texto escrito

199

refletido e elaborado previamente No entanto essa possibilidade natildeo pode levar em

consideraccedilatildeo o testemunho de sua entrevistadora Cristina Morozzi ao afirmar que ldquoEle

responde concentrado Acompanha as perguntas com atenccedilatildeo As respostas satildeo precisas

seguras definitivas Ele natildeo daacute opiniotildees mas faz afirmaccedilotildees cristalinas puras confirmando

suas convicccedilotildeesrdquo (morozzi 2012 p 104)

Em relaccedilatildeo agraves entrevistas Judith Carmel-Arthur confirma a posiccedilatildeo de Morozzi

ao afirmar que ldquoSuas entrevistas satildeo normativas Satildeo cronometradas e formuladas para

disseminar o consumo e dizem o que eacute e o que deixa de ser um ldquobomrdquo designrdquo (carmel

-arthur 2000 p 13) Mas atenta ao fundamento do consumo a autora vai em outra

direccedilatildeo e reforccedila uma suspeita ldquoNo entanto as entrevistas devem ser lidas igualmente

como confissotildees autopromocionais apontadas diretamente para o bolso do consumidor

de Starckrdquo (carmel-arthur 2000 p 14) E vai aleacutem

Eacute justo dizer que Starck tentou gerar um discurso genuiacuteno entre si e o mundo do design Eacute o que enfatiza a narrativa pessoal oferecida por suas numerosas entrevistas compensando a ausecircncia de informaccedilatildeo igualmente valiosa no contexto do design contemporacircneo no qual pouco se sabe dos designers (carmel-arthur 2000 p 14)

Apesar da relevacircncia do apelo consumista identificada no trabalho de Starck que

pode distinguir aquilo que ele afirma do que efetivamente ele produz devemos nos per-

guntar ateacute que ponto as conexotildees expliacutecitas com obras de arte como nos projetos da

escova de dentes e da espaacutetula de bolo satildeo estabelecidas por um interesse conceitual de

Starck em seu trabalho e portanto fazem sentido para os nossos propoacutesitos de relaccedilotildees

entre o design e a arte em seu acircmbito ontoloacutegico Talvez natildeo saibamos a resposta Poreacutem

observando a mesma questatildeo da perspectiva de Andy Warhol (que tambeacutem se envolveu

com o tema e a polecircmica do consumismo) entendemos que natildeo faz sentido considerar

o valor do consumo como um elemento comum ao design e agrave arte para ser incluiacutedo no

recorte da nossa investigaccedilatildeo das relaccedilotildees entre esses campos Em outras palavras na

contemporaneidade o capitalismo enraizado eacute uma reacutegua que impotildee medidas e paracircme-

tros que garantem a sobrevivecircncia de profissotildees enquanto eliminam outras Quais dessas

atividades escapam dessa reacutegua Se houver as que escaparem satildeo exceccedilotildees e obviamente

200

asseguram ao consumismo senatildeo universalidade generalidade suficiente para natildeo poder

ser usado como indicador privilegiado de relaccedilotildees entre dois campos

Assim em um caminho diverso um autor que pode ajudar a avanccedilarmos no entendi-

mento ou a encontramos uma siacutentese de alguns elementos constituintes do trabalho de

Starck eacute o filoacutesofo Michel Onfray No livro Scritti su Starck de 2004 (organizado por

Valeacuterie Guillaume) Onfray escreve o capiacutetulo Anatomia di alcuni sortilegi Traduzimos o

tiacutetulo por Anatomia de alguns fetiches e natildeo feiticcedilos uma vez que Onfray ao longo de seu

texto alude ao conceito de fetiche de mercadoria Nos limitaremos a poucos trechos deste

capiacutetulo de 13 paacuteginas dado que Michel Onfray na maior parte de sua escrita apresenta

um discurso em tom elogioso como dissemos que ocorre com o texto de Morozzi o

que frusta a expectativa de uma criacutetica de caraacuteter mais assertivo em texto de um filoacutesofo

Sintoma de um tipo de narrativa que lembra as apresentaccedilotildees de um cataacutelogo de expo-

siccedilatildeo de arte (e natildeo sabemos se o texto de Onfray originalmente teve esse propoacutesito) eacute

que a palavra artista eacute a preferida pelo autor para caracterizar Starck ao longo de todo

o texto Os exemplos a seguir mostram o estilo narrativo com que o filoacutesofo conduz a

maior parte de sua anaacutelise

Designer certamente arquiteto evidentemente criador de formas e de objetos infaliacuteveis designer claro e outras atividades correspondentes se vocecirc realmente quer roacutetulos Mas esses vastos mundos testemunham uma universalidade de uma totalidade que indica adequadamente o artista aquele que procede de um demiurgo e transforma poderosamente tudo o que toca (guillaume 2004 p 60) Traduccedilatildeo nossa

O real imanente o voluntarismo da construccedilatildeo a celebraccedilatildeo das formas orgacircnicas a cenografia do bizarro a paixatildeo pela anamorfose a sublimaccedilatildeo do sangue frio a dialeacutetica das formas e forccedilas eacute assim que circunscrevemos o xamanismo que eacute tudo trabalhar nos objetos de Philippe Starck Palavras de objetos comunica-ccedilotildees de coisas interaccedilotildees de homens e moacuteveis de vida e materiais glossolalia necessaacuteria para atingir ritmos melodias cantadas sussurradas ouvimos uma muacutesica de cerimocircnias de magia de misteacuterio uma melodia eacute surpreendida do misticismo pagatildeo uma voz que veio do nada nutrida pelo espiacuterito dos animais a alma dos animais e a respiraccedilatildeo dos materiais Couro papel alumiacutenio ma-deira epoacutexido vidro accedilo modulam agrave maneira de antepassados equipados para cerimocircnias xamacircnicas (guillaume 2004 p 68) Traduccedilatildeo nossa

201

No entanto uma das questotildees colocadas por esse autor se releva de nosso interesse

pois estaacute ligada ao tema da relaccedilatildeo entre o mundo dos objetos utilitaacuterios e o das obras de

arte Onfray identifica em Starck o que apontamos no capiacutetulo anterior como caracteriacutes-

tica de um modo de projetar atento ao mesmo tempo agrave vida cotidiana e agraves conceituaccedilotildees

e dinacircmicas da arte contemporacircnea

Com Starck os objetos resolvem por si mesmos imediata e violentamente a antiga antinomia entre o artigo ordinaacuterio e a obra de arte o fim do mundo mutilado no qual a trivialidade da vida cotidiana encontra a natureza excep-cional da criaccedilatildeo esteacutetica superando a oposiccedilatildeo entre detalhes materiais do mundo impuro e invisibilidade abstrata do puro universo artiacutestico aboliccedilatildeo da contradiccedilatildeo entre a rua e o museu a casa particular e a coleccedilatildeo puacuteblica A arte natildeo mais serve para especular acumular valores na esperanccedila de que eles sejam impostos jaacute natildeo tem a funccedilatildeo de agir como um siacutembolo social de uma classe com problemas de legitimidade e identidade ou reconhecimento tribal faz parte da realidade transfigura-a e cancela as separaccedilotildees entre o museu e o cotidiano Com ele e graccedilas a ele vocecirc pode viver em casa como em um museu (guillaume 2004 p 60-61) Traduccedilatildeo nossa

Essa ldquotransfiguraccedilatildeordquo9 de elementos das obras de arte em objetos ordinaacuterios eacute com-

preendida por Onfray em sentido inverso ao que vai do cotidiano agrave galeria de arte ou

ao museu Neste caminho o cotidiano representado pela ldquocasardquo pode se transfigurar em

museu uma realidade que natildeo nos atrai10 Se Onfray apresenta essa possibilidade somente

como uma hipeacuterbole dramaacutetica que reforccedila sua posiccedilatildeo ou se acredita que tal condiccedilatildeo

possa se efetivar independente de desejarmos ou natildeo que nossas casas assemelhem-se a

museus ou galerias e algumas delas jaacute o satildeo o relevante eacute que esse autor tambeacutem aponta

para a relaccedilatildeo inversa que investigamos da apropriaccedilatildeo do design de conceitos da arte

Nesse sentido a visatildeo de Onfray estaacute em sintonia com o que afirmamos ao final do ca-

piacutetulo anterior (p 171-172 sintetizada na circularidade da parte direita da figura 38) em

que o design ao tomar posse de conceitos da arte tambeacutem altera os significados de seus

objetos E Onfray acrescenta

9 O conceito de transfiguraccedilatildeo ateacute onde sabemos foi primeiramente empregado nesta temaacutetica por Danto

10 O filme Mon Oncle (1958) de Jacques Tati eacute um prenuacutencio da ideia de casas-museus Com um olhar bem-humorado o cineasta apresenta sua visatildeo criacutetica sobre conceitos de modernizaccedilatildeo na arquitetura influenciando o cotidiano da vida francesa do final da deacutecada de 1950

202

A praacutetica do objeto que difunde a arte de forma infinitesimal homeopaacutetica mas cotidiana resulta em uma interessante aristocratizaccedilatildeo do consumidor Cada indiviacuteduo colocado na presenccedila de um objeto pensado desejado criado pro-duzido e vendido por Philippe Starck vecirc sua casa transformada em um museu Invertendo o movimento habitual que leva o amante da arte para as galerias de arte Starck percebe o desejo querido pelos poetas que aspiram a uma poesia ativa e saem agraves ruas Para fazer isso ele entra no particular desce do pedestal onde as elites os burgueses os esnobes os conservadores o mantecircm e entatildeo integra em si os menores detalhes da vida cotidiana Quando Duchamp convidou a abo-liccedilatildeo de aacutereas artiacutesticas esterilizadas ele abriu o caminho para sonhadores que surpreendem com estranheza criam o bizarro solicitam o inesperado depois fazem poesia na mais banal existecircncia no momento mais inesperado no lugar mais inesperado menos apropriado (guillaume 2004 p 69) Traduccedilatildeo nossa

Seja aristocratizaccedilatildeo ou mais provavelmente seu oposto democratizaccedilatildeo e apesar

de natildeo sabermos se Michel Onfray distingue design e arte diante de sua proposta natildeo

eacute surpresa que este filoacutesofo sele seu entendimento desse movimento do design (do qual

Starck eacute um legiacutetimo representante) com a arte de outro francecircs Marcel Duchamp

Se Duchamp e Warhol satildeo ldquopontos focaisrdquo na arte em parte pela conversatildeo de arte-

fatos em obras de arte Philippe Starck se apresenta como ldquoponto focalrdquo no design natildeo

somente pelo movimento que ele realiza no sentido inverso com os objetos do design

incorporando caracteriacutesticas exclusivas do universo artiacutestico Com isso ele de modo cor-

relato aos dois artistas opera um giro na significaccedilatildeo desses objetos e suas caracteriacutesticas

ontoloacutegicas mas tambeacutem incorpora os demais conceitos que investigamos anteriormente

e que corroboram a segunda parte de nossa hipoacutetese (cf capiacutetulo 1 p 39) e conclui o

objetivo do uacuteltimo item do meacutetodo (cf capiacutetulo 1 p 49)

Assim em retrospecto desta segunda seccedilatildeo devemos atentar para a mimetizaccedilatildeo ine-

rente a diversos projetos de Starck desde oacuteculos com articulaccedilotildees derivadas de princiacutepios

de estruturas oacutesseas ateacute bancos com formas inusitadas (figura 49) sem nos esquecermos

do tatildeo referenciado espremedor que o proacuteprio Starck disse ser inspirado na forma de uma

lula Objetos monstruosos nas palavras de Onfray que fazem de Starck um ldquodemiurgo

malignordquo ldquoum inventor e criador de quimerasrdquo (guillaume 2004 p 66) e como

tambeacutem propotildee Flusser de modo apreensivo por considerar a criaccedilatildeo de ldquoquimeras de

bacteacuteriasrdquo um problema de design (flusser 2007 p 49-50)

203

Ao analisar mais objetos aleacutem dos investigados no capitulo 4 percebemos que os

conceitos aristoteacutelicos de belo versus uacutetil e de fim em si mesmo satildeo recorrentes na proposta

de Starck No entanto como vimos podem caminhar perigosamente em direccedilatildeo agrave hi-

pertrofia de elementos natildeo funcionais em um artefato Se natildeo o transfiguram em obra de

arte podem levaacute-lo agrave condiccedilatildeo de objeto de adorno com uma ambiguidade subjacente

do discurso aberto de Umberto Eco

Por uacuteltimo ao lado desses conceitos aparece o do discurso persuasivo epidiacutectico de

Aristoacuteteles nas declaraccedilotildees do proacuteprio Starck defendendo sua obra e buscando convencer

o consumidor sempre atento aos interesses da publicidade e do mercado

Figura 49 Fotografia do banco WW (1990) de Phili-ppe Starck projetado para o cineasta Wim Wenders e produzido pela empresa Vitra fonte starckcom

204

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao concluir-se uma pesquisa existe uma expectativa de caraacuteter cientiacutefico nas conheci-

das expressotildees empregadas por Kuhn (1987) de soluccedilatildeo de ldquoenigmasrdquo ou de resoluccedilatildeo

de ldquoquebra-cabeccedilasrdquo No entanto a ideia de consideraccedilotildees finais eacute mais proacutexima das

investigaccedilotildees que envolvem filosofia na medida em que o exerciacutecio da reflexatildeo nessa

aacuterea eacute antes de tudo indagaccedilatildeo e natildeo necessariamente resposta definitiva Nesse sentido

compreendemos o sentimento do poeta Fernando Pessoa (cf capiacutetulo 3 p 129) e a sua

aversatildeo ao ato de acabar Natildeo eacute mera coincidecircncia que filosofia e poesia de algum modo

se conectem em um mesmo zelo pelo exerciacutecio do percurso empreendido Portanto para

noacutes o tiacutetulo Consideraccedilotildees Finais expressa melhor nossas intenccedilotildees do que Conclusatildeo

Retomando o percurso da tese no capiacutetulo 2 partimos da cisatildeo e hierarquizaccedilatildeo pla-

tocircnica da ciecircncia teacutecnica e arte direcionando o foco desta etapa a primeira do meacutetodo

(cf capiacutetulo 1 p 49) mais para as esferas gnoseoloacutegica e ontoloacutegica do que para a esteacutetica

Nesse momento propedecircutico intensificar e estreitar a articulaccedilatildeo do tema explorando

o diaacutelogo com Maldonado Bonsiepe Schneider Cardoso e Flusser em contraponto agraves

ideias de Koyreacute foram estrateacutegias decisivas para explicitar as consequecircncias dessa cisatildeo

e hierarquizaccedilatildeo no acircmbito do design e da arte

No capiacutetulo 3 com a investigaccedilatildeo sendo direcionada para a esfera esteacutetica e poste-

riormente para a ontoloacutegica estabelecemos um niacutevel de compreensatildeo das relaccedilotildees entre

design e arte preservando ao lado dos conceitos de universalidade e objetividade dois

outros elementos essenciais a esses campos a subjetividade e a incompletude confirmando

assim a primeira parte de nossa hipoacutetese (cf capiacutetulo 1 p 39) Este percurso apoiado nas

reflexotildees de Kant e Thierry de Duve sobre a esteacutetica e nas investigaccedilotildees de Heidegger e

Lacoue-Labarthe sobre ontologia nos permitiu ao mesmo tempo transpor a via epis-

temoloacutegica e demonstrar a capacidade da arte de ampliar a compreensatildeo dos objetos do

design indo aleacutem da instrumentalidade e utilidade Deste modo concluiacutemos a segunda

etapa do meacutetodo

Centrado em Aristoacuteteles o capiacutetulo 4 natildeo trata simplesmente de pensar as relaccedilotildees

entre design e arte mas de ir ateacute os fundamentos daquelas relaccedilotildees que se sustentam em

205

bases ontoloacutegicas Apoiados principalmente em Danto Nietzsche e Eco procedemos

finalmente com o deslocamento dos conceitos aristoteacutelicos para nossos propoacutesitos

Em seguida avanccedilamos da abordagem de cunho mais teoacuterico para seus aspectos mais

pragmaacuteticos ratificando as reflexotildees na esfera da produccedilatildeo com a anaacutelise de objetos do

design e de obras de arte representativos de nossa posiccedilatildeo O procedimento de rastreio

dos conceitos aristoteacutelicos nos exemplos do velcro do espremedor de frutas da Brillo

Box e das latas de sopa Campbel explorados tanto no design quanto na arte encerrou

a terceira etapa do meacutetodo e confirmou a segunda parte da hipoacutetese tendo seu aacutepice ao

compor o quadro das interconexotildees desses dois campos Essa praacutexis com a funccedilatildeo de

corroboraccedilatildeo no mundo sensiacutevel foi ampliada no uacuteltimo capiacutetulo

Atentos ao trabalho de Duchamp Warhol e Starck no capiacutetulo 5 dirigimos nossa

atenccedilatildeo para a praacutetica da arte e do design em seu sentido mais abrangente encerrando

o quarto e uacuteltimo item do meacutetodo Esse contraponto pragmaacutetico da teoria anterior

particularmente em relaccedilatildeo ao design contribuiu para percebemos que com o decorrer

do tempo e a crescente produccedilatildeo praacutetica esse campo se vecirc diante de um duplo desafio

construir sua identidade e justificar sua existecircncia para se estabelecer em peacute de igualdade

com outros campos e dialogar com eles com jaacute ocorre em sua relaccedilatildeo com a arte

Algumas caracteriacutesticas que explicitamos talvez natildeo fossem relevantes se o design natildeo

atuasse de modo interdisciplinar Mas que disciplina contemporacircnea escapa da interdis-

ciplinaridade Aleacutem disso existe a necessidade de certo ldquoegordquo centralizador de ideias que

as aacutereas de pesquisa e trabalho apresentam Esse nuacutecleo que natildeo deixa de ser no nosso

entendimento uma antropomorfizaccedilatildeo das disciplinas conduzida por seus membros

cobra uma identidade dessas aacutereas Por que seria diferente com o design

Poreacutem uma fundamentaccedilatildeo de caraacuteter ontoloacutegico se bem elaborada pode contribuir

para contornar as exigecircncias de exclusividade de bases epistemoloacutegicas quando cobradas

de um ponto de vista ortodoxo E se natildeo for possiacutevel ou natildeo se desejar contornar tais

exigecircncias o design pode assumir-se enquanto uma disciplina indefinida em sua essecircncia

Tal posiccedilatildeo de incompletude aleacutem de natildeo retirar relevacircncia do design acrescenta algo

a autodeterminaccedilatildeo de seu status ontoloacutegico assim como acontece com a arte por de-

finiccedilatildeo indefinida Esta pode ser mais uma caracteriacutestica a compartilhar com a arte sem

206

necessariamente confundir os dois campos E se for para ser indefinido e inacabado que

o design se assuma enquanto tal para natildeo correr o risco de dissolver-se na generalidade

Se por um lado a comprovaccedilatildeo de nossa hipoacutetese de que os fundamentos das rela-

ccedilotildees entre design e arte firma seus alicerces mais profundos no territoacuterio da ontologia

(cf capiacutetulo 3) com os embriotildees da interlocuccedilatildeo entre esses dois campos remontando

ao pensamento grego antigo (cf capiacutetulo 4) por outro a trajetoacuteria seguida ateacute essas

afirmaccedilotildees gera como eacute previsiacutevel em pesquisas de natureza reflexiva novos elementos

e possibilidades natildeo completamente compreendidas Como tais elementos enquanto

desdobramentos do tema satildeo inerentes agrave tese acreditamos que possam ser nesse mo-

mento de exame retrospectivo melhor delineados Admitindo a importacircncia dessa tarefa

retomamos o tema da natureza e essecircncia do design

Procederemos somente com o compromisso de demarcaccedilatildeo do assunto aceitando

que sua completa exploraccedilatildeo demanda espaccedilo maior do que o reservado para essa etapa

No entanto devido ao fato de que o tema emerge ainda na metade do desenvolvimento

da tese na clivagem teoacuterica que separa Kant de Heidegger e se manteacutem dentro do nosso

nuacutecleo propositivo dos fundamentos das relaccedilotildees entre design e arte buscamos pelo

menos fixar alguns marcos a partir de um memento que conduz agrave nossa compreensatildeo

atual da questatildeo

Ao teacutermino da primeira seccedilatildeo sobre Kant (cf capiacutetulo 3 p 128-129) em que chegamos

agrave concepccedilatildeo de design determinado e indeterminado e a consequente formulaccedilatildeo de uma

universalidade subjetiva nesse campo nos confrontamos com duas questotildees Propusemos

respondecirc-las ao final da tese considerando a impossibilidade de compreendecirc-las em toda

a sua extensatildeo naquelas circunstacircncias e etapa As questotildees eram

bull Asinuacutemerasdefiniccedilotildeesdedesignaolongodesuacurtahistoacuteriaeaampliaccedilatildeode

seu campo de atuaccedilatildeo tecircm alguma relaccedilatildeo com a equivalente expansatildeo do universo

artiacutestico contemporacircneo

bull Asdificuldadesatuaisdeseestabelecerdefiniccedilotildeesparaodesignpodemserdevidasa

esse campo ter uma generalidade incipiente de autopromoccedilatildeo ou inerente e anaacuteloga

a disciplinas como a da filosofia

207

Em relaccedilatildeo agrave primeira indagaccedilatildeo apoacutes as investigaccedilotildees empreendidas especialmente

tendo em conta os estudos sobre Duchamp e Warhol no capiacutetulo 5 a resposta eacute que a

expansatildeo do universo artiacutestico efetivamente contribui para a proliferaccedilatildeo de definiccedilotildees

sobre o design E com mais convicccedilatildeo do que no capiacutetulo 3 consideramos que a incom-

pletude do design (decorrente dessa indeterminaccedilatildeo) eacute essencial a esse campo devendo

ser acrescida agraves chaves de interpretaccedilatildeo das suas relaccedilotildees com a arte

A segunda pergunta eacute uma decorrecircncia da primeira e por admitir trecircs respostas distintas

torna-se uma questatildeo de escolha orientada ao passos que foram dados posteriormente agrave

sua formulaccedilatildeo Ficamos com a terceira possibilidade acreditando que uma generalidade

inerente e anaacuteloga agrave filosofia tem raiacutezes no modo de atuaccedilatildeo do design Neste sentido

Arthur Danto estabelece uma proposiccedilatildeo especificamente para a arte mas passiacutevel de ser

conduzida para o territoacuterio do design contribuindo para se natildeo elucidar completamente

a questatildeo pelo menos justificar a nossa escolha

Uma das teses de Danto repetidamente defendida por este autor natildeo somente nos

trecircs escritos selecionados nesta investigaccedilatildeo O filoacutesofo como Andy Warhol (2004) A

transfiguraccedilatildeo do lugar comum (2005) e Andy Warhol Arthur C Danto (2012) se fixa de

maneira persistente na ideia de uma natureza filosoacutefica da arte De nossa parte concor-

damos com essa concepccedilatildeo de Danto jaacute defendida por Aristoacuteteles na obra A poeacutetica (cf

capiacutetulo 4 p 147) tanto pelos seus argumentos que expusemos em distintos momentos

da tese mas tambeacutem por uma constataccedilatildeo factual explorada por este pensador

A natureza da filosofia eacute de tal sorte que ela parece estar logicamente co-implicada com todos os objetos de que se ocupa Se esse raciociacutenio for correto deve-se pocircr em evidecircncia uma pergunta raramente formulada na filosofia da arte por que a arte faz parte das coisas sobre as quais pode haver uma filosofia e por que eacute um fato histoacuterico que nenhum grande pensador de Platatildeo e Aristoacuteteles a Heidegger e Wittgenstein deixou de dizer alguma coisa sobre esse tema (danto 2005 p 99)

Tal constataccedilatildeo de Danto e tambeacutem de outros autores corrobora seus argumentos

de um ponto de vista histoacuterico No entanto o mais relevante para o momento eacute que

se a filosofia realmente efetiva uma ldquoco-implicaccedilatildeordquo com seus objetos de estudo (e essa

convicccedilatildeo foi se sedimentando em nossa consciecircncia durante a escrita da tese) natildeo basta

208

assumi-la apenas como um dos fundamentos na constituiccedilatildeo de uma teoria do design

como sugerem entre outros designers Bonsiepe (2011) Buumlrdek (2006) e Maldonado

(2012) Podemos propor uma consequecircncia (que o proacuteprio Danto entende no acircmbito

da arte como de caraacuteter ldquoloacutegicordquo) derivada dessa co-implicaccedilatildeo da filosofia com os seus

objetos um componente filosoacutefico na natureza do design

No entanto de modo oposto ao nosso raciociacutenio a identificaccedilatildeo de uma essecircncia do

design correlata agrave da filosofia pode ser entendida como apenas uma inferecircncia indevida

a partir de uma vinculaccedilatildeo de elementos comuns aos dois campos Afinal diversas aacutereas

buscam na filosofia bases para constituiccedilatildeo de princiacutepios e fundamentos e apesar disso

natildeo satildeo consideradas detentoras de uma natureza filosoacutefica As ciecircncias modernas por

exemplo nasceram da filosofia e no entanto satildeo compreendidas tanto por epistemoacutelogos

quanto por cientistas como tendo natureza especulativa distinta de sua matriz originaacuteria1

Diante da oposiccedilatildeo entre a visatildeo anterior e a nossa a gnoseologia pode contribuir

para escaparmos desse dilema Uma das distinccedilotildees que essa disciplina faz entre filosofia e

ciecircncia diz respeito agraves classes de pergunta que esses campos encaminham ateacute seus objetos

de estudo como assinalamos anteriormente (cf capiacutetulo 3 p 137) Grosso modo a filosofia

de caraacuteter generalista questiona mais o ldquoque eacuterdquo e o ldquoporquecirc eacuterdquo da realidade enquanto as

ciecircncias especialistas e cada vez mais voltadas aos aspectos descritivos e preditivos dos

fenocircmenos se detecircm principalmente em compreender ldquocomordquo tais eventos ocorrem ou

podem ser previstos

Assim apoiados nesses pressupostos da gnoseologia obtemos condiccedilotildees miacutenimas

para prosseguirmos em nossa proposiccedilatildeo sobre o design Como ponto de partida se

aceitamos a afirmaccedilatildeo de uma essecircncia filosoacutefica nesse campo de imediato satildeo geradas

duas consequecircncias positivas Uma para as relaccedilotildees entre design e arte e outra exclusiva

ao design

1 A filosofia eacute incorporada como mais um elemento comum ao design e agrave arte auxi-

liando a compreender a riqueza e intensificando suas relaccedilotildees

1 Se instituiccedilotildees como o cnpq (httplattescnpqbrwebdgparvore-do-conhecimento) ao categoriza-rem as aacutereas do conhecimento colocam a filosofia sob a classe das ciecircncias humanas natildeo significa que do ponto de vista conceitual essa disciplina natildeo tenha caracteriacutesticas distintas daquilo que a ciecircncia moderna e contemporacircnea estabeleceu para si mesma

209

2 Independentemente de circunscrever o design dentro de uma determinaccedilatildeo ou aacuterea

especiacutefica do conhecimento torna-se expliacutecita sua associaccedilatildeo com a reflexatildeo de carac-

teriacutesticas filosoacuteficas o que reforccedila nossa posiccedilatildeo de que o design faz uso das ciecircncias

mas natildeo eacute uma delas (cf capiacutetulo 3 p 127-129)

Acreditamos na relevacircncia desses dois resultados por entendecirc-los como conquistas para

ambos os campos Quanto a comprovar sua origem como fundados na natureza filosoacutefica

do design em primeiro lugar eacute importante retornar a alguns dos autores investigados na

tese e agraves suas posiccedilotildees que de forma distinta anteveem e prenunciam essas ldquoco-implicaccedilotildeesrdquo

Gui Bonsiepe (2011 p 181) (cf capiacutetulo 1 p 42) autoriza especificamente a disciplina da

filosofia distinguir design de arte Vileacutem Flusser (2007 p 48-50) (cf capiacutetulo 2 p 98-

100) impotildee ao design parte consideraacutevel da responsabilidade (normalmente cobrada da

filosofia e da ciecircncia) sobre pensar e equacionar os fins e responsabilidades do homem e

suas produccedilotildees perante a natureza Rafael Cardoso e Philippe Starck compreendem alguns

aspectos constituintes do design de modo semelhante embora matizado para o primeiro

ldquo[]odesigneacuteemuacuteltimaanaacuteliseumprocessodeinvestirosobjetosdesignificados[]rdquo

(cardoso1998p29)eosegundoacreditaldquo[]sertarefadosdesignerspassarmais

tempo produzindo signos e menos produzindo objetosrdquo (carmel-arthur 2000 p

11) Em ambos o design estaacute mais associado agrave etapa do projeto2

2 Essa separaccedilatildeo entre elaboraccedilatildeo de conceitosplanos e execuccedilatildeo jaacute se encontra estabelecida desde a cultura grega claacutessica O sentido de saber fazer da teacutekhne se revela por exemplo nos trabalhos de Phiacutedias (c 490ndash430 aC) Encarregado das obras puacuteblicas de Atenas por seu governante Peacutericles (494ndash429 aC) orientou e fiscalizou as equipes que produziram templos preacutedios puacuteblicos e escultu-ras (woodford 1982 p 52) Esse sentido segue ao longo da histoacuteria passando pelo Renascimento onde a produccedilatildeo de obras arquitetocircnicas de esculturas e pinturas deixadas a cargo de mestres eram executadas em parte por uma equipe Na atualidade com os avanccedilos da teacutecnica e a exigecircncia cada vez maior de conhecimentos especiacuteficos para a produccedilatildeo de obras com novos materiais o conceito de saber fazer estaacute atrelado agrave especializaccedilatildeo pela proacutepria dificuldade de os profissionais dominarem aacutereas em raacutepida expansatildeo Nesse sentido a atuaccedilatildeo de parte dos artistas e designers tende a se concentrar no acircmbito conceitual e criativo transferindo a produccedilatildeo a profissionais especializados na execuccedilatildeo Exemplos disso no acircmbito da arte satildeo as gigantescas esculturas em metal de Tomie Ohtake E em design editorial a especializaccedilatildeo com exceccedilotildees confina os designers na etapa projetiva e no maacuteximo ao acompanhamento (produccedilatildeo graacutefica) da execuccedilatildeo que fica a cargo das graacuteficas No entanto os avanccedilos recentes da tecnologia e a reduccedilatildeo de custo de equipamentos como cncs e impressoras 3d tecircm propiciado em nichos especiacuteficos um caminho diverso para aqueles que se propotildeem a atuar desde a concepccedilatildeo ateacute o produto acabado

210

Nas posiccedilotildees anteriores algumas de modo mais evidente do que outras os autores

buscam estabelecer o design como um domiacutenio em que no nosso entendimento as inten-

ccedilotildees e motivaccedilotildees originaacuterias nos projetos estatildeo ligadas agrave possibilidade de ampliaccedilatildeo da

realidade que satildeo assumidas pelos designers como mais relevantes do que a constataccedilatildeo

ou descriccedilatildeo de como a realidade eacute Se os designers em sua praacutetica tecircm plena consciecircncia

desse modus operandi eacute algo que demanda outra investigaccedilatildeo

Em segundo lugar (indo aleacutem da questatildeo da universalidade subjetiva analisada no

capiacutetulo 3) agora podemos afirmar que a indeterminaccedilatildeo do design se deve tambeacutem agrave

indeterminaccedilatildeo de seus objetos Recordemos que a Ponte Flusseriana representada em

sua forma mais ampliada na figura 10 (cf capiacutetulo 2 p100) expande consideravelmente

os acircmbitos de atuaccedilatildeo do design e dos designers conectando natildeo somente ciecircncia e arte

mas alcanccedilando ateacute os domiacutenios da natureza Enquanto as ciecircncias tradicionais mantecircm

seus objetos circunscritos aos seus princiacutepios paradigmas e leis e se aprofundam em

descriccedilotildees cada vez mais precisas desses objetos o design pode conceber ou participar da

elaboraccedilatildeo de novos conceitos e objetos fiacutesicos ou desmaterializados sem extrapolar seus

limites de atuaccedilatildeo Por exemplo a estrutura da World Wide Web e outras instacircncias de

realidades virtuais como as concepccedilotildees computadorizadas em trecircs e quatro dimensotildees

receberam e ainda continuam a receber significativas contribuiccedilotildees do design em suas

constantes implementaccedilotildees

O alargamento de fronteiras direcionado a conceitos e objetos a partir de um afasta-

mento do senso comum e de uma busca por problematizaccedilatildeo da realidade ou ateacute da criaccedilatildeo

de novos problemas3 eacute antes de tudo inerente agrave filosofia desde os seus primoacuterdios Essa

rica caracteriacutestica natildeo se dissemina a todos os campos do conhecimento pelas proacuteprias

especificidades necessidades e prioridades de cada aacuterea E uma parte apreciaacutevel dessas

3 Um exemplo de limitaccedilatildeo que o senso comum impotildee ateacute aos ciacuterculos da reflexatildeo filosoacutefica vem de Pierre Aubenque Este historiador da filosofia com o propoacutesito de ressaltar a originalidade de determinados problemas e conceitos filosoacuteficos como o da ontologia afirma que ldquoO problema do ser mdash no sentido da questatildeo O que eacute o ser3⁸mdash eacute o menos natural de todos os problemas aquele que o senso comum nunca se colocou aquele que nem a filosofia preacute-aristoteacutelica nem a tradiccedilatildeo imediatamente posterior se colocaram enquanto tal aquele que tradiccedilotildees outras que as ocidentais jamais conjecturaram ou abordaram (aubenq ue 2012 p 22)

38 Aristoacuteteles natildeo se fez tanto como o pensamento grego em seu conjunto esta outra questatildeoPor que haacute o ser em vez do nada [nota em peacute de paacutegina do autor]

211

aacutereas objetiva apenas solucionar problemas o que natildeo eacute pouco Mas o mesmo natildeo ocorre

com a arte e com o design

Pode-se recorrer a um mundo inteligiacutevel para pensar a infinidade de possibilidades

do mundo sensiacutevel tanto na natureza quanto na produccedilatildeo humana O exemplo da cama

(cf capiacutetulo 2 p 66-70) mdash que poderia ser uma cadeira ou qualquer outro objeto que

solicita a atenccedilatildeo do designer para ser concebido mdash eacute simboacutelico e estrutural na medida

em que estabelece a essecircncia da poacuteiesis em suas vertentes de episteacuteme e teacutekhne No entanto

acreditamos que o design e os designers estatildeo cada vez mais conscientes e dispostos a natildeo

simplesmente atuarem solucionando enigmas e quebra-cabeccedilas mas em uma atitude que

vai aleacutem desses protocolos e ao mesmo tempo afastando-se do senso comum criarem novos

problemas antes de solucionaacute-los Em outras palavras ateacute onde podemos compreender o

projeto de uma cadeira ou outro objeto que natildeo eacute previsto (preacute-visto mdash prae-uidĕo) pelos

usuaacuterios natildeo eacute uma antevisatildeo mas antes de tudo um problema inventado com base em

teoria e que pode gerar diversas soluccedilotildees

Esta capacidade de problematizar herdada da filosofia pelo design tambeacutem estaacute des-

crita por Umberto Eco (cf capiacutetulo 4 p 165) como essencial agrave arte que ldquonatildeo quer agradar

e nem consolar mas colocar problemas renovar a nossa percepccedilatildeo e o nosso modo de

compreender as coisasrdquo (eco 1988 p 280) O que enfatizamos eacute que o problema que

normalmente4 se estabelece antes da soluccedilatildeo natildeo necessita ser dado somente pela phyacutesis

(natureza) mas tambeacutem pode ser produzido pelas mentes criativas

Neste ponto aquela advertecircncia platocircnica (de caraacuteter pedagoacutegico) para que cada

profissional cuide de seu trabalho e deixe os demais ldquoem pazrdquo (platatildeo 1987 p 74)

reforccedila certa concepccedilatildeo do design que Cardoso questiona tambeacutem pedagogicamente

Segundo o senso comum mdash ainda ensinado em algumas escolas mdash ldquodesigner natildeo eacute artistardquo tampouco artesatildeo arquiteto engenheiro estilista marqueteiro publicitaacuterio e assim por diante Em meio a tantas advertecircncias sobre o que os

4 O problema surge normalmente mas natildeo necessariamente antes de sua soluccedilatildeo Tal inversatildeo eacute comum na matemaacutetica Em diversas ocasiotildees essa ciecircncia contrariou a ideia do problema ser estabelecido em primeiro lugar Por exemplo os polinocircmios propostos por Sergei Bernstein foram criados sem a intenccedilatildeo deste matemaacutetico de aplicaacute-los como soluccedilatildeo a problemas da induacutestria de automoacuteveis ou de fontes tipograacuteficas digitais e estruturas 3d computadorizadas que surgiriam anos depois (silva 2016 p 41-42)

212

alunos natildeo devem ser esquece-se muitas vezes de lhes dizer o que de fato eles podem vir a ser A resposta vem em duas partes por um lado natildeo satildeo nada disso por outro satildeo tudo isso e mais (cardoso 2016 p 231)

Nas primeiras liccedilotildees de filosofia aprendemos que o conceito de senso comum eacute dia-

metralmente oposto agrave atitude criacutetica e com certeza Cardoso sabe disso O paradoxo

presente nas palavras desse autor que compreendemos e aceitamos como inerente ao de-

sign reforccedila nossa convicccedilatildeo de que uma complementaridade natildeo excludente seraacute sempre

bem-vinda a esse campo Resta propor com mais ecircnfase agraves novas geraccedilotildees de designers

que a incompletude pode ser uma virtude

213

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NIETZSCHE Friedrich O nascimento da trageacutedia ou helenismo e pessimismo

Traduccedilatildeo notas e posfaacutecio J Guinsburg Satildeo Paulo Companhia das Letras 1992

NIETZSCHE Friedrich A gaia ciecircncia Traduccedilatildeo Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo

Companhia das Letras 2001

PENROSE Roger A mente nova do rei computadores mentes e as leis da fiacutesica

Traduccedilatildeo Waltensir Dutra Rio de Janeiro Editora Campus 1991

PEREIRA Isidro Dicionario greco-portuguecircs e portuguecircs-greco 4ordf ediccedilatildeo Porto

Livraria Apostolado da Imprensa 1969

PESSOA Fernando Paginas de esteacutetica e de teoria e criacutetica literaacuterias Textos

estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho Lisboa

Aacutetica 1967

PESSOA Fernando Mendes Arte e verdade no pensamento de Heidegger In

Arqueologias da criaccedilatildeo estudos sobre o processo de criaccedilatildeo Org Acircngela Maria

Grando Bezerra e Joseacute Cirillo Belo Horizonte CArte 2009

PLATAtildeO A repuacuteblica Introduccedilatildeo traduccedilatildeo e notas Maria Helena da Rocha Pereira

5ordf ediccedilatildeo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1987

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POPPER Karl R Conjecturas y refutaciones el desarrollo del conocimiento

cientiacutefico Barcelona Paidos 1972

POPPER Karl R Conhecimento objetivo uma abordagem evolucionaacuteria Belo

Horizonte Itatiaia Satildeo Paulo Editora Universidade de Satildeo Paulo 1975

POPPER Karl R A loacutegica da pesquisa cientiacutefica Satildeo Paulo Cultrix 1993

ROBERT Paul REY-DEBOVE Josette REY Alain Le nouveau petit Robert

dictionnaire alphabetique et analogique de la langue franccedilaise nouv ed Paris

Dictionnaires Le Robert 1993

ROVELLI Carlo A realidade natildeo eacute o que parece a estrutura elementar das coisas

Traduccedilatildeo Silvana Cobucci Leite Rio de Janeiro Objetiva 2017

ROVELLI Carlo A ordem do tempo Traduccedilatildeo Silvana Cobucci Rio de Janeiro

Objetiva 2018

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SARAIVA F R dos Santos QUICHERAT L Noviacutessimo dicionaacuterio latino-

portuguecircs etimoloacutegico prosoacutedico histoacuterico geograacutefico mitoloacutegico biograacutefico etc

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e econocircmico Satildeo Paulo Bluumlcher 2010

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  • CAPA
  • PAacuteGINAS PREacute-TEXTUAIS
    • Folha de Rosto
    • Ficha Catalograacutefica - verso Folha de Rosto
    • Folha de Aprovaccedilatildeo
    • Dedicatoacuteria
    • Agradecimentos
    • Epiacutegrafe
    • Resumo
    • Abstract
    • Lista de Ilustraccedilotildees
    • Lista de fontes na Internet
    • Sumaacuterio
      • PAacuteGINAS TEXTUAIS
        • 1 INTRODUCcedilAtildeO
          • 11 Estrutura do texto
          • 12 Percursos preacutevios
          • 13 Questotildees norteadoras
            • 2 ORIGENS E CONSEQUEcircNCIAS DA HIERARQUIZACcedilAtildeO DA CIEcircNCIA TEacuteCNICA E ARTE
              • 21 A essecircncia compartilhada de quatro conceitos gregos
                • 211 Phyacutesis
                • 212 Poacuteiesis
                • 213 Teacutekhne
                • 214 Episteacuteme
                  • 22 Hierarquia platocircnica cisatildeo e ruptura
                    • 221 A metafiacutesica impliacutecita ao tema da cidade ideal
                    • 222 O argumento ontoloacutegico contra a arte mimeacutetica
                    • 223 Desdobramentos da hierarquizaccedilatildeo do conhecimento
                      • 23 Design entre ciecircncia teacutecnica e arte
                        • 231 Afastamentos aproximaccedilotildees e interaccedilotildees
                        • 232 Artifiacutecios fronteiras moacuteveis e pontes
                        • 233 Essecircncia ontoloacutegica e epistemoloacutegica
                            • 3 DA ESTEacuteTICA Agrave ONTOLOGIA NA ARTE E NO DESIGN
                              • 31 Kant e a abordagem esteacutetica na arte e no design
                                • 311 Subjetividade e objetividade no territoacuterio da arte
                                • 312 Os conceitos de ACT e ART
                                • 313 Antinomia e dilema
                                • 314 Uma releitura de Kant do belo agrave arte
                                • 315 Uma soluccedilatildeo incompleta ou a incompletude como soluccedilatildeo
                                • 316 Subjetividade e objetividade no territoacuterio do design
                                • 317 Outra releitura de Kant da arte ao design
                                • 318 A universalidade objetiva no design
                                • 319 A universalidade subjetiva no design
                                  • 32 Heidegger e o vieacutes ontoloacutegico na arte e no design
                                    • 321 O giro em direccedilatildeo agrave ontologia
                                    • 322 A criacutetica a Platatildeo a arte natildeo eacute imitaccedilatildeo
                                    • 323 Poacuteiesis como produccedilatildeo phyacutesis como terra e teacutekhne como mundo
                                    • 324 Os trecircs modos de produccedilatildeo e sua influecircncia sobre o design
                                    • 325 O design aleacutem da instrumentalidade e da utilidade
                                        • 4 OS CONCEITOS ARISTOTEacuteLICOS NO DESIGN E NA ARTE
                                          • 41 O fundamento ontoloacutegico do conceito de miacutemesis
                                            • 411 A inversatildeo aristoteacutelica miacutemesis mediadora ativa e criativa
                                            • 412 A alianccedila entre universalidade verdade e arte poeacutetica
                                            • 413 As relaccedilotildees entre miacutemesis teacutekhne e phyacutesis
                                              • 42 Deslocamento do conceito de miacutemesis e sua contribuiccedilatildeo ao design e agrave arte
                                                • 421 A miacutemesis exoacutegena no design acreacutescimo e processo agrave natureza
                                                • 422 A miacutemesis endoacutegena no design adaptaccedilatildeo e evoluccedilatildeo
                                                • 423 A miacutemesis complementar na arte saiacuteda parar o dilema de Euriacutepedes
                                                  • 43 Ampliaccedilatildeo das determinaccedilotildees ontoloacutegicas nas relaccedilotildees entre design e arte
                                                    • 431 Da arte ao design o conceito de fim em si mesmo
                                                    • 432 Da arte ao design o discurso aberto e o persuasivo epidiacutectico
                                                    • 433 Do design agrave arte a metaacutefora epistemoloacutegica e os objetos sensiacuteveis
                                                        • 5 A PRODUCcedilAtildeO DE OBJETOS NO MUNDO SENSIacuteVEL
                                                          • 51 Pontos focais na arte Andy Warhol e Marcel Duchamp
                                                          • 52 Ponto focal no design Philippe Starck
                                                            • CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
                                                              • PAacuteGINAS POacuteS-TEXTUAIS
                                                                • REFEREcircNCIAS
                                                                      1. Button 100
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Page 3: Os fundamentos ontológicos das relações entre design e arte

AUTORIZO A REPRODUCcedilAtildeO E DIVULGACcedilAtildeO TOTAL OU PARCIAL DESTE

TRABALHO POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETROcircNICO

PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA DESDE QUE CITADA A FONTE

Bibliotecaacuteria responsaacutevel Gilza Helena Teixeira CRB61725

S586f Silva Seacutergio Luciano da

Os fundamentos ontoloacutegicos das relaccedilotildees entre design e arte [manuscrito] Seacutergio Luciano da Silva -- 2019

224 f enc il color 31 cm

Tese (doutorado) ndash Universidade do Estado de Mina s Gerais Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Design 2019

Orientador Prof Dr Dijon de Moraes

Bibliograa f 213-224

1 Ontologia - Tese 2 Metafiacutesica 3 Epistemologia 4 Esteacutetica ndash arte 5 Comunicaccedilatildeo I Moraes Dijon de II Universidade do Estado de Minas Gerais Programa de Poacutes-graduaccedilatildeo em Design III Tiacutetulo

CDU 68701

Para Alice e Janaiacutena

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais que transformaram seus sonhos e projetos nos meus

Agrave Alice pelas leituras atentas criacuteticas isentas e apoio incondicional

Agrave Janaiacutena e ao Thiago por continuarem acreditando

Ao Alecir por todas as horas de companheirismo e reflexotildees sobre ontologia e outras ldquometafiacutesicasrdquo

Ao Felipe pela parceria e pelas traduccedilotildees

Agrave Luciana por seu apoio e disponibilidade

Ao Claacuteudio Santos Ricardo Portilho e Vacircnia Myrrha pelas referecircncias bibliograacuteficas

Ao Professor Dijon De Moraes pelo apoio e orientaccedilatildeo inclusive nos difiacuteceis momentos finais

Ao Professor Gui Bonsiepe por gentilmente ceder o manuscrito de uma conferecircncia de sua autoria antes de sua publicaccedilatildeo

Ao Professor Seacutergio Antocircnio por toda generosidade e estiacutemulo

Agrave Professora Rita Ribeiro por insistir comigo sobre a relevacircncia de Flusser

Ao Professor Ricardo Fenati que me despertou do ldquosono dogmaacuteticordquo para a epistemologia

Agrave Professora Virginia Figueiredo que abriu meus olhos para a esteacutetica claacutessica

Ao Professor Rodrigo Duarte por me apresentar ao pensamento de Arthur Danto

Aos Professores Gustavo Arauacutejo Ana Arauacutejo e Raquel Teles Yehezkel pelos ensinamentos de grego latim e hebraico

Ao Professor Paulo Bernardo Ferreira Vaz pelas valiosas sugestotildees

Agrave Professora Angeacutelica Adverse pelas inumeraacuteveis e detalhadas sugestotildees

Ao Rodrigo Stenner pela dedicaccedilatildeo competecircncia e carinho

Aos estudantes da Escola de Design da uemg com os quais aprendi muito

Ao ppgd da Escola de Design da uemg que me acolheu desde 2009

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior ndash Brasil (CAPES) ndash Coacutedigo de Financiamento 001

Natildeo somos daqueles que soacute em meio aos livros estimulados por

livros vecircm a ter pensamentos mdash eacute nosso haacutebito pensar ao ar

livre andando saltando subindo danccedilando preferivelmente

em montes solitaacuterios ou proacuteximos ao mar onde mesmo as

trilhas se tornam pensativas

nietzsche mdash a gaia ciecircncia

RESUMO

SILVA S L Os fundamentos ontoloacutegicos das relaccedilotildees entre design e arte 2019

224 f Tese (Doutorado) ndash Escola de Design Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Design da

Universidade do Estado de Minas Gerais Belo Horizonte 2019

Esta tese aborda os fundamentos das relaccedilotildees entre design e arte investigando especi-

ficamente suas estruturas ontoloacutegicas Seu pressuposto eacute que design e arte satildeo campos

distintos e criam conceitos e objetos em categorias tambeacutem ontologicamente distintas

Aleacutem disso design e arte estabelecem interlocuccedilatildeo e conduzem para seus espaccedilos de

atuaccedilatildeo especiacutefica elementos conceituais empregados por ambos os campos cujos em-

briotildees remontam ao pensamento grego antigo O objetivo eacute explicitar tais fundamentos

compartilhados a partir da seleccedilatildeo e do estudo especiacutefico dos conceitos de ldquomiacutemesisrdquo de

ldquobelordquo versus ldquouacutetilrdquo e de ldquofim em si mesmordquo e do ldquodiscurso epidiacutecticordquo extraiacutedos da obra de

Aristoacuteteles O meacutetodo se divide em quatro etapas A primeira parte das origens platocircnicas

da cisatildeo e hierarquizaccedilatildeo da ciecircncia teacutecnica e arte contrapotildee as reflexotildees epistemoloacutegicas

de Alexandre Koyreacute Tomaacutes Maldonado Gui Bonsiepe Beat Schneider Rafael Cardoso

e Vileacutem Flusser estabelecendo as consequecircncias para o design e para a arte A segunda

apoiada nas reflexotildees de Kant Thierry de Duve Heidegger e Lacoue-Labarthe avanccedila

no acircmbito esteacutetico e ontoloacutegico ampliando a compreensatildeo dos objetos do design a partir

das obras de arte A terceira reelabora os conceitos aristoteacutelicos para o design e para a arte

contemporacircnea com o suporte teoacuterico de Arthur Danto Umberto Eco e Nietzsche A

quarta rastreia nos projetos de Philippe Starck e nas obras de Andy Warhol os conceitos

teoricamente reelaborados na etapa anterior comprovando a relevacircncia de seus funda-

mentos ontoloacutegicos na praacutetica contemporacircnea

Palavras-chave Teoria e Criacutetica do Design Ontologia Metafiacutesica Epistemologia Esteacute-

tica Comunicaccedilatildeo

ABSTRACT

SILVA S L The ontological foundations of the relations between design and art 2019

224 f Thesis (Doctorate) ndash Escola de Design Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Design

da Universidade do Estado de Minas Gerais Belo Horizonte 2019

This thesis approaches the foundations of the relations between design and art focusing

on its ontological structures Its assumption is that design and art are distinct fields and

create concepts and objects in categories ontologically distinct as well In addition de-

sign and art establish interlocution and lead to their specific spaces of action conceptual

elements employed by both fields whose embryos go back to ancient Greek thought The

objective is to expose such shared foundations on the basis of the concepts of ldquomimesisrdquo

ldquobeautifulrdquo versus ldquousefulrdquo the ldquoend in itself rdquo and the ldquoepidictic discourserdquo extracted from

the work of Aristotle The method was divided into four stages The first stage takes into

consideration the Platonic origins of the split and hierarchy of science technique and

art contrasting the epistemological reflections of Alexandre Koyreacute Tomaacutes Maldonado

Gui Bonsiepe Beat Schneider Rafael Cardoso and Vileacutem Flusser then establishing the

consequences for the design and for the art The second stage based on the reflections

of Kant Thierry de Duve Heidegger and Lacoue-Labarthe advances in the aesthetic

and ontological scope extending the understanding of the objects of the design from

the works of art The third stage reworked the Aristotelian concepts for the design and

for contemporary art with the theoretical support of Arthur Danto Umberto Eco and

Nietzsche The fourth stage investigates the projects of Philippe Starck and in the works

of Andy Warhol the concepts theoretically reworked in the previous stage proving the

relevance of its ontological foundations in contemporary practice

Key words Theory and Critique of Design Ontology Metaphysics Epistemology

Aesthetics Communication

LISTA DE ILUSTRACcedilOtildeES

Figura 1 Representaccedilatildeo de aacutereas articuladas na tese Dentro da aacuterea azul se situam

outros campos de atuaccedilatildeo da filosofia natildeo representados Ciecircncia teacutecnica e

arte natildeo estatildeo representados como aacutereas mas como objetos de estudo fonte

autor 24

Figura 2 Linha do tempo indicando desdobramento do conceito grego de poacuteiesis (pro-

duccedilatildeo) em episteacuteme (ciecircncia) e teacutekhne (arte) e posteriormente sua divisatildeo em

ciecircncia teacutecnica e arte em seus sentidos modernos fonte autor 45

Figura 3 Linha do tempo indicando os sucessivos desdobramentos do conceito de

poacuteiesis (produccedilatildeo) no periacuteodo claacutessico greco-latino fonte autor 61

Figura 4 Representaccedilatildeo das trecircs categorias de produccedilatildeo e a relaccedilatildeo das produccedilotildees huma-

nas (teacutekhne e episteacuteme) com seus fundamentos teoacutericos fonte autor 61

Figura 5 Representaccedilatildeo na teoria platocircnica do primeiro niacutevel ontoloacutegico e seu pro-

dutor o demiurgo ou artiacutefice natural fonte autor 68

Figura 6 Representaccedilatildeo na teoria platocircnica do segundo niacutevel ontoloacutegico e seu produtor

o artiacutefice humano fonte autor 69

Figura 7 Representaccedilatildeo dos trecircs niacuteveis ontoloacutegicos reunidos na hierarquia da metafiacutesica

platocircnica O artiacutefice natural e os artiacutefices humanos como o marceneiro satildeo

produtores (poieteacutes ποιητής) enquanto que os artistas como o pintor o poeta

e o ator satildeo apenas imitadores (mimeteacutes μιμητής) fonte autor 69

Figura 8 Linha do tempo indicando desdobramento do conceito grego de poacuteiesis

(produccedilatildeo) em episteacuteme (ciecircncia) e teacutekhne (arte) Apoacutes a cisatildeo entre ciecircncia

teacutecnica e arte se incorpora a tecnologia um elo de ligaccedilatildeo teoacuterico entre ciecircncia

e teacutecnica fonte autor 74

Figura 9 Linha do tempo acrescentando o design com as influecircncias que esse campo

acolheu e as conexotildees que Flusser propotildee como desdobramento de suas ati-

vidades fonte autor 96

Figura 10 Linha do tempo incluindo aleacutem da ligaccedilatildeo entre ciecircncia e natureza a proposta

de Flusser para a ligaccedilatildeo entre design e natureza fonte autor 100

Figura 11 Representaccedilatildeo das esferas da ontologia e da gnoseologia e dos movimentos

de reflexatildeo que precisamos empreender em cada um desses campos para

identificar as caracteriacutesticas dos artefatos fonte autor 107

Figura 12 Representaccedilatildeo da etapa de centralizaccedilatildeo da investigaccedilatildeo na esfera da esteacutetica

em sua relaccedilatildeo com a da gnoseologia e ontologia fonte autor 112

Figura 13 Esquema da interpretaccedilatildeo de Thierry de Duve da posiccedilotildees de Clement Green-

berg e Joseph Kosuth em relaccedilatildeo agrave arte e agrave esteacutetica fonte autor 115

Figura 14 Esquema da interpretaccedilatildeo de Thierry De Duve dos acrocircnimos act e art

criados por Ian e Elaine Baxter fonte autor 116

Figura 15 Fotografia da performance (1962) de George Maciunas para Jackson Mac

Low fonte momaorg 117

Figura 16 Fotografia da obra de Robert Rauschenberg (1953) criada apagando um de-

senho do artista Willem de Kooning fonte momaorg 117

Figura 17 Fotografia de obra sem tiacutetulo (1967) de Christine Koslov a partir de um rolo

de filme virgem A legenda na tampa da lata tem a inscriccedilatildeo ldquoTransparent

Film nordm2 ndash White 100ft 16mm ndash 1967rdquo fonte henry-mooreorg 117

Figura 18 Esquema dos obstaacuteculos a cada posiccedilatildeo act e art que as impedem de

cumprir seus objetivos plenamente fonte autor 118

Figura 19 Esquema do caso extremo cuja consequecircncia segundo Thierry de Duve pro-

veacutem das posiccedilotildees adotadas por Greenberg e Kosuth fonte autor 119

Figura 20 Esquema da antinomia do gosto kantiana fonte autor 120

Figura 21 Esquema da resoluccedilatildeo da antinomia do gosto kantiana fonte autor 120

Figura 22 Esquema da apropriaccedilatildeo e transferecircncia feita por Thierry de Duve da resolu-

ccedilatildeo da antinomia do gosto kantiana para o universo da arte contemporacircnea

fonte autor 121

Figura 23 Esquema da apropriaccedilatildeo e transferecircncia da resoluccedilatildeo da antinomia do gosto

kantiana para o design fonte autor 127

Figura 24 Representaccedilatildeo da associaccedilatildeo entre os conceitos gregos de Phyacutesis e Teacutekhne e

os conceitos heideggerianos de Terra e Mundo fonte autor 135

Figura 25 Diagramas das conexotildees entre os conceitos de criatividade criaccedilatildeo e design

As setas em ciacuterculo indicam que natildeo existe um ponto inicial ou final mas

apenas circularidade entre os conceitos fonte autor 144

Figura 26 Diagrama da separaccedilatildeo ontoloacutegica entre essecircncia e aparecircncia em Platatildeo (es-

querda) e sua indistinccedilatildeo em Aristoacuteteles (direita) que conduz a um conceito

de miacutemesis diferenciado e potencialmente capaz de abarcar o universal com

consequecircncias relevantes para a arte e o design fonte autor 148

Figura 27 Imagem ampliada da estrutura bioloacutegica de um carrapicho (esquerda) e de-

talhe do projeto de George de Mestral do Velcro para registro de patente da

invenccedilatildeo (direita) fontes designculturecombr e google patents

com 152

Figura 28 Imagem com detalhe do projeto de Leonard Duffy do New Velcro para registro

de patente da invenccedilatildeo fonte google patentscom 154

Figura 29 Linha do tempo que mostra as trecircs conexotildees que partem da phyacutesis episteacuteme

e teacutekhne possibilitando sua ligaccedilatildeo com o design na atualidade atraveacutes do

conceito de miacutemesis fonte autor 154

Figura 30 Esquema da oposiccedilatildeo entre representaccedilatildeo e reapresentaccedilatildeo conforme a criacutetica

nietzschiana ao programa euripidiano fonte autor 157

Figura 31 Esquema do Dilema de Euriacutepedes e a dificuldade segundo Danto de se en-

contrar uma definiccedilatildeo para obra de arte fonte autor 158

Figura 32 Esquema do entrelaccedilamento da miacutemesis e da contramiacutemesis com a comple-

mentaridade solucionando o dilema entre continuidade e descontinuidade

da arte com o real fonte autor 159

Figura 33 Fotografia do espremedor de frutas Juicy Salif (1990) de Philippe Starck

projetado para a empresa italiana Alessi fonte alessicom 161

Figura 34 Linha do tempo indicando o conceito de fim em si mesmo (linha 2) em um

caminho inverso ao da ldquoPonte Flusserianardquo partindo da arte em direccedilatildeo ao

design fonte autor 163

Figura 35 Fotografia de A fonte (1917) de Marcel Duchamp fonte tateorg 165

Figura 36 Esquema das origens e movimentos dos discursos aberto e persuasivo em suas

conexotildees com a arte a comunicaccedilatildeo e o design fonte autor 167

Figura 37 Fotografias da Brillo box (1964) e dos 32 quadros das latas de sopa Campbell

(1962) criados por Andy Warhol fonte momaorg 171

Figura 38 Esquema dos dois sentidos de apropriaccedilatildeo da arte e do design fonte

autor 171

Figura 39 Reproduccedilatildeo da pintura O beijo (1961) de Roy Lichtenstein fonte ima-

geduplicatorcom 176

Figura 40 Fotografia da instalaccedilatildeo Warhol (1964) Stable Gallery Nova York fonte

revista ars 177

Figura 41 Fotografias de A fonte (1917) de Marcel Duchamp (esquerda) e da Brillo Box

(1964) de Andy Warhol (direita) fontes tateorg e momaorg 185

Figura 42 Reproduccedilatildeo do quadro 200 notas de um dolar (1962) de Andy warhol

fonte sothebyscom 187

Figura 43 Fotografia do espremedor de frutas da Alessi impressa na embalagem do

produto fonte alessicom 190

Figura 44 Fotografia da espaacutetula para bolo Ceci nrsquoest pas une truelle (1998) de Philippe

Starck projetada para a Alessi fonte alessicom 193

Figura 45 Reproduccedilatildeo da pintura A traiccedilatildeo das imagens (1929) de Reneacute Magritte

fonte lacmaorg 194

Figura 46 Figura 46 Fotografia de uma das esculturas Paacutessaro no Espaccedilo (1928) de

Constantin Brancusi (esquerda) e fotografia da escova de dentes Dr Kiss

(1996) de Philippe Starck (direita) fonte momaorg

Figura 47 Esquema da possibilidade de o designer se movimentar entre ciecircncia e arte

enquanto a ponte do design se manteacutem estruturada fonte autor 196

Figura 48 Fotografia da cadeira La Marie (1998) de Philippe Starck projetada para a

empresa Kartell fonte kartellcom 197

Figura 49 Fotografia do banco WW (1990) de Philippe Starck projetado para o cineasta

Wim Wenders e produzido pela empresa Vitra fonte starckcom 203

LISTA DE FONTES NA INTERNET

alessicom Web Site Alessi lt wwwalessicom gt

designculturecombr Web Site Design Culture lt wwwdesignculturecombr gt

google patents Web Site Google Patentslt httpspatentsgooglecom gt

henri-mooreorg Web Site Henry Moore Foundation lt wwwhenry-mooreorg gt

imageduplicatorcom Web Site Image Duplicator lt wwwimageduplicatorcom gt

kartellcom Web Site Kartell companylt wwwkartellcomgt

lacmaorg Web Site Los Angeles County Museum of Artlt wwwlacmaorg gt

momaorg Web Site Museum of Modern Art lt wwwmomaorg gt

revista ars Web Site Revista Ars (ECAUSP)lt www2ecauspbrcaparshtm gt

sothebyscom Web Site Sothebyrsquoslt wwwsothebyscom gt

starckcom Web Site Phillipe Starcklt wwwstarckcom gt

tateorg Web Site Galleries Tatelt wwwtateorguk gt

SUMAacuteRIO

1 INTRODUCcedilAtildeO 16

11 Estrutura do texto 16

12 Percursos preacutevios 25

13 Questotildees norteadoras 32

2 ORIGENS E CONSEQUEcircNCIAS DA HIERARQUIZACcedilAtildeO DA CIEcircNCIA

TEacuteCNICA E ARTE 53

21 A essecircncia compartilhada de quatro conceitos gregos 54

211 Phyacutesis 54

212 Poacuteiesis 56

213 Teacutekhne 58

214 Episteacuteme 60

22 Hierarquia platocircnica cisatildeo e ruptura 62

221 A metafiacutesica impliacutecita ao tema da cidade ideal 65

222 O argumento ontoloacutegico contra a arte mimeacutetica 66

223 Desdobramentos da hierarquizaccedilatildeo do conhecimento 72

23 Design entre ciecircncia teacutecnica e arte 78

231 Afastamentos aproximaccedilotildees e interaccedilotildees 80

232 Artifiacutecios fronteiras moacuteveis e pontes 86

233 Essecircncia ontoloacutegica e epistemoloacutegica 101

3 DA ESTEacuteTICA Agrave ONTOLOGIA NA ARTE E NO DESIGN 111

31 Kant e a abordagem esteacutetica na arte e no design 113

311 Subjetividade e objetividade no territoacuterio da arte 114

312 Os conceitos de act e art 115

313 Antinomia e dilema 118

314 Uma releitura de Kant do belo agrave arte 119

315 Uma soluccedilatildeo incompleta ou a incompletude como soluccedilatildeo 121

316 Subjetividade e objetividade no territoacuterio do design 123

317 Outra releitura de Kant da arte ao design 123

318 A universalidade objetiva no design 125

319 A universalidade subjetiva no design 126

32 Heidegger e o vieacutes ontoloacutegico na arte e no design 129

321 O giro em direccedilatildeo agrave ontologia 130

322 A criacutetica a Platatildeo a arte natildeo eacute imitaccedilatildeo 132

323 Poacuteiesis como produccedilatildeo phyacutesis como terra e teacutekhne como mundo 134

324 Os trecircs modos de produccedilatildeo e sua influecircncia sobre o design 136

325 O design aleacutem da instrumentalidade e da utilidade 141

4 OS CONCEITOS ARISTOTEacuteLICOS NO DESIGN E NA ARTE 143

41 O fundamento ontoloacutegico do conceito de miacutemesis 144

411 A inversatildeo aristoteacutelica miacutemesis mediadora ativa e criativa 145

412 A alianccedila entre universalidade verdade e arte poeacutetica 147

413 As relaccedilotildees entre miacutemesis teacutekhne e phyacutesis 149

42 Deslocamento do conceito de miacutemesis e sua contribuiccedilatildeo ao design e agrave arte 150

421 A miacutemesis exoacutegena no design acreacutescimo e processo agrave natureza 151

422 A miacutemesis endoacutegena no design adaptaccedilatildeo e evoluccedilatildeo 153

423 A miacutemesis complementar na arte saiacuteda para o dilema de Euriacutepedes 155

43 Ampliaccedilatildeo das determinaccedilotildees ontoloacutegicas nas relaccedilotildees entre design e arte 159

431 Da arte ao design o conceito de ldquofim em si mesmordquo 160

432 Da arte ao design o discurso aberto e o persuasivo epidiacutectico 163

433 Do design agrave arte a metaacutefora epistemoloacutegica e os objetos sensiacuteveis 167

5 A PRODUCcedilAtildeO DE OBJETOS NO MUNDO SENSIacuteVEL 173

51 ldquoPontos focaisrdquo na arte Andy Warhol e Marcel Duchamp 175

52 ldquoPonto focalrdquo no design Philippe Starck 188

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 204

REFEREcircNCIAS 213

16

1 INTRODUCcedilAtildeO

Neste capiacutetulo a primeira seccedilatildeo Estrutura do texto explicita elementos que compotildeem

formalmente a escrita da tese como o modo de transliteraccedilatildeo de palavras de origem grega

o uso de imagens e graacuteficos e a definiccedilatildeo de alguns poucos termos de origem filosoacutefica

empregados na teoria subjacente agrave arte e ao design imprescindiacuteveis agrave compreensatildeo do

texto que os segue Em seguida os Percursos preacutevios resgatam e narram os motivos pelos

quais me debrucei haacute alguns anos sobre uma questatildeo e ainda hoje percorro os caminhos

para a sua compreensatildeo A seccedilatildeo seguinte Questotildees norteadoras apresenta e delimita tema

objetivo pressuposto hipoacutetese e demais elementos conceituais que fornecem o escopo da

tese Assim os Percursos apresentam uma narrativa de cunho pessoal na primeira pessoa

do singular e em seguida o discurso vai para o plural considerando que a tese propotildee

minhas reflexotildees em conjunto com as contribuiccedilotildees de meu orientador e de todos aqueles

que de algum modo deram suporte ao texto final

11 Estrutura do texto

Em escritos de ciecircncias humanas e sociais especialmente em reflexotildees de cunho filosoacutefico

eacute pouco comum o uso de diagramas ou ilustraccedilotildees mesmo quando o autor em se tratando

da aacuterea de esteacutetica cita uma obra de artista expondo seus detalhes A quase exclusividade

do uso das palavras eacute uma tradiccedilatildeo que garante ao escritor um controle miacutenimo sobre seu

discurso e argumentaccedilatildeo e aos potenciais leitores uma reduccedilatildeo nas possibilidades her-

menecircuticas minimizando interpretaccedilotildees duvidosas As exceccedilotildees ocorrem por exemplo

em textos de loacutegica onde o uso de diagramas tem uma funccedilatildeo correlata agrave das equaccedilotildees

em trabalhos de matemaacutetica permitindo condensar cadeias de raciociacutenio mais extensas

e apresentar uma visatildeo do todo em determinada questatildeo sem introduzir ambiguidade

Temos em conta esses fatores mas a tese se estabelece no territoacuterio do design disciplina

que tem como um de seus ramos mais proeminentes o design graacutefico e a infografia Como

defende o designer Gui Bonsiepe

17

Pode-se cair facilmente na armadilha de uma tendecircncia antivisual quando a teoria privilegia exclusivamente a linguagem ou mais ainda declara a lingua-gem como uacutenica forma epistecircmica A partir do chamado lsquogiro visualrsquo (iconic turn) nas ciecircncias que foi possibilitado pelo desenvolvimento da tecnologia digital e da informaacutetica o domiacutenio visual passou a ser reconhecido como um domiacutenio constitutivo epistemoloacutegico A pretensatildeo absolutista da linguagem como forma primordial do conhecimento vem perdendo espaccedilo embora ainda represente uma tradiccedilatildeo poderosa uma fortaleza institucional da discursivida-de Essa tradiccedilatildeo cria consideraacuteveis dificuldades para o avanccedilo da visualidade (bonsiepe 2011 p 184)

Neste sentido consideramos oportuno e optamos pelo uso de ilustraccedilotildees com caraacuteter

complementar ao texto como normalmente acontece no uso de infograacuteficos desenhos

e fotografias

Palavras de origem grega costumam ser transliteradas com grafias diversas por autores

de diferentes liacutenguas Por exemplo τέχνη aparece nas citaccedilotildees ora como teacuteckne ora como

teacutekhne e ateacute como techne Mantivemos a escolha de cada autor nas citaccedilotildees e optamos por

unificar somente a nossa grafia1

A nomenclatura associada a teorias princiacutepios e conceitos especialmente aqueles

advindos da filosofia utilizados por autores de aacutereas correlatas (apesar de estar firme-

mente estabelecida nos territoacuterios da esteacutetica e da arte) natildeo estaacute necessariamente ligada

agrave praacutetica do design No entanto com a ampliaccedilatildeo dos trabalhos teoacutericos desse campo

cada vez mais se faz presente nas suas pesquisas Poreacutem termos que derivam da filosofia

sofrem alteraccedilotildees e ganham definiccedilotildees divergentes ao serem empregados por pensadores

de diversas eacutepocas e com distintas posiccedilotildees ideoloacutegicas Assim decidimos apresentar

imediatamente uma lista com os termos e expressotildees mais recorrentes na tese para re-

duzir equiacutevocos hermenecircuticos e ambiguidades e ao mesmo tempo indicar algumas de

nossas filiaccedilotildees ideoloacutegicas dentro da filosofia do design e da arte tornando mais claros

os motivos de nossas posiccedilotildees e escolhas metodoloacutegicas

bull Epistemologia filosofia da ciecircncia teoria do conhecimento e gnoseologia mdash Joseacute

Ferrater Mora (1979) em seu Diccionario de filosofia afirma que epistemologia pode

ser entendida como sinocircnimo de teoria do conhecimento e de gnoseologia No entanto

1 Na transliteraccedilatildeo do alfabeto grego para o latino nos apoiamos na Gramaacutetica Grega de Antocircnio Freire S J (freire 1997) e no meacutetodo Hellenikaacute (brandatildeo saraiva lage 2005)

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com a tendecircncia a se aproximar gnoseologia de teoria do conhecimento em seu

sentido de conhecimento geral a epistemologia passou a ser compreendida como

teoria do conhecimento cientiacutefico tendo como referecircncias as questotildees que provecircm

especificamente das ciecircncias No Dicionaacuterio filosoacutefico Comte-Sponville (2011) reforccedila

esta distinccedilatildeo e delimita mais os trecircs termos

[Epistemologia] eacute a parte da filosofia que versa sobre uma ou vaacuterias ciecircncias em particular e natildeo sobre o saber geral (teoria do conhecimento gnoseologia)Uma teoria do conhecimento se situaria a montante do saber ela se pergunta em que condiccedilotildees as ciecircncias satildeo possiacuteveis Uma epistemologia a jusante ela se interroga menos sobre as condiccedilotildees das ciecircncias do que sobre sua histoacuteria seus meacutetodos seus conceitos seus paradigmas Seraacute quase sempre regional ou plural (a epistemologia da matemaacutetica natildeo eacute a da fiacutesica que natildeo eacute a da biolo-gia) Eacute filosofia aplicada como quase sempre eacute poreacutem mais no terreno das ciecircncias do que no seu O epistemoacutelogo acampa em terra estrangeira (em geral eacute um cientista que se lanccedilou na filosofia ou um filoacutesofo que se interessa pelas ciecircncias) (comte-sponville 2011 p 196-197)

Na tese nos apoiamos na delimitaccedilatildeo de Comte-Sponville para assumir a epistemologia

como um campo regional inserido dentro da teoria do conhecimentognoseologia

e portanto limitado aos estudos daquelas aacutereas que se assumiram e se entendem

como ciecircncia ou derivadas dela como eacute o caso da teacutecnica E a teoria do conheci-

mentognoseologia como a aacuterea de abrangecircncia maior refletindo sobre as condiccedilotildees

das ciecircncias ou seja suas possibilidades origens e essecircncia2 Por uacuteltimo Filosofia da

2 Essa divisatildeo mdash em origem possibilidade e essecircncia mdash eacute relevante para a constituiccedilatildeo de uma teoria do design Johannes Hessen (2000) em seu livro Teoria do conhecimento apresenta essa triacuteade subdivi-dindo-a em inuacutemeras posiccedilotildees e representantes que se firmaram ao longo da histoacuteria do pensamento Assim a origem do conhecimento eacute compreendida a partir das posiccedilotildees do dogmatismo ceticismo relativismo pragmatismo e criticismo A possibilidade do conhecimento a partir do racionalismo em-pirismo intelectualismo e apriorismo E a essecircncia do conhecimento a partir do objetivismo subjeti-vismo realismo idealismo e fenomenalismo Portanto quando se faz a distinccedilatildeo entre os problemas do conhecimento em seu acircmbito geral e preacutevio agraves ciecircncias daquelas questotildees que se estabelecem no interior de ciecircncias jaacute fundadas e de outros campos de pesquisa pressupotildee-se a adesatildeo por parte dos pesquisadores a cada uma das posiccedilotildees gnoseoloacutegicas anteriores Assim por exemplo no acircmbito do design quando Maldonado (2012) refletindo sobre a teacutecnica afirma que ldquoDessauer deixa subenten-dido mdash platocircnica e aristotelicamente mdash que as formas dos objetos teacutecnicos jaacute estariam presentes em um cataacutelogo ideal das formas preexistentes E que a teacutecnica natildeo faria outra coisa a natildeo ser deixaacute-las expliacutecitasrdquo (maldonado 2012 p 153) ele claramente explora as posiccedilotildees gnoseoloacutegicas assumidas por Dessauer correlacionando-as com as suas em busca de fundamentar atraveacutes da teoria do conhe-cimento sua proacutepria epistemologia sobre a teacutecnica no design

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ciecircncia eacute uma expressatildeo que natildeo consta como verbete nas mais de 3500 paacuteginas do

dicionaacuterio de Ferrater Mora (1979) nem no dicionaacuterio de Comte-Sponville (2011)

mas que estaacute associada agraves investigaccedilotildees acerca das estruturas das teorias cientiacuteficas

modernas e contemporacircneas como ocorre com epistemologia Apesar da natildeo expli-

citaccedilatildeo em verbete Ferrater Mora ao expor o pensamento de epistemoacutelogos como

Alexandre Koyreacute Karl Popper e Thomas Kuhn aponta a filosofia da ciecircncia como

aacuterea de atuaccedilatildeo desses estudiosos A relevacircncia dessa aacuterea aumenta uma vez que

teoacutericos do design como Tomaacutes Maldonado (2012) confirmam sua atuaccedilatildeo dentro

dela No caso de Maldonado como suas investigaccedilotildees avanccedilam em direccedilatildeo a temas

especiacuteficos da teacutecnica que nos interessam dialogando com autores como Koyreacute e

Kuhn entre outros3 esse autor inclui como aacuterea de sua atuaccedilatildeo aleacutem da filosofia

da ciecircncia a filosofia da teacutecnica de uso menos comum Na tese optamos pelo uso

de epistemologia para a maioria das situaccedilotildees mas entendemos filosofia da ciecircncia

como um sinocircnimo de epistemologia

bull Ontologia mdash Aacuterea da filosofia que estuda o ser ou os entes em sua generalidade O

historiador da filosofia Pierre Aubenque (2012) em seu livro O problema do ser em

Aristoacuteteles nos alerta para dificuldades de diversas ordens que se enfrenta quando o

tema de estudo eacute a ontologia

Porque vivemos no pensamento aristoteacutelico do ser mdash isso seria somente porque ele reflete na gramaacutetica de inspiraccedilatildeo aristoteacutelica atraveacutes da qual pensamos e falamos nossa linguagem mdash desaprendemos a perceber o que havia de sur-preendente e talvez de eternamente surpreendente na questatildeo O que eacute o ser Eacute por isso que parece interessante nos perguntarmos por que Aristoacuteteles fez essa questatildeo que natildeo eacute evidente e como chegou a fazecirc-la enquanto tal O problema do ser eacute o mais problemaacutetico dos problemas natildeo somente no sentido de que ele natildeo seraacute talvez jamais inteiramente respondido mas no sentido de que eacute jaacute um problema de saber por que noacutes nos questionamos acerca desse problema (aubenque 2012 p 22)

3 No livro Cultura sociedade e teacutecnica (2012) a lista de autores oriundos da filosofia da ciecircncia com os quais Maldonado manteacutem interlocuccedilatildeo eacute longa Entre aqueles citados por Maldonado que produziram obras em temas subsidiaacuterios da tese merecem destaque (aleacutem de Alexandre Koyreacute e Thomas Kuhn) o disciacutepulo de Karl Popper Imre Lakatos e os fiacutesicos Isaac Newton e Werner Heisenberg que tambeacutem fizeram incursotildees em teoria do conhecimento

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Neste espiacuterito de perplexidade diante da condiccedilatildeo imanente da linguagem do pen-

samento e do ser Umberto Eco (1998) inicia o primeiro capiacutetulo do seu livro Kant

e o ornitorrinco tratando desse problema

Pascal (Fragmento 1655) percebera isso muito bem ldquoNatildeo podemos nos preparar para definir o ser sem incorrer neste absurdo porque natildeo podemos definir uma palavra sem comeccedilarmos pelo termo eacute expresso ou subentendido Entatildeo para definir o ser eacute preciso dizer eacute e assim usar o termo definido na definiccedilatildeordquo O que natildeo eacute o mesmo que dizer com Gorgia que natildeo podemos falar do ser falamos muito dele ateacute demais a natildeo ser que esta palavra maacutegica nos sirva para definir quase tudo mas natildeo seja definida por nada Em semacircntica falariacuteamos de um primitivo o mais primitivo de todos (eco 1998 p 17)

Concordando com Aubenque e Eco assumimos que eacute preciso ir aleacutem desse ldquopro-

blemardquo e falar sobre o ser No entanto a ontologia como os demais ramos da filo-

sofia chega agrave atualidade acumulando diversas variantes de significado derivadas da

trajetoacuteria histoacuterica do pensamento ocidental ao passar pelos estudiosos que vecircm se

dedicando a essa aacuterea e seus temas Assim considerando-a em seu caraacuteter mais geral

ontologia carrega o sentido de reflexatildeo e busca por compreensatildeo da dimensatildeo mais

ampla da realidade em que cada ente que a compotildee (finito ou infinito material ou

imaterial) tem sua existecircncia estabelecida definida e validada ou natildeo dependendo

do modo como cada pesquisador elabora sua teoria Por exemplo se entendermos

a arte como um ente da realidade na concepccedilatildeo platocircnica ela eacute mera imitaccedilatildeo coacute-

pia natildeo existindo enquanto um elemento essencial consequentemente natildeo sendo

legitimada na ontologia proposta por esse pensador Jaacute para a ontologia aristoteacutelica

e tambeacutem para a nossa na tese como a realidade natildeo se estabelece em separado em

um mundo das ideias o mundo sensiacutevel em que vivemos e agimos incluindo a arte

e o design tem existecircncia real ou seja tem fundamento ontoloacutegico

bull Metafiacutesica mdash Androcircnico de Rodes no seacuteculo i aC ao editar as obras de Aristoacuteteles

se deparou com uma seacuterie de livros acerca do ser e dos primeiros princiacutepios e causas

que hoje poderiam ser classificados como escritos de ontologia No entanto como

editor Androcircnico decidiu ordenar esses livros e inseri-los apoacutes o tratado sobre a fiacutesica

com o tiacutetulo de Metagrave tagrave physikaacute (depois da fiacutesica) expressatildeo que natildeo se encontra na

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obra de Aristoacuteteles4 Ocorre que em grego o antepositivo metagrave natildeo se restringe ao

significado de ldquodepois derdquo tendo outras acepccedilotildees como ldquoaleacutem derdquo Com o passar do

tempo o sentido aleacutem de foi incorporado pela tradiccedilatildeo do pensamento ao conceito

de metafiacutesica e essa aacuterea se firmou como aquela que trata dos temas que estatildeo aleacutem

da fiacutesica e das ciecircncias da natureza e tambeacutem de um modo geral dos assuntos que

ultrapassam o conhecimento cientiacutefico ou empiacuterico Uma das possibilidades de

se entender a metafiacutesica eacute consideraacute-la como uma disciplina impossiacutevel enquanto

almejando o conhecimento de uma realidade transcendente Essa eacute por exemplo a

posiccedilatildeo do empirismo (incluindo o positivismo e o neopositivismo ou positivismo

loacutegico contemporacircneo) Outra agrave qual aderimos eacute entendecirc-la natildeo como referente

a uma realidade espiritual ou divina mas como um conjunto de conceitos e prin-

ciacutepios que formam uma base natildeo empiacuterica tatildeo fundamental quanto a experiecircncia

sensiacutevel para a constituiccedilatildeo das ciecircncias e de outros campos Em ciecircncias humanas

e sociais a distinccedilatildeo entre metafiacutesica e ciecircncia talvez seja difiacutecil de se explicitar pelo

proacuteprio entrelaccedilamento dos temas que tecircm como centro de interesse o ser humano

e suas idiossincrasias Poreacutem ao se pensar de modo correlato acerca de uma ciecircncia

da natureza como a fiacutesica (tanto pelas suas caracteriacutesticas empiacutericas e matemaacuteticas

quanto pela sua precedecircncia histoacuterica em relaccedilatildeo agraves demais ciecircncias que se reflete

na evidente distinccedilatildeo morfoloacutegica dos termos originaacuterios fiacutesica e metafiacutesica) acredi-

tamos torna-se mais clara a posiccedilatildeo com a qual nos identificamos e que exploramos

na tese no acircmbito das ciecircncias humanas e sociais Assim um exemplo que aponta

para a concepccedilatildeo com a qual estamos alinhados vem do filoacutesofo da ciecircncia Edwin

Arthur Burtt (1983) em seu livro As bases metafiacutesicas da ciecircncia moderna

Newton natildeo encontrava rival como cientista mdash mas eacute possiacutevel que natildeo estivesse infenso a criacuteticas como metafiacutesico Ele tentou escrupulosamente pelo menos em seu trabalho experimental evitar a metafiacutesica Desprezava as hipoacuteteses que para ele significavam proposiccedilotildees explicativas natildeo-deduzidas imediatamente dos fenocircmenos Ao mesmo tempo seguindo seus ilustres predecessores dava ou presumia respostas definidas a questotildees fundamentais como a natureza

4 O tiacutetulo Metafiacutesica dado agrave obra de Aristoacuteteles eacute complexo e problemaacutetico Tanto que Pierre Aubenque em O problema do ser em Aristoacuteteles (2012) dedica um capiacutetulo inteiro (A ciecircncia sem nome) buscando elucidar suas origens histoacutericas

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do espaccedilo e do tempo e da mateacuteria e as relaccedilotildees do homem com os objetos de seu conhecimento e satildeo justamente essas respostas que constituem a metafiacutesica O fato de que o tratamento por ele dado a estes grandes temas mdash que se impocircs ao mundo culto pelo peso de seu prestiacutegio cientiacutefico mdash cobria-se com a roupagem do positivismo pode ter-se tornado um perigo em si mesmo Tal fato pode ter contribuiacutedo significativamente para insinuar um conjunto de ideacuteias aceitas acriticamente a respeito do mundo no cenaacuterio intelectual comum do homem moderno (burtt 1983 p 24) Itaacutelico nosso

O ldquoperigordquo da roupagem positivista de que nos fala Burtt tambeacutem foi questionado

no neopositivismo contemporacircneo por exemplo por Karl Popper e por Thomas

Kuhn ao proporem concepccedilotildees distintas da ciecircncia atual mas que natildeo abrem matildeo da

metafiacutesica Retornando agraves ciecircncias humanas e sociais compreendemos a metafiacutesica

como um vasto campo no interior da filosofia que inclui conjecturas e hipoacuteteses e

como afirma Burtt (1983 p 24) abriga tambeacutem reflexotildees sobre ldquoas relaccedilotildees do homem

com os objetos de seu conhecimentordquo no nosso caso sobre design e arte Corrobora

nossa posiccedilatildeo o questionamento do historiador da arte e do design Rafael Cardoso

(2016) agraves ideias positivistas amplamente disseminadas nos ciacuterculos da ciecircncia e da

histoacuteria da ciecircncia desde o seacuteculo xix5 e que acabaram por encontrar espaccedilo no

acircmbito de diversas ciecircncias sociais incluindo o design Conforme suas palavras no

livro Design para um mundo complexo

Ao longo do seacuteculo xx o lado criativo do design foi sistematicamente subestimado e ateacute combatido por um ideaacuterio que ansiava firmar a metodologia projetual em bases supostamente cientiacuteficas distanciando-a das artes plaacutesticas e do artesanato Tal postura reflete uma bagagem intelectual positivista bastante rasa herdada do seacuteculo xix junto com o marxismo de panfleto que alguns designers e arqui-tetos modernistas proclamavam a tiacutetulo de ideologia (cardoso 2016 p 245)

5 O epistemoacutelogo Wolgang Stegmuumlller foi preciso ao resumir a criacutetica de Thomas Kuhn agrave visatildeo positivista que passou a permear as concepccedilotildees da historia da ciecircncia no seacuteculo xix com seacuterias consequecircncias para as ciecircncias particulares ldquoAs verdadeiras raiacutezes do movimento positivista estariam segundo Kuhn em outro ponto grosseiramente falando estariam nas introduccedilotildees e nos prefaacutecios de obras de fiacutesica e de quiacutemica do seacuteculo xix Mas natildeo seriam competentes cientistas os autores dessas obras Certamente enquanto cientistas estudiosos de fenocircmenos naturais Lamentavelmente contudo esses autores tambeacutem se julgaram aptos historiadores de suas disciplinas discorrendo naqueles prefaacutecios e naque-las introduccedilotildees a respeito de aspectos da histoacuteria dos assuntos tratados mdash campo que infelizmente ignoravam por completo Assim nasceu uma errocircnea concepccedilatildeo das ciecircncias naturais vistas em sua condiccedilatildeo de manifestaccedilotildees culturais e sociais e assim surgiram os mal-entendidos a propoacutesito da histoacuteria de tais ciecircnciasrdquo (stegmuumlller 1977 v 2 p 361)

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Neste sentido eacute portanto imprescindiacutevel tambeacutem pensar conceitos caros agrave arte e

ao design como os de criaccedilatildeo e criatividade entendendo-os como pertencentes agraves

reflexotildees da metafiacutesica pois satildeo inerentes a ela

bull Esteacutetica mdash O filoacutesofo Rodrigo Duarte (2005) ao discorrer sobre a descontinuidade

das questotildees de esteacutetica em relaccedilatildeo a de outros temas recorda que essa disciplina

nasceu recentemente no seacuteculo xviii Conforme suas palavras

Mesmo considerando que ao longo da histoacuteria as discussotildees esteacuteticas natildeo te-nham tido a mesma continuidade que as eacuteticas ou metafiacutesicas tambeacutem nesse acircmbito haacute questotildees colocadas por Platatildeo e Aristoacuteteles como o tema da miacutemesis por exemplo que ateacute hoje natildeo perderam a relevacircncia sendo mesmo recorrentes atraveacutes dos seacuteculos Quando menciono a descontinuidade na esteacutetica tenho em mente que com o referido nome essa disciplina filosoacutefica eacute um produto tipicamente moderno tendo aparecido pela primeira vez na obra homocircnima de Alexander von Baumgarten de 1750 (duarte 2005 p 377)

Se para Baumgarten o problema da esteacutetica claacutessica se circunscreve ao problema do

belo para Comte-Sponville (2011) a esteacutetica contemporacircnea recoloca a questatildeo em

outro contexto e com elementos diversos

ldquoEsteacutetica mdash O estudo ou a teoria do belo Considera-se habitualmente que eacute muito mais uma parte da filosofia do que das Belas-Artes Eacute justo O conceito de belo natildeo eacute belo O conceito de obra de arte natildeo eacute uma obra de arte Eacute por isso que os artistas desconfiam dos esteticistas que tomam o belo por um pensamentordquo (comte-sponville 2011 p 213)

Quanto agrave nossa posiccedilatildeo no desenvolvimento da tese os temas de esteacutetica e nossos

interesses vatildeo aleacutem da questatildeo do belo natildeo somente porque a arte contemporacircnea

ultrapassou sobremaneira esse referencial claacutessico mas porque as proposiccedilotildees esteacuteticas

dizem respeito tambeacutem ao campo do design

Tendo como referecircncia essa lista terminoloacutegica a seguir na figura 1 apresentamos

uma ordenaccedilatildeo e hierarquizaccedilatildeo de algumas das aacutereas da filosofia que seratildeo tematizadas

na tese O graacutefico inclui trecircs objetos de estudo dessas aacutereas mdash ciecircncia teacutecnica e arte mdash mas

natildeo propriamente o design A natildeo explicitaccedilatildeo do design se deve como veremos a certa

indeterminaccedilatildeo desse campo que no estaacutegio atual de seu desenvolvimento tanto pode

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ser abordado como objeto de estudo por qualquer das disciplinas filosoacuteficas do graacutefico

quanto pode ser entendido como pertencendo agrave ciecircncia agrave teacutecnica e agrave arte

Ressaltamos que o graacutefico representa o nosso entendimento e obviamente existem

muitas outras ordenaccedilotildees6 estabelecidas Entre essas classificaccedilotildees encontram-se aque-

las que eliminam aacutereas apresentadas no graacutefico (como a dos empiristas que excluem a

6 As divergecircncias na classificaccedilatildeo das aacutereas da filosofia eacute tatildeo antiga quanto a disciplina De autor para autor somam-se a essas diferentes ordenaccedilotildees o problema dos significados da terminologia adota-dos por cada estudioso gerando inuacutemeras variantes Tal situaccedilatildeo se agrava quando esse arcabouccedilo eacute conduzido para outros campos como o design No entanto a filosofia diversamente de outras aacutereas do conhecimento sempre retorna agraves mesmas questotildees mdash por sua proacutepria escolha e decisatildeo que eacute a de primeiramente problematizar mdash e seu vocabulaacuterio necessitar ser enriquecido enquanto ela estabelece suas proposiccedilotildees Assim novas divisotildees e tambeacutem acepccedilotildees satildeo bem-vindas a esse campo como ocorre em um dicionaacuterio A exemplo disso o dicionaacuterio Ferrater Mora inicia o verbete filosofia afirmando que ldquoentre os problemas que se colocam com relaccedilatildeo agrave filosofia estatildeo (i) o do termo lsquofilosofiarsquo (ii) o da origem da filosofia (iii) o da sua significaccedilatildeo e da divisatildeo da filosofia em diversas disciplinas Desses problemas (iii) eacute o mais discutido e o que ocuparaacute a maior parte do presente verbeterdquo (ferrater mora 1987 v 2 p 1175-1176) Itaacutelico nosso traduccedilatildeo nossa

FILOSOFIA

METAFIacuteSICA

ESTEacuteTICA

ONTOLOGIA

TEORIA

DO CONHECIMENTOGNOSEOLOGIA

EPIST

EMOLO

GIAFILOSOFIA DA CIEcircNCIA

CIEcircNCIAamp

TEacuteCNICAARTE

O SER EOS ENTES EM GERAL

Figura 1 Representaccedilatildeo de aacutereas articuladas na tese Dentro da aacuterea azul se situam outros campos de atuaccedilatildeo da filosofia natildeo representados Ciecircncia teacutecnica e arte natildeo estatildeo representados como aacutereas mas como objetos de estudo fonte autor

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metafiacutesica) ou aquelas que constroem uma hierarquizaccedilatildeo diferente (como a proposta

por Heidegger que retira a ontologia do interior da metafiacutesica e opotildee radicalmente essas

duas aacutereas) De qualquer modo a siacutentese da lista anterior disposta na figura 1 tem seus

propoacutesitos busca esclarecer ao leitor uma hierarquia e um espectro de aacutereas com os quais

identificamos os temas da tese e contribui como uma espeacutecie de fio condutor na demar-

caccedilatildeo do caminho enquanto nos movemos no interior dos capiacutetulos

Uma uacuteltima ressalva deve ser feita com relaccedilatildeo agrave escrita da tese No periacuteodo de sua

elaboraccedilatildeo algumas partes foram apresentadas em congressos e outras submetidas a

perioacutedicos na forma de artigos o que naturalmente produziu criacuteticas ao nosso trabalho

tanto por parte de avaliadores quanto de outros pesquisadores Parte dessas criacuteticas foi

respondida com correccedilotildees de rumo e ajustes no texto Outras pelo seu caraacuteter mais espe-

ciacutefico foram incorporadas na forma de perguntas colocadas por interlocutores hipoteacuteti-

cos e potenciais uma vez que infelizmente na eacutepoca natildeo os pudemos identificar Nesse

sentido tais interlocutores natildeo pretendem ter funccedilatildeo retoacuterica no texto mas assumem

seu papel de questionar nossas posiccedilotildees os quais procuramos responder

12 Percursos preacutevios

No ano de 2005 apoacutes a conclusatildeo de minha especializaccedilatildeo em teoria do conhecimento

com um tema em Descartes na Universidade Federal de Minas Gerais tendo compreen-

dido as consequecircncias problemaacuteticas tanto da visatildeo mecanicista do mundo proposta

pelos racionalistas quanto pela sua contraparte empirista busquei concepccedilotildees diversas

e alternativas Naquele momento voltei minha atenccedilatildeo para as conexotildees existentes entre

ciecircncia teacutecnica criaccedilatildeo e criatividade e elegi o design e a arte como uma nova direccedilatildeo

de trabalho Meus primeiros estudos em design ligavam temas da escrita e da tipografia

com projetos que eu implementava para o mercado editorial e se concretizaram tambeacutem

na dissertaccedilatildeo de mestrado na Escola de Design da Universidade do Estado de Minas

Gerais Paralelamente a esses temas especiacuteficos do design graacutefico e da gnoseologia (aacuterea

preferencial desde minha graduaccedilatildeo) direcionei parte do meu tempo para pesquisas no

campo da esteacutetica claacutessica um territoacuterio naquele momento por mim ainda natildeo explorado

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Assim o primeiro passo foi retornar ao meu departamento de origem e cursar uma

disciplina sobre a Poeacutetica de Aristoacuteteles texto claacutessico cuja leitura eacute obrigatoacuteria em es-

tudos de esteacutetica e cujo autor eu jaacute conhecia de pesquisas anteriores voltadas agrave teoria do

conhecimento e agrave ontologia Uma pergunta me movia mas soacute alcanccedilou uma formulaccedilatildeo

mais clara alguns anos depois em quais tipos de fundamentos eacute possiacutevel compreender as

relaccedilotildees entre design e arte

A decisatildeo de frequentar disciplinas isoladas em esteacutetica e filosofia da arte proporcio-

nou-me o alargamento da visatildeo sobre essa aacuterea Aleacutem disso levou-me ao conviacutevio com

pesquisadores de belas-artes comunicaccedilatildeo letras ciecircncias sociais histoacuteria juntamente

com os originaacuterios da filosofia Como consequecircncia forneceu-me campo feacutertil para a

abordagem e o debate de questotildees que se entrelaccedilam ampliando as possibilidades de

reflexatildeo e produzindo discussotildees com esses pesquisadores elementos essenciais para a

elaboraccedilatildeo de um tema comparativo como o meu

O contato com as reflexotildees de Vileacutem Flusser um caso raro de filoacutesofo que leva o de-

bate para o interior do design natildeo somente acrescentou controveacutersias agraves discussotildees mas

tambeacutem indicou pontos em comum com o meu tema Naquele momento a comunidade

acadecircmica voltava sua atenccedilatildeo para esse autor creio que em parte devido agrave publicaccedilatildeo de

algumas de suas obras ateacute entatildeo ineacuteditas que colocam em pauta filosofia design arte e

comunicaccedilatildeo Seu livro poacutestumo O mundo codificado por uma filosofia do design e da

comunicaccedilatildeo de 2007 revela no proacuteprio tiacutetulo essa conexatildeo e torna-se no meu entendi-

mento uma provocaccedilatildeo agrave filosofia no sentido de desafiaacute-la a pensar questotildees fora de um

confortaacutevel ciacuterculo de conhecimento jaacute estabelecido Outro exemplo eacute a sua conferecircncia

Criaccedilatildeo cientiacutefica e artiacutestica (1982) que apesar de localizar a cisatildeo entre arte e ciecircncia na

modernidade (periacuteodo que considero muito distante no tempo em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo

de uma das minhas hipoacuteteses) reforccedilou a crenccedila no valor da problematizaccedilatildeo da sepa-

raccedilatildeo entre esses dois campos

Como desdobramento dessas leituras cheguei ateacute Rafael Cardoso em seu artigo

Design Cultura material e o fetichismo dos objetos (1998) Cardoso historiador da arte

e do design organiza e prefacia O mundo codificado de Flusser (2005) Ao investigar um

pouco mais encontrei aleacutem de algumas concepccedilotildees concordantes entre esses dois autores

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uma questatildeo relevante para o encaminhamento da tese uma controveacutersia natildeo expliacutecita

que os coloca em posiccedilotildees ontologicamente distintas em relaccedilatildeo ao ato de projetar do

design Neste sentido independentemente das discordacircncias que tenho em relaccedilatildeo agraves

posiccedilotildees de Flusser foi um estiacutemulo encontrar um filoacutesofo disposto a especular sobre o

design colocando esse campo em um lugar de destaque na reflexatildeo teoacuterica e natildeo apenas

no acircmbito da produccedilatildeo

Somou-se a isso a defesa que o teoacuterico do design Bernhard Buumlrdek (2006) faz da filo-

sofia credenciando-a como um dos instrumentos a serem empregados na constituiccedilatildeo de

fundamentos do design Esses autores fortaleceram minha decisatildeo de abordar o problema

das relaccedilotildees entre design e arte com o auxiacutelio de conceitos filosoacuteficos

Uma vez que minha atenccedilatildeo natildeo se restringia ao campo artiacutestico ou do design mas

se concentrava nas bases das relaccedilotildees entre design e arte cursei outras disciplinas que

pudessem contribuir para o entendimento das diferenccedilas entre objetos artiacutesticos e demais

objetos da produccedilatildeo humana As reflexotildees sobre esteacutetica e filosofia da arte em Arthur

Danto cumpriram essa funccedilatildeo na medida em que esse autor em busca da compreensatildeo

do universo da arte contrapotildee objetos de arte a outros objetos como os artefatos e a

atividade de criaccedilatildeo dos artistas a outras atividades Nas suas palavras

Creio que subsistem perplexidades anaacutelogas na anaacuteloga teoria da arte segundo a qual um objeto material (ou artefato) eacute uma obra de arte quando o arcabou-ccedilo institucional do mundo da arte assim o considera A teoria institucional da arte natildeo explica embora permita justificar por que a Fonte de Duchamp passou de mera coisa a obra de arte por que aquele urinol especiacutefico mereceu tatildeo impressionante promoccedilatildeo enquanto outros urinoacuteis obviamente idecircnticos a ele continuaram relegados a uma categoria ontologicamente degradada[7] A teoria deixa ainda em aberto o problema de outros objetos indiscerniacuteveis dos quais um eacute uma obra de arte e o outro natildeo (danto 2005 p 39)

Talvez pelo fato de ter se envolvido anteriormente em questotildees de filosofia analiacutetica

o estilo dialeacutetico como Danto empreende suas anaacutelises esteacuteticas especialmente em seu

livro A transfiguraccedilatildeo do lugar-comum uma filosofia da arte (2005) aleacutem de ser o gatilho

7 Como veremos no capiacutetulo 3 Heidegger natildeo compartilha essa ideia de rebaixamento ontoloacutegico dos demais objetos em relaccedilatildeo agrave arte Ao contraacuterio de Danto para ele a arte eacute essencial para ampliar a compreensatildeo dos chamados objetos utilitaacuterios ou utensiacutelios

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para investigaccedilotildees subsequentes contribuiu para assegurar-me de assumir um pressuposto

ontoloacutegico na pesquisa sem perder de vista os fundamentos gnoseoloacutegicos adquiridos an-

teriormente Nessa trajetoacuteria busquei outros autores que possibilitassem pensar elementos

relacionais ao design e agrave arte na mesma clivagem

Reler a Obra aberta (1988) de Umberto Eco com novos objetivos em mente e um

novo olhar me fez avanccedilar na compreensatildeo de uma das categorias de discursos persuasivos

elaborados por Aristoacuteteles (o epidiacutectico) que se mostrou potencialmente feacutertil para o an-

damento da pesquisa Ao mesmo tempo tal leitura despertou-me para uma convergecircncia

teoacuterica e conceitual diversos estudiosos (entre eles Eco e Danto) ao refletirem sobre os

discursos na comunicaccedilatildeo e as formas de expressatildeo da arte da ciecircncia ou de campos de

algum modo a eles relacionados invariavelmente retornam ao pensamento aristoteacutelico

seja de forma criacutetica ou como fundamento e apoio agraves suas investigaccedilotildees

Assim quando em 2007 cheguei a uma primeira seleccedilatildeo das obras de Aristoacuteteles jaacute

estava orientado para o tema dos discursos aristoteacutelicos assim como para o conceito de

miacutemesis (estudado anteriormente na obra A poeacutetica) entendendo-os como relevantes

para a abordar alguns dos fundamentos das relaccedilotildees entre design e arte Tal recorte

contemplado em duas obras A poeacutetica (1987) e A retoacuterica (1964) foi ampliado em 2010

incluindo A poliacutetica (1986) e A fiacutesica (2009) Essas obras tambeacutem foram essenciais para

a compreensatildeo do que Umberto Eco nomeia como discurso aberto em contraposiccedilatildeo ao

discurso persuasivo em comunicaccedilatildeo

Aleacutem disso A poeacutetica e A fiacutesica forneceram as bases para o entendimento do conceito

aristoteacutelico de miacutemesis um dos elementos centrais na tese A fiacutesica em especial apresenta

o conceito de miacutemesis atrelado aos conceitos gregos de natureza (phyacutesis) e de arte (teacutekh-

ne) Nessa sequecircncia de conexotildees pude compreender como esses trecircs conceitos estatildeo

subsumidos ao conceito mais geral de produccedilatildeocriaccedilatildeo (poacuteiesis) que eacute determinante

para saber como os gregos entendiam as produccedilotildees humanas Mas nesse aspecto o que

eacute mais relevante para o tema e que tambeacutem se encontra no livro A fiacutesica satildeo aquelas

produccedilotildees que se constituem a partir de princiacutepios que estabelecem natildeo um fazer mas

um saber fazer uma teacutekhne dos quais entendo que o design eacute um dos herdeiros tardios

29

A compreensatildeo dos fundamentos dessas produccedilotildees se completou com a anaacutelise que

Aristoacuteteles procede na obra A poliacutetica8 sobre as atividades humanas onde ele apresenta a

distinccedilatildeo nos conceitos de coisas uacuteteis coisas belas e de fim em si mesmo Esses conceitos

compotildeem o nuacutecleo da reflexatildeo acerca de caracteriacutesticas distintivas dos objetos de design

e dos objetos artiacutesticos

A partir dessas pesquisas identifiquei um distanciamento entre meus estudos de teoria

do conhecimento e de esteacutetica Essa falta de articulaccedilatildeo entre aacutereas soacute foi compreendida

quando em 2012 pude investigar pensadores alijados da tradiccedilatildeo epistemoloacutegica e criacuteticos

dela como Friedrich Nietzsche e Martin Heidegger Deste modo em um niacutevel subsidiaacuterio

A origem da obra de arte (2004) e A questatildeo da teacutecnica (2007) de Heidegger e O nascimento

da trageacutedia (1992) de Nietzsche contribuem de forma decisiva para a compreensatildeo do

momento histoacuterico da cisatildeo entre ciecircncia e arte no mundo grego Aleacutem disso concorrem

para o entendimento de conceitos gregos fundamentais como o de poacuteiesis phyacutesis episteacuteme

e teacutekhne em interpretaccedilotildees criacuteticas e opostas agrave visatildeo que a epistemologia tradicional tem

dos conceitos contemporacircneos de ciecircncia teacutecnica e arte

Com os estudos que efetuei sobre esses dois pensadores a partir do embate de

concepccedilotildees antinocircmicas pude assegurar-me de uma proposta de mediaccedilatildeo como soluccedilatildeo

de contradiccedilotildees ligadas por exemplo agrave objetividade e subjetividade de campos como o

design e a arte no capiacutetulo 3

Na cadeia de conexotildees retomei tambeacutem um livro de leitura bastante anterior Lingua-

gem e mito (1992) de Ernst Cassirer que fechou o ciacuterculo no diaacutelogo com esses autores

Com isso estabeleci reflexotildees sobre o mito de Prometeu enquanto arqueacutetipo da ciecircncia

e da teacutecnica e o conceito de mediaccedilatildeo como possibilidade de soluccedilatildeo de antinomias que

surgiram ao longo das investigaccedilotildees

Tambeacutem me apoiei em Cassirer na obra Determinism and indeterminism in modern

physics historical and systematic studies of the problem of causality (1956) utilizando sua

8 Do mesmo modo que as questotildees e os conceitos se entrelaccedilam no pensamento antigo as obras claacutessicas natildeo tecircm uma temaacutetica claramente delimitada como passa a ocorrer na modernidade Deste modo encontra-se por exemplo em uma obra com o tiacutetulo de A poliacutetica aleacutem dos temas proacuteprios ao nome questotildees que hoje seriam classificadas dentro da esteacutetica Esse natildeo eacute um procedimento exclusivo de Aristoacuteteles Platatildeo tem um dos momentos cruciais da sua criacutetica ontoloacutegica agrave arte mimeacutetica em sua obra A repuacuteblica

30

interpretaccedilatildeo dos princiacutepios de complementaridade indeterminaccedilatildeo e causalidade na

fiacutesica quacircntica Este autor contribui tanto ao entendimento do conceito de ldquometaacutefora

epistemoloacutegicardquo de Eco aplicada ao mundo da arte mdash em especial a arte contemporacircnea

e as conexotildees que Eco faz com a fiacutesica quacircntica mdash bem como subsidia as minhas apro-

priaccedilotildees e criacuteticas a esses conceitos no design

Por indicaccedilatildeo de meu orientador que identificou a estreita relaccedilatildeo entre os temas da

filosofia da teacutecnica e do design com as reflexotildees de Tomaacutes Maldonado pude acrescentar

autores e temas que subsidiam as minhas consideraccedilotildees sobre as distinccedilotildees entre ciecircncia

teacutecnica arte e design Neste sentido os capiacutetulos Pensar a teacutecnica hoje A ldquoidade projetualrdquo

e Daniel Defoe e Os oacuteculos levados a seacuterio do livro Cultura sociedade e teacutecnica trazem agrave tona

o debate de temas proacuteprios do design que Maldonado (2012) explora em profundidade

Ao construir o quadro geral de autores e temas percebi que o retorno a Aristoacuteteles

estava claramente vinculado a Platatildeo Natildeo era possiacutevel construir os argumentos em tor-

no das minhas posiccedilotildees sem me referir de algum modo agraves concepccedilotildees platocircnicas Essa

necessidade se deu por pelo menos dois motivos

Em primeiro lugar os autores centrais para a constituiccedilatildeo do arcabouccedilo da tese re-

tornam expliacutecita ou implicitamente a Platatildeo Aristoacuteteles trata de forma oposta e criacutetica a

seu mestre os conceitos de arte e de miacutemesis que me interessam Nietzsche e Heidegger

mesmo de modo distinto tambeacutem se insurgem contra Platatildeo e a tradiccedilatildeo ocidental esta-

belecida em torno da concepccedilatildeo de ciecircncia teacutecnica e arte em certo sentido derivada das

influecircncias teoacutericas desse pensador Desses embates extraiacute elementos para compreender

natildeo somente a cisatildeo mas tambeacutem a hierarquizaccedilatildeo entre campos do saber que manti-

nham uma equivalecircncia na antiguidade preacute-platocircnica Na esteira desses autores tambeacutem

se direcionam Eco e Danto tendo em Platatildeo o catalizador inicial de questotildees que movem

o pensamento no Ocidente

Em segundo talvez o mais relevante motivo se as preocupaccedilotildees de Platatildeo satildeo de

ordem gnoseoloacutegica o tratamento que ele oferece para distinguir e hierarquizar ciecircncia

teacutecnica e arte eacute de caraacuteter ontoloacutegico Sua obra A repuacuteblica (1987) mdash especialmente o livro

x mdash traz uma criacutetica radical agrave arte mimeacutetica natildeo sem razatildeo conhecida como a Criacutetica

ontoloacutegica Essa abordagem inevitavelmente obriga aqueles que discordam ou natildeo de

Platatildeo a discutirem a questatildeo passando de algum modo pelo crivo ontoloacutegico

31

Quanto a mim jaacute estava persuadido da relevacircncia de uma abordagem que leva em

conta o problema do ser quando investiguei O princiacutepio de causalidade e a prova ontoloacutegica

da existecircncia de Deus em Descartes Mas entre esse estudo realizado haacute mais de 20 anos e

uma trajetoacuteria que culminaria no tema de doutorado soacute me tornei plenamente consciente

da relevacircncia da ontologia em minhas investigaccedilotildees quando o design e a arte se uniram

em um tema de pesquisa Percebi entatildeo seus desdobramentos expliacutecitos ou impliacutecitos em

trabalhos de autores contemporacircneos como Heidegger Danto e Flusser

Ao longo desse percurso em diversos momentos surpreendi-me com algumas con-

tradiccedilotildees A contribuiccedilatildeo de Kant um filoacutesofo das mediaccedilotildees que dirige sua atenccedilatildeo para

antinomias e paradoxos e de seu leitor e interprete contemporacircneo Thierry de Duve

(com suas anaacutelises sobre a guinada na arte contemporacircnea a partir de Marcel Duchamp)

foi determinante para eu natildeo desistir dessa empreitada complexa e guiou-me no caminho

que ultrapassa os limites da esteacutetica e da gnoseologia

Durante o processo de recorte e interconexatildeo entre autores e temas uma uacuteltima

demanda se fez presente ampliar a identificaccedilatildeo dos conceitos teoricamente reelaborados

nos processos do design e na praacutetica artiacutestica No caso da arte o caminho se descortinou

rapidamente uma vez que as reflexotildees de Arthur Danto inserem a Pop-Art como

protagonista Dentro deste contexto Danto elege Andy Warhol como uma de suas

principais referecircncias nas discussotildees sobre arte contemporacircnea Ao ler uma citaccedilatildeo

do escritor Edmund White em um ensaio de Danto tive a certeza de que Warhol natildeo

poderia deixar de ser incluiacutedo

Andy tomou todas as definiccedilotildees concebiacuteveis da palavra arte para desafiaacute-la A arte revela o traccedilo da matildeo do artista Andy optou pela serigrafia Um trabalho de arte eacute um objeto uacutenico Andy surgiu com os muacuteltiplos Um pintor pinta Andy fez cinema A arte eacute divorciada do comercial e do utilitaacuterio Andy se especiali-zou nas latas de sopa Campbell e Notas de Doacutelar A pintura pode ser definida em contraste com a fotografia Andy recicla meras fotografias Um trabalho de arte eacute o que um artista assina prova do seu trabalho criativo de suas intenccedilotildees Andy assinava qualquer objeto (danto 2001 p 106)

Warhol aleacutem de artista e um dos iacutecones da Pop-Art tambeacutem trabalhou no acircmbito

da publicidade e do design e suas obras de arte tecircm a contribuiccedilatildeo e a interseccedilatildeo desses

campos Essa conexatildeo DantondashPop-ArtndashWarhol foi oportuna para o momento de colocar

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a prova no mundo sensiacutevel a tese e o ensaio O filoacutesofo como Andy Warhol (2001) junta-

mente com os livros A filosofia de Andy Warhol (2010) e Popism de Andy Warhol (2010)

deram suporte a esta etapa Para contemplar o design nesse recorte optei por Philippe

Starck Minha intenccedilatildeo foi destacar como no caso da arte um designer reconhecido pelo

conjunto de sua produccedilatildeo que bordeja segundo criacuteticos o universo da arte Os livros

homocircnimos Philippe Starck de Judith Carmel-Arthur (2000) e de Cristina Morozzi

(2012) foram referecircncias em que me apoiei

Essa trajetoacuteria envolve diversos autores que tecircm espectros ideoloacutegicos distintos

Nesse sentido me inspirei na habilidade de Danto e Eco em construir seus raciociacutenios

percorrendo autores e temas na histoacuteria do pensamento Minha intenccedilatildeo eacute balizar cada

uma das contribuiccedilotildees de todos esses autores entendendo os conceitos e princiacutepios

dos quais me aproprio e que uma vez adaptados ou alterados para o propoacutesito da tese

proporcionam parte da base para o percurso empreendido

13 Questotildees norteadoras

As relaccedilotildees que diversos campos cientiacuteficos e tecnoloacutegicos tecircm estabelecido entre si

tornam-se cada vez mais objeto de reflexatildeo de pesquisadores que atuam nos territoacuterios

mais especiacuteficos da epistemologia ou naqueles de acircmbito mais geral da teoria do conhe-

cimento Esses estudiosos apoiando-se na metafiacutesica ou recorrendo agrave ontologia buscam

compreensatildeo dos fundamentos dessas relaccedilotildees e em domiacutenios especiacuteficos podem reavaliar

os princiacutepios e as metas que orientam o avanccedilo do saber Se aacutereas como as das matemaacuteticas

ainda se mantecircm ou acreditam se manter em certa medida imunes agraves influecircncias de ou-

tras o mesmo natildeo ocorre com as ciecircncias humanas sociais sociais aplicadas e ateacute com as

ciecircncias naturais e fiacutesicas Quando se trata de analisar as relaccedilotildees e interlocuccedilotildees de dois

ou mais campos cientiacuteficos quaisquer tal tarefa por mais complexa que seja encontra ao

seu dispor elementos estruturais desses campos jaacute secularmente elaborados Assim se for

necessaacuterio recuar ateacute essas bases ainda se atua com aacutereas do conhecimento plenamente

33

estabelecidas e com delimitaccedilatildeo teoacuterica experimental e pragmaacutetica que as suportam o

que minimamente orienta o trabalho do pesquisador

No entanto eacute necessaacuterio refletir sobre as bases dessas relaccedilotildees quando as mesmas

envolvem aacutereas que natildeo concentram seus interesses em elaboraccedilotildees de caraacuteter cientiacutefico

ou na delimitaccedilatildeo das suas fronteiras de atuaccedilatildeo como ocorre com a arte Eacute preciso

tambeacutem o mesmo cuidado com campos que ainda estatildeo constituindo seus fundamentos

teoacutericos como o design

O design enquanto um campo que emerge das ciecircncias sociais aplicadas tem ao seu

dispor e pode se apropriar dos subsiacutedios conceituais provenientes da comunicaccedilatildeo da

sociologia e da filosofia bem como dos avanccedilos tecnoloacutegicos das diversas engenharias e da

ciberneacutetica Poreacutem ainda carece mdash em parte por sua constituiccedilatildeo histoacuterica relativamente

recente e talvez pela constante movimentaccedilatildeo de suas fronteiras de atuaccedilatildeo mdash de um corpo

organizado coerente e delimitado de fundamentos assim como de uma definiccedilatildeo unifi-

cada de seu conceito enquanto aacuterea Conforme afirma o teoacuterico e designer Gui Bonsiepe

Simultaneamente emerge a contradiccedilatildeo entre a difusatildeo do termo design e os limites da teorizaccedilatildeo do fenocircmeno O design eacute hoje um fenocircmeno teoricamente inexplorado apesar de achar-se difundida sua presenccedila na vida cotidiana e na economia Como se explica esta falta de teoria Evitando dar uma resposta simplista se pode sustentar que existe uma correlaccedilatildeo entre a fragilidade do discurso projetual e a carecircncia de uma teoria convincente do design O design eacute ateacute agora um domiacutenio sem fundamento (bonsiepe 1993 p21) Itaacutelicos nossos traduccedilatildeo nossa

Mais de uma deacutecada depois do que escreveu Bonsiepe o designer e historiador do

design Bernhard Buumlrdek sinaliza para os mesmos problemas Buumlrdek tambeacutem encontra-se

entre aqueles pesquisadores que defendem a constituiccedilatildeo de uma teoria do design atenta

aos alicerces das ciecircncias humanas Seus argumentos tecircm em consideraccedilatildeo particularmente

a filosofia quando se trata de refletir sobre aspectos teoacutericos e metodoloacutegicos dos quais

o design ainda necessita

No desenvolvimento da metodologia e teoria do design as ciecircncias humanas tecircm um papel muito especial A constante crise dos sentidos da disciplina faz sentir uma maior necessidade de reflexatildeo e teoria de filosofia Por isso eacute necessaacuterio

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verificar que aspectos da teoria do design ou da metodologia do design tecircm fundamento na filosofia europeia[9] (buumlrdek 2006 p 227)

Nesta mesma direccedilatildeo satildeo conduzidos os argumentos mais recentes do designer e

historiador do design Beat Schneider ao apontar para algumas lacunas do design que

reforccedilam a necessidade de reflexatildeo sobre as bases teoacutericas desse campo

[] eacute preciso abordar os pontos fracos do design Entre eles estaacute a falta de um debate sobre o gecircnero na profissatildeo assim como o seu lado sexista e o eurocen-trismo do design Mas eacute sobretudo a deficiecircncia teoacuterica da profissatildeo do design que se expressa na fatal natildeo teorizaccedilatildeo do contexto econocircmico social e poliacutetico (SCHNEIDER 2010 p 193)

Sintoma dessas indeterminaccedilotildees eacute o fato de o design antes do seacuteculo xx mas es-

pecialmente nos uacuteltimos cem anos apresentar e defender diversas propostas agraves vezes

sobre a forma de manifestos que buscam tanto uma definiccedilatildeo do campo quanto de suas

atividades Beat Schneider ao analisar a questatildeo recua bastante no tempo em uma busca

etimoloacutegica para a palavra ldquodesignrdquo Este autor tambeacutem afirma que o verbete design

consta no Oxford English Dictionary10 pela primeira vez em 1588 Tendo como ponto

de partida essa data Schneider11 (2010 p 195-196) apresenta uma seacuterie de definiccedilotildees do

design histoacuterica e geograficamente localizadas

9 Buumlrdek tambeacutem indica como meacutetodos a fenomenologia de Husserl e a hermenecircutica de Schleiermacher Dilthey e Gadamer teorias filosoacuteficas essas que segundo ele jaacute se encontram minimamente aplicadas em pesquisas de design (burdek 2006 p 239-251) Eacute importante ressaltar que tais teorias podem tambeacutem ser empregadas em outras aacutereas do conhecimento posicionadas nem sempre especificamente dentro das ciecircncias humanas e sociais como ocorre por exemplo com a Teoria geral dos sistemas do bioacutelogo e filoacutesofo Ludwig von Bertalanffy e de seu disciacutepulo Ervin Laszlo Bertalanffy (2012) busca nos sistemas um fundamento comum agrave biologia e demais ciecircncias naturais assim como agraves ciecircncias sociais e histoacutericas Quanto ao eurocentrismo de Buumlrdek poderemos pelo menos atenuaacute-lo se atuarmos localmente criando maiores oportunidades para o intercacircmbio natildeo somente entre os ramos tradicio-nais da filosofia e do design mas entre esse e as diversas aacutereas das ciecircncias humanas e sociais

10 Ao retirar essa definiccedilatildeo do Oxford English Dictionary Schneider natildeo diz que este dicionaacuterio tambeacutem informa como origem do verbo designare (designar) natildeo o italiano mas o latim e que a forma subs-tantivada deriva do italiano para o francecircs De qualquer modo natildeo podemos nos esquecer de que tanto o italiano quanto o francecircs satildeo liacutenguas neolatinas o que faz recuar a palavra a um periacuteodo muito anterior a 1588 Aleacutem disso se o termo proveacutem do latim e vai para o inglecircs mdash uma liacutengua de origem natildeo itaacutelica mdash posteriormente retorna agraves liacutenguas neolatinas como o italiano o francecircs o espanhol e o portuguecircs com acepccedilotildees diversas das originais em latim

11 Na constituiccedilatildeo da lista Schneider tem como referecircncia Bernhard Buumlrdek Gui Bonsiepe Alan Findeli Victor Papanek e Cordula Meier

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bull Renascimentoldquo[]disegno interno significava o esboccedilo de uma obra de arte a ser

realizada o projeto o desenho e de uma forma bem geneacuterica a ideia em que se ba-

seava um trabalho Jaacute o disegno esterno significava a obra executadardquo (schneider

2010 p 195) O conceito de disegno neste momento natildeo se distingue de modo

claro da arte mas apresenta uma divisatildeo entre processo (disegno interno) e resultado

(disegno esterno)

bull Seacuteculoxix com projetos de objetos para a induacutestria surge a tematizaccedilatildeo sobre o

significado do ldquonovo fenocircmenordquo12 ldquoTratava-se em sua maior parte da sua distinccedilatildeo

de um lado perante a arte e de outro perante o artesanato ou as chamadas lsquoartes e

ofiacuteciosrdquo (schneider 2010 p 195) Nos paiacuteses de liacutengua alematilde apoacutes 1865 satildeo pro-

postos vaacuterios termos para tentar definir a atividade da profissatildeo Kunstgewerbe (artes

aplicadas agrave induacutestria) Kunsthandwerk (artes e ofiacutecios) Kunstindustrie (induacutestria

artiacutestica) Werkkunst (arte fabril) angewandter Kunst (arte aplicada) e dekorativer

Kunst (arte decorativa)

bull Seacuteculoxx (antes de 1970) ainda persiste nos paiacuteses de liacutengua alematilde uma terminologia

vernacular como industrieller Formgebung (conformaccedilatildeo de produtos industriais)

Industrie-Entwurf (projeto industrial) Industrie-Formgestaltung (configuraccedilatildeo de

produtos industriais) e Gestaltung (criaccedilatildeoconfiguraccedilatildeo de produtos)

bull Seacuteculoxx (apoacutes 1970) o termo design alcanccedila inclusive os paiacuteses de liacutengua alematilde

Nas deacutecadas finais desse seacuteculo na Franccedila o termo passa a substituir arts deacutecoratifs

A lista de Schneider poderia ser bastante ampliada se o autor incluiacutesse juntamente

com essa terminologia em grande parte de liacutengua alematilde os diversos conceitos que cada

12 Tanto Schneider quanto Bonsiepe (cf citaccedilatildeo p 33) fazem uso do termo fenocircmeno associando-0 ao design Ateacute onde pudemos ver esses autores natildeo explicitam de qual acepccedilatildeo de fenocircmeno se trata Tendo em conta que Schneider entende ldquoo design como ciecircncia jovemrdquo (schneider 2010 p 193) e Bonsiepe tem expectativa de que no futuro as perspectivas da cogniccedilatildeo da ciecircncia e do projeto no design ldquoacabem se fundindordquo (bonsiepe 2011 p 19) conjecturamos que fenocircmeno possa significar objeto do conhecimento no sentido lato estabelecido desde Kant Se assim for o design eacute um tema de teoria do conhecimento ou mais especificamente de filosofia da ciecircncia para Bonsiepe assim como o eacute para Maldonado (2010) Com relaccedilatildeo a Schneider como veremos no capiacutetulo 2 sua posiccedilatildeo conduz a um ciacuterculo vicioso

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termo agregou ao longo de suas trajetoacuterias em escolas como a Bauhaus e Ulm entre

outras espalhadas pelo mundo Mas para o argumento de Schneider e tambeacutem para o

nosso mais relevante do que um glossaacuterio histoacuterico exaustivo eacute sua conclusatildeo de que ainda

ldquohoje natildeo eacute possiacutevel uma definiccedilatildeo precisa e unitaacuteria do conceitordquo de design (schneider

2010 p 196) Tal imprecisatildeo segundo ele existe por vaacuterios motivos O primeiro seria as

mudanccedilas de significado que ocorreram desde o Renascimento ateacute a atualidade O se-

gundo diz respeito ao acircmbito de aplicaccedilatildeo do design que continua a crescer O terceiro

as ldquosituaccedilotildeesrdquo em que o termo design estaacute associado ldquocomo um procedimento (o ato ou

a atividade de projetar) ao resultado desse processo (um design um esboccedilo um plano ou

modelo) ou a produtos que foram gerados por meio de um design (design de objetos)rdquo

(schneider 2010 p 196)

Aleacutem da identificaccedilatildeo de todas essas variaccedilotildees terminoloacutegicas e conceituais o autor

acrescenta mais um problema agrave indeterminaccedilatildeo do conceito de design

Hoje nos meios especializados haacute um descontentamento com o uso inflacionaacuterio do conceito E sobretudo para escapar agrave restriccedilatildeo dominante agrave pura designaccedilatildeo de objetos Gui Bonsiepe por exemplo propotildee para a liacutengua alematilde os termos Entwerfen e EntwerferIn (projeto e projetista) Para o francecircs Alain Findeli pocircs em discussatildeo os termos projet e projecteur (schneider 2010 p 196)

Neste sentido podemos constatar no miacutenimo uma incongruecircncia quando a palavra

design eacute incorporada a outras liacutenguas Qual seja o uso generalizado do termo exclusivamente

em inglecircs natildeo garante a unidade do conceito Natildeo podemos nos esquecer de acrescentar a

esse desacordo e ao uso inflacionaacuterio de que nos fala Schneider o surgimento de novas

categorias ao lado das tradicionais design graacutefico e design de produto13 Tais subdivisotildees

e especialidades vecircm se impondo com o uso de substantivos e adjetivos incorporados ao

13 Schneider considera ateacute mesmo design graacutefico e design de produto como categorias ldquoquestionaacuteveisrdquo tanto do ponto de vista da teoria quanto da praacutetica O autor afirma que as escolas tecircm dificuldades com estas subdivisotildees tradicionais argumentando que se baseiam na segunda e terceira dimensatildeo fiacutesica (schneider 2010 p 205) Discordamos da subdivisatildeo tradicional indicada por Schneider Para noacutes o design graacutefico natildeo pode ser pensado sem a terceira dimensatildeo por exemplo os projetos editoriais e de sinalizaccedilatildeo satildeo estruturalmente tridimensionais Poreacutem enquanto atuando no ensino de design graacutefico entendemos que existe uma crescente especializaccedilatildeo nos projetos das duas catego-rias que favorece a separaccedilatildeo em aacutereas dentro dos cursos Mas com o avanccedilo da desmaterializaccedilatildeo dos produtos e a compreensatildeo de que design graacutefico tambeacutem gera produtos a divisatildeo talvez soacute faccedila sentido no acircmbito curricular

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termo design que em alguns casos poderiam ou deveriam ser inerentes ao seu conceito

como design ecoloacutegico ou ecodesign e design estrateacutegico entre outros Acerca deste tema

Bonsiepe eacute provocativo ao afirmar que ldquoagraves vezes tenho a impressatildeo de que um designer

que aspire a dois minutos de fama se sente obrigado a inventar um roacutetulo que sirva como

marca para se diferenciar dos demais profissionaisrdquo (bonsiepe 2011 p 17) Em recente

conferecircncia em seu discurso Bonsiepe foi taxativo ao exemplificar algumas consequecircn-

cias dessa indeterminaccedilatildeo

Haacute alguns anos ocorre um fenocircmeno surpreendente o uso inflacionaacuterio da palavra ldquodisentildeordquo ou ldquodesignrdquo atraente devido agrave sua imprecisatildeo e polissemia Eacute a proacutepria indeterminaccedilatildeo do conceito de ldquodesignrdquo que o torna tatildeo atraente A crescente atratividade da palavra ldquodesignrdquo manifesta-se de forma ilustrativa no uso do termo amplamente difundido ldquodesign thinkingrdquo Se com este termo quer referir-se agrave forma especiacutefica como os designers abordam um problema isso natildeo eacute uma novidade para os profissionais de design Talvez possa estimular o interesse em revelar o funcionamento dessa capacidade supostamente especiacutefica O perigo no entanto consiste em fazer supor ou insinuar-se que um diploma em design thinking habilita para fazer design profissionalmente fazer projetos de forma concreta Portanto natildeo eacute de surpreender-se que por exemplo um conhecido cientista da anaacutelise de interfaces digitais e artefatos materiais ques-tione a legitimidade do uso desse conceito que para ele eacute o que se conhece pelo antigo termo ldquocriatividaderdquo (Donald Norman) Suponhamos que haja algo como medical thinking e certificados para medical thinking Natildeo obstante um paciente consultaraacute um meacutedico de cura competente e natildeo um medical thinking que nunca curou um paciente em sua vida (bonsiepe 2019) Traduccedilatildeo nossa

Um uacuteltimo exemplo de compreensatildeo do design enquanto um campo de indeterminaccedilatildeo

e limitaccedilotildees que carrega um tom otimista e esperanccediloso eacute a posiccedilatildeo de Rafael Cardoso

Precisamos pensar com ousadia imaginar o que o design pode vir a ser para aleacutem das circunstacircncias imediatas e das limitaccedilotildees passadas Pensar em design natildeo como um corpo de doutrinas fixo e imutaacutevel mas como um campo em plena evoluccedilatildeo Algo que cresce de modo contiacutenuo e se transforma ao crescer Um caminho que se revela ao ser percorrido O design eacute muito maior e mais dinacircmico do que qualquer uma de suas manifestaccedilotildees especiacuteficas Trata-se de uma aacuterea por demais complexa e multifacetada para caber em qualquer defini-ccedilatildeo estreita muito menos para ser reduzida agrave praacutetica de determinado indiviacuteduo ou escola Campo jovem o design encontra-se ainda em fase de aprendizado e experimentaccedilatildeo (cardoso 2016 p 238)

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Em contraposiccedilatildeo ao design a arte cujo conceito em seu sentido ocidental e lato vem

modificando-se desde os gregos preserva seu nome com as respectivas traduccedilotildees para

diversas liacutenguas Aleacutem disso conforme afirma Umberto Eco apesar de a arte produzir

obras apoiando-se em programas de produccedilatildeo (poeacuteticas) e estar de algum modo ligada

aos diversos elementos da cultura inclusive a campos cientiacuteficos e tecnoloacutegicos o dis-

curso da mesma natildeo busca a univocidade como o da ciecircncia (eco 1988) Na atualidade

a dificuldade ateacute de falarmos sobre programas de produccedilatildeo e de uma histoacuteria da arte

contemporacircnea reforccedilam os problemas em se encontrar definiccedilotildees natildeo efecircmeras para

a arte Nesse contexto a questatildeo eacute ainda podemos falar de uma histoacuteria da arte na con-

temporaneidade A esse propoacutesito Rodrigo Duarte (2006) no livro Arte no pensamento

apresenta uma anaacutelise sobre O tema do fim da arte na esteacutetica contemporacircnea Depois de

percorrer as concepccedilotildees de pensadores que trataram diferentemente dessa questatildeo desde

Hegel Marx Nietzsche Lukacs Benjamin Heidegger Horkheimer e Adorno Duarte

chega aos dias atuais com a visatildeo de Arthur Danto e afirma

Danto reconhece que a designaccedilatildeo lsquocontemporacircneorsquo eacute fraca mas diante da constataccedilatildeo de que lsquopoacutes-modernorsquo mdash outro roacutetulo possiacutevel para a produccedilatildeo artiacutestica atual mdash eacute muito forte ele manifesta sua preferecircncia pela denomi-naccedilatildeo lsquoarte poacutes-histoacutericarsquo Essa significa dentre outras coisas que os filoacutesofos devem carregar a responsabilidade pela compreensatildeo das obras e os artistas podem simplesmente usufruir a liberdade de estar para aleacutem da histoacuteria (duarte 2006 p 408)

Concordando com Duarte e Danto se assumimos tal responsabilidade eacute preciso

enfrentar o indeterminado Poreacutem de certo modo tal indeterminaccedilatildeo ou uma recusa

por determinaccedilatildeo da proacutepria arte se revela no tom de perplexidade do proacuteprio Danto

Definir arte eacute uma tarefa tatildeo esquiva que a quase cocircmica inaplicabilidade das definiccedilotildees filosoacuteficas da arte agrave proacutepria arte tem sido explicada pelos poucos que perceberam nessa inaplicabilidade um problema como resultado da inde-finibilidade da arte (danto 2005 p 26)

Consequentemente as lacunas apontadas por Bonsiepe Buumlrdek e Schneider nos

fundamentos do design a condiccedilatildeo refrataacuteria da arte a esses gecircneros de fundamentos

indicadas por Eco Duarte e Danto assim como a indeterminaccedilatildeo de ambos os campos

39

por si soacute justificam e abrem espaccedilo para investigaccedilotildees sobre a essecircncia constituiccedilatildeo e

limites de cada um deles no interior de suas proacuteprias esferas de atuaccedilatildeo De um lado o

esforccedilo pela constituiccedilatildeo de uma teoria dentro do campo do design e de outro a esteacutetica

a filosofia da arte e os estudos criacuteticos de belas-artes no territoacuterio da arte acolhem em

seus espaccedilos especiacuteficos pesquisas sobre seus proacuteprios fundamentos Estudos dessa cate-

goria analiacuteticos mas com menos frequecircncia comparativos satildeo usuais e procedem quase

sempre isoladamente dentro de cada aacuterea como entre outros fazem Bonsiepe (1993 2011)

e Buumlrdek (2006) com o design e Heidegger (2004) e Danto (2005) com a arte

Nosso objetivo eacute nos deslocarmos das anaacutelises habituais natildeo elegendo uma dessas

aacutereas (design ou arte) em separado mas aquilo que funda as suas relaccedilotildees Procurando

delimitar os passos a serem seguidos concentramos nossa proposta em um pressuposto

seguido de uma hipoacutetese a se realizar em duas etapas subsequentes

Pressuposto

Distinccedilatildeo entre design e arte a partir da compreensatildeo de que esses dois campos criam

conceitos e objetos em categorias ontologicamente distintas

Hipoacutetese

a) Como consequecircncia do pressuposto a compreensatildeo dos fundamentos das relaccedilotildees

entre design e arte natildeo pode se dar unicamente no acircmbito da teoria do conhecimento

e da esteacutetica mas necessita avanccedilar ateacute o territoacuterio da ontologia Esta transposiccedilatildeo de

aacutereas deve ser construiacuteda com o apoio das reflexotildees de Imamnuel Kant e Thierry de

Duve sobre a esteacutetica e as de Martin Heidegger e Lacoue-Labarthe sobre a ontologia

b) Apesar dessa distinccedilatildeo design e arte estabelecem interlocuccedilatildeo e carreiam para seus

espaccedilos de atuaccedilatildeo especiacutefica elementos conceituais empregados e compartilhados

por ambos os campos cujos embriotildees remontam ao pensamento grego antigo Assim

os fundamentos das relaccedilotildees entre design e arte devem ser explicitados a partir da

seleccedilatildeo e do estudo especiacutefico dos conceitos de miacutemesis de belo e uacutetil e de fim em si

mesmo e do discurso epidiacutectico todos extraiacutedos da obra de Aristoacuteteles e conectados

agraves reflexotildees de Arthur Danto e Umberto Eco na atualidade

40

Devemos ressaltar que do ponto de vista loacutegico e argumentativo primeiro eacute preciso

distinguir para em seguida buscar relaccedilotildees Aleacutem disso no nosso entendimento a distin-

ccedilatildeo entre design e arte apesar de atentar para o resultado das produccedilotildees eacute voltada para

os fundamentos desses dois campos Como veremos no capiacutetulo 5 com a anaacutelise de obras

de Philippe Starck e Andy Warhol e da relevante precedecircncia de Marcel Duchamp cada

vez mais o resultado do trabalho de designers e artistas apresenta caracteriacutesticas comuns

agraves duas aacutereas o que pode ensejar a defesa de que design e arte satildeo campos indistintos po-

siccedilatildeo da qual discordamos No entanto como a ausecircncia de unanimidade entre designers

artistas e teoacutericos nesta questatildeo permanece eacute importante vermos alguns exemplos14 de

posiccedilotildees a favor e contra tal distinccedilatildeo

O filoacutesofo e teoacuterico da arte Thierry de Duve (2010) no artigo O que fazer da

vanguarda Ou o que resta do seacuteculo 19 na arte do seacuteculo 20 apresenta o artista Marcel

Duchamp como um ldquomensageirordquo da arte contemporacircnea com o entendimento de que

todos podem ser artistas e tudo pode ser arte Em suas palavras

A pintura e a escultura a paisagem e o nu e todos os ldquoismosrdquo do seacuteculo 20 fazem parte ao contraacuterio da arte em geral jaacute que ela nada exclui e inclui aleacutem disso as praacuteticas recentes mdash a instalaccedilatildeo a arte conceitual ou a videoarte assim como outras que ainda natildeo tecircm nome De fato o teor da expressatildeo eacute o seguinte fazer arte com tudo e com qualquer coisa eacute hoje tecnicamente possiacutevel e institucional-mente legiacutetimo como bem percebeu Suzi Gablik Decerto nem tudo eacute arte A priori poreacutem qualquer coisa pode secirc-lo A arte em geral eacute o nome da novidade de que Duchamp foi mensageiro Esse nome substitui a denominaccedilatildeo geneacuterica

ldquobelas-artesrdquo que corresponde agrave situaccedilatildeo que encarnavam a Academia a Escola e o sistema das belas-artes antes que sua falecircncia fosse declarada pelas vanguardas histoacutericas Portanto qualquer coisa pode ser arte qualquer um pode ser artista Para quem essa eacute uma novidade ruim para quem eacute boa (de duve 2010 p182)

Arthur Danto (2005) eacute outro teoacuterico que invoca esta possibilidade apontando espe-

cificamente para os objetos criados

[] em fases de estabilidade artiacutestica costumava-se pensar que as obras de arte possuiacuteam certas propriedades cuja ausecircncia bastava para pocircr seriamente em duacutevida seu status de arte Mas esse tempo jaacute passou haacute muito e assim como

14 Um estudo extenso e pormenorizado que entre outros temas aborda as posiccedilotildees de designers artistas e teoacutericos sobre a polecircmica em torno da distinccedilatildeo entre design e arte foi elaborado por Andreacute Stolarski (2012) em sua dissertaccedilatildeo de mestrado

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qualquer coisa pode expressar qualquer coisa desde que se conheccedilam as conven-ccedilotildees pertinentes e os fatores que explicam seu status como expressatildeo qualquer coisa pode ser uma obra de arte natildeo haacute condiccedilotildees necessaacuterias enunciaacuteveis na forma de predicados de um lugar Decerto natildeo se deve concluir do fato de que qualquer coisa pode ser uma obra de arte que qualquer coisa o seja A maacutequina de escrever que estou usando poderia ser uma obra de arte mas natildeo eacute O que torna tatildeo interessante o conceito de arte eacute que dizer que minha maacutequina de escrever poderia ser uma obra de arte natildeo eacute o mesmo que dizer que ela eacute um sanduiacuteche de presunto embora um certo sanduiacuteche ateacute pudesse ser (e quem sabe se jaacute natildeo eacute) um objeto de arte Mas a explicaccedilatildeo disso natildeo se encontra unicamente na concepccedilatildeo de que uma obra de arte eacute um objeto relacional a razatildeo deve ser mais profunda (danto 2005 p 113)

Essa abertura proporcionada pela arte contemporacircnea pode conduzir a direccedilotildees que

a primeira vista natildeo seriam previsiacuteveis Paradoxalmente as reflexotildees de Thierry de Duve

e Arthur Danto localizadas exclusivamente no territoacuterio da arte apesar de defenderem

uma distinccedilatildeo da arte e seus objetos em relaccedilatildeo a outros campos e outros objetos podem

ensejar argumentos como sinaliza Andreacute Stolarski (2012) agravequeles que de modo contraacuterio

se dispotildeem a ver nas palavras todos podem ser artistas e tudo pode ser arte uma porta para

a indistinccedilatildeo entre design e arte

Em um sentido diverso da possibilidade anterior mas tambeacutem defendendo a indis-

tinccedilatildeo entre design e arte existe o argumento da indefiniccedilatildeo das fronteiras ou ateacute em

casos extremos da ausecircncia de fronteiras desses dois campos Esse eacute o caso por exemplo

do artista plaacutestico Almir Mavignier Atentemos para a transcriccedilatildeo que os criacuteticos de arte

Daniela Name e Felipe Scovino (2008) fazem da afirmaccedilatildeo de Mavignier no cataacutelogo

Diaacutelogo concreto mdash design e construtivismo no Brasil

Em 1957 Mavignier comeccedilou sua produccedilatildeo de cartazes quando legitima ldquoarte eacute design Pintura e cartaz satildeo objetos a pintura fascina e o cartaz informa A fronteira entre os dois eacute instaacutevel porque ambos podem fascinar A fim de reco-nhececirc-la fui estudar em Ulm [onde] aprendi que a fronteira natildeo existerdquo (name scovino 2008 p 48)

Eacute no miacutenimo surpreendente saber que Mavignier atribui a ausecircncia de fronteiras

entre design e arte ao seu aprendizado na renomada escola racionalista e funcionalista

onde Gui Bonsiepe tambeacutem estudou e lecionou Bonsiepe assume posiccedilatildeo diametralmente

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oposta a Mavignier e coloca a filosofia como capaz de refutar a indistinccedilatildeo entre design e

arte No entanto Bonsiepe considera a posiccedilatildeo assumida em favor da indistinccedilatildeo dentro

das instituiccedilotildees de ensino uma possiacutevel convenccedilatildeo que favorece orccedilamentos Conforme

suas palavras ldquoHaacute muito tempo dispomos de conceitos filosoacuteficos para fazer distinccedilatildeo

entre arte e design Classificar design em categorias artiacutesticas soacute pode ser explicado por

criteacuterios da poliacutetica de distribuiccedilatildeo de verbas nas universidadesrdquo (Bonsiepe 2011 p 181)

Nesse contexto o autor natildeo nos diz como tal refutaccedilatildeo deve ocorrer mas defende clara-

mente a distinccedilatildeo E o mais importante coloca a filosofia como o territoacuterio de decisatildeo o

que seraacute de interesse como veremos para o capiacutetulo 2

Outra defesa de certa distinccedilatildeo difundida na atualidade eacute a do teoacuterico da comuni-

caccedilatildeo Andreacute Villas Boas (1998) mas que natildeo coaduna com a nossa proposta tambeacutem de

distinccedilatildeo por sustentar seus argumentos de modo diverso e em outras bases A esse pro-

poacutesito citamos a criacutetica agrave posiccedilatildeo de Villas Boas feita por outro teoacuterico da comunicaccedilatildeo

Carlos Alberto Barbosa

[] o design para o autor ldquo() eacute realizado para reproduccedilatildeo eacute reproduziacutevel e eacute efetivamente reproduzido a partir de um original (ainda que virtual) Do contraacuterio eacute uma peccedila uacutenica circunscrita ao campo da arte (o manuscrito me-dieval por exemplo ()rdquo (villas-boas 1998 p 12) Tal perspectiva parece natildeo levar em conta as obras de arte mecanicamente reproduziacuteveis as tais que foram objeto do famoso ensaio A obra de arte na eacutepoca de sua reproduti-bilidade teacutecnica de Walter Benjamin no qual a proacutepria noccedilatildeo de ldquooriginalrdquo eacute colocada em jogo O entendimento sobre o que eacute arte para Villas-Boas diz respeito notadamente a uma produccedilatildeo de peccedila uacutenica Mais adiante o autor cerca um pouco mais seu conceito e se debruccedila sobre o campo do projeto de design ldquo() satildeo peccedilas de design graacutefico todos aqueles projetos graacuteficos que tecircm como fim comunicar atraveacutes de elementos visuais (textuais ou natildeo) uma dada mensagem para persuadir o observador guiar sua leitura ou vender um produtordquo (villas-boas 1998 p 12ndash13) Talvez isso cerque de forma mais efetiva o campo do design Deve ser um projeto que vise a reproduccedilatildeo tendo como fim a persuasatildeo e a venda Seraacute que a partir do advento da Induacutestria Cultural e sua radicalizaccedilatildeo explicitada pela tecnologia associada ao consumo em massa a arte por vezes natildeo se insere tambeacutem nessa categoria de ldquoper-suasatildeo e vendardquo principalmente se levarmos em conta uma sociedade que soacute percebe a obra de arte como mercadoria o que entatildeo tambeacutem a aproximaria do campo do design (barbosa 2003 p 52)

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Existem vaacuterias implicaccedilotildees na citaccedilatildeo anterior e a aproximaccedilatildeo da arte com o design

eacute uma das intenccedilotildees de Barbosa Mas o relevante para os nossos propoacutesitos eacute que a criacutetica

de Barbosa que se estende a outras posiccedilotildees como agrave de Rafael Cardoso mostra que a

questatildeo da distinccedilatildeo entre design e arte eacute antes de tudo intrincada No entanto longe de

ser um ldquoproblemardquo em um sentido negativo acreditamos eacute justamente esse emaranhado

envolvendo a questatildeo que nos impotildee a necessidade de uma distinccedilatildeo ontoloacutegica que

conecta como veremos cada elemento aparentemente divergente na tese

Diante desses exemplos nossa posiccedilatildeo pela distinccedilatildeo entre design e arte enquanto

pressuposto busca um ponto delimitado de diferenciaccedilatildeo sem incorrer em definiccedilotildees que

tambeacutem defendem a distinccedilatildeo mas apropriam-se de elementos mutaacuteveis tornando-se

rapidamente obsoletas Natildeo podemos nos esquecer de que tanto a arte quanto o design

estatildeo sempre se reinventando o que torna essa tarefa mais difiacutecil

Assim nossa premissa estabelece suas bases na clivagem ontoloacutegica que Danto propotildee

para separar objetos artiacutesticos de outros objetos e consequentemente distinguir a arte de

outros campos Nas suas palavras

[] aprender que um objeto eacute uma obra de arte eacute saber que ele tem qualidades que faltam ao seu siacutemile natildeo transfigurado e que provocaraacute reaccedilotildees esteacuteticas diferentes E isso natildeo eacute institucional mas ontoloacutegico mdash estamos lidando com ordens de coisas completamente diferentes (danto 2005 p 157)

Acreditamos que essa delimitaccedilatildeo inicial ao colocar objetos da arte contrapondo-se

a outros objetos aceita implicitamente os do design na oposiccedilatildeo Deste modo entende-

mos tal dicotomia em princiacutepio como condiccedilatildeo necessaacuteria apenas enquanto pressuposto

e natildeo como causa15 sendo portanto somente o primeiro passo no encaminhamento de

nossa hipoacutetese Indo aleacutem do acircmbito da esteacutetica e da posiccedilatildeo de Danto como veremos

15 Assumimos o significado de condiccedilatildeo necessaacuteria como distinto do significado de causa Causa tem sentido positivo eacute aquilo que produz o efeito Condiccedilatildeo necessaacuteria (oposta agrave condiccedilatildeo suficiente de sentido positivo) tem sentido negativo eacute aquilo sem o qual natildeo se produz o efeito (condiccedilatildeo sine qua non) Tal condiccedilatildeo determina que a existecircncia do elemento condicionante natildeo implica na existecircncia do condicionado Em outras palavras nosso pressuposto enquanto condiccedilatildeo necessaacuteria estabelece o paracircmetro ontoloacutegico (elemento condicionante) e aponta em uma direccedilatildeo de pesquisa mas natildeo eacute conclusivo e natildeo nos garante nada aleacutem do seu ponto de partida Assim iniciando com o pressuposto precisamos percorrer todo o caminho da hipoacutetese para confirmaacute-la ou natildeo como ocorre de praxe em uma tese

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no capiacutetulo 3 Heidegger com propoacutesito e estrateacutegias diversas agraves empregadas por Danto

corrobora nosso pressuposto ao especificar em sua anaacutelise os objetos que se contrapotildeem

aos artiacutesticos enquanto objetos uacuteteis E avanccedila em um ponto essencial ao defender

a tese de que a apreciaccedilatildeo das obras de arte nos coloca em contato com significados

mais profundos para os objetos utilitaacuterios Essa defesa abre portas para pensarmos os

objetos do design para aleacutem do mero uso consumo e exploraccedilatildeo ou seja indo aleacutem da

utilidade e da instrumentalidade E ir aleacutem do uacutetil e instrumental acreditamos eacute funda-

mental para a compreensatildeo dos objetos de design que expandiram seus significados na

contemporaneidade

Neste ponto uma questatildeo de ordem histoacuterica precisa ser levantada Porque retornar

a Platatildeo e a Aristoacuteteles Em nossos estudos sobre as origens da linguagem e do mito e

suas possiacuteveis influecircncias na constituiccedilatildeo dos discursos cientiacuteficos e tecnoloacutegicos uma

afirmaccedilatildeo de Ernst Cassirer nos marcou e nos guia desde entatildeo

[] toda reflexatildeo histoacuterica genuiacutena em lugar de se perder na percepccedilatildeo do meramente uacutenico deve buscar aqueles momentos ldquopejadosrdquo do acontecer para onde confluem como para pontos focais seacuteries inteiras de eventos Em tais pontos fases temporais largamente separadas entre si conectam-se em um todo unitaacuterio para a concepccedilatildeo e a compreensatildeo histoacuterica Ao serem certos momentos destacados da corrente uniforme do tempo estabelecendo relaccedilotildees e concatenando-se em seacuteries iluminam-se com isso justamente a origem e a meta de todo acontecer seu de onde (Woher) e seu para onde (Wohin) (cassirer 1992 p 48)

Considerando que design e arte satildeo campos distintos e natildeo encontrando respostas

suficientes para as semelhanccedilas e diferenccedilas na atualidade nos inspiramos em Cassirer e

recuamos na histoacuteria do pensamento ocidental Na busca pelo periacuteodo histoacuterico em que

as teorias que originaram os fundamentos desses campos se constituiacuteram chegamos ao

pensamento grego Foi na polecircmica de Platatildeo em favor da ciecircncia grega e contra a arte

que o pensamento de Aristoacuteteles criacutetico de Platatildeo emergiu em apoio e base de nossa

hipoacutetese Apropriando-nos das palavras de Cassirer em Platatildeo e Aristoacuteteles encontram-

se os ldquopontos focaisrdquo e descortinaram-se a origem e a meta o onde e o para onde da tese

A centralidade desses dois pensadores em torno de nosso tema e de outros assuntos

subsidiaacuterios se justifica dado que estatildeo entre os primeiros a abordar questotildees sobre a

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constituiccedilatildeo da realidade como a entendemos Apesar de essa primazia natildeo ser sempre

deles mas de seus antecessores os chamados preacute-socraacuteticos encontramos no bojo dos

sistemas platocircnico e aristoteacutelico conceitos e soluccedilotildees que se tornaram referecircncia para as

reflexotildees posteriores inclusive contemporacircneas

Platatildeo eacute o ponto fulcral de onde nossas questotildees partem Deste modo necessitamos

sempre retornar a Platatildeo Fazemos isso ao longo do texto como tambeacutem quase todos os

autores referenciados na tese Aristoacuteteles faz o contraponto e encaminha os problemas na

direccedilatildeo que desejamos normalmente discordando de Platatildeo neste tema Como os con-

ceitos e criteacuterios aos quais aderimos na constituiccedilatildeo baacutesica de nosso texto satildeo de origem

aristoteacutelica cabe justificar o motivo pelo qual elegemos esse pensador para o centro da

proposiccedilatildeo de nossas questotildees Examinemos como isso ocorre

Um dos pontos que atrai nossa atenccedilatildeo para a obra aristoteacutelica eacute o fato de que ao

tempo em que seus textos foram escritos o Ocidente ensaiava os primeiros passos na cons-

tituiccedilatildeo de teorias gerais acerca do mundo e do saber Como consequecircncia as diversas

aacutereas e ramificaccedilotildees do conhecimento que com o passar dos seacuteculos e milecircnios foram

sendo delimitadas ainda natildeo estavam claramente definidas (figura 2)

Deste modo os conceitos elaborados por pensadores desse periacuteodo incluindo Aris-

toacuteteles tecircm uma plasticidade e satildeo concebidos para abarcar diversos domiacutenios teoacutericos

e praacuteticos certamente indo aleacutem daquilo que passamos a compreender sob o nome de

filosofia Ir ao nascedouro de aacutereas do conhecimento e de conceitos com tais propriedades

Figura 2 Linha do tempo indicando desdobramento do conceito grego de poacuteiesis (produccedilatildeo) em episteacuteme (ciecircncia) e teacutekhne (arte) e posteriormente sua divisatildeo em ciecircncia teacutecnica e arte em seus sentidos moder-nos fonte autor

asymp aC dC dCGreacutecia Ocidente

EPISTEacuteME

TEacuteKHNE

CIEcircNCIA

TEacuteCNICA

ARTE

POacuteIESIS

PERIacuteODO DE PLAacuteSTICIDADEENTRE OS CONCEITOS

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auxilia no rastreamento de elementos que permanecem compartilhados ainda hoje mesmo

quando tais aacutereas e as disciplinas delas derivadas satildeo agora distintas

Essas concepccedilotildees dadas a suas pretensotildees agrave universalidade aliadas a uma variedade

de possibilidades hermenecircuticas vecircm mobilizando pesquisadores ao longo da histoacuteria

interessados em anaacutelises de cunho geral mas tambeacutem de natureza epistemoloacutegica gno-

seoloacutegica e ontoloacutegica visando instaurar fundamentos em campos culturais cientiacuteficos

e tecnoloacutegicos Aleacutem disso Aristoacuteteles eacute um daqueles pensadores em que as teorias e os

conceitos que nos interessam vecircm sendo interpretados reinterpretados e aplicados ou

criticados nos mais diversos campos na teoria literaacuteria nas artes plaacutesticas nas anaacutelises da

esteacutetica na linguiacutestica e na comunicaccedilatildeo Entre os pesquisadores envolvidos com estudos

sobre a obra de Aristoacuteteles e seus desdobramentos no presente elegemos dois estudiosos

em campos distintos para ratificar nossa posiccedilatildeo

Jacyntho Lins Brandatildeo das letras claacutessicas ao estudar a obra A retoacuterica de Aristoacuteteles

que conteacutem um dos gecircneros de discursos abordados em nossa pesquisa afirma

Num mundo como o contemporacircneo em que eacute a ciecircncia que se tornou o discurso autorizado por excelecircncia (difundido pelos meios modernos de comunicaccedilatildeo) natildeo seria razoaacutevel admitir que [] a retoacuterica eacute que eacute hoje um tipo de literatura para a multidatildeo (atraveacutes dos jornais da televisatildeo da publicidade) e que a ciecircn-cia por seu lado eacute uma espeacutecie de retoacuterica popular (basta lembrar o quanto o discurso poliacutetico se converteu em econocircmico isto eacute supostamente cientiacutefico) (brandatildeo 2007 p 19)

Fernando Santoro da filosofia e esteacutetica ao retomar a obra A poeacutetica de Aristoacuteteles

eacute enfaacutetico ao defender a relevacircncia que os conceitos elaborados por esse pensador ainda

manteacutem na contemporaneidade

Portanto ainda que Aristoacuteteles natildeo tenha pensado sobre as artes tal como as entendemos hoje o que ele escreveu foi decisivo ao longo da histoacuteria das artes ocidentais especialmente apoacutes o Renascimento A Poeacutetica de Aristoacuteteles muitas vezes chegou a determinar os cacircnones de vaacuterios estilos principalmente os de inspiraccedilatildeo claacutessica classicismos e neoclassicismos diversos E mesmo quando se queria contestar alguma tradiccedilatildeo ou escola artiacutestica a Poeacutetica serviu quando natildeo era o modelo a seguir de modelo a contestar como por exemplo ao se cri-ticar o naturalismo ou o figurativismo ou as famosas prescriccedilotildees de unidade (de tempo de espaccedilo de accedilatildeo) Assim se Aristoacuteteles natildeo abordou as artes tal como

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as entendemos hoje em contrapartida ele foi decisivo para o que entendemos hoje como arte Muitas das clivagens dos valores das categorias e dos princiacutepios das teorias esteacuteticas modernas e contemporacircneas tecircm origem nas especulaccedilotildees de Aristoacuteteles sobre a poesia eacutepica sobre a muacutesica e sobre a poesia dramaacutetica (santoro 2006 p 77)

Tal potecircncia das especulaccedilotildees contida nos textos de Aristoacuteteles eacute um dos elementos

que subsidiam este trabalho Eacute tambeacutem por isso que nos apoiamos como veremos nos

estudos de Heidegger Danto e Eco Esses teoacutericos contemporacircneos cada um a seu modo

compartilham desse olhar interessado na aurora do pensamento grego e instauram re-

flexotildees conectando as indagaccedilotildees aristoteacutelicas com problemas da atualidade indagaccedilotildees

estas que iluminam e fomentam nossas proacuteprias questotildees

No entanto como Aristoacuteteles atuou natildeo somente como filoacutesofo no sentido estrito

mas produziu conhecimento em biologia fiacutesica e outros campos cientiacuteficos ocorre de

criacuteticas procedentes agraves suas concepccedilotildees ligadas agraves ciecircncias naturais serem indevidamente

estendidas para o acircmbito de conceitos metafiacutesicos e ontoloacutegicos Um exemplo claacutessico e

um truiacutesmo em ciecircncias naturais eacute a afirmaccedilatildeo de que a fiacutesica de Aristoacuteteles eacute ultrapassada

e completamente distinta de qualquer concepccedilatildeo da natureza em pensadores posteriores

a Galileu ou que uma visatildeo aristoteacutelica de coacutesmos natildeo se sustenta diante da concepccedilatildeo de

universo infinito do mundo moderno O que natildeo se expotildee de modo imediato quando

se mostra tal incongruecircncia entre a teoria fiacutesica antiga e a moderna eacute a impossibilidade

de correspondecircncia entre a base metafiacutesica da fiacutesica aristoteacutelica que essencialmente eacute

qualitativa e a da fiacutesica newtoniana quantitativa

Mas esse exemplo adequado ao acircmbito especiacutefico da fiacutesica moderna natildeo deve ser

impedimento para um pesquisador fazer conexotildees que ultrapassam a esfera estrita de

determinado campo em direccedilatildeo agrave fundamentaccedilatildeo de uma teoria cientiacutefica Para nos

mantermos dentro do escopo da fiacutesica sigamos as palavras do filoacutesofo da ciecircncia e

epistemoacutelogo F S Northrop na introduccedilatildeo do livro Fiacutesica e Filosofia de Heisenberg

A tese mais nova e importante deste livro talvez seja a afirmaccedilatildeo feita pelo autor de que a mecacircnica quacircntica reviveu o conceito aristoteacutelico de potencialidade na fiacutesica moderna Consequecircncia disso eacute que a mecacircnica quacircntica eacute igualmente importante para a ontologia e a epistemologia (heisenberg 1987 p 11)

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Em outras palavras seria questionaacutevel tentar unir ou correlacionar conceitos fiacutesicos

aristoteacutelicos e modernos em uma mesma concepccedilatildeo de natureza fiacutesica pois tal pretensatildeo

levaria a contradiccedilotildees Mas quando se recua da ciecircncia para a epistemologia buscando

fundamentaccedilatildeo ou se retrocede ainda mais na esfera da metafiacutesica seja no acircmbito da

teoria do conhecimento da esteacutetica ou da ontologia os conceitos mdash que natildeo satildeo mais

das ciecircncias mas dos pilares que as fundam mdash tornam-se mais propensos a intercacircmbios

e passiacuteveis de serem explorados em vaacuterios campos como o da arte e do design Assim a

plasticidade dessa categoria de conceitos eacute ainda maior quando envolve esteacutetica retoacuterica

e arte como eacute o nosso caso com Aristoacuteteles e os autores modernos e contemporacircneos a

ele relacionados

Um exemplo eacute o conceito de coacutesmos aristoteacutelico que aleacutem de associado agrave sua fiacutesica

expressa uma ordem e uma harmonia que natildeo eacute de cunho matemaacuteticoquantitativo

Natildeo sem razatildeo o radical κόσμος (coacutesmos) eacute a base de palavras como κοσμητής (cosmeteacutes)

cujo significado eacute daquele que potildee ordem dispotildee e regula como procedem o deus Zeus

e tambeacutem o profissional decorador na antiga Greacutecia (malhadas dezotti neves

2008 v 3 p 87-88) Faz sentido portanto que a palavra cosmeacutetico usada na atualidade

derive desse radical Em qualquer dos casos o conceito de coacutesmos aristoteacutelico antes de

ser uma concepccedilatildeo fiacutesica tem caraacuteter metafiacutesico E a ecircnfase de Aristoacuteteles a uma essecircncia

qualitativa desse conceito o coloca em uma posiccedilatildeo privilegiada para abordarmos os

temas da arte e do design

Acreditamos que a defesa desses teoacutericos seja satisfatoacuteria e possa pelo menos mitigar

as criacuteticas de caraacuteter hermenecircutico agrave distacircncia temporal dos mais de 2300 anos que nos

separam das especulaccedilotildees e das teorias aristoteacutelicas Ainda assim algum criacutetico atento

agrave estrutura das concepccedilotildees aristoteacutelicas poderia opor argumentos baseados na ideia de

finalismo deste pensador tanto nos seus conceitos de natureza quanto de arte que satildeo

desdobramentos da teoria das quatro causas Natildeo faz parte do tema enveredar por essa

teoria mas como ela pode ser associada a diversas espeacutecies de determinismo e consequen-

temente ser entendida como limitadora agraves possibilidades de compreensatildeo das relaccedilotildees

entre design e arte somos obrigados a justificar minimamente o finalismo aristoteacutelico

ou pelo menos natildeo consideraacute-lo como nocivo agraves reflexotildees ligadas a esses dois campos A

esse respeito no acircmbito mais amplo da reflexatildeo filosoacutefica Aristoacuteteles entende que uma

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das caracteriacutesticas do homem eacute exercer accedilotildees voluntaacuterias mas nos atendo especificamente

ao campo do design chamamos novamente em nossa defesa Carlos A Barbosa

A questatildeo eacute que a causa final na visatildeo aristoteacutelica eacute a que daacute iniacutecio e tambeacutem dirige todo o processo ou accedilatildeo De nada adiantaria ou talvez nem mesmo existiria um juiacutezo uacutenico para os casos semelhantes se antes natildeo se apresentasse uma razatildeo ou uma finalidade para tal juiacutezo Um designer por exemplo natildeo sai simplesmente projetando para ver se chega em algo Na verdade esse ldquoalgordquo ao qual o designer pretende chegar pressupotildee um uso o qual orienta e determina a necessidade do projeto Ou seja o projeto de design eacute movido pela sua finali-dade que eacute aquilo que se pretende com o projeto ou para que se pretende um objeto (barbosa 2003 p 58)

Diante de um pensador da envergadura de Aristoacuteteles como apontou Fernando San-

toro tanto as defesas quanto as contestaccedilotildees e querelas enriquecem e ampliam as possibi-

lidades de reflexatildeo quando o tema em questatildeo tem raiacutezes que partem de investigaccedilotildees em

sua eacutepoca e continuam a reverberar no modo como concebemos a realidade atualmente

Com relaccedilatildeo ao meacutetodo compreendendo-o em seu sentido originaacuterio de caminho

ele foi efetivado nas seguintes etapas na tese cada uma circunscrita a um capiacutetulo

1 Origens platocircnicas da cisatildeo e hierarquizaccedilatildeo da ciecircncia teacutecnica e arte e suas conse-

quecircncias para o design e para a arte (capiacutetulo 2)

2 Transposiccedilatildeo da abordagem do tema de um vieacutes esteacutetico e gnoseoloacutegico para onto-

loacutegico (capiacutetulo 3)

3 Rastreamento identificaccedilatildeo anaacutelise e reelaboraccedilatildeo dos conceitos aristoteacutelicos de

miacutemesis coisas belas coisas uacuteteis o fim em si mesmo e o discurso epidiacutectico para o design

e a arte contemporacircnea (capiacutetulo 4)

4 Ampliaccedilatildeo na identificaccedilatildeo dos conceitos teoricamente reelaborados na praacutetica

artiacutestica de Andy Warhol precedido historicamente por Marcel Duchamp e nos

projetos de design de Philippe Starck (capiacutetulo 5)

Com esse roteiro estabelecido falta explicitar os caminhos contidos no meacutetodo que

tornaram possiacutevel avanccedilar de modo coerente Ao tratarmos acerca dessa estrutura guia

consideramos necessaacuterio justificar a inclusatildeo de autores de espectros ideoloacutegicos distintos

no bojo das discussotildees

50

Acreditamos que a inclusatildeo de autores de correntes divergentes e ateacute opostas na busca

de consenso em um constructo teoacuterico somente eacute um problema se ao final chega-se a uma

antinomia na teoria Aleacutem disso nossa proposta natildeo eacute unir pensadores que dialogam entre

si tendo em conta uma filiaccedilatildeo genealoacutegica comum Ao contraacuterio articular discordacircncias

em torno dos fundamentos das relaccedilotildees entre design e arte mdash buscando inteligibilidade a

partir de uma abordagem centrada no vieacutes ontoloacutegico mdash eacute o que traz unidade e coerecircncia

interna ao tema Polecircmicas que surgiram no periacuteodo claacutessico da cultura grega seguiram

em frente na histoacuteria das ideias e ainda permanecem em alguns casos sob formas diver-

sas e (em determinadas circunstacircncias) impliacutecitas na atualidade Natildeo temos a pretensatildeo

de alinhar nosso pensamento com uma corrente especiacutefica mas selecionar autores que

tendo estabelecido uma questatildeo como objeto de estudo procuram submetecirc-la ao exame

mesmo diante de posiccedilotildees discordantes Esse eacute um desafio metodoloacutegico que guia esta tese

Para atender aos cruzamentos de conteuacutedos sobre as relaccedilotildees das aacutereas pesquisadas

com os autores estabelecemos padrotildees que conduzem aos diversos toacutepicos da tese O

resultado foi um meacutetodo de estrutura hiacutebrida constituiacutedo de elementos habituais nas

pesquisas em ciecircncias humanas e sociais O que fizemos foi incorporar estrateacutegias de

abordagem jaacute existentes que nos permitiram controlar melhor os percursos

1ordf Analiacutetica mdash garantir a decomposiccedilatildeo dos diversos conceitos compreender suas parti-

cularidades e testar suas possibilidades de aplicaccedilatildeo na atualidade bem como limites

2ordf Comparativa mdash ser capaz de identificar e descrever elementos comuns aos dois campos

investigados design e arte contemporacircnea descrevendo as interligaccedilotildees descobertas

3ordf Diacrocircnica e sincrocircnica mdash uma vez que parte dos conceitos extraiacutedos procede de

autores do passado (Platatildeo e Aristoacuteteles) em cotejo com autores contemporacircneos a

abordagem diacrocircnica necessariamente atenta agrave hermenecircutica apoia-se principalmen-

te nas anaacutelises e interpretaccedilotildees de estudiosos contemporacircneos como Arthur Danto

Thierry de Duve Martin Heidegger Philippe Lacoue-Labarthe e Umberto Eco O

propoacutesito eacute assegurar que a transposiccedilatildeo desses conceitos para o presente preserve seu

vigor e validade Na abordagem sincrocircnica por outro lado dirigimos nossa atenccedilatildeo

a autores contemporacircneos como Vileacutem Flusser Rafael Cardoso Tomaacutes Maldonado

Gui Bonsiepe e Beat Schneider e privilegiamos mais a tomada de posiccedilatildeo deles em

51

relaccedilatildeo aos conceitos jaacute estabelecidos Esse giro intencional assegura que o embate

se fixe no presente uma vez que o tema se concentra nos fundamentos de campos

da atualidade design e arte Com isso acreditamos obtemos um leque maior de

possibilidades na discussatildeo tendo em conta as significativas diferenccedilas ideoloacutegicas

que esses estudiosos apresentam no tratamento dos conceitos

4ordf Sinteacutetica mdash comprovar a hipoacutetese e sua validaccedilatildeo ateacute onde eacute possiacutevel em uma tese

no acircmbito das ciecircncias humanas e sociais

A variaccedilatildeo dessas estrateacutegias combinando-as quando necessaacuterio a um tratamento

especiacutefico (como por exemplo anaacutelise comparativa diacrocircnica ou anaacutelise comparativa

sincrocircnica) tornou a abordagem flexiacutevel agraves nossas necessidades Apesar de cada estudioso

ter suas particularidades na aplicaccedilatildeo de recursos analiacuteticos e comparativos Danto de

Duve Heidegger Lacoue-Labarthe Eco e outros autores modernos e contemporacircneos

estudados fazem uso recorrente desses procedimentos o que favorece nossa abordagem

Como jaacute pode ser constatado neste primeiro capiacutetulo as escolhas tanto do tema

quanto da perspectiva adotada e dos autores envolvidos na construccedilatildeo de nosso cami-

nho nos conduzem invariavelmente a retornar em periacuteodos histoacutericos constituintes do

pensamento da ciecircncia do design e da arte em diversos momentos do texto Estamos

perseguindo o que Cassirer (1992 p 48) acertadamente nomeou de ldquopontos focaisrdquo ldquopara

ondeconfluem[]seacuteriesinteirasdeeventosrdquoContudotemosconsciecircnciadequeessa

tese natildeo eacute sobre histoacuteria do design da arte ou da filosofia Mas sabemos que existe sempre

o risco de se avanccedilar sobre o sedutor territoacuterio da histoacuteria dessas disciplinas e deixar de

lado a reflexatildeo sobre a trama das ideias propostas Portanto concentramos esforccedilos em

mantermos demarcados os temas de contextualizaccedilatildeo Mas natildeo abrimos matildeo da histoacuteria

da filosofia ou de qualquer outra disciplina quando elas contribuem para a genealogia

dos objetos estudados Assim ocorreu no atual capiacutetulo na anaacutelise da indeterminaccedilatildeo

do design e da arte e seraacute no proacuteximo na transposiccedilatildeo de quatro conceitos gregos que

ainda satildeo potencialmente fecundos e influentes na atualidade Atentos especificamente

ao acircmbito da historiografia nos esforccedilamos tambeacutem no sentido de buscar equiliacutebrio no

tratamento do tema das relaccedilotildees tendo consciecircncia da longa histoacuteria da arte ocidental

em comparaccedilatildeo com o curto periacuteodo formal da histoacuteria do design

52

Outro ponto que precisa ser ressaltado eacute que apesar da ampliaccedilatildeo do interesse em

torno do tema das relaccedilotildees entre design e arte se confirmar com mais estudos debates e

publicaccedilotildees ateacute onde pudemos averiguar natildeo encontramos autores que o tratem sob o

crivo da ontologia Natildeo entendemos a falta de bibliografia especiacutefica como um problema

Ao contraacuterio tal situaccedilatildeo eacute oportunidade estimulante de se avanccedilar em um novo territoacuterio

No entanto o diaacutelogo com os autores especialmente os do design torna-se agraves vezes mais

difiacutecil de se efetivar uma vez que os temas relacionados agrave nossa pesquisa se encontram

esparsos em artigos e livros dedicados a outras questotildees

Aleacutem disso apesar da proposta daquilo que atualmente eacute nomeado uma ldquofilosofia do

designrdquo estar avanccedilando nas reflexotildees sobre design sentimos falta em alguns autores de

uma caracteriacutestica usual aos teoacutericos das ciecircncias humanas e sociais a de explicitar suas

filiaccedilotildees ideoloacutegicas ou a que linhas de pensamento eles se contrapotildeem ao defenderem

suas proacuteprias posiccedilotildees Nesses casos somos obrigados a um adicional exerciacutecio de her-

menecircutica buscando razotildees subjacentes aos textos as vezes em frases curtas e palavras

extraindo delas nossa interpretaccedilatildeo Dadas essas circunstacircncias trazer os fundamentos

ontoloacutegicos para o debate nas relaccedilotildees entre design e arte eacute tarefa que exige a inserccedilatildeo de

elementos propedecircuticos de origem filosoacutefica (como a lista terminoloacutegica do iniacutecio deste

capiacutetulo) que pode se tornar enfadonha para parte dos leitores Por tudo isso quanto

ao escopo da tese procuramos natildeo avanccedilar em direccedilatildeo a abordagens de acircmbito pedagoacute-

gico social e econocircmico entre outras igualmente relevantes e produtivas para se pensar

as bases das relaccedilotildees entre design e arte mas privilegiamos o enfoque ontoloacutegico que

acreditamos precede aos demais

53

2 ORIGENS E CONSEQUEcircNCIAS DA HIERARQUIZACcedilAtildeO DA

CIEcircNCIA TEacuteCNICA E ARTE

Tendo o escopo da tese delimitado iniciamos o capiacutetulo atual com algumas consideraccedilotildees

sobre a intenccedilatildeo que nos guia e jaacute se encontra anunciada quando apresentamos o graacutefico

da figura 2 (p 45) a propoacutesito das origens histoacutericas de nosso tema As definiccedilotildees de

phyacutesis poacuteiesis episteacuteme e teacutekhne tecircm um entrelaccedilamento de suas essecircncias proacuteprio da

visatildeo de mundo grega mas que foi se esgarccedilando com o passar dos seacuteculos e chegam agrave

atualidade separadas nas ideias de natureza produccedilatildeo ciecircncia e arte O presente capiacute-

tulo efetiva a primeira das quatro etapas do meacutetodo ou seja busca uma compreensatildeo

preliminar de alguns elementos constituintes e comuns ao design e agrave arte que no nosso

entendimento foram herdados de um periacuteodo na histoacuteria do pensamento onde uma

cisatildeo e hierarquizaccedilatildeo dos conceitos de ciecircncia teacutecnica e arte estavam em andamento

Assim eacute preciso retornar a essa eacutepoca para compreender as razotildees desse processo O

texto se divide em trecircs partes

Na primeira seccedilatildeo iniciamos com as quatro concepccedilotildees gregas anteriores como

parte da formaccedilatildeo da estrutura do pensamento claacutessico que nos chancelam a entrada no

universo teoacuterico de Platatildeo acerca do conhecimento

Na segunda seccedilatildeo tendo em conta a divisatildeo e hierarquizaccedilatildeo que a teoria platocircnica

propotildee para o conhecimento e as produccedilotildees humanas analisamos a ruptura que se esta-

belece ainda na Greacutecia antiga entre ciecircncia entendida como conhecimento verdadeiro

(episteacuteme) e arte mimeacutetica enquanto mera coacutepia no mundo sensiacutevel

Na terceira frente a influecircncia quase hegemocircnica dessa concepccedilatildeo de origem platocircnica

nos ciacuterculos cientiacuteficos da contemporaneidade partimos das descriccedilotildees de Koyreacute e das

criacuteticas de Nietzsche para destacarmos as nuances das posiccedilotildees de Tomaacutes Maldonado

Gui Bonsiepe Rafael Cardoso e Beat Schneider no emaranhado das relaccedilotildees entre ciecircncia

teacutecnica design e arte E em busca de um contraponto conceitual criticamos a visatildeo do

platonismo apoiando-n0s nas posiccedilotildees de cada um desses quatro autores Em seguida de

posse de alguns conceitos de Vileacutem Flusser e Rafael Cardoso encaminhamos as reflexotildees

para conexotildees especiacuteficas entre design ciecircncia teacutecnica e arte e propomos uma primeira

incursatildeo no acircmbito da ontologia contrapondo as concepccedilotildees desses dois autores

54

21 A essecircncia compartilhada de quatro conceitos gregos

Para a anaacutelise das palavras gregas phyacutesis poacuteiesis teacutekhne e episteacuteme buscamos definiccedilotildees

principalmente no Diccionario de Filosofia Joseacute Ferrater Mora (1979) e no Dicionaacuterio

Grego-Portuguecircs (dgp) de Malhadas Dezotti e Neves (2006ndash2010) Nossa intenccedilatildeo

foi equilibrar os conteuacutedos mais especiacuteficos do primeiro leacutexico com os mais gerais do

segundo A especificidade do Diccionario de Filosofia Ferrater Mora expliacutecita no proacuteprio

nome se comprova em verbetes que privilegiam os sentidos ligados agrave filosofia e aacutereas cor-

relatas Por outro lado de forma complementar o Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs (dgp)

tem como proposta atender ldquodiversas aacutereas do conhecimentordquo sendo ldquoum dicionaacuterio de

liacutengua isto eacute natildeo-enciclopeacutedicordquo (malhadas dezotti neves 2006 v 1 p vii)

Aleacutem disso ambos os dicionaacuterios privilegiam o momento histoacuterico de nosso interesse

o Ferrater Mora inicia cada verbete discorrendo sobre a origem da entrada enunciada

normalmente a antiguidade claacutessica e o dgp concentra-se na liacutengua grega antiga natildeo

incluindo o leacutexico moderno

Em relaccedilatildeo agrave pesquisa dos conceitos subjacentes a essas quatro palavras nos apoiamos

sobretudo em dois autores Novamente Ferrater Mora (1979) por seu direcionamento

a temas filosoacuteficos e por suas anaacutelises circunscreverem tambeacutem as posteriores traduccedilotildees

dessas palavras para o latim E Heidegger (2012) por fazer um caminho no tempo na

direccedilatildeo inversa agrave de Ferrater Mora incorporando aos seus estudos filoloacutegicos o momento

do pensamento preacute-socraacutetico imediatamente anterior ao periacuteodo claacutessico de Platatildeo e

Aristoacuteteles Nesse sentido a contribuiccedilatildeo de ambos eacute relevante para a compreensatildeo de um

contexto histoacuterico mais alargado da cisatildeo entre ciecircncia teacutecnica e arte Passemos entatildeo

agraves palavras e seus conceitos

211 Phyacutesis

Entre os gregos a ideia de phyacutesis (φύσις) corresponde ao real enquanto independente

ou seja aquilo que existe por si Phyacutesis pode ser empregada em vaacuterios sentidos Talvez o

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mais comum dos seus significados seja a ideia de reuniatildeo ou totalidade dos seres naturais

ou natureza Nesse sentido geral como afirma Ferrater Mora (1979 v 3 p 2309) ocorre

o emprego da grafia com maiuacutescula como um nome proacuteprio ldquoa Naturezardquo

Em uma acepccedilatildeo especiacutefica e independente da anterior natureza determina a essecircn-

cia de um ser particular como por exemplo ao afirmar-se que a natureza do homem eacute

a razatildeo a poliacutetica ou a guerra Entre os diversos sentidos da palavra acumulados desde

entatildeo essas duas acepccedilotildees (uma abrangente outra restritiva) se preservaram ateacute os dias

de hoje o que favorece de algum modo nosso entendimento acerca deste conceito pelo

menos nesses dois aspectos

Tal eacute a importacircncia da palavra em sua origem que Ferrater Mora inclui em seu Dic-

cionario de Filosofia aleacutem do verbete natureza o verbete phyacutesis considerando o

segundo uma introduccedilatildeo ao primeiro A este propoacutesito ele afirma

Geralmente traduz-se φύσις [phyacutesis] por lsquonaturezarsquo [] Com efeito φύσις eacute o nome que corresponde ao verbo φύω [phyacuteo] (infinitivo φύειν [phyacuteein]) o qual significa ldquoproduzirrdquo ldquofazer crescerrdquo ldquoengendrarrdquo ldquocrescerrdquo formar-serdquo etc [] daiacute φύσας [phyacutesas] ldquoengendradorrdquo ldquogeradorrdquo ldquoprogenitorrdquo quer dizer ldquopairdquo Analogamente natura [latim] eacute o nome que corresponde ao verbo nascor (in-finitivo nasci) que significa ldquonascerrdquo ldquoformar-serdquo ldquocomeccedilarrdquo ldquoser produzidordquo como em ex me natus est ldquonascido de mim (eacute meu filho)rdquo Daiacute que φύσις [phyacutesis] equivale (pelo menos em grande parte) a natura e seja traduzido por lsquonaturezarsquo enquanto que ldquoo que surgerdquo ldquoo que nascerdquo ldquoo que eacute engendrado (ou engendra)rdquo e por isso tambeacutem certa qualidade inata ou propriedade que pertence agrave coisa de que se trata e que faz que esta coisa seja o que eacute em virtude de um princiacutepio proacuteprio seu (ferrater mora 1979 v 3 p 2569) Traduccedilatildeo nossa

A variedade de significados de phyacutesis na liacutengua grega tambeacutem se mostra no Dicionaacuterio

de Grego-Portuguecircs (dgp) tanto pelo espaccedilo maior dedicado ao verbete quanto pelas

15 acepccedilotildees das quais apresentamos em resumo as oito primeiras

1 natureza qualidade natural qualidade ou propriedade constitutiva maneira de ser [] 2 natureza do corpo compleiccedilatildeo fiacutesica forma exterior talhe es-tatura etc [] 3 natureza do espiacuterito ou da alma disposiccedilatildeo natural iacutendole caraacuteter [] 4 instinto (de animal) 5 ordem natural natureza [] 6 gera-ccedilatildeo nascimento [] 7 Fil natureza como princiacutepio origem 8 constituiccedilatildeo geral das coisas natureza universo mundo criado [] (malhadas dezotti neves 2010 v 5 p 225)

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Como podemos observar no dgp somente a partir da quinta acepccedilatildeo os significados

se aproximam mais de conceitos filosoacuteficos Mas tendo em vista a semelhanccedila do sentido

de palavras como engendrar gerar e produzir empregadas nos dois dicionaacuterios consta-

tamos que o conceito de produccedilatildeo perpassa diversas acepccedilotildees de phyacutesis Isso jaacute era de se

esperar uma vez que como afirmamos a natureza eacute aquilo que existe por si Portanto

esta existecircncia espontacircnea exige capacidade de autoproduccedilatildeo

Faccedilamos uma pausa para refletir sobre o que se conquista ateacute aqui A identificaccedilatildeo

desse liame entre natureza e produccedilatildeo eacute decisiva para a nossa abordagem Estaacutevamos nos

referindo a esse tipo de viacutenculo quando no capiacutetulo 1 defendemos a ideia de plasticidade

dos conceitos gregos que abarcam diferentes domiacutenios teoacutericos e praacuteticos O conceito de

produccedilatildeo que ateacute este momento se apresenta como constituinte da phyacutesis iraacute se revelar

tambeacutem nas anaacutelises da teacutekhne e da episteacuteme Para tanto eacute necessaacuterio compreender pro-

duccedilatildeo primariamente em seu sentido lato como poacuteiesis

212 Poacuteiesis

Normalmente traduzida como produccedilatildeo poacuteiesis (ποίησις) tambeacutem tem vaacuterias acepccedilotildees

por seu emprego em diversas aacutereas e circunstacircncias desde o uso comum e cotidiano na

vida grega ateacute no discurso mitoloacutegico artiacutestico e filosoacutefico Eacute fundamentalmente uma

concepccedilatildeo abstrata por sua caracteriacutestica de generalidade Dela derivam seus modos

particulares e concretos E como ocorre com os conceitos de caraacuteter geral a compreen-

satildeo da abstraccedilatildeo favorece ao entendimento de suas manifestaccedilotildees concretas e vice-versa

Algumas acepccedilotildees no dgp mostram isso

1 accedilatildeo de fazer criaccedilatildeo 2 crist a criaccedilatildeo ie o mundo criado 3 fabrica-ccedilatildeo confecccedilatildeo de (trabalho manual) gen 4 accedilatildeo de compor obras poeacuteticas 5 faculdade de compor obras poeacuteticas arte da poesia 6 composiccedilatildeo poeacutetica obra poeacutetica poema 7 arte poeacutetica [] (malhadas dezotti neves 2009 v 4 p 101)

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Heidegger confirma e reforccedila a abrangecircncia da poacuteiesis ao afirmar que ela abarca tanto

as produccedilotildees humanas como as da natureza indicando uma classificaccedilatildeo ou ordenaccedilatildeo

em graus de importacircncia na constituiccedilatildeo da realidade

Tudo agora depende de se pensar a pro-duccedilatildeo[1] e o pro-duzir em toda a sua amplitude e ao mesmo tempo no sentido dos gregos Uma pro-duccedilatildeo ποίησις [poacuteiesis] natildeo eacute apenas a confecccedilatildeo artesanal e nem somente levar a aparecer e conformar poeacutetica e artisticamente a imagem e o quadro Tambeacutem a φύσις [phyacutesis] o surgir e elevar-se por si mesmo eacute uma pro-duccedilatildeo eacute ποίησις [poacuteiesis] A φύσις [phyacutesis] eacute ateacute a maacutexima ποίησις [poacuteiesis] Pois o vigente φύσει [phyacutesei] tem em si mesmo (ἐν ἐαυτῷ) [en eautoacutei] o eclodir da pro-duccedilatildeo Enquanto o que eacute produzido pelo artesanato e pela arte por exemplo o caacutelice de prata natildeo possui o eclodir da pro-duccedilatildeo em si mesmo mas em um outro (ἐν αλλῷ) [en alloacutei] no artesatildeo e no artista (heidegger 2012 p 16)

A densidade do texto de Heidegger exige uma anaacutelise por partes Existem pelo

menos trecircs pontos que se entrelaccedilam na citaccedilatildeo anterior que merecem ser explicitados

Primeiramente Heidegger subsume phyacutesis agrave poacuteiesis e a classifica como o mais alto niacutevel

de produccedilatildeo Tal viacutenculo entre poacuteiesis e phyacutesis dentro de uma hierarquia mais do que

apontar para a essecircncia comum de natureza e produccedilatildeo apresenta a natureza como um

entre outros tipos de produccedilatildeo Heidegger no entanto atenta para um segundo pon-

to o que justifica a posiccedilatildeo ldquomaacuteximardquo da phyacutesis dentro do gecircnero das produccedilotildees eacute sua

1 Heidegger tem um estilo de escrita que separa palavras e une outras para reforccedilar sentidos que natildeo se expressam explicitamente na grafia normal Isso segundo ele pode gerar ldquomal-entendidosrdquo Mas a liacutengua em que ele escreve favorece a esse tipo de intervenccedilatildeo Como afirma Fernando Mendes Pessoa

ldquoHeidegger utiliza-se de um recurso que a liacutengua alematilde oferece em sua possibilidade de compor palavras atraveacutes da junccedilatildeo de diferentes partiacuteculas a um mesmo radical dando diversas nuances a seu sentidordquo (pessoa 2009 p 195) Aleacutem disso o proacuteprio Heidegger a propoacutesito do uso incomum que ele oferece por exemplo para a palavra ldquoGestellrdquo (composiccedilatildeo) como teacutecnica considera uma estravagacircncia e se justifica ldquoSoacute que esta extravagacircncia eacute um antigo costume do pensamento E os pensadores tornam-se extravagantes precisamente quando tecircm de pensar o mais elevado Noacutes epigonais jaacute natildeo possuiacutemos condiccedilatildeo de avaliar o significado do fato de Platatildeo aventurar-se a utilizar a palavra εἶδος [eidos] para dizer a essecircncia de tudo e de cada coisa Pois na linguagem de todo dia εἶδος [eidos] diz a visatildeo que uma coisa visiacutevel nos apresenta agrave percepccedilatildeo sensiacutevel Ora Platatildeo pretende da palavra algo inteiramente extraordinaacuterio Pretende designar o que jamais se poderaacute perceber com os olhos E a extravagacircncia natildeo termina aiacute Pois ἰδέα [idea] natildeo evoca apenas o perfil natildeo sensiacutevel do que se vecirc sensivelmente Ιδέα [idea] o perfil significa e eacute tambeacutem o que perfaz a essecircncia de tudo que se pode ouvir tocar sentir de tudo que de alguma maneira se nos torna acessiacutevel Comparado com o que Platatildeo pretende da liacutengua e do pensamento neste e em outros casos o uso que ousamos agora fazer da palavra ldquoGestellrdquo com-posiccedilatildeo para dizer a essecircncia da teacutecnica moderna eacute quase inocente E natildeo obstante continua sendo uma pretensatildeo sujeita a muitos mal-entendidosrdquo (heidegger 2012 p 23-24)

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capacidade de autoproduccedilatildeo sua autonomia ou com suas palavras ldquoo surgir e elevar-se

por si mesmordquo O terceiro ponto eacute que a percepccedilatildeo da diferenciaccedilatildeo entre produccedilatildeo natu-

ral e produccedilatildeo humana ocorre justamente pelo entendimento de que produccedilatildeo humana

natildeo eacute autoproduccedilatildeo mas produccedilatildeo em um ldquooutrordquo Se a coesatildeo e organizaccedilatildeo em torno

desses trecircs pontos apresenta seu nuacutecleo na ideia de produccedilatildeo a uacuteltima delas por natildeo ser

em si mesma conduz nossa anaacutelise para a teacutekhne

213 Teacutekhne

Teacutekhne (τέχνη) eacute mais uma palavra com muitas acepccedilotildees pois tambeacutem acrescenta aos

sentidos de uso comum os de caraacuteter e emprego filosoacutefico que foram sendo atribuiacutedos

pelos pensadores gregos Conforme o que define o dgp

1 destreza manual habilidade 2 exerciacutecio de uma habilidade manual ofiacutecio profissatildeo [] 3 arte habilidade [] 4 conhecimento teoacuterico metodologia 5 artifiacutecio astuacutecia intriga maquinaccedilatildeo 6 meio expediente [] 7 produto de uma arte obra de arte obra 8 tratado sobre uma arte [] (malhadas dezotti neves 2010 v 5 p 122)

Considerando que a ordem de numeraccedilatildeo das acepccedilotildees em um dicionaacuterio procede

dos significados mais evidentes e usuais para os menos comuns ou mais exclusivos a seacuteti-

ma posiccedilatildeo deve indicar um sentido subjacente ou especiacutefico ligado agrave palavra produccedilatildeo

ou pelo menos com o resultado de uma produccedilatildeo isto eacute seu ldquoprodutordquo Uma vez que

importa dados os nossos propoacutesitos buscarmos relacionar cada nova palavra e conceito

com os demais jaacute descritos vamos direto para a seacutetima acepccedilatildeo Associar teacutekhne a produto

como faz o dicionaacuterio a insere dentro do domiacutenio da poacuteiesis E Heidegger argumenta na

mesma direccedilatildeo

τέχνικόν [teacutekhnikoacuten] diz o que pertence agrave τέχνη [teacutekhne] Devemos considerar duas coisas com relaccedilatildeo ao sentido desta palavra De um lado τέχνη [teacutekhne] natildeo constitui apenas a palavra do fazer na habilidade artesanal mas tambeacutem do fazer da grande arte e das belas-artes A τέχνη [teacutekhne] pertence agrave pro-duccedilatildeo a ποίησις [poacuteiesis] eacute portanto algo poeacutetico (heidegger 2012 p 17)

59

Na citaccedilatildeo anterior o mais relevante para a nossa anaacutelise eacute a identificaccedilatildeo do viacutencu-

lo entre teacutekhne e poacuteiesis equivalente ao que Heidegger reconhece ocorrer entre phyacutesis e

poacuteiesis A consequecircncia eacute que ambas podem ser entendidas como produccedilatildeo Aleacutem disso

o filoacutesofo indica o emprego ambivalente da palavra tanto no trabalho artesanal quanto

no das belas-artes significados que se concentram nas trecircs primeiras acepccedilotildees do dgp

Essas por serem atividades profissionais pressupotildeem produccedilatildeo e conhecimento poreacutem

carregam o sentido mais comum de habilidade associada ao uso das matildeos como ofiacutecio

ou arte Ferrater Mora de modo semelhante mostra como os conceitos de teacutekhne e arte

se imbricam em algumas acepccedilotildees

Os gregos usavam o termo τέχνη [teacutekhne] (com frequecircncia traduzido por ars lsquoartersquo e que eacute a raiz etimoloacutegica de lsquoteacutecnicarsquo para designar uma habilidade mediante a qual se faz algo mdash geralmente se transforma uma realidade natural em uma realidade ldquoartificialrdquomdash A teacutechne natildeo eacute no entanto qualquer habilidade senatildeo uma que segue certas regras por meio das quais se consegue algo Por isso existe uma teacutechne da navegaccedilatildeo (ldquoarte da navegaccedilatildeordquo) uma teacutechne da caccedila (ldquoarte da caccedilardquo) uma teacutechne do governo (ldquoa arte de governarrdquo) etc (ferrater mora 1979 v 4 p 2569) Traduccedilatildeo nossa

O trecho acima eacute o prenuacutencio do duplo caminho que teacutekhne iraacute seguir historicamente

quando por um lado for traduzida por ars (arte) na liacutengua e cultura latina e por outro

passar etimologicamente tambeacutem para o latim com o conceito diverso de teacutecnica Aten-

temos aqui para a duplicidade de sentidos de teacutekhne apontada por Ferrater Mora como

trabalho artesanal e belas-artes que se aproxima da ambivalecircncia indicada por Heidegger

Ainda uma uacuteltima questatildeo em relaccedilatildeo agrave citaccedilatildeo anterior eacute a particularidade da teacutekhne

em funccedilatildeo de sua necessidade de ldquoregrasrdquo Tal especificidade eacute correlata agrave quarta acepccedilatildeo

do dgp que relaciona teacutekhne com conhecimento teoacuterico e metodologia Esse acordo de

sentidos entre teacutekhne conhecimento teoacuterico e metodologia eacute tambeacutem confirmado por

Heidegger na permuta de significados que ocorre entre os conceitos de teacutekhne e espisteacuteme

[] o que vale considerar ainda a propoacutesito da palavra τέχνη [teacutekhne] eacute de maior peso Τέχνη [teacutekhne] ocorre desde cedo ateacute o tempo de Platatildeo juntamente com a palavra ἐπιστήμη [episteacuteme] Ambas satildeo palavras para o conhecimento em seu sentido mais amplo Dizem ser versado em alguma coisa dizem entender do assunto (heidegger 2012 p 17)

60

Se a quarta acepccedilatildeo do dgp tambeacutem se destaca ao relacionar teacutekhne com conheci-

mento o que mais sobressai nesse caso eacute ser conhecimento no acircmbito teoacuterico Natildeo sem

razatildeo Heidegger declara tal relaccedilatildeo ser ldquode maior pesordquo O conhecimento especificado

enquanto ldquoteoacutericordquo atrai a atenccedilatildeo uma vez que na esfera da filosofia episteacuteme deteacutem a

primazia para exprimir um saber especulativo distinto do saber praacutetico Tal proximidade

de sentidos nos leva ateacute a anaacutelise da ultima palavra episteacuteme

214 Episteacuteme

Diferentemente das palavras anteriores episteacuteme (ἐπιστήμη) no dgp somente apresenta

quatro acepccedilotildees

1 experiecircncia habilidade destreza em algo [] 2 conhecimento saber 3 conhecimento cientiacutefico ciecircncia (op a τέχνη [teacutekhne] e a ἐμπειρία [empeiriacutea] e a δόξα [doacutexa]) 4 aplicaccedilatildeo do espiacuterito estudo (malhadas dezotti neves 2007 v 2 p 131)

Apesar do nuacutemero reduzido de sentidos que creditamos agrave especificidade da palavra

os conceitos envolvidos satildeo complexos e isto se mostra na oposiccedilatildeo entre a primeira e a

terceira acepccedilotildees Essa oposiccedilatildeo (indicada pela abreviaturaldquooprdquo no dgp) contrapotildee expe-

riecircncia (empeiriacutea) agrave ciecircncia Outras duas oposiccedilotildees satildeo entre ciecircncia e teacutekhne e ciecircncia e

doacutexa (opiniatildeo) No nosso entendimento considerando a posiccedilatildeo de Platatildeo que veremos

a seguir diriacuteamos que ao inveacutes de pura oposiccedilatildeo ocorreria a partir desse pensador uma

subordinaccedilatildeo em niacuteveis de conhecimento em que episteacuteme se estabelece no topo do saber

teacutekhne em um niacutevel intermediaacuterio e empeiriacutea (experiecircncia sensiacutevel) e doacutexa (opiniatildeo) no

mais baixo niacutevel do senso comum estabelecido no cotidiano

O nuacutemero de variantes de significado das palavras analisadas ateacute aqui eacute muito maior

do que essa exposiccedilatildeo pode mostrar Nossa seleccedilatildeo teve como principal criteacuterio as caracte-

riacutesticas em comum dessas palavras privilegiando suas relaccedilotildees com o conceito de produccedilatildeo

Complementando a anaacutelise apresentamos dois graacuteficos O da figura 3 sintetiza o que foi

exposto ateacute aqui Ele retoma a linha do tempo do graacutefico da figura 2 (cf capiacutetulo 1 p 45)

acrescentando o conceito de phyacutesis e restringindo-se o periacuteodo agrave antiguidade greco-latina

61

O graacutefico da figura 4 manteacutem a estrutura matriz de poacuteiesis da figura 3 e associa as

produccedilotildees humanas agrave teoria pela proacutepria caracteriacutestica do pensamento grego que entende

tanto episteacuteme quanto teacutekhne como um saber que antecede e subsidia o fazer Na origem

de teoria no uso cotidiano da liacutengua teoroacutes (θεωρός) se referia ao espectador dos jogos

oliacutempicos e de outros espetaacuteculos Teoriacutea (θεωρία) significa accedilatildeo de ver de observar con-

templar examinar e especular Sua relaccedilatildeo com o olhar aproxima-a do sentido da palavra

oida (οἶδα) mdash que significa ao mesmo tempo ver e compreender Isso eacute mais um indiacutecio

do quanto os gregos associavam a visatildeo ao conhecimento E o Ocidente eacute herdeiro desse

modo de compreender a realidade

Figura 3 Linha do tempo indicando os sucessivos desdobramentos do conceito de poacuteiesis (produccedilatildeo) no periacuteodo claacutessico greco-latino fonte autor

asymp aC

PERIacuteODO DE PLAacuteSTICIDADEENTRE OS CONCEITOS

EPISTEacuteME

TEacuteKHNE

PHYacuteSIS

SCIENTIA

TECHNICUS

ARS

NATURA

POacuteIESIS

Greacutecia

Figura 4 Representaccedilatildeo das trecircs categorias de produccedilatildeo e a relaccedilatildeo das produccedilotildees humanas (teacutekhne e episteacuteme) com seus fundamentos teoacutericos fonte autor

NATURALTEOacuteRICA TEOacuteRICAPRAacuteTICA

POacuteIESIS

PHYacuteSISTEacuteKHNEEPISTEacuteME

PRODUCcedilAtildeO GERAL

62

22 Hierarquia platocircnica cisatildeo e ruptura

Platatildeo herda os conceitos de phyacutesis poacuteiesis teacutekhne e episteacuteme de seus antecessores e os

reelabora para fundamentar sua teoria acerca do conhecimento No acircmbito de nossa pes-

quisa selecionamos na obra deste pensador o diaacutelogo A repuacuteblica percorrendo algumas

de suas passagens e seguindo seus passos para identificar a hierarquizaccedilatildeo e classificaccedilatildeo

dos tipos de conhecimento e produccedilatildeo humana

A repuacuteblica trata o tema de nosso interesse em trechos distintos como de praxe

em um diaacutelogo platocircnico Nesses momentos Platatildeo constroacutei argumentos tendo como

opositor principal Homero reconhecido na eacutepoca como o grande educador da Greacutecia

A intenccedilatildeo expliacutecita de Platatildeo eacute substituir a poesia pela filosofia reivindicando para esta

uacuteltima o primado da educaccedilatildeo e conduzindo os filoacutesofos ao governo da cidade Para noacutes no

entanto o que importa satildeo as estrateacutegias impliacutecitas a essa intenccedilatildeo Nelas como veremos

estaacute a metafiacutesica de Platatildeo que critica e afasta a arte poeacutetica2 da ciecircncia e da teacutecnica O

diaacutelogo platocircnico tem como protagonista Soacutecrates e alguns disciacutepulos que se revesam na

discussatildeo dos temas Nos trechos analisados os personagens concentram sua reflexatildeo em

torno da proposta de criaccedilatildeo de uma cidade justa Para tanto Soacutecrates argumenta sobre

o imperativo de que cada fundador da cidade trabalhe no ofiacutecio que conheccedila melhor

Ƕ Por Zeus que nada me admira mdash disse eu mdash Ao ouvir-te falar penso tambeacutem que em primeiro lugar cada um de noacutes natildeo nasceu igual a outro mas com naturezas diferentes cada um para a execuccedilatildeo de sua tarefa Ou natildeo te parece

Ƕ Parece-me Ƕ Como assim Uma pessoa faraacute melhor em trabalhar sozinho em muitos ofiacutecios ou quando for soacute um a executar um

Ƕ Quando for um soacute a executar um Ƕ Mas julgo eu que eacute tambeacutem evidente que se algueacutem deixar fugir a oportunidade de fazer uma coisa perde-a

Ƕ Eacute evidente

2 A criacutetica platocircnica agrave arte pode ser dividida em trecircs partes A primeira (de conteuacutedo) vai do fim do livro ii ao iniacutecio do livro iii A segunda (ligada agrave forma ao estilo) inicia-se em 392c e avanccedila pelo livro iii A terceira (ontoloacutegica) vai do iniacutecio do livro x ateacute 608b sendo a mais contundente e relevante para os nossos propoacutesitos

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Ƕ Eacute que creio eu a obra natildeo espera pelo lazer do obreiro mas forccedila eacute que o obreiro acompanhe o seu trabalho sem ser agrave maneira de um passatempo

Ƕ Eacute forccediloso Ƕ Por conseguinte o resultado eacute mais rico mais belo e mais faacutecil quando cada pessoa fizer uma soacute coisa de acordo com a sua natureza e na ocasiatildeo proacutepria deixando em paz as outras

Ƕ Absolutamente (platatildeo 1987 p 74)

Se os homens possuem naturezas distintas a teacutekhne mdash arte em seu sentido de ofiacutecio

pressupondo um conhecimento que cada profissional deve dominar mdash se impotildee como

criteacuterio de separaccedilatildeo entre as atividades mas tambeacutem de hierarquizaccedilatildeo dos saberes Aqui

a intenccedilatildeo impliacutecita de Platatildeo eacute que a compreensatildeo sobre o domiacutenio da arte ou das diver-

sas artes ultrapasse o acircmbito gnoseoloacutegico em busca de seus fundamentos ontoloacutegicos

Como afirma o filoacutesofo Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro

Afinal de contas em se tratando de viajar por alto mar natildeo eacute indiferente admitir a opiniatildeo do piloto ou a do leigo Um primeiro sentido de ldquoarterdquo eacute esse uma com-petecircncia que se aprende e se exercita pela qual os que de fato a aprenderam e a exercitaram se distinguem dos demais constituindo-se em autoridades ldquonaturaisrdquo nos seus respectivos domiacutenios Mas o ponto mais importante natildeo eacute de ordem gnosioloacutegica e sim ontoloacutegica os domiacutenios de coisas teriam um modo de ser proacuteprio teriam um ldquoem-sirdquo vale dizer que o experiente conheceria e dominaria pouco a pouco tirando partido posteriormente daquilo que natildeo escolheu mas a que se rendeu a essecircncia da proacutepria coisa A existecircncia de vaacuterias artes parece atestar que sim (ribeiro 2006 p 104)

No entanto essa proposta subjacente ao texto de Platatildeo mdash de um domiacutenio de um

territoacuterio real da teacutekhne que pode ser acessado atraveacutes do aprendizado mdash eacute apresentada em

um processo dialoacutegico em que o discurso de Soacutecrates caminha no sentido de constituir

uma cidade justa e portanto livre de tudo o que segundo ele eacute supeacuterfluo E os disciacutepulos

que ouvem na roda do diaacutelogo suas sugestotildees para uma cidade saudaacutevel onde o que mais

importa eacute a subsistecircncia humana discordam da consequente simplicidade de vida a que

seus habitantes devem se submeter Glaacuteucon eacute o mais ousado deles ao replicar

Ƕ Se estivesses a organizar oacute Soacutecrates mdash interveio ele mdash uma cidade de porcos natildeo precisavas de outra forragem para eles

Ƕ Mas entatildeo como haacute-de ser oacute Glaacuteucon

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Ƕ O costume mdash respondeu ele mdash Acho que devem reclinar-se em leitos se natildeo quiserem que se sintam infelizes e que jantem agrave mesa iguarias como hoje haacute e sobremesas

Ƕ Seja mdash disse eu mdash Compreendo Natildeo estamos apenas a examinar ao que parece a origem de uma cidade mas uma cidade de luxo Talvez natildeo seja mau Efectivamente ao estudarmos uma cidade dessas depressa podemos desco-brir de onde surgem nas cidades a justiccedila e a injusticcedila A verdadeira cidade parece-me ser aquela que descrevemos como uma coisa satilde mas se quiserdes observaremos tambeacutem a que estaacute inchada de humores Nada o impede Bem estas determinaccedilotildees natildeo bastam ao que parece a certas pessoas nem este pas-sadio mas acrescentar-lhes-atildeo leitos mesas e outros objectos e ainda iguarias perfumes e incenso cortesatildes e guloseimas e cada uma destas coisas em toda a sua variedade Em especial natildeo mais se colocaraacute entre as coisas necessaacuterias o que dissemos primeiro mdash habitaccedilotildees vestuaacuterio e calccedilado mdash ir-se-aacute buscar a pintura e o colorido e entender-se-aacute que se deve possuir ouro marfim e preciosidades dessa espeacutecie Eacute ou natildeo

Ƕ Eacute mdash respondeu ele (platatildeo 1987 p 79)

A consequecircncia imediata de se aceitar o ldquoluxordquo na cidade eacute a obrigatoriedade de trazer

para ela os artiacutefices que com suas respectivas artes possam produzir e prover as demais

aspiraccedilotildees dos cidadatildeos Poreacutem junto com esses produtores que tem domiacutenio de uma

teacutekhne precisam vir tambeacutem aqueles cujo trabalho Platatildeo entende como imitaccedilatildeo Nas

palavras de Soacutecrates

Ƕ Portanto temos de tornar a cidade maior A que era satilde natildeo eacute bastante mas temos de a encher de uma multidatildeo de pessoas que jaacute natildeo se encontra na cidade por ser necessaacuteria como os caccediladores de toda a espeacutecie e imitadores muitos dos quais satildeo os que se ocupam de desenho e cores muitos outros da arte das Musas ou seja os poetas e seus servidores mdash rapsodos actores coreutas empresaacuterios mdash artiacutefices que fabriquem toda a espeacutecie de utensiacutelios sobretudo adereccedilos femi-ninos E em especial precisaremos de mais servidores Ou natildeo te parece que careceremos de pedagogos amas governantes accedilafatas cabeleireiros e ainda cozinheiros e marchantes (platatildeo 1987 p 80)

A narrativa de Platatildeo impressiona por sua semelhanccedila com a histoacuteria dos problemas

e das necessidades de uma cidade contemporacircnea em crescimento E as consequecircncias

tambeacutem a longo prazo com mais pessoas na cidade a terra se torna escassa e com a falta

de espaccedilo para pastagens lavoura e outras atividades de subsistecircncia segue-se a falta de

alimentos o que conduz agrave guerra contra outras cidades

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221 A metafiacutesica impliacutecita ao tema da cidade ideal

Cabe neste ponto uma ressalva os textos antigos normalmente natildeo tratam separada-

mente temas de poliacutetica justiccedila eacutetica loacutegica ciecircncia e arte entre outros Assim como

jaacute dissemos eacute preciso nos manter atentos pois paralelamente a essa narrativa hipoteacutetica

sobre a origem e constituiccedilatildeo de uma Cidade Estado (poacutelis) estaacute impliacutecita a metafiacutesica

platocircnica com a divisatildeo que nos interessa explicitar a hierarquia dos tipos de saberes e

produccedilatildeo como a teacutekhne em sua relaccedilatildeo com a episteacuteme De um lado encontra-se a classe

dos artiacutefices que tecircm um conhecimento e uma teacutekhne que oferece suporte ao seu trabalho

realizando somente um tipo de obra em que satildeo capacitados e tecircm domiacutenio De outro a

dos artiacutefices que produzem obras que satildeo imitaccedilotildees Essa segunda classe depreciada3 por

Platatildeo tem como representantes maacuteximos os poetas Como afirma Ribeiro

Se a arte em sentido lato portanto estaacute no homem desde o comeccedilo a arte em sentido estrito surge quando o homem supera o patamar da mera subsistecircncia e se entrega agrave dimensatildeo supeacuterflua de sua existecircncia O preccedilo dessa superaccedilatildeo eacute cariacutessimo mas o fato de os homens estarem sempre dispostos a pagaacute-lo revela o elemento traacutegico de sua condiccedilatildeo (ribeiro 2006 p 111)

Portanto para fazer a guerra eacute necessaacuterio uma nova classe de profissionais os guerreiros

ou ldquoguardiotildeesrdquo com uma teacutekhne especiacutefica ou uma ciecircncia (episteacuteme) especiacutefica como

prefere Platatildeo neste trecho4dodiaacutelogoldquoEssaciecircnciaeacutedavigilacircncia[]eencontra-se

naqueles chefes que agora mesmo classificamos de guardiotildees perfeitosrdquo (platatildeo 1987 p

178) Assim o proacuteximo passo eacute pensar como educar essa classe desde a infacircncia pois ela

iraacute proteger a cidade e fazer guerra quando necessaacuterio E a educaccedilatildeo depende da literatura

3 Tal depreciaccedilatildeo eacute relativa Platatildeo critica um procedimento do qual ele tambeacutem faz intenso uso Con-forme Ribeiro ldquoPlatatildeo ele mesmo usou mais imitaccedilatildeo que narraccedilatildeo em seus diaacutelogos filosoacuteficos e mesmo no caso da narraccedilatildeo sempre pocircs outrem a narrar por ele Natildeo obstante reclamar por uma esteacutetica ldquomais austera e menos apraziacutevelrdquo (austeroteacutero kaigrave aedesteacutero) seu texto eacute na histoacuteria da filoso-fia aquele em que mais interveacutem o elemento pateacutetico pela presenccedila dramaacutetica natildeo raro traacutegica ou cocircmica dos personagens E eacute tambeacutem o mais apraziacutevelrdquo (ribeiro 2006 p 121)

4 Nesta parte de A Repuacuteblica Platatildeo associa episteacuteme natildeo somente agrave profissatildeo dos guardiotildees como tam-beacutem de outras das quais ele normalmente trata como teacutekhne Assim nesse momento ao inveacutes de arte temos ldquociecircncia dos carpinteirosrdquo ldquociecircncia da construccedilatildeordquo ldquociecircncia dos utensiacutelios de madeirardquo ldquociecircncia de trabalhar objetos de bronzerdquo etc (platatildeo 1987 p 177) Isso comprova como afirmou Heidegger anteriormente que tambeacutem Platatildeo explora a ambivalecircncia dos conceitos de teacutekhne e episteacuteme

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Ƕ Mas haacute duas espeacutecies de literatura uma verdadeira e outra falsa Ƕ Haacute Ƕ E ambas seratildeo ensinadas mas primeiro a falsa Ƕ Natildeo entendo o que queres dizer Ƕ Natildeo compreendes mdash disse eu mdash que primeiro ensinamos faacutebulas agraves crianccedilas Ora no conjunto as faacutebulas satildeo mentiras embora contenham algumas verdades E servimo-nos de faacutebulas para as crianccedilas antes de as mandarmos para os ginaacutesios

Ƕ Assim eacute (platatildeo 1987 p 87)

As palavras de Soacutecrates demonstram a estrateacutegia de Platatildeo de fechar o cerco em torno

dos poetas e rapsodos sob o argumento de que os guerreiros devem ser corajosos e natildeo dar

ouvidos a histoacuterias que estimulam a ira o medo e outras emoccedilotildees que prejudiquem suas

accedilotildeesldquo[]quantomaispoeacuteticasmenosdevemserouvidasporcrianccedilaseporhomens

que devem ser livres e temer a escravatura mais do que a morterdquo (platatildeo 1987 p 178)

222 O argumento ontoloacutegico contra a arte mimeacutetica

No fundamento de uma decisatildeo de caraacuteter pedagoacutegico (educar com excelecircncia os guar-

diotildees) encontra-se a divisatildeo platocircnica em trecircs niacuteveis da produccedilatildeo (poacuteiesis) que buscamos O

passo final de Soacutecrates eacute associar o poeta e outros artistas como o pintor e o tragedioacutegrafo

ao mais baixo niacutevel de uma hierarquia ontoloacutegica em que o resultado de seus trabalhos

natildeo satildeo entendidos como produccedilatildeo mas somente imitaccedilatildeo (miacutemesis)

Ƕ Acaso natildeo existem trecircs formas de cama Uma que eacute a forma natural e da qual diremos segundo entendo que Deus a confeccionou Ou que outro Ser poderia fazecirc-lo

Ƕ Nenhum outro julgo eu Ƕ Outra a que executou o marceneiro Ƕ Sim Ƕ Outra feita pelo pintor Ou natildeo Ƕ Seja Ƕ Logo pintor marceneiro Deus esses trecircs seres presidem aos tipos de leito Ƕ Satildeo trecircs Ƕ Ora Deus ou porque natildeo quis ou porque era necessaacuterio que ele natildeo fabricasse mais do que uma cama natural confeccionou assim aquela uacutenica cama a cama real Mas duas camas desse tipo ou mais eacute coisa que Deus natildeo criou nem criaraacute

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Ƕ Como assim Ƕ Eacute que se fizesse apenas duas apareceria outra cuja ideia aquelas duas realizariam e essa seria a cama real natildeo as outras duas

Ƕ Exactamente Ƕ Por saber isso julgo eu eacute que Deus querendo ser realmente o autor de uma cama real e natildeo de uma qualquer nem um marceneiro qualquer criou-a na sua natureza essencial una

Ƕ Assim parece Ƕ Queres entatildeo que o intitulemos artiacutefice natural da cama ou algo de semelhante Ƕ Eacute justo uma vez que foi ele o criador disso e de tudo o mais na sua natureza essencial

Ƕ E quanto ao marceneiro Acaso natildeo lhe chamaremos o artiacutefice da cama Ƕ Chamaremos Ƕ E do pintor diremos tambeacutem que eacute o artiacutefice e autor de tal moacutevel Ƕ De modo algum Ƕ Entatildeo que diraacutes que ele eacute em relaccedilatildeo agrave cama Ƕ O tiacutetulo que me parece que se lhe ajusta melhor eacute o de imitador daquilo de que os outros satildeo artiacutefices

Ƕ Seja mdash concordei eu mdash Chamas por conseguinte ao autor aquilo que estaacute trecircs pontos afastado da realidade um imitador

Ƕ Exactamente Ƕ Logo tambeacutem o tragedioacutegrafo seraacute assim (se na verdade eacute um imitador) como se fosse o terceiro depois do rei e da verdade e bem assim todos os outros imitadores (platatildeo 1987 p 455)

Esta longa exposiccedilatildeo faz parte daquilo que ficou conhecido como o argumento

ontoloacutegico de Platatildeo contra a arte mimeacutetica e tem sido motivo de estudo e debate desde

a antiguidade O ponto fundamental para o nosso tema eacute a divisatildeo que este pensador

estabelece para a realidade em trecircs esferas com caracteriacutesticas ontoloacutegicas distintas

Grosso modo a primeira e mais elevada esfera de onde derivam as demais eacute a do

mundo inteligiacutevel ou mundo das ideias Do ponto de vista ontoloacutegico essa eacute a realidade

e laacute se encontra um ldquomodelordquo (παραδειγμαmdashparadeigma) universal para cada ente Pla-

tatildeo nomeia ora como ldquoDeusrdquo ora ldquodemiurgordquo ora ldquoartiacutefice naturalrdquo aquele que fabrica ou

modela cada elemento da realidade a partir de ideias preexistentes O conceito de pree-

xistecircncia das ideias pode parecer extravagante mas ele tem mais proximidade ao conceito

de produccedilatildeo empregado ateacute agora do que ao de criaccedilatildeo Esta questatildeo seraacute retomada ainda

neste capiacutetulo nas anaacutelises sobre as concepccedilotildees de Flusser mas para o momento importa

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saber que o conceito de produccedilatildeo (poacuteiesis) difere do conceito de criaccedilatildeo (creatio) no sen-

tido hebraico-cristatildeo de criaccedilatildeo a partir do nada (creatio ex nihilo) Produccedilatildeo pressupotildee

uma mateacuteria primordial desordenada e sem forma (χάοςmdashcaos) que pela accedilatildeo (poacuteiesis)

do demiurgo daacute origem ao coacutesmos (κόσμος) o universo ordenado Conforme a figura 5

A segunda esfera eacute a do mundo sensiacutevel e temporal Ela compartilha ou ldquoparticipardquo

dos modelos eternos da realidade transcendente da primeira esfera mas eacute imperfeita

e aparente A essecircncia da realidade natildeo se encontra nela poreacutem os artiacutefices humanos

atraveacutes do conhecimento (teacutekhneepisteacuteme) tecircm acesso aos modelos ideais e os aplicam

na confecccedilatildeo dos objetos e utensiacutelios e demais artefatos do mundo humano Assim por

exemplo uma uacutenica ideia de cama em sua plenitude e perfeiccedilatildeo permite aos marceneiros

produzirem toda a diversidade de camas existentes Como afirma Ribeiro

Uma coisa pelo menos estaacute totalmente a cargo do artista o remate o efetivo pocircr matildeos agrave obra Dizer que ele obedece a um modelo significa dizer que natildeo cria arbitrariamente [] Nenhuma obra esgota o ser do modelo que imita mas de alguma maneira a criaccedilatildeo contiacutenua de obras pereniza na dimensatildeo temporal nos limites do ser mortal o caraacuteter eterno desse modelo (ribeiro 2006 p 128)

Se o mundo inteligiacutevel eacute a realidade laacute eacute o lugar da verdade Portanto o mundo sensiacutevel

se encontra ontologicamente abaixo do primeiro Na forma de se expressar Platatildeo estaacute

dois pontos afastado da realidade e tambeacutem da verdade Entretanto eacute por ter em mente

o modelo eterno da cama que o marceneiro mesmo executando uma coacutepia imperfeita

da ideia pode carregar o tiacutetulo de ldquoartiacuteficerdquo Conforme a figura 6

Figura 5 Representaccedilatildeo na teoria platocircnica do primeiro niacutevel ontoloacutegico e seu produtor o demiurgo ou artiacutefice natural fonte autor

ARTIacuteFICE NATURAL1ordm NIacuteVEL

MODELOS PERFEITOSE UNIVERSAIS

MATEacuteRIA PREEXISTENTEIDEIAS

DEMIURGO

MUNDO INTELIGIacuteVELREALIDADE

CAOS

Tudo em sua natureza essencial

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Agrave terceira e uacuteltima esfera pertencem todos os que segundo Platatildeo natildeo efetivamente

produzem mas imitam O pintor por exemplo ao produzir uma imagem de uma cama

natildeo vai ateacute agrave ideia de cama mas recorre apenas agrave cama do marceneiro como guia Neste

sentido o pintor ldquoestaacute trecircs pontos afastado da realidaderdquo A figura 7 incorpora o mais

baixo niacutevel ontoloacutegico aos demais superiores e completa o quadro da hierarquia platocircnica

Figura 6 Representaccedilatildeo na teoria platocircnica do segundo niacutevel ontoloacutegico e seu produtor o artiacutefice hu-mano fonte autor

ARTIacuteFICE HUMANO2ordm NIacuteVEL

MATEacuteRIA PREEXISTENTEMODELOS PERFEITOS

E UNIVERSAISIDEIAS

MARCENEIRO

MUNDO INTELIGIacuteVELREALIDADE

MUNDO SENSIacuteVELAPAREcircNCIAS

TEacuteKH

NEE

PIST

EacuteME

Figura 7 Representaccedilatildeo dos trecircs niacuteveis ontoloacutegicos reunidos na hierarquia da metafiacutesica platocircnica O artiacutefice natural e os artiacutefices humanos como o marceneiro satildeo produtores (poieteacutesmdashποιητής) enquanto que os artistas como o pintor o poeta e o ator satildeo apenas imitadores (mimeteacutesmdashμιμητής) fonte autor

ARTIacuteFICE NATURAL1ordm NIacuteVEL

IMITADOR3ordm NIacuteVEL

ARTIacuteFICE HUMANO2ordm NIacuteVEL

MATEacuteRIA PREEXISTENTEMODELOS PERFEITOS

E UNIVERSAISIDEIAS

PINTOR

MARCENEIRO

DEMIURGO

MUNDO INTELIGIacuteVELREALIDADE

MUNDO SENSIacuteVELAPAREcircNCIAS

CAOS

TEacuteKH

NEE

PIST

EacuteME

MIacuteMESIS

Tudo em sua natureza essencial

70

O problema da miacutemesis tem lugar privilegiado na discussatildeo platocircnica sobre o criteacuterio

diferenciador entre o conhecimento (episteacuteme) que busca a universalidade e consequente-

mente a verdade orientando as produccedilotildees e a mimeacutetica que eacute apenas aparecircncia e conduz

agraves coacutepias e agrave falsidade Ribeiro resume este ponto explicitando a diferenccedila e a distacircncia

que separa arte enquanto pura teacutekhne da arte mimeacutetica

Mas que mal haacute em ser imitador Todo demiurgo tambeacutem natildeo ldquoimitardquo algo Repetir-se-ia aqui o dogma de que um estaacute dois pontos afastado da verdade (da ideacuteia) enquanto o outro estaacute trecircs por imitar natildeo diretamente a ideacuteia mas seu homocircnimo sensiacutevel e o lugar-comum de que a obra de arte seria a coacutepia da coacutepia Importante poreacutem eacute interpretaacute-los A imitaccedilatildeo fracassa por natildeo corres-ponder ao modo de ser da teacutechne pressuposto como criteacuterio Em primeiro lugar a mimeacutetica imita toda e qualquer coisa como algueacutem que caminha com um espelho nas matildeos reproduzindo os seres naturais e artificiais com que cruza no caminho natildeo se deteacutem como a teacutechne sobre um campo determinado do real [] Homero imita um general um meacutedico e um arauto sem ser perito em nenhum desses domiacutenios Aleacutem disso a mimeacutetica natildeo se preocupa em conhecer como eacute em si e por si mesmo o real correspondente a cada arte que imita jaacute que lhe basta o aparente (phainoacutemenon) para agradar o grande puacuteblico ignorante que julga pela cor (chrocircma) e formato (schecircma) A mimeacutetica natildeo eacute conhecimento (episteacuteme) natildeo se ateacutem agraves determinaccedilotildees universais e necessaacuterias das coisas [] (ribeiro 2006 p 125-126)

Essa busca por um ldquoreal correspondente a cada arterdquo assim como a subordinaccedilatildeo ldquoagraves

determinaccedilotildees universais e necessaacuterias das coisasrdquo que colocamos em relevo na citaccedilatildeo

anterior proacuteprio da pura teacutekhne e mais ainda da episteacuteme satildeo elementos que se preser-

varam como valores intriacutensecos ao conhecimento na trajetoacuteria posterior do pensamento

impondo assim uma hierarquia do saber

Ao teacutermino dessa exposiccedilatildeo sobre Platatildeo um dos pontos que consideramos relevante

sobre a teoria desse pensador para o presente capiacutetulo estaacute ligado a um elemento que

natildeo se encontra agrave primeira vista expliacutecito em sua concepccedilatildeo hierarquizada do conheci-

mento Esse elemento pode ser extraiacutedo de sua metafiacutesica quando entendemos que este

autor procura uma ordem e permanecircncia que natildeo encontra no mundo sensiacutevel em fluxo

e devir Para Platatildeo natildeo eacute possiacutevel aceitar que a verdade possa estar em um lugar em que

tudo muda o tempo todo E a busca por estabilidade exige delimitaccedilotildees que distinguam

cada componente da realidade dos demais Uma cama deve ser somente uma cama e um

71

marceneiro somente um marceneiro Aquilo que natildeo se encaixa nesse criteacuterio eacute confuso

e indeterminado e portanto natildeo tem lugar ontoloacutegico assegurado em sua concepccedilatildeo da

realidade Mas como vimos no capiacutetulo anterior a questatildeo eacute que a arte e o design por

motivos diversos satildeo indeterminados Portanto eacute necessaacuterio avanccedilar sobre alguns desdo-

bramentos da posiccedilatildeo platocircnica e buscar autores que discordam parcial ou inteiramente

dela para estabelecer um modelo alternativo de conhecimento e realidade ou pelo

menos reelaborar essa concepccedilatildeo de modo a tornaacute-la capaz de mediar a indeterminaccedilatildeo

e a heterogeneidade como propriedades a se preservar

Uma ressalva deve ser feita acerca do tom criacutetico que assumimos em relaccedilatildeo agrave posiccedilatildeo

de Platatildeo Apoacutes 20 seacuteculos de histoacuteria do pensamento ocidental torna-se difiacutecil avaliar

ateacute onde reverberam as suas concepccedilotildees Muito foi dito e natildeo soacute por filoacutesofos sobre a

influecircncia de suas ideias desde a sua contribuiccedilatildeo na formaccedilatildeo do nosso modo de pensar

a vida no acircmbito do senso comum ateacute na construccedilatildeo de elaboradas e abstratas teorias

acerca da realidade Haacute algum tempo eacute lugar comum entre as citaccedilotildees acerca deste pen-

sador a frase do filoacutesofo Alfred North Whitehead ldquoA caracterizaccedilatildeo geral mais segura da

tradiccedilatildeo filosoacutefica europeacuteia eacute que ela consiste em uma seacuterie de notas de rodapeacute a Platatildeordquo

(whitehead 1978 p 39) Traduccedilatildeo nossa Independentemente de se entender tal afir-

maccedilatildeo como retoacuterica5 aceitar ou natildeo a onipresenccedila das ideias desse pensador ou pelo

menos a ubiquidade e recorrecircncia de temas primeiramente por ele propostos parte do

que se credita a Platatildeo foi inspirado em sua metafiacutesica mas estabelecido depois dele e

portanto natildeo pode ser de sua exclusiva responsabilidade para o bem ou para o mal

Subjacente a essa concepccedilatildeo um paracircmetro que orienta o entendimento do tipo de

princiacutepio ordenador da realidade que Platatildeo persegue tem destaque natildeo somente em

seus diaacutelogos No portal da Academia Platocircnica havia uma inscriccedilatildeo com a advertecircncia

ldquoQuem natildeo eacute geocircmetra natildeo entrerdquo (cornelli gabriele 2007 p 420) A forccedila dessa

frase se revela no fato de que ela serve de inspiraccedilatildeo ateacute hoje natildeo soacute para racionalistas mas

tambeacutem para seus opositores empiristas que neste ponto concordam entre si seguros

da validade universal da matemaacutetica Se a matemaacutetica constroacutei seus objetos sem necessi-

dade da experiecircncia sensiacutevel seus fundamentos estatildeo em consonacircncia com concepccedilotildees

5 Essa frase antes de ser publicada no livro Process and Reality foi proferida em uma palestra de Whi-tehead na Gifford Lectures da Universidade de Edimburgo durante as seccedilotildees de 1927 e 1928

72

metafiacutesicas de mundos transcendentes O mundo das ideias platocircnico eacute somente o pri-

meiro representante deste tipo de paradigma que com muitos opositores ainda se faz

presente na atualidade

223 Desdobramentos da hierarquizaccedilatildeo do conhecimento

Na Idade Meacutedia um interluacutedio apoiado no pensamento de Aristoacuteteles havia estabelecido

uma concepccedilatildeo qualitativa que explicava de modo diverso tanto a natureza quanto o ho-

mem No entanto os aspectos quantitativos caros a um racionalista e matemaacutetico como

Platatildeo satildeo retomados com forccedila no pensamento daqueles que iratildeo direcionar os rumos

do conhecimento natural a partir da modernidade Copeacuternico Kepler Galileu e Descar-

tes entre outros Assim contrariando uma visatildeo qualitativa da realidade se estabelecem

a partir da Renascenccedila as bases de uma nova concepccedilatildeo de ciecircncia de caraacuteter descritivo

apoiada em equaccedilotildees nuacutemeros e medidas precisas (burtt 1983) Tal estrutura (aliada

aos conceitos de universalidade e de necessidade apontados por Ribeiro na subseccedilatildeo an-

terior) prosperaraacute em parte pelos resultados extraordinaacuterios de suas realizaccedilotildees praacuteticas

no acircmbito da teacutecnica mas que natildeo eacute bem-sucedida em explicar o homem e seus valores

qualitativos Vale ressaltar as palavras de Maldonado sobre trecircs pilares da modernidade

cientiacutefica e tecnoloacutegica base da revoluccedilatildeo industrial dos seacuteculos xvii e xviii que fomen-

taraacute aspectos formais de disciplinas como o design ldquoUm universo no qual a observaccedilatildeo

escrupulosa a mediccedilatildeo acurada e a quantificaccedilatildeo exata transformaram-se nos trecircs elementos

que sustentam o mundo do engenho estrutural e funcionalrdquo (maldonado 2012 p 178)

A precisatildeo na mediccedilatildeo de que nos fala Maldonado eacute um dos elementos centrais que

o historiador da ciecircncia Alexandre Koyreacute recorre para justificar e tornar inteligiacutevel a

nascente tecnologia da modernidade

De minha parte acredito que a histoacuteria ou melhor a preacute-histoacuteria da revoluccedilatildeo teacutecnica dos seacuteculos xvii e xviii confirma a concepccedilatildeo cartesiana de que foi em consequumlecircncia de uma conversatildeo da ἐπιστήμη [episteacuteme] na τέχνη [teacutekhne] que a maacutequina eoteacutecnica⁹ se transformou na maacutequina moderna (paleoteacutecnica) pois foi essa conversatildeo em outros termos foi a tecnologia nascente que atribuiu agrave

73

segunda aquilo que forma o seu caraacuteter proacuteprio e a distingue radicalmente da primeira ou seja nada mais do que a precisatildeo (koyreacute 1991 p 275)

⁹ Emprego a terminologia extremamente sugestiva do Sr Lewis Mumford Tech-nics and Civilisation 4ordf ed New York 1946 [nota em peacute de paacutegina do autor]

Em outra passagem o autor alerta para a imprecisatildeo do caacutelculo nos periacuteodos histoacute-

ricos anteriores

[] consideremos que o homem do Renascimento o homem da Idade Meacutedia (e a mesma coisa vale tambeacutem para o homem antigo) natildeo sabia calcular E natildeo estava habituado a fazecirc-lo Sabia sem duacutevida bastante bem11 jaacute que a ciecircncia antiga elaborou e desenvolveu os meacutetodos e os meios apropriados executar caacutelculos astronocircmicos mas natildeo sabia mdash12 jaacute que a ciecircncia antiga se preocupou pouco ou nada com isso mdash executar caacutelculos numeacutericos (koyreacute 1991 p 275)

11 Os astrocircnomos o sabiam 12 O comum dos mortais Mesmo as pessoas instruiacute-das [notas em peacute de paacutegina do autor]

Isso natildeo significa que Koyreacute natildeo valorize e natildeo compreenda a habilidade dos estu-

diosos e profissionais anteriores e a relevacircncia de seu trabalho em um periacuteodo em que

a teacutekhne (como vimos) tem componentes teacutecnicos e artiacutesticos mesclados Com plena

consciecircncia disso Koyreacute recorre a uma longa citaccedilatildeo do historiador Lucien Febvre acerca

das conquistas ateacute aquele momento que reproduzimos a seguir

Atualmente noacutes natildeo falamos ou falamos cada vez menos (e jaacute haacute algum tempo) da Noite da Idade Meacutedia Nem do Renascimento como um guerreiro vitorioso que dissipou as trevas para sempre Isso porque prevalecendo o bom senso natildeo poderiacuteamos continuar acreditando nessas obliteraccedilotildees totais de que nos falavam antigamente obliteraccedilotildees da curiosidade humana obliteraccedilotildees do espiacuterito de observaccedilatildeo e se preferirmos obliteraccedilatildeo de invenccedilatildeo Isso porque conside-ramos afinal que uma eacutepoca que teve arquitetos com a envergadura dos que conceberam e construiacuteram nossas grandes basiacutelicas romacircnticas Cluny Veacutezelay Saint-Sernin etc e nossas grandes catedrais goacuteticas Paris Chartres Amiens Reims Bourges e as poderosas fortalezas dos grandes barotildees Coucy Pierre-fonds Chacircteau-Gaillard com todos os problemas de geometria de mecacircnica de transporte de levantamento de materiais pesados de manutenccedilatildeo que seme-lhantes construccedilotildees supotildeem todo o tesouro de experiecircncias bem-sucedidas e de insucessos consignados que esse trabalho ao mesmo tempo exige e alimenta mdash a uma eacutepoca assim seria ridiacuteculo negar em bloco e sem discernimento o espiacuterito de observaccedilatildeo e o espiacuterito de inovaccedilatildeo Olhando com atenccedilatildeo os homens que

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inventaram ou reinventaram ou adotaram e implantaram em nossa civilizaccedilatildeo do Ocidente a atrelagem dos cavalos pelo peito a ferradura o estribo o botatildeo o moinho de vento e de aacutegua a plaina a buacutessola a poacutelvora para canhatildeo o papel a imprensa etc mdash esses homens bem que fizeram jus ao espiacuterito da invenccedilatildeo e da humanidade (febvre 1946 apud koyreacute 1991 p 274)

No entanto sua posiccedilatildeo eacute de defesa de um ideal em que a ciecircncia quantificada (diriacutea-

mos de inspiraccedilatildeo platocircnica) iraacute se impor sobre a teacutecnica e estabelecer o que ele define

como tecnologia ldquofazer a teoria da praacuteticardquo (koyre 1991 p 267) A figura 8 apresenta

a linha do tempo com a inclusatildeo do conceito de tecnologia proposto por Koyreacute e seu

aporte a partir da segunda metade do seacuteculo xvii para a teacutecnica com consequecircncias

revolucionaacuterias sobre a nascente induacutestria e seus derivados

Se avaliarmos a histoacuteria da ciecircncia tendo em conta particularmente autores que refor-

mularam essa disciplina ao longo do seacuteculo xx como Koyreacute (1982) Burtt (1983) e Koestler

(1989) podemos afirmar que a partir do seacuteculo xv a confianccedila nos aspectos quantitativos

em detrimento dos qualitativos cresce em todas as aacutereas do conhecimento com a busca e

seleccedilatildeo de elementos que demonstrem caracteriacutesticas universais numericamente calculaacute-

veis e aliadas agrave objetividade no que passou a ser conhecido como a mathesis universalis

Os meacutetodos derivados desse modo de explicar parte da realidade foram corroborados

pelo sucesso que as pioneiras ciecircncias naturais alcanccedilaram a partir do seacuteculo xvii com

a matematizaccedilatildeo de seus fundamentos Se tal proposta gnoseoloacutegica foi parcialmente

aceita como verdade porque funciona em seus desdobramentos cientiacuteficos tecnoloacutegicos

Figura 8 Linha do tempo indicando desdobramento do conceito grego de poacuteiesis (produccedilatildeo) em episteacuteme (ciecircncia) e teacutekhne (arte) Apoacutes a cisatildeo entre ciecircncia teacutecnica e arte a tecnologia eacute estabelecida como um elo de ligaccedilatildeo teoacutericopraacutetico entre ciecircncia e teacutecnica fonte autor

asymp aC dC 7 dC dCGreacutecia Ocidente

EPISTEME

TEacuteKHNE

CIEcircNCIA

TEacuteCNICA

ARTE

POacuteIESIS

TECNOLOGIA

75

e teacutecnicos com os inegaacuteveis resultados da industrializaccedilatildeo o avanccedilo e hipertrofia desse

empreendimento conhecido como cientificismo levou agrave extremos na tentativa de exportar

esse modelo bem-sucedido nas ciecircncias naturais para disciplinas de aacutereas humanas

No entanto parte dos estudiosos das ciecircncias humanas e sociais desde o seacuteculo xix

discorda dessas posiccedilotildees Subjacente a esse questionamento se encontram as diferenccedilas

entre diversos conceitos que foram reelaborados entre os quais estatildeo os de natureza fiacutesica

e natureza humana Como hoje sabemos esse segundo conceito estaacute longe de ser descrito

satisfatoriamente como o primeiro por um modelo quantitativo

Nesse periacuteodo ateacute a virada do seacuteculo xx Nietzsche eacute um dos que se destaca indo

aleacutem do papel criacutetico que a gnoseologia na figura de Kant6 teve em relaccedilatildeo agraves bases

das ciecircncias Como um precursor agraves interpelaccedilotildees de Heidegger ele se insurge contra a

hegemonia da racionalidade cientiacutefica e a questiona de forma radical desde o seu primei-

ro livro O nascimento da trageacutedia publicado em 1872 No prefaacutecio da segunda ediccedilatildeo

dessa obra que Nietzsche intitula de uma ldquotentativa de autocriacuteticardquo seu questionamento

carregado de um tom pessoal aponta para um argumento distinto das criacuteticas de base

epistemoloacutegica daquele periacuteodo Para este pensador soacute eacute possiacutevel compreender o ldquopro-

blemardquo da ciecircncia se nos situarmos fora de seus domiacutenios E mais importante cabe agrave arte

essa tarefa inquiridora

O que consegui entatildeo apreender algo terriacutevel e perigoso um problema com chi-fres natildeo necessariamente um touro por certo em todo caso um novo problema hoje eu diria que foi o problema da ciecircncia mesma mdash a ciecircncia entendida pela primeira vez como problemaacutetica como questionaacutevel Mas o livro em que se ex-travasava a minha coragem e a minha suspicaacutecia juvenis mdash que livro impossiacutevel teria de brotar de uma tarefa tatildeo contraacuteria agrave juventude Edificado a partir de puras vivecircncias proacuteprias prematuras e demasiado verdes que afloravam todas agrave soleira do comunicaacutevel colocado sobre o terreno da arte mdash pois o problema da ciecircncia natildeo pode ser reconhecido no terreno da ciecircncia mdash []

[] ante um olhar mais velho cem vezes mais exigente poreacutem de maneira alguma mais frio nem mais estranho agravequela tarefa de que este livro temeraacuterio ousou pela primeira vez aproximar-se mdash ver a ciecircncia com a oacuteptica do artista mas a arte com a da vida (nietzsche 2013 p 12-13)

6 Kant assumindo para si a tarefa de uma criacutetica gnoseoloacutegica dos extremos racionalista e empirista busca uma mediaccedilatildeo e nomeia suas obras principais como Criacutetica da razatildeo pura Criacutetica da razatildeo praacutetica e Criacutetica da faculdade de julgar Ao contraacuterio de Kant Nietzsche natildeo propotildee mediaccedilatildeo

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Uma reaccedilatildeo dessa magnitude que seraacute um ideaacuterio perseguido por Nietzsche nas suas

obras posteriores ateacute a sua morte em 1900 tem relevacircncia natildeo somente pela sua criacutetica agrave

ciecircncia em um contexto de crescente valorizaccedilatildeo do conhecimento fundado em meacutetodos

racionais mas tambeacutem porque nega uma hierarquia em que a arte estaria submetida agrave

ciecircncia e a eleva agrave condiccedilatildeo superior de instacircncia avaliadora da episteacuteme

Este giro conceitual em clara oposiccedilatildeo agrave ordenaccedilatildeo de inspiraccedilatildeo platocircnica influencia

opositores desde o iniacutecio do seacuteculo xx ateacute os dias de hoje natildeo somente na arte mas nos

demais campos que partilham elementos qualitativos com ela Mas a efervescecircncia cultural

e de constituiccedilatildeo de disciplinas do saber natildeo se reduz a uma simples divisatildeo entre dois

polos opostos O tom da criacutetica nietzschiana eacute sintoma de uma eacutepoca em que os valores

tradicionais e modelos estabelecidos sofrem questionamentos constantes com novas

teorias ideias e movimentos nas mais variadas aacutereas com as obras de Duchamp Freud

Piaget e Darwin provocando mudanccedilas radicais na arte e na ciecircncia influenciando a

cultura e atingindo ateacute a fiacutesica que avanccedilava com estabilidade e linearidade Por exemplo

algumas concepccedilotildees de Plank e Einstein publicadas ainda na primeira deacutecada do seacuteculo

xx comprovam quebras de paradigma no cerne de ciecircncias ldquodurasrdquo Tais mudanccedilas aliadas

agrave efervescecircncia cultural refletem como veremos com Eco no capiacutetulo 4 naquilo que este

autor nomeia de ldquometaacutefora epistemoloacutegicardquo em uma circularidade que retorna agrave arte Essas

inter-relaccedilotildees atravessam o seacuteculo xx e se ampliam Assim uma visatildeo natildeo hierarquizada

do saber continua a ser um modo criacutetico no sentido nietzschiano de assumir a crescente

pluralidade de aacutereas como um valor Rafael Cardoso adota este preceito no livro Design

para um mundo complexo Como historiador da arte e do design ele insiste na defesa da

equidade entre os campos

Arte eacute um meio de acesso ao desconhecido em peacute de igualdade com a ciecircncia a filosofia a religiatildeo mdash enfim os poucos caminhos que o ser humano encon-trou para relacionar seu interior com o universo que o cerca mdash e nesse sentido design eacute uma categoria subordinada mais agrave arte que aos outros trecircs citados (cardoso 2016 p 246)

Devemos atentar para a questatildeo de que mesmo defendendo a igualdade entre arte e

ciecircncia Cardoso natildeo escapa de manter-se adepto a uma hierarquia onde o design em certo

sentido subordina-se agrave arte Beat Schneider outro historiador do design aparentemente

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se aproxima da declaraccedilatildeo de Cardoso acerca da submissatildeo do design agrave arte No entanto

Schneider natildeo afirma como Cardoso que compreende o design como um campo su-

bordinado agrave arte mas de um ponto de vista mais descritivo do que prescritivo considera

com inflexatildeo criacutetica que o design ldquoentendeu-se como subcategoria da disciplina arterdquo

Examinemos a afirmaccedilatildeo de Schneider contextualizada

De uma perspectiva histoacuterica podemos encontrar uma razatildeo para o impedimento da discussatildeo teoacuterica no ocircnus artiacutestico presente no autoentendimento do design O design entendeu-se como subcategoria da disciplina arte e natildeo como disciplina autocircnoma e deixou com excessiva frequecircncia a teoria e o registro histoacuterico a cargo da ciecircncia e da histoacuteria da arte Uma tradiccedilatildeo forte e ateacute agora dominante na histoacuteria do design desde a industrializaccedilatildeo ateacute a atualidade eacute marcada pela motivaccedilatildeo artiacutestica pela inspiraccedilatildeo artiacutestica para um design expressivo Essa tradiccedilatildeo se manifesta na tendecircncia a fetichizar a proacutepria praacutetica como artiacutestica e desobrigar-se agrave argumentaccedilatildeo racional e cultivar a aura do design de autor Nesse contexto eacute recorrente o mito do ldquodesigner-artistardquo criativo que com seu

ldquobomrdquo design organiza as coisas do mundo (schneider 2010 p 260)

A posiccedilatildeo de Cardoso inclina-se claramente para a defesa da arte como um ldquocaminhordquo

que permite ao homem se relacionar com o universo e neste sentido o autor justifica a

sua relevacircncia para a disciplina do design mais do que a ciecircncia a filosofia e a religiatildeo

Por outro lado Schneider entende de modo negativo certa influecircncia da arte sobre o

design por sua inspiraccedilatildeo e fetichizaccedilatildeo da praacutetica deste campo pois segundo ele tende

a reduzir o compromisso com a ldquodiscussatildeo teoacutericarsquo e com a ldquoargumentaccedilatildeo racionalrdquo

Indo aleacutem das diferenccedilas entre as posiccedilotildees desses dois autores que satildeo relevantes para

a compreensatildeo das nuances nas relaccedilotildees entre os campos na atualidade devemos estar

atentos ao questionamento sobre a real necessidade de uma hierarquizaccedilatildeo e da consta-

taccedilatildeo de uma categorizaccedilatildeo em niacuteveis que estabelece a dependecircncia entre aacutereas do saber

As abordagens de Cardoso e Schneider nos fazem pensar que o proacuteprio Nietzsche mdash ao

colocar a arte como o lugar e a instacircncia para uma criacutetica procedente da ciecircncia mdash talvez

natildeo deixe de refletir dentro de um modelo hieraacuterquico e de dependecircncia entre campos

De qualquer modo a questatildeo natildeo nos parece simples Em oposiccedilatildeo agrave ideia de depen-

decircncia defender a autonomia pode conduzir agrave incongruecircncias Isso porque a definiccedilatildeo

de autonomia (em seu sentido originaacuterio de ser governado por suas proacuteprias leis e deter-

minaccedilotildees) pressupotildee separaccedilatildeo Entatildeo como pensar a ideia de independecircncia sem a sua

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contraparte de ruptura Em outras palavras eacute possiacutevel garantir autonomia a cada uma

dessas disciplinas e ao mesmo tempo ultrapassar ou pelo menos mitigar o modelo de cisatildeo

que existe entre elas Apesar das dificuldades nossa aposta eacute que sim tendo em conta que

os elos de ligaccedilatildeo jaacute existem vecircm do passado e satildeo os pontos comuns agrave ciecircncia e agrave teacutecnica

que se conectam agrave arte e ao design

23 Design entre ciecircncia teacutecnica e arte

Natildeo acreditamos que seja possiacutevel retornar a uma compreensatildeo da realidade como um coacutesmos

harmocircnico em que cada ramo do saber esteja intimamente relacionado aos demais e natildeo

hierarquizados como na antiguidade preacute-platocircnica Mas eacute importante ter esse referencial

em mente para pensarmos duas espeacutecies de dificuldades com as quais precisamos lidar na

contemporaneidade Uma inerente agrave fragmentaccedilatildeo que enfrentamos no acircmbito geral da

cultura e do saber que se estabelece de forma acentuada desde o advento da modernidade

Outra consequecircncia da hierarquizaccedilatildeo do conhecimento que afeta diversas aacutereas mas

diretamente duas de nosso interesse design e arte Diante disso Tomaacutes Maldonado se

apresenta como um dos criacuteticos importantes para nossa anaacutelise pois une seus argumen-

tos provenientes de conhecimentos no design e na arte7 com um interesse na filosofia da

ciecircncia e da teacutecnica questionando a tradiccedilatildeo idealista proveniente de Platatildeo Conforme

ele afirma no capitulo Pensar a teacutecnica hoje do livro Cultura sociedade e teacutecnica

Vivemos atualmente em um momento particularmente inovador da longa (e atribulada) histoacuteria da reflexatildeo sobre a teacutecnica Constata-se nas uacuteltimas deacutecadas uma tendecircncia cada vez maior de afastamento daquelas interpretaccedilotildees com vieacutes idealista que sempre dificultaram as tentativas de se fazer reflexatildeo sobre a teacutecnica

[] Basta pensar por exemplo na contribuiccedilatildeo de E Zschimmer (1914) e F Dessauer (1927 e 1959) dois engenheiros-cientistas-filoacutesofos de filiaccedilatildeo hege-liana e kantiana respectivamente [] esses estudiosos estavam convencidos de que as respostas agraves questotildees levantadas pela teacutecnica deveriam ser buscadas

7 Maldonado formou-se pela Academia de Belas Artes de Buenos Aires em 1939 e participou do movi-mento de Arte Concreta da Argentina entre os anos de 1943 e 1954 antes de se tornar professor de design e reitor na Alemanha na escola de Ulm

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dentro da proacutepria teacutecnica A teacutecnica seria uma realidade autocircnoma um sistema fechado que se desenvolve e se autoexplicaria sem ter de recorrer a fatores exoacute-genos Poder-se-ia dizer mdash utilizando um termo agora muito na moda mdash que a teacutecnica eacute autopoieacutetica

Dessauer deixa subentendido mdash platocircnica e aristotelicamente mdash que as formas dos objetos teacutecnicos jaacute estariam presentes em um cataacutelogo ideal das formas preexistentes E que a teacutecnica natildeo faria outra coisa a natildeo ser deixaacute-las expliacutecitas (maldonado 2012 p 153)

Trecircs pontos interligados na citaccedilatildeo anterior devem ser destacados Primeiro a criacutetica

de Maldonado estaacute dirigida agraves interpretaccedilotildees que se apoiam no idealismo Segundo a

delimitaccedilatildeo da forma mais atual desse idealismo estaacute vinculada ao conceito de autopoiese

ou autoproduccedilatildeo Terceiro (promovendo a conexatildeo dos dois primeiros pontos) este autor

faz uma clara remissatildeo dessa concepccedilatildeo de teacutecnica ao ideaacuterio platocircnico ao relacionaacute-la

com ldquorealidade autocircnomardquo e ldquocataacutelogo ideal das formas preexistentesrdquo

Natildeo haacute duacutevida da criacutetica direta de Maldonado agrave posiccedilatildeo platocircnica Mas devemos fazer

duas ressalvas A primeira eacute que (como vimos na seccedilatildeo 1 deste capiacutetulo) na antiguidade

o conceito de poacuteiesis na sua especificaccedilatildeo de existecircncia espontacircnea eacute autoproduccedilatildeo e estaacute

intrinsecamente associado agrave natureza (phyacutesis) Mas o mesmo natildeo ocorre na sua especifi-

caccedilatildeo enquanto episteacuteme ou teacutekhne No entanto seguindo as palavras de Maldonado que

fala de ldquoautopoieacuteticardquo afirmando ser um termo da moda podemos supor que talvez ele se

refira agrave ldquoautopoieserdquo palavra cunhada pelo bioacutelogo e epistemoacutelogo Humberto Matura-

na na deacutecada de 1970 para caracterizar a capacidade dos seres vivos de produzirem a si

proacuteprios e que ficou em evidecircncia com os debates em torno da relevacircncia dos sistemas8

na compreensatildeo dos fenocircmenos bioloacutegicos Apesar do neologismo autopoiese tambeacutem

remeter agrave phyacutesis grega tanto no conceito quanto na etimologia e raiz da palavra poiese se

Maldonado estaacute apenas se apropriando de sua designaccedilatildeo contemporacircnea relacionada agrave

biologia e aplicando-a a uma concepccedilatildeo de teacutecnica entendida como endoacutegena a ressalva

pode ser mitigada

8 Conforme afirmam Humberto Maturana e Francisco Varela no livro De maacutequinas y seres vivos au-topoiesis la organizacioacuten de lo vivo sobre a delimitaccedilatildeo do conceito de autopoiese ldquoA compreensatildeo do caraacuteter sistecircmico dos fenocircmenos que envolvem a vivecircncia possibilitada pela teoria da autopoiese permite explicar a origem dos seres vivos na terra ou em qualquer parte do cosmo como o surgi-mento espontacircneo de um ser vivo como entidade discreta assim como ocorre a dinacircmica molecular autopoieacutetica como um fenocircmeno sistecircmicordquo (maturana varela 2003 p 24) Traduccedilatildeo nossa

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A segunda ressalva diz respeito a inclusatildeo do nome de Aristoacuteteles alinhando-o com

o pensamento platocircnico Como veremos no capiacutetulo 4 Aristoacuteteles se opotildee frontalmente

a um mundo de formas ideais preexistentes ou a um ldquocataacutelogordquo Essa eacute uma das posiccedilotildees

fundamentais de Aristoacuteteles que o potildee historicamente como o primeiro a discordar de

Platatildeo e com argumentos suficientes para justificar nossa escolha de colocaacute-lo no centro

da discussatildeo sobre a criacutetica agrave hierarquia do conhecimento No entanto essa restriccedilatildeo natildeo

invalida a posiccedilatildeo tambeacutem criacutetica de Maldonado em relaccedilatildeo a uma concepccedilatildeo de teacutecnica

entendida como ldquoum sistema fechadordquo Mas eacute importante tambeacutem atentar que mesmo nas

concepccedilotildees de tendecircncia ldquoplatocircnicardquo com ldquorealidades autocircnomasrdquo a teacutecnica compreen-

dida como um campo separado da ciecircncia estaacute cada vez mais atrelada e hierarquicamente

submetida a uma teoria que a fundamenta e que se efetiva atraveacutes da tecnologia como

vimos na definiccedilatildeo de Koyreacute (cf p 72-73)

Aleacutem de Maldonado identificamos a disposiccedilatildeo de outros pesquisadores em buscar

elementos comuns e a integraccedilatildeo de fenocircmenos em campos distintos na forma de novas

teorias ou princiacutepios organizadores alguns defendendo somente as conexotildees de seus

objetos de estudo e outros apostando em um caraacuteter holiacutestico ou totalizante de seus

fundamentos Analisemos em recorte como esse processo vem ocorrendo

231 Afastamentos aproximaccedilotildees e interaccedilotildees

De acordo com o graacutefico da figura 1 (cf capiacutetulo 1 p 24) o ciacuterculo da epistemologia

incorpora ciecircncia e teacutecnica como seus objetos de estudo Deste modo selecionamos um

grupo de epistemoacutelogos que se tornaram referecircncia para a compreensatildeo das relaccedilotildees dessas

duas aacutereas para subsidiar nossa anaacutelise das posiccedilotildees de Maldonado Bonsiepe Schneider

e Cardoso contextualizando ciecircncia e teacutecnica com o design

O seacuteculo xx eacute proliacutefico em obras como as de Edwin A Burtt (1983) e Alexandre

Koyreacute (1982) O conhecimento acumulado a partir desses autores que se especializaram

em histoacuteria da ciecircncia influenciou mais de uma geraccedilatildeo de pesquisadores como Arthur

Koestler (1989) e Thomas S Kuhn (1987) contribuindo inclusive para os ceacutelebres

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debates desse uacuteltimo contra Karl R Popper (1972 1975 1993) e suas posiccedilotildees Seus es-

tudos compotildeem um quadro rico e heterogecircneo calcado na histoacuteria dessas ciecircncias e de

seus desdobramentos para a teacutecnica demonstrando a construccedilatildeo de relaccedilotildees e avanccedilos

pragmaacuteticos jaacute centenaacuterios Tais relaccedilotildees entre as teorias e as suas aplicaccedilotildees interessam

a vaacuterios campos inclusive ao design Os trabalhos de Tomaacutes Maldonado como vimos

unem esses temas e autores explorando a histoacuteria da ciecircncia e da teacutecnica na busca por

compreensatildeo de aspectos intriacutensecos ao design Eacute o que se pode constatar em Os oacuteculos

levados a seacuterio onde os avanccedilos na estrutura da teacutecnica e da funcionalidade derivam dos

fundamentos de teorias das ciecircncias naturais

As lentes abriram o caminho para o desenvolvimento das primeiras lunetas e os primeiros microscoacutepios compostos Prenunciaram ainda o advento da oacutetica fina e de altiacutessima precisatildeo ou seja daquele conjunto de instrumentos e de aparelhos que serviram de alicerce para a poderosa revoluccedilatildeo que nos levou do lsquomundo da aproximaccedilatildeo ao universo da precisatildeorsquo para utilizar a feliz expressatildeo de A Koyreacute (1961) (maldonado 2012 p 178)

Neste capiacutetulo exemplar do livro Cultura sociedade e teacutecnica Maldonado discursa natildeo

somente como designer mas tambeacutem como epistemoacutelogo e busca explicar a invenccedilatildeo

de objetos que incorporam design como os oacuteculos rastreando sua origem na histoacuteria

das ciecircncias e da teacutecnica Com os subsiacutedios teoacutericos de Alexandre Koyreacute argumenta de

modo analiacutetico em favor de uma aproximaccedilatildeo dessas duas aacutereas E do mesmo modo no

capiacutetulo Pensar a teacutecnica hoje Maldonado reforccedila a atenccedilatildeo concentrada na atualidade

no acircmbito da ciecircncia e da teacutecnica agrave discussatildeo dos seus fundamentos

Trata-se da velha questatildeo da atualidade ou natildeo das estrateacutegias cognitivas que desde F Bacon propiciaram alcanccedilar formidaacuteveis resultados nos campos da descoberta cientiacutefica e da inovaccedilatildeo tecnoloacutegica Ela permanece no centro do debate entre os filoacutesofos e cientistas Eacute cada vez menor o nuacutemero daqueles que atribuem uma validade universal e uma objetividade absoluta agrave metodologia da pesquisa tecnociecircntiacutefica Outros a colocam em discussatildeo em nome do pluralismo e do relativismo outros ainda levantam a hipoacutetese de uma mediaccedilatildeo entre essas duas posiccedilotildees extremas ou entatildeo rejeitam a ambas Eacute um debate que no fundo refere-se aos fundamentos loacutegico-epistemoloacutegicos do empreendimento cientiacutefico (maldonado 2012 p 155)

82

Apesar de natildeo citar neste ponto quais autores estatildeo no centro deste debate Maldonado

identifica uma reduccedilatildeo no nuacutemero de estudiosos que privilegiam conceitos (como vi-

mos anteriormente) caros agrave ciecircncia ortodoxa quantitativa como ldquovalidade universalrdquo e

ldquoobjetividade absolutardquo Tal percepccedilatildeo de Maldonado eacute sintoma de seu posicionamento

atento a uma flexibilizaccedilatildeo de princiacutepios que podem conduzir a uma relativizaccedilatildeo de

elementos riacutegidos do platonismo E supomos que seu entendimento da conexatildeo entre

ciecircncia e teacutecnica eacute forte o bastante para levaacute-lo agrave fusatildeo desses dois conceitos no neologismo

ldquotecnocientiacuteficardquo Mas poderiacuteamos tambeacutem supor um sinal de hierarquia ou pelo menos

de causa e efeito preservado na descriccedilatildeo de Maldonado ao falar dos ldquoformidaacuteveis resul-

tadosrdquo ordenando em primeiro lugar o campo da ldquodescoberta cientiacuteficardquo e em segundo o

da ldquoinovaccedilatildeo tecnoloacutegicardquo Depois de seacuteculos de confianccedila em tal ordenaccedilatildeo faz parte ateacute

do senso comum9 considerar ciecircncia em primeiro e teacutecnica em segundo o que se reflete

tambeacutem na forma como escrevemos Mas Maldonado tem consciecircncia da complexidade

das relaccedilotildees entre ciecircncia e teacutecnica Tanto que mais uma vez no seu capiacutetulo sobre os

oacuteculos destaca a importacircncia de reconsiderarmos a questatildeo

Novamente se propotildee a velha ideia que satildeo os doutos mdash e natildeo os praacuteticos mdash os principais protagonistas da inovaccedilatildeo tecnoloacutegica Essa ideia estaacute no centro das controveacutersias de muitas invenccedilotildees Quem foi por exemplo o inventor da maacute-quina a vapor o douto Denis Papin ou o praacutetico Thomas Newcomen O douto Joseph Black ou o douto-praacutetico James Watt (maldonado 2012 p 182)

Acerca dessa polecircmica que Maldonado insere no cerne da causalidade (2012 p

176-177) Koyreacute diria que natildeo importa quem foi o autor se um ldquodoutordquo ou um ldquopraacuteticordquo

mas que qualquer dos dois protagonistas precisou necessariamente de fundamentaccedilatildeo

teoacuterica para guiar seu projeto ldquotecnoloacutegicordquo dado o niacutevel de complexidade deste tipo de

invenccedilatildeo Com relaccedilatildeo a Maldonado podemos afirmar que dessa complexidade pode

derivar o ldquopluralismordquo de que ele nos fala associando-o a busca por elementos comuns e

relaccedilotildees entre os campos (rotulada sob certas circunstacircncias de interdisciplinaridade) tatildeo

9 Como afirma Koyreacute em nota do seu consagrado ensaio ldquoDo mundo do lsquomais-ou-menosrsquo ao universo da precisatildeordquo reverenciado por Maldonado ldquoO senso comum natildeo eacute alguma coisa de absolutamente constante noacutes natildeo examinamos mais a aboacutebada celeste Da mesma forma o pensamenteo teacutecnico tradicional as regras dos ofiacutecios a τέχνη [teacutekhne] pode absorver mdash e o fez no decorrer da histoacuteria mdash elementos do saber cientiacuteficordquo (koyreacute 1991 p 287)

83

caracteriacutestica de nossa eacutepoca e que pode ser incorporada tambeacutem aos objetivos teoacutericos

do design Em suas palavras

Torna-se cada vez mais claro que somente seraacute possiacutevel desenvolver uma histoacuteria da teacutecnica mais proacutexima aos nossos problemas atuais com a cola-boraccedilatildeo dos filoacutesofos historiadores etnoacutelogos engenheiros economistas psicoacutelogos e socioacutelogos [] Eacute improvaacutevel que se possa estudar a teacutecnica sem recorrer a tal cooperaccedilatildeo interdisciplinar Cada estudioso deveria procurar assimilar o saber oriundo de outras disciplinas mesmo permanecendo fiel agraves particularidades do seu proacuteprio campo de pesquisa Esse saber seria capaz de tornar o seu trabalho menos parcial e portanto mais verdadeiro e concreto (maldonado 2012 p 159)

Reflexotildees dessa natureza indicam que as divisotildees que ocorreram na ciecircncia e na teacutecni-

ca principalmente a partir da eacutepoca moderna tecircm um movimento em direccedilatildeo contraacuteria

ou de refluxo na busca por um entendimento integral dos fenocircmenos O pensamento

sistecircmico defendido por entre outros Rafael Cardoso eacute mais uma prova do interesse

de pesquisadores do design em avanccedilar na seara das conexotildees entre os campos Partindo

da mesma linhagem de epistemoacutelogos com a qual Maldonado dialoga Cardoso explora

um caminho diverso e se insurge contra uma concepccedilatildeo do design enquanto ciecircncia de

cunho analiacutetico

A maior e mais importante contribuiccedilatildeo que o design tem a fazer para equacionar os desafios do nosso mundo complexo eacute o pensamento sistecircmico Poucas aacutereas estatildeo habituadas a considerar os problemas de modo tatildeo integrado e comunicante O procedimento metodoloacutegico baacutesico em qualquer atividade cientiacutefica eacute recor-tar e fracionar o problema para constituir uma situaccedilatildeo experimental passiacutevel de averiguaccedilatildeo Esse meacutetodo funciona extremamente bem para uma seacuterie de anaacutelises mas eacute de pouca valia para lidar com a elaboraccedilatildeo de grandes sistemas complexos sua manutenccedilatildeo e planejamento Quando os problemas atravessam saberes e disciplinas por exemplo eacute limitado o que cada uma delas pode fazer para resolver o todo Assim como outras aacutereas projetuais mdash em especial a enge-nharia e a arquitetura mdash o design parte de uma abordagem diferente Em vez de fracionar o problema para reduzir as variaacuteveis o designer visa gerar alternativas cada uma das quais tende a ser uacutenica e totalizante Sua meta eacute viabilizar uma soluccedilatildeo e natildeo garantir a reprodutibilidade do experimento mdash construccedilatildeo e natildeo desconstruccedilatildeo ldquofactibilidaderdquo e natildeo ldquofalseabilidaderdquo partidos e funccedilotildees em vez de conjeturas e refutaccedilotildees (cardoso 2016 p 243-244)

84

A desvinculaccedilatildeo de Cardoso de uma epistemologia apropriada agraves ciecircncias naturais

segundo ele natildeo adequada ao design natildeo apresenta na citaccedilatildeo anterior um autor expliacutecito

(como o faz Maldonado com Koyreacute) talvez por uma questatildeo de estilo Mas eacute possiacutevel

identificar que Cardoso estaacute se referindo a Popper ao fazer uso dos termos ldquofalseabilidaderdquo

e ldquoconjeturas e refutaccedilotildeesrdquo respectivamente um conceito e um tiacutetulo de uma das obras

mais influentes desse epistemoacutelogo E portanto ao propor a siacutentese e a factibilidade ao

inveacutes da anaacutelise e falseabilidade reitera sua posiccedilatildeo de afastar o design de uma concepccedilatildeo

de ciecircncia stricto sensu Tal posiccedilatildeo faz sentido se o design recorre frequentemente ao

argumento de que eacute um campo com fronteiras pouco definidas e que trabalha transver-

salmente em conjunto com outras disciplinas

Beat Schneider a propoacutesito dessas fronteiras e da complexidade dos campos tambeacutem

recomenda a interdisciplinaridade

O pensamento e a reflexatildeo satildeo uma parte do processo de criaccedilatildeo Deles pode partir a teoria mdash no sentido de uma reflexividade que problematiza o processo de criaccedilatildeo Hoje essa reflexividade faz-se mais necessaacuteria do que nunca pois tanto a praacutetica social e teacutecnica quanto a praacutetica do design tornaram-se muito complexas O design precisa de uma teoria que corresponda agrave sua complexi-dade Essa complexidade do design estaacute em seu objeto e em sua constituiccedilatildeo interdisciplinar e transdisciplinar Uma rede de muitas disciplinas cientiacuteficas das aacutereas das ciecircncias humanas sociais e da engenharia disciplinas da induacutestria comeacutercio administraccedilatildeo e cultura bem como a complexa multiplicidade de usuaacuterios participam do processo de design e da resoluccedilatildeo comum de tarefas (schneider 2010 p 266)

Compartilhando com Cardoso a essecircncia projetual do design Schneider no entanto

considera este campo como ciecircncia Depois de haver nomeado o ldquodesign como ciecircncia

jovemrdquo (schneider 2010 p 193) este autor discorre sobre as atividade deste campo

ldquoSua tarefa eacute contribuir enquanto ciecircncia para tornar nosso complexo mundo visiacutevel e

legiacutevel Ela se situa no contexto normativo da tradiccedilatildeo iluminista da alfabetizaccedilatildeo e da

democratizaccedilatildeo do saber e do conhecimentordquo (schneider 2010 p 266)

Bonsiepe tambeacutem resguarda o mesmo acircmbito projetual que Cardoso e Schneider

e almeja uma interaccedilatildeo entre design entendido como projeto e ciecircncias enquanto

conhecimento

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Enquanto as ciecircncias enxergam o mundo sob a perspectiva da cogniccedilatildeo as disciplinas de design o enxergam sob a perspectiva do projeto Essas duas perspectivas diferentes que oxalaacute no futuro acabem se fundindo Estou con-vencido de que no futuro haveraacute uma interaccedilatildeo frutiacutefera entre o mundo das ciecircncias e o mundo do projeto que hoje se daacute no maacuteximo esporadicamente (bonsiepe 2011 p 17)

Mas eacute importante atentar que tal interaccedilatildeo de perspectivas na concepccedilatildeo de Bonsiepe

natildeo significa transformar o design em ciecircncia

A atitude de colocar o projeto relacionado com as ciecircncias natildeo deve ser in-terpretada como um postulado por um design cientiacutefico ou para transformar design em ciecircncia Seria grotesco querer projetar um cinzeiro baseando-se em conhecimentos cientiacuteficos Deveria ser criada uma correspondecircncia entre complexidade temaacutetica e metodologia O design deve recorrer a conhecimentos cientiacuteficos quando a temaacutetica o exige Por exemplo quando se quer projetar uma nova embalagem para leite que minimize os impactos ecoloacutegicos (ecological footprints) (bonsiepe 2011 p 17)

A posiccedilatildeo assumida por Bonsiepe tem aspectos que nos atraem pois tambeacutem natildeo

consideramos um problema recorrer a conhecimentos cientiacuteficos de outras aacutereas Pelo

contraacuterio esse procedimento de natildeo reinventar a roda eacute cada vez mais comum em dis-

ciplinas que ampliam sua atuaccedilatildeo em novos territoacuterios Mas como veremos no capiacutetulo

3 natildeo ser ciecircncia natildeo implica que o design natildeo se caracterize enquanto campo de conhe-

cimento O atributo da cogniccedilatildeo natildeo eacute exclusividade da ciecircncia

Portanto acreditamos que quando Bonsiepe afirma que os dois campos enxergam o

mundo com perspectivas diferentes ele natildeo estabelece categorias estanques o que para noacutes

eacute essencial na medida em que natildeo compreendemos o design isolado ou enrijecido em suas

fronteiras com outras aacutereas sejam elas cientiacuteficas teacutecnicas ou artiacutesticas Diriacuteamos que o

expressivo uso por Bonsiepe da palavra ldquoenxergarrdquo une ciecircncia e design em atividades

de caracteriacutesticas comuns em que a ldquoperspectivardquo apenas direciona a visatildeo para aspectos

distintos de uma mesma realidade Se for assim o liame proposto por esse autor para as

concepccedilotildees de ciecircncia e design retoma de forma elegante o legado conceitual de teoria

em sua origem na Antiguidade Como evidenciamos (cf capiacutetulo 1 p 61) teoria (θεωρία)

denota accedilatildeo de ver de observar contemplar examinar e especular E sua relaccedilatildeo com o

olhar aproxima-a de oida (οἶδα) significando ao mesmo tempo ver e compreender

86

232 Artifiacutecios fronteiras moacuteveis e pontes

Diante do quadro construiacutedo na subseccedilatildeo anterior eacute necessaacuteria uma anaacutelise em retros-

pecto cotejando as posiccedilotildees dos quatro autores e implicando-as com a nova etapa Ini-

ciando por Bonsiepe estaacute claro seu entendimento a respeito da distinccedilatildeo entre ciecircncia e

design assim como sua expectativa de uma futura interaccedilatildeo efetiva entre esses campos

Maldonado nos escritos analisados apesar de natildeo ser tatildeo expliacutecito a esse respeito tem um

crivo epistemoloacutegico semelhante ao de Bonsiepe Mas a posiccedilatildeo de Bonsiepe se conecta

com outro aspecto do seu pensamento que exploramos anteriormente (cf capiacutetulo 1 p

42) sendo importante retomar neste momento Naquele ponto ele distingue tambeacutem

categoricamente design de arte Bonsiepe (para justificar sua adesatildeo agrave distinccedilatildeo entre

esses campos) poderia estabelecer como territoacuterios de argumentaccedilatildeo a ciecircncia ou o de-

sign como faz Schneider ou ateacute mesmo a arte caso estivesse em sintonia com uma visatildeo

por exemplo Nietzschiana No entanto como vimos esse autor firma a filosofia como a

disciplina capaz de explicitar essa distinccedilatildeo o que confirma sua atuaccedilatildeo coerente como

epistemoacutelogo e designer e natildeo como cientista

Schneider por seu lado ao entender o design como ciecircncia e a arte como um ldquoocircnusrdquo

para esse campo argumenta ora como um cientista que precisa se assegurar de fundamentos

estabelecidos para o design (recentemente estabelecidos uma vez que para ele este campo

eacute ldquociecircncia jovemrdquo) ora como epistemoacutelogo em busca de fundamentos Assim sua criacutetica

agrave falta de fundamentos do design fragiliza a sua defesa dessa disciplina enquanto ciecircncia

A questatildeo do modo como a encaminha Schneider leva a um ciacuterculo vicioso pois de um

ponto de vista epistemoloacutegico e portanto de fundamentaccedilatildeo de um campo cientiacutefico

para se imputar o tiacutetulo de ciecircncia a uma disciplina eacute necessaacuterio que a mesma jaacute tenha

posse sobre os alicerces especiacuteficos de tal categoria de conhecimento

Quanto a Cardoso pelas nuances de seu pensamento e o entrelaccedilamento de temas

que nos interessam sua posiccedilatildeo precisa ser investigada com mais detalhes Sua pesquisa

chama a nossa atenccedilatildeo natildeo somente por suas reflexotildees de caraacuteter epistemoloacutegico que no

nosso entendimento mesmo implicitamente questionam de modo mais radical a hierar-

quia e a ruptura de inspiraccedilatildeo platocircnica mas tambeacutem porque como veremos avanccedila para

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o territoacuterio da ontologia buscando fundamentos para o design Aliado a esse enfoque

Cardoso se liga ao pensamento de Flusser com acordos e desacordos entre ambos que

fornecem a mateacuteria prima tanto para a subseccedilatildeo atual quanto para a uacuteltima deste capiacutetulo

As ligaccedilotildees entre o pensamento de Rafael Cardoso e o de Vileacutem Flusser natildeo se res-

tringem somente aos temas que esses dois autores abordam Cardoso interessado na obra

flusseriana organizou e escreveu a Introduccedilatildeo do livro ldquoO mundo codificado por uma

filosofia do design e da comunicaccedilatildeordquo de Flusser (2007) cujo subtiacutetulo sinaliza para a

relevacircncia e a singularidade dessa obra em teoria e reflexatildeo filosoacutefica no acircmbito do design

e da comunicaccedilatildeo Em tom de advertecircncia Cardoso afirma

Flusser eacute um pensador de causas e natildeo de comportamentos por conseguinte ele natildeo hesita em ultrapassar as limitaccedilotildees metodoloacutegicas necessaacuterias ao pensa-mento de cunho histoacuterico Para aacutereas marcadas desde sempre pelo predomiacutenio de abordagens e pressupostos advindos das ciecircncias sociais mdash como eacute o caso tanto da comunicaccedilatildeo quanto do design mdash o efeito eacute surpreendente e enriquecedor Passado o susto inicial eacute melhor dizer visto que o autor eacute afeito a generalizaccedilotildees e aproximaccedilotildees capazes de provocar ataques de apoplexia em qualquer cientista social ortodoxo (flusser 2007 p 11)

Se essas caracteriacutesticas dos textos flusserianos que aparecem ateacute certo ponto disfarccedila-

das com as provocaccedilotildees de seu autor perdem na contextualizaccedilatildeo histoacuterica e socioloacutegica

ganham ao aprofundarem-se nas matrizes estruturantes do pensamento ocidental ainda

preservadas na atualidade que eacute o foco de nosso interesse Assim concordando com

Cardoso essa transposiccedilatildeo de limites tem seu valor genuiacuteno enquanto reflexatildeo filosoacutefica

por voltar-se para as causas Para o nosso propoacutesito abordaremos especificamente dois

pequenos escritos de Flusser reunidos como capiacutetulos do livro O mundo codificado mas jaacute

publicados anteriormente como ensaios separados ldquoSobre a palavra designrdquo e ldquoA alavanca

contra-atacardquo Apesar do peculiar tiacutetulo do segundo texto natildeo explicitar o seu propoacutesito

como veremos as duas investigaccedilotildees tratam de temas correlacionados

Sobre a palavra design eacute um escrito de apenas seis paacuteginas mas seminal Como carac-

teriacutestico das produccedilotildees de filoacutelogos e filoacutesofos o texto comeccedila com definiccedilotildees de palavras

e conceitos indo ateacute suas origens para assim construir argumentos

Em inglecircs a palavra design funciona como substantivo e tambeacutem como verbo (circunstacircncia que caracteriza muito bem o espiacuterito da liacutengua inglesa) Como

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substantivo significa entre outras coisas ldquopropoacutesitordquo ldquoplanordquo ldquointenccedilatildeordquo ldquometardquo ldquoesquema malignordquo ldquoconspiraccedilatildeordquo ldquoformardquo ldquoestrutura baacutesicardquo e todos esses e outros significados estatildeo relacionados a ldquoastuacuteciardquo e a ldquofrauderdquo Na situaccedilatildeo de verbo mdash to design mdash significa entre outras coisas ldquotramar algordquo ldquosimularrdquo ldquopro-jetarrsquorsquo ldquoesquematizarrdquo ldquoconfigurarrdquo ldquoproceder de modo estrateacutegicordquo (flusser 2007 p 181)

Flusser apresenta essas acepccedilotildees com a clara intenccedilatildeo de reforccedilar os sentidos do con-

ceito de astuacutecia fraude simulaccedilatildeo e trama que eacute o centro de seu interesse Esse propoacutesito

eacute confirmado quando ele tambeacutem natildeo deixa duacutevidas impondo o mesmo crivo ao definir

a atuaccedilatildeo do designer

A palavra design ocorre em um contexto de astuacutecias e fraudes O designer eacute portanto um conspirador malicioso que se dedica a engendrar armadilhas Outros termos tambeacutem bastante significativos aparecem nesse contexto como por exemplo as palavras ldquomecacircnicardquo e ldquomaacutequinardquo Em grego mechos designa um mecanismo que tem por objeto enganar uma armadilha e o cavalo de Troia eacute um exemplo disso Ulisses eacute chamado polymechanikos o que traduziacuteamos no coleacutegio como ldquoo astuciosordquo (der Listenreiche) (flusser 2007 p 182)

Comparada aos demais autores que investigamos ateacute o momento essa eacute uma anaacutelise

e posiccedilatildeo incomum10 Flusser transita do conceito de design para o de designer e deste

para o de mecacircnica e de maacutequina conectando seus significados com o que ele entende

ser sua essecircncia comum a astuacutecia Indo ateacute a origem dessa palavra ele a associa a Odisseus

(ou Ulisses como ficou conhecido no Ocidente) heroacutei grego e personagem da Odisseia

construiacutedo por Homero para encarnar um caraacuteter uacutenico com o epiacuteteto de o astuto

Neste ponto importa compreender esse elemento fundamental na dinacircmica do texto

flusseriano porque este autor para pensar o conceito de astuacutecia e demais elementos a ele

associados movimenta-se entre um sentido positivo (de sagacidade e habilidade estrateacutegi-

ca) e outro negativo (de fraude e conspiraccedilatildeo) em uma dialeacutetica proacutepria da sua exposiccedilatildeo

Para tanto e seguindo a trilha aberta por Flusser no acircmbito da mitologia grega eacute preciso

10 Entre os anos de 2013 e 2017 lecionamos na Escola de Design da Universidade do Estado de Minas Gerais para estudantes dos cursos de Design e de Artes Visuais em turmas do 1ordm 2ordm 4ordm 5ordm e 7ordm pe-riacuteodos Nas diversas oportunidades em que esse ensaio de Flusser foi investigado e discutido em sala de aula para nossa surpresa (e apesar de natildeo procedermos com nenhuma pesquisa empiacuterica) um nuacutemero expressivo de estudantes concordou com Flusser acerca da associaccedilatildeo do conceito de astuacutecia ao design e aos designers

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nos determos mesmo que de forma natildeo aprofundada sobre narrativas de origem e de

conquista do conhecimento em nossa cultura Faremos isso tanto em sua vertente grega

quanto na do texto biacuteblico da tradiccedilatildeo judaico-cristatilde uma vez que no nosso entendimen-

to as diferenciaccedilotildees desses escritos trazem elementos correlatos aos que Flusser explora

no tratamento de seu tema Investigaremos especificamente os atributos que tornaram

o ser humano distinto dos outros seres e o destacaram da natureza O tema cresce em

complexidade e importacircncia na medida em que as duas narrativas a serem investigadas

contecircm elementos em oposiccedilatildeo como nas contraposiccedilotildees do ensaio de Flusser

Entre as diversas cosmogonias que de algum modo influenciaram e continuam a

ter relevacircncia nas concepccedilotildees de realidade no Ocidente a de origem grega eacute uma das

que se destaca por sua capacidade de conectar os discursos primordiais miacuteticos com o

subsequente pensamento racional da filosofia Como apresentamos (cf p 56-58) a con-

cepccedilatildeo da poacuteiesis se insere nessa categoria em que um deus ou demiurgo produz o cosmos

a partir do caos uma massa preexistente e informe De modo distinto dessa construccedilatildeo

encontra-se a narrativa biacuteblica em que Deus produz ou mais exatamente cria o mundo

a partir do nada (ex nihilo) Tal diferenciaccedilatildeo entre concepccedilotildees eacute essencial pois se traduz

em duas espeacutecies de caminhos para o ato criativo Grosso modo na concepccedilatildeo grega exis-

tem modelos a se descobrir para efetivar a produccedilatildeo que carreia a racionalizaccedilatildeo para o

interior do processo criativo Na judaico-cristatilde se natildeo eacute possiacutevel explicar racionalmente

tal processo elementos como a imaginaccedilatildeo a originalidade e a subjetividade conduzem

agrave ideia de inspiraccedilatildeo divina e de gecircnio criativo como o liame entre os correlatos criador

e criatura e artista e criaccedilatildeo Ao longo da histoacuteria da cultura ocidental essas duas visotildees

se alternaram e disputam ainda hoje a primazia da explicaccedilatildeo dos processos criativos11

Seguindo adiante nas duas cosmogecircneses de um lado temos o mito de Prometeu cujo

personagem principal um semideus astuto e capaz de antever o futuro daacute tiacutetulo agrave narrati-

va Prometeu com o objetivo de salvar a raccedila humana da extinccedilatildeo furta o conhecimento

11 Para uma anaacutelise comparativa dessas duas concepccedilotildees com suas caracteriacutesticas e seus pontos fortes e fracos ver o artigo A Teoria de Soluccedilatildeo de Problemas Inventivos (TRIZ) como complementar aos pro-cessos intuitivos de criatividade no design (silva S domingues F dias M R A C 2017) Nessa investigaccedilatildeo defendemos a ideia de que se natildeo for possiacutevel unificar as duas visotildees (a intuitiva e a racional) em um mesmo procedimento pelo menos eacute aceitaacutevel trabalhar com ambas como instru-mentos complementares e natildeo excludentes de suporte agrave criaccedilatildeo potencializando-os mutuamente

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teacutecnico da deusa Athenaacute e o fogo e a arte de plasmar metais do deus Hefestos Com isso

ele garante aos homens condiccedilotildees de sobreviver diante dos elementos da natureza em

peacute de igualdade com os outros seres vivos O ser humano que natildeo tinha acesso a esses

conhecimentos tendo-os recebido como presentes garante sua sobrevivecircncia Mas uma

vez de posse desse saber a humanidade natildeo cessa de ampliaacute-lo elevando-se em relaccedilatildeo aos

demais seres buscando controlar a natureza em benefiacutecio proacuteprio e consequentemente

aproximando seus atributos aos da divindade

No livro biacuteblico do Gecircnesis haacute uma narrativa correlata que fala de uma aacutervore do

conhecimento do bem e do mal e seu fruto acessiacutevel apesar de ser expressamente proi-

bido para a mulher e o homem sob pena de morrerem A Serpente o mais astuto dos

animais atua de modo a enganar a mulher e convencecirc-la a comer e a dar de comer ao

homem Adatildeo e Eva antes de comerem do fruto vivendo no Eacuteden natildeo correm o risco

de perecerem Mas o castigo dado a eles pela transgressatildeo se estende tambeacutem agrave toda a sua

descendecircncia com a perda do paraiacuteso e da vida eterna e a aquisiccedilatildeo de uma capacidade

de conhecer que natildeo eacute apenas do bem mas tambeacutem do mal

Nosso propoacutesito em relaccedilatildeo agraves duas narrativas apesar das inuacutemeras semelhanccedilas

entre elas eacute ressaltar as diferenccedilas12 para confrontaacute-las com o pensamento de Flusser em

uma busca por compreensatildeo de suas ideias sobre o design a arte a ciecircncia e a teacutecnica No

Prometeu a humanidade natildeo vivia em um paraiacuteso mas correndo o risco de extinccedilatildeo por

natildeo ter as proteccedilotildees e capacidades naturais dos demais seres vivos Aleacutem disso a puniccedilatildeo

que os humanos sofreram apoacutes o furto de Prometeu de serem obrigados a trabalhar para

sobreviver eacute apenas uma parte do que padece o homem biacuteblico com a expulsatildeo do pa-

raiacuteso O titatilde Prometeu apesar de ser condenado a ficar preso a uma rocha e ter o fiacutegado

dilacerado todos os dias por uma ave de rapina permanece na sua condiccedilatildeo de imortal

12 Na histoacuteria de Prometeu existiam variantes orais que foram cristalizadas em inuacutemeras versotildees de poetas e tragedioacutegrafos ao contraacuterio do texto unificado da Biacuteblia Assim destacam-se entre outros autores Hesiacuteodo Eacutesquilo e ateacute Platatildeo que narram com diferenccedilas a histoacuteria de Prometeu Conforme afirma o classicista Junito de Souza Brandatildeo ldquoO mito como jaacute se assinalou vive em variantes ora a obra de arte de conteuacutedo mitoloacutegico somente pode apresentar e eacute natural uma de suas variantes Acontece que dado o imenso prestiacutegio da poesia na Greacutecia a variante apresentada por um grande poeta impunha-se agrave consciecircncia puacuteblica tornando-se um mito canocircnico com esquecimento das demais variantes talvez artisticamente menos eficazes mas nem por isso menos importantes do ponto de vista religiosordquo (brandatildeo 1986 p 27)

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Assim comparando a Serpente a Prometeu ambos satildeo astutos e catalizadores do

processo da aquisiccedilatildeo do conhecimento e nos dois casos fazem uso de um ardil No en-

tanto Prometeu eacute retratado como heroacutei enaltecido como benfeitor da raccedila humana e

natildeo perde seu status de semideus ao passo que a Serpente eacute descrita como o ser maldito

que engana e desencadeia os males sobre a humanidade sendo punida com uma vida

rastejante alimentando-se de poacute Aleacutem disso o conhecimento adquirido pelos protegi-

dos de Prometeu eacute algo valioso que encerra uma visatildeo virtuosa e nobre na faculdade de

conhecer enquanto que o conhecimento advindo do fruto biacuteblico estaacute cindido em um

maniqueiacutesmo que o torna um risco constante para a humanidade

Deste modo um espiacuterito positivo e em certo sentido ateacute otimista em relaccedilatildeo ao

conhecimento e ao ato de conhecer perpassa e reaparece em outras histoacuterias formadoras

e estruturantes da cultura grega como a Iliacuteada e a Odisseia de Homero de que Flusser se

apropria a propoacutesito de elaborar seu raciociacutenio Como eacute sabido o personagem Ulisses no

livro da Iliacuteada usando de seu atributo principal a astuacutecia esconde-se com seus guerreiros

em um grande cavalo de madeira que eacute a chave para a vitoacuteria contra a cidade de Iacutelion

(Troia) No livro seguinte Odisseia esse heroacutei consegue enfrentar com engenhosidade

toda a sorte de dificuldades e aventuras e retornar a salvo agrave sua terra e lar

A disposiccedilatildeo grega de entender a astuacutecia em sua acepccedilatildeo de valor a se preservar res-

surge em outras narrativas como por exemplo na lenda do Noacute Goacuterdio Essa histoacuteria narra

a soluccedilatildeo inusitada que Alexandre o Grande teria dado para desfazer um noacute em cordas

aparentemente impossiacutevel de ser desatado Apoacutes um tempo estudando a amarraccedilatildeo Ale-

xandre desembainha sua espada e corta o noacute Essa atitude entendida pela tradiccedilatildeo grega

positivamente como sagacidade engenhosidade e arguacutecia tambeacutem pode ser interpretada

negativamente como fraude ardil ou trapaccedila Como Flusser transita entre duas acepccedilotildees

e medidas valorativas consideramos essa dupla visatildeo (grega e judaico-cristatilde) uma chave

de leitura para compreender a proposta desse autor para o design

Apoacutes definir design e designer Flusser com o mesmo meacutetodo etimoloacutegico procura

caracterizar tanto a teacutecnica quanto a arte indo ateacute as suas raiacutezes gregas que satildeo comuns

Sigamos seus passos

92

Outra palavra usada nesse mesmo contexto eacute ldquoteacutecnicardquo Em grego techneacute significa ldquoarterdquo e estaacute relacionada com tekton (ldquocarpinteirordquo) A ideia fundamental eacute a de que a madeira (em grego hyleacute) eacute um material amorfo que recebe do artista o teacutecnico uma forma ou melhor em que o artista provoca o aparecimento da forma (flusser 2007 p 182)

Essa descriccedilatildeo estaacute claramente vinculada ao conceito de produccedilatildeo demiuacutergica em que

preexiste um ldquomaterial amorfordquo (equivalente ao caos) que deve ser trabalhado e enforma-

do pelo artista Em seguida ele avanccedila para a liacutengua latina com o mesmo procedimento

etimoloacutegico e vieacutes em torno da fraude enquanto um artifiacutecio

O equivalente latino do termo grego techneacute eacute ars que significa na verdade ldquomanobrardquo (Dreh) O diminutivo de ars eacute articulum mdash pequena arte mdash e indica algo que gira ao redor de algo (como por exemplo a articulaccedilatildeo da matildeo) Ars quer dizer portanto algo como ldquoarticulabilidaderdquo ou ldquoagilidaderdquo e artifex (ldquoartistardquo) quer dizer ldquoimpostorrdquo O verdadeiro artista eacute um prestidigitador o que se pode perceber por meio das palavras ldquoartifiacuteciordquo ldquoartificialrdquo e ateacute mesmo

ldquoartilhariardquo (flusser 2007 p 183)

Aqui Flusser vai aleacutem das definiccedilotildees claacutessicas gregas de artista e se alinha especifica-

mente com o conceito platocircnico de artista pois poderiacuteamos afirmar que um impostor ou

prestidigitador eacute na essecircncia um imitador Eacute importante destacar que esses termos se ligam

na origem com outros com os quais atualmente natildeo fazemos normalmente conexatildeo Por

exemplo o mesmo sentido de impostor se encontra tambeacutem em um dos significados de

hipoacutecrita que em sua origem grega tem como uma das suas acepccedilotildees principais a de ator

Tendo essas associaccedilotildees estabelecidas Flusser pode entatildeo retomar a questatildeo do design

na atualidade indicando o problema (que segundo ele se instaura no periacuteodo moderno)

e defender sua tese acerca do papel do design neste contexto

Essas consideraccedilotildees explicam de certo modo por que a palavra design pocircde ocupar o espaccedilo que lhe eacute conferido no discurso contemporacircneo As palavras design maacutequina teacutecnica ars e Kunst[13] estatildeo fortemente inter-relacionadas cada um dos conceitos eacute impensaacutevel sem os demais e todos eles derivam de uma mesma perspectiva existencial diante do mundo No entanto essa co-nexatildeo interna foi negada durante seacuteculos (pelo menos desde a Renascenccedila)

13 Nesse ensaio Flusser tcheco nascido em Praga tambeacutem apresenta o correlato de cada palavra defi-nida em alematildeo Na medida em que natildeo incluiacutemos essa liacutengua ao escopo de nossa anaacutelise natildeo nos estendemos sobre essas comparaccedilotildees

93

A cultura moderna burguesa fez uma separaccedilatildeo brusca entre o mundo das artes e o mundo da teacutecnica e das maacutequinas de modo que a cultura se dividiu em dois ramos estranhos entre si por um lado o ramo cientiacutefico quantificaacutevel ldquodurordquo e por outro o ramo esteacutetico qualificador ldquobrandordquo Essa separaccedilatildeo desastrosa comeccedilou a se tornar insustentaacutevel no final do seacuteculo xix (flusser 2007 p 183)

A citaccedilatildeo anterior merece especial atenccedilatildeo Flusser defende uma ldquointer-relaccedilatildeordquo entre

os conceitos de design e maacutequina teacutecnica e arte com a qual concordamos pelo menos

em parte Nossa posiccedilatildeo difere desse autor quanto ao momento em que ocorreu a cisatildeo

entre esses conceitos Para Flusser tal separaccedilatildeo entre ciecircncia teacutecnica e arte ocorre ldquopelo

menosrdquo a partir da Renascenccedila enquanto para noacutes como afirmamos anteriormente ela

se inicia com Platatildeo com uma teoria acerca da realidade que cinde o conhecimento em

aacutereas Mas o mais importante para noacutes tal teoria tambeacutem hierarquiza o conhecimento

Independentemente dessas diferenccedilas a proposta de Flusser para atenuar essa ldquoseparaccedilatildeo

desastrosardquo ou ldquobrechardquo entendida com ldquoinsustentaacutevelrdquo eacute relevante

A palavra design entrou nessa brecha como uma espeacutecie de ponte entre esses dois mundos E isso foi possiacutevel porque essa palavra exprime a conexatildeo interna entre teacutecnica e arte E por isso design significa aproximadamente aquele lugar em que arte e teacutecnica (e consequentemente pensamentos valorativo e cientiacutefico) caminham juntas com pesos equivalentes tornando possiacutevel uma nova forma de cultura (flusser 2007 p 183)

Devemos nos manter atentos ao alerta anterior de Cardoso sobre a forma de Flusser

conduzir seus raciociacutenios e expressar suas ideias Por exemplo nas duas uacuteltimas citaccedilotildees

ele natildeo se preocupa em explicitar a diferenccedila entre ciecircncia e teacutecnica permutando o uso

desses conceitos Como vimos essa tambeacutem eacute uma postura adotada por Platatildeo em alguns

de seus diaacutelogos em relaccedilatildeo agrave teacutekhne e agrave espisteacuteme

Ao mesmo tempo Flusser natildeo assume com todas as letras a existecircncia na atualidade

de uma hierarquizaccedilatildeo do conhecimento Mas tal consciecircncia se manifesta em poucas

palavras quando ele qualifica o design para estabelecer a arte e a teacutecnica ldquocom pesos

equivalentesrdquo Essa visatildeo peculiar difere do pensamento de Cardoso que natildeo considera

necessaacuteria a accedilatildeo do design para instituir a equidade entre a arte e outros campos ldquoArte

eacute um meio de acesso ao desconhecido em peacute de igualdade com a ciecircncia a filosofia a

religiatildeo[]rdquo(cardoso 2016 p 246)

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Quando Flusser emprega o termo ldquoconexatildeo internardquo pode parecer que ele compreende

design e arte como indistintos No entanto as palavras ldquocaminham juntasrdquo indicam que

seguem uma mesma direccedilatildeo mas natildeo de indistinccedilatildeo entre aacutereas Isso se torna mais claro

com o seu conceito de ldquoponterdquo pois a indistinccedilatildeo natildeo carece desse artifiacutecio de ligaccedilatildeo Assim

paradoxalmente o ponto de vista de Flusser um filoacutesofo que procura ligar design e arte

natildeo necessariamente se opotildee agrave posiccedilatildeo de Bonsiepe um designer que pensa a filosofia

para distinguir design e arte Aleacutem disso podemos afirmar que ambos concordam com

outra conexatildeo aquela entre design e ciecircnciateacutecnica Lembremos o que Bonsiepe diz a

esse respeito ldquoEstou convencido de que no futuro haveraacute uma interaccedilatildeo frutiacutefera entre

mundo das ciecircncias e o mundo do projeto que hoje se daacute no maacuteximo esporadicamenterdquo

(bonsiepe 2011 p 17)

Ateacute aqui mesmo com o modo natildeo usual de conduzir sua reflexatildeo Flusser chega a

algumas conclusotildees semelhantes agraves de autores do design como Cardoso e Bonsiepe Mas

a questatildeo da astuacutecia ainda precisa ser esclarecida Flusser sabe disso e propotildee assumirmos

esse caraacuteter que segundo ele eacute inerente agrave nossa cultura

A cultura para a qual o design poderaacute melhor preparar o caminho seraacute aquela consciente de sua astuacutecia A pergunta eacute a quem e ao que enganamos quando nos inscrevemos na cultura (na teacutecnica e na arte em suma no design) Vamos a um exemplo a alavanca eacute uma maacutequina simples Seu design imita o braccedilo humano trata-se de um braccedilo artificial Sua teacutecnica provavelmente eacute tatildeo antiga quanto a espeacutecie Homo sapiens talvez ateacute mais E o objetivo dessa maacutequina desse design dessa arte dessa teacutecnica eacute enganar a gravidade trapacear as leis da natureza e ardilosamente liberar-nos de nossas condiccedilotildees naturais por meio da exploraccedilatildeo estrateacutegica de uma lei natural Por intermeacutedio de uma alavanca mdash e apesar de nosso proacuteprio peso mdash podemos nos lanccedilar ateacute as estrelas se for o caso e se nos derem um ponto de apoio somos capazes de tirar o mundo de sua oacuterbita Esse eacute o design que estaacute na base de toda cultura enganar a natureza por meio da teacutecnica substituir o natural pelo artificial e construir maacutequinas de onde surja um deus que somos noacutes mesmos Em suma o design que estaacute por traacutes de toda cultura consiste em com astuacutecia nos transformar de simples mamiacuteferos condicionados pela natureza em artistas livres (flusser 2007 p 184)

O exemplo da alavanca que seraacute retomado no segundo ensaio de Flusser jaacute aparece

aqui de modo a explorar o aspecto positivo e diriacuteamos culturalmente grego da astuacutecia

ou seja nos libertar como artistas para alcanccedilarmos as estrelas e ateacute nos tornarmos deuses

95

Mas a dialeacutetica de Flusser natildeo para neste ponto Ele entende que ldquoum ser humano eacute um

design contra a naturezardquo e que ldquose o design continuar se tornando cada vez mais o foco

de interesse e as questotildees referentes a ele passarem a ocupar o lugar das preocupaccedilotildees

concernentes agrave ideia certamente natildeo pisaremos em chatildeo firmerdquo (flusser 2007 p 185) E

em um movimento de oposiccedilatildeo Flusser aponta o que pagamos por assumirmos a astuacutecia

como inerente agrave nossa cultura

Como explicar essa desvalorizaccedilatildeo de todos os valores Pelo fato de que graccedilas agrave palavra design comeccedilamos a nos tornar conscientes de que toda cultura eacute uma trapaccedila de que somos trapaceiros trapaceados e de que todo envolvimento com a cultura eacute uma espeacutecie de autoengano [] Mas o preccedilo que pagamos por isso eacute a renuacutencia agrave verdade e agrave autenticidade O que a alavanca faz de fato eacute tirar de oacuterbita tudo o que eacute verdadeiro e autecircntico e substituiacute-lo mecanicamente por artefatos desenhados com perfeiccedilatildeo Desse modo todos os artefatos adquirem o mesmo valor que as canetas de plaacutestico convertem-se em gadgets descartaacuteveis E isso se evidencia no mais tardar quando morremos Pois apesar de todas as estrateacutegias teacutecnicas e artiacutesticas (apesar da arquitetura do hospital e do design do leito de morte) o fato eacute que morremos como todos os mamiacuteferos A palavra design adquiriu a posiccedilatildeo central que tem hoje no discurso cotidiano porque estamos comeccedilando (e provavelmente com razatildeo) a perder a feacute na arte e na teacutecnica como fontes de valores Porque estamos comeccedilando a entrever o design que haacute por traacutes delas (flusser 2007 p 185-186)

Nesse ponto claramente o tom e a argumentaccedilatildeo flusseriana procuram identificar

os aspectos negativos de assumirmos o que ele entende como um modo de vida artificial

sem verdade e autenticidade Flusser acredita que junto com a identificaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo

da astuacutecia e a busca pela perfeiccedilatildeo renunciamos a diversos valores na arte e na teacutecnica

Poreacutem natildeo concordamos com Flusser que a perda ou rejeiccedilatildeo desses valores possa ser

creditada agrave astuacutecia inerente ao homem e aos princiacutepios que constituem a essecircncia do

design A ambivalecircncia que este autor explora nesse conceito (que associamos agrave cultura

ocidental ora em direccedilatildeo a uma compreensatildeo da vida como um ldquopresenterdquo de Prometeu

ora como a perda da imortalidade e da existecircncia apraziacutevel pela cilada da Serpente biacuteblica)

natildeo indica a real causa das possibilidades que o design enquanto ponte pode nos oferecer

No nosso entendimento o perigo no uso que fazemos da astuacutecia natildeo diz respeito

propriamente a posse que temos dela mas agrave nossa capacidade de discernir valores e agraves

direccedilotildees que nossas escolhas conscientes podem nos levar Flusser no fundo parece

96

ciente disso quando afirma ao final do seu texto que ldquoEste ensaio segue um design

determinado ele quer trazer agrave luz os aspectos peacuterfidos e ardilosos da palavra design que

normalmente costumam ser ocultadosrdquo (flusser 2007 p 186) E aponta que outros

caminhospoderiamserseguidosmasconcluildquo[]eacuteexatamenteassimtudodepende

do designrdquo (flusser 2007 p 186) Natildeo consideramos essa afirmaccedilatildeo como retoacuterica O

conceito de ponte que Flusser propotildee eacute potente o suficiente para fazer pensar sobre as

possibilidades que o design tem enquanto um camp0 com fronteiras moacuteveis A ampliaccedilatildeo

expressiva dessas fronteiras estaacute representada no graacutefico da figura 9 onde linhas partem

do design em direccedilatildeo agrave arte teacutecnica tecnologia e ciecircncia O proacuteximo passo eacute de modo

anaacutelogo percorrer o segundo ensaio deste autor ldquoA alavanca contra-atacardquo atentando

para uma conexatildeo inesperada entre o design e a natureza

Existe um liame visiacutevel entre o primeiro e segundo ensaio Da mesma forma que Flusser

coloca a astuacutecia no centro da discussatildeo no primeiro ele o faz conduzindo esse caraacuteter de

artifiacutecio para o conceito de alavanca no segundo Nessa reflexatildeo de quatro paacuteginas no-

vamente ele inicia com uma definiccedilatildeo ldquoAs maacutequinas satildeo simulaccedilotildees dos oacutergatildeos do corpo

humanordquo (flusser 2007 p 46) Em seguida ele retoma os primoacuterdios da vida humana

imaginando na preacute-histoacuteria alguns instrumentos que contribuiacuteram para o desenvolvimento

de nossa espeacutecie Tanto a alavanca quanto a faca de pedra satildeo enquadradas na categoria

de ldquomaacutequinas inorgacircnicasrdquo enquanto o burro o chacal (que podemos interpretar como

DESIGN

asymp aC dC 7 dC 85 dC dCGreacutecia Ocidente

EPISTEacuteME

TEacuteKHNE TEacuteCNICA

ARTE

TECNOLOGIA

POacuteIESIS CIEcircNCIA

Figura 9 Linha do tempo acrescentando o design com as influecircncias que esse campo acolheu e as conexotildees que Flusser propotildee como desdobramento de suas atividades fonte autor

97

o catildeo) e o escravo pertencem agrave classe das ldquomaacutequinas orgacircnicasrdquo Ao criteacuterio de distinccedilatildeo

entre maacutequinas vivas e inanimadas seguem-se as vantagens e desvantagens de cada um

desses gecircneros As inorgacircnicas satildeo mais fortes resistentes e consequentemente duram mais

No entanto satildeo ldquoestuacutepidasrdquo Jaacute as orgacircnicas duram menos mas por sua complexidade satildeo

consideradas ldquointeligentesrdquo14 (flusser 2007 p 46-47) Em seguida em um salto (na

expressatildeo de Cassirer para outro ldquoponto focalrdquo da histoacuteria) este autor aborda a eacutepoca da

Revoluccedilatildeo Industrial onde uma inflexatildeo e mudanccedila sensiacutevel ocorrem

A maacutequina industrial se distingue da preacute-industrial pelo fato de que aquela tem como base uma teoria cientiacutefica Certamente a alavanca preacute-industrial tambeacutem tem a lei da alavanca em seu bojo mas somente a industrial sabe que a tem Habitualmente isso se expressa assim as maacutequinas preacute-industriais fo-ram fabricadas empiricamente ao passo que as industriais o satildeo tecnicamente (flusser 2007 p 47)

Aqui a semelhanccedila da posiccedilatildeo de Flusser com a que apresentamos de Koyreacute eacute evidente

Para Koyreacute (1991) as teorias cientiacuteficas satildeo o fundamento da diferenciaccedilatildeo que conduz

da teacutecnica agrave tecnologia ao passo que para Flusser essas mesmas teorias distinguem maacute-

quinas preacute-industriais e industriais Ateacute o periacuteodo histoacuterico em que esse processo ocorre

eacute o mesmo para ambos os autores Flusser natildeo faz uso dos mesmos termos de Koyreacute mas

eacute clara sua aderecircncia a essa compreensatildeo que se mostraraacute uma das bases para ele pensar

o design Natildeo sem razatildeo na figura 9 preservamos o elemento da tecnologia e sua linha

de derivaccedilatildeo que vai da ciecircncia ateacute o design

As teorias a respeito do ldquomundo inorgacircnicordquo que possibilitaram as maacutequinas da Re-

voluccedilatildeo Industrial trazem vantagens em relaccedilatildeo agraves duas classes de maacutequinas anteriores

Mas e quanto ao homem e sua relaccedilatildeo com esses instrumentos Flusser prossegue em seu

raciociacutenio mostrando a inversatildeo que ocorre

Daiacute que a partir da Revoluccedilatildeo Industrial o boi deu lugar agrave locomotiva e o cavalo ao aviatildeo O boi e o cavalo eram impossiacuteveis de ser feitos tecnicamente Com relaccedilatildeo aos escravos a coisa era ainda mais complicada As maacutequinas teacutecnicas natildeo apenas iam se tornando cada vez mais eficazes como tambeacutem maiores e

14 O proacuteprio Flusser insere aspas ao se referir agrave caracteriacutestica ldquoestuacutepidardquo ou ldquointeligenterdquo destacando o sentido figurativo desses termos nessa situaccedilatildeo

98

mais caras Desse modo a relaccedilatildeo ldquohomem-maacutequinardquo inverteu-se de tal modo que as maacutequinas natildeo serviam aos homens mas estes serviam a elas Haviam-se convertido em escravos relativamente inteligentes de maacutequinas relativamente estuacutepidas (flusser 2007 p 47)

Simultaneamente ele se pergunta acerca de uma nova fronteira que precisava ser

ultrapassadapelaciecircncialdquo[]emrelaccedilatildeoaomundoorgacircnicoasteoriaserambastante

escassas Que leis tem o burro no seu ventre Natildeo soacute o proacuteprio burro as desconhecia

como tambeacutem os cientistas pouco sabiam sobre elasrdquo (flusser 2007 p 47) Esse passo

eacute importante porque marca um giro em direccedilatildeo agrave natureza aacutepice do ensaio Assim ele vai

da revoluccedilatildeo dos seacuteculos xviii e xix de caraacuteter predominantemente inorgacircnico para

a do xx que volta parte das suas atenccedilotildees para o mundo orgacircnico Nas suas palavras

Mas essa natildeo eacute a mudanccedila realmente importante Muito mais significativo eacute o fato de que estamos comeccedilando a dispor tambeacutem de teorias que se aplicam ao mundo orgacircnico Comeccedilamos a saber que leis o burro traz no ventre Em consequecircncia em breve poderemos fabricar tecnologicamente bois cavalos escravos e superescravos Isso seraacute chamado provavelmente a segunda Revo-luccedilatildeo Industrial ou a Revoluccedilatildeo Industrial ldquobioloacutegicardquo (flusser 2007 p 48)

Flusser chama a nossa atenccedilatildeo para um ramo da ciecircncia que avanccedila em uma aacuterea natildeo

pensada pela tradiccedilatildeo Lembremos que a poacuteiesis em sua vertente de phyacutesis eacute uma atividade

exclusiva da natureza com os seus atributos de autonomia e autoproduccedilatildeo Tendo em

conta a extraordinaacuteria ampliaccedilatildeo do conhecimento que vem ocorrendo desde meados

do seacuteculo xx (a partir da elaboraccedilatildeo de teorias como a do dna) tornou-se inevitaacutevel a

ligaccedilatildeo e o gradativo controle da ciecircncia (episteacuteme) sobre a produccedilatildeo natural (phyacutesis) em

um niacutevel de compreensatildeo natildeo imaginado pelos gregos e a tradiccedilatildeo que se seguiu ateacute aquele

momento Assim apoacutes mostrar que estamos unindo as vantagens do mundo inorgacircnico

com as do orgacircnico Flusser afirma o resultado dessa hibridizaccedilatildeo Metaforizada pelo

autor nas figuras dos ldquochacais de pedrardquo tal ingerecircncia da produccedilatildeo teoacuterica na produccedilatildeo

natural pode tornar as maacutequinas resultantes mais espertas e levaacute-las a nos contra-atacar

como uma alavanca que devolve o golpe causando dor (flusser 2007 p 48-49)

A velha alavanca nos devolveu o golpe movemos os braccedilos como se fossem ala-vancas e isso desde que passamos a dispor delas Imitamos os nossos imitadores Desde que criamos ovelhas nos comportamos como rebanhos e necessitamos de

99

pastores Atualmente esse contra-ataque das maacutequinas estaacute se tornando mais evidente os jovens danccedilam como robocircs os poliacuteticos tomam decisotildees de acordo com cenaacuterios computadorizados os cientistas pensam digitalmente e os artistas desenham com maacutequinas de plotagem Por conseguinte toda futura fabricaccedilatildeo de maacutequinas tambeacutem deveraacute levar em conta o contragolpe da alavanca Jaacute natildeo eacute possiacutevel construir maacutequinas considerando apenas a economia e a ecologia Eacute preciso pensar tambeacutem como essas maacutequinas nos devolveratildeo seus golpes Uma tarefa difiacutecil se levarmos em consideraccedilatildeo que na atualidade a maioria das maacutequinas eacute construiacuteda por ldquomaacutequinas inteligentesrdquo e noacutes apenas observamos o processo para intervir ocasionalmente (flusser 2007 p 49)

Essa visatildeo impressiona em seu aspecto preditivo uma vez que este ensaio de Flusser

foi escrito ainda no seacuteculo xx15 No entanto sua proposta mais radical com a qual ele

encerra o ensaio natildeo diz respeito a essas antecipaccedilotildees e exerciacutecios de futurologia mas

tem a ver com sua decisatildeo de colocar o design no centro da ldquoRevoluccedilatildeo Industrial lsquobioloacute-

gicarsquordquo e se perguntar sobre a capacidade do designer de elaborar soluccedilotildees para os efeitos

do contragolpe da alavanca

Esse eacute um problema de design como devem ser as maacutequinas para que seu con-tragolpe natildeo nos cause dor Ou melhor como devem ser essas maacutequinas para que o contragolpe nos faccedila bem Como deveratildeo ser os chacais de pedra para que natildeo nos esfarrapem e para que noacutes mesmos natildeo nos comportemos como chacais Naturalmente podemos projetaacute-los de modo a que nos lambam em vez de morder-nos Mas queremos realmente ser lambidos Satildeo questotildees difiacuteceis porque ningueacutem sabe de fato como quer ser No entanto devemos debater essas questotildees antes de comeccedilarmos a projetar chacais de pedra (ou talvez clones de invertebrados ou quimeras de bacteacuterias) E essas questotildees satildeo ainda mais inte-ressantes do que qualquer chacal de pedra ou qualquer futuro super-humano Seraacute que o designer estaraacute preparado para colocaacute-las (flusser 2007 p 49-50)

15 Natildeo encontramos referecircncia agrave data da publicaccedilatildeo original deste ensaio mas Flusser morre em 1991 o que distancia suas reflexotildees dos raacutepidos avanccedilos cientiacuteficos e tecnoloacutegicos do seacuteculo atual e reforccedila o tom profeacutetico de sua narrativa Sua preocupaccedilatildeo eacute compartilhada por outros teoacutericos e escritores desse periacuteodo O teor de suas palavras lembra tambeacutem a efervescecircncia dos temas de ficccedilatildeo cientiacutefica de claacutessicos da literatura como os livros Admiraacutevel mundo novo (1932) de Aldous Huxley Eu robocirc (1950) de Isaac Asimov Androides sonham com ovelhas eleacutetricas (1968) de Philip K Dick levado ao cinema por Ridley Scott em Blade Runner o caccedilador de androides (1982) e o conto Sentinela (1951) de Arthur C Clarke que foi a base para o filme 2001 uma odisseia no espaccedilo (1968) de Stanley Kubrick Os escritos de Flusser parecem estar em constante diaacutelogo com esses autores e obras

100

Eacute notaacutevel que Flusser um filoacutesofo transfira pelo menos em parte a responsabilidade

de reflexatildeo sobre os fins do homem e da natureza da esfera da filosofia e da ciecircncia para

o acircmbito do design incluindo o designer no ldquodebaterdquo dessas questotildees que devem se-

gundo ele e com razatildeo preceder aos projetos A figura 10 apresenta duas novas conexotildees

uma entre ciecircncia e natureza e outra surpreendentemente representando a concepccedilatildeo

de Flusser entre design e natureza

Talvez o deslocamento ou rearranjo de compromissos esteja associado ao conceito

de projeto com o qual Flusser abarca tambeacutem o mundo bioloacutegico em suas ldquoquimeras de

bacteacuteriasrdquo Neste sentido podemos afirmar que novamente Bonsiepe tem uma compreen-

satildeo alinhada com a proposta flusseriana

Natildeo se pode mais restringir o conceito de projeto agraves disciplinas projetuais como ocorre na arquitetura no design industrial e no design de comunicaccedilatildeo visual pois nas disciplinas cientiacuteficas tambeacutem haacute projeto Quando um grupo de enge-nheiros agrocircnomos desenvolveu uma nova merenda com base na semente de algaroba acrescida de sais minerais e vitaminas baacutesicas para escolares realizou um claro exemplo de projeto

Portanto jaacute registramos uma zona de contato entre ciecircncias e projeto embora ainda natildeo tenhamos ateacute o momento uma teoria projetual que abarque todas as manifestaccedilotildees projetuais como na engenharia geneacutetica que sem duacutevida alguma deve ser considerada uma disciplina projetual cientiacutefica (bonsiepe 2011 p 19)

DESIGN

asymp aC dC 7 dC 85 dC dCGreacutecia Ocidente

EPISTEacuteME

TEacuteKHNE

PHYacuteSIS NATUREZA

CIEcircNCIA

TEacuteCNICA

ARTE

TECNOLOGIA

POacuteIESIS

Figura 10 Linha do tempo incluindo aleacutem da ligaccedilatildeo entre ciecircncia e natureza a proposta de Flusser para a ligaccedilatildeo entre design e natureza fonte autor

101

Na citaccedilatildeo anterior nossa atenccedilatildeo se concentra na semelhanccedila entre a ideia de ldquozona

de contatordquo em Bonsiepe e a de ldquoponterdquo em Flusser As possibilidades que esses dois con-

ceitos liberam para o design e outros campos atuarem como conectores entre aacutereas do

conhecimento satildeo substanciais e promissoras Bonsiepe expotildee sua ideia sobre uma ldquoteoria

projetualrdquo como um viacutenculo entre diversas aacutereas Atuando como epistemoacutelogo propotildee

de modo perspicaz uma disciplina que do modo como entendemos exerceria (enquanto

um substrato metafiacutesico) suporte agrave etapa de projeto do qual os campos implicados em

praacuteticas projetivas poderiam usufruir De modo similar agrave visatildeo de Bonsiepe a ideia de

Flusser no entanto nos atrai mais pelos diversos desdobramentos que pudemos identificar

e que tem proximidade com nossa abordagem

1 Apesar da semelhanccedila conceitual diferentemente da zona de contato na ideia de

ponte o design eacute a proacutepria ponte

2 A ponte liga ciecircncia de um lado e arte do outro o que eacute um modo de nos esquivarmos

da cisatildeo entre aacutereas do saber

3 A ponte tambeacutem permite reconsiderar se o problema da hierarquizaccedilatildeo do conheci-

mento advinda da cisatildeo em aacutereas pode ser eventualmente mitigado ou ateacute eliminado

4 A possibilidade de quebra ou supressatildeo parcial da hierarquia aponta um caminho

para avanccedilarmos na reflexatildeo sobre o estatuto ontoloacutegico do design e da arte

Para os nossos propoacutesitos o quarto desdobramento eacute o mais relevante Para ser ex-

plicitado eacute necessaacuterio avanccedilarmos um pouco mais contrapondo ao conceito de ldquoponterdquo

de Flusser (2007) o de ldquorelogiosidade do reloacutegiordquo de Cardoso (1998)

233 Essecircncia ontoloacutegica e epistemoloacutegica

Rafael Cardoso no artigo ldquoDesign cultura material e o fetichismo dos objetosrdquo (1998)

apesar de considerado por ele mesmo mais um ensaio ou ldquoum exerciacutecio de especulaccedilatildeordquo

aprofunda-se ao longo de 29 paacuteginas em um amplo espectro de questotildees No entanto

nosso interesse se restringe aos dois niacuteveis de significados propostos para o que este autor

102

nomeia como ldquoartefatosrdquo16 No primeiro niacutevel encontram-se os significados essenciais em

seus aspectos ontoloacutegicos e epistemoloacutegicos No segundo incorporam-se os significados

natildeo inerentes dessa classe de objetos Como outros autores investigados ateacute aqui Cardoso

elabora algumas definiccedilotildees chave para formar uma base de onde partem suas ideias

Na verdade o design graacutefico moderno conta com um verdadeiro arsenal de me-canismos para despertar uma vasta gama de emoccedilotildees sendo o desejo e a cobiccedila as mais empregadas atualmente para fins mercadoloacutegicos Partamos entatildeo para um esboccedilo de definiccedilatildeo o design eacute em uacuteltima anaacutelise um processo de investir os objetos de significados significados estes que podem variar infinitamente de forma e de funccedilatildeo e eacute nesse sentido que ele se insere em uma ampla tradiccedilatildeo lsquofetichistarsquo (cardoso 1998 p 28-29)

Considerando que a atribuiccedilatildeo de significaccedilatildeo estaacute longe de se restringir aos aspectos

materiais essa definiccedilatildeo de design como ldquoum processo de investir os objetos de significadosrdquo

por si soacute jaacute indica uma compreensatildeo do design que natildeo necessariamente estaacute vinculada agrave

produccedilatildeo material Cardoso partindo desse ldquoesboccedilordquo busca delimitar o campo do design

em relaccedilatildeo agrave arte ao artesanato e agrave ciecircncia empregando a palavra artifiacutecio o que obvia-

mente remete ao uso anterior dado por Flusser

O que eu quero enfatizar aqui eacute que o esforccedilo histoacuterico do design para afastar-se do sentido artesanal e individualista da tradiccedilatildeo artiacutestica ocidental e para acercar-se de uma pretensa objetividade cientiacutefica e tecnoloacutegica acarretou entre outros resultados uma relativa perda de consciecircncia do teor artificioso do campo Natildeo quero dizer de modo algum que o design natildeo passe de uma espeacutecie de artifiacutecio no sentido pejorativo de fingimento ou artimanha Quero antes recuperar o sentido mais primitivo da palavra artifiacutecio o de habilidade ou engenho de inventividade e mdash por que natildeo dizer mdash de criatividade O ato de projetar tem na sua essecircncia um componente baacutesico de criaccedilatildeo de artifiacutecio que natildeo difere substancialmente daquele mesmo elemento factiacutecio (no sentido de lsquofeiturarsquo) que estaacute por traacutes do artesanato da arte e ateacute da magia segundo Kris e Kurz26 Em todos esses casos o artifiacutecio da coisa consiste em dar forma agraves ideacuteias em gerar o fato material e concreto a partir de um ponto eminentemente imaterial e abstrato O que distingue o design de grande parte do artesanato da arte e mdash presumo eu mdash da magia eacute que no design o fato material (factum)

16 Cardoso estabelece os artefatos como uma das particularizaccedilotildees dos objetos ldquoMais correta do que lsquoob-jetorsquo no contexto atual seria a palavra lsquoartefatorsquo a qual se refere especificamente aos objetos produzidos pelo trabalho humano em contraposiccedilatildeo aos objetos naturais ou acidentaisrdquo (cardoso 1998 p 19)

103

que se pretende gerar natildeo eacute feito (factus) pelo mesmo indiviacuteduo que deu iniacutecio ao processo ao conceber a ideacuteia (cardoso 1998 p 29-30)

26 Ernst Kris amp Otto Kurz Legend myth and magic in the image of the artist (New Haven Yale University Press 1981) [nota em peacute de paacutegina do autor]

Independentemente de ser discutiacutevel qual sentido da palavra artifiacutecio eacute o mais primi-

tivo17 se o de engenho ou de fingimento a posiccedilatildeo de Cardoso indica sua predileccedilatildeo pela

primeira acepccedilatildeo bem justificada por estar associada agrave criatividade e diriacuteamos um sentido

positivo e grego se nos lembrarmos da correlaccedilatildeo com a dialeacutetica de Flusser acerca da

astuacutecia Essa determinaccedilatildeo eacute reforccedilada uma vez que logo em seguida na mesma citaccedilatildeo

ele explicita que entende por artifiacutecio o ldquodar forma agraves ideiasrdquo partindo do imaterial e do

abstrato o que reflete um caraacuteter aleacutem de grego platocircnico

Assim Cardoso propotildee o design como uma esfera de concepccedilatildeo de ideias o que do

nosso ponto de vista implica mesmo de modo impliacutecito aceitar um componente platocirc-

nico de objetividade Mas em contraponto a essa posiccedilatildeo ele caminha tambeacutem em um

sentido inverso de valorizar a criatividade da arte criticando o ldquoesforccedilo histoacutericordquo18 do

design de se afastar dos aspectos individualistas e artesanais e se aproximar de elementos

como a objetividade normalmente associados agrave ciecircncia e tecnologia Por fim Cardoso

une esses elementos diversos em uma caracterizaccedilatildeo complexa do design

Quero sugerir portanto que a atividade do design caracteriza-se mais como um exerciacutecio de processos mentais (artifiacutecioengenho) do que de processos manuais (artes aplicadas ou plaacutesticas propriamente ditas) e como tanto assemelha-se ao fetichismo que tambeacutem forja uma ligaccedilatildeo entre o imaterial e o material sem passar necessariamente pela feitura27 (cardoso 1998 p 30)

27 Ignorando por um momento o fato de que o designer depende tradicio-nalmente de meios de expressatildeo manuais e ateacute artiacutesticos para transmitir as

17 No nosso entendimento pelo menos ateacute pudemos investigar etimologicamente eacute difiacutecil precisar qual eacute o sentido mais primitivo para a palavra artifiacutecio

18 A afirmaccedilatildeo de Cardoso sobre ldquoo esforccedilo histoacuterico do design para afastar-se do sentido artesanal e individualista da tradiccedilatildeo artiacutestica ocidental e para acercar-se de uma pretensa objetividade cientiacutefica e tecnoloacutegica []rdquo (cardoso 1998 p 29-30) confirma a oposiccedilatildeo frontal que jaacute anunciamos ante-riormente (p 77) entre ele e Schneider Lembremos que Schneider entende que ldquouma tradiccedilatildeo forte e ateacute agora dominante na histoacuteria do design desde a industrializaccedilatildeo ateacute a atualidade eacute marcada pela motivaccedilatildeo artiacutestica pela inspiraccedilatildeo artiacutestica para um design expressivo Essa tradiccedilatildeo se manifesta na tendecircncia a fetichizar a proacutepria praacutetica como artiacutestica e desobrigar-se agrave argumentaccedilatildeo racional e cultivar a aura do design de autorrdquo (schneider 2010 p 260) Itaacutelico nosso

104

suas concepccedilotildees Esta questatildeo tem que ser sempre levada em consideraccedilatildeo ao problematizar a relaccedilatildeo entre design e arte [nota em peacute de paacutegina do autor]

Aqui se condensa mais um ponto relevante da comunhatildeo de ideias de Cardoso e

de Flusser Com articulaccedilatildeo distinta Cardoso partilha da visatildeo de Flusser de reconexatildeo

entre aacutereas do saber mesmo que ele natildeo assuma explicitamente neste artigo uma criacutetica e

proposiccedilatildeo de superaccedilatildeo da cisatildeo dessas aacutereas Deste modo os componentes em oposiccedilatildeo

dialeticamente mesclados por Cardoso em sua definiccedilatildeo do design mdash de um lado uma

objetividade de cunho platocircnico e epistecircmico e de outro um fetichismo quase maacutegico

subjetivo e por que natildeo dizer artiacutestico mdash natildeo satildeo difiacuteceis de ser associados com o conceito

da Ponte Flusseriana

Paralelamente a isso os dois constituintes desse conceito tecircm algo em comum

conectam segundo Cardoso o imaterial com o material natildeo sendo nos dois casos me-

diados necessariamente nessa ligaccedilatildeo pela operaccedilatildeo do fazer Para este autor o design

caracteriza-se portanto por ser um ldquoprocesso mentalrdquo sem a intervenccedilatildeo da execuccedilatildeo

material ficando a produccedilatildeo a cargo de outros profissionais que natildeo o designer E tal de-

terminaccedilatildeo entre conceito abstrato e fazer concreto em outras palavras projeto e execuccedilatildeo

pode ser comprovada na praacutetica com os seus ganhos e perdas para o ser humano desde

a Revoluccedilatildeo Industrial quando a divisatildeo de tarefas entre designers e artesatildeosoperaacuterios

torna-se evidente

Em complemento a esses argumentos no livro ldquoUma introduccedilatildeo agrave histoacuteria do designrdquo

publicado uma deacutecada depois desse artigo Cardoso confirma seu entendimento acerca

da separaccedilatildeo entre projeto e execuccedilatildeo ao discorrer com inuacutemeros exemplos19 sobre

19 Tal separaccedilatildeo se confirma tambeacutem ateacute nas atividades em que a parte projetual define a maior parte das estruturas que guiaratildeo a execuccedilatildeo como no caso dos projetos editoriais de livros e a criaccedilatildeo de faces tipograacuteficas Nesses projetos o imaterial espantosamente equivale ao digital e pode em certo sentido prescindir do mundo material como no caso dos e-books e suas fontes tipograacuteficas Em relaccedilatildeo agraves fontes a ocorrecircncia da divisatildeo de seu processo de produccedilatildeo entre projeto e execuccedilatildeo eacute ainda mais recuada no tempo Desde o periacuteodo da tipografia mecacircnica que se inicia com Gutenberg o trabalho conceitual da criaccedilatildeo das formas dos tipos ou de seu conjunto a face tipograacutefica pelos ldquodesignersrdquo de faces se diferenciava da produccedilatildeo fiacutesica da fonte tipograacutefica pelos puncionistas profissionais que geravam as matrizes para a posterior produccedilatildeo das letras em ligas de chumbo Mas neste caso especiacutefico em que a separaccedilatildeo de tarefas vai ateacute a terminologia (de um lado faces de tipo e de outro fontes tipograacuteficas) tal divisatildeo natildeo impedia nem impede na atualidade de um mesmo profissional atuar em ambas as eta-pas Para mais detalhes ver silva SL Faces e Fontes Multiescrita fundamentos e criteacuterios do design tipograacutefico 1ordf ed Belo Horizonte Adaequatio Editora 2016 lt wwwfacesefontescombr gt

105

as diferenccedilas entre as etapas de planejamento e de produccedilatildeo que permitiram reduzir o

tempo de fabricaccedilatildeo baratear o custo com a matildeo de obra especializada ao colocar cada

trabalhador executando uma tarefa simples e repetitiva separada das demais ldquoEm vez de

contratar muitos artesatildeos habilitados bastava um bom designer para gerar o projeto um bom

gerente para supervisionar a produccedilatildeo e um grande nuacutemero de operaacuterios sem qualificaccedilatildeo

nenhuma para executar as etapas de preferecircncia como meros operadores de maacutequinasrdquo (car-

doso 2008 p 34)

Retornando ao artigo de 1998 atentemos para como esse autor constroacutei a ligaccedilatildeo

entre os conceitos de design e designer com dois niacuteveis de significados dos objetos na

categoria de artefatos

Quero sugerir aqui que os artefatos mesmo natildeo possuindo significados perma-nentes ou fixos satildeo capazes de conter significados ligados tatildeo intimamente agrave sua natureza fiacutesica e concreta que estes podem ser considerados mais ou menos lsquoinerentesrsquo ou seja estaacuteveis em um grau infinitamente maior do que qualquer significado verbal [] (cardoso 1998 p 32)

Cardoso estabelece entatildeo outra diferenciaccedilatildeo que nos interessa por distinguir dois

aspectos de significaccedilatildeo quanto agrave essecircncia desses objetos Eacute importante destacar a rele-

vacircncia da abordagem de Cardoso operando uma clivagem entre aspectos ontoloacutegicos

e epistemoloacutegicos de um lado e aspectos natildeo essenciais de outro em um escrito de 20

anos atraacutes Ateacute onde pesquisamos abordagens expliacutecitas dessa natureza calcadas nessa

espeacutecie de diferenciaccedilatildeo ainda satildeo pouco exploradas em textos sobre teoria do design

Avancemos na linha de raciociacutenio deste autor

[] mesmo que natildeo funcione e mesmo que seja apropriado para outro uso (eg como um peso de papel ou um elemento decorativo) o reloacutegio reteacutem pelo menos dois niacuteveis de significaccedilatildeo que dificilmente satildeo apagados primeiramente a sua identificaccedilatildeo como exemplar de uma classe especiacutefica de objetos (a sua essecircncia ontoloacutegica) e em segundo lugar o fato de remeter agrave mediccedilatildeo da passagem do tempo (a sua essecircncia epistemoloacutegica) (cardoso 1998 p 32)

Acreditamos que a escolha que Cardoso faz do reloacutegio como exemplo para as duas

classes de objetos natildeo eacute arbitraacuteria Lembremos que Koyreacute seguido de Maldonado (cf

p 72-73 e 81-82) indica que a mudanccedila operada no surgimento da ciecircncia moderna com

consequecircncias para a Revoluccedilatildeo Industrial eacute de ordem da precisatildeo E Koyreacute recorre ao

106

exemplo do reloacutegio que segundo ele deixa de ser um utensiacutelio impreciso para o uso co-

tidiano e torna-se um instrumento de mediccedilatildeo para uso cientiacutefico epistecircmico

Todavia natildeo foi da relojoaria dos relojoeiros que finalmente saiu a relojoaria de precisatildeo O reloacutegio dos relojoeiros nunca ultrapassou mdash e jamais poderia fazecirc-lo mdash o estaacutegio do ldquoquaserdquo e o niacutevel do ldquomais-ou-menosrdquo O reloacutegio de pre-cisatildeo o reloacutegio cronomeacutetrico tem uma origem totalmente distinta De modo algum eacute uma promoccedilatildeo do uso praacutetico do reloacutegio Ele eacute um instrumento ou seja uma criaccedilatildeo do pensamento cientiacutefico ou melhor ainda a realizaccedilatildeo consciente de uma teoria Eacute verdade que uma vez realizado um objeto teoacuterico pode se tornar um objeto praacutetico objeto de uso corrente e cotidiano [] Mas natildeo eacute a utilizaccedilatildeo de um objeto que determina a sua natureza eacute a estrutura um cronocirc-metro continua sendo um cronocircmetro mesmo que marinheiros o empreguem E isso nos explica por que natildeo se atribui aos relojoeiros mas aos saacutebios natildeo a Jost Burgi e a Isaak Thuret mas a Galileu e a Huygens (assim como a Robert Hooke) as grandes invenccedilotildees decisivas a quem tambeacutem devemos o reloacutegio de pecircndulo e o reloacutegio regulado de mola (koyreacute 1991 p 283)

A concepccedilatildeo de que os instrumentos possuem fundamentos epistemoloacutegicos isto eacute

uma teoria subjacente agrave sua concepccedilatildeo e produccedilatildeo faz sentido e justifica a distinccedilatildeo entre

teacutecnica e tecnologia No entanto Koyreacute entende que a essecircncia de um instrumento per-

manece mesmo quando eacute usado cotidianamente de modo praacutetico como um cronocircmetro

para saber somente as horas e natildeo milissegundos em um laboratoacuterio Assim quando Koyreacute

afirma que eacute a estrutura que determina a natureza de um objeto e natildeo o uso ele estaacute im-

plicitamente defendendo que a essecircncia ontoloacutegica dos objetos da classe dos instrumentos

natildeo se altera Cardoso ateacute onde pudemos entender identifica tambeacutem essas estruturas e

faz uma distinccedilatildeo entre os significados inerentes ou ldquomais ou menos lsquoinerentesrsquordquo e os natildeo

essenciais Poreacutem ele nos alerta como antes dele Koyreacute para mudanccedilas de significados

dos artefatos que podem ocorrer com o passar do tempo

Se pensarmos no artefato natildeo como uma entidade abstrata mas a partir de exemplos concretos torna-se evidente que nenhum objeto possui um significado monoliacutetico ou fixo Os artefatos existem no tempo e no espaccedilo e vatildeo portanto perdendo sentidos antigos e os adquirindo novos agrave medida que mudam de contexto (cardoso 1998 p 31)

Quando cotejamos os discursos desses dois autores devemos ter em conta que Koyreacute

tratando do mesmo objeto que Cardoso mdash o reloacutegio mdash propotildee a classe ontoloacutegica dos

107

instrumentos enquanto Cardoso a classe dos artefatos cada um com suas nuances e di-

ferenccedilas de sentido De qualquer modo ambos os autores tem uma compreensatildeo de que

os significados originaacuterios e constitutivos desses gecircneros de objetos ligados agrave estrutura

(Koyreacute) ou a essecircncia (Cardoso) tendem a se preservar e ser mais estaacuteveis que aqueles

adquiridos com o passar do tempo e a popularizaccedilatildeo de suas aplicaccedilotildees

Existem apenas dois mecanismos baacutesicos para investir o artefato de significa-dos a atribuiccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo os quais correspondem em linhas gerais aos processos paralelos de produccedilatildeodistribuiccedilatildeo e consumouso Varia o grau de estabilidade dos diversos significados (sua capacidade de lsquoaderecircnciarsquo ao artefato) mas grosso modo pode-se dizer que os significados atribuiacutedos no momento de produccedilatildeodistribuiccedilatildeo tendem a ser mais duradouros e universais do que aqueles advindos das instacircncias muacuteltiplas de apropriaccedilatildeo pelo consumouso (cardoso 1998 p 33)

Discordamos das posiccedilotildees de Koyreacute e de Cardoso acerca de propriedades que satildeo

inerentes aos objetos No entanto para compreender nossa divergecircncia eacute necessaacuterio

irmos ateacute agrave sua causa que se desloca das questotildees ontoloacutegicas tratadas neste momento

pelos dois autores e se estabelece em outra esfera o campo da teoria do conhecimento

gnoseologia conforme a figura 11

METAFIacuteSICA

ONTOLOGIA ESTEacuteTICA

ARTE

TEORIA

DO CONHECIMENTOGNOSEOLOGIA

EPIST

EMOLO

GIAFILOSOFIA DA CIEcircNCIA

CIEcircNCIAamp

TEacuteCNICA

O SER EOS ENTES EM GERAL

Figura 11 Representaccedilatildeo das esferas da ontologia e da gnoseologia e dos movimentos de reflexatildeo que precisamos empreender em cada um desses campos para identificar as caracteriacutesticas dos artefatos fonte autor

108

Grosso modo20 de um ponto de vista gnoseoloacutegico isto eacute pressupondo que o conhe-

cimento se estabelece em uma relaccedilatildeo entre sujeito e objeto21 as afirmaccedilotildees de Koyreacute e

Cardoso sinalizam para uma compreensatildeo dessa relaccedilatildeo de caraacuteter realista uma vez que

ambos os autores entendem o objeto possuindo propriedades constitutivas intriacutensecas

e reais independentes do sujeito Jaacute o idealismo posiccedilatildeo diametralmente oposta ao rea-

lismo entende que o objeto eacute construiacutedo em nossa consciecircncia Nossa posiccedilatildeo em certo

sentido fenomenalista22 procura mediar realismo e idealismo Entendemos que os objetos

satildeo constituiacutedos a partir de uma uniatildeo de elementos sensiacuteveis (empiacutericos) e inteligiacuteveis

(intelectivos) e o sujeito (enquanto sujeito do conhecimento) eacute quem procede com essa

uniatildeo no ato de conhecer

Com essa diferenciaccedilatildeo estabelecida ao retornar ao acircmbito da ontologia podemos

pensar diferentemente de Koyreacute e Cardoso os aspectos estruturais ou essenciais que

estariam segundo esses autores mais fortemente ligados ao significado iacutentimo dos ob-

jetos (sejam eles instrumentos artefatosutensiacutelios ou de outros gecircneros como artiacutesti-

cos e ateacute naturais) podem ultrapassar a fronteira de seus sentidos originais natildeo apenas

incorporando novas caracteriacutesticas mas saltando de uma classe ontoloacutegica para outra

Acreditamos que quando algueacutem faz uso de um cronocircmetro fora do acircmbito da pesquisa

cientiacutefica para o qual foi originalmente concebido tal objeto deixa de ser compreendido

ontologicamente como um instrumento de precisatildeo e se torna um artefato ou utensiacutelio

Nosso entendimento eacute de que um objeto natildeo precisa sofrer qualquer alteraccedilatildeo fiacutesica para

passar de uma classe ontoloacutegica a outra O exemplo do urinol de Marcel Duchamp que

seraacute investigado no capiacutetulo 5 eacute radical a este respeito Para transformaacute-lo (ou transfi-

guraacute-lo como diria Arthur Danto) de artefato ou utensiacutelio em obra de arte Duchamp

20 Nosso procedimento de exposiccedilatildeo e atribuiccedilatildeo de posiccedilotildees a Koyreacute e a Cardoso eacute bastante superficial e somente se justifica para indicar o ponto de origem de nossa discordacircncia com esses autores Tanto o realismo quanto o idealismo conteacutem diversas categorias (realismo ingecircnuo natural e criacutetico e idealismo subjetivo e objetivo) com inuacutemeras e ricas variantes que satildeo abordadas em detalhes por Hessen (2000)

21 Conforme afirma Hessen ldquoNo conhecimento encontram-se frente a frente a consciecircncia e o objecto o sujeito e o objecto O conhecimento apresenta-se como uma relaccedilatildeo entre estes dois elementos que nela permanecem eternamente separados um do outro O dualismo sujeito e objeto pertence agrave essecircncia do conhecimentordquo (hessen 1980 p26)

22 Com essa denominaccedilatildeo que normalmente estaacute associada agrave posiccedilatildeo de Kant natildeo pretendemos assumir sua concepccedilatildeo gnoseoloacutegica como um todo com a qual partilhamos algumas convicccedilotildees mas com reservas

109

do ponto de vista fiacutesico apenas acrescentou uma assinatura que natildeo era a sua Frente ao

nosso posicionamento temos mais um uacuteltimo ponto em que a compreensatildeo de Cardoso

nesse artigo se distingue da nossa

Natildeo cabe ao design atribuir relogiosidade a um reloacutegio pois este jaacute o possui necessariamente com ou sem a participaccedilatildeo de um designer no processo de produccedilatildeo Natildeo a funccedilatildeo do designer natildeo eacute de atribuir ao objeto aquilo que ele jaacute possui aquilo que jaacute faz parte (in haerere) da sua natureza mas de enriquececirc-lo de fazer colar mdash aderir mesmo (ad haerere) mdash significados de outros niacuteveis bem mais complexos do que aqueles baacutesicos que dizem respeito apenas agrave sua identidade essencial Conforme assinalei acima esses significados podem ser de ordens diversas desde questotildees de seguranccedila e facilidade de uso ateacute noccedilotildees de moda prestiacutegio ou sexualidade Independentemente do tipo de significado que o designer queira atribuir ao artefato existe a questatildeo da capacidade de aderecircncia do significado em questatildeo Como todos os significados

mdash com a possiacutevel exceccedilatildeo dos mais baacutesicos mdash satildeo fluidos estando sujeitos agrave transformaccedilatildeo eou subversatildeo pelos mecanismos de apropriaccedilatildeo eles podem ser considerados como sendo mais ou menos duradouros dependendo da sua capacidade de resistir a esses e outros mecanismos (cardoso 1998 p 35)

Neste ponto Cardoso define o que ele compreende como a funccedilatildeo dos designers

enriquecerem os objetos com mais significados do que os ldquobaacutesicosrdquo proacuteprios da sua

natureza De modo nenhum recusamos o valor do enriquecimento mas natildeo podemos

abrir matildeo da consciecircncia e da capacidade do design e dos designers de atuar ontoloacutegica

e epistemologicamente sobre seus projetos Quando um designer (trabalhando isolada-

mente em grupo ou como vem ocorrendo cada vez mais em equipes multidisciplinares)

desenvolve um novo artefato ou instrumento (seja esse objeto algo ldquooriginalrdquo como

uma invenccedilatildeo ou uma reuniatildeo inusitada de conceitos e ideias jaacute existentes) o mundo se

amplia com a inclusatildeo de um novo item agrave realidade Essa ampliaccedilatildeo natildeo eacute de ldquoaderecircnciardquo

de significados mas de ordem de significaccedilatildeo mais profunda existencial e ontoloacutegica E

seu fundamento mdash no acircmbito subjacente da gnoseologia mdash eacute o de se conceber o objeto

como a somatoacuteria de um mundo sensiacutevel unido ao inteligiacutevel pelo sujeito

Mas qual a relevacircncia da diferenciaccedilatildeo entre uma atuaccedilatildeo na natureza iacutentima dos

objetos e aquela que os enriquecem aleacutem de uma explicitaccedilatildeo teoacuterica ou um exerciacutecio

mental de compreensatildeo da atividade projetual dos designers Acreditamos que uma das

110

vantagens da indeterminaccedilatildeo do design eacute a possibilidade caso desejemos de franquearmos

esferas do conhecimento que teoricamente (no sentido literal dessa palavra) natildeo teriacuteamos

acesso e onde natildeo poderiacuteamos atuar caso as fronteiras desse campo fossem claramente

delimitadas Assim nos unimos agrave Flusser ao retomar a pergunta da paacutegina 78 eacute possiacutevel

garantir autonomia a cada uma dessas disciplinas (ciecircncia teacutecnica design e arte) e ao

mesmo tempo ultrapassar ou pelo menos mitigar o modelo de cisatildeo que existe entre elas

Neste sentido acreditamos que o design pode atuar natildeo construindo pontes mas efeti-

vamente sendo a ponte que conecta aacutereas Com isso tambeacutem eacute possiacutevel avanccedilarmos em

direccedilatildeo a domiacutenios ateacute entatildeo impensados como o da natureza em seu acircmbito bioloacutegico

Essa atuaccedilatildeo natildeo pode ser considerada meramente um enriquecimento por mais que a

valorizaccedilatildeo dos artefatos seja entendida como um processo em um niacutevel mais complexo

como pensa Cardoso

Com todos os riscos que Flusser aponta e devemos atentar para eles o design opera

uma ampliaccedilatildeo da realidade em outras palavras uma operaccedilatildeo ontoloacutegica como tambeacutem

procede a arte de modo expliacutecito desde Duchamp No entanto uma pergunta precisa

ser respondida com quais elementos tal ponte se concretiza Como veremos no capiacutetulo

4 o conceito aristoteacutelico de miacutemesis eacute plenamente capaz de estruturar a ldquoponterdquo entre

diversas aacutereas como tambeacutem eacute constitutivamente um princiacutepio de natureza ontoloacutegica

Mas antes eacute necessaacuterio compreender e ultrapassar a questatildeo da subjetividade e objetividade

no design e na arte um dos temas do proacuteximo capiacutetulo jaacute anunciado no atual (cf p 103-

104) com a concepccedilatildeo de Cardoso que une esses dois elementos na disciplina do design

111

3 DA ESTEacuteTICA Agrave ONTOLOGIA NA ARTE E NO DESIGN

No capiacutetulo anterior construiacutemos uma estrutura de conexotildees entre ciecircncia arte e design

que demandou um percurso circular mais direcionado aos eixos ou esferas gnoseoloacutegica

e ontoloacutegica do que agrave esteacutetica (cf figura 11 p 107) A partir da constituiccedilatildeo desse arca-

bouccedilo parcial de caraacuteter propedecircutico a convergecircncia estabelecida conduziu as ques-

totildees investigadas para o foco da ontologia confirmando que nossa busca por elementos

relacionais entre design e arte no acircmbito desta esfera eacute profiacutecua No entanto devemos

considerar que tal confluecircncia ainda carece de uma investigaccedilatildeo orientada a partir da

esteacutetica Existem trecircs razotildees para esse movimento

1 Tendo em conta que rejeitamos a hierarquizaccedilatildeo do conhecimento eacute imprescindiacutevel

garantir equiliacutebrio nas anaacutelises sem privileacutegio da ciecircncia em detrimento da arte

2 A esfera da esteacutetica sedia temas inerentes agrave arte ou seja tem autonomia em relaccedilatildeo

agraves outras duas

3 Os temas como veremos podem ser correlacionados ao design quando transpomos

o nuacutecleo esteacutetico em direccedilatildeo agrave gnoseologia e ontologia

Dentro do processo de ordenaccedilatildeo da tese os trecircs motivos listados prefiguram a segun-

da etapa do meacutetodo transposiccedilatildeo da abordagem do tema de um vieacutes esteacutetico e gnoseoloacutegico

para ontoloacutegico (cf capiacutetulo 1 p 49)

A operaccedilatildeo baacutesica do capiacutetulo atual se efetiva a partir do cotejo dos conceitos de

subjetividade e objetividade nos domiacutenios da arte que satildeo em seguida transpostos para o

design No capiacutetulo anterior jaacute haviacuteamos identificado no pensamento de Cardoso (1998)

uma contraposiccedilatildeo que interpretamos como sendo essencialmente um desdobramento

dialeacutetico desses dois conceitos Mas na concepccedilatildeo de Cardoso o centro da questatildeo era

o design em sua relaccedilatildeo de um lado com a ciecircncia em seu caraacuteter de objetividade e de

outro com a arte com sua base de subjetividade Nossa tarefa atual (pressupondo o vieacutes

da epistemologia e da gnoseologia jaacute circunscrito e apontando para criteacuterios objetivos)

eacute pensar o vieacutes da esteacutetica que incorpora a subjetividade agrave compreensatildeo dos seus objetos

A intenccedilatildeo eacute primeiramente aprofundar na esfera da esteacutetica investigando a arte e seus

112

objetos e extrair os conceitos de que necessitamos Em seguida ultrapassar os limites

dessa esfera (como ultrapassamos os da gnoseologia no capiacutetulo anterior) incorporando

suas demandas ao territoacuterio da ontologia territoacuterio esse capaz de suportar os elementos

exclusivos das duas primeiras esferas na tarefa de fundamentar as relaccedilotildees entre design e

arte (figura 12)

Para esse empreendimento primeiramente nos apropriamos de uma releitura da

antinomia kantiana acerca do belo aplicada agrave arte contemporacircnea que transpomos ao

design Em seguida a partir das conclusotildees que chegamos com Kant da impossibilidade

de compreendermos o design por uma abordagem exclusivamente esteacutetica ou episte-

moloacutegica voltamos nossa atenccedilatildeo para a viabilidade de um caminho de caracteriacutesticas

ontoloacutegicas apoiados em Heidegger A intenccedilatildeo eacute mostrar como o modo de produccedilatildeo

da arte investigado atraveacutes desse vieacutes ao mesmo tempo possibilita alargar a compreensatildeo

do que satildeo os utensiacutelios e instrumentos como tambeacutem do que entendemos ser o campo

do design em suas relaccedilotildees com a arte

METAFIacuteSICA

ESTEacuteTICA

ONTOLOGIA

O SER EOS ENTES EM GERAL

TEORIA

DO CONHECIMENTOGNOSEOLOGIA

EPIST

EMOLO

GIAFILOSOFIA DA CIEcircNCIA

CIEcircNCIAamp

TEacuteCNICAARTE

Figura 12 Representaccedilatildeo da etapa de centralizaccedilatildeo da investigaccedilatildeo na esfera da esteacutetica em sua relaccedilatildeo com a da gnoseologia e ontologia fonte autor

113

31 Kant e a abordagem esteacutetica na arte e no design

Esta primeira seccedilatildeo tem origem na discussatildeo proposta pelo filoacutesofo e teoacuterico da arte Thier-

ry de Duve no capiacutetulo Kant after Duchamp de seu livro homocircnimo (de duve 1998)

A reflexatildeo de Thierry de Duve parte de uma anaacutelise do trabalho de Clement Greenberg

criacutetico de arte e do artista e ensaiacutesta Joseph Kosuth ambos envolvidos nas polecircmicas em

torno da arte e da esteacutetica que se desenrolaram principalmente nas deacutecadas de 1960 e 1970

nos Estados Unidos Sua abordagem busca em uma antinomia kantiana o entendimento

das posiccedilotildees associadas a Greenberg e Kosuth em relaccedilatildeo a subjetividade e a objetividade

dentro do territoacuterio da arte

Com o aprofundamento dessa investigaccedilatildeo especiacutefica percebemos as discussotildees

de meados do seacuteculo xx (das quais de Duve eacute testemunha) como um ldquoponto focalrdquo de

Cassirer (1992 p 48) Elas ainda se justificam tanto por causa da crescente ampliaccedilatildeo das

fronteiras da arte no contexto contemporacircneo quanto pelas suas interseccedilotildees com outros

campos como o design que tambeacutem vecircm alargando seus limites Assim assumindo que

esse tema estabelece viacutenculos com outros campos construiacutemos trecircs hipoacuteteses para inves-

tigar exclusivamente a questatildeo da subjetividade versus objetividade no acircmbito do design

1 A questatildeo se transfere da arte e contamina o design de forma perifeacuterica

2 A questatildeo se transfere da arte e contamina o design indo aleacutem da periferia atingindo

o seu cerne conceitual

3 A questatildeo natildeo se transfere mas eacute intriacutenseca ao design e suscita de modo anaacutelogo ao

que ocorre com a arte discussotildees sobre o estatuto ontoloacutegico do design

Nenhuma dessas trecircs hipoacuteteses a princiacutepio nos parece simples de perseguir como

meta nesta primeira seccedilatildeo mas dependendo da posiccedilatildeo que assumimos somos enviados as

concepccedilotildees de design investigadas no capiacutetulo anterior que se aproximam ou se distan-

ciam do que hoje se entende como ciecircncia1 enquanto campo direcionado agrave objetividade

1 Na confirmaccedilatildeo de qualquer das trecircs possibilidades existe uma tarefa adicional e singular pela frente uma vez que as controveacutersias que partem de Kant sobre a subjetividade e a objetividade ateacute onde pudemos investigar ainda persistem no territoacuterio da arte da esteacutetica e da filosofia da arte Isto obrigaraacute em um estudo posterior a busca por respostas para o design que ainda natildeo foram encontradas para a arte

114

Thierry de Duve inicia o capiacutetulo supracitado apresentando-nos trecircs nomes no campo

da arte dentro do contexto Flower Power e guerra do Vietnatilde das deacutecadas de 1960 e 1970

Jack Burnham Joseph Beuys e Clement Greenberg Todos com afirmaccedilotildees aparentemente

coincidentes a ldquotodo ser humano eacute um artistardquo mas que trazem grandes diferenccedilas ideo-

loacutegicas quando vistas em profundidade A partir disso sua anaacutelise se pauta pela praacutetica

artiacutestica desse periacuteodo tendo como referecircncia a influecircncia dos readymades de Duchamp

sobre artistas e criacuteticos de arte mas principalmente levando em conta as posiccedilotildees de

Kosuth e de Greenberg O texto repleto de informaccedilotildees histoacutericas e teoacutericas passa pelo

romantismo alematildeo chegando ateacute Lombroso e Freud entre muitos outros pesquisadores

de aacutereas distintas da arte e retorna afinal ao seacuteculo xx Mas encoberta nessa reconstituiccedilatildeo

histoacuterica o que interessa mais a de Duve acreditamos (o tema que atravessa esse capiacutetulo

do seu livro) eacute a antinomia kantiana sobre o gosto com a sua releitura substituindo ldquoisto

eacute belordquo do julgamento esteacutetico claacutessico por ldquoisto eacute arterdquo da cultura contemporacircnea

No entanto de Duve tem uma forma peculiar de construir sua argumentaccedilatildeo que

coloca Kosuth e Greenberg como personagens opostos na antinomia apontando o que

ele considera erros e limitaccedilotildees de cada um deles Na medida em que nosso propoacutesito tem

encadeamento em dois niacuteveis isto eacute primeiro a arte e depois o design vamos reservar a

seccedilatildeo atual para explorar a antinomia kantiana do gosto no territoacuterio da arte e em seguida

na seccedilatildeo 32 investiremos na transposiccedilatildeo da problemaacutetica para o acircmbito do design com

o apoio heideggeriano

311 Subjetividade e objetividade no territoacuterio da arte

Thierry de Duve mostra-nos como Greenberg relutou durante os anos 1960 em reconhe-

cer a relevacircncia de Duchamp2 Mas quando esse criacutetico norte-americano assume a obra

de Duchamp aponta para a crenccedila em uma sobreposiccedilatildeo entre arte e esteacutetica Conforme

mostra de Duve com duas citaccedilotildees de Greenberg

2 No capiacutetulo 5 veremos em detalhe como Duchamp precede Andy Warhol com a ldquotransfiguraccedilatildeordquo mdash para usar a expressatildeo de Danto (2005) mdash de objetos do design em obras de arte

115

Demonstrou-se algo que de fato valia a pena demonstrar Arte do tipo da de Duchamp mostrou como nunca acontecera ateacute entatildeo o quatildeo ampliada pode ser a categoria da experiecircncia esteacutetica formal Embora sempre tivesse sido verdade tinha que ser demonstrado para que pudesse ser reconhecida como verdadeira A disciplina da esteacutetica recebeu nova luz (greenberg 1976 p 93 apud de duve 1998 p 130)

Desde entatildeo [dos readymades de Duchamp] tornou-se mais evidente tambeacutem que tudo o que pode ser experimentado esteticamente pode tambeacutem ser expe-rimentado enquanto arte Em resumo arte e esteacutetica natildeo soacute se sobrepotildeem mas coincidem (greenberg 1979 p 129 apud de duve 1998 p 130)

Entretanto seguindo a anaacutelise de Thierry de Duve Kosuth ao final dos anos 1960

vai em direccedilatildeo oposta apontando para uma separaccedilatildeo entre arte e esteacutetica (figura 13)

Entatildeo qualquer parte da filosofia que lidasse com a lsquobelezarsquo e consequentemente com o gosto seria de forma inevitaacutevel obrigada a discutir tambeacutem a arte Desse lsquohaacutebitorsquo surgiu a noccedilatildeo de existecircncia de ligaccedilatildeo conceitual entre arte e esteacutetica o que natildeo eacute verdadeiro (kosuth 1969 p 76 apud de duve 1998 p 131)

312 Os conceitos de act e art

Por um lado Greenberg tem em vista a pintura e escultura modernista Por outro Kosuth

procura regras para muitas das praacuteticas artiacutesticas dos anos 1960 que iam aleacutem das fronteiras

GREENBERG

sobreposiccedilatildeo e coincidecircncia entre arte e esteacutetica

separaccedilatildeo entre arte e esteacutetica

KOSUTH

Figura 13 Esquema da interpretaccedilatildeo de Thierry de Duve da posiccedilotildees de Clement Greenberg e Joseph Kosuth em relaccedilatildeo agrave arte e agrave esteacutetica fonte autor

116

dos meios tradicionais mas com uma separaccedilatildeo conceitual entre arte e esteacutetica neste caso

ou se reivindica o nome ldquoarterdquo mas ao preccedilo da esteacutetica ou fica-se com a esteacutetica sem

fazer uso do termo ldquoarterdquo Eacute a partir dessa dicotomia que de Duve apropriando-se dos

acrocircnimos act (Aesthetically Claimed Things mdash Coisas Consideradas Esteacuteticas) e art

(Aesthetically Rejected Things mdash Coisas Rejeitadas Esteticamente)3 apresenta exemplos

dessas duas categorias (figura 14)

Para act ele apresenta principalmente o Fluxus4 que com suas performances e

happenings procurava experiecircncias esteacuteticas sem que isto fosse considerado arte As

command-pieces ou intructions-pieces (figura 15) poderiam ser executadas por qualquer

um ou seja o trabalho natildeo era mais denominado arte nem o autor deveria ser mais artista

Para art temos desde o Erased de Kooning (1953) de Robert Rauschenberg (figura 16)

e o Burning Small Fires (1969) de Bruce Naumann ateacute o trabalho sem tiacutetulo (1967) de

Christine Koslov que consistia num rolo de filme de 16 mm virgem (figura 17)

3 Acrocircnimos criados pelo casal canadense Ian e Elaine Baxter que separam sua praacutetica em duas catego-rias Thierry de Duve lembra que o casal natildeo tem exatamente a mesma posiccedilatildeo de Kosuth pois art se produz a partir de coisas rejeitadas esteticamente e natildeo a partir de uma rejeiccedilatildeo agrave esteacutetica

4 Grupo de artistas de vaacuterias nacionalidades estruturado ao redor da figura de George Maciunas um artista lituanecircs radicado nos Estados Unidos

ACT

Aesthetically Claimed Things mdash Coisas Consideradas Esteacuteticas

Perfomances e happenings (experiecircncias esteacuteticas sem ser arte) Fluxus

Aesthetically Rejected Things mdash Coisas Rejeitadas Esteticamente

Erased de Kooning (arte sem esteacutetica) Robert Rauschenberg

ART

Figura 14 Esquema da interpretaccedilatildeo de Thierry De Duve dos acroacutenimos act e art criados por Ian e Elaine Baxter fonte autor

117

Figura 15 Fotografia da performance (1962) de George Maciunas para Jackson Mac Low fonte momaorg

Figura 16 Fotografia da obra de Robert Rauschen-berg (1953) criada apagando um desenho do artista Willem de Kooning fonte momaorg

Figura 17 Fotografia de obra sem tiacutetulo (1967) de Christine Koslov a partir de um rolo de filme virgem A legenda na tampa da lata tem a inscri-ccedilatildeo ldquoTransparent Film nordm2 ndash White 100ft 16mm ndash 1967 fonte henry-mooreorg

118

313 Antinomia e dilema

A partir dos exemplos anteriores dois obstaacuteculos surgem para as concepccedilotildees de Greenberg

e Kosuth Em primeiro lugar com act os trabalhos correm o risco de serem produzidos

solipsisticamente caso natildeo sejam comunicados ao mundo da arte Em segundo com

art natildeo se pode negar que os trabalhos tenham propriedades visuais e sejam passiacuteveis

de apreciaccedilatildeo esteacutetica (figura 18)

Tudo isso aponta segundo de Duve para uma contradiccedilatildeo ou antinomia se ficamos

com act (esteacutetico no sentido de Greenberg) natildeo eacute possiacutevel acreditar que a arte tenha sido

modificada em sua natureza e que o julgamento de gosto (aquele aplicado agrave arte antiga

ateacute a modernista) perdeu seus direitos Para de Duve uma possiacutevel consequecircncia dessa

concepccedilatildeo levada ao extremo eacute considerarmos o readymade uma fraude ou buscarmos

uma continuidade na histoacuteria da arte rejeitando a antiarte ou movimentos do Dadaiacutesmo

em diante Se ficarmos com art (arte no sentido de Kosuth) acreditamos que a arte

depois de Duchamp eacute conceitual e da mesma forma exagerando podemos retroagir

essa concepccedilatildeo e apagar a arte anterior a Duchamp Thierry de Duve lembra que isto eacute o

que Kosuth pretende quando afirma ldquoNo que concerne agrave arte as pinturas de Van Gogh

ACT (esteacutetico no sentido de Greenberg

Aesthetically Claimed Things mdash Coisas Consideradas Esteacuteticas

OBSTAacuteCULO risco de solipsismo em relaccedilatildeo ao mundo da arte

Aesthetically Rejected Things mdash Coisas Rejeitadas EsteticamenteOBSTAacuteCULO os trabalhos de ART continuam podendo ser apreciados esteticamente

ART (arte no sentido de Kosuth)

Figura 18 Esquema dos obstaacuteculos a cada posiccedilatildeo act e art que as impedem de cumprir seus objetivos plenamente fonte autor

119

natildeo valem mais do que sua paletardquo (kosuth 1969 p 82 apud de duve 1998 p 134)

Este dilema para de Duve eacute intoleraacutevel pois tanto act quanto art eliminam metade

dos fatos e tornam os trabalhos de arte presos a uma determinada ideologia (figura 19)

Baseado nos argumentos anteriores de Duve avanccedila entatildeo em sua criacutetica agraves posiccedilotildees

de Greenberg e Kosuth que foge ao escopo da tese e em seguida apresenta a sua saiacuteda

para o dilema art versus act apoiado em Kant Sigamos seu raciociacutenio

314 Uma releitura de Kant do belo agrave arte

A proposta de Thierry de Duve para escapar agrave antinomia eacute a de que a afirmaccedilatildeo que pro-

duziu os readymades ou seja ldquoisto eacute arterdquo expressa um julgamento esteacutetico no sentido

kantiano Para desenvolver seu argumento esse autor cita parte do paraacutegrafo 56 da Criacutetica

da faculdade do juiacutezo (figura 20)

Tese o juiacutezo de gosto natildeo se funda sobre conceitos pois do contraacuterio se poderia disputar sobre ele (decidir mediante demonstraccedilotildees)

ACT (esteacutetico no sentido de Greenberg

Aesthetically Claimed Things mdash Coisas Consideradas Esteacuteticas

EXTREMO a arte natildeo foi modificada em sua natureza mdash o readymade eacute uma fraude

Aesthetically Rejected Things mdash Coisas Rejeitadas EsteticamenteEXTREMO a arte depois de Duchamp eacute conceitual mdash natildeo existiu arte anterior

ART (arte no sentido de Kosuth)

Figura 19 Esquema do caso extremo cuja consequecircncia segundo Thierry de Duve proveacutem das posiccedilotildees adotadas por Greenberg e Kosuth fonte autor

120

Antiacutetese o juiacutezo de gosto funda-se sobre conceitos pois do contraacuterio natildeo se poderia natildeo obstante a diversidade do mesmo discutir sequer uma vez sobre ele (pretender a necessaacuteria concordacircncia de outros com este juiacutezo)

(kant 2005 p 183 sect 56)

Thierry de Duve faz questatildeo de lembrar-nos neste ponto que Kant define gosto

como ldquoa faculdade de julgar o belordquo5 acrescentando que o principal interesse dele era o

belo natural E mais uma vez cita Kant para mostrar como o filosofo alematildeo resolve a

antinomia (figura 21)

Por isso na tese dever-se-ia dizer o juiacutezo de gosto natildeo se fundamenta sobre conceitos determinados na antiacutetese poreacutem o juiacutezo de gosto contudo se funda sobre um conceito conquanto indeterminado (nomeadamente do substrato supra-sensiacutevel dos fenocircmenos) e entatildeo natildeo haveria entre eles nenhum conflito (kant 2005 p 185 sect 57)

5 Thierry de Duve alerta-nos para o fato de que tal julgamento natildeo eacute de cogniccedilatildeo (consequentemente natildeo loacutegico) mas sim esteacutetico ou seja segundo ele o ldquoisto eacute belordquo eacute o que se pode denominar julgamento esteacutetico claacutessico

TESE

SOLUCcedilAtildeO DA ANTINOMIA KANTIANA DE GOSTO

o juiacutezo de gosto funda-se sobre um conceito indeterminado

ANTIacuteTESE

o juiacutezo de gosto natildeo se funda sobre conceitos determinados

Figura 21 Esquema da resoluccedilatildeo da antinomia do gosto kantiana fonte autor

TESE

A ANTINOMIA KANTIANA DE GOSTO

o juiacutezo de gosto funda-se sobre conceitos

ANTIacuteTESE

o juiacutezo de gosto natildeo se funda sobre conceitos

Figura 20 Esquema da antinomia do gosto kantiana fonte autor

121

Mas para que possamos compreender a saiacuteda kantiana de Duve discorre sobre o con-

ceito de ldquosubstrato supra-sensiacutevelrdquo De forma bastante resumida o que se pode afirmar eacute

que este conceito eacute tratado nas trecircs Criacuteticas sendo um requisito de razatildeo necessaacuterio para

pensar a natureza (primeira Criacutetica) a liberdade eacutetica (segunda Criacutetica) e o julgamento de

gosto enquanto reivindicando validade universal (terceira Criacutetica) mesmo sendo resulta-

do de sentimento subjetivo Poreacutem o essencial eacute que apesar de subjetivo o supra-sensiacutevel

eacute um princiacutepio compartilhado com toda a humanidade Essa eacute a saiacuteda de Kant que une

subjetividade e universalidade

Quando substituiacutemos o ldquoisto eacute belordquo por ldquoisto eacute arterdquo podemos colocar qualquer

obra de arte de nossa escolha no lugar do ldquoistordquo e endossar qualquer ideia de arte que

escolhermos Se acreditarmos em um conceito de arte (ideia de arte determinada) ele

poderaacute ser contrariado pela ideia de qualquer outra pessoa Se entretanto nossa doutrina

eacute de gosto (ideia de arte indeterminada) ela pode ser contrariada tanto pelos que natildeo

compartilham de nosso gosto quanto pelos que pensam que arte natildeo eacute uma questatildeo de

gosto (figura 22)

315 Uma soluccedilatildeo incompleta ou a incompletude como soluccedilatildeo

Se a saiacuteda kantiana parece incompleta retomar o panorama da esteacutetica da eacutepoca em que

Kant a propotildee contribui para entender o que se ganha com sua posiccedilatildeo Grosso modo de

IDEIA DE ARTE DETERMINADA

APROPRIACcedilAtildeO DA SOLUCcedilAtildeO KANTIANA PARA A ARTE

doutrina de gosto contrariada por quem natildeo compartilha nosso gosto e por aqueles que pensam que arte natildeo eacute questatildeo de gosto

isto eacute arte endossa qualquer obra de arte e qualquer ideia de arte

IDEIA DE ARTE INDETERMINDA

Figura 22 Esquema da apropriaccedilatildeo e transferecircncia feita por Thierry de Duve da resoluccedilatildeo da antinomia do gosto kantiana para o universo da arte contemporacircnea fonte autor

122

um lado encontravam-se as esteacuteticas de cunho racionalista que derivavam o conceito de

belo dos conceitos de harmonia e de perfeiccedilatildeo De outro as esteacuteticas de caraacuteter empirista

com uma ideia de gosto derivado somente da sensaccedilatildeo As primeiras estavam presas a

uma universalidade que perdia a singularidade da experiecircncia artiacutestica e as uacuteltimas atadas

a uma singularidade da opiniatildeo do chamado ldquogosto natildeo se discuterdquo que as impedia de

ascender ao universal

No entanto a foacutermula de Kant apresenta uma esteacutetica universalista sem conceito

ou universalista subjetiva (distinta do universalismo conceitual ou objetivo da ciecircncia)

Este universalismo subjetivo pode ser interpretado como inacabado na medida em que

sustenta de modo paradoxal6 uma totalidade que natildeo abre matildeo da singularidade da

experiecircncia de cada um Resta saber se eacute possiacutevel para os nossos propoacutesitos aceitar uma

soluccedilatildeo dessa natureza

Do nosso ponto de vista o inacabado do conceito natildeo eacute um problema mas pelo

contraacuterio espelha a proacutepria incompletude inerente ao fazer artiacutestico contemporacircneo

em seus diversos aspectos no trabalho do artista na atuaccedilatildeo do criacutetico e na fruiccedilatildeo do

espectador que se tornou ativo Nesse sentido as palavras da filoacutesofa Virginia Figueiredo

reforccedilam a posiccedilatildeo kantiana

Eacute a insistecircncia kantiana de que o juiacutezo esteacutetico natildeo eacute capaz de nos forne-cer um conceito o que a torna estranhamente atual Pois a meu ver todo e qualquer criteacuterio objetivo ou conceito preacutevio seja ele de belo de feio ou de sublime estaacute fadado ao fracasso na sua tentativa de apreensatildeo filosoacutefica da produccedilatildeo recente da arte Num ambiente em que ldquotudo pode ser arterdquo a ne-cessidade de uma reflexatildeo singular caso a caso soacute se agrava Mesmo sem ou exatamente porque natildeo dispotildee de qualquer criteacuterio ou conceito estabelecido a priori (daiacute decorre uma das grandes dificuldades das condiccedilotildees contempo-racircneas da experiecircncia esteacutetica) o espectador natildeo pode permanecer passivo acatando tudo o que lhe colocam diante dos olhos como se fosse arte Mais do que nunca o espectador estaacute ldquoobrigadordquo ao exerciacutecio da criacutetica mais do que nunca ele tem de se perguntar como de Duve nos indicou ldquoisto eacute arterdquo (figueiredo 2008 p 37)

6 Paradoxal natildeo tem aqui a mesma conotaccedilatildeo de antinocircmico como ocorre no uso desses termos em um sentido menos rigoroso ou as vezes indiscriminado A antinomia pressupotildee uma tese e uma antiacutetese (figura 20 p 120) no interior de um raciociacutenio ou princiacutepio O paradoxo distintamente carrega em sua constituiccedilatildeo uma uacutenica tese ou conceito que contraria a opiniatildeo ou crenccedila compartilhada por uma maioria

123

316 Subjetividade e objetividade no territoacuterio do design

Mesmo aceitando Duchamp como um marco e um divisor de aacuteguas bem como constatando

o niacutevel de ampliaccedilatildeo das fronteiras da arte nos uacuteltimos cem anos e interpretando tudo isso

sob o crivo kantiano uma objeccedilatildeo poderia ser feita a uma transposiccedilatildeo subsequente do

princiacutepio kantiano da arte ao design E mesmo para aqueles que admitem o argumento de

Thierry de Duve (da passagem do belo agrave arte) franquear o uso desse princiacutepio kantiano

ao design (princiacutepio esse que eacute ao mesmo tempo subjetivo mas compartilhado por todos

os seres humanos) eacute se comprometer com um procedimento que exige detalhamento e

fundamentaccedilatildeo para se tornar claro

No entanto existe um fator externo agrave questatildeo da passagem da arte ao design que

uma vez elucidado pode minimizar o esforccedilo de compreensatildeo No nosso entendimento

parte da desconfianccedila em relaccedilatildeo ao princiacutepio kantiano natildeo vem apenas de dentro dos

ciacuterculos epistemoloacutegicos Pode vir de certa compreensatildeo disseminada em nossa cultura

em que se associa universalidade a objetividade E esses dois conceitos como vimos no

capiacutetulo anterior natildeo por coincidecircncia tambeacutem satildeo pilares da concepccedilatildeo ocidental de

ciecircncia Mas esse eacute um problema trataacutevel dentro do proacuteprio sistema de Kant uma vez que

esse autor trabalha com o conceito de universalidade subjetiva no acircmbito da esteacutetica na

Criacutetica da faculdade do juiacutezo (kant 2005) mas trabalha tambeacutem com o de universali-

dade objetiva no acircmbito das ciecircncias onde sua Criacutetica da razatildeo Pura (kant 1989) tem

inegaacutevel contribuiccedilatildeo para a teoria do conhecimento

317 Outra releitura de Kant da arte ao design

Racionalistas e empiristas contemporacircneos atrelados a soluccedilotildees preacute-kantianas que pri-

vilegiam apenas a mente ou as sensaccedilotildees diriam que eacute difiacutecil aceitar uma posiccedilatildeo como

a de Kant que procura uma mediaccedilatildeo mas inclui um paradoxo em seu interior Poreacutem

o tipo de argumento kantiano que afasta antinomias mas admite paradoxos vem se

tornando cada vez mais recorrente Como afirma Bonsiepe

124

Encontramo-nos diante de um paradoxo Projetar significa expor-se e viver com paradoxos e contradiccedilotildees mas nunca camuflaacute-los sob um manto harmoniza-dor O ato de projetar deve assumir e desvendar essas contradiccedilotildees Em uma sociedade torturada por contradiccedilotildees o design tambeacutem estaacute marcado por essas antinomias (bonsiepe 2011 p 25)

Essas ocorrecircncias natildeo se restringem somente a teorias das ciecircncias humanas e sociais (pe-

las proacuteprias caracteriacutesticas imanentes ao objeto dessas disciplinas que eacute indissociado da

complexidade do ser humano) mas encontram-se tambeacutem nas chamadas ciecircncias ldquodurasrdquo

como a fiacutesica quacircntica7 e a relativista

Assim para prosseguirmos com nosso objetivo eacute necessaacuterio avaliar em retrospecto

o que foi conquistado concordar pelo menos provisoriamente com duas construccedilotildees

teoacutericas e apostar em uma terceira elaboraccedilatildeo Esses passos podem ser sintetizados na

lista a seguir

1ordm A soluccedilatildeo de Kant para a antinomia do gosto nos domiacutenios da esteacutetica pode ser

questionada mas eacute construiacuteda com requisitos de razatildeo

2ordm A tese de Thierry de Duve transpondo a soluccedilatildeo kantiana da antinomia do gosto do

acircmbito do belo no seacuteculo xviii para o da arte contemporacircnea segue os operadores

kantianos

3ordm A tese de Thierry de Duve pode ser conduzida do acircmbito da arte contemporacircnea

para o campo do design

Portanto para avanccedilarmos eacute preciso aceitar que a foacutermula original kantiana ainda se

mostra adequada para pensar a questatildeo da subjetividade versus objetividade em disciplinas

como o design que preservam o subjetivo como parte central de seus fundamentos Mas

diante de pelo menos dois saltos conceituais devemos nos atentar para um questionamento

7 Ficaremos com apenas dois exemplos paradoxais na mecacircnica quacircntica sem recorrer ao ceacutelebre caso do Paradoxo epr (Einstein-Podolsky-Rosen) que eacute um desdobramento dessa teoria Um primeiro exemplo eacute o Princiacutepio de Complementaridade de Niels Bohr que aceita aspectos mutuamente exclu-dentes em niacutevel subatocircmico considerando-os ao mesmo tempo complementares Um segundo eacute o Princiacutepio de Incerteza de Werner Heisenberg (cujo nome jaacute aponta para um paradoxo) que derivou do formalismo quacircntico independentemente das relaccedilotildees de incerteza serem interpretadas como ligadas agraves alteraccedilotildees de condiccedilotildees produzidas pelo observador e seus instrumentos como queria inicialmente o proacuteprio Heisenberg ou serem caracteriacutesticas essenciais da mecacircnica quacircntica como acreditou Bohr (cassirer 1956)

125

de caraacuteter hermenecircutico eacute possiacutevel avanccedilar nas cadeias que se conectam por meio de uma

uacutenica foacutermula para compreender o belo a arte e o design

Nossa resposta a este tipo de inquiriccedilatildeo para justificar que podemos seguir em frente

eacute de que primeiramente um passo semelhante jaacute foi dado por Cardoso (capiacutetulo 2 p

103-104) quando de sua proposta para pensar o que caracteriza o design e que inter-

pretamos como uma dialeacutetica entre objetividade e subjetividade E essa dialeacutetica vem se

mostrando profiacutecua Em segundo um princiacutepio como o kantiano que busca validade

universal deve ser capaz de ultrapassar a provisoriedade heuriacutestica e se estabelecer como

lei Mas devemos ressaltar lei entendida como sempre passiacutevel de refutaccedilatildeo

318 A universalidade objetiva no design

Se como vimos no capiacutetulo 2 pensar a universalidade em seu caraacuteter epistecircmico leva

a conectaacute-la quase que invariavelmente com a objetividade seraacute possiacutevel encontrarmos

correspondecircncia desse par conceitual com o campo do design Ou seja o design faz uso

da universalidade objetiva ou conceitual analogamente ao que faz a ciecircncia Acreditamos

que sim mesmo que tal uso natildeo seja suficiente para categorizaacute-lo como ciecircncia Vamos

aos argumentos

Um primeiro argumento eacute de ordem histoacuterica jaacute sinalizado por Cardoso (1998) no

capiacutetulo 2 (p 102) Como uma disciplina jovem e derivada das ciecircncias sociais aplicadas

que busca fundamentos natildeo somente na sociologia antropologia e histoacuteria mas tambeacutem

em outras ciecircncias como a comunicaccedilatildeo e a psicologia e estreita cada vez mais suas re-

laccedilotildees com as ciecircncias naturais e exatas o design necessita de uma elaboraccedilatildeo discursiva

que amplie o diaacutelogo com seus pares E para isso eacute preciso evidentemente ter entre seus

pressupostos a universalidade e a objetividade natildeo somente para efetivar esse diaacutelogo

mas tambeacutem para construir suas bases metafiacutesicas Tais bases como vimos no capiacutetulo

1 desde o iniacutecio da modernidade satildeo formadoras de princiacutepios meacutetodos e criteacuterios que

ordenam novos campos de pesquisa mesmo que alguns desses campos natildeo almejem se

firmar enquanto ciecircncia

126

Exemplos dessas bases podem ser detectados nos departamentos e escolas de be-

las-artes e de muacutesica das universidades onde natildeo se cogita fazer ciecircncia em seu sentido

estrito Mas seus programas de poacutes-graduaccedilatildeo atuam com procedimentos cientiacuteficos ou

pelo menos com pressupostos metafiacutesicos tanto em seu aspecto teoacuterico para organizar

e ordenar seus meacutetodos de pesquisa quanto em seu caraacuteter pragmaacutetico para justificar e

receber as verbas8 de que necessitam como propor e executar projetos em parceria com

a iniciativa privada e com outras instituiccedilotildees

Indo aleacutem desses arranjos estruturais aos quais cada disciplina se adeacutequa existe um

segundo argumento na defesa da universalidade objetiva como imprescindiacutevel ao design

Ele estaacute expliacutecito na afirmaccedilatildeo recorrente de que o design natildeo pode prescindir da ideia

de conceito Essa ideia mesmo nos esquecendo dos pressupostos metafiacutesicos eacute inerente

aos processos que conduzem e ordenam qualquer projeto de design das fases iniciais de

concepccedilatildeo e planejamento agrave finalizaccedilatildeo e concretizaccedilatildeo do produto Ou seja o conceito

(equivalente agrave objetividade) estaacute tambeacutem na praacutetica desse campo

319 A universalidade subjetiva no design

Se aceitamos a universalidade objetiva nos territoacuterios da epistemologia e da gnoseologia

resta buscarmos confirmaccedilatildeo para a universalidade subjetiva Assim retomemos a ideia

contida na figura 22 na paacutegina 121 que representava a apropriaccedilatildeo feita por de Duve da

soluccedilatildeo kantiana para a arte contemporacircnea e faccedilamos a sua conduccedilatildeo para o design

Atentemos que essa dupla passagem vem da soluccedilatildeo de Kant para a antinomia sobre o

gosto nos domiacutenios da esteacutetica em que de Duve substitui o ldquoisto eacute belordquo pelo ldquoisto eacute arterdquo

e agora por nossa conta substituiacutemos ldquoisto eacute arterdquo pelo ldquoisto eacute designrdquo

8 A justificativa de Gui Bonsiepe apresentada no capiacutetulo 1 paacutegina 42 sobre o orccedilamento ser o motivo pelo qual algumas instituiccedilotildees de ensino se posicionam a favor da indistinccedilatildeo entre arte e design ob-viamente natildeo explica tudo acerca da defesa dessa indistinccedilatildeo No entanto no acircmbito da organizaccedilatildeo interna dessas instituiccedilotildees indica uma mescla do uso de argumentos administrativos de poliacutetica universitaacuteria juntamente com os de fundamentaccedilatildeo metafiacutesica

127

Ao substituirmos o ldquoisto eacute arterdquo pelo ldquoisto eacute designrdquo podemos colocar qualquer pro-

duto de design de nossa escolha no lugar do ldquoistordquo e endossar qualquer ideia de design que

escolhermos Se acreditarmos em um conceito de design (ideia de design determinado)

ele poderaacute ser contrariado pela ideia de qualquer outro designer Se entretanto nossa

doutrina eacute de gosto em seu sentido de convicccedilatildeo subjetiva (ideia de design indeterminado)

ela pode ser contrariada tanto pelos que natildeo compartilham de nosso gosto quanto pelos

que pensam que design natildeo eacute uma questatildeo de gosto A figura 23 representa a transferecircncia

da soluccedilatildeo kantiana para o design

Se concordarmos com essa transposiccedilatildeo ficam claros pelo menos dois pontos funda-

mentais Primeiro tanto a ideia de design determinado quanto a ideia de design indeter-

minado colocam o design em equivalecircncia com a arte e como consequecircncia eliminam

nossa primeira hipoacutetese inicial deste capiacutetulo de que a questatildeo da subjetividade versus

objetividade se transfere da arte e contamina o design de forma perifeacuterica Mas a trans-

posiccedilatildeo vai aleacutem da periferia Se por um lado o design enquanto campo tem uma histoacuteria

extremamente curta em relaccedilatildeo agrave da arte conectado agrave produccedilatildeo em seacuterie e agrave revoluccedilatildeo

industrial por outro alguns dos pressupostos que o animam (teacutecnicos artiacutesticos e cien-

tiacuteficos) caminham juntos desde suas origens gregas Deste modo cai por terra tambeacutem

a segunda hipoacutetese de contaminaccedilatildeo pela arte Resta-nos a terceira com a qual ficamos

a questatildeo da subjetividade versus objetividade eacute intriacutenseca ao design e suscita de modo

anaacutelogo ao que ocorre com a arte discussotildees sobre o estatuto ontoloacutegico do design

IDEIA DE DESIGN DETERMINADO

APROPRIACcedilAtildeO DA SOLUCcedilAtildeO KANTIANA PARA O DESIGN

doutrina de gosto contrariada por quem natildeo compartilha nossa opiniatildeo e por aqueles que pensam que design natildeo eacute questatildeo de opiniatildeo

isto eacute design endossa qualquer projeto e qualquer ideia de design

IDEIA DE DESIGN INDETERMINADO

Figura 23 Esquema da apropriaccedilatildeo e transferecircncia da resoluccedilatildeo da antinomia do gosto kantiana para o design fonte autor

128

Assim podemos dizer que aceitando-se a terceira hipoacutetese9 natildeo eacute possiacutevel pensar o

design como um campo com pretensotildees a se tornar ciecircncia pelo menos no modelo da

atualidade uma vez que a ideia de design determinado e a de design indeterminado apesar

de conduzirem a uma universalidade almejada pela ciecircncia contemplam e incorporam

tambeacutem o subjetivo Mas isso jaacute era previsiacutevel por dois motivos

1 O capiacutetulo 2 ao expor as posiccedilotildees de proeminentes autores como Maldonado Bon-

siepe Schneider Cardoso e Flusser que se movem entre as duas posiccedilotildees (determi-

naccedilatildeo e indeterminaccedilatildeo) jaacute indicava essas distintas perspectivas teoacutericas Mas faltava

explicitar tais estruturas com um procedimento como o da antinomia kantiana

2 A soluccedilatildeo original de Kant foi produzida para resolver um problema fora do acircmbito

da ciecircncia ou seja no campo da esteacutetica

Quanto agrave saiacuteda kantiana natildeo podemos nos esquecer que este autor atua de modo a

pensar soluccedilotildees dentro de um sistema mas separadamente a questatildeo do belo e a questatildeo

da ciecircncia Poreacutem no nosso caso ocorre uma mistura entre aspectos esteacuteticos artiacutesticos

teacutecnicos e epistecircmicos que tornam o design um campo de entendimento bastante com-

plexo De qualquer modo ser ou natildeo ser ciecircncia ou ser uma nova forma de ciecircncia natildeo

pode ser encarado como depreciativo como por exemplo a tradiccedilatildeo do platonismo

enfatiza O status ontoloacutegico do design ainda estaacute por se estabelecer mas sua relevacircncia

e significaccedilatildeo jaacute estatildeo garantidas em sua trajetoacuteria histoacuterica

Indo aleacutem existem algumas questotildees subjacentes ao que estamos tratando no mo-

mento mdash que seratildeo retomadas ao final da tese mdash e podem ser iluminadas com a ideia de

universalidade subjetiva no design Algumas perguntas nos guiam

bull Asinuacutemerasdefiniccedilotildeesdedesignaolongodesuacurtahistoacuteriaeaampliaccedilatildeode

seu campo de atuaccedilatildeo tecircm alguma relaccedilatildeo com a equivalente expansatildeo do universo

artiacutestico contemporacircneo

9 Corrobora empiricamente a terceira hipoacutetese de modo anaacutelogo ao procedimento de Duve com Green-berg e Kosuth uma conexatildeo com designers que possam se posicionar nos dois polos da antinomia kantiana Por exemplo podemos colocar de um lado a tradiccedilatildeo e o racionalismo de Alexandre Wollner e de outro o vanguardismo de Guto Lacaz

129

bull Asdificuldadesatuaisdeseestabelecerdefiniccedilotildeesparaodesignpodemserdevidasa

esse campo ter uma generalidade incipiente de autopromoccedilatildeo ou inerente e anaacuteloga

a disciplinas como a da filosofia

Do ponto de vista histoacuterico essas satildeo questotildees ainda muito proacuteximas de noacutes o que as

torna mais difiacuteceis de compreender e responder E por sua complexidade eacute bem provaacutevel

que as respostas a elas continuem a produzir paradoxos e outros raciociacutenios que aparentam

incompletude Mas essa incompletude nasce com as respostas ou pertence agrave essecircncia do design

Se o inacabado faz parte dessa essecircncia as palavras do escritor portuguecircs Fernando Pessoa

apontam um caminho que reforccedila a posiccedilatildeo kantiana ldquoNatildeo consigo evitar a aversatildeo que

tem o meu pensamento ao ato de acabarrdquo (pessoa sem data apud giannetti 2008

p 356) Para noacutes a forccedila dessa afirmaccedilatildeo revela menos da personalidade desse escritor e

mais da poacuteiesis artiacutestica Se natildeo pudermos admitir tal disposiccedilatildeo de espiacuterito no exerciacutecio

do design que pelo menos possamos apostar na incompletude como uma das possiacuteveis

chaves de interpretaccedilatildeo desse campo

32 Heidegger e o vieacutes ontoloacutegico na arte e no design

Pensemos nas comunidades cientiacuteficas e tecnoloacutegicas da atualidade e na sua forma de

atuaccedilatildeo Eacute a partir delas que a maioria dos campos de pesquisa e de trabalho tem seu

status estabelecido delimitado e regulado de acordo com os fundamentos teoacutericos e

pragmaacuteticos em que se baseiam Como sabemos eacute preciso que perante as comunidades

cientiacuteficas uma determinada disciplina se apresente com diversas credenciais de caraacuteter

gnoseoloacutegico e epistemoloacutegico conectadas agrave sua praacutetica efetiva para ser aceita no grupo

das ciecircncias e das teacutecnicas modernas

Deste modo em relaccedilatildeo ao design quando perguntamos sobre seu status especifica-

mente ontoloacutegico estamos procurando identificar elementos que possam garantir sua

validade enquanto disciplina dentro de uma dada concepccedilatildeo de realidade mesmo pres-

cindindo de uma fundamentaccedilatildeo epistecircmica O encaminhamento de caraacuteter ontoloacutegico

130

que apresentamos aqui propotildee um giro na questatildeo e possibilita reflexotildees sistemaacuteticas que

independem de anaacutelises calcadas em fundamentaccedilatildeo de caraacuteter cientiacutefico ou esteacutetico Tal

procedimento tem vantagens quando natildeo eacute possiacutevel estabelecer um viacutenculo direto entre

um determinado campo e as ciecircncias ou quando o viacutenculo deste campo com a esteacutetica

expotildee caracteriacutesticas do mesmo que dificultam uma possiacutevel conexatildeo com as ciecircncias

como ocorreu em nossa anaacutelise do design na seccedilatildeo 31

321 O giro em direccedilatildeo agrave ontologia

No design ocorre uma confluecircncia e um amaacutelgama entre aspectos esteacuteticos artiacutesticos

teacutecnicos e epistecircmicos que natildeo sucede de forma expliacutecita10 em campos onde a cientifi-

cidade natildeo eacute questionada Assim se por um lado o status ontoloacutegico do design ainda

estaacute por se firmar e por outro natildeo concordamos com uma hierarquia em que ciecircncia

estaacute no topo do saber e aliada agrave verdade nada melhor do que buscar em um autor con-

traacuterio a esse tipo de pensamento argumentos que possam contribuir para subsidiar a

fundamentaccedilatildeo ontoloacutegica desse campo Este autor no nosso entendimento eacute Martin

Heidegger um dos filoacutesofos que se insurge contra a tradiccedilatildeo do pensamento ocidental

de modo correlato ao que fez Nietzsche criticando ciecircncia e teacutecnica contrapondo essas

disciplinas agrave arte

Nosso propoacutesito eacute seguir o pensamento de Heidegger e explorar uma de suas ideias

fundamentais a de que a obra de arte estaacute associada agrave verdade e que contribui de forma

singular para a compreensatildeo da essecircncia dos utensiacutelios ldquodescortinandordquo uma dimensatildeo

ontoloacutegica dessa categoria de objetos Conforme afirma Heidegger em seu livro A origem

da obra de arte

10 No entanto mesmo em ciecircncias consideradas abstratas como a matemaacutetica podem existir preocu-paccedilotildees de caraacuteter natildeo estritamente formais Por exemplo quando duas respostas para determinada questatildeo satildeo encontradas a justificativa pela escolha da resposta mais simples ou com menor nuacutemero de etapas (tambeacutem entendida pelos matemaacuteticos como mais ldquofinardquo e ldquoeleganterdquo) natildeo poderia ser atri-buiacuteda a uma preocupaccedilatildeo esteacutetica se as duas soluccedilotildees forem equivalentes e igualmente precisas

131

A que domiacutenio pertence uma obra A obra instaura um certo domiacutenio ao qual pertence e que eacute aberto por ela mesma porque somente nessa abertura existe o seu ser-obra Dissemos que na obra se realiza o acontecer da verdade e exem-plificamos esse fato nos referindo ao quadro de Van Gogh Tratamos entatildeo de questionar sobre o sentido da verdade e sobre o seu acontecer (heidegger 1987 p 228)

O fato de que o texto de Heidegger explora expressotildees incomuns e ataca o problema

de modo inusitado pode dificultar neste primeiro momento o entendimento do essencial

oculta em toda a complexidade no discurso heideggeriano o que nos interessa e veremos

eacute a singular conexatildeo estabelecida por este pensador entre objetos artiacutesticos e objetos uacuteteis

Diante disso nossa hipoacutetese eacute de que na busca por fundamentaccedilatildeo aleacutem dos produ-

tos do design (especialmente os utensiacutelios e instrumentos) alcanccedilarem uma compreensatildeo

ampliada por esse modo de concepccedilatildeo da realidade o proacuteprio design pode caminhar

em direccedilatildeo a estabelecer seu status ontoloacutegico ao lado de outros campos jaacute delimitados

Voltando-nos para uma anaacutelise de nossos proacuteprios procedimentos o que faremos neste

ponto eacute atuar de modo correlato agrave seccedilatildeo anterior em que a apropriaccedilatildeo de um princiacutepio

kantiano mdash bem-sucedido em aclarar aspectos de sua investigaccedilatildeo acerca do belo mdash con-

duziu Tierry de Duve a uma proposta de alargamento das fronteiras do entendimento da

arte contemporacircnea e levou-nos posteriormente a adaptar o mesmo modelo estrutural

para o design

Pretendemos manter a mesma estrateacutegia de apropriaccedilatildeo agora com uma abordagem

de caraacuteter claramente ontoloacutegico e mediada pelas reflexotildees heideggerianas sobre a obra

de arte Utilizando-nos de tal modus operandi seguiremos desta vez apoiados principal-

mente nos estudos de Philippe Lacoue-Labarthe (1996) em busca de compreender mini-

mamente tanto a criacutetica de Heidegger agrave posiccedilatildeo platocircnica quanto agraves possiacuteveis conexotildees

natildeo declaradas de seu pensamento com alguns conceitos aristoteacutelicos A relevacircncia de

Lacoue-Labarte eacute tanto maior uma vez que como veremos este autor defende a tese da

concepccedilatildeo ontoloacutegica da miacutemesis tanto em Aristoacuteteles quanto em Heidegger Para tanto

dividimos a seccedilatildeo atual em trecircs toacutepicos

132

1 Pressupondo a criacutetica platocircnica agrave arte (exposta no capiacutetulo 2) ligada ao conceito de

miacutemesis apresentamos a oposiccedilatildeo de Heidegger a essa concepccedilatildeo

2 Avanccedilamos para a posiccedilatildeo de Heidegger que segundo Lacoue-Labarthe reelabora

o conceito de miacutemesis aristoteacutelico de modo natildeo expliacutecito na obra A origem da obra

de arte

3 Com esses elementos estabelecidos passamos a operar no registro do conceito hei-

deggeriano de obra de arte buscando comprovar nossa hipoacutetese (cf capiacutetulo 1 p 39)

sobre o design

322 A criacutetica a Platatildeo a arte natildeo eacute imitaccedilatildeo

Platatildeo no livro x do diaacutelogo A repuacuteblica (1987) ao criticar a arte tem como alvo a poesia

mas utiliza como um dos exemplos a pintura A poesia vem simplesmente aderida ao

argumento Se tal eacute a estrateacutegia platocircnica para a construccedilatildeo de seu discurso contra a arte

a de Heidegger no livro A origem da obra de arte (2004) toma o caminho contraacuterio em

favor da arte Numa oposiccedilatildeo frontal a Platatildeo Heidegger busca constituir uma ontologia

em que a arte ocupa uma posiccedilatildeo privilegiada ao mesmo tempo em que aponta a insu-

ficiecircncia dos conceitos metafiacutesicos originados no filoacutesofo ateniense para tratar o tema

Assim sendo seu caminho no texto tambeacutem eacute inverso Heidegger inicia com exemplos

da pintura e culmina com um de arquitetura

Ou seraacute que com a proposiccedilatildeo ldquoa arte eacute o pocircr-se-em-obra-da-verdaderdquo se pre-tende reanimar de novo aquela ideia em boa hora superada segundo a qual a arte seja uma imitaccedilatildeo e coacutepia do real A reproduccedilatildeo do que estaacute perante noacutes (Vorhandenen) requer aliaacutes a conformidade com o ente a adaptaccedilatildeo a este adaequatio diz a Idade Meacutedia ὁmicroοίωσις[11] diz Aristoacuteteles A conformidade com o ente vale de haacute muito como a essecircncia da verdade Mas seraacute que o que queremos dizer eacute que o quadro de Van Gogh copia um par de sapatos de cam-ponecircs que realmente estaacute aiacute e eacute uma obra porque consegue fazecirc-lo De modo nenhum (heidegger 2004 p 28)

11 Homoiosis (ὁmicroοίωσις) eacute transformaccedilatildeo de modo a tornar-se semelhante semelhanccedila similitude (ma-lhadas dezotti neves 2008 v 3 p 228)

133

Importa observar aqui que o fato de Heidegger levantar a questatildeo do conceito medieval

de adequaccedilatildeo e o de homoiosis (ὁmicroοίωσις) semelhanccedila em Aristoacuteteles natildeo significa que

ele esteja relacionando a concepccedilatildeo de imitaccedilatildeo ao pensamento aristoteacutelico Arte como

imitaccedilatildeo e coacutepia do real eacute uma concepccedilatildeo platocircnica e a criacutetica de Heidegger portanto estaacute

dirigida a Platatildeo Para Heidegger o imitar no sentido de copiar natildeo explica o processo

constituinte de uma obra de arte Mais agrave frente ele afirma

Fazemos agora a pergunta sobre a verdade em vista da obra Para que todavia nos possamos familiarizar com o que estaacute em questatildeo eacute necessaacuterio tornar de novo visiacutevel o acontecimento da verdade da obra Para esta tentativa escolhemos uma obra que natildeo[12] se conta entre as obras arquitectoacutenicas Um edifiacutecio um templo grego natildeo imita nada Estaacute ali simplesmente erguido nos vales entre os rochedos (heidegger 2004 p 32) Negrito nosso

Dado que Heidegger se recusa a pensar a imitaccedilatildeo em termos platocircnicos vamos nos

apoiar na tese de Lacoue-Labarthe sobre uma mimetologia de sua interpretaccedilatildeo da arte

Nas palavras de Lacoue-Labarthe

[] apesar da criacutetica radical agrave qual ele [Heidegger] submete todos os conceitos da esteacutetica inclusive o conceito de miacutemesis apesar da sua desconstruccedilatildeo sem resto da esteacutetica a interpretaccedilatildeo que Heidegger propotildee da arte eacute fundamentalmente uma mimetologia Eacute certo que jaacute o lembrei antes Heidegger recusa a palavra ele afasta com o maior desprezo um desprezo aliaacutes estranhamente platocircnico e filosoacutefico toda consideraccedilatildeo da ldquoimitaccedilatildeordquo e vocecircs sabem que se o exemplo maacuteximo em ldquoA Origem da Obra de Arterdquo eacute um templo eacute porque ldquoo templo natildeo eacute feito agrave imagem de nadardquo Dito isso o que ele recusa exatamente com esta pala-vra Muito explicitamente mas tambeacutem muito paradoxalmente a interpretaccedilatildeo platocircnica da miacutemesis ou seja mdash refiro-me ainda a uma passagem da Introduccedilatildeo de 35 mdash a miacutemesis compreendida a partir da idea em si mesma pensada como paradigma ou como modelo sob o horizonte da aletheia interpretada em termos de adequaccedilatildeo ou de homoiosis Ora isso natildeo impede absolutamente a tese que concerne a arte de ser a reelaboraccedilatildeo jamais abertamente apresentada como

12 A frase ldquoPara esta tentativa escolhemos uma obra que natildeo se conta entre as obras arquitectoacutenicasrdquo na traduccedilatildeo de Maria da Conceiccedilatildeo Costa (Ediccedilotildees 70) parece contradizer a frase seguinte em que Heidegger remete a um templo grego Na traduccedilatildeo da Revista Kriterion em lugar de ldquoarquitectoacutenicasrdquo encontra-se ldquorepresentativasrdquo o que torna coerente o argumento de Heidegger No entanto a traduccedilatildeo da Kriterion natildeo utiliza o verbo imitar mas sim reproduzir ldquoUma obra de arquitetura mdash um templo grego mdash nada reproduz []rdquo (heidegger 1987 p 228) Esse foi o motivo pelo qual escolhemos a citaccedilatildeo das Ediccedilotildees 70

134

tal mas tambeacutem nunca totalmente dissimulada da concepccedilatildeo aristoteacutelica da particcedilatildeo entre phusis e techne isto eacute da concepccedilatildeo ontoloacutegica da miacutemesis fazer da arte no combate (o polemos) entre terra e mundo (ou em Soacutefocles dike e techne) que eacute o proacuteprio combate do einai e do noein inaugural do pensamento ocidental o suplemento e ateacute mesmo o traccedilo ou o arqui-traccedilo originariamente suplementar e desvelador com respeito agrave proacutepria phusis (ao ser do ente) fazer da arte aquilo de que a phusis precisa para aparecer como tal eacute mdash num outro niacutevel de profundidade mdash repetir o que diz Aristoacuteteles da miacutemesis enquanto o que ldquoleva a termordquo o que a phusis por si mesma natildeo pode ldquoefetuarrdquo (lacoue-labarthe 1996 p 154-155) Negrito nosso

Esse longo trecho oferece-nos um olhar e uma nova possibilidade tanto porque natildeo

abre matildeo da oposiccedilatildeo que Heidegger faz agrave tradiccedilatildeo platocircnica mas ao mesmo tempo

reforccedila a posiccedilatildeo de Lacoue-Labarthe a partir do pensamento aristoteacutelico de uma ldquocon-

cepccedilatildeo ontoloacutegica da miacutemesisrdquo natildeo entendida como simples imitaccedilatildeo ou coacutepia Sigamos

portanto Heidegger em busca desse caminho para explicitar a proposta Labartheana

323 Poacuteiesis como produccedilatildeo phyacutesis como terra e teacutekhne como mundo

Lembrando o que tratamos no capiacutetulo 2 a produccedilatildeo mais geral poacuteiesis (ποίησις) ao atuar

como forccedila da natureza eacute delimitada como phyacutesis (φύσις) modalidade de produccedilatildeo que

se faz a partir de si mesma Um exemplo de phyacutesis eacute a transformaccedilatildeo de uma semente em

aacutervore ou como Heidegger afirma em A questatildeo da Teacutecnica ldquo[]noadventodaflorao

florescer[]rdquo(heidegger 2007 p 379) Poacuteiesis pode ser tambeacutem teacutekhne (τέχνη) mo-

dalidade de produccedilatildeo que ocorre natildeo a partir de si mesma mas a partir de outro Teacutekhne eacute

arte manual induacutestria ofiacutecio e tem por princiacutepio natildeo o fazer mas principalmente o saber

fazer a habilidade o meacutetodo o artifiacutecio o conhecimento teoacuterico que suporta uma atividade

Lacoue-Labarthe associa o conceito de teacutekhne ao conceito heideggeriano de mundo

e o conceito de phyacutesis ao de terraconformeafigura24ldquo[]atesequeconcerneaarte

deserareelaboraccedilatildeo[]daconcepccedilatildeoaristoteacutelicadaparticcedilatildeoentrephusis e techne isto

eacute da concepccedilatildeo ontoloacutegica da miacutemesis fazer da arte no combate (o polemos) entre terra

emundo[]rdquo(lacoue-labarthe 1996 p 155) Nas palavras de Heidegger

135

Aquilo em direccedilatildeo ao qual a obra se retrai permitindo que ela ressurja desse proacuteprio retraimento chamamos a Terra (die Erde) Ela estaacute sempre eclodindo de sua proacutepria reserva A terra eacute o impulso silencioso e infatigaacutevel do que eacute gratuito Sobre a Terra e na Terra o homem histoacuterico funda a sua morada no mundo Quando apresenta um mundo a obra produz (revela) a Terra Produzir deve ser pensado aqui em sentido rigoroso A obra move e manteacutem a proacutepria Terra no aberto de um mundo A obra tem o poder de fazer a Terra tornar-se Terra (heidegger 1987 p 234)

Mesmo que Heidegger ao trabalhar os conceitos de Terra e Mundo volte-se apenas

para o pensamento grego antigo sem pensar especificamente em Aristoacuteteles mas talvez

animado pelo pensamento anterior de Heraacuteclito a interpretaccedilatildeo de Lacoue-Labarthe estaacute

bem costurada e estabelecida Na traduccedilatildeo da Revista Kriterion o asterisco da citaccedilatildeo

anterior (associado agrave palavra produzir) envia para a seguinte nota da tradutora Maria Joseacute

R Campos que segue a mesma via interpretativa de Lacoue-Labarthe

PRODUCcedilAtildeO (poacuteiesis)

Phyacutesis Teacutekhne

CONCEPCcedilAtildeO GREGA DE PRODUCcedilAtildeOCRIACcedilAtildeO

PRODUCcedilAtildeO DA NATUREZA A PARTIR DE SI MESMA PRODUCcedilAtildeO A PARTIR DE OUTRO

Terra Mundo

CONCEPCcedilAtildeO DE HEIDEGGER CORRELATA Agrave PHYacuteSIS E TEacuteKHNE GREGAS

Figura 24 Representaccedilatildeo da associaccedilatildeo entre os conceitos gregos de Phyacutesis e Teacutekhne e os conceitos hei-deggerianos de Terra e Mundo fonte autor

136

Produzir executar significa em alematildeo herstellen Mas em Heidegger a palavra possui aqui um sentido especial Aleacutem de produzir significando fazer qualquer coisa de qualquer mateacuteria (produccedilatildeo artesanal) a palavra tambeacutem pode indicar manifestar demonstrar revelar o que soacute acontece na obra de arte Aiacute a mateacuteria ainda que utilizada natildeo eacute jamais utilizada a serviccedilo da utilidade da obra Na obra de arte herstellen possui o sentido de trazer agrave superfiacutecie o que estaacute oculto trazer agrave luz o sombrio manifestar o que estaacute em reserva A palavra possui em Heidegger um sentido semelhante ao de herausstellen colocar para (fora) A obra de arte revela traz agrave superfiacutecie o que haacute de mais profundo na realidade material ela revela a Terra a physis dos gregos (heidegger 1987 p 234-235) Nota da tradutora

Para compreender plenamente o significado da citaccedilatildeo anterior e da relevacircncia

do conceito de produccedilatildeo (poacuteiesis) em seus desdobramentos a partir da arte em pos-

sibilidades para o acircmbito do design eacute necessaacuterio passarmos em revista o modo como

Heidegger entende o problema da cisatildeo entre ciecircncia teacutecnica e arte na modernidade Eacute

o que analisaremos a seguir

324 Os trecircs modos de produccedilatildeo e sua influecircncia sobre o design

Tendo em conta a importacircncia do conceito de produccedilatildeo para a constituiccedilatildeo do pensamento

heideggeriano torna-se compreensiacutevel que esse autor use-o de forma recorrente em suas

reflexotildees Na verdade como veremos Heidegger entende as categorias de ciecircncia teacutecni-

ca e arte em conexatildeo com o mundo grego como trecircs modalidades de produccedilatildeo Como

afirma o filoacutesofo brasileiro Fernando Mendes Pessoa

Heidegger caracteriza a produccedilatildeo o pocircr-se em obra do real como desencobri-mento com o verbo stellen ldquopocircrrdquo estabelecendo uma distinccedilatildeo entre essas trecircs modalidades produtivas a partir do acreacutescimo de trecircs partiacuteculas diferentes a esse verbo ele caracteriza a produccedilatildeo cientiacutefica de Vor-stellen a produccedilatildeo tecnoloacutegica de Ge-stellen e a produccedilatildeo artiacutestica de Her-stellen mdash termos que para manter uma analogia na liacutengua portuguesa poderiacuteamos traduzir como pro-pocircr com-pocircr e ex-pocircr (no sentido de produzir criar) (pessoa 2009 p 195)

137

Em primeiro lugar para Heidegger a ciecircncia como um dos modos de produccedilatildeo do

real eacute o propor de uma teoria do real E na modernidade esse ldquorealrdquo se funda na concepccedilatildeo

de causa e efeito noccedilatildeo cara a filoacutesofos e cientistas desde esse periacuteodo ateacute a atualidade O

princiacutepio de causalidade eacute um recurso eficiente na descriccedilatildeo e previsatildeo de fenocircmenos o

que leva a ciecircncia a partir da modernidade seduzida por esse poder preditivo a concen-

trar-se cada vez mais em questotildees voltadas para o como os eventos se datildeo ao inveacutes de porque

eles ocorrem Natildeo eacute sem razatildeo que Descartes e toda a tradiccedilatildeo que vem em seguida de

pensadores cientistas e teoacutericos incluindo na atualidade os do design13 a favor ou contra

o cartesianismo reportam-se sempre ao Princiacutepio de Causalidade seja para reafirmar ou

criticar esse conceito como um ponto nodal para a compreensatildeo da realidade Como

afirma Heidegger em Ensaios e conferecircncias (Ciecircncia e pensamento do sentido)

A ciecircncia potildee o real E o dispotildee a propor-se num conjunto de operaccedilotildees e pro-cessamentos isto eacute numa sequumlecircncia de causas aduzidas que se podem prever Desta maneira o real pode ser previsiacutevel e tornar-se perseguido em suas conse-quumlecircncias Eacute como se assegura do real em sua objetidade [sic] Desta decorrem domiacutenios de objetos que o tratamento cientiacutefico pode entatildeo processar agrave vontade (heidegger 2012 p 48)

A criacutetica de Heidegger se insurge contra toda uma tradiccedilatildeo a partir de Platatildeo que

segundo esse pensador propotildee uma realidade coisificada em que homem e mundo satildeo

compreendidos como separados em sujeito cognoscente e objeto a se conhecer Em outras

palavras sujeito e objeto dos quais tratamos no capiacutetulo 2 e que para Heidegger estatildeo

problematicamente cindidos por uma teoria de ldquocausas aduzidasrdquo

13 Maldonado (2012) a propoacutesito de pensar a teacutecnica em suas relaccedilotildees com a sociedade usando o exemplo de um dos seus produtos mdash os oacuteculos mdash argumenta em favor dos conceitos de causa e efeito ldquoNatildeo se pode desprezar o fato de que os conceitos de causa e de agente tecircm uma notoacuteria e longa tradiccedilatildeo no pensamento filosoacutefico Basta pensar na doutrina aristoteacutelica das lsquoquatro causasrsquo e nas complexas construccedilotildees conceituais da escolaacutestica medieval sobre as relaccedilotildees de causa e efeito E ainda os sofis-ticados quebra-cabeccedilas loacutegico-epistemoloacutegicos da moderna filosofia da ciecircncia sobre esse assuntordquo (maldonado 2012 p 176) Em seguida associando causa e efeito agrave metaacutefora de ldquoempurrarrdquo e ldquopuxarrdquo entre a teacutecnica e a sociedade esse autor mostra como a questatildeo eacute ainda mais complexa ao explorar o conceito de causalidade circular ldquoNo tema que estamos discutindo a questatildeo da circularidade natildeo pode ser ignorada Para continuarmos na metaacutefora se eacute verdade que em uma certa fase eacute de fato a teacutecnica que empurrou e a sociedade que puxou eacute tambeacutem verdadeiro que em uma fase precedente foi a sociedade que empurrou e a teacutecnica que puxourdquo (maldonado 2012 p 177)

138

Em segundo a teacutecnica eacute o compor do real em sua exploraccedilatildeo Ou seja a teacutecnica a

partir da modernidade busca disponibilizar a natureza em seu propoacutesito dominando-a

e explorando-a Nas palavras de Heidegger

O desencobrimento que domina a teacutecnica moderna possui como caracteriacutestica o pocircr no sentido de explorar (Herausforderung) Esta exploraccedilatildeo se daacute e acon-tece num muacuteltiplo movimento a energia escondida na natureza eacute extraiacuteda o extraiacutedo vecirc-se transformado o transformado estocado o estocado distribuiacutedo o distribuiacutedo reprocessado (heidegger 2012 p 20)

Esse segundo modo de produccedilatildeo de exploraccedilatildeo energeacutetica do real segundo Hei-

degger eacute distinto do primeiro e torna o sujeito e o objeto da ciecircncia respectivamente forccedila

de trabalho e mateacuteria prima no acircmbito da teacutecnica Maldonado (2012) aponta que essa

preocupaccedilatildeo de Heidegger em relaccedilatildeo a esse disponibilizar e controlar que eacute pretendido

pela teacutecnica jaacute se manisfesta no livro Ser e Tempo (Sein und Zeit) obra anterior agrave Ciecircncia

e pensamento do sentido

No tom elevado que distingue seu estilo de raciociacutenio ele [Heidegger] examina a pretensatildeo (proacutepria e de outros) de querer ldquocontrolar espiritualmente a teacutecnicardquo Em resumo de querer submetecirc-la dominaacute-la Em Sein und Zeit (1927) Heidegger jaacute havia analisado as sutis implicaccedilotildees ontoloacutegicas do querer ldquocontrolarrdquomdash sem referir-se explicitamente agrave teacutecnica mdash quando introduziu a sua famosa distinccedilatildeo entre o modo de ser ldquoutilizaacutevelrdquo ldquopraacuteticordquo (Zuhandenheit) e o modo de estar

ldquopresenterdquo ldquoagrave disposiccedilatildeordquo (Vorhandensein) (maldonado 2012 p 154)

Diante da gravidade da criacutetica de Heidegger aos modos de produccedilatildeo da ciecircncia e

da teacutecnica diversas tecircm sido as apropriaccedilotildees de seus argumentos em prol de uma maior

atenccedilatildeo e precauccedilatildeo aos desdobramentos desses dois campos A discussatildeo sobre a impos-

sibilidade de neutralidade da ciecircncia e da teacutecnica as consequecircncias nefastas de se separar

sujeito e objeto e de ver o homem e a natureza a serviccedilo de um sistema de produccedilatildeo satildeo

apenas algumas das diversas questotildees que apontam para uma dimensatildeo catastroacutefica de

nossa sociedade contemporacircnea e na qual podemos sem duacutevida incluir reflexotildees sobre o

papel e a responsabilidade do design Flusser como vimos segue essa linha de raciociacutenio

Mas por outro lado pensando em todos os benefiacutecios gerados pela ciecircncia e pela

teacutecnica podemos e devemos recusar esses modos de produccedilatildeo que por milhares de anos

foram se constituindo e garantindo a formaccedilatildeo de nossa civilizaccedilatildeo levando-nos ateacute onde

139

chegamos Heidegger tem plena consciecircncia da importacircncia da ciecircncia e da teacutecnica e

natildeo as recusa simplesmente Sua intenccedilatildeo eacute (compreendendo que a ciecircncia e a teacutecnica

nos fazem construir uma visatildeo da realidade empobrecida e atuar de forma exploratoacuteria

voltada para a dominaccedilatildeo) procurar um modo de produccedilatildeo que resgate para o ser humano

o habitar do mundo em um sentido mais digno e responsaacutevel E esse modo segundo ele

se encontra na arte

Em terceiro portanto Heidegger estabelece a arte como o modo de expor o real em

sua liberdade Em uma passagem de A origem da obra de arte Heidegger explicita tal

produccedilatildeo atraveacutes da anaacutelise de uma pintura de Van Gogh

Aiacute estatildeo os sapatos sejam eles de que tipo forem com as solas e a pala de cou-ro percorridas pelas costuras e os pregos Seu material e sua forma variam de acordo com sua finalidade trabalhar danccedilar etc Tudo isto apenas reforccedila o que jaacute sabemos o ser do instrumento enquanto tal consiste em servir para alguma coisa Mas seraacute esta a realidade essencial do instrumento Natildeo devemos exploraacute-la melhor A camponesa usa seus sapatos na terra lavrada pois eacute aiacute que os sapatos satildeo o que realmente satildeo Quanto menos atenccedilatildeo a camponesa dedica a eles em seu trabalho mais eles se prestam ao serviccedilo de alguma coisa mais correspondem ao seu ser Dessa forma estaremos nos afastando sensivelmente do ser do instrumento se apenas nos detivermos em sua representaccedilatildeo geral ou na imagem desse quadro perdida no vazio onde os sapatos estatildeo desligados da ideacuteia de algueacutem que os possa estar usando [] No entanto natildeo eacute soacute isto

Observemos as sombras da abertura de seu interior jaacute gasto onde se esboccedila a fadiga do andar laborioso e eis que percebemos os passos rudes pesados e fa-tigados do camponecircs que sob um vento avassalador imprime com sua marcha lenta grandes e monoacutetonos sulcos na terra lavrada No couro engordurado pela terra feacutertil e negra e nas duas solas imoacuteveis desliza a solidatildeo dos vastos espaccedilos das tardes do campo No par de sapatos eclode o secreto apelo da Terra o cuidado pelo patildeo de cada dia na promessa do trigo as auroras glaciais as tardes enigmaacuteticas agrave espreita do inverno Atraveacutes desse instrumento o cam-ponecircs experimenta o exerciacutecio pela sobrevivecircncia da doce espera do filho que retorna agrave casa a alegria de sentir a vida o cuidado de temer a morte Se o par de sapatos eacute propriedade da Terra em sua dignidade tranquumlilidade e seguranccedila o mundo do camponecircs o resguarda Eacute o proacuteprio ser do instrumento que emerge dessa propriedade resguardada pois sob esse gesto de proteccedilatildeo ele repousa em si mesmo (heidegger 1986 p 205-206)

140

Foi necessaacuterio apresentar essa longa e instigante passagem com trechos sempre

referenciados por comentadores e especialistas de Heidegger para colocar claramente

a relevacircncia da obra de arte indo aleacutem do universo artiacutestico A obra de arte torna-se

subsidiaacuteria da compreensatildeo do utensiacutelio um tipo de ldquoenterdquo cujo entendimento natildeo se

esgota em sua utilidade O caraacuteter poeacutetico que Heidegger empresta ao texto demonstra

como um filoacutesofo desta envergadura eacute capaz de atuar no sentido de conduzir o leitor ul-

trapassando os argumentos da pura reflexatildeo sistemaacutetica Isso porque para Heidegger a

essecircncia dos instrumentos e utensiacutelios em seu significado mais profundo e sua dimensatildeo

ontoloacutegica se mostra com mais vigor a partir de nossa experiecircncia e fruiccedilatildeo da obra de

arte Conforme as palavras de Virginia Figueiredo

Eacute no sentido de uma ldquopromoccedilatildeo ontoloacutegicardquo da qual falava Arthur Danto ou de uma reversatildeo do platonismo que tento ler o famoso ensaio de Heidegger Assim retomando os resultados da ceacutelebre anaacutelise aiacute contida sobre o quadro de Van Gogh acho que se pode concluir que os sapatos no quadro mdash dizendo enfaticamente a imagem pictoacuterica dos sapatos de Van Gogh mdash exatamente porque escapam da utilidade possuem um valor ontoloacutegico muitas vezes supe-rior a qualquer sapato da realidade Satildeo os sapatos do quadro de Van Gogh que nos tornam aptos a retornando agrave experiecircncia cotidiana atribuir algum sentido a ela Satildeo os sapatos pictoacutericos que ldquosalvamrdquo do naufraacutegio do afogamento da cotidianidade os sapatos reais (figueiredo 2005 p 454-455)

Do nosso ponto de vista o discurso heideggeriano nos serve a um propoacutesito que

contribui para a formaccedilatildeo de uma consciecircncia da produccedilatildeo no acircmbito do design Sua anaacute-

lise resgata um modo de compreensatildeo das categorias de objetos que satildeo especificamente

utensiacutelios e instrumentos mas cuja utilidade eacute apenas um dos seus aspectos constituintes

Ao contraacuterio do que poderia parecer e isso eacute de suma importacircncia para nosso argumento

tais objetos a partir de um olhar proporcionado pelo modo de produccedilatildeo da arte natildeo se

desvalorizam ou se rebaixam pois natildeo satildeo apenas utilitaacuterios forjados pela teacutecnica subsi-

diaacuteria da ciecircncia Tais entes passam a carregar uma dimensatildeo ontoloacutegica que nos potildee em

contato com o mundo e com a natureza em uma relaccedilatildeo que natildeo eacute nem de conhecimento

nem de exploraccedilatildeo ou em outras palavras nem de ciecircncia nem de teacutecnica Neste sentido

as palavras de Maria Joseacute R Campos corroboram a posiccedilatildeo heideggeriana de que a arte

141

natildeo somente tem assegurado seu proacuteprio status ontoloacutegico como tambeacutem contribui de

modo fundamental para a compreensatildeo dos objetos utilitaacuterios

[] a arte possui ainda o poder de revelar que as coisas natildeo se esgotam na sua instrumentalidade pois que sua essecircncia permanece aqueacutem dos nossos projetos utilitaacuterios a arte torna manifesto o ser-instrumento do par de sapatos de campo-necircs pintado por Van Gogh A verdade das coisas natildeo se fundamenta pois senatildeo na significaccedilatildeo no sentido projetado (heidegger 1987 p 188 - Apresentaccedilatildeo)

E se a apreciaccedilatildeo das obras de arte nos leva a perceber esses outros significados talvez

tambeacutem contribua para nos colocar em uma relaccedilatildeo com os objetos do design que natildeo

seja somente de mero uso exploraccedilatildeo acumulaccedilatildeo e consumo

325 O design aleacutem da instrumentalidade e da utilidade

Diante do percurso empreendido satildeo necessaacuterias algumas consideraccedilotildees Em primeiro

lugar atentos ao contexto mais geral da discussatildeo de cunho ontoloacutegico se nossa sociedade

se estabeleceu de modo a dar a primazia ao arcabouccedilo gnoseoloacutegico e epistemoloacutegico e

seus desdobramentos cientiacutefico-tecnoloacutegicos natildeo podemos nos esquecer que este modo

de compreender a realidade tem suas vantagens mas cobra como vimos um preccedilo alto

Este eacute o alerta que permeia o discurso heideggeriano

Se Heidegger repete seus argumentos em diversas obras talvez seja porque ele tem

plena consciecircncia do quanto estamos acostumados a uma ideia de verdade apoiada em

bases cientiacuteficas E se essa ideia eacute um construto mental existem modos distintos de enten-

dimento como ele nos sugere que podem levar-nos a possibilidades ainda natildeo imaginadas

Mas podemos tambeacutem questionar Heidegger sobre o fato de ele trocar uma verdade por

outra De qualquer modo existe um risco pelo menos no acircmbito das teorias cientiacuteficas

da verdade se confundir com a essecircncia pois a doutrina essencialista tem seacuterias limita-

ccedilotildees O essencialismo eacute a concepccedilatildeo que postula que as verdadeiras teorias descrevem

as essecircncias das coisas Se for assim o cientista pode estabelecer a verdade destas teorias

Karl Popper no entanto eacute contraacuterio agrave essa concepccedilatildeo e apresenta uma incisiva criacutetica ao

142

essencialismo em seu livro Conjecturas e refutaccedilotildees (1972) Para Popper toda teoria eacute uma

hipoacutetese (conjectura) e natildeo conhecimento indubitaacutevel ldquoEstou plenamente de acordo

emqueasteoriasnatildeooferecemnenhumacerteza(quesemprepodemserrefutadas)[]rdquo

(popper 1972 p 139) Traduccedilatildeo nossa Popper natildeo eacute contra a busca do que ainda estaacute

oculto mas eacute contra a doutrina de que a ciecircncia tende agraves explicaccedilotildees uacuteltimas Em outras

palavras no acircmbito da teoria precisamos realmente de explicaccedilotildees uacuteltimas No nosso

entendimento buscaacute-las eacute como ir atraacutes de uma quimera e nos bastaria uma ontologia

soacutebria para apoiar a construccedilatildeo de teorias que nos ajudem a compreender as produccedilotildees

humanas Ateacute onde podemos ver um programa dessa magnitude mesmo abrindo matildeo

da essecircncia jaacute eacute extremamente ambicioso

Em segundo lugar outra consideraccedilatildeo em acircmbito especiacutefico eacute a de reafirmarmos

a posiccedilatildeo assumida no iniacutecio da tese de natildeo simplesmente submeter a fundamentaccedilatildeo

ontoloacutegica agraves exigecircncias gnoseoloacutegicas epistemoloacutegicas e esteacuteticas Tal proposiccedilatildeo eacute

estabelecida em dois sentidos De um lado na ampliaccedilatildeo do entendimento sobre os

objetos do design indicando um caminho a seguir aleacutem de sua instrumentalidade e uti-

lidade De outro na proposta alternativa para a compreensatildeo de algumas caracteriacutesticas

do design em sua relaccedilatildeo com a arte Apostando nesta seara eacute preciso avanccedilar em torno

de elementos que natildeo sejam estanques como os da ciecircncia e da teacutecnica criticados por

Heidegger Os conceitos aristoteacutelicos cumprem este objetivo conforme investigaremos

no proacuteximo capiacutetulo

143

4 OS CONCEITOS ARISTOTEacuteLICOS NO DESIGN E NA ARTE

Como verificamos no capiacutetulo anterior a construccedilatildeo da via ontoloacutegica possibilita avanccedilar

na compreensatildeo das relaccedilotildees entre design e arte sem precisarmos abrir matildeo da subjetivi-

dade e da incompletude no design ao mesmo tempo em que podemos prescindir de uma

credencial especificamente epistemoloacutegica Mas existe um ganho adicional nessa estrateacutegia

ao qual jaacute haviacuteamos nos referido na Introduccedilatildeo se o vieacutes ontoloacutegico iniciado por Platatildeo

em sua criacutetica agrave arte mimeacutetica eacute uma espeacutecie de fio condutor que facilita a aproximaccedilatildeo dos

autores com o seu tema o giro da epistemologia e da esteacutetica agrave ontologia coloca-nos agora

na mesma circunscriccedilatildeo desses investigadores Deste modo ao finalmente contrapormos

o pensamento de Aristoacuteteles ao de Platatildeo e transitarmos pelos seus conceitos apoiados

nos demais autores procedemos tendo um viacutenculo coerente entre todos

Na primeira seccedilatildeo deste capiacutetulo a estrateacutegia de abordagem metodoloacutegica que se-

guimos entre Aristoacuteteles e Platatildeo eacute comparativa e obviamente sincrocircnica Colocamos em

relevo as posiccedilotildees de cada um deles principalmente em trecircs obras (A repuacuteblica de Platatildeo

A poeacutetica e A fiacutesica de Aristoacuteteles) privilegiando e revelando a questatildeo da miacutemesis Como

apoio a estes textos centrais fazemos uso das anaacutelises de historiadores da filosofia como

Werner Jaeger e Claacuteudio Veloso e do filoacutesofo Philippe Lacoue-Labarthe e dos comentaacuterios

de traduccedilatildeo do helenista Eudoro de Souza da filoacutesofa Virginia Figueiredo e do linguista

e tradutor Joatildeo Camillo Penna

Na segunda seccedilatildeo a abordagem eacute diacrocircnica nossa confianccedila neste procedimento

eacute a da possibilidade de atualizar o conceito de miacutemesis e deslocaacute-lo de sua funccedilatildeo e objetos

originais ou seja aplicaacute-lo no campo do design e na arte Como vimos este tipo de con-

duta na verdade tem sido praacutetica comum a diversos pesquisadores ao longo da histoacuteria

do pensamento ocidental com a apropriaccedilatildeo (fundamentada ou natildeo) dos mais diversos

conceitos como instrumentos para alcanccedilar fins que extrapolam seu propoacutesito original

Na terceira e uacuteltima seccedilatildeo mantemos a abordagem diacrocircnica em relaccedilatildeo ao conceito

de fim em si mesmo o discurso persuasivo epidiacutectico e o discurso aberto entrelaccedilando as

concepccedilotildees de Aristoacuteteles Danto Nietzsche e Eco agraves nossas proacuteprias em uma proposta

complementar agrave aplicaccedilatildeo da miacutemesis

144

41 O fundamento ontoloacutegico do conceito de miacutemesis

Criatividade sempre foi uma palavra associada ao design Isto torna-se mais evidente

quando ao voltar nosso olhar para o passado atentamos para o fato de que a proacutepria

palavra inglesa design estaacute ligada em sua origem latina a desiacutegnio intenccedilatildeo propoacutesito

cujos sentidos acompanham em nossa tradiccedilatildeo cultural os diversos significados de cria-

ccedilatildeo E sendo criatividade uma palavra derivada de criaccedilatildeo o ciacuterculo se fecha e justifica tais

conexotildees entre conceitos O problema com essa descriccedilatildeo (representada no lado esquerdo

da figura 25) eacute que apesar de conectar elementos fundamentais na verdade natildeo esclarece

sobre o que motiva e anima essas conexotildees E mesmo considerando que tal estrutura natildeo

eacute explicativa mas somente descritiva tal concepccedilatildeo elaborada em pesquisa preacutevia1 natildeo

explicita o elemento que atua como mediador entre os trecircs termos Assim aprimorando

essa descriccedilatildeo o que propomos a seguir eacute pensar a miacutemesis metaforicamente como um

substrato onde a criatividade a criaccedilatildeo e o design estatildeo imersos e portanto conectados

por meio desse elemento conceitual (lado direito da figura 25)

Faccedilamos novamente um recuo nos deslocando do acircmbito do design e refletindo

sobre a questatildeo originaacuteria da produccedilatildeocriaccedilatildeo em seus aspectos gerais Se entendemos

o esforccedilo de construccedilatildeo do arcabouccedilo platocircnico como uma tentativa de compreender

o que subjaz agrave criaccedilatildeo em seu sentido amplo (poacuteiesis phyacutesis teacutekhne e episteacuteme) por que

1 A descriccedilatildeo do ciacuterculo criativo e a parte esquerda da figura 25 foram publicadas no artigo O conceito aristoteacutelico de miacutemesis aplicado ao processo criativo em design (silva silva 2013)

CIacuteRCULO CRIATIVO METAacuteFORA DA MEDIACcedilAtildeO

CRIATIVIDADEuma palavra unida intrinsecamente ao DESIGN

DESIGN palavra inglesa associada em sua origem latina a desiacutegnio intenccedilatildeo propoacutesito cujos sentidos acompanham em nossa tradiccedilatildeo cultural os diversos significados de CRIACcedilAtildeO

CRIACcedilAtildeOor igem da palavraCRIATIVIDADE

MIacuteMESIS

CRIACcedilAtildeO DESIGN

CRIATIVIDADE

Figura 25 Diagramas das conexotildees entre os conceitos de criatividade criaccedilatildeo e design As setas em ciacuterculo indicam que natildeo existe um ponto inicial ou final mas apenas circularidade entre os conceitos fonte autor

145

natildeo aplicar esse modelo aos nossos propoacutesitos Porque como vimos a teoria platocircnica

cinde e hierarquiza as aacutereas do conhecimento de nosso interesse desvalorizando ontolo-

gicamente a arte e a miacutemesis elementos essenciais para a nossa proposiccedilatildeo No entanto

Aristoacuteteles tendo agrave sua disposiccedilatildeo os mesmos recursos conceituais caminha em sentido

oposto ao de Platatildeo Portanto sigamos os procedimentos desse pensador

411 A inversatildeo aristoteacutelica miacutemesis mediadora ativa e criativa

Aristoacuteteles como um dos primeiros pensadores ocidentais tratou de uma variedade de

temas dentre os quais se encontra o da criaccedilatildeo Seus textos foram estudados e reinter-

pretados pela tradiccedilatildeo grega aacuterabe e latina alcanccedilando os dias de hoje O relevante para

nossos propoacutesitos eacute que o tema da criaccedilatildeo estaacute em alguns dos seus textos mutuamente

imbricado com o conceito de miacutemesis Mas diversamente do que propotildee Platatildeo Aristoacuteteles

alccedila a miacutemesis2 agrave condiccedilatildeo privilegiada de meio ou instrumento de conhecimento Tendo

a valorizaccedilatildeo desse conceito em conta ao identificar a conexatildeo entre criaccedilatildeo e miacutemesis

despertamos nossa atenccedilatildeo para outras conexotildees possiacuteveis se em Aristoacuteteles como ve-

remos a miacutemesis eacute intriacutenseca agrave criaccedilatildeo e agrave arte esse conceito pode ser estabelecido como

mediador na compreensatildeo do processo criativo em campos como o do design

Ao contraacuterio da atitude de afastamento que tem Platatildeo em relaccedilatildeo agrave arte no livro A

repuacuteblica e em outros diaacutelogos Aristoacuteteles na obra A poeacutetica busca a sua regulamenta-

ccedilatildeo e normatizaccedilatildeo aleacutem de procurar descrever o que estava ocorrendo neste campo no

tempo em que vivia Conforme Virginia Figueiredo e Joatildeo Camillo Penna Platatildeo (que

pensa em termos de uma verdade una) considera a arte tatildeo sedutora e perigosa que o

melhor a fazer eacute mantecirc-la a distacircncia para natildeo correr o risco de a ldquoimitaccedilatildeo substituir-se

ao modelordquo (figueiredo penna 2000 p 10) Neste sentido a criacutetica platocircnica se faz

2 O fato de a discussatildeo sobre a miacutemesis nos textos escolhidos de Platatildeo e Aristoacuteteles girar em torno do tema da arte natildeo significa que estamos associando arte (em seu sentido esteacutetico atual) a design O motivo dessa escolha deve-se a Aristoacuteteles e Platatildeo terem elaborado o conceito de miacutemesis no acircmbito da arte de seu tempo Isto eacute como vimos no segundo capiacutetulo uma arte entendida como teacutekhne arte manual ofiacutecio de artiacutefices e tambeacutem como poesia mas natildeo com as diferenciaccedilotildees da atualidade em seu sentido esteacutetico

146

com mais intensidade agrave arte poeacutetica em especial a autores como Homero Poreacutem se A

repuacuteblica de Platatildeo condena a arte por ser medida pelo paradigma da ideia exterior a

ela A poeacutetica de Aristoacuteteles caminha em direccedilatildeo oposta

Se a trageacutedia eacute imitaccedilatildeo de homens melhores que noacutes importa seguir o exem-plo dos bons retratistas os quais ao reproduzir a forma peculiar dos modelos respeitando embora a semelhanccedila os embelezam Assim tambeacutem imitando homens violentos ou fracos ou com tais outros defeitos de caraacuteter devem os poetas sublimaacute-los sem que deixem de ser o que satildeo assim procederam Agatatildeo e Homero para com Aquiles paradigma de rudeza (aristoacuteteles 1987 p 215)

Aquiles tambeacutem eacute o paradigma da coragem na Iliacuteada E para Aristoacuteteles natildeo existe

um paradigma da coragem externo a arte se daacute o seu proacuteprio paradigma Recusando o

mundo das ideias ele natildeo separa essecircncia e aparecircncia como faz Platatildeo Assim descolado

da referecircncia da hierarquia de um mundo inteligiacutevel o conceito de miacutemesis pode ser com-

preendido para aleacutem da concepccedilatildeo de simples imitaccedilatildeo Como afirma Fernando Santoro

A mimesis aristoteacutelica eacute um contraponto agrave mimesis de Platatildeo natildeo define o valor artiacutestico mas o valor de verdade se para Platatildeo a imitaccedilatildeo era o distanciamento da verdade e o lugar da falsidade e da ilusatildeo para Aristoacuteteles a imitaccedilatildeo eacute o lugar da semelhanccedila e da verossimilhanccedila o lugar do reconhecimento e da represen-taccedilatildeo A funccedilatildeo mimeacutetica em Aristoacuteteles nem eacute uma exclusividade das artes poeacuteticas ela se apresenta tambeacutem por exemplo na linguagem humana em sua funccedilatildeo de representar as coisas Tal funccedilatildeo a de adequar o nome ou signo em geral agrave coisa significada eacute a funccedilatildeo mimeacutetica ou representativa da linguagem lugar em que pode acontecer o verdadeiro ou o falso (santoro 2006 p 75-76)

Dois pontos destacam-se nessa citaccedilatildeo primeiro a miacutemesis entendida como tendo

uma ldquofunccedilatildeordquo eacute estabelecida segundo Santoro tambeacutem na linguagem humana de um

modo anaacutelogo ao que propomos anteriormente com a metaacutefora da mediaccedilatildeo mimeacutetica

(figura 25 p 144) confirmando assim seu status de substrato de caraacuteter representativo

com ampla atuaccedilatildeo Segundo a natildeo exclusividade de sua atuaccedilatildeo no acircmbito da arte jus-

tifica nossa intenccedilatildeo de apropriaacute-la ao design Acreditando que esta concepccedilatildeo central

no pensamento aristoteacutelico pode ser explorada contemporaneamente o proacuteximo passo

eacute compreender a defesa do caraacuteter universal da poesia (um dos campos mais relevantes da

arte ao tempo de Aristoacuteteles) Natildeo podemos nos esquecer de que a universalidade continua

sendo um atributo almejado pelos campos de pesquisa na atualidade incluindo o design

147

412 A alianccedila entre universalidade verdade e arte poeacutetica

No livro iii de A repuacuteblica de Platatildeo (1987 p 115) Soacutecrates (a propoacutesito de discorrer

sobre as trecircs formas de narrativa) pergunta a Adimanto ldquoAcaso tudo quanto dizem os

prosadores e poetas natildeo eacute uma narrativa de acontecimentos passados presentes ou futu-

rosrdquo Por outro lado o livro ix de A poeacutetica de Aristoacuteteles pode ser considerado como

um momento de confronto com Platatildeo Jaacute no primeiro paraacutegrafo deste livro Aristoacuteteles

discordadePlatatildeoaoafirmarqueldquo[]natildeoeacuteofiacuteciodepoetanarraroqueaconteceue

sim o de representar o que poderia acontecer o que quer dizer o que eacute possiacutevel segundo

a verossimilhanccedila e a necessidaderdquo (aristoacuteteles 1987 p 209) Aleacutem disso continua o

estagirita o historiador e o poeta diferem natildeo pelo estilo que empregam (prosa ou verso)

mas por tratarem respectivamente do particular e do universal Daiacute Aristoacuteteles pode

concluir(contrariamenteaoqueestudounaAcademiaPlatocircnica)queldquo[]apoesiaeacute

algodemaisfilosoacuteficoemaisseacuteriodoqueahistoacuteria[]rdquo(aristoacuteteles 1987 p 209)

A verossimilhanccedila e a necessidade3 representam a coerecircncia e conexatildeo causal dos fatos

e accedilotildees Como afirma Eudoro de Souza em comentaacuterio (aristoacuteteles 1987 p 246)

existe um ponto de contato entre poesia e histoacuteria uma vez que acontecido e aconteciacutevel

satildeo ambos verossiacutemeis Entretanto quando pensamos que o poeta trabalha no acircmbito

da possibilidade tem em matildeos algo sempre mais amplo que a realidade enquanto o his-

toriador tem que se ater com o particular acontecido A figura 26 contrapotildee a posiccedilatildeo de

Aristoacuteteles em relaccedilatildeo agrave de Platatildeo tendo como base um saber que busca o universal sem

cindir a realidade em essecircncia e aparecircncia

Ainda no livro ix Aristoacuteteles nos diz que

[] o poeta deve ser mais fabulador que versificador porque ele eacute poeta pela imitaccedilatildeo e porque imita accedilotildees E ainda que lhe aconteccedila fazer uso de sucessos reais nem por isso deixa de ser poeta pois nada impede que algumas das coisas que realmente acontecem sejam por natureza verossiacutemeis e possiacuteveis e por isso mesmo venha o poeta a ser o autor delas (aristoacuteteles 1987 p 209)

3 Em Aristoacuteteles o conceito de necessidade estaacute relacionado ao que existe somente de um determinado modo ou seja do ponto de vista ontoloacutegico aquilo que eacute necessaacuterio natildeo pode ser de outro modo

148

Seguindo ainda o comentaacuterio de Eudoro de Souza (aristoacuteteles 1987 p 246)

ldquoSe aqui ainda natildeo eacute possiacutevel falar de lsquocriaccedilatildeorsquo eacute porque para o grego lsquocriaccedilatildeorsquo sempre

significou lsquodescobrimentorsquordquo4 Assim o poeta seria o descobridor das ldquoverdadeiras relaccedilotildees

que existem entre fatosrdquo Portanto se Aristoacuteteles contraria Platatildeo ao retirar a arte poeacutetica

do mais baixo niacutevel ontoloacutegico (3ordm niacutevel na figura 26) e recolocaacute-la em primeiro plano

como entendia a tradiccedilatildeo grega antes do platonismo ao mesmo tempo ele preserva um

criteacuterio caro a Platatildeo e agrave tradiccedilatildeo posterior do pensamento ocidental a universalidade

Com essa estrateacutegia singular de contrariar Platatildeo mantendo um conceito essencial o

estagirita torna sua operaccedilatildeo robusta o suficiente para convencer aqueles que natildeo aceitam

a criacutetica platocircnica agrave arte mas concordam com a relevacircncia da universalidade como um

caraacuteter necessaacuterio de uma teoria

A operaccedilatildeo de Aristoacuteteles se desdobra em pelo menos dois pontos positivos para

nossos propoacutesitos Primeiro ao conectar arte (teacutekhne) ao conceito de universalidade

4 Platatildeo em um certo sentido espelha a concepccedilatildeo grega de realidade Talvez por isso esse pensador eacute considerado a metoniacutemia do Ocidente Se retomamos a figura 4 (cf capiacutetulo 2 p 61) temos teoria associada agrave visatildeo com a representaccedilatildeo de um olho Assim o ldquodescobrimentordquo em seu sentido grego e especialmente platocircnico significa tirar a cobertura ldquodes-cobrirrdquo

Figura 26 Diagrama da separaccedilatildeo ontoloacutegica entre essecircncia e aparecircncia em Platatildeo (esquerda) e sua in-distinccedilatildeo em Aristoacuteteles (direita) que conduz a um conceito de miacutemesis diferenciado e potencialmente capaz de abarcar o universal com consequecircncias relevantes para a arte e o design fonte autor

PLATAtildeO ARISTOacuteTELES

1ordm NIacuteVEL mdash ARTIacuteFICE NATURAL (DEUS)No mundo inteligiacutevel Deus criou uma uacutenica cama modelo de todas outras

2ordm NIacuteVEL mdash MARCENEIRONo mundo sensiacutevel (imitaccedilatildeo do inteligiacutevel) o marceneiro cria sempre coacutepias da cama ideal

3ordm NIacuteVEL mdash POETA Baseia-se no mundo sensiacutevelpara criar suas obras que satildeo imitaccedilotildees de imitaccedilotildees

MIacuteMESISConceito compreendido aleacutem da simples imitaccedilatildeo

ARTERepresentaccedilatildeo natildeo narraccedilatildeo

POESIATrata do universal natildeo do particular

POETATrabalha no acircmbito da possibilidade Tem nas matildeos algo sempre mais amplo que a realidade

VERDADE UNA DO MUNDO DAS IDEIAS A IMITACcedilAtildeO NAtildeO PODE SUBSTITUIR O MODELO

RECUSA O MUNDO DAS IDEIAS A ARTE FORNECE SEU PROacutePRIO MODELO

ESSEcircNCIA

APAREcircNCIA MIacuteMESIS

SEM HIERARQUIA E SEPARACcedilAtildeO

ENTRE ESSEcircNCIA E APAREcircNCIA

149

preserva com isso o criteacuterio de verdade que para Platatildeo soacute a teoria (episteacuteme) pode-

ria oferecer Neste sentido a manobra aristoteacutelica assegura agrave arte se manter dentro

do registro ontoloacutegico proposto por Platatildeo Segundo se eacute imitando accedilotildees que o

poeta atraveacutes da possibilidade e da verossimilhanccedila realiza seu trabalho a miacutemesis

natildeo pode mais ser entendida como mera imitaccedilatildeo ou coacutepia como queria Platatildeo Eacute

neste contexto de ultrapassamento da imitaccedilatildeo ordinaacuteria que se faz necessaacuteria uma

anaacutelise da miacutemesis na sua relaccedilatildeo com a teacutekhne e a phyacutesis

413 As relaccedilotildees entre miacutemesis teacutekhne e phyacutesis

Se como afirma Virginia Figueiredo e Joatildeo Camillo Penna (figueiredo penna 2000

p 25) o livro iv de A poeacutetica eacute compreendido pela tradiccedilatildeo como o lugar para se extrair

o conceito de miacutemesis em Aristoacuteteles entendemos que eacute necessaacuterio um consideraacutevel

esforccedilo para aclarar tal conceito Como aponta Claacuteudio Veloso (2004 p 15) ldquoantes de

tudoemlugaralgumAristoacutetelesdefineotermomicroίmicroησις[miacutemesis]rdquoNoentantoWerner

Jaeger(1986p710)indica-nosoutrafontedepesquisadestaquestatildeoldquo[]Aristoacuteteles

define a relaccedilatildeo entre a arte e a natureza dizendo que natildeo eacute esta que a arte imita mas

sim que a arte se inventou para preencher as lacunas da naturezardquo e remete a outra obra

sua Nela Jaeger diz

Eacute uma ideacuteia caracteristicamente aristoteacutelica de que a natureza eacute finalista em mais alto grau inclusive que a arte e que o finalismo que reina no trabalho seja arte ou destreza natildeo eacute senatildeo uma imitaccedilatildeo de finalismo da natureza A mesma ideacuteia acerca da relaccedilatildeo entre as duas coisas se expressa brevemente no livro ii da Fiacutesica que eacute um dos escritos mais antigos de Aristoacuteteles Tambeacutem se faz alusatildeo incidentalmente em outros lugares mas nunca tatildeo bem desenvolvida e articulada como aqui Uma expressatildeo como a seguinte eacute rigorosamente original

ldquonatildeo imita a natureza a arte senatildeo a arte agrave natureza e a arte existe para ajudar a levar a cabo o que deixa de fazer a naturezardquo (jaeger 1946 p 92-93)

Philippe Lacoue-Labarthe (2000 p 257) vai tambeacutem ateacute a Fiacutesica com a mesma in-

tenccedilatildeoldquo[]trata-secommuitacertezadeumadasmaissegurasinterpretaccedilotildeesdateoria

150

aristoteacutelica da mimese tal como a encontramos com efeito quanto ao essencial no livro

b da Fiacutesica (194a)rdquo e diz-nos em seguida

De acordo com o que diz Aristoacuteteles a teacutekhne eacute pensada literalmente como o a-creacutescimo [sic] da phyacutesis quer dizer do aparecer (phaiacutenen) como o crescer o eclodir e o desabrochar (phyacuteein) agrave luz [] Formulado de outro modo apenas a arte (a teacutekhne) eacute capaz de revelar a natureza (a phyacutesis) Ou ainda sem a teacutekh-ne a phyacutesis escapa porque em sua essecircncia a phyacutesis kryptesthai phiacutelei ela adora dissimular-se (lacoue-labarthe 2000 p 257-258)

Considerando tanto estas passagens quanto o texto do livro iv de A poeacutetica aquilo

que eacute um acreacutescimo natildeo pode ser considerado mero arremedo ou duplicaccedilatildeo O apren-

der do homem com as representaccedilotildees por exemplo ldquode animais ferozes e de cadaacuteveresrdquo

(aristoacuteteles 1987 p 203) aponta para um conceito de miacutemesis que busca reassumir

os procedimentos da natureza A miacutemesis estaacute ligada ao real empiacuterico (natildeo eacute coacutepia de

uma realidade inteligiacutevel) e natildeo vai simplesmente reproduzir a natureza porque eacute ativa e

criativa Em outras palavras a miacutemesis em Aristoacuteteles tem fundamento ontoloacutegico

42 Deslocamento do conceito de miacutemesis e sua contribuiccedilatildeo ao design e agrave arte

Com o entendimento de que a miacutemesis ao se expressar na produccedilatildeo das coisas com suas

capacidades criativas explicita seu fundamento ontoloacutegico dois passos importantes para

a tese podem ser dados ao mesmo tempo em que satildeo subsumidos a esse conceito

1ordm A confirmaccedilatildeo do potencial para a miacutemesis ser explorada na anaacutelise do design enquan-

to processo criativo e produtivo Ao delimitar (mesmo que de forma esquemaacutetica e

procurando evitar equiacutevocos hermenecircuticos) os pontos de contato entre os conceitos

de produccedilatildeo e criaccedilatildeo ao tempo de Aristoacuteteles e na atualidade poderemos deslocar

o conceito de miacutemesis para o presente e apropriaacute-lo para o design e para a arte

2ordm Ao apresentar exemplos no design do uso da miacutemesis confirmamos empiricamente

o viacutenculo de natureza ontoloacutegica entre o conceito aristoteacutelico e esse campo

151

Assim o proacuteximo passo eacute direcionar o conceito aristoteacutelico de miacutemesis em sua relaccedilatildeo

original com a arte (teacutekhne) e a natureza (phyacutesis) para uma relaccedilatildeo contemporacircnea que

dividiremos em duas categorias uma exoacutegena por conectar duas esferas distintas design

e natureza e outra endoacutegena para aspectos intriacutensecos ao design Estamos aceitando

como pressuposto que a produccedilatildeo enquanto teacutekhne possa ter seu sentido ampliado ateacute o

da produccedilatildeo (ou criaccedilatildeo a partir de algo) entendida como design na atualidade

Nossa aposta considera o conceito de teacutekhne amplo e flexiacutevel o bastante para poder

adequar-se a esta transposiccedilatildeo trazendo consigo o de miacutemesis Nesse sentido eacute impor-

tante ter em mente como jaacute foi visto no capiacutetulo 2 que teacutekhne e episteacuteme (utilizadas em

diversos contextos da Greacutecia claacutessica como palavras quase sinocircnimas)5 tecircm como uma

de suas acepccedilotildees a de conhecimento universal o que estreita seu viacutenculo com um campo

de pesquisa e de trabalho como o design Analisemos os exemplos

421 A miacutemesis exoacutegena no design acreacutescimo e processo agrave natureza

Diante das diversas possibilidades inerentes agrave miacutemesis em sua vertente aristoteacutelica toma-

remos como ponto de partida duas ideias que o conceito comporta para suportar nossos

argumentos A primeira citada anteriormente eacute a ideia de acreacutescimo Quando em 1941 o

engenheiro George de Mestral enquanto caminhava pelos Alpes voltou sua atenccedilatildeo para

os carrapichos que grudavam em suas meias e no pelo de seu catildeo ele buscava entender

um evento singular da natureza Ao perceber que os ganchos microscoacutepicos dos carrapi-

chos prendiam-se aos minuacutesculos laccedilos do tecido das meias Mestral compreendeu uma

estrateacutegia de reproduccedilatildeo de uma planta que normalmente faz uso do pelo dos animais

para espalhar suas sementes em vastos territoacuterios

5 Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro mostra a aproximaccedilatildeo das atividades da teacutekhne e da episteacuteme quando revela a intenccedilatildeo de Platatildeo no diaacutelogo Iacuteon em distanciar a atividade do poeta (rapsodo) das duas pri-meiras ldquoOra a explicaccedilatildeo eacute que a atividade do rapsodo entendida como arte mimeacutetica natildeo se daacute por teacutechne ou episteacuteme faculdades tipicamente humanas mas por forccedila divina (theiacutea dyacutenamis) e inspiraccedilatildeo divina (theiacutea moira) Enquanto o teacutecnico-epistecircmico discursa soacutebrio nos limites do discernimento (eacutem-phron) exercendo certo domiacutenio sobre o seu praacutegma determinado (a etimologia de episteacuteme remete agrave accedilatildeo de ldquocolocar-se por cimardquo) o rapsodo fala fora de si (eacutek-phron) possuiacutedo (katechoacutemenos) tomado pelo deus (eacuten-theos) entusiasmado (en-thousiaacutezon)rdquo (ribeiro 2006 p 133) Negrito nosso

152

Mestral no entanto foi aleacutem e criou o Velcro um fecho que simula as caracteriacutes-

ticas do carrapicho Mas obviamente muitos anos se passaram entre o vislumbre que

Mestral teve de um novo produto (figura 27) e a conclusatildeo de suas pesquisas entre um

mecanismo de auxiacutelio agrave reproduccedilatildeo de uma planta e um fecho de alto desempenho

vaacuterios elementos e caracteriacutesticas foram acrescentados agrave ideia original para transfor-

maacute-la naquilo que utilizamos em roupas acessoacuterios esportivos e ateacute em componentes

de naves espaciais

Neste caso se usarmos os argumentos de Aristoacuteteles a traduccedilatildeo da estrutura origi-

nal do carrapicho em um objeto produzido pelo homem eacute mimeacutetica na medida em que

reassume de modo exoacutegeno os procedimentos da natureza mas natildeo eacute coacutepia uma vez

que os acreacutescimos (que envolvem estudos pesquisas e soluccedilotildees para diversos problemas)

garantem agrave miacutemesis sua condiccedilatildeo ativa e criativa

Uma segunda ideia constitutiva do conceito de miacutemesis eacute a noccedilatildeo de processo O

poeta e escritor portuguecircs Fernando Pessoa (1967 p 21) atraiacutedo por esse conceito

aristoteacutelico tem uma interpretaccedilatildeo sinteacutetica acerca da miacutemesis que pode nos orientar

ldquoO fim da arte eacute imitar perfeitamente a Natureza Este princiacutepio elementar eacute justo se

natildeo esquecermos que imitar a Natureza natildeo quer dizer copiaacute-la mas sim imitar os seus

Figura 27 Imagem ampliada da estrutura bioloacutegica de um carrapicho (esquerda) e detalhe do projeto de George de Mestral do Velcro para registro de patente da invenccedilatildeo (direita) fontes designculturecombr e google patentscom

153

processosrdquo Assim no proacuteprio exemplo do Velcro podemos perceber como a noccedilatildeo de

processo se sobrepotildee ao desenvolvimento deste produto Mestral dedicou-se dez anos

para aperfeiccediloar sua invenccedilatildeo e adaptar os mecanismos necessaacuterios ao seu processo

de produccedilatildeo industrial

422 A miacutemesis endoacutegena no design adaptaccedilatildeo e evoluccedilatildeo

Mais um aspecto do deslocamento do conceito de miacutemesis complementar agrave relaccedilatildeo exoacute-

gena entre design e natureza eacute o caraacuteter endoacutegeno de realimentaccedilatildeo positiva que cada

produto pode e deve ter na busca para aprimorar-se O Velcro ao longo dos seus mais de

50 anos de existecircncia foi aperfeiccediloado em diversos aspectos A busca por novos materiais

e formas mais eficientes de produccedilatildeo e disposiccedilatildeo de seus componentes satildeo algumas das

inovaccedilotildees que foram implementadas No entanto a miacutemesis se preserva em todas essas

adaptaccedilotildees e mudanccedilas na medida em que a ideia original se manteacutem incorporada ao

produto orientando seu propoacutesito natildeo sendo simplesmente reproduzida (copiada) em

seus aspectos formais e estruturais

Ainda dentro da atuaccedilatildeo endoacutegena podem ocorrer evoluccedilotildees que se distanciam formal

e estruturalmente do produto sem no entanto abrir matildeo dos seus conceitos e propoacutesitos

Um exemplo disso eacute o Slidingly Engaging Fastener (sef) tambeacutem conhecido como New

Velcro e inventado por Leonard Duffy a partir de uma pesquisa de oito anos A estrutura

diferente do sef (figura 28) faz com que ele atenda a uma seacuterie de requisitos do fecho

Velcro aleacutem de ser mais duraacutevel forte silencioso e natildeo reter pelos poeira e odor como

seu antecessor

Tendo chegado a este ponto eacute importante fazer uma correlaccedilatildeo conceitual entre dois

autores distantes na histoacuteria do pensamento mas com questotildees em comum Aristoacuteteles e

Flusser O par teacutekhneepisteacuteme (entendido pelos gregos como habilidade e conhecimento

teoacuterico e desmembrado em ciecircncia teacutecnica e arte) na concepccedilatildeo de Aristoacuteteles se apropria

tanto da natureza quanto dos objetos produzidos pelo homem recorrendo agrave miacutemesis Se

em Aristoacuteteles haacute uma conexatildeo que parte da natureza (phyacutesis) em direccedilatildeo agrave arte (teacutekhne)

154

que imita os processos da primeira resultando em conhecimento humano em Flusser

a conexatildeo ou ldquoponterdquo ocorre em sentido contraacuterio partindo de um dos campos do co-

nhecimento humano o design e avanccedilando ateacute a natureza Neste contexto se justifica

com mais intensidade procurar compreender essa acepccedilatildeo da miacutemesis eacute ir ateacute um dos

fundamentos mesmos da nossa cultura resgatando um sentido ou sentidos esquecidos e

transfigurados com o tempo na histoacuteria do pensamento ocidental A figura 29 apresenta

as conexotildees que derivam da relaccedilotildees entre phyacutesis episteacuteme e teacutekhne se efetivam atraveacutes do

conceito de miacutemesis e seguem em direccedilatildeo ao design Tal conceito uma vez incorporado

ao design amplia as possibilidades de fundamentaccedilatildeo teoacuterica deste campo

Figura 28 Imagem com detalhe do projeto de Leonard Duffy do New Velcro para registro de patente da invenccedilatildeo fonte google patentscom

TECNOLOGIA

asymp aC dC 85 dC dCGreacutecia Ocidente

EPISTEacuteME

TEacuteKHNE

PHYacuteSIS NATUREZA

CIEcircNCIA

TEacuteCNICA

MIacuteMESIS

ARTE

POacuteIESIS

DESIGN

Figura 29 Linha do tempo que mostra as trecircs conexotildees que partem da phyacutesis episteacuteme e teacutekhne possibili-tando sua ligaccedilatildeo com o design na atualidade atraveacutes do conceito de miacutemesis fonte autor

155

Dado esse passo atualizar a relaccedilatildeo da miacutemesis com a teacutekhne direcionando-as ao

design nos permite operar com um conceito que pela sua riqueza de possibilidades

pode ser usado para a interpretaccedilatildeo e entendimento de diversas questotildees assim como fez

Aristoacuteteles em sua eacutepoca Quando pensamos que campos como a biocircnica e a ciberneacutetica

(para citar apenas dois) atuam de forma mimeacutetica ao transferirem conhecimentos da

biologia para diversas outras aacutereas incluindo o design a compreensatildeo do conceito de

miacutemesis cresce em importacircncia

Paralelamente a esses avanccedilos de caraacuteter mimeacutetico as instituiccedilotildees de ensino e o mer-

cado tambeacutem podem incorporar o modelo imitativo enquanto preceitos e dogmas de

caraacuteter mais reprodutivo ou de coacutepia Dijon De Moraes (2006) em seu livro Anaacutelise do

design brasileiro entre mimese e mesticcedilagem dedica um capiacutetulo inteiro agrave investigaccedilatildeo

da imitaccedilatildeo do modelo racional funcionalista alematildeo (originaacuterio da Bauhaus e da Escola

de Ulm) e agraves consequecircncias destas referecircncias (positivas e negativas) para o design local

No mercado esta praacutetica pode ser nomeada com justa razatildeo de coacutepia quando por

exemplo uma patente expira ou natildeo eacute respeitada e os concorrentes simplesmente reproduzem

o que jaacute existe muitas vezes com perda na qualidade final do produto Neste sentido pensar

a partir do crivo ontoloacutegico nos permite tambeacutem compreender a distinccedilatildeo entre criaccedilatildeo

e coacutepia em design como um rebaixamento ontoloacutegico da imitaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao original

RetomandoalgumaspalavrasdeAristoacuteteles(1987p203)ldquo[]detodoseacuteele[o

homem]omaisimitadoreporimitaccedilatildeoaprendeasprimeirasnoccedilotildeesrdquoNatildeodeixadeser

curioso o fato de que se levarmos a afirmaccedilatildeo de Aristoacuteteles ao peacute da letra o esforccedilo de

trazer o conceito de miacutemesis para o presente e para sua relaccedilatildeo com o design tambeacutem eacute

uma accedilatildeo mimeacutetica

423 A miacutemesis complementar na arte saiacuteda para o dilema de Euriacutepedes

Se nas palavras de Aristoacuteteles aprendemos as primeiras noccedilotildees atraveacutes da miacutemesis pode-

mos compreender esse conceito com um tipo de procedimento que pode ser efetuado por

qualquer ser humano Por mais que a miacutemesis em sua acepccedilatildeo aristoteacutelica possa explicar

diversas operaccedilotildees do processo criativo no design na arte e em outros campos existem

156

problemas que podem tambeacutem ser associados com a atitude mimeacutetica Em outras palavras

com a miacutemesis atraiacutemos por um lado vaacuterias possibilidades de explicaccedilatildeo do processo de

criaccedilatildeo mas por outro encontramos questionamentos a esse tipo de operaccedilatildeo Arthur

Danto (2005) por exemplo lanccedila matildeo de um dilema nietzscheano para demonstrar os

limites da apropriaccedilatildeo da miacutemesis no universo da arte No entanto acreditamos que a

saiacuteda para a contradiccedilatildeo que nos apresenta Danto se encontra dentro da proacutepria miacutemesis

em uma de suas caracteriacutesticas jaacute apresentadas a de atuar como processo Como veremos

enquanto um processo a miacutemesis aleacutem de escapar dessa contradiccedilatildeo faz a mediaccedilatildeo

com os demais conceitos aristoteacutelicos explorados por Umberto Eco e que datildeo o fecho

agraves anaacutelises deste capiacutetulo

No capiacutetulo inicial do livro A transfiguraccedilatildeo do lugar-comum Arthur Danto indaga

sobre o que eacute uma obra de arte Sua intenccedilatildeo eacute compreender a arte contemporacircnea como

manifestaccedilatildeo cultural com todas as suas caracteriacutesticas exclusivas mas que se conecta e se

entrelaccedila com diversas outras aacutereas da cultura de nosso tempo Danto introduz este pri-

meiro problema trabalhando a questatildeo da representaccedilatildeo atraveacutes do conceito de imitaccedilatildeo6

O que buscamos neste primeiro momento eacute uma possiacutevel saiacuteda para o questionamento de

Danto (apresentado sob a forma de um raciociacutenio nomeado por ele Dilema de Euriacutepedes)

correlacionando-o com algumas proposiccedilotildees de Aristoacuteteles ligadas ao conceito de miacutemesis

Em Obras de arte e meras coisas reais capiacutetulo 1 do seu livro Danto analisa inuacuteme-

ros conceitos passando pelas ideias de pensadores artistas e obras de arte ele recorre

a Wittgenstein depois a Platatildeo Soacutecrates Shakespeare Sartre Van Gogh e Aristoacuteteles

Uma das questotildees que estatildeo na origem deste trajeto eacute qual a natureza da fronteira entre

arte e natildeo arte O ponto especiacutefico que nos interessa comeccedila quando Danto ao tratar do

problema da imitaccedilatildeo conclui que a mesma ldquotem a funccedilatildeo mais importante de representar

as coisas reaisrdquo (danto 2005 p 55) Eacute importante salientar aqui que a expressatildeo ldquocoisas

reaisrdquo sinaliza a intenccedilatildeo de Danto de manter sua criacutetica agrave miacutemesis aristoteacutelica dentro

dos limites da ontologia Assim em seguida ele afirma que a representaccedilatildeo conteacutem uma

6 Com relaccedilatildeo agrave associaccedilatildeo entre representaccedilatildeo e imitaccedilatildeo Timo Maran em artigo publicado em 2003 (Mimesis as a phenomenon of semiotic communication) analisa diversas interpretaccedilotildees deste conceito indo aleacutem do ciacuterculo estrito da tradiccedilatildeo filosoacutefica e investigando a miacutemesis enquanto um fenocircmeno de comunicaccedilatildeo

157

ambiguidade e para diferenciar os dois sentidos recorre agrave Nietzsche Analisemos como

ele faz tal aproximaccedilatildeo

No livro O nascimento da trageacutedia (a mesma obra em que no capiacutetulo 2 apresentamos

a criacutetica nietzschiana agrave ciecircncia atraveacutes da arte) Nietzsche associa a origem da trageacutedia

grega aos rituais dionisiacuteacos Nesses rituais havia a crenccedila de que Dioniacutesio sempre se fazia

presente este seria o primeiro sentido de representaccedilatildeo uma (re)apresentaccedilatildeo Com o

passar do tempo o teatro traacutegico grego substituiu os rituais por reproduccedilatildeo simboacutelica

Assim o deus natildeo mais aparecia mas era representado por algueacutem (figura 30) Este seria

o segundo sentido de representaccedilatildeo algo que estaacute no lugar de outro

Dessa forma para Nietzsche Euriacutepedes destruiu a trageacutedia ao introduzir elementos

que faziam com que a representaccedilatildeo teatral se tornasse mais proacutexima da realidade possiacutevel

Esse eacute o programa euripidiano (que sacrifica uma parte do misteacuterio) e a sua contrapartida

eacute fazer arte que natildeo tenha correspondecircncia na realidade consequentemente natildeo con-

duzindo agrave prevalecircncia da imitaccedilatildeo Danto resume assim os dois programas (figura 31)

O Dilema de Euriacutepedes consiste em que uma vez completado o programa mimeacutetico o produto fica tatildeo parecido com o que se encontra na realidade que exatamente por ser idecircntico ao real cabe perguntar o que o torna uma obra de arte A tentativa de fugir ao dilema exagerando os elementos natildeo-mimeacuteticos purgados em nome do programa produz uma coisa tatildeo diferente da realidade que essa pergunta perde sentido Mas permanece outra questatildeo igualmente importante dado que no final obtemos algo que eacute descontiacutenuo com a realidade o que ainda o distingue como arte (danto 2005 p 68)

RITUAIS DIONISIacuteACOS

DOIS CONCEITOS DE REPRESENTACcedilAtildeO

Dioniacutesio natildeo presente representaccedilatildeo simboacutelica

TEATRO TRAacuteGICO GREGO

Dioniacutesio presente representaccedilatildeo como (re)apresentaccedilatildeo

Figura 30 Esquema da oposiccedilatildeo entre representaccedilatildeo e reapresentaccedilatildeo conforme a criacutetica nietzschiana ao programa euripidiano fonte autor

158

Mais agrave frente Danto afirma que

Talvez seja mesmo impossiacutevel escapar desse dilema enquanto continuarmos tentando definir a arte em funccedilatildeo de aspectos comparaacuteveis ou contrastantes com os do mundo real Mas nesse caso eacute bem possiacutevel que o dilema seja fa-talmente inescapaacutevel pois que outra coisa aleacutem de aspectos comparaacuteveis ou contrastantes poderia servir de base para a construccedilatildeo de uma teoria da arte (danto 2005 p 70)

Danto entatildeo sugere uma saiacuteda para esse dilema as convenccedilotildees Tudo aquilo que a

convenccedilatildeo aceitar como obra de arte eacute obra de arte Esta saiacuteda ele jaacute havia apontado no

iniacutecio do capiacutetulo quando o pintor J (um personagem do livro) declara que sua super-

fiacutecie vermelha eacute uma obra de arte Mas essa ldquosaiacutedardquo jaacute natildeo havia satisfeito Danto naquele

momento do texto e obviamente ainda continua natildeo o satisfazendo mdash nem a quem quer

que busque compreender o que estaacute em questatildeo Eacute uma soluccedilatildeo precaacuteria que natildeo nos

satisfaz em termos de fundamentaccedilatildeo

Neste ponto da argumentaccedilatildeo de Danto propomos uma via intermediaacuteria entre o

seus programas mimeacutetico e contramimeacutetico Se pudermos encontrar algo mediador entre

continuidade e descontinuidade com o real talvez uma parte da questatildeo possa tornar-se

mais clara Nossa intenccedilatildeo eacute escapar da contradiccedilatildeo buscando em Aristoacuteteles nos proacute-

prios elementos associados ao seu conceito de miacutemesis condiccedilotildees que possam nos ajudar

a construir uma saiacuteda para a aporia instalada no acircmbito da arte

Assim retomando a miacutemesis em Aristoacuteteles e uma de suas caracteriacutesticas fundamen-

tais a de acreacutescimo poderiacuteamos dizer que natildeo se trata de a arte ser nem contiacutenua nem

descontiacutenua mas de ser complementar com o real Desta maneira ao inverter nosso olhar

PROGRAMA MIMEacuteTICO

O DILEMA DE EURIacutePEDES

Arte descontiacutenua com o real

PROGRAMA CONTRAMIMEacuteTICO

Arte contiacutenua com o real

Figura 31 Esquema do Dilema de Euriacutepedes e a dificuldade segundo Danto de se encontrar uma definiccedilatildeo para obra de arte fonte autor

159

sobre a questatildeo o fato de a teoria da contramimese estar ldquoconceitualmente entrelaccedilada

com a teoria que rejeita isto eacute a proacutepria teoria da mimeserdquo (danto 2005 p 67) natildeo

seria mais um problema como considera Danto mas parte da soluccedilatildeo (figura 32)

43 Ampliaccedilatildeo das determinaccedilotildees ontoloacutegicas nas relaccedilotildees entre design e arte

A soluccedilatildeo anterior atraveacutes da complementaridade tem caraacuteter parcial uma vez que se

restringe ao universo da arte Eacute necessaacuterio seguir em frente para saltar do acircmbito da arte e

estabelecer a reflexatildeo dentro do acircmbito do design e vice-versa Quase ao final do primeiro

capiacutetulo Danto apresenta-nos o resumo de algumas questotildees que jaacute havia desenvolvido

em momentos anteriores Uma delas acreditamos tambeacutem pode ser respondida pela

nossa proposta de soluccedilatildeo mimeacutetica mas como veremos traz um elemento a mais A

perguntadesteautordecaraacutetereminentementeontoloacutegicoeacuteldquo[]seraacutequecadanovo

item da realidade mdash digamos uma nova espeacutecie ou uma invenccedilatildeo mdash deve ser considerado

uma contribuiccedilatildeo para a arterdquo (danto 2005 p 67)

Se como vimos novos objetos de arte podem natildeo ser simplesmente descontiacutenuos

com a realidade mas complementares e revelar aspectos desta realidade que de outro

modo estariam ocultos esta segunda pergunta estaacute em parte respondida um novo item

da realidade pode ser considerado uma obra de arte No entanto porque usamos o pode

e natildeo o deve a questatildeo ainda natildeo se esgotou Ainda se poderia levantar mais uma duacutevida

a partir do que estabelecemos ao final do capiacutetulo 2 outros objetos como os instrumentos e

os dispositivos de novas tecnologias entre os quais o design eacute incorporado tambeacutem satildeo capa-

zes de revelar novos aspectos da realidade Seriam eles tambeacutem objetos de arte Aristoacuteteles

Arte complementar com o real

MIacuteMESISCONTRAMIacuteMESIS

SAIacuteDA DO DILEMA

Figura 32 Esquema do entrelaccedilamento da miacutemesis e da contramiacutemesis com a complementaridade solucio-nando o dilema entre continuidade e descontinuidade da arte com o real fonte autor

160

elabora conceitos que mais uma vez natildeo satildeo oferecidos em A poeacutetica mas que podem

nos auxiliar na resposta

431 Da arte ao design o conceito de ldquofim em si mesmordquo

Em outra obra de sua autoria A poliacutetica Aristoacuteteles faz uma distinccedilatildeo entre coisas uacuteteis

e coisas belas que visa natildeo especificamente as artes mas as atividades humanas em geral

Mantendo o espiacuterito de apropriaccedilatildeo que ateacute agora nos conduziu podemos fazer um uso

correlato dessa distinccedilatildeo para a questatildeo de Danto sobre quais itens da realidade podem

ser considerados obra de arte Como afirma Aristoacuteteles

Toda a vida estaacute dividida em trabalho e oacutecio guerra e paz e dentre as actividades umas satildeo necessaacuterias e uacuteteis e outras satildeo dignas [belas] A guerra existe em vista da paz o trabalho em funccedilatildeo do oacutecio as actividades necessaacuterias e uacuteteis em vista das honrosas [belas] (aristoacuteteles 1998 p 537) Itaacutelicos nossos

Fernando Santoro (2006 p 78) traduz as palavras ldquodignasrdquo e ldquohonrosasrdquo por ldquobelasrdquo

Concordando com esse autor privilegiamos tal sentido uma vez que no texto em grego

constam ldquoτὰ καλάrdquo (taacute kalaacute) e ldquoτῶν καλῶνrdquo (toon kaloon) palavras que nas suas primeiras

acepccedilotildees em dicionaacuterio tecircm o sentido de belo Atentando a esse ponto notemos que Aris-

toacuteteles associa o uacutetil e o negoacutecio de um lado e o belo e o oacutecio de outro Obviamente na

atualidade a arte jaacute natildeo busca mais as coisas simplesmente belas7 Mas uma caracteriacutestica

7 Quando Aristoacuteteles fala de coisas belas em conexatildeo com o oacutecio eacute importante compreender conforme afirma Fernando Santoro (2006 p 74) que para este pensador grego as coisas belas estatildeo mais ligadas agraves melhores accedilotildees humanas (principalmente a accedilatildeo teoreacutetica e contemplativa) do que propriamente aos objetos produzidos pelas diversas artes Eacute relevante tal distinccedilatildeo uma vez que a arte grega (teacutekhne) enquanto ofiacutecio era um trabalho pelo qual oleiros escultores pintores arquitetos e outros profissio-nais recebiam remuneraccedilatildeo Essa praacutetica que na Idade Meacutedia tinha como principais patrocinadores a Igreja e a Nobreza posteriormente passou a contar com os mecenas da crescente classe comerciante e natildeo perdeu seu caraacuteter de negoacutecio ateacute os dias de hoje Se uma parte dos artistas atuais aqueles que atuam no chamado campo das belas-artes entendem que sua criaccedilatildeo soacute passa agrave condiccedilatildeo de produto a ser negociado quando termina e vai para as matildeos do marchand natildeo significa que assim o seja numa sociedade capitalista por excelecircncia A proacutepria expressatildeo ldquomercado internacional de obras de arterdquo comumente utilizada no meio cultural e econocircmico faz pensar que um artista que deseje ou necessite sobreviver de sua criaccedilatildeo natildeo se arriscaria a produzir arte que natildeo estivesse de alguma maneira enga-jada no espiacuterito e tendecircncias de seu tempo Sob esse ponto de vista arte tambeacutem eacute negoacutecio

161

essencial da visatildeo aristoteacutelica ainda se preserva na arte o seu fim continua sendo ela mesma

Um objeto de arte eacute para ser fruiacutedo independentemente do modo como isso se decirc seja com

apreciaccedilatildeo culto ou estranhamento Nesse sentido podemos dizer que a arte natildeo eacute uacutetil

Mas e quanto ao que eacute uacutetil que segundo Aristoacuteteles tecircm seu fim e funccedilatildeo fora dele

mesmo Poderiacuteamos afirmar que o fim de um martelo (a sua utilidade se bem projetado)

eacute pregar pregos Mesmo um instrumento mais elaborado como um computador que pelo

seu proacuteprio conceito transformou-se em algo que exerce muacuteltiplas tarefas ainda assim

teria sua finalidade nos inuacutemeros trabalhos que executa e natildeo nele mesmo Neste sentido

a concepccedilatildeo de que a forma segue a funccedilatildeo defendida pelo modernismo no seacuteculo xx e

seus seguidores racionalistas aponta nesta direccedilatildeo

Poreacutem se nos atentarmos um pouco mais para as complexas relaccedilotildees que estabele-

cemos com as coisas em nossa sociedade contemporacircnea aqueles objetos caracterizados

primariamente como instrumentos como vimos com Rafael Cardoso se recobrem de

inuacutemeros valores carregando significados que ultrapassam a mera execuccedilatildeo de um trabalho

com um fim exterior a eles mesmos Um espremedor de frutas projetado por Philippe

Starck (figura 33) concebido para retirar o suco das frutas (ou pelo menos seu projeto

teve como uma das motivaccedilotildees uma utilidade especiacutefica no mundo humano) talvez passe

o resto dos dias em cima de uma mesa ou estante em uma residecircncia abandonado a uma

exposiccedilatildeo meramente esteacutetica

Figura 33 Fotografia do espremedor de frutas Juicy Salif (1990) de Philippe Starck projetado para a empresa italiana Alessi fonte alessicom

162

Nesse caso extremo poreacutem a cada dia mais comum o espremedor se ainda natildeo eacute uma

obra de arte institucionalizada pelo menos no acircmbito privado seu proprietaacuterio assim o

considera Mas na circunstacircncia de um artefato desses ser utilizado para espremer frutas

eacute de se supor (pelo menos eacute o que esperam os designers) que seu usuaacuterio contemporacircneo

tenha uma experiecircncia que vaacute aleacutem do simples manejo de um instrumento bem projetado

e uacutetil para um fim fora dele mesmo Este algo mais supostamente presente em um ins-

trumento pode natildeo ser fruiccedilatildeo no sentido artiacutestico mas aponta para uma caracteriacutestica

que eacute proacutepria da arte e natildeo das coisas uacuteteis o fim em si mesmo

A divisatildeo aristoteacutelica fundada no belo versus uacutetil se destaca por dois motivos Primei-

ro porque sinaliza-nos que a questatildeo eacute mais complexa do que a princiacutepio afigura-se em

uma dicotomia Segundo e mais importante com a ampliaccedilatildeo e o aprofundamento do

problema (paralelamente agrave elaboraccedilatildeo do conceito de fim em si mesmo que permite uma

maior discriminaccedilatildeo entre arte e design) tal investigaccedilatildeo detecta e expotildee caracteriacutesticas

anteriormente atribuiacutedas ao universo exclusivo da arte e que se encontram apoacutes a ava-

liaccedilatildeo imbricadas ao design Isso poderia ser encarado como um problema para aqueles

que procuram apenas a delimitaccedilatildeo desses campos mas em nossa perspectiva eacute o ponto

de inflexatildeo que indica um viacutenculo (ainda natildeo completamente compreendido) que parte

do universo artiacutestico em direccedilatildeo ao design Nesse sentido poderiacuteamos dizer que o fim

em si mesmo eacute outro liame de caracteriacutesticas semelhantes agrave ldquoPonte Flusserianardquo mas com

um sentido inverso pois um elemento essencial da arte e se encaminha para o design na

expansatildeo dos domiacutenios deste campo

A figura 34 apresenta o graacutefico com as conexotildees que partem do design defendidas

na proposta de Flusser (linhas marrom) Aleacutem delas duas conexotildees (linhas alaranjadas)

partem da arte para o design A linha 1 jaacute haviacuteamos estabelecido anteriormente no capiacutetulo

2 com o entendimento que a arte eacute historicamente uma das disciplinas que contribuiacute-

ram para a formaccedilatildeo do design A linha 2 acaba de se estabelecer com a compreensatildeo do

conceito de fim em si mesmo

Assim avanccedilamos mais dois passos no caminho de nossa hipoacutetese vimos primei-

ramente que o conceito de miacutemesis eacute adequado para a compreensatildeo de objetos onde

a funcionalidade eacute preponderante como o caso do velcro e em segundo lugar que o

163

conceito de fim em si mesmo (de modo complementar ao de miacutemesis) vai ao encontro

das possibilidades da experiecircncia do usuaacuterio com os objetos O exemplo do espremedor eacute

modelar na medida em que o design na contemporaneidade cada vez mais explora o fim

em si mesmo em busca de produzir experiecircncias ultrapassando os atributos funcionais e

instrumentais de seus objetos

432 Da arte ao design o discurso aberto e o persuasivo epidiacutectico

Depois de superar o Dilema de Euriacutepedes com a aposta numa complementaridade extraiacuteda

do conceito de miacutemesis aristoteacutelico o fecho da estrateacutegia anterior foi a partir de uma

visatildeo geral das atividades humanas apropriar-nos das distinccedilotildees (tambeacutem aristoteacutelicas)

dos pares de conceitos de uacutetilnegoacutecio e belooacutecio para identificar em quais dessas catego-

rias nossos objetos de estudo se alinham Mas o que percebemos eacute que arte e design pela

proacutepria complexidade inerente aos mesmos satildeo nuanccedilados nos seus pontos de encontro

similaridades e distanciamentos de fronteiras conceituais Assim avanccedilaremos mdash operando

da mesma maneira analiacutetica e mantendo o foco nos fundamentos ontoloacutegicos mdash sobre

FIM EM SI MESMO

asymp aC dC 7 dC 85 dC dCGreacutecia Ocidente

EPISTEacuteME

TEacuteKHNE

PHYacuteSIS NATUREZA

CIEcircNCIA

TEacuteCNICA

ARTE

TECNOLOGIA

POacuteIESIS

1 2

DESIGN

Figura 34 Linha do tempo indicando o conceito de fim em si mesmo (linha 2) em um caminho inverso ao da ldquoPonte Flusserianardquo partindo da arte em direccedilatildeo ao design fonte autor

164

outro elemento constituinte das atividades humanas a comunicaccedilatildeo A busca eacute por uma

perspectiva que amplie nosso entendimento sobre a questatildeo

Em seu livro Obra aberta Umberto Eco atento aos pressupostos de comunicaccedilatildeo da

arte e de outros campos estabelece uma distinccedilatildeo entre discurso aberto e discurso persua-

sivo Para Eco (1988 p 279-280) o discurso aberto tem duas caracteriacutesticas principais

eacute ambiacuteguo e envia-nos natildeo agraves coisas mesmas mas ao modo como o discurso as expressa

Essas duas caracteriacutesticas segundo ele satildeo proacuteprias da arte Essa ambiguidade do discurso

aberto que natildeo tem a mesma conotaccedilatildeo da anaacutelise anterior de Danto no Dilema de Eu-

riacutepedes reforccedila a distinccedilatildeo baacutesica entre arte e campos que se supotildeem direcionados apenas

agrave objetividade como a ciecircncia enquanto o discurso da arte eacute equiacutevoco o desses campos eacute

uniacutevoco ou pelo menos pretende ser

Em primeiro lugar o discurso da arte eacute ambiacuteguo porque natildeo pretende oferecer uma

definiccedilatildeo da realidade que seja plena e cabal

[] o discurso artiacutestico nos coloca numa condiccedilatildeo de ldquoestranhamentordquo de ldquodespaisamentordquo apresenta-nos as coisas de um modo novo para aleacutem dos haacutebitos conquistados infringindo as normas da linguagem agraves quais haviacuteamos sido habituados As coisas de que nos fala nos aparecem sob uma luz estranha como se as viacutessemos agora pela primeira vez precisamos fazer um esforccedilo para compreendecirc-las para tornaacute-las familiares precisamos intervir com atos de escolha construir-nos a realidade sob o impulso da mensagem esteacutetica sem que esta nos obrigue a vecirc-la de um modo predeterminado Assim a mi-nha compreensatildeo difere da sua e o discurso aberto se torna a possibilidade de discursos diversos e para cada um de noacutes eacute uma contiacutenua descoberta do mundo (eco 1988 p 280)

Como afirma Eco (1988 p 280) a mensagem que proveacutem do discurso aberto natildeo se

consuma sempre respondendo diversamente para cada um que tenha acesso ao discurso

Talvez em parte por causa dessa caracteriacutestica noacutes retornamos mais de uma vez para a fruiccedilatildeo

de uma mesma obra de arte E estando essa obra carregada de possibilidades discursivas

jaacute que eacute ambiacutegua sempre nos atingiraacute e nos ofereceraacute algo novo em sua apreciaccedilatildeo

Em segundo lugar o discurso da arte vai em direccedilatildeo ao modo como expotildee seus ob-

jetos e natildeo aos objetos mesmos Natildeo importa por exemplo se uma maccedilatilde pintada em

uma natureza morta assemelha-se mais ou menos com uma maccedilatilde real O que importa eacute

165

que ela se abre para um modo diverso de percepccedilatildeo e revela sempre algo mais Este modo

diverso de percepccedilatildeo que o discurso aberto propicia por sua capacidade de revelar algo

mais natildeo busca a simples imitaccedilatildeo Assim um elemento importante a ser ressaltado eacute que

tal caracteriacutestica ainda que natildeo explicitada ou pretendida por Eco estabelece a conexatildeo

dessa categoria de discurso com o conceito de miacutemesis em sua vertente aristoteacutelica

Em um exemplo distinto afastando-nos do modelo representacionista de arte um

ready made de Duchamp como A fonte (figura 35) natildeo tem a intenccedilatildeo ou natildeo assume

como primeira intenccedilatildeo enviar-nos ao objeto que a originou isto eacute a um urinol Como

diz Eco a arte ldquonatildeo quer agradar e nem consolar mas colocar problemas renovar a nossa

percepccedilatildeo e o nosso modo de compreender as coisasrdquo (eco 1988 p 280)

Quando vai tratar do discurso persuasivo Umberto Eco lembra-nos que o primeiro

teoacuterico a abordar essa categoria de mensagem foi Aristoacuteteles ao estudar as suas diversas

modalidades na Arte retoacuterica Tanto quanto em A poeacutetica Aristoacuteteles escreve esse tratado

visando ao mesmo tempo descrever um determinado tema e prescrever maneiras de uti-

lizar as teacutecnicas advindas do seu estudo descritivo Analisemos como Eco apresenta-nos

a divisatildeo que Aristoacuteteles faz para o discurso persuasivo

Figura 35 Fotografia de A fonte (1917) de Marcel Duchamp fonte tateorg

166

[] Persuasivos satildeo o discurso judiciaacuterio o discurso poliacutetico e o discurso da propaganda [] Ele [Aristoacuteteles] examinou os modos do discurso deliberativo (poliacutetico) judiciaacuterio e epidiacutetico (ieacute o discurso em louvor ou em reprovaccedilatildeo de qualquer coisa diriacuteamos hoje ldquoo discurso publicitaacuteriordquo) e prescreveu as regras de um discurso que partindo de ldquoopiniotildees comunsrdquo leve o ouvinte a assentir a concordar com aquele que fala Nesse sentido o discurso persuasivo quer convencer o ouvinte com base naquilo que ele jaacute sabe jaacute deseja quer ou teme O discurso persuasivo tende a confirmar o ouvinte nas suas opiniotildees e conven-ccedilotildees Natildeo lhe propotildee nada de novo natildeo o provoca mas o consola assim hoje a publicidade me induz a comprar aquilo que eu jaacute desejo e a desejar aquilo que natildeo desejo mas responde agraves minhas tendecircncias secretas fotonovelas e histoacuterias em quadrinhos me fazem rir chorar ou estremecer com os problemas de sempre os sinais de traacutefego me levam a parar ou a passar referindo-se a necessidades elementares de seguranccedila ao medo do acidente ao temor de uma multa (eco 1988 p 281) Itaacutelico nosso

Nessa citaccedilatildeo algo que nos chama a atenccedilatildeo satildeo os exemplos que Eco oferece para as

classes de discurso persuasivo de Aristoacuteteles Particularmente o epidiacutectico ou demonstra-

tivo eacute o que nos interessa por uma de suas caracteriacutesticas o elogio Natildeo eacute difiacutecil associar o

discurso epidiacutectico ao discurso subjacente ao design principalmente depois do passo dado

por Umberto Eco ao associaacute-lo agrave publicidade E podemos usar os mesmos argumentos de

Eco da citaccedilatildeo anterior mudando apenas o sujeito da oraccedilatildeo de publicidade para design

e afirmar que o design ldquome induz a comprar aquilo que eu jaacute desejo e a desejar aquilo que

natildeo desejo mas responde agraves minhas tendecircncias secretasrdquo

Assim aproveitando ainda as palavras de Eco uma vez que o discurso epidiacutectico

responde tambeacutem agraves nossas ldquotendecircncias secretasrdquo cabe ao design se antecipar a elas e criar

produtos jaacute inconscientemente desejados pelos consumidores E isso o design que se quer

estrateacutegico e que atua na relaccedilatildeo produtoconsumidorusuaacuterio sabe fazer Sabe inclusive

colocar certo ldquosaborrdquo de discurso aberto em seus produtos para atrair o consumidor e

futuro usuaacuterio ansioso por interagir criar ele mesmo sua obra personalizada e ter uma

experiecircncia iacutempar ao utilizaacute-lo para fins especiacuteficos ou natildeo Neste sentido a compreensatildeo

desses discursos aponta para uma resposta aquele algo mais detectado por noacutes anterior-

mente e atribuiacutedo a uma parcela de fim em si mesmo deslocado da esfera da arte pode se

explicar por meio da introduccedilatildeo de caracteriacutesticas do discurso aberto no design Foi o que

constatamos anteriormente com o espremedor de frutas o que conceitualmente sinaliza

167

para trabalhos como o de Philippe Starck enquanto referecircncia concreta da incorporaccedilatildeo

do discurso aberto ao universo do design

A figura 36 traz uma siacutentese da subseccedilatildeo atual Por um lado representa o movimento do

discurso aberto de Eco que parte da arte em direccedilatildeo ao design combinando seus atributos

com os conceitos aristoteacutelicos de miacutemesis (conexatildeo identificada na paacutegina 165) e de fim em

si mesmo determinada no paraacutegrafo anterior Por outro incorpora o discurso persuasivo

epidiacutectico proveniente da Retoacuterica de Aristoacuteteles no interior do design potencializando

as accedilotildees deste campo tambeacutem no acircmbito dos conceitos de miacutemeses e de fim em si mesmo

433 Do design agrave arte a metaacutefora epistemoloacutegica e os objetos sensiacuteveis

A descriccedilatildeo da subseccedilatildeo anterior elucida somente parte da questatildeo uma vez que satisfaz

somente um dos sentidos da relaccedilatildeo Aquele em que o discurso aberto proacuteprio da arte se

encaminha em direccedilatildeo ao design e pode se estabelecer em seu interior Resta ainda pensar

se ocorre o inverso eacute possiacutevel que o discurso persuasivo proacuteprio do design seja de algum

modo apropriado pela arte De novo Umberto Eco fornece subsiacutedios para iniciarmos

este segundo caminho

Atento a determinadas relaccedilotildees que se estabelecem no interior da cultura Eco percebe

a influecircncia que teorias cientiacuteficas exercem sobre grupos especiacuteficos na sociedade Entre

eles encontram-se o dos artistas interessados nos rumos das ciecircncias suas descobertas e

nas mudanccedilas culturais que as mesmas geram Tal interesse segundo Eco os conduz a

Figura 36 Esquema das origens e movimentos dos discursos aberto e persuasivo em suas conexotildees com a arte a comunicaccedilatildeo e o design fonte autor

ARISTOacuteTELESDISCU

RSO

ABER

TO

MIacuteMESIS + F

IM E

M SI

MESMO

DISCURSO PERSUASIVO

EPIDIacuteTICO

ECOARTE

RETOacuteRICA

DESIGN

168

proporem poeacuteticas baseadas nessas concepccedilotildees Na busca por explicar essa relaccedilatildeo entre

metodologia cientiacutefica e poeacutetica Eco sugere que ldquotoda forma artiacutestica pode ser encarada

[]comometaacuteforaepistemoloacutegicardquo(eco 1988 p 54) Itaacutelico nosso Assim segundo ele

em cada eacutepoca a arte incorpora por meio de metaacuteforas o modo pelo qual tanto a ciecircncia

quanto a cultura moldam as concepccedilotildees da realidade Em seguida Eco corrobora sua

hipoacutetese com exemplos posteriores agrave Idade Meacutedia ateacute o seacuteculo passado correlacionando

de modo plausiacutevel as poeacuteticas de alguns periacuteodos com as tendecircncias da ciecircncia

Natildeo eacute imprescindiacutevel concordarmos com o caraacuteter de necessidade da proposta de

Eco (explicitado com o adjetivo ldquotodardquo da citaccedilatildeo anterior) para admitirmos a plausibi-

lidade de sua concepccedilatildeo Nem tampouco eacute necessaacuterio aderirmos agrave sua visatildeo de que no

seacuteculo xx o conceito de complementaridade8 da mecacircnica quacircntica assume o posto de

ldquometaacutefora epistemoloacutegicardquo para diversos modelos adotados de poeacuteticas Eacute preciso cautela

com tal constructo evitando polarizar ou estreitar as possibilidades do universo artiacutestico

de uma eacutepoca em torno de programas cientiacuteficos No nosso entendimento o interesse

pela diversidade que eacute proacuteprio da arte conduz agrave incorporaccedilatildeo e exploraccedilatildeo de novas

descriccedilotildees da realidade propostas pela ciecircncia como ocorre tambeacutem de um modo geral

com a cultura Aleacutem disso mesmo admitindo a concepccedilatildeo de metaacutefora epistemoloacutegica

como capaz de influenciar pelo menos em parte os rumos da arte esse caminho que

parte da ciecircncia em direccedilatildeo agrave arte natildeo explica o segundo sentido da relaccedilatildeo que vai do

design ateacute agrave arte pois apesar de termos em conta a relevacircncia da objetividade no design

natildeo o entendemos como ciecircncia estrita Em outras palavras uma vez que chegamos no

capiacutetulo passado agraves transposiccedilotildees da antinomia kantiana para o campo do design natildeo

podemos simplesmente substituir naquela formulaccedilatildeo o conceito de ciecircncia pelo de design

E mesmo que isso fosse possiacutevel tal recurso natildeo abarcaria um dos componentes essenciais

de nossa proposta a saber seu vieacutes ontoloacutegico Mas essa caracteriacutestica pode ser resgatada

se retornarmos a um autor que natildeo abre matildeo da ontologia Assim deixemos essa parte

8 Sendo o princiacutepio de complementaridade da fiacutesica estabelecido a partir de descriccedilotildees experimentais de sistemas quacircnticos que se excluem mas descrevem aspectos complementares do fenocircmeno fiacutesico (como a dualidade entre onda e partiacutecula) Eco considera que na arte contemporacircnea de forma cor-relata as diversas possibilidades interpretativas se complementam e tambeacutem se excluem Jaacute em nossa proposta fundada na miacutemesis aristoteacutelica a complementaridade com o real eacute um caminho do meio e portanto natildeo excludente

169

da concepccedilatildeo de Eco que contribui indicando o caminho a natildeo se seguir e procuremos

em Danto a resposta a essa segunda parte constituinte da relaccedilatildeo A seguinte afirmaccedilatildeo

de Danto em um ensaio sobre Andy Warhol apresenta diversos elementos interligados

que podem subsidiar a construccedilatildeo deste sentido inverso da relaccedilatildeo

Tinha prometido dar alguma explicaccedilatildeo sobre como a exaltaccedilatildeo do ordinaacuterio ajudou a dar agrave arte uma consciecircncia de sua natureza filosoacutefica Os expressionistas abstratos certamente se assumiram como metafiacutesicos na pintura e acreditaram que a sua arte conectava-se com uma seacuterie de sentidos a que tinham acesso pelo inconsciente Eles usaram a linguagem da filosofia com rebuscamento e falaram com familiaridade sobre o Self o noumecircnico o Ding an sich O mundo ordinaacuterio como na grande tradiccedilatildeo vinda de Platatildeo era menosprezado como inferior como mero como alheio agrave realidade com a qual supunham-se em contato A relaccedilatildeo entre arte e realidade natildeo poderia ser constituiacuteda nas estruturas que eles tornaram possiacuteveis Soacute poderia ser quando se pudesse aceitar um objeto ordinaacuterio ie ver que alguma coisa poderia ser arte e ainda se parecer com um objeto ordinaacuterio da mesma forma que os objetos ordinaacuterios se parecem entre si Uma vez que isso foi possiacutevel ficou imediatamente claro que a arte natildeo era o que a teoria dos expressionistas abstratos havia promulgado e natildeo poderia ser filosoficamente concebida enquanto estivesse naquela forma O entendimento filosoacutefico comeccedila quando se percebe que nenhuma propriedade visiacutevel distingue a realidade da arte em geral E isso foi algo que finalmente Warhol demonstrou (danto 2001 p 112)

Na citaccedilatildeo anterior o primeiro ponto significativo para a nossa posiccedilatildeo eacute a contra-

posiccedilatildeo que Danto faz entre a atitude dos expressionistas abstratos e a atitude de Warhol

Danto identifica os primeiros com a mesma postura advinda de Platatildeo de criacutetica ao mundo

sensiacutevel ldquomundo ordinaacuteriordquo nas palavras de Danto Subjacente agrave posiccedilatildeo dos expressio-

nistas abstratos eacute que se para Platatildeo a arte enquanto imitaccedilatildeo busca seus objetos no

mundo sensiacutevel e isso como vimos no capiacutetulo 2 eacute condenado por esse filoacutesofo deve-se

afastaacute-la do mundo sensiacutevel buscando no mundo inteligiacutevel a verdadeira realidade Natildeo

sem razatildeo Danto os rotula ldquometafiacutesicos da pinturardquo

Ao unir Platatildeo ao Expressionismo Abstrato contrapondo-os agrave Pop-Art na figura de

Warhol Danto ao mesmo tempo favorece trecircs pontos em nossa posiccedilatildeo

1 Confirma a nossa escolha por Warhol uma vez que este artista conscientemente ou natildeo

faz parte dos que criticam a posiccedilatildeo platocircnica e a tradiccedilatildeo que a segue tradiccedilatildeo essa

que concebe a realidade de modo hierarquizado onde o sensiacutevel natildeo tem relevacircncia

170

2 Concomitante ao primeiro ponto se o sensiacutevel tem relevacircncia na constituiccedilatildeo da

realidade significa que o ordinaacuterio passa a ter seu status ontoloacutegico reconhecido

3 Possibilita a associaccedilatildeo dos ldquoobjetos ordinaacuteriosrdquo com os objetos de design

Analisando a lista anterior em relaccedilatildeo ao primeiro item e agrave duacutevida sobre Warhol

estar consciente do que faz enquanto artista Danto natildeo acredita na sua ingenuidade

mas cita diversos personagens da cena nova-iorquina das deacutecadas de 1960 e 1970 que

pensam assim Entre eles o escritor Thom Jones potildee nas palavras de um narrador de suas

histoacuterias a seguinte afirmaccedilatildeo

Ele [Andy Warhol] mdash o que ele tinha era como uma grande antena de raacutedio Funcionava em todas as vibraccedilotildees coacutesmicas Ele apenas fazia as coisas acho que natildeo sabia a metade delas Ele era um desses idiotas engenhosos penso Suas pinturas satildeo muito vagas Vick Natildeo consigo fazer uma leitura delas (jones Thom ldquoThe pugilist at restrdquo 1993 apud danto 2004 p 99)

A descriccedilatildeo de Jones contraacuteria agrave compreensatildeo de Danto carrega um tom criacutetico ao subs-

titiuir a consciecircncia pela inspiraccedilatildeo na caracterizaccedilatildeo de Warhol comparando-o com ldquouma

grande antena de raacutediordquo Subjacente a tal afirmaccedilatildeo encontra-se uma tradicional concepccedilatildeo

de arte enquanto atividade inspirada que vem pelo menos desde Platatildeo No diaacutelogo Iacuteon

(cf citaccedilatildeo de Ribeiro nota 5 p 151) Platatildeo afirma que o poeta e o rapsodo natildeo se guiam

por uma teacutekhne ou episteacuteme mas falam fora de si possuiacutedos pelo deus entusiasmados e

sem consciecircncia Natildeo obstante esse entendimento que Jones expressa sobre Warhol e seu

trabalho mantemos nossa posiccedilatildeo apoiados na interpretaccedilatildeo de Danto Como veremos

no proacuteximo capiacutetulo este artista tem mais a nos revelar em suas obras e afirmaccedilotildees

Quanto ao segundo ponto da lista a inclusatildeo e a defesa de Danto em favor de uma

ontologia do sensiacutevel explorando o trabalho de Warhol (e obviamente contrariando a

posiccedilatildeo platocircnica) coaduna com as concepccedilotildees em retrospecto de Bonsiepe Maldona-

do Cardoso Flusser e Aristoacuteteles Todos eles evidentemente com as particularidades

de seus interesses e objetos de estudo procuram preservar esse aspecto da realidade que

fundamenta a empiria e o pragmaacutetico de seus campos de atuaccedilatildeo

Por uacuteltimo eacute faacutecil de se identificar a equivalecircncia do terceiro ponto (entre objetos

ordinaacuterios e do design) quando pensamos que Warhol parte por exemplo de caixas de

sabatildeo e latas de sopa (figura 37) e as ldquotransfigurardquo em obras de arte Com essa implicaccedilatildeo

171

muacutetua completamos nosso movimento que sai do design e chega ateacute a arte constituindo

o inverso do caminho na seccedilatildeo anterior nessas relaccedilotildees

A figura 38 apresenta alguns dos exemplos analisados neste capiacutetulo e suas conexotildees

com a arte e o design No entanto apesar da configuraccedilatildeo simples e dos poucos elementos

que compotildeem o graacutefico devemos estar atentos para a complexidade da base conceitual que

subjaz aos trecircs objetos representados (o urinol a caixa de sabatildeo e o espremedor de frutas)

Figura 37 Fotografias da Brillo box (1964) e dos 32 quadros das latas de sopa Campbell (1962) criados por Andy Warhol fonte momaorg

Figura 38 Esquema dos dois sentidos de apropriaccedilatildeo da arte e do design fonte autor

ARTE

DESIGN

172

Do ponto de vista da aparecircncia ou do sensiacutevel natildeo eacute possiacutevel distinguir quais satildeo

obras de arte quais satildeo artefatos de design ou quais se encontram no meio do caminho

entre um campo e outro Assim como defendemos anteriormente apoiados em Danto

(2005) apesar das diferenccedilas ontoloacutegicas entre design e arte no acircmbito da experiecircncia

sensiacutevel cada vez mais torna-se difiacutecil identificar o que eacute arte e o que natildeo eacute

Existe uma circularidade na figura 38 em que a parte esquerda indica o caminho do

design ateacute a arte em que se transfiguram um urinol em A fonte e uma embalagem de sabatildeo

em poacute na Brillo Box Mas na parte direita no sentido inverso natildeo satildeo obras de arte que

se convertem em artefatos mas objetos do design que passam a incorporar caracteriacutesticas

ateacute entatildeo exclusivas do universo artiacutestico Em outras palavras se existe uma simetria nos

processos e conceitos que envolvem a passagem de um campo ao outro esta se daacute no

primeiro sentido com a arte se apropriando de objetos do design ao alterar seus significa-

dos e no segundo com o design se apropriando de conceitos da arte tambeacutem alterando os

significados de seus objetos

173

5 A PRODUCcedilAtildeO DE OBJETOS NO MUNDO SENSIacuteVEL

A partir das anaacutelises de obras de arte e objetos do design estabelecidas no capiacutetulo anterior

o caminho agora eacute de verticalizaccedilatildeo da investigaccedilatildeo na praacutexis do design e da arte man-

tendo a circunscriccedilatildeo nos nomes de Marcel Duchamp Andy Warhol e Philippe Starck

No entanto natildeo eacute nossa intenccedilatildeo proceder de forma catalograacutefica dada a existecircncia de

inuacutemeras pesquisas dessa natureza (em parte pela relevacircncia e celebridade conquistadas

pelos artistas e designer em foco) mas tambeacutem porque do ponto de vista da apresen-

taccedilatildeo de exemplos relacionados aos conceitos investigados entendemos que o capiacutetulo

anterior cumpre este papel sem procurar ser um registro empiacuterico de comprovaccedilatildeo pela

quantidade Diante dessa delimitaccedilatildeo inicial o objetivo neste capiacutetulo se concentra no

quarto e uacuteltimo item do meacutetodo (cf capiacutetulo 1 p 49) na ampliaccedilatildeo da identificaccedilatildeo dos

conceitos jaacute elaborados a partir das produccedilotildees de objetos do design e da arte tornando

mais evidentes suas estruturas

Esse procedimento acreditamos permite o aprofundamento na compreensatildeo das

trajetoacuterias e produccedilotildees desses dois campos e alguns dos consequentes desdobramentos

em suas relaccedilotildees uma vez que os trecircs nomes investigados contam com trabalhos (prin-

cipalmente Duchamp e Warhol) minimamente afastados no tempo para permitirem o

uso do criteacuterio histoacuterico dos ldquopontos focaisrdquo de Cassirer (1992) de modo mais objetivo

analiacutetico e distanciado Na medida em que os autores estudados atuam em suas aacutereas

de modo predominantemente pragmaacutetico o que normalmente se espera de artistas e

designers intensifica-se a necessidade de recorrermos a estudiosos contemporacircneos de

perfil teoacuterico especializados na pesquisa das obras e vidas desses trecircs profissionais para

suportar e corroborar nossos argumentos

Para a anaacutelise de Marcel Duchamp e Andy Warhol retornamos a dois autores centrais

aos capiacutetulos anteriores Arthur Danto e Thierry de Duve Com relaccedilatildeo a Arthur Danto

desta vez procuramos apoio principalmente em dois de seus trabalhos especiacuteficos e recentes

mais ligados agraves atuaccedilotildees dos artistas do que propriamente agrave constituiccedilatildeo de sua complexa

teoria sobre a arte Assim exploramos o artigo O filoacutesofo como Andy Warhol de 2004 e

o livro Andy Warhol Arthur C Danto de 2012 em que o proacuteprio Danto afirma buscar

174

ldquoum texto de faacutecil leitura[1] em linguagem agradaacutevelrdquo (danto 2012 p 19) E com Tierry

de Duve retomamos um artigo sobre Duchamp de 2010 O que fazer da vanguarda Ou

o que resta do seacuteculo 19 na arte do seacuteculo 20 Para Philippe Starck nos baseamos nos livros

homocircnimos Philippe Starck da historiadora do design Judith Carmel-Arthur de 2000

e da jornalista e criacutetica de arte Cristina Morozzi de 2012 assim como em um capiacutetulo do

livro organizado pela curadora de design Valeacuterie Guillaume Scritti Su Starck de 2004

escrito pelo filoacutesofo Michel Onfray Nossa abordagem em diaacutelogo com esses pesquisa-

dores constitui a base preferencial para as duas seccedilotildees deste capiacutetulo

Assumir autores de perfil teoacuterico como nossos interlocutores principais possibili-

tando a mediaccedilatildeo com Duchamp Warhol e Starck natildeo significa deixar de atentar para

as declaraccedilotildees dos dois artistas e do designer acerca de seus trabalhos Fazemos incursotildees

em textos relatos e afirmaccedilotildees de Warhol e Starck Como veremos entre as criaccedilotildees e suas

narrativas e discursos especialmente no caso de Philippe Starck podem ser identificadas

divergecircncias conceituais o que natildeo deve causar surpresa por tratar-se de um profissional

acentuadamente inclinado para o acircmbito criativo e projetivo e natildeo teoreacutetico Em certo

sentido essas afirmaccedilotildees trazem a tona algumas das caracteriacutesticas dos discursos de ma-

nifestos que permeiam a histoacuteria da arte e do design

Os manifestos em design a comeccedilar pelo nome assumido pelos designers que os

propotildeem ainda hoje guardam semelhanccedila estrutural com os manifestos em arte e se dis-

tanciam do modelo de persuasatildeo estabelecido de um modo geral pelas ciecircncias Como

sabemos as ciecircncias mesmo quando propotildeem alteraccedilotildees radicais em suas teorias publi-

cam seus enunciados de mudanccedilas preferencialmente na forma de artigos e livros Se

pensarmos do ponto de vista epistemoloacutegico por exemplo como assevera Popper (1993)

poderiacuteamos dizer grosso modo que os cientistas buscam incessantemente questionar e

falsear suas teorias Se nos apoiarmos diversamente em Kuhn (1962) admitiremos que

1 Nesta obra Danto alerta-nos que natildeo se deteraacute nos aspectos ontoloacutegicos de constituiccedilatildeo de uma teoria voltando-se mais para o artista Warhol e sua obra ldquoNatildeo vou me aprofundar aqui no que os filoacutesofos denominam ontologia da obra de arte mdash o que eacute uma obra de arte mdash quais as condiccedilotildees necessaacuterias para que um objeto seja uma obra de arte A esse respeito peccedilo ao leitor que procure meus estudos sobre filosofia da arte Em contraposiccedilatildeo os vaacuterios desafios de Andy agraves definiccedilotildees dos filoacutesofos e outros pensadores sobre a arte satildeo insignificantes se comparadas agraves caixas de super-mercadordquo (danto 2012 p 94)

175

subjacente agrave cada teoria existe uma ldquocrenccedilardquo no paradigma que a fundamenta e que parte

da comunidade cientiacutefica soacute comeccedila a questionaacute-lo quando surgem problemas profundos

e resistentes ateacute a soluccedilotildees ad hoc nessa teoria

Pode-se aderir agraves descriccedilotildees antagocircnicas de Popper ou Kuhn ou de outros epistemoacutelo-

gos contemporacircneos acerca de como e quando os cientistas questionam radicalmente suas

proacuteprias teorias e regras dispostos a abandonaacute-las por novas concepccedilotildees Diversamente disso

por tudo o que investigamos ateacute este momento sabemos que permanece uma distacircncia entre

o modelo de questionamento assumido por cientistas mas natildeo plenamente implementado

por designers e claramente avesso ao tipo de questionamento que propotildeem os artistas Com

esses elementos em consideraccedilatildeo entendemos ser imprescindiacutevel examinar os ldquopontos focaisrdquo

representados por Duchamp Warhol e Starck e suas obras tendo em conta suas posiccedilotildees

e afirmaccedilotildees mas tambeacutem o crivo da anaacutelise dos estudiosos que os investigam

51 ldquoPontos focaisrdquo na arte Andy Warhol e Marcel Duchamp

O tiacutetulo desta seccedilatildeo inicia-se deliberadamente com uma inversatildeo cronoloacutegica ao colocar

Andy Warhol que atua intensamente nos anos de 1960 e 1970 precedendo a Marcel

Duchamp que estabelece um fulcro na arte institucionalizada ainda no final da segunda

deacutecada do seacuteculo xx Subjacente a essa transgressatildeo histoacuterica encontra-se nosso interesse

(e de certo modo tambeacutem de Arthur Danto por motivos completamente distintos do

nosso) em destacar a relevacircncia de Warhol para a contemporaneidade da arte e da cultura

de um modo exclusivo em relaccedilatildeo agrave proposta radical e originaacuteria de Duchamp

Danto defende sua posiccedilatildeo em diversos momentos e obras Sua convicccedilatildeo parece em

parte ser reforccedilada por uma compreensatildeo diversa daquela de seus colegas criacuteticos de que

Warhol natildeo tinha exatamente consciecircncia do que ele mesmo propunha como arte O proacute-

prio Danto se questiona a princiacutepio sobre a relevacircncia da Pop-Art e de seus seguidores

Eu havia me mudado para Nova York apoacutes a guerra motivado por um imenso entusiasmo pela arte da Escola de Nova York na qual esperava fazer carreira como artista Eu era veterano de guerra e possuiacutea uma bagagem educacional que decidira aplicar ao estudo da filosofia Embora tivesse feito algum sucesso

176

como artista a filosofia acabou se revelando mais interessante para mim No princiacutepio de 1960 eu era professor da Universidade Coluacutembia e estava em gozo de um periacuteodo sabaacutetico na Europa onde pretendia escrever meu primeiro livro Foi na Biblioteca Americana de Paris que vi pela primeira vez um trabalho da arte pop uma reproduccedilatildeo em preto e branco publicada na revista artnews Seu tiacutetulo era O beijo de Roy Lichtenstein [figura 39] e parecia ter sido recortada da seccedilatildeo de quadrinhos de um jornal americano Basta dizer que fiquei pasmo Eu tinha certeza de que aquilo natildeo era arte mas no decorrer de minha temporada em Paris fui aos poucos elaborando a ideia de que se aquilo era arte qualquer coisa podia ser arte Tomei entatildeo a decisatildeo de ver tudo o que pudesse da arte pop quando voltasse aos Estados Unidos (danto 2012 p 11-12)

Essa perplexidade e incompreensatildeo inicial de Danto e a sua consequente recusa da

Pop-Art daacute lugar a uma visatildeo diversa em relaccedilatildeo aos seus colegas criacuteticos da eacutepoca

Eu fico frequumlentemente impressionado com a ironia de que algueacutem tatildeo inveros-siacutemil como Warhol que parecia tatildeo pouco dotado de dons e poderes intelectuais no mundo das artes tatildeo ldquomaneirordquo tatildeo ligado na baixa cultura mdash kitsch mdash pudesse ter introduzido intuiccedilotildees filosoacuteficas tatildeo aleacutem daqueles seus pares que liam Kant ou que arrotavam existencialismo citavam Kierkegaard e usavam o vocabulaacuterio mais complicado e erudito Quando eu em um ensaio que publiquei na eacutepoca da sua exposiccedilatildeo retrospectiva poacutestuma no Museu de Arte Moderna

mdash MoMA reivindiquei que ele era o mais proacuteximo de um gecircnio filosoacutefico que a arte do seacuteculo vinte havia concebido fui abordado com pouca aceitaccedilatildeo pela grande maioria dos meus amigos que o considerava num patamar intelectual muito abaixo (danto 2004 p 113)

Figura 39 Reproduccedilatildeo da pintura O beijo (1961) de Roy Lichtenstein fonte image duplicatorcom

177

Danto prossegue com sua anaacutelise procurando encontrar os elementos subjacentes agrave

icocircnica imagem de Warhol imagem essa que o proacuteprio artista ajudou a cunhar naquela

eacutepoca com suas atitudes e afirmaccedilotildees aparentemente banais E como em outras anaacutelises

do filoacutesofo a Brillo Box eacute seu exemplo preferido

Uma fotografia de Warhol entre suas caixas [figura 40] parece indistinguiacutevel de uma fotografia de um funcionaacuterio entre as caixas do supermercado Com que licenccedila podemos supor que podemos diferenciar uma obra de arte de um objeto meramente utilitaacuterio Um eacute feito de compensado e o outro de caixa de papelatildeo mas pode a diferenccedila entre arte e realidade residir numa diferenccedila que

ldquopoderia ser de outro modordquo (danto 2004 p 105-106)

Na citaccedilatildeo anterior a propoacutesito de expor a forma trivial como a arte de Warhol era

divulgada pelo proacuteprio artista Danto retoma um dos pontos que perpassa sua concepccedilatildeo

Figura 40 Fotografia da instalaccedilatildeo Warhol (1964) Stable Gallery Nova York fonte revista ars

178

ao longo de sua carreira como filoacutesofo da arte O cerne encontra-se na mesma pergunta

que jaacute vimos Danto expressar com outras palavras como diferenciar uma obra de arte de

um objeto utilitaacuterio E obviamente como filoacutesofo Danto faz o exerciacutecio de sua reflexatildeo

conectar-se com a origem ocidental desse problema

A indagaccedilatildeo sobre a definiccedilatildeo de arte fazia parte da filosofia desde o tempo de Platatildeo Mas Andy nos obrigou a repensar a questatildeo de modo inteiramente novo O novo formato da antiga questatildeo era a seguinte dados dois objetos de aparecircncia exatamente igual como eacute possiacutevel que um deles seja uma obra de arte e o outro apenas um objeto comum (danto 2012 p 92)

Acrescentando um elemento a mais agrave jaacute complexa questatildeo da diferenciaccedilatildeo Danto

lembra-nos que o projeto graacutefico das caixas de sabatildeo Brillo vendidas em supermercados

foi realizado por James Harvey que coincidentemente tambeacutem era pintor do Expres-

sionismo Abstrato estilo ao qual (como vimos no capiacutetulo anterior) a Pop-Art se opunha

frontalmente E como afirma Danto Harvey na condiccedilatildeo de autor do ldquoprojeto graacuteficordquo

da caixa de sabatildeo natildeo admitiria que esse seu trabalho de ldquoarte comercialrdquo mdash diriacuteamos

de design graacutefico mdash pudesse ser entendido como arte principalmente sendo ele um ex-

pressionista abstrato e obviamente recusando a licenciosidade da Pop-Art Nas palavras

de Danto

Harvey ficou espantado quando viu durante a inauguraccedilatildeo da exposiccedilatildeo das caixas de supermercado de Andy que a Stable Gallery estava vendendo por centenas de doacutelares as caixas que ele tinha projetado enquanto as dele natildeo valiam nada Mas Harvey com certeza natildeo julgava que suas caixas fossem arte Elas eram reconhecidamente arte comercial e como tais excelentes Deve ser possiacutevel explicar por que todo mundo se lembra da caixa de Brillo mas natildeo por exemplo das caixas de suco de maccedilatilde da Mott Natildeo cabe a Warhol o meacuterito pela genialidade do projeto graacutefico da Brillo Box o meacuterito eacute todo de Harvey mas cabe a Warhol o creacutedito por transformar em arte o que natildeo passava de um objeto absolutamente corriqueiro da vida cotidiana Foi ele quem transformou em escultura o que ningueacutem considerava arte E repetiu o feito com caixas de design ainda mais anoacutedinos que a embalagem de Brillo como a caixa de cereais Kelloggrsquos Cada uma das oito variedades de caixas era uma escultura e natildeo apenas a Brillo Box (danto 2012 p 92-93)

Esta citaccedilatildeo eacute de importacircncia capital por permitir compreender e articular alguns

dos elementos e circunstacircncias histoacutericas ligadas a criaccedilatildeo artiacutestica de Warhol e como elas

179

relacionam design e arte Danto eacute expliacutecito quanto a identificar que o artista Warhol eacute

o responsaacutevel por ldquotransformarrdquo um objeto do uso cotidiano em obra de arte escultural

a partir de um projeto graacutefico especiacutefico de outro artista que neste caso atua como de-

signer De nossa parte entendemos essa transformaccedilatildeo (ou transfiguraccedilatildeo como Danto

tambeacutem aprecia) operada pelo artista como um giro na significaccedilatildeo de um objeto e suas

caracteriacutesticas ontoloacutegicas E nisso se encontra a dupla relevacircncia de Warhol para a tese

1ordm A ocorrecircncia do giro ontoloacutegico fundamental para a nossa hipoacutetese se confirma na

accedilatildeo do artista

2ordm Essa confirmaccedilatildeo eacute explicitada em um objeto em que estaacute contida originalmente a

configuraccedilatildeo e a estrutura do design e se transforma em obra de arte

Warhol corrobora nossos argumentos ao narrar suas memoacuterias de maneira pessoal

e desprendida no livro Popismo (2013) no periacuteodo em que mdash enquanto trabalha com

ldquoarte comercialrdquomdash desperta para o mundo da arte

A pessoa que me formou como artista foi Emile de Antonio mdash quando conheci De eu era um artista comercial Nos anos 60 De ficou famoso por seus filmes sobre Nixon e McCarthy mas nos anos 50 ele havia sido agente de artistas plaacutes-ticos Fazia a ligaccedilatildeo de artistas com tudo desde cinemas de bairro ateacute lojas de departamentos e grandes corporaccedilotildees Mas soacute trabalhava com amigos se De natildeo gostasse de vocecirc natildeo se dava ao trabalho

De foi a primeira pessoa que conheci a ver a arte comercial como arte de verdade e a arte de verdade como arte comercial e ele fez todo o mundo artiacutestico de Nova York ver as coisas desse jeito tambeacutem (warhol hackett 2013 p 12)

Independentemente de Warhol creditar a Emile de Antonio a origem da compreensatildeo

de uma circularidade entre ldquoarte comercialrdquo e ldquoarte de verdaderdquo o que importa eacute a proacutepria

circularidade em si que permite a apropriaccedilatildeo de um acircmbito da realidade por outro

Diante disso eacute preciso retomar um ponto jaacute delimitado no capiacutetulo anterior (cf

p 169 - 171) derivado da contraposiccedilatildeo que propusemos entre PlatatildeoExpressionismo

Abstrato de um lado e WarholPop-Art de outro Procurando oferecer a exata dimensatildeo

da questatildeo haviacuteamos apresentado uma lista em trecircs itens indicando como a Pop-Art se

distingue e se afasta do Expressionismo Abstrato fundamentando-se na valorizaccedilatildeo do

180

mundo sensiacutevel e seus objetos ldquoordinaacuteriosrdquo Para os nossos interesses presentes vamos

nos ater aos dois uacuteltimos itens da lista (2) com a relevacircncia do sensiacutevel na constituiccedilatildeo

da realidade o ordinaacuterio passa a ter seu status ontoloacutegico reconhecido (3) a associaccedilatildeo dos

ldquoobjetos ordinaacuteriosrdquo com os objetos de design

Mas atentemos o ordinaacuterio no trabalho de Warhol natildeo se resume apenas agrave consti-

tuiccedilatildeo da imagem de suas obras O processo de produccedilatildeo tambeacutem tem sua significaccedilatildeo

Por um lado a caixa e outras obras de arte criadas por ele e montadas em seacuterie em seu

ateliecirc em uma linha de produccedilatildeo mdash natildeo sem razatildeo nomeado Factory (como conta um

de seus assistentes Gerard Malanga2) mdash mimetizam o processo da mecanizaccedilatildeo de uma

faacutebrica Por outro esse processo natildeo eacute simplesmente coacutepia de uma faacutebrica pois eacute execu-

tado manualmente por ele e seus assistentes com o cuidado e a atenccedilatildeo que suas obras

exigem Conforme Danto

Eacute como se a realidade natildeo fosse mecacircnica o suficiente para se acomodar a ima-ginaccedilatildeo de Warhol Eacute importante notar ainda que o trabalho era tatildeo central em sua concepccedilatildeo da arte que a ideia de usar como arte algo que natildeo resultasse do trabalho natildeo teria interesse nenhum para ele (danto 2012 p 77-78)

Tal imersatildeo no cotidiano da vida mescla de um lado elementos de projeto e produccedilatildeo

de objetos utilitaacuterios e de consumo como ocorre no design e de outro a criaccedilatildeo no fazer

artiacutestico Como resultado um dos seus sentidos eacute o escultural

Quando pensamos em escultura lembramos de Michelangelo Canova Rodin Brancusi ou Noguchi que criaram objetos uacutenicos de beleza e significado Antes de Warhol jamais ocorreria a algueacutem criar como escultura uma coisa semelhante a uma caixa de papelatildeo para transporte de mercadorias de consumo Warhol natildeo soacute fez exatamente isso como usou um processo que de certo modo parodiava a produccedilatildeo em massa (danto 2012 p 76)

2 Conforme Danto ldquoMalanga eacute nossa fonte principal sobre a confecccedilatildeo dessas caixas e sobre a ideia de Andy de organizar a Factory segundo linhas industriais um paradoxo porque as pessoas que participa-vam da Factory eram tudo menos robocircs lsquoAndy estava fascinado pelas prateleiras dos supermercados e pelo efeito repetitivo maquinal que criavam [hellip] Ele queria reproduzir esse efeito mas logo descobriu que a superfiacutecie de papelatildeo era impraticaacutevelrsquo Como o efeito em questatildeo eacute geralmente obtido pelo empilhamento de caixas de papelatildeo em armazeacutens e depoacutesitos eacute difiacutecil entender o que havia de errado com o papelatildeo que Warhol podia ter usado com muito menos esforccedilo simplesmente comprando as embalagens dos fabricantes e tratando-as como ready-madesrdquo (danto 2012 p 77-78)

181

Se retomarmos a fotografia de Warhol junto com as pilhas de caixas (cf figura 40

p 177) veremos como a ambiguidade do papel do artista combina com essa ldquoparoacutedia da

produccedilatildeordquo E a decisatildeo de investir um objeto de novos significados transfigurando-o de

artefato ou utensiacutelio em obra de arte recai assim sobre a responsabilidade do artista A

visatildeo de Danto se harmoniza com o que afirmamos ao final do capiacutetulo anterior (p 171-

172 sintetizada na circularidade da parte esquerda da figura 38) em que a arte se apropria

de objetos do design ao alterar seus significados

Um exemplo adicional no gecircnero da pintura mas com as mesmas caracteriacutesticas

da caixa de sabatildeo eacute o das latas de sopa Campbell que possui segundo Danto relatos

diferentes acerca de sua origem Entre aquelas que circulavam em Nova York a narrativa

da preferecircncia de Danto eacute a de que Warhol solicitou uma ideia agrave designer de interiores

Muriel Latow

Warhol disse a Latow que precisava de uma ideia ldquode grande impacto diferente de Lichtenstein e Rosenquist algo bem pessoal que natildeo pareccedila que estou fa-zendo exatamente o que eles fazemrdquo Latow respondeu-lhe que ele devia pintar alguma coisa que ldquotodo mundo vecirc todos os dias que todo mundo reconhecehellip como uma lata de sopardquo A proacutepria maneira como Warhol formulou a pergunta jaacute eliminava muitas possibilidades Ele natildeo estava interessado em pintar uma abstraccedilatildeo bonitinha e agradaacutevel ou Manhattan ao luar ou uma mulher bonita lendo uma carta perto da janela Tinha de ser algo ligado agrave cultura comum que ainda natildeo tivesse sido trabalhado por ningueacutem Algo que as pessoas comentas-sem mesmo sem ter visto (danto 2012 p 58)

Esse tipo de comportamento em relaccedilatildeo agraves ideias dos outros descrito por Danto na

citaccedilatildeo anterior eacute confirmado por Warhol em seu livro Popismo

ldquoNunca tive a menor vergonha de perguntar a algueacutem literalmente lsquoO que devo pintarrsquo porque o Pop vem de fora e que diferenccedila existe entre pedir ideacuteias a algueacutem ou procurar numa revista Henry [Henry Geldzahler curador do Me-tropolitan Museum of Art] entendeu isso mas algumas pessoas o desprezam se vocecirc pede conselho a elas natildeo querem saber nada sobre como vocecirc trabalha querem que vocecirc conserve a sua miacutestica para elas poderem te adorar sem fica-rem envergonhadas com as especificidadesrdquo (warhol hacket 2013 p 27)

Ao lado dessa atitude que pode como o proacuteprio Warhol diz incitar criacuteticas Danto

reforccedila aquela caracteriacutestica jaacute apresentada do trabalho de Warhol que desloca a atenccedilatildeo

182

do artista com uma ideia originaacuteria ponto de partida para uma obra de arte e vai ao

encontro das escolhas envolvendo os processos de criaccedilatildeo e diferentes gecircneros de arte

como as instalaccedilotildees compreendendo-os como centrais na produccedilatildeo artiacutestica Se Warhol

opta por natildeo necessariamente ser o autor da ideia ele natildeo simplesmente a executa como

um operaacuterio em uma linha de produccedilatildeo

Uma coisa eacute dizer ao artista que ele devia pintar latas de sopa outra eacute decidir como pintaacute-las A decisatildeo de Warhol envolveu mais que a mera pintura de uma lata de sopa Ele construiu um painel com trinta e duas telas (508 x 406 cm cada) organizadas em quatro fileiras de oito cada tela representando uma das variedades das sopas Campbell produzidas naquela eacutepoca mdash como uma insta-laccedilatildeo de retratos de pessoas notaacuteveis (danto 2012 p 58-59)

Tendo em consideraccedilatildeo a reconstituiccedilatildeo de alguns elementos das narrativas sobre o

processo de criaccedilatildeo de Warhol podemos assumir que Danto defende e destaca a relevacircncia

desse artista de um modo equivalente ao que entendemos como um ldquoponto focalrdquo na

histoacuteria da arte E este jaacute explicitamos anteriormente eacute um dos elementos que atua como

um dos noacutes na tese atando design e arte

Em termos ainda mais incisivos pode-se dizer que seria impossiacutevel que as caixas de Warhol fossem arte muito antes de 1964 O grande historiador da arte Heinrich Wolfflin disse que nem tudo eacute possiacutevel em todas as eacutepocas A histoacuteria da arte sempre estaacute aberta a novas possibilidades mas natildeo teria aberto a possibilidade de um objeto como uma caixa de Brillo ser arte digamos em 1874 quando a pintura impressionista era a vanguarda (danto 2012 p 91)

Mas Danto tambeacutem natildeo ignora a importacircncia histoacuterica de Duchamp Ele tem ple-

na consciecircncia de que ldquoa precedecircncia de Marcel Duchamp projeta uma certa sombra

sobre todos os subsequumlentes esforccedilos de delimitar as fronteiras da arterdquo (danto 2004

p 107) Assim ele argumenta sobre a clivagem distinta da proposta de Warhol para a

arte em relaccedilatildeo ao que aparentemente jaacute havia sido realizado em 1917 por Duchamp

com A fonte

De forma radical Danto afirma que (em princiacutepio) a indistinccedilatildeo entre obras de arte

e coisas reais decreta o que ele nomeia de ldquoO fim da Arterdquo (danto 2012 p 95) ou em

outras palavras o fim de uma histoacuteria acerca dos movimentos artiacutesticos Natildeo eacute nosso

183

propoacutesito analisar a concepccedilatildeo de Danto acerca do fim3 da arte tema que implica diversos

conceitos fora do escopo desta tese No entanto a expressatildeo fim da arte por si soacute denota

o grau de relevacircncia que este filoacutesofo atribui a Warhol natildeo somente dentro do fenocircmeno

da Pop-Art mas na histoacuteria da arte como um todo

Alguns criacuteticos me perguntam por que acho que Warhol pocircs fim agrave histoacuteria da arte da maneira como a entendiacuteamos antes mdash por que natildeo Duchamp com seus ready-mades Ora a verdade eacute que Andy fazia suas caixas enquanto Duchamp de maneira geral natildeo podia fazer seus ready-mades Soacute que nem todo objeto pode ser um ready-made jaacute que Duchamp os restringia a objetos indistinguiacuteveis do ponto de vista esteacutetico Mas por que fazer essa restriccedilatildeo a natildeo ser que se tenha uma persistente aversatildeo agrave arte retiniana (danto 2012 p 95)

Na concepccedilatildeo de Danto o que subjaz agrave posiccedilatildeo duchampiana eacute que ele criticava o

entendimento da esteacutetica claacutessica que valorizava o prazer visual ou o chamado sentido

ldquoretinianordquo ldquolsquoO deleite esteacutetico eacute o inimigo a ser derrotadorsquo mdash diz Duchamp com relaccedilatildeo

a esse gecircnero de trabalho pois os readymades segundo ele foram escolhidos precisamente

pela sua falta de interesse visualrdquo (danto 2004 p 107)

Enquanto Duchamp pode entre suas motivaccedilotildees usar ldquoo banal como um tipo de

bomba contra o conceito fortificado de arterdquo (danto 2004 p 108) e essa eacute uma atitude

natildeo soacute de Duchamp mas do movimento ao qual ele pertencia o Dadaiacutesmo Warhol

de modo distinto compreende o banal e o corriqueiro como algo que pode e deve ser

incorporado agrave arte Aleacutem disso segundo Danto Warhol com sua proposta coloca uma

pergunta de caraacuteter filosoacutefico mdash ultrapassando Duchamp que natildeo perguntou ldquopor que

todos os outros urinoacuteis natildeo eram obras de arterdquomdash ldquopor que a Brillo Box era uma obra

de arte enquanto as caixas de Brillo comuns eram meras caixas de Brillordquo (danto

2004 p 108)

Outra posiccedilatildeo que acrescenta mais elementos para a questatildeo e reforccedila os ldquopontos

focaisrdquo em Duchamp e Warhol eacute a de Tierry de Duve Em uma palestra que posterior-

mente foi publicada na forma de artigo de Duve primeiramente considera que somente

3 Danto natildeo eacute o primeiro teoacuterico a propor e tratar do tema do fim da arte Como vimos no capiacutetulo 1 (cf p 38) ele eacute precedido por filoacutesofos como Hegel Marx Nietzsche Lukacs Benjamin Heidegger Horkheimer e Adorno Para uma anaacutelise detalhada do tema ver Rodrigo Duarte (2006)

184

na deacutecada de 1960 a ldquomensagemrdquo de Duchamp foi assimilada o que em certo sentido

destaca o papel visionaacuterio deste artista

O mundo da arte natildeo acusou verdadeiramente a recepccedilatildeo da mensagem de Du-champ antes dos anos 60 quando nos rastros do neodadaacute (pop arte aliaacutes) da minimal art e da arte conceitual comeccedilou a definir-se de modo mais ou menos consciente como poacutes-duchampiano (de duve 2010 p 192)

No entanto se Duchamp foi o mensageiro para de Duve isso natildeo significa que ele

tenha sido responsaacutevel pela mensagem

Alguns ateacute atribuem o feito unicamente a Marcel Duchamp sempre ele ao inventar o ready-made Duchamp teria criado um novo gecircnero artiacutestico e um novo personagem o artista simplesmente Essa opiniatildeo comete o erro de inter-pretaccedilatildeo claacutessico ao fazer do mensageiro o responsaacutevel pela mensagem que traz Minha palestra de hoje tem o objetivo de corrigir esse erro de interpretaccedilatildeo A arte em geral natildeo substitui os meios tradicionais como a pintura e a escultura natildeo se vem juntar aos gecircneros tradicionais como a paisagem ou o nu natildeo eacute um novo estilo que se possa reconhecer por algum traccedilo comum como os ldquoismosrdquo abundantes no seacuteculo 20 A pintura e a escultura a paisagem e o nu e todos os

ldquoismosrdquo do seacuteculo 20 fazem parte ao contraacuterio da arte em geral jaacute que ela nada exclui e inclui aleacutem disso as praacuteticas recentes mdash a instalaccedilatildeo a arte conceitual ou a videoarte assim como outras que ainda natildeo tecircm nome De fato o teor da expressatildeo eacute o seguinte fazer arte com tudo e com qualquer coisa eacute hoje tecni-camente possiacutevel e institucionalmente legiacutetimo [] (de duve 2010 p 182-183)

Em outro trecho de Duve eacute mais expliacutecito em sua afirmaccedilatildeo ldquoDuchamp eacute apenas

o mensageiro Seja para o incensar ou maldizer eacute um erro de interpretaccedilatildeo atribuir ao

mensageiro a responsabilidade pelo conteuacutedo da mensagemrdquo (de duve 2010 p 186)

Quer concordemos ou natildeo com de Duve acerca do papel e consciecircncia do mensageiro

o que importa destacar no interior da posiccedilatildeo deduviana eacute o entendimento deste autor

de que a arte em geral ldquonada exclui e incluirdquo Tal compreensatildeo jaacute se encontra exposta

no capiacutetulo 3 quando vimos esse autor discordar das posiccedilotildees antagocircnicas de Clement

Greenberg e Joseph Kosuth (cf p 118-119) que se levadas ao extremo conduzem a uma

antinomia ou procurar uma continuidade na histoacuteria da arte entender o readymade

com uma fraude e rejeitar a antiarte e movimentos do Dadaiacutesmo em diante ou entender

a arte como conceitual depois do readymade e anular toda a arte anterior a Duchamp

185

Como vimos naquele momento de Duve de modo consistente recusa as duas posiccedilotildees

radicais e propotildee uma soluccedilatildeo mediadora baseada em Kant Danto de modo correlato

tambeacutem eacute partidaacuterio dessa inclusatildeo Ao final do livro A transfiguraccedilatildeo do lugar comum

eleapropoacutesitodaadmissatildeodaBrilloBoxnomundoarteafirmaldquoSuareivindicaccedilatildeo[ada

BrilloBox]pareceseraomesmotemporevolucionaacuteriaerisiacutevelelanatildeodesejasubvertera

sociedade das obras de arte mas ser admitida nela ocupando o mesmo lugar dos objetos

sublimesrdquo (danto 2005 p 296)

Atentos a esse espiacuterito de mediaccedilatildeo e inclusatildeo que atravessa as concepccedilotildees de Warhol

Danto Kant e de Duve do nosso ponto de vista tanto Duchamp quanto Warhol cum-

prem o giro ontoloacutegico com suas propostas independentemente da posiccedilatildeo que se assume

em relaccedilatildeo agrave quem tem mais relevacircncia se Duchamp ou Warhol

Quanto a aversatildeo agrave arte retiniana de Duchamp que natildeo procura mediaccedilatildeo e mostra-se

como uma das diferenccedilas entre o Dadaiacutesmo e a Pop-Art Danto acrescenta um comen-

taacuterio aos seus argumentos no tom leve que caracteriza seu livro Andy Warhol mas que

natildeo deixa de nos faz pensar sobre o sentido da vida cotidiana que Warhol e Duchamp

capturam cada um a seu modo atraveacutes dos objetos do mundo sensiacutevel (figura 41)

Uma coisa deve ser dita a respeito das Brillo Boxes elas satildeo muito bonitas Minha esposa e eu temos uma haacute anos e ainda nos maravilhamos com sua beleza Por que teriacuteamos de conviver com objetos esteticamente desinteressantes em vez de coisas tatildeo bonitas quanto a Brillo Box (danto 2012 p 95)

Figura 41 Fotografias de A fonte (1917) de Marcel Duchamp (esquerda) e da Brillo Box (1964) de Andy Warhol (direita) fontes tateorg e momaorg

186

Apesar das diferenccedilas conceituais entre os autores das anaacutelises desta seccedilatildeo acreditamos

que todos os envolvidos nas reflexotildees partilham da compreensatildeo de que na contempo-

raneidade a ampliaccedilatildeo dos domiacutenios da arte e do design leva cada um de noacutes a assumir

a responsabilidade de nossas escolhas quando decidimos sobre o que nos comove no

sentido de sermos movidos com a arte (cum-mouĕo) e tambeacutem com o design

A defesa que Danto faz da relevacircncia da Pop-Art e de Andy Warhol como ele mesmo

afirma encontra resistecircncia em outros criacuteticos americanos E Danto tambeacutem nos lembra

de mais uma interpretaccedilatildeo diametralmente oposta vinda da criacutetica europeia implicando

a Pop-Art com uma condenaccedilatildeo irocircnica agrave cultura e aos valores americanos

Estivesse ou natildeo correta a interpretaccedilatildeo dos europeus de que a arte pop conti-nha uma criacutetica da cultura dos Estados Unidos a verdade eacute que eles pelo menos perceberam que havia algo mais na nova arte do que nossos olhos americanos podiam ver De sua parte Andy ansiava por apresentar-se aos europeus como tudo menos um artista fuacutetil (danto 2012 p 9-10)

Contrabalanccedilando essas diversas posiccedilotildees criacuteticas a filoacutesofa Virginia Figueiredo

oferece sua contribuiccedilatildeo contextualizando a posiccedilatildeo de Danto

Natildeo tenho a menor ideacuteia se ele [Danto] concordaria com este epiacuteteto mas no meu modo de ver ele eacute ldquoO filoacutesofo da Pop-Artrdquo sintetizando-se aqui grossei-ramente sob o nome ldquoPop-Artrdquo a produccedilatildeo norte-americana de arte a partir do final dos anos 1950 e iniacutecio dos anos 1960) da qual talvez ele mais do que qualquer outro tentou extrair o aspecto criacutetico diminuindo a margem ambiva-lente a do elo inegaacutevel para muitos outros criacuteticos motivo de uma condenaccedilatildeo irreparaacutevel com o mercado e com a induacutestria cultural Sabe-se o quatildeo pequena foi a diferenccedila que a maioria dos criacuteticos viu entre o movimento da Pop-Art e a propaganda direta1⁶ Ainda no meu modo de ver Danto tenta pocircr a produccedilatildeo da arte contemporacircnea dos norte-americanos em sintonia com os movimentos da vanguarda europeacuteia do iniacutecio do seacuteculo xx Se natildeo em ldquosintoniardquo talvez em busca de um ldquolastrordquo ou de uma legitimaccedilatildeo histoacuterica visando agrave conquista de um lugar na histoacuteria mundial (internacional) daquela produccedilatildeo Tratava-se a meu ver portanto de um possiacutevel processo de ldquointernacionalizaccedilatildeordquo da arte norte-americana da chamada mudanccedila de referencial de Paris para Nova York Nada mais ldquopoliacuteticordquo portanto Natildeo eacute agrave toa que ele potildee em diaacutelogo de modo recorrente artistas como Andy Warhol e o francecircs Marcel Duchamp (1887-1968) (figueiredo 2005 p 449-450)

16 Cf mccarthy David Arte Pop Trad Otaciacutelio Nunes Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2002 p 35 [nota em peacute de paacutegina da autora]

187

Mas as palavras do proacuteprio Warhol natildeo negam a importacircncia que o mercado de con-

sumo tem para os norte-americanos e para ele O entendimento que Warhol tem acerca

do consumismo do qual ele natildeo vecirc problema em assumir se releva em obras como a da

figura 42 e em seu livro A filosofia de Andy Warhol de A a B e de volta a A

Comprar eacute muito mais americano que pensar e eu sou absolutamente ameri-cano Na Europa e no Oriente as pessoas gostam de comerciar mdash comprar e vender e vender e comprar satildeo basicamente mercadoras Americanos natildeo estatildeo interessados em vender mdash na verdade eles preferem jogar fora a vender O que eles realmente pensam eacute em comprar mdash pessoas dinheiro paiacuteses (warhol 2008 p 255)

Se a associaccedilatildeo da Pop-Art com o mercado induacutestria cultural e a propaganda direta

(e Warhol estaacute longe de negar tal viacutenculo) pode ser entendida como negativa por parte

da criacutetica artiacutestica por outro lado ela tambeacutem eacute indiacutecio de que a arte contemporacircnea

assume natildeo poder nem querer prescindir desses viacutenculos Esse eacute um dos pontos em co-

mum que a arte tem com diversos outros campos inclusive o design No entanto como

veremos na proacutexima seccedilatildeo consumo e consumismo satildeo caracteriacutesticas tatildeo generalizadas

e disseminadas na sociedade contemporacircnea que natildeo podem servir de paracircmetro para

as especificidades das relaccedilotildees de apenas dois campos

Figura 42 Reproduccedilatildeo do quadro 200 notas de um dolar (1962) de Andy warhol fonte sothebyscom

188

52 ldquoPonto focalrdquo no design Philippe Starck

No livro Philippe Starck da jornalista criacutetica e diretora de arte Cristina Morozzi o desig-

ner italiano Andrea Branzi abre a Apresentaccedilatildeo lembrando que Starck inicia sua carreira

ainda na deacutecada de 1970 ganhando destaque posteriormente nos anos 1980 a partir de

um trabalho para o governo de Franccedilois Mitterrand no palaacutecio Eacuteliseeacute

O presidente encarregou o jovem Starck de mobiliar o Palaacutecio do Eliseu sede do governo francecircs em Paris foi um sinal poderoso (que nenhuma outra naccedilatildeo europeacuteia tinha condiccedilotildees de acompanhar incluindo a Itaacutelia) de uma etapa na qual a cultura se tornava parte estrateacutegica de uma nova grandiosidade e cujos embaixadores no mundo eram os filoacutesofos os artistas os maestros e os jovens projetistas Philippe Starck representou o melhor natildeo soacute dessa nova e ambiciosa etapa mas tambeacutem da tradiccedilatildeo anterior formas ogivais cenografia ambiental invenccedilotildees ininterruptas de funccedilotildees novas e imprevisiacuteveis mdash um design que era simultaneamente antidesign teatro e decoraccedilatildeo urbana com arroubos de pura genialidade anunciando-se como Rei de Paris e ao mesmo tempo como Bobo da Corte (morozzi 2012 p 4)

A ambivalecircncia que caracteriza Starck retratada por Branzi entre o brilhantismo

de um ldquoReirdquo na criaccedilatildeo e a sua exposiccedilatildeo amplificada na miacutedia e no mercado como um

ldquoBobo da Corterdquo eacute algo que vende4 o conceito de designer como mais importante do que

o das empresas para as quais Starck trabalha E tal oposiccedilatildeo talvez sintetize o sentido

das palavras de Morozzi recorrendo a estudos na aacuterea da comunicaccedilatildeo para explicar a

celebridade associada agrave marca e ao nome Philippe Starck

Cristine Bauer docente da faculdade de Ciecircncia da Comunicaccedilatildeo na Universi-dade de Evry dedicou um ensaio a Le Cas Phlippe Starck ou de la Construction de la Notorieacuteteacute (Paris LrsquoHarmattan 2001) Durante um ano ela consultou os arquivos de Starck recolhendo definiccedilotildees que aparecem na foto ldquoUma lenda uma extraordinaacuteria combinaccedilatildeo de pop star e inventor maluco () astro do design francecircs que transforma tudo em design () o Picasso da deacutecada de 1990 () Philippe Starck estaacute para o design assim como uma mistura de Marcel Du-champ e Andy Warhol estaacute para a arterdquo (morozzi 2012 p 25)

4 No livro de Morozzi (2012) em detrimento da ideia de usuaacuterio os conceitos de consumo e consumidor satildeo recorrentes tanto no texto de Branzi quanto no da autora

189

De qualquer modo pelo tom das afirmaccedilotildees de Morozzi ela faz parte de um

grupo de pesquisadores que analisam o trabalho de Starck considerando que os

argumentos desse designer satildeo sempre coerentes Consequentemente ela natildeo toma

um distanciamento mais criacutetico como ocorre veremos com a historiadora do design

Judith Carmel-Arthur (2000) Morozzi afirma que ldquoNarrar paraacutebolas com palavras

e com objetos eacute a grande habilidade de Philippe Starckrdquo (morozzi 2012 p 32)

E mais a autora acredita que este designer eacute capaz de um ldquoencantamentordquo em seu

discurso

Se perguntam a Starck qual eacute o seu segredo ele responde ldquoA loquacidade Os filoacutesofos se calam por isso cabe ao designer explicar a vida e as coisasrdquo E com as palavras ele sabe encantar sempre encontrando bons argumentos Diz que seus projetos satildeo antes de tudo pretextos para contar histoacuterias e criar relacio-namentos como o Juicy Salif o espremedor da Alessi pouco eficiente como utensiacutelio mas oacutetimo para puxar uma conversa (morozzi 2012 p 25)

A ldquoloquacidaderdquo de Starck pode ser confirmada por ele mesmo quando conta acerca

do propoacutesito de seu espremedor de frutas

Philippe Starck em seu Starck Explications publicado pelo Centre Georges Pompidou por ocasiatildeo de sua mostra independente narra uma paraacutebola ldquoUm dia uma jovem recebe a sogra pela primeira vez Fica um pouco assustada e natildeo sabe o que falar Ganhara de presente o espremedor Juicy Salif A sogra pergunta lsquoMas o que eacute este objetorsquo A jovem fala de seu espremedor e a con-versa fica animada Estabelece-se um contato entre as duas mulheres que nem imaginavam que iriam se dar bemrdquo (morozzi 2012 p 32)

O tema repete-se em uma entrevista concedida agrave fotoacutegrafa e jornalista Marcelle Katz

onde ele conta sobre o seu processo de criaccedilatildeo

Certa vez em um restaurante eu tive essa visatildeo de um espremedor de limatildeo em forma de lula e comecei a projetaacute-lo e quatro anos depois ele ficou famosiacutessimo Mas para mim eacute mais uma micro-escultura simboacutelica que um objeto funcional Seu objetivo real natildeo eacute espremer milhares de limotildees mas permitir a um receacutem-casado entabular conversa com a sogra (carmel-arthur 2000 p 13)

Mas a quem a loquacidade de Starck se dirige As trecircs uacuteltimas citaccedilotildees trazem ele-

mentos comuns ao discurso de Starck que podem contribuir para entendermos estrateacutegias

190

impliacutecitas em suas narrativas aparentemente despretensiosas Primeiro a afirmaccedilatildeo do

proacuteprio designer de que um produto projetado por ele natildeo prioriza a funcionalidade

Partindo desse pressuposto expliacutecito resta a duacutevida se ele levou ou natildeo em 1990 tal pro-

posta de um projeto mais voltado a atributos natildeo funcionais agrave empresa que contratou seu

trabalho a italiana Alessi Em segundo como Branzi nos alerta Starck propotildee que ldquoa grife

do projetista eacute mais importante do que a marca da empresa que fabrica seus produtosrdquo

(morozzi 2012 p 4) Itaacutelico nosso Por exemplo a embalagem em que o espremedor eacute

vendido na atualidade tem o nome de Starck na parte superior da caixa junto agrave fotografia

do produto e a marca da empresa fabricante encontra-se na inferior Aleacutem disso uma foto

do designer eacute estampada como pano de fundo ocupando dois lados da caixa E entre os

escritos de marketing e publicidade inseridos na embalagem constam um slogan sobre

a empresa afirmando que a ldquoAlessi eacute um comerciante de felicidaderdquo e uma frase bem-hu-

morada sobre o produto ldquolsquoJuicy Salif rsquo poderia muito bem ser visto como um pequeno

alieniacutegena que passou a nos visitar em casardquo Traduccedilatildeo nossa (figura 43)

Poreacutem a despeito do discurso que orienta a divulgaccedilatildeo e venda do produto e do proacute-

prio conceito de ldquomicro-escultura simboacutelicardquo que Starck lhe atribui se nos dispusermos

Figura 43 Fotografia do espremedor de frutas da Alessi impressa na embalagem do produto fonte alessi

191

a usaacute-lo como um espremedor ele funciona com eficiecircncia5 Assim se por um lado ob-

temos a resposta para a pergunta sobre o alvo da loquacidade ser o consumidorusuaacuterio

por outro nova duacutevida se estabelece ateacute que ponto a funcionalidade natildeo eacute priorizada

Morozzi aponta para uma possiacutevel resposta que aparece entre parecircnteses

Sua grande qualidade eacute transformar o objeto banal em algo especial uacutenico a ponto de corresponder agraves expectativas inconscientes do consumidor E isso significa conferir agraves coisas normais natildeo apenas valores funcionais (no fundo a funcionalidade eacute dada como certa) mas dotaacute-las da capacidade de expressar mensagens poliacuteticas de amor de ternura impregnadas de humor (morozzi 2012 p 39)

Assim do nosso ponto de vista o que subjaz ao discurso de marketing da ldquoparaacutebolardquo

da sogra e da nora eacute o entendimento de que a funcionalidade jaacute se encontra estabeleci-

da e consequentemente pressuposta pelo designer e pelos clientes que demandam seus

projetos Starck enquanto designer sabe que a funcionalidade eacute essencial para que o seu

campo de trabalho preserve atributos como ergonomia e eficiecircncia entre outros o que

natildeo o impede de ampliar as possibilidades de significaccedilatildeo e ateacute de transfiguraccedilatildeo de seus

objetos criados Seus clientes querem vender mais em um mercado competitivo em que

os produtos tem atributos funcionais semelhantes

Atenta a esse aspecto Judith Carmel-Arthur afirma que Starck ldquoComo estrateacutegia de

marketing explora o culto agrave grife do objeto a fim de despojar os bens do significado fun-

cional primaacuterio transformando-os em artefatos de adoraccedilatildeo particular e inveja puacuteblica

simultaneamente imbui-os mais de fantasia que de fatordquo (carmel-arthur 2000 p 12)

De posse dessa interpretaccedilatildeo do artifiacutecio de Starck eacute necessaacuterio uma pausa para

cotejarmos sua proposta com outra que jaacute analisamos no capiacutetulo 2 e que seraacute frutiacutefera

5 Realizamos diversas praacuteticas informais de uso com turmas de Design na Universidade do Estado de Minas Gerais Apesar da difusatildeo da opiniatildeo inclusive entre possuidores desse artefato de que ele natildeo eacute um utensiacutelio bem projetado para sua tarefa e da inseguranccedila inicial que se sente com o apoio das matildeos em um tripeacute os estudantes se surpreendem com o seu funcionamento simples e eficiente ateacute para frutas maiores como laranjas E quanto agrave expectativa de quase todos diante da forma inusitada do espremedor de que ele natildeo conduziria o liacutequido para o recipiente de coleta comprova-se o con-traacuterio Outros atributos que os estudantes apontam satildeo a independecircncia em relaccedilatildeo agrave eletricidade e a facilidade de limpeza Entre as limitaccedilotildees identificadas o espremedor natildeo barra as sementes e natildeo permite recolher o suco em recipientes maiores que copos

192

para ampliar nossa compreensatildeo das significaccedilotildees incorporadas aos objetos de sua criaccedilatildeo

Trata-se de uma das concepccedilotildees de Rafael Cardoso Como vimos no entendimento de

Cardoso natildeo cabe ao designer atribuir ao objeto a funccedilatildeo (ou funccedilotildees que ele jaacute possui)

como no exemplo do reloacutegio e sua relogiosidade (cf p 109) e sim de enriquececirc-lo com

significados de outros niacuteveis Agrave primeira vista a concepccedilatildeo de Cardoso e a praacutetica de Starck

caminham juntas Ocorre no entanto que Starck conduz sua praacutexis em uma direccedilatildeo

diversa da proposta teoacuterica de Cardoso Como isso se daacute

Distintamente do que propotildee Cardoso Starck mitiga os sentidos funcionais originaacute-

rios dos seus projetos na sua forma e estrutura constitutiva e no discurso que ele profere

sobre os artefatos deles resultantes para os futuros consumidores e usuaacuterios Mesmo que

tais artefatos por necessidade dos fundamentos do design preservem implicitamente

sentidos e funccedilotildees subjacentes a ampliaccedilatildeo e destaque de outros significados deve se

impor e sobrepor agraves suas funccedilotildees Esta inteligente inversatildeo nos conceitos que pode ser

compreendida como parte de uma estrateacutegia de marketing e vendas tem no entanto

seus perigos

Um risco que se corre com a exaltaccedilatildeo excessiva dos sentidos e significados que vatildeo

aleacutem do que Cardoso chama de ldquobaacutesicosrdquo (cardoso 1998 p 33) eacute o que podemos de-

nominar de uma hipertrofia de caracteriacutesticas natildeo funcionais que no extremo inviabiliza

o uso de um artefato seja porque se desconhece suas funccedilotildees seja porque elas estatildeo

ocultas ou bastante dissimuladas ou porque natildeo existe interesse em utilizaacute-lo No caso

de um objeto que se adquire para uso pessoal este risco eacute menor uma vez que o usuaacuterio

normalmente o faz consciente do que compra No entanto quando um objeto eacute de uso

comunitaacuterio mesmo estando em uma residecircncia a probabilidade de um possiacutevel visitante

encontrar dificuldades em abrir (acionar) por exemplo uma torneira6 ou ligar uma sim-

ples lacircmpada tem se tornado maior e exige esforccedilos adicionais do designer para tornar

seu projeto e soluccedilotildees coesas e suas funccedilotildees identificaacuteveis

6 Eacute cada vez mais comum torneiras serem acionadas por sensores de movimento O conceito se bem elaborado e implementado tem inuacutemeras vantagens principalmente em aacutereas puacuteblicas como econo-mia no consumo de aacutegua e higienizaccedilatildeo Mas eacute fundamental que todos os usuaacuterios sejam capazes de identificar e saber usar os sistemas de acionamento Na praacutetica com a crescente ampliaccedilatildeo dos tipos de dispositivos produzidos e a falta de sinalizaccedilatildeo adequada abrir uma torneira tem cada vez mais se tornado uma tarefa de tentativa e erro um problema que natildeo pode ser ignorado pelos designers

193

Cabe ao designer saber dosar e equilibrar as caracteriacutesticas funcionais com as enri-

quecedoras para que uma espeacutecie natildeo encubra ou ateacute suprima a outra Neste sentido vale

lembrar a relevacircncia da concepccedilatildeo de Flusser de que o design enquanto uma ponte atua

na lacuna entre ciecircncia teacutecnica e arte tornando-se mais preponderante na atualidade

Um designer natildeo deve apenas projetar mas saber estabelecer a delicada proporccedilatildeo de cada

elemento constituinte de seu trabalho para ser bem-sucedido natildeo somente na criaccedilatildeo

mas tambeacutem na divulgaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo de seus produtos

Neste cenaacuterio 0utro exemplo que confirma nosso entendimento acerca das concep-

ccedilotildees de Starck que se encontram impliacutecitas agrave sua narrativa e que evidenciam o risco da

hipertrofia de caracteriacutesticas vem tambeacutem da Alessi quase uma deacutecada depois da criaccedilatildeo

do espremedor Trata-se de uma espaacutetula para bolo (figura 44) que Philippe Starck nomeia

lsquoCeci nrsquoest pas une truellersquo se inspirando em uma frase do quadro de Reneacute Magritte A

traiccedilatildeo das imagens de 1929 (figura 45) O instrumento disponiacutevel para compra no site

da Alessi vem com um aviso esclarecedor ldquoProduzido desde 1998 apesar de seu atraente

nomelsquoCecinrsquoestpasunetruellersquo[Estanatildeoeacuteumacolherdepedreiro]eacutetatildeosoacutelidoefaacutecil

de manusear quanto a espaacutetula de um pedreirordquo7 Traduccedilatildeo nossa

7 lt httpswwwalessicomit_itdesignersdalla-p-alla-sphilippe-starckpala-per-torta-ceci-n-es-t-pas-une-truelle-90078html gt

Figura 44 Fotografia da espaacutetula para bolo Ceci nrsquoest pas une truelle (1998) de Philippe Starck projetada para a Alessi fonte alessicom

194

Para compreender a associaccedilatildeo que Starck propotildee entre a obra de arte e sua espaacutetula eacute

preciso antes retomar a polecircmica que o quadro de Magritte provocou e que ainda hoje tem

ressonacircncias na arte filosofia e cultura Na base dessa polecircmica estaacute a frase que pertence

ao quadro e natildeo foi escrita mas pintada por Magritte ldquoCeci nrsquoest pas une piperdquo ldquoIsto

natildeo eacute um cachimbordquo e que eacute parafraseada por Starck ao nomear sua espaacutetula Novamente

recorremos agrave Virginia Figueiredo para uma siacutentese da questatildeo em relaccedilatildeo ao quadro de

Magritte A filoacutesofa divide sua anaacutelise e reflexatildeo em trecircs momentos interpretativos dos

quais para os nossos propoacutesitos fazemos uso apenas do primeiro

A perspectiva do primeiro momento leva a seacuterio o comentaacuterio (na verdade irocircnico) de Magritte e conclui com a obediecircncia do pintor natildeo soacute agrave concepccedilatildeo platocircnica da arte mas tambeacutem ao papel tradicional (de designaccedilatildeo ou repre-sentaccedilatildeo) das palavras Aqui ldquoplatonismordquo deveraacute ser entendido abrupta e grosseiramente enquanto uma concepccedilatildeo da essecircncia da arte como ilusatildeo ou coacutepia da coacutepia isso quer dizer que a pintura na sua realidade de ldquosuperfiacutecie preenchida unidimensionalmente por coresrdquo natildeo tem o menor direito de reivin-dicar qualquer estatuto ontoloacutegico A cama pintada jamais poderia ter realidade (ou verdade) para Platatildeo na medida em que apenas a Ideacuteia eacute essencialmente real como todo mundo jaacute sabe Segundo essa hierarquia agrave cama pintada natildeo eacute concedido sequer compartilhar da realidade que tem a cama do marceneiro sobre a qual se pode seguramente dormir jaacute que a utilidade sempre foi um cri-teacuterio inquestionaacutevel de valor das coisas Estamos por conseguinte no ambiente claacutessico da representaccedilatildeo E Magritte concordando com o irredutiacutevel Platatildeo sussurra ldquoO famoso cachimbo Como fui censurado por isso E entretanto Vocecircs podem encher de fumo o meu cachimbo Natildeo natildeo eacute mesmo Ele eacute apenas

Figura 45 Reproduccedilatildeo da pintura A traiccedilatildeo das imagens (1929) de Reneacute Magritte fonte lacmaorg

195

uma representaccedilatildeo Portanto se eu tivesse escrito no meu quadro lsquoisto eacute um cachimborsquo eu teria mentidordquo 1⁰ (figueiredo 2005 p 446-447)

10 Reneacute Magritte citado na contra-capa da 3ordf ediccedilatildeo brasileira de foucault Isto natildeo eacute um cachimbo [nota em peacute de paacutegina da autora]

Independente de Starck estar a par dessas implicaccedilotildees platocircnicas mais profundas ou

natildeo e da ironia8 de Magritte o certo eacute que ele explora a celebridade adquirida pelo quadro

talvez pela polecircmica culturalmente disseminada especialmente na Europa e Estados Unidos

e a direciona para um puacuteblico alvo que de algum modo jaacute esteve em contato com a obra de

Magritte ou com a discussatildeo em torno dela No entanto na hipoacutetese de faltar conhecimento

dos meandros artiacutesticos a algum provaacutevel comprador a Alessi acrescenta a frase de reforccedilo

junto agrave foto do produto como garantia da funcionalidade do objeto E supondo-se que os

usuaacuterios utilizem tal objeto para cortar bolo como no caso do espremedor o ato corriqueiro

pode se tornar assunto para outras conversas de usuaacuterios em um encontro celebraccedilatildeo ou

festa Mas se compararmos a paacute com o espremedor o risco de hipertrofia de caracteriacutesticas

natildeo funcionais parece ser maior nesse segundo produto jaacute que a empresa que o comercializa

sente necessidade de lanccedilar matildeo de explicaccedilotildees adicionais acerca de suas funccedilotildees

Este tipo de diaacutelogo expliacutecito com a arte e com a histoacuteria da arte ocorre em outros tra-

balhos de Starck O projeto de algumas de suas escovas de dentes como a Dr Kiss para a

Alessi trazem referecircncias a uma seacuterie de esculturas de Constantin Brancusi Paacutessaro no Espaccedilo

criadas entre 1923 e 1940 (figura 46) Carmel-Arthur descreve esses utensiacutelios e aponta para

as intenccedilotildees que ela acredita o designer tem ao fazer ligaccedilotildees com a obra de arte

A base alargada cocircnica da Escova de Dentes para LrsquoOreacuteal de 1990 funciona como um significante que orienta o usuaacuterioobservador no reino da histoacuteria da escultura A base ou ldquopedestalrdquo sustenta o que chamou corretamente de haste

ldquoagrave la Brancusirdquo da escova propiciando ao proprietaacuterio consciente do design e da arte um sentimento de confiante erudiccedilatildeo uma recompensa por reconhecer

8 Em um segundo momento Figueiredo (2005 p 453) reforccedila seu entendimento sobre a ironia de Magritte ldquoSe adotamos a perspectiva estritamente loacutegica a conclusatildeo desse segundo momen-to eacute que sendo a frase lsquoIsso natildeo eacute um cachimborsquo essencialmente irocircnica ela eacute ao mesmo tempo verdadeira e falsa Como dizia Suzuki sendo a ironia o ponto de indiferenccedila entre o real e o ideal2⁷ lsquoela eacute inteiramente uma coisa e ao mesmo tempo inteiramente outrarsquo A frase entatildeo po-deria enunciar que lsquoIsto tanto eacute quanto natildeo eacute um cachimborsquo ou simplesmente lsquoIsto eacute e natildeo eacute um cachimborsquo Ambivalente por excelecircncia esse momento aleacutem de provisoacuterio nada pode decidirrdquo 27 Cf suzuki O gecircnio romacircntico p 178 [nota em peacute de paacutegina da autora]

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as referecircncias de que o objeto eacute portador e a citaccedilatildeo do Paacutessaro no Espaccedilo de Constantin Brancusi de 1925 (carmel-arthur 2000 p 20)

Se concordarmos com a autora independentemente dos atributos de uso de uma escova

de dentes Starck explora intencionalmente a associaccedilatildeo que o ldquoproprietaacuterio consciente do

design e da arterdquo consegue fazer entre os dois tipos de objetos Mas em um produto como

esse de uso estritamente pessoal o designer pode abusar da hipertrofia por entender que

aqueles que a adquirem sabem do que se trata Na verdade se nos mantemos dentro da

metaacutefora de Flusser de que o design eacute uma ponte ela deve ser soacutelida e ampla o suficiente

para os designers poderem se movimentar tanto na direccedilatildeo da arte quanto na da ciecircncia

sem que essa estrutura de ligaccedilatildeo se abale preservando seus fundamentos (figura 47)

Figura 47 Esquema da possibilidade de o designer se movimentar entre ciecircncia e arte enquanto a ponte do design se manteacutem estruturada fonte autor

DESIGN

ARTECIEcircNCIA

DESIGNER

Figura 46 Fotografia de uma das esculturas Paacutessaro no Espaccedilo (1928) de Constantin Brancusi (esquerda) e fotografia da escova de dentes Dr Kiss (1996) de Philippe Starck (direita) fonte momaorg

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Paralelamente a essas conexotildees e movimentaccedilotildees em direccedilatildeo ao mundo da arte existe

outro elemento conceitual que Starck explora Quando por exemplo ele discursa sobre

as qualidades intriacutensecas de sua cadeira La Marie (figura 48) entre as inuacutemeras que pro-

jetou suas palavras para caracterizar a criaccedilatildeo remetem a conceitos que podem oferecer

indiacutecios adicionais acerca dos caminhos que este designer percorre em seus trabalhos

Sobre Marie a cadeira para a Kartell ele diz por exemplo que conseguiu ldquofazer o maacuteximo com o miacutenimo menos material quase natildeo haacute material menos pre-senccedila de fato eacute totalmente transparente E apesar de tudo oferece o maacuteximo de serviccedilos mdash resistecircncia leveza e possibilidade de ser empilhada Trata-se de um objeto sem idade extremamente honesto e profundamente moderno Um objeto quase ideal Vocecirc natildeo a vecirc pois eacute totalmente transparente Mas se quiser vecirc-la encontraraacute algo formidaacutevel Trata-se de uma verdadeira faccedilanha tecnoloacutegica com uma uacutenica modelagem um objeto transparenterdquo (morozzi 2012 p 25)

Denominaccedilotildees como ldquoimaterialidaderdquo ldquotransparecircnciardquo ldquoquase idealrdquo e ldquouacutenica mo-

delagemrdquo remetendo agrave atributos de qualidade superior mdash comprovando o interesse do

designer em ldquorecorrerrdquo aos avanccedilos da ciecircncia e da tecnologia como propotildee Bonsiepe

Figura 48 Fotografia da cadeira La Marie (1998) de Philippe Starck projetada para a empresa Kartell fonte kartellcom

198

(2011 p 17) e oferecendo equiliacutebrio agrave Ponte Flusseriana mdash podem ser facilmente asso-

ciadas com a conhecida posiccedilatildeo platocircnica investigada no capiacutetulo 2 Mas a duacutevida sobre

a compreensatildeo que o proacuteprio Starck tem de conceitos dessa natureza que podem de

algum modo fundamentar os processos que guiam seus projetos permanece Em entre-

vista concedida a Cristina Morozzi em 2011 a propoacutesito da relevacircncia de seus projetos

sua resposta eacute ambiacutegua

Cristina Morozzi Dos seus projetos quais gostaria de conservar

Philippe Starck Natildeo conservaria nenhum pois os projetos satildeo mateacuteria O que eu gostaria de conservar do meu trabalho eacute apenas um ponto de vista um espiacuterito uma loacutegica uma batalha uma rebeliatildeo uma poesia um humor e pontos fracos

CM E o que gostaria de jogar fora

PS Teoricamente tudo eacute para jogar fora natildeo haacute nenhum interesse em se ocupar da mateacuteria A mateacuteria A mateacuteria transpira a mateacuteria fede a mateacuteria sua a mateacuteria morre Investir na mateacuteria eacute um peacutessimo investimento Natildeo haacute histoacuteria Natildeo haacute motivos para conservaacute-la (MOROZZI 2012 p 104-105) Itaacutelicos nossos

Ao mesmo tempo em que como um possiacutevel herdeiro do platonismo Starck critica

enfaticamente a materialidade entendendo-a como pereciacutevel contraria esse ideal teoacuterico

de Platatildeo colocando sua atividade projetiva tambeacutem no acircmbito da mateacuteria Essa afirma-

ccedilatildeo que por si soacute jaacute seria um problema se agrava logo em seguida quando ele declara

que ldquoteoricamente tudo eacute para jogar forardquo Onde restaria o espaccedilo para o teoacuterico em seu

trabalho lugar no qual ele mesmo indica ser o patamar de onde constroacutei suas afirmaccedilotildees

Mas ao contraacuterio do que possa parecer Starck estaacute atento agrave importacircncia da teoria

na fundamentaccedilatildeo de projetos Carmel-Arthur a propoacutesito de enfatizar a relevacircncia que

Starck daacute para estabelecer sua identidade em um sentido linguiacutestico lembra-nos que

ele sempre ldquobatizardquo seus produtos com nomes conduzindo a uma associaccedilatildeo entre suas

obras rotuladas e ele mesmo E em seguida cita uma afirmaccedilatildeo de Starck muito anterior

agrave entrevista com Morozzi (1978-9) para o International Design Yearbook ldquoCreio ser

tarefa dos designers passar mais tempo produzindo signos e menos produzindo objetosrdquo

(carmel-arthur 2000 p 11)

Poderiacuteamos considerar que as declaraccedilotildees (proferidas durante uma entrevista) carre-

gam por vezes contradiccedilotildees proacuteprias do discurso oral diversamente de um texto escrito

199

refletido e elaborado previamente No entanto essa possibilidade natildeo pode levar em

consideraccedilatildeo o testemunho de sua entrevistadora Cristina Morozzi ao afirmar que ldquoEle

responde concentrado Acompanha as perguntas com atenccedilatildeo As respostas satildeo precisas

seguras definitivas Ele natildeo daacute opiniotildees mas faz afirmaccedilotildees cristalinas puras confirmando

suas convicccedilotildeesrdquo (morozzi 2012 p 104)

Em relaccedilatildeo agraves entrevistas Judith Carmel-Arthur confirma a posiccedilatildeo de Morozzi

ao afirmar que ldquoSuas entrevistas satildeo normativas Satildeo cronometradas e formuladas para

disseminar o consumo e dizem o que eacute e o que deixa de ser um ldquobomrdquo designrdquo (carmel

-arthur 2000 p 13) Mas atenta ao fundamento do consumo a autora vai em outra

direccedilatildeo e reforccedila uma suspeita ldquoNo entanto as entrevistas devem ser lidas igualmente

como confissotildees autopromocionais apontadas diretamente para o bolso do consumidor

de Starckrdquo (carmel-arthur 2000 p 14) E vai aleacutem

Eacute justo dizer que Starck tentou gerar um discurso genuiacuteno entre si e o mundo do design Eacute o que enfatiza a narrativa pessoal oferecida por suas numerosas entrevistas compensando a ausecircncia de informaccedilatildeo igualmente valiosa no contexto do design contemporacircneo no qual pouco se sabe dos designers (carmel-arthur 2000 p 14)

Apesar da relevacircncia do apelo consumista identificada no trabalho de Starck que

pode distinguir aquilo que ele afirma do que efetivamente ele produz devemos nos per-

guntar ateacute que ponto as conexotildees expliacutecitas com obras de arte como nos projetos da

escova de dentes e da espaacutetula de bolo satildeo estabelecidas por um interesse conceitual de

Starck em seu trabalho e portanto fazem sentido para os nossos propoacutesitos de relaccedilotildees

entre o design e a arte em seu acircmbito ontoloacutegico Talvez natildeo saibamos a resposta Poreacutem

observando a mesma questatildeo da perspectiva de Andy Warhol (que tambeacutem se envolveu

com o tema e a polecircmica do consumismo) entendemos que natildeo faz sentido considerar

o valor do consumo como um elemento comum ao design e agrave arte para ser incluiacutedo no

recorte da nossa investigaccedilatildeo das relaccedilotildees entre esses campos Em outras palavras na

contemporaneidade o capitalismo enraizado eacute uma reacutegua que impotildee medidas e paracircme-

tros que garantem a sobrevivecircncia de profissotildees enquanto eliminam outras Quais dessas

atividades escapam dessa reacutegua Se houver as que escaparem satildeo exceccedilotildees e obviamente

200

asseguram ao consumismo senatildeo universalidade generalidade suficiente para natildeo poder

ser usado como indicador privilegiado de relaccedilotildees entre dois campos

Assim em um caminho diverso um autor que pode ajudar a avanccedilarmos no entendi-

mento ou a encontramos uma siacutentese de alguns elementos constituintes do trabalho de

Starck eacute o filoacutesofo Michel Onfray No livro Scritti su Starck de 2004 (organizado por

Valeacuterie Guillaume) Onfray escreve o capiacutetulo Anatomia di alcuni sortilegi Traduzimos o

tiacutetulo por Anatomia de alguns fetiches e natildeo feiticcedilos uma vez que Onfray ao longo de seu

texto alude ao conceito de fetiche de mercadoria Nos limitaremos a poucos trechos deste

capiacutetulo de 13 paacuteginas dado que Michel Onfray na maior parte de sua escrita apresenta

um discurso em tom elogioso como dissemos que ocorre com o texto de Morozzi o

que frusta a expectativa de uma criacutetica de caraacuteter mais assertivo em texto de um filoacutesofo

Sintoma de um tipo de narrativa que lembra as apresentaccedilotildees de um cataacutelogo de expo-

siccedilatildeo de arte (e natildeo sabemos se o texto de Onfray originalmente teve esse propoacutesito) eacute

que a palavra artista eacute a preferida pelo autor para caracterizar Starck ao longo de todo

o texto Os exemplos a seguir mostram o estilo narrativo com que o filoacutesofo conduz a

maior parte de sua anaacutelise

Designer certamente arquiteto evidentemente criador de formas e de objetos infaliacuteveis designer claro e outras atividades correspondentes se vocecirc realmente quer roacutetulos Mas esses vastos mundos testemunham uma universalidade de uma totalidade que indica adequadamente o artista aquele que procede de um demiurgo e transforma poderosamente tudo o que toca (guillaume 2004 p 60) Traduccedilatildeo nossa

O real imanente o voluntarismo da construccedilatildeo a celebraccedilatildeo das formas orgacircnicas a cenografia do bizarro a paixatildeo pela anamorfose a sublimaccedilatildeo do sangue frio a dialeacutetica das formas e forccedilas eacute assim que circunscrevemos o xamanismo que eacute tudo trabalhar nos objetos de Philippe Starck Palavras de objetos comunica-ccedilotildees de coisas interaccedilotildees de homens e moacuteveis de vida e materiais glossolalia necessaacuteria para atingir ritmos melodias cantadas sussurradas ouvimos uma muacutesica de cerimocircnias de magia de misteacuterio uma melodia eacute surpreendida do misticismo pagatildeo uma voz que veio do nada nutrida pelo espiacuterito dos animais a alma dos animais e a respiraccedilatildeo dos materiais Couro papel alumiacutenio ma-deira epoacutexido vidro accedilo modulam agrave maneira de antepassados equipados para cerimocircnias xamacircnicas (guillaume 2004 p 68) Traduccedilatildeo nossa

201

No entanto uma das questotildees colocadas por esse autor se releva de nosso interesse

pois estaacute ligada ao tema da relaccedilatildeo entre o mundo dos objetos utilitaacuterios e o das obras de

arte Onfray identifica em Starck o que apontamos no capiacutetulo anterior como caracteriacutes-

tica de um modo de projetar atento ao mesmo tempo agrave vida cotidiana e agraves conceituaccedilotildees

e dinacircmicas da arte contemporacircnea

Com Starck os objetos resolvem por si mesmos imediata e violentamente a antiga antinomia entre o artigo ordinaacuterio e a obra de arte o fim do mundo mutilado no qual a trivialidade da vida cotidiana encontra a natureza excep-cional da criaccedilatildeo esteacutetica superando a oposiccedilatildeo entre detalhes materiais do mundo impuro e invisibilidade abstrata do puro universo artiacutestico aboliccedilatildeo da contradiccedilatildeo entre a rua e o museu a casa particular e a coleccedilatildeo puacuteblica A arte natildeo mais serve para especular acumular valores na esperanccedila de que eles sejam impostos jaacute natildeo tem a funccedilatildeo de agir como um siacutembolo social de uma classe com problemas de legitimidade e identidade ou reconhecimento tribal faz parte da realidade transfigura-a e cancela as separaccedilotildees entre o museu e o cotidiano Com ele e graccedilas a ele vocecirc pode viver em casa como em um museu (guillaume 2004 p 60-61) Traduccedilatildeo nossa

Essa ldquotransfiguraccedilatildeordquo9 de elementos das obras de arte em objetos ordinaacuterios eacute com-

preendida por Onfray em sentido inverso ao que vai do cotidiano agrave galeria de arte ou

ao museu Neste caminho o cotidiano representado pela ldquocasardquo pode se transfigurar em

museu uma realidade que natildeo nos atrai10 Se Onfray apresenta essa possibilidade somente

como uma hipeacuterbole dramaacutetica que reforccedila sua posiccedilatildeo ou se acredita que tal condiccedilatildeo

possa se efetivar independente de desejarmos ou natildeo que nossas casas assemelhem-se a

museus ou galerias e algumas delas jaacute o satildeo o relevante eacute que esse autor tambeacutem aponta

para a relaccedilatildeo inversa que investigamos da apropriaccedilatildeo do design de conceitos da arte

Nesse sentido a visatildeo de Onfray estaacute em sintonia com o que afirmamos ao final do ca-

piacutetulo anterior (p 171-172 sintetizada na circularidade da parte direita da figura 38) em

que o design ao tomar posse de conceitos da arte tambeacutem altera os significados de seus

objetos E Onfray acrescenta

9 O conceito de transfiguraccedilatildeo ateacute onde sabemos foi primeiramente empregado nesta temaacutetica por Danto

10 O filme Mon Oncle (1958) de Jacques Tati eacute um prenuacutencio da ideia de casas-museus Com um olhar bem-humorado o cineasta apresenta sua visatildeo criacutetica sobre conceitos de modernizaccedilatildeo na arquitetura influenciando o cotidiano da vida francesa do final da deacutecada de 1950

202

A praacutetica do objeto que difunde a arte de forma infinitesimal homeopaacutetica mas cotidiana resulta em uma interessante aristocratizaccedilatildeo do consumidor Cada indiviacuteduo colocado na presenccedila de um objeto pensado desejado criado pro-duzido e vendido por Philippe Starck vecirc sua casa transformada em um museu Invertendo o movimento habitual que leva o amante da arte para as galerias de arte Starck percebe o desejo querido pelos poetas que aspiram a uma poesia ativa e saem agraves ruas Para fazer isso ele entra no particular desce do pedestal onde as elites os burgueses os esnobes os conservadores o mantecircm e entatildeo integra em si os menores detalhes da vida cotidiana Quando Duchamp convidou a abo-liccedilatildeo de aacutereas artiacutesticas esterilizadas ele abriu o caminho para sonhadores que surpreendem com estranheza criam o bizarro solicitam o inesperado depois fazem poesia na mais banal existecircncia no momento mais inesperado no lugar mais inesperado menos apropriado (guillaume 2004 p 69) Traduccedilatildeo nossa

Seja aristocratizaccedilatildeo ou mais provavelmente seu oposto democratizaccedilatildeo e apesar

de natildeo sabermos se Michel Onfray distingue design e arte diante de sua proposta natildeo

eacute surpresa que este filoacutesofo sele seu entendimento desse movimento do design (do qual

Starck eacute um legiacutetimo representante) com a arte de outro francecircs Marcel Duchamp

Se Duchamp e Warhol satildeo ldquopontos focaisrdquo na arte em parte pela conversatildeo de arte-

fatos em obras de arte Philippe Starck se apresenta como ldquoponto focalrdquo no design natildeo

somente pelo movimento que ele realiza no sentido inverso com os objetos do design

incorporando caracteriacutesticas exclusivas do universo artiacutestico Com isso ele de modo cor-

relato aos dois artistas opera um giro na significaccedilatildeo desses objetos e suas caracteriacutesticas

ontoloacutegicas mas tambeacutem incorpora os demais conceitos que investigamos anteriormente

e que corroboram a segunda parte de nossa hipoacutetese (cf capiacutetulo 1 p 39) e conclui o

objetivo do uacuteltimo item do meacutetodo (cf capiacutetulo 1 p 49)

Assim em retrospecto desta segunda seccedilatildeo devemos atentar para a mimetizaccedilatildeo ine-

rente a diversos projetos de Starck desde oacuteculos com articulaccedilotildees derivadas de princiacutepios

de estruturas oacutesseas ateacute bancos com formas inusitadas (figura 49) sem nos esquecermos

do tatildeo referenciado espremedor que o proacuteprio Starck disse ser inspirado na forma de uma

lula Objetos monstruosos nas palavras de Onfray que fazem de Starck um ldquodemiurgo

malignordquo ldquoum inventor e criador de quimerasrdquo (guillaume 2004 p 66) e como

tambeacutem propotildee Flusser de modo apreensivo por considerar a criaccedilatildeo de ldquoquimeras de

bacteacuteriasrdquo um problema de design (flusser 2007 p 49-50)

203

Ao analisar mais objetos aleacutem dos investigados no capitulo 4 percebemos que os

conceitos aristoteacutelicos de belo versus uacutetil e de fim em si mesmo satildeo recorrentes na proposta

de Starck No entanto como vimos podem caminhar perigosamente em direccedilatildeo agrave hi-

pertrofia de elementos natildeo funcionais em um artefato Se natildeo o transfiguram em obra de

arte podem levaacute-lo agrave condiccedilatildeo de objeto de adorno com uma ambiguidade subjacente

do discurso aberto de Umberto Eco

Por uacuteltimo ao lado desses conceitos aparece o do discurso persuasivo epidiacutectico de

Aristoacuteteles nas declaraccedilotildees do proacuteprio Starck defendendo sua obra e buscando convencer

o consumidor sempre atento aos interesses da publicidade e do mercado

Figura 49 Fotografia do banco WW (1990) de Phili-ppe Starck projetado para o cineasta Wim Wenders e produzido pela empresa Vitra fonte starckcom

204

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao concluir-se uma pesquisa existe uma expectativa de caraacuteter cientiacutefico nas conheci-

das expressotildees empregadas por Kuhn (1987) de soluccedilatildeo de ldquoenigmasrdquo ou de resoluccedilatildeo

de ldquoquebra-cabeccedilasrdquo No entanto a ideia de consideraccedilotildees finais eacute mais proacutexima das

investigaccedilotildees que envolvem filosofia na medida em que o exerciacutecio da reflexatildeo nessa

aacuterea eacute antes de tudo indagaccedilatildeo e natildeo necessariamente resposta definitiva Nesse sentido

compreendemos o sentimento do poeta Fernando Pessoa (cf capiacutetulo 3 p 129) e a sua

aversatildeo ao ato de acabar Natildeo eacute mera coincidecircncia que filosofia e poesia de algum modo

se conectem em um mesmo zelo pelo exerciacutecio do percurso empreendido Portanto para

noacutes o tiacutetulo Consideraccedilotildees Finais expressa melhor nossas intenccedilotildees do que Conclusatildeo

Retomando o percurso da tese no capiacutetulo 2 partimos da cisatildeo e hierarquizaccedilatildeo pla-

tocircnica da ciecircncia teacutecnica e arte direcionando o foco desta etapa a primeira do meacutetodo

(cf capiacutetulo 1 p 49) mais para as esferas gnoseoloacutegica e ontoloacutegica do que para a esteacutetica

Nesse momento propedecircutico intensificar e estreitar a articulaccedilatildeo do tema explorando

o diaacutelogo com Maldonado Bonsiepe Schneider Cardoso e Flusser em contraponto agraves

ideias de Koyreacute foram estrateacutegias decisivas para explicitar as consequecircncias dessa cisatildeo

e hierarquizaccedilatildeo no acircmbito do design e da arte

No capiacutetulo 3 com a investigaccedilatildeo sendo direcionada para a esfera esteacutetica e poste-

riormente para a ontoloacutegica estabelecemos um niacutevel de compreensatildeo das relaccedilotildees entre

design e arte preservando ao lado dos conceitos de universalidade e objetividade dois

outros elementos essenciais a esses campos a subjetividade e a incompletude confirmando

assim a primeira parte de nossa hipoacutetese (cf capiacutetulo 1 p 39) Este percurso apoiado nas

reflexotildees de Kant e Thierry de Duve sobre a esteacutetica e nas investigaccedilotildees de Heidegger e

Lacoue-Labarthe sobre ontologia nos permitiu ao mesmo tempo transpor a via epis-

temoloacutegica e demonstrar a capacidade da arte de ampliar a compreensatildeo dos objetos do

design indo aleacutem da instrumentalidade e utilidade Deste modo concluiacutemos a segunda

etapa do meacutetodo

Centrado em Aristoacuteteles o capiacutetulo 4 natildeo trata simplesmente de pensar as relaccedilotildees

entre design e arte mas de ir ateacute os fundamentos daquelas relaccedilotildees que se sustentam em

205

bases ontoloacutegicas Apoiados principalmente em Danto Nietzsche e Eco procedemos

finalmente com o deslocamento dos conceitos aristoteacutelicos para nossos propoacutesitos

Em seguida avanccedilamos da abordagem de cunho mais teoacuterico para seus aspectos mais

pragmaacuteticos ratificando as reflexotildees na esfera da produccedilatildeo com a anaacutelise de objetos do

design e de obras de arte representativos de nossa posiccedilatildeo O procedimento de rastreio

dos conceitos aristoteacutelicos nos exemplos do velcro do espremedor de frutas da Brillo

Box e das latas de sopa Campbel explorados tanto no design quanto na arte encerrou

a terceira etapa do meacutetodo e confirmou a segunda parte da hipoacutetese tendo seu aacutepice ao

compor o quadro das interconexotildees desses dois campos Essa praacutexis com a funccedilatildeo de

corroboraccedilatildeo no mundo sensiacutevel foi ampliada no uacuteltimo capiacutetulo

Atentos ao trabalho de Duchamp Warhol e Starck no capiacutetulo 5 dirigimos nossa

atenccedilatildeo para a praacutetica da arte e do design em seu sentido mais abrangente encerrando

o quarto e uacuteltimo item do meacutetodo Esse contraponto pragmaacutetico da teoria anterior

particularmente em relaccedilatildeo ao design contribuiu para percebemos que com o decorrer

do tempo e a crescente produccedilatildeo praacutetica esse campo se vecirc diante de um duplo desafio

construir sua identidade e justificar sua existecircncia para se estabelecer em peacute de igualdade

com outros campos e dialogar com eles com jaacute ocorre em sua relaccedilatildeo com a arte

Algumas caracteriacutesticas que explicitamos talvez natildeo fossem relevantes se o design natildeo

atuasse de modo interdisciplinar Mas que disciplina contemporacircnea escapa da interdis-

ciplinaridade Aleacutem disso existe a necessidade de certo ldquoegordquo centralizador de ideias que

as aacutereas de pesquisa e trabalho apresentam Esse nuacutecleo que natildeo deixa de ser no nosso

entendimento uma antropomorfizaccedilatildeo das disciplinas conduzida por seus membros

cobra uma identidade dessas aacutereas Por que seria diferente com o design

Poreacutem uma fundamentaccedilatildeo de caraacuteter ontoloacutegico se bem elaborada pode contribuir

para contornar as exigecircncias de exclusividade de bases epistemoloacutegicas quando cobradas

de um ponto de vista ortodoxo E se natildeo for possiacutevel ou natildeo se desejar contornar tais

exigecircncias o design pode assumir-se enquanto uma disciplina indefinida em sua essecircncia

Tal posiccedilatildeo de incompletude aleacutem de natildeo retirar relevacircncia do design acrescenta algo

a autodeterminaccedilatildeo de seu status ontoloacutegico assim como acontece com a arte por de-

finiccedilatildeo indefinida Esta pode ser mais uma caracteriacutestica a compartilhar com a arte sem

206

necessariamente confundir os dois campos E se for para ser indefinido e inacabado que

o design se assuma enquanto tal para natildeo correr o risco de dissolver-se na generalidade

Se por um lado a comprovaccedilatildeo de nossa hipoacutetese de que os fundamentos das rela-

ccedilotildees entre design e arte firma seus alicerces mais profundos no territoacuterio da ontologia

(cf capiacutetulo 3) com os embriotildees da interlocuccedilatildeo entre esses dois campos remontando

ao pensamento grego antigo (cf capiacutetulo 4) por outro a trajetoacuteria seguida ateacute essas

afirmaccedilotildees gera como eacute previsiacutevel em pesquisas de natureza reflexiva novos elementos

e possibilidades natildeo completamente compreendidas Como tais elementos enquanto

desdobramentos do tema satildeo inerentes agrave tese acreditamos que possam ser nesse mo-

mento de exame retrospectivo melhor delineados Admitindo a importacircncia dessa tarefa

retomamos o tema da natureza e essecircncia do design

Procederemos somente com o compromisso de demarcaccedilatildeo do assunto aceitando

que sua completa exploraccedilatildeo demanda espaccedilo maior do que o reservado para essa etapa

No entanto devido ao fato de que o tema emerge ainda na metade do desenvolvimento

da tese na clivagem teoacuterica que separa Kant de Heidegger e se manteacutem dentro do nosso

nuacutecleo propositivo dos fundamentos das relaccedilotildees entre design e arte buscamos pelo

menos fixar alguns marcos a partir de um memento que conduz agrave nossa compreensatildeo

atual da questatildeo

Ao teacutermino da primeira seccedilatildeo sobre Kant (cf capiacutetulo 3 p 128-129) em que chegamos

agrave concepccedilatildeo de design determinado e indeterminado e a consequente formulaccedilatildeo de uma

universalidade subjetiva nesse campo nos confrontamos com duas questotildees Propusemos

respondecirc-las ao final da tese considerando a impossibilidade de compreendecirc-las em toda

a sua extensatildeo naquelas circunstacircncias e etapa As questotildees eram

bull Asinuacutemerasdefiniccedilotildeesdedesignaolongodesuacurtahistoacuteriaeaampliaccedilatildeode

seu campo de atuaccedilatildeo tecircm alguma relaccedilatildeo com a equivalente expansatildeo do universo

artiacutestico contemporacircneo

bull Asdificuldadesatuaisdeseestabelecerdefiniccedilotildeesparaodesignpodemserdevidasa

esse campo ter uma generalidade incipiente de autopromoccedilatildeo ou inerente e anaacuteloga

a disciplinas como a da filosofia

207

Em relaccedilatildeo agrave primeira indagaccedilatildeo apoacutes as investigaccedilotildees empreendidas especialmente

tendo em conta os estudos sobre Duchamp e Warhol no capiacutetulo 5 a resposta eacute que a

expansatildeo do universo artiacutestico efetivamente contribui para a proliferaccedilatildeo de definiccedilotildees

sobre o design E com mais convicccedilatildeo do que no capiacutetulo 3 consideramos que a incom-

pletude do design (decorrente dessa indeterminaccedilatildeo) eacute essencial a esse campo devendo

ser acrescida agraves chaves de interpretaccedilatildeo das suas relaccedilotildees com a arte

A segunda pergunta eacute uma decorrecircncia da primeira e por admitir trecircs respostas distintas

torna-se uma questatildeo de escolha orientada ao passos que foram dados posteriormente agrave

sua formulaccedilatildeo Ficamos com a terceira possibilidade acreditando que uma generalidade

inerente e anaacuteloga agrave filosofia tem raiacutezes no modo de atuaccedilatildeo do design Neste sentido

Arthur Danto estabelece uma proposiccedilatildeo especificamente para a arte mas passiacutevel de ser

conduzida para o territoacuterio do design contribuindo para se natildeo elucidar completamente

a questatildeo pelo menos justificar a nossa escolha

Uma das teses de Danto repetidamente defendida por este autor natildeo somente nos

trecircs escritos selecionados nesta investigaccedilatildeo O filoacutesofo como Andy Warhol (2004) A

transfiguraccedilatildeo do lugar comum (2005) e Andy Warhol Arthur C Danto (2012) se fixa de

maneira persistente na ideia de uma natureza filosoacutefica da arte De nossa parte concor-

damos com essa concepccedilatildeo de Danto jaacute defendida por Aristoacuteteles na obra A poeacutetica (cf

capiacutetulo 4 p 147) tanto pelos seus argumentos que expusemos em distintos momentos

da tese mas tambeacutem por uma constataccedilatildeo factual explorada por este pensador

A natureza da filosofia eacute de tal sorte que ela parece estar logicamente co-implicada com todos os objetos de que se ocupa Se esse raciociacutenio for correto deve-se pocircr em evidecircncia uma pergunta raramente formulada na filosofia da arte por que a arte faz parte das coisas sobre as quais pode haver uma filosofia e por que eacute um fato histoacuterico que nenhum grande pensador de Platatildeo e Aristoacuteteles a Heidegger e Wittgenstein deixou de dizer alguma coisa sobre esse tema (danto 2005 p 99)

Tal constataccedilatildeo de Danto e tambeacutem de outros autores corrobora seus argumentos

de um ponto de vista histoacuterico No entanto o mais relevante para o momento eacute que

se a filosofia realmente efetiva uma ldquoco-implicaccedilatildeordquo com seus objetos de estudo (e essa

convicccedilatildeo foi se sedimentando em nossa consciecircncia durante a escrita da tese) natildeo basta

208

assumi-la apenas como um dos fundamentos na constituiccedilatildeo de uma teoria do design

como sugerem entre outros designers Bonsiepe (2011) Buumlrdek (2006) e Maldonado

(2012) Podemos propor uma consequecircncia (que o proacuteprio Danto entende no acircmbito

da arte como de caraacuteter ldquoloacutegicordquo) derivada dessa co-implicaccedilatildeo da filosofia com os seus

objetos um componente filosoacutefico na natureza do design

No entanto de modo oposto ao nosso raciociacutenio a identificaccedilatildeo de uma essecircncia do

design correlata agrave da filosofia pode ser entendida como apenas uma inferecircncia indevida

a partir de uma vinculaccedilatildeo de elementos comuns aos dois campos Afinal diversas aacutereas

buscam na filosofia bases para constituiccedilatildeo de princiacutepios e fundamentos e apesar disso

natildeo satildeo consideradas detentoras de uma natureza filosoacutefica As ciecircncias modernas por

exemplo nasceram da filosofia e no entanto satildeo compreendidas tanto por epistemoacutelogos

quanto por cientistas como tendo natureza especulativa distinta de sua matriz originaacuteria1

Diante da oposiccedilatildeo entre a visatildeo anterior e a nossa a gnoseologia pode contribuir

para escaparmos desse dilema Uma das distinccedilotildees que essa disciplina faz entre filosofia e

ciecircncia diz respeito agraves classes de pergunta que esses campos encaminham ateacute seus objetos

de estudo como assinalamos anteriormente (cf capiacutetulo 3 p 137) Grosso modo a filosofia

de caraacuteter generalista questiona mais o ldquoque eacuterdquo e o ldquoporquecirc eacuterdquo da realidade enquanto as

ciecircncias especialistas e cada vez mais voltadas aos aspectos descritivos e preditivos dos

fenocircmenos se detecircm principalmente em compreender ldquocomordquo tais eventos ocorrem ou

podem ser previstos

Assim apoiados nesses pressupostos da gnoseologia obtemos condiccedilotildees miacutenimas

para prosseguirmos em nossa proposiccedilatildeo sobre o design Como ponto de partida se

aceitamos a afirmaccedilatildeo de uma essecircncia filosoacutefica nesse campo de imediato satildeo geradas

duas consequecircncias positivas Uma para as relaccedilotildees entre design e arte e outra exclusiva

ao design

1 A filosofia eacute incorporada como mais um elemento comum ao design e agrave arte auxi-

liando a compreender a riqueza e intensificando suas relaccedilotildees

1 Se instituiccedilotildees como o cnpq (httplattescnpqbrwebdgparvore-do-conhecimento) ao categoriza-rem as aacutereas do conhecimento colocam a filosofia sob a classe das ciecircncias humanas natildeo significa que do ponto de vista conceitual essa disciplina natildeo tenha caracteriacutesticas distintas daquilo que a ciecircncia moderna e contemporacircnea estabeleceu para si mesma

209

2 Independentemente de circunscrever o design dentro de uma determinaccedilatildeo ou aacuterea

especiacutefica do conhecimento torna-se expliacutecita sua associaccedilatildeo com a reflexatildeo de carac-

teriacutesticas filosoacuteficas o que reforccedila nossa posiccedilatildeo de que o design faz uso das ciecircncias

mas natildeo eacute uma delas (cf capiacutetulo 3 p 127-129)

Acreditamos na relevacircncia desses dois resultados por entendecirc-los como conquistas para

ambos os campos Quanto a comprovar sua origem como fundados na natureza filosoacutefica

do design em primeiro lugar eacute importante retornar a alguns dos autores investigados na

tese e agraves suas posiccedilotildees que de forma distinta anteveem e prenunciam essas ldquoco-implicaccedilotildeesrdquo

Gui Bonsiepe (2011 p 181) (cf capiacutetulo 1 p 42) autoriza especificamente a disciplina da

filosofia distinguir design de arte Vileacutem Flusser (2007 p 48-50) (cf capiacutetulo 2 p 98-

100) impotildee ao design parte consideraacutevel da responsabilidade (normalmente cobrada da

filosofia e da ciecircncia) sobre pensar e equacionar os fins e responsabilidades do homem e

suas produccedilotildees perante a natureza Rafael Cardoso e Philippe Starck compreendem alguns

aspectos constituintes do design de modo semelhante embora matizado para o primeiro

ldquo[]odesigneacuteemuacuteltimaanaacuteliseumprocessodeinvestirosobjetosdesignificados[]rdquo

(cardoso1998p29)eosegundoacreditaldquo[]sertarefadosdesignerspassarmais

tempo produzindo signos e menos produzindo objetosrdquo (carmel-arthur 2000 p

11) Em ambos o design estaacute mais associado agrave etapa do projeto2

2 Essa separaccedilatildeo entre elaboraccedilatildeo de conceitosplanos e execuccedilatildeo jaacute se encontra estabelecida desde a cultura grega claacutessica O sentido de saber fazer da teacutekhne se revela por exemplo nos trabalhos de Phiacutedias (c 490ndash430 aC) Encarregado das obras puacuteblicas de Atenas por seu governante Peacutericles (494ndash429 aC) orientou e fiscalizou as equipes que produziram templos preacutedios puacuteblicos e escultu-ras (woodford 1982 p 52) Esse sentido segue ao longo da histoacuteria passando pelo Renascimento onde a produccedilatildeo de obras arquitetocircnicas de esculturas e pinturas deixadas a cargo de mestres eram executadas em parte por uma equipe Na atualidade com os avanccedilos da teacutecnica e a exigecircncia cada vez maior de conhecimentos especiacuteficos para a produccedilatildeo de obras com novos materiais o conceito de saber fazer estaacute atrelado agrave especializaccedilatildeo pela proacutepria dificuldade de os profissionais dominarem aacutereas em raacutepida expansatildeo Nesse sentido a atuaccedilatildeo de parte dos artistas e designers tende a se concentrar no acircmbito conceitual e criativo transferindo a produccedilatildeo a profissionais especializados na execuccedilatildeo Exemplos disso no acircmbito da arte satildeo as gigantescas esculturas em metal de Tomie Ohtake E em design editorial a especializaccedilatildeo com exceccedilotildees confina os designers na etapa projetiva e no maacuteximo ao acompanhamento (produccedilatildeo graacutefica) da execuccedilatildeo que fica a cargo das graacuteficas No entanto os avanccedilos recentes da tecnologia e a reduccedilatildeo de custo de equipamentos como cncs e impressoras 3d tecircm propiciado em nichos especiacuteficos um caminho diverso para aqueles que se propotildeem a atuar desde a concepccedilatildeo ateacute o produto acabado

210

Nas posiccedilotildees anteriores algumas de modo mais evidente do que outras os autores

buscam estabelecer o design como um domiacutenio em que no nosso entendimento as inten-

ccedilotildees e motivaccedilotildees originaacuterias nos projetos estatildeo ligadas agrave possibilidade de ampliaccedilatildeo da

realidade que satildeo assumidas pelos designers como mais relevantes do que a constataccedilatildeo

ou descriccedilatildeo de como a realidade eacute Se os designers em sua praacutetica tecircm plena consciecircncia

desse modus operandi eacute algo que demanda outra investigaccedilatildeo

Em segundo lugar (indo aleacutem da questatildeo da universalidade subjetiva analisada no

capiacutetulo 3) agora podemos afirmar que a indeterminaccedilatildeo do design se deve tambeacutem agrave

indeterminaccedilatildeo de seus objetos Recordemos que a Ponte Flusseriana representada em

sua forma mais ampliada na figura 10 (cf capiacutetulo 2 p100) expande consideravelmente

os acircmbitos de atuaccedilatildeo do design e dos designers conectando natildeo somente ciecircncia e arte

mas alcanccedilando ateacute os domiacutenios da natureza Enquanto as ciecircncias tradicionais mantecircm

seus objetos circunscritos aos seus princiacutepios paradigmas e leis e se aprofundam em

descriccedilotildees cada vez mais precisas desses objetos o design pode conceber ou participar da

elaboraccedilatildeo de novos conceitos e objetos fiacutesicos ou desmaterializados sem extrapolar seus

limites de atuaccedilatildeo Por exemplo a estrutura da World Wide Web e outras instacircncias de

realidades virtuais como as concepccedilotildees computadorizadas em trecircs e quatro dimensotildees

receberam e ainda continuam a receber significativas contribuiccedilotildees do design em suas

constantes implementaccedilotildees

O alargamento de fronteiras direcionado a conceitos e objetos a partir de um afasta-

mento do senso comum e de uma busca por problematizaccedilatildeo da realidade ou ateacute da criaccedilatildeo

de novos problemas3 eacute antes de tudo inerente agrave filosofia desde os seus primoacuterdios Essa

rica caracteriacutestica natildeo se dissemina a todos os campos do conhecimento pelas proacuteprias

especificidades necessidades e prioridades de cada aacuterea E uma parte apreciaacutevel dessas

3 Um exemplo de limitaccedilatildeo que o senso comum impotildee ateacute aos ciacuterculos da reflexatildeo filosoacutefica vem de Pierre Aubenque Este historiador da filosofia com o propoacutesito de ressaltar a originalidade de determinados problemas e conceitos filosoacuteficos como o da ontologia afirma que ldquoO problema do ser mdash no sentido da questatildeo O que eacute o ser3⁸mdash eacute o menos natural de todos os problemas aquele que o senso comum nunca se colocou aquele que nem a filosofia preacute-aristoteacutelica nem a tradiccedilatildeo imediatamente posterior se colocaram enquanto tal aquele que tradiccedilotildees outras que as ocidentais jamais conjecturaram ou abordaram (aubenq ue 2012 p 22)

38 Aristoacuteteles natildeo se fez tanto como o pensamento grego em seu conjunto esta outra questatildeoPor que haacute o ser em vez do nada [nota em peacute de paacutegina do autor]

211

aacutereas objetiva apenas solucionar problemas o que natildeo eacute pouco Mas o mesmo natildeo ocorre

com a arte e com o design

Pode-se recorrer a um mundo inteligiacutevel para pensar a infinidade de possibilidades

do mundo sensiacutevel tanto na natureza quanto na produccedilatildeo humana O exemplo da cama

(cf capiacutetulo 2 p 66-70) mdash que poderia ser uma cadeira ou qualquer outro objeto que

solicita a atenccedilatildeo do designer para ser concebido mdash eacute simboacutelico e estrutural na medida

em que estabelece a essecircncia da poacuteiesis em suas vertentes de episteacuteme e teacutekhne No entanto

acreditamos que o design e os designers estatildeo cada vez mais conscientes e dispostos a natildeo

simplesmente atuarem solucionando enigmas e quebra-cabeccedilas mas em uma atitude que

vai aleacutem desses protocolos e ao mesmo tempo afastando-se do senso comum criarem novos

problemas antes de solucionaacute-los Em outras palavras ateacute onde podemos compreender o

projeto de uma cadeira ou outro objeto que natildeo eacute previsto (preacute-visto mdash prae-uidĕo) pelos

usuaacuterios natildeo eacute uma antevisatildeo mas antes de tudo um problema inventado com base em

teoria e que pode gerar diversas soluccedilotildees

Esta capacidade de problematizar herdada da filosofia pelo design tambeacutem estaacute des-

crita por Umberto Eco (cf capiacutetulo 4 p 165) como essencial agrave arte que ldquonatildeo quer agradar

e nem consolar mas colocar problemas renovar a nossa percepccedilatildeo e o nosso modo de

compreender as coisasrdquo (eco 1988 p 280) O que enfatizamos eacute que o problema que

normalmente4 se estabelece antes da soluccedilatildeo natildeo necessita ser dado somente pela phyacutesis

(natureza) mas tambeacutem pode ser produzido pelas mentes criativas

Neste ponto aquela advertecircncia platocircnica (de caraacuteter pedagoacutegico) para que cada

profissional cuide de seu trabalho e deixe os demais ldquoem pazrdquo (platatildeo 1987 p 74)

reforccedila certa concepccedilatildeo do design que Cardoso questiona tambeacutem pedagogicamente

Segundo o senso comum mdash ainda ensinado em algumas escolas mdash ldquodesigner natildeo eacute artistardquo tampouco artesatildeo arquiteto engenheiro estilista marqueteiro publicitaacuterio e assim por diante Em meio a tantas advertecircncias sobre o que os

4 O problema surge normalmente mas natildeo necessariamente antes de sua soluccedilatildeo Tal inversatildeo eacute comum na matemaacutetica Em diversas ocasiotildees essa ciecircncia contrariou a ideia do problema ser estabelecido em primeiro lugar Por exemplo os polinocircmios propostos por Sergei Bernstein foram criados sem a intenccedilatildeo deste matemaacutetico de aplicaacute-los como soluccedilatildeo a problemas da induacutestria de automoacuteveis ou de fontes tipograacuteficas digitais e estruturas 3d computadorizadas que surgiriam anos depois (silva 2016 p 41-42)

212

alunos natildeo devem ser esquece-se muitas vezes de lhes dizer o que de fato eles podem vir a ser A resposta vem em duas partes por um lado natildeo satildeo nada disso por outro satildeo tudo isso e mais (cardoso 2016 p 231)

Nas primeiras liccedilotildees de filosofia aprendemos que o conceito de senso comum eacute dia-

metralmente oposto agrave atitude criacutetica e com certeza Cardoso sabe disso O paradoxo

presente nas palavras desse autor que compreendemos e aceitamos como inerente ao de-

sign reforccedila nossa convicccedilatildeo de que uma complementaridade natildeo excludente seraacute sempre

bem-vinda a esse campo Resta propor com mais ecircnfase agraves novas geraccedilotildees de designers

que a incompletude pode ser uma virtude

213

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NIETZSCHE Friedrich O nascimento da trageacutedia ou helenismo e pessimismo

Traduccedilatildeo notas e posfaacutecio J Guinsburg Satildeo Paulo Companhia das Letras 1992

NIETZSCHE Friedrich A gaia ciecircncia Traduccedilatildeo Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo

Companhia das Letras 2001

PENROSE Roger A mente nova do rei computadores mentes e as leis da fiacutesica

Traduccedilatildeo Waltensir Dutra Rio de Janeiro Editora Campus 1991

PEREIRA Isidro Dicionario greco-portuguecircs e portuguecircs-greco 4ordf ediccedilatildeo Porto

Livraria Apostolado da Imprensa 1969

PESSOA Fernando Paginas de esteacutetica e de teoria e criacutetica literaacuterias Textos

estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho Lisboa

Aacutetica 1967

PESSOA Fernando Mendes Arte e verdade no pensamento de Heidegger In

Arqueologias da criaccedilatildeo estudos sobre o processo de criaccedilatildeo Org Acircngela Maria

Grando Bezerra e Joseacute Cirillo Belo Horizonte CArte 2009

PLATAtildeO A repuacuteblica Introduccedilatildeo traduccedilatildeo e notas Maria Helena da Rocha Pereira

5ordf ediccedilatildeo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1987

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POPPER Karl R Conjecturas y refutaciones el desarrollo del conocimiento

cientiacutefico Barcelona Paidos 1972

POPPER Karl R Conhecimento objetivo uma abordagem evolucionaacuteria Belo

Horizonte Itatiaia Satildeo Paulo Editora Universidade de Satildeo Paulo 1975

POPPER Karl R A loacutegica da pesquisa cientiacutefica Satildeo Paulo Cultrix 1993

ROBERT Paul REY-DEBOVE Josette REY Alain Le nouveau petit Robert

dictionnaire alphabetique et analogique de la langue franccedilaise nouv ed Paris

Dictionnaires Le Robert 1993

ROVELLI Carlo A realidade natildeo eacute o que parece a estrutura elementar das coisas

Traduccedilatildeo Silvana Cobucci Leite Rio de Janeiro Objetiva 2017

ROVELLI Carlo A ordem do tempo Traduccedilatildeo Silvana Cobucci Rio de Janeiro

Objetiva 2018

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SARAIVA F R dos Santos QUICHERAT L Noviacutessimo dicionaacuterio latino-

portuguecircs etimoloacutegico prosoacutedico histoacuterico geograacutefico mitoloacutegico biograacutefico etc

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e econocircmico Satildeo Paulo Bluumlcher 2010

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  • CAPA
  • PAacuteGINAS PREacute-TEXTUAIS
    • Folha de Rosto
    • Ficha Catalograacutefica - verso Folha de Rosto
    • Folha de Aprovaccedilatildeo
    • Dedicatoacuteria
    • Agradecimentos
    • Epiacutegrafe
    • Resumo
    • Abstract
    • Lista de Ilustraccedilotildees
    • Lista de fontes na Internet
    • Sumaacuterio
      • PAacuteGINAS TEXTUAIS
        • 1 INTRODUCcedilAtildeO
          • 11 Estrutura do texto
          • 12 Percursos preacutevios
          • 13 Questotildees norteadoras
            • 2 ORIGENS E CONSEQUEcircNCIAS DA HIERARQUIZACcedilAtildeO DA CIEcircNCIA TEacuteCNICA E ARTE
              • 21 A essecircncia compartilhada de quatro conceitos gregos
                • 211 Phyacutesis
                • 212 Poacuteiesis
                • 213 Teacutekhne
                • 214 Episteacuteme
                  • 22 Hierarquia platocircnica cisatildeo e ruptura
                    • 221 A metafiacutesica impliacutecita ao tema da cidade ideal
                    • 222 O argumento ontoloacutegico contra a arte mimeacutetica
                    • 223 Desdobramentos da hierarquizaccedilatildeo do conhecimento
                      • 23 Design entre ciecircncia teacutecnica e arte
                        • 231 Afastamentos aproximaccedilotildees e interaccedilotildees
                        • 232 Artifiacutecios fronteiras moacuteveis e pontes
                        • 233 Essecircncia ontoloacutegica e epistemoloacutegica
                            • 3 DA ESTEacuteTICA Agrave ONTOLOGIA NA ARTE E NO DESIGN
                              • 31 Kant e a abordagem esteacutetica na arte e no design
                                • 311 Subjetividade e objetividade no territoacuterio da arte
                                • 312 Os conceitos de ACT e ART
                                • 313 Antinomia e dilema
                                • 314 Uma releitura de Kant do belo agrave arte
                                • 315 Uma soluccedilatildeo incompleta ou a incompletude como soluccedilatildeo
                                • 316 Subjetividade e objetividade no territoacuterio do design
                                • 317 Outra releitura de Kant da arte ao design
                                • 318 A universalidade objetiva no design
                                • 319 A universalidade subjetiva no design
                                  • 32 Heidegger e o vieacutes ontoloacutegico na arte e no design
                                    • 321 O giro em direccedilatildeo agrave ontologia
                                    • 322 A criacutetica a Platatildeo a arte natildeo eacute imitaccedilatildeo
                                    • 323 Poacuteiesis como produccedilatildeo phyacutesis como terra e teacutekhne como mundo
                                    • 324 Os trecircs modos de produccedilatildeo e sua influecircncia sobre o design
                                    • 325 O design aleacutem da instrumentalidade e da utilidade
                                        • 4 OS CONCEITOS ARISTOTEacuteLICOS NO DESIGN E NA ARTE
                                          • 41 O fundamento ontoloacutegico do conceito de miacutemesis
                                            • 411 A inversatildeo aristoteacutelica miacutemesis mediadora ativa e criativa
                                            • 412 A alianccedila entre universalidade verdade e arte poeacutetica
                                            • 413 As relaccedilotildees entre miacutemesis teacutekhne e phyacutesis
                                              • 42 Deslocamento do conceito de miacutemesis e sua contribuiccedilatildeo ao design e agrave arte
                                                • 421 A miacutemesis exoacutegena no design acreacutescimo e processo agrave natureza
                                                • 422 A miacutemesis endoacutegena no design adaptaccedilatildeo e evoluccedilatildeo
                                                • 423 A miacutemesis complementar na arte saiacuteda parar o dilema de Euriacutepedes
                                                  • 43 Ampliaccedilatildeo das determinaccedilotildees ontoloacutegicas nas relaccedilotildees entre design e arte
                                                    • 431 Da arte ao design o conceito de fim em si mesmo
                                                    • 432 Da arte ao design o discurso aberto e o persuasivo epidiacutectico
                                                    • 433 Do design agrave arte a metaacutefora epistemoloacutegica e os objetos sensiacuteveis
                                                        • 5 A PRODUCcedilAtildeO DE OBJETOS NO MUNDO SENSIacuteVEL
                                                          • 51 Pontos focais na arte Andy Warhol e Marcel Duchamp
                                                          • 52 Ponto focal no design Philippe Starck
                                                            • CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
                                                              • PAacuteGINAS POacuteS-TEXTUAIS
                                                                • REFEREcircNCIAS
                                                                      1. Button 100
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Page 4: Os fundamentos ontológicos das relações entre design e arte

Para Alice e Janaiacutena

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais que transformaram seus sonhos e projetos nos meus

Agrave Alice pelas leituras atentas criacuteticas isentas e apoio incondicional

Agrave Janaiacutena e ao Thiago por continuarem acreditando

Ao Alecir por todas as horas de companheirismo e reflexotildees sobre ontologia e outras ldquometafiacutesicasrdquo

Ao Felipe pela parceria e pelas traduccedilotildees

Agrave Luciana por seu apoio e disponibilidade

Ao Claacuteudio Santos Ricardo Portilho e Vacircnia Myrrha pelas referecircncias bibliograacuteficas

Ao Professor Dijon De Moraes pelo apoio e orientaccedilatildeo inclusive nos difiacuteceis momentos finais

Ao Professor Gui Bonsiepe por gentilmente ceder o manuscrito de uma conferecircncia de sua autoria antes de sua publicaccedilatildeo

Ao Professor Seacutergio Antocircnio por toda generosidade e estiacutemulo

Agrave Professora Rita Ribeiro por insistir comigo sobre a relevacircncia de Flusser

Ao Professor Ricardo Fenati que me despertou do ldquosono dogmaacuteticordquo para a epistemologia

Agrave Professora Virginia Figueiredo que abriu meus olhos para a esteacutetica claacutessica

Ao Professor Rodrigo Duarte por me apresentar ao pensamento de Arthur Danto

Aos Professores Gustavo Arauacutejo Ana Arauacutejo e Raquel Teles Yehezkel pelos ensinamentos de grego latim e hebraico

Ao Professor Paulo Bernardo Ferreira Vaz pelas valiosas sugestotildees

Agrave Professora Angeacutelica Adverse pelas inumeraacuteveis e detalhadas sugestotildees

Ao Rodrigo Stenner pela dedicaccedilatildeo competecircncia e carinho

Aos estudantes da Escola de Design da uemg com os quais aprendi muito

Ao ppgd da Escola de Design da uemg que me acolheu desde 2009

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenaccedilatildeo de Aperfeiccediloamento de Pessoal de Niacutevel Superior ndash Brasil (CAPES) ndash Coacutedigo de Financiamento 001

Natildeo somos daqueles que soacute em meio aos livros estimulados por

livros vecircm a ter pensamentos mdash eacute nosso haacutebito pensar ao ar

livre andando saltando subindo danccedilando preferivelmente

em montes solitaacuterios ou proacuteximos ao mar onde mesmo as

trilhas se tornam pensativas

nietzsche mdash a gaia ciecircncia

RESUMO

SILVA S L Os fundamentos ontoloacutegicos das relaccedilotildees entre design e arte 2019

224 f Tese (Doutorado) ndash Escola de Design Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Design da

Universidade do Estado de Minas Gerais Belo Horizonte 2019

Esta tese aborda os fundamentos das relaccedilotildees entre design e arte investigando especi-

ficamente suas estruturas ontoloacutegicas Seu pressuposto eacute que design e arte satildeo campos

distintos e criam conceitos e objetos em categorias tambeacutem ontologicamente distintas

Aleacutem disso design e arte estabelecem interlocuccedilatildeo e conduzem para seus espaccedilos de

atuaccedilatildeo especiacutefica elementos conceituais empregados por ambos os campos cujos em-

briotildees remontam ao pensamento grego antigo O objetivo eacute explicitar tais fundamentos

compartilhados a partir da seleccedilatildeo e do estudo especiacutefico dos conceitos de ldquomiacutemesisrdquo de

ldquobelordquo versus ldquouacutetilrdquo e de ldquofim em si mesmordquo e do ldquodiscurso epidiacutecticordquo extraiacutedos da obra de

Aristoacuteteles O meacutetodo se divide em quatro etapas A primeira parte das origens platocircnicas

da cisatildeo e hierarquizaccedilatildeo da ciecircncia teacutecnica e arte contrapotildee as reflexotildees epistemoloacutegicas

de Alexandre Koyreacute Tomaacutes Maldonado Gui Bonsiepe Beat Schneider Rafael Cardoso

e Vileacutem Flusser estabelecendo as consequecircncias para o design e para a arte A segunda

apoiada nas reflexotildees de Kant Thierry de Duve Heidegger e Lacoue-Labarthe avanccedila

no acircmbito esteacutetico e ontoloacutegico ampliando a compreensatildeo dos objetos do design a partir

das obras de arte A terceira reelabora os conceitos aristoteacutelicos para o design e para a arte

contemporacircnea com o suporte teoacuterico de Arthur Danto Umberto Eco e Nietzsche A

quarta rastreia nos projetos de Philippe Starck e nas obras de Andy Warhol os conceitos

teoricamente reelaborados na etapa anterior comprovando a relevacircncia de seus funda-

mentos ontoloacutegicos na praacutetica contemporacircnea

Palavras-chave Teoria e Criacutetica do Design Ontologia Metafiacutesica Epistemologia Esteacute-

tica Comunicaccedilatildeo

ABSTRACT

SILVA S L The ontological foundations of the relations between design and art 2019

224 f Thesis (Doctorate) ndash Escola de Design Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Design

da Universidade do Estado de Minas Gerais Belo Horizonte 2019

This thesis approaches the foundations of the relations between design and art focusing

on its ontological structures Its assumption is that design and art are distinct fields and

create concepts and objects in categories ontologically distinct as well In addition de-

sign and art establish interlocution and lead to their specific spaces of action conceptual

elements employed by both fields whose embryos go back to ancient Greek thought The

objective is to expose such shared foundations on the basis of the concepts of ldquomimesisrdquo

ldquobeautifulrdquo versus ldquousefulrdquo the ldquoend in itself rdquo and the ldquoepidictic discourserdquo extracted from

the work of Aristotle The method was divided into four stages The first stage takes into

consideration the Platonic origins of the split and hierarchy of science technique and

art contrasting the epistemological reflections of Alexandre Koyreacute Tomaacutes Maldonado

Gui Bonsiepe Beat Schneider Rafael Cardoso and Vileacutem Flusser then establishing the

consequences for the design and for the art The second stage based on the reflections

of Kant Thierry de Duve Heidegger and Lacoue-Labarthe advances in the aesthetic

and ontological scope extending the understanding of the objects of the design from

the works of art The third stage reworked the Aristotelian concepts for the design and

for contemporary art with the theoretical support of Arthur Danto Umberto Eco and

Nietzsche The fourth stage investigates the projects of Philippe Starck and in the works

of Andy Warhol the concepts theoretically reworked in the previous stage proving the

relevance of its ontological foundations in contemporary practice

Key words Theory and Critique of Design Ontology Metaphysics Epistemology

Aesthetics Communication

LISTA DE ILUSTRACcedilOtildeES

Figura 1 Representaccedilatildeo de aacutereas articuladas na tese Dentro da aacuterea azul se situam

outros campos de atuaccedilatildeo da filosofia natildeo representados Ciecircncia teacutecnica e

arte natildeo estatildeo representados como aacutereas mas como objetos de estudo fonte

autor 24

Figura 2 Linha do tempo indicando desdobramento do conceito grego de poacuteiesis (pro-

duccedilatildeo) em episteacuteme (ciecircncia) e teacutekhne (arte) e posteriormente sua divisatildeo em

ciecircncia teacutecnica e arte em seus sentidos modernos fonte autor 45

Figura 3 Linha do tempo indicando os sucessivos desdobramentos do conceito de

poacuteiesis (produccedilatildeo) no periacuteodo claacutessico greco-latino fonte autor 61

Figura 4 Representaccedilatildeo das trecircs categorias de produccedilatildeo e a relaccedilatildeo das produccedilotildees huma-

nas (teacutekhne e episteacuteme) com seus fundamentos teoacutericos fonte autor 61

Figura 5 Representaccedilatildeo na teoria platocircnica do primeiro niacutevel ontoloacutegico e seu pro-

dutor o demiurgo ou artiacutefice natural fonte autor 68

Figura 6 Representaccedilatildeo na teoria platocircnica do segundo niacutevel ontoloacutegico e seu produtor

o artiacutefice humano fonte autor 69

Figura 7 Representaccedilatildeo dos trecircs niacuteveis ontoloacutegicos reunidos na hierarquia da metafiacutesica

platocircnica O artiacutefice natural e os artiacutefices humanos como o marceneiro satildeo

produtores (poieteacutes ποιητής) enquanto que os artistas como o pintor o poeta

e o ator satildeo apenas imitadores (mimeteacutes μιμητής) fonte autor 69

Figura 8 Linha do tempo indicando desdobramento do conceito grego de poacuteiesis

(produccedilatildeo) em episteacuteme (ciecircncia) e teacutekhne (arte) Apoacutes a cisatildeo entre ciecircncia

teacutecnica e arte se incorpora a tecnologia um elo de ligaccedilatildeo teoacuterico entre ciecircncia

e teacutecnica fonte autor 74

Figura 9 Linha do tempo acrescentando o design com as influecircncias que esse campo

acolheu e as conexotildees que Flusser propotildee como desdobramento de suas ati-

vidades fonte autor 96

Figura 10 Linha do tempo incluindo aleacutem da ligaccedilatildeo entre ciecircncia e natureza a proposta

de Flusser para a ligaccedilatildeo entre design e natureza fonte autor 100

Figura 11 Representaccedilatildeo das esferas da ontologia e da gnoseologia e dos movimentos

de reflexatildeo que precisamos empreender em cada um desses campos para

identificar as caracteriacutesticas dos artefatos fonte autor 107

Figura 12 Representaccedilatildeo da etapa de centralizaccedilatildeo da investigaccedilatildeo na esfera da esteacutetica

em sua relaccedilatildeo com a da gnoseologia e ontologia fonte autor 112

Figura 13 Esquema da interpretaccedilatildeo de Thierry de Duve da posiccedilotildees de Clement Green-

berg e Joseph Kosuth em relaccedilatildeo agrave arte e agrave esteacutetica fonte autor 115

Figura 14 Esquema da interpretaccedilatildeo de Thierry De Duve dos acrocircnimos act e art

criados por Ian e Elaine Baxter fonte autor 116

Figura 15 Fotografia da performance (1962) de George Maciunas para Jackson Mac

Low fonte momaorg 117

Figura 16 Fotografia da obra de Robert Rauschenberg (1953) criada apagando um de-

senho do artista Willem de Kooning fonte momaorg 117

Figura 17 Fotografia de obra sem tiacutetulo (1967) de Christine Koslov a partir de um rolo

de filme virgem A legenda na tampa da lata tem a inscriccedilatildeo ldquoTransparent

Film nordm2 ndash White 100ft 16mm ndash 1967rdquo fonte henry-mooreorg 117

Figura 18 Esquema dos obstaacuteculos a cada posiccedilatildeo act e art que as impedem de

cumprir seus objetivos plenamente fonte autor 118

Figura 19 Esquema do caso extremo cuja consequecircncia segundo Thierry de Duve pro-

veacutem das posiccedilotildees adotadas por Greenberg e Kosuth fonte autor 119

Figura 20 Esquema da antinomia do gosto kantiana fonte autor 120

Figura 21 Esquema da resoluccedilatildeo da antinomia do gosto kantiana fonte autor 120

Figura 22 Esquema da apropriaccedilatildeo e transferecircncia feita por Thierry de Duve da resolu-

ccedilatildeo da antinomia do gosto kantiana para o universo da arte contemporacircnea

fonte autor 121

Figura 23 Esquema da apropriaccedilatildeo e transferecircncia da resoluccedilatildeo da antinomia do gosto

kantiana para o design fonte autor 127

Figura 24 Representaccedilatildeo da associaccedilatildeo entre os conceitos gregos de Phyacutesis e Teacutekhne e

os conceitos heideggerianos de Terra e Mundo fonte autor 135

Figura 25 Diagramas das conexotildees entre os conceitos de criatividade criaccedilatildeo e design

As setas em ciacuterculo indicam que natildeo existe um ponto inicial ou final mas

apenas circularidade entre os conceitos fonte autor 144

Figura 26 Diagrama da separaccedilatildeo ontoloacutegica entre essecircncia e aparecircncia em Platatildeo (es-

querda) e sua indistinccedilatildeo em Aristoacuteteles (direita) que conduz a um conceito

de miacutemesis diferenciado e potencialmente capaz de abarcar o universal com

consequecircncias relevantes para a arte e o design fonte autor 148

Figura 27 Imagem ampliada da estrutura bioloacutegica de um carrapicho (esquerda) e de-

talhe do projeto de George de Mestral do Velcro para registro de patente da

invenccedilatildeo (direita) fontes designculturecombr e google patents

com 152

Figura 28 Imagem com detalhe do projeto de Leonard Duffy do New Velcro para registro

de patente da invenccedilatildeo fonte google patentscom 154

Figura 29 Linha do tempo que mostra as trecircs conexotildees que partem da phyacutesis episteacuteme

e teacutekhne possibilitando sua ligaccedilatildeo com o design na atualidade atraveacutes do

conceito de miacutemesis fonte autor 154

Figura 30 Esquema da oposiccedilatildeo entre representaccedilatildeo e reapresentaccedilatildeo conforme a criacutetica

nietzschiana ao programa euripidiano fonte autor 157

Figura 31 Esquema do Dilema de Euriacutepedes e a dificuldade segundo Danto de se en-

contrar uma definiccedilatildeo para obra de arte fonte autor 158

Figura 32 Esquema do entrelaccedilamento da miacutemesis e da contramiacutemesis com a comple-

mentaridade solucionando o dilema entre continuidade e descontinuidade

da arte com o real fonte autor 159

Figura 33 Fotografia do espremedor de frutas Juicy Salif (1990) de Philippe Starck

projetado para a empresa italiana Alessi fonte alessicom 161

Figura 34 Linha do tempo indicando o conceito de fim em si mesmo (linha 2) em um

caminho inverso ao da ldquoPonte Flusserianardquo partindo da arte em direccedilatildeo ao

design fonte autor 163

Figura 35 Fotografia de A fonte (1917) de Marcel Duchamp fonte tateorg 165

Figura 36 Esquema das origens e movimentos dos discursos aberto e persuasivo em suas

conexotildees com a arte a comunicaccedilatildeo e o design fonte autor 167

Figura 37 Fotografias da Brillo box (1964) e dos 32 quadros das latas de sopa Campbell

(1962) criados por Andy Warhol fonte momaorg 171

Figura 38 Esquema dos dois sentidos de apropriaccedilatildeo da arte e do design fonte

autor 171

Figura 39 Reproduccedilatildeo da pintura O beijo (1961) de Roy Lichtenstein fonte ima-

geduplicatorcom 176

Figura 40 Fotografia da instalaccedilatildeo Warhol (1964) Stable Gallery Nova York fonte

revista ars 177

Figura 41 Fotografias de A fonte (1917) de Marcel Duchamp (esquerda) e da Brillo Box

(1964) de Andy Warhol (direita) fontes tateorg e momaorg 185

Figura 42 Reproduccedilatildeo do quadro 200 notas de um dolar (1962) de Andy warhol

fonte sothebyscom 187

Figura 43 Fotografia do espremedor de frutas da Alessi impressa na embalagem do

produto fonte alessicom 190

Figura 44 Fotografia da espaacutetula para bolo Ceci nrsquoest pas une truelle (1998) de Philippe

Starck projetada para a Alessi fonte alessicom 193

Figura 45 Reproduccedilatildeo da pintura A traiccedilatildeo das imagens (1929) de Reneacute Magritte

fonte lacmaorg 194

Figura 46 Figura 46 Fotografia de uma das esculturas Paacutessaro no Espaccedilo (1928) de

Constantin Brancusi (esquerda) e fotografia da escova de dentes Dr Kiss

(1996) de Philippe Starck (direita) fonte momaorg

Figura 47 Esquema da possibilidade de o designer se movimentar entre ciecircncia e arte

enquanto a ponte do design se manteacutem estruturada fonte autor 196

Figura 48 Fotografia da cadeira La Marie (1998) de Philippe Starck projetada para a

empresa Kartell fonte kartellcom 197

Figura 49 Fotografia do banco WW (1990) de Philippe Starck projetado para o cineasta

Wim Wenders e produzido pela empresa Vitra fonte starckcom 203

LISTA DE FONTES NA INTERNET

alessicom Web Site Alessi lt wwwalessicom gt

designculturecombr Web Site Design Culture lt wwwdesignculturecombr gt

google patents Web Site Google Patentslt httpspatentsgooglecom gt

henri-mooreorg Web Site Henry Moore Foundation lt wwwhenry-mooreorg gt

imageduplicatorcom Web Site Image Duplicator lt wwwimageduplicatorcom gt

kartellcom Web Site Kartell companylt wwwkartellcomgt

lacmaorg Web Site Los Angeles County Museum of Artlt wwwlacmaorg gt

momaorg Web Site Museum of Modern Art lt wwwmomaorg gt

revista ars Web Site Revista Ars (ECAUSP)lt www2ecauspbrcaparshtm gt

sothebyscom Web Site Sothebyrsquoslt wwwsothebyscom gt

starckcom Web Site Phillipe Starcklt wwwstarckcom gt

tateorg Web Site Galleries Tatelt wwwtateorguk gt

SUMAacuteRIO

1 INTRODUCcedilAtildeO 16

11 Estrutura do texto 16

12 Percursos preacutevios 25

13 Questotildees norteadoras 32

2 ORIGENS E CONSEQUEcircNCIAS DA HIERARQUIZACcedilAtildeO DA CIEcircNCIA

TEacuteCNICA E ARTE 53

21 A essecircncia compartilhada de quatro conceitos gregos 54

211 Phyacutesis 54

212 Poacuteiesis 56

213 Teacutekhne 58

214 Episteacuteme 60

22 Hierarquia platocircnica cisatildeo e ruptura 62

221 A metafiacutesica impliacutecita ao tema da cidade ideal 65

222 O argumento ontoloacutegico contra a arte mimeacutetica 66

223 Desdobramentos da hierarquizaccedilatildeo do conhecimento 72

23 Design entre ciecircncia teacutecnica e arte 78

231 Afastamentos aproximaccedilotildees e interaccedilotildees 80

232 Artifiacutecios fronteiras moacuteveis e pontes 86

233 Essecircncia ontoloacutegica e epistemoloacutegica 101

3 DA ESTEacuteTICA Agrave ONTOLOGIA NA ARTE E NO DESIGN 111

31 Kant e a abordagem esteacutetica na arte e no design 113

311 Subjetividade e objetividade no territoacuterio da arte 114

312 Os conceitos de act e art 115

313 Antinomia e dilema 118

314 Uma releitura de Kant do belo agrave arte 119

315 Uma soluccedilatildeo incompleta ou a incompletude como soluccedilatildeo 121

316 Subjetividade e objetividade no territoacuterio do design 123

317 Outra releitura de Kant da arte ao design 123

318 A universalidade objetiva no design 125

319 A universalidade subjetiva no design 126

32 Heidegger e o vieacutes ontoloacutegico na arte e no design 129

321 O giro em direccedilatildeo agrave ontologia 130

322 A criacutetica a Platatildeo a arte natildeo eacute imitaccedilatildeo 132

323 Poacuteiesis como produccedilatildeo phyacutesis como terra e teacutekhne como mundo 134

324 Os trecircs modos de produccedilatildeo e sua influecircncia sobre o design 136

325 O design aleacutem da instrumentalidade e da utilidade 141

4 OS CONCEITOS ARISTOTEacuteLICOS NO DESIGN E NA ARTE 143

41 O fundamento ontoloacutegico do conceito de miacutemesis 144

411 A inversatildeo aristoteacutelica miacutemesis mediadora ativa e criativa 145

412 A alianccedila entre universalidade verdade e arte poeacutetica 147

413 As relaccedilotildees entre miacutemesis teacutekhne e phyacutesis 149

42 Deslocamento do conceito de miacutemesis e sua contribuiccedilatildeo ao design e agrave arte 150

421 A miacutemesis exoacutegena no design acreacutescimo e processo agrave natureza 151

422 A miacutemesis endoacutegena no design adaptaccedilatildeo e evoluccedilatildeo 153

423 A miacutemesis complementar na arte saiacuteda para o dilema de Euriacutepedes 155

43 Ampliaccedilatildeo das determinaccedilotildees ontoloacutegicas nas relaccedilotildees entre design e arte 159

431 Da arte ao design o conceito de ldquofim em si mesmordquo 160

432 Da arte ao design o discurso aberto e o persuasivo epidiacutectico 163

433 Do design agrave arte a metaacutefora epistemoloacutegica e os objetos sensiacuteveis 167

5 A PRODUCcedilAtildeO DE OBJETOS NO MUNDO SENSIacuteVEL 173

51 ldquoPontos focaisrdquo na arte Andy Warhol e Marcel Duchamp 175

52 ldquoPonto focalrdquo no design Philippe Starck 188

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS 204

REFEREcircNCIAS 213

16

1 INTRODUCcedilAtildeO

Neste capiacutetulo a primeira seccedilatildeo Estrutura do texto explicita elementos que compotildeem

formalmente a escrita da tese como o modo de transliteraccedilatildeo de palavras de origem grega

o uso de imagens e graacuteficos e a definiccedilatildeo de alguns poucos termos de origem filosoacutefica

empregados na teoria subjacente agrave arte e ao design imprescindiacuteveis agrave compreensatildeo do

texto que os segue Em seguida os Percursos preacutevios resgatam e narram os motivos pelos

quais me debrucei haacute alguns anos sobre uma questatildeo e ainda hoje percorro os caminhos

para a sua compreensatildeo A seccedilatildeo seguinte Questotildees norteadoras apresenta e delimita tema

objetivo pressuposto hipoacutetese e demais elementos conceituais que fornecem o escopo da

tese Assim os Percursos apresentam uma narrativa de cunho pessoal na primeira pessoa

do singular e em seguida o discurso vai para o plural considerando que a tese propotildee

minhas reflexotildees em conjunto com as contribuiccedilotildees de meu orientador e de todos aqueles

que de algum modo deram suporte ao texto final

11 Estrutura do texto

Em escritos de ciecircncias humanas e sociais especialmente em reflexotildees de cunho filosoacutefico

eacute pouco comum o uso de diagramas ou ilustraccedilotildees mesmo quando o autor em se tratando

da aacuterea de esteacutetica cita uma obra de artista expondo seus detalhes A quase exclusividade

do uso das palavras eacute uma tradiccedilatildeo que garante ao escritor um controle miacutenimo sobre seu

discurso e argumentaccedilatildeo e aos potenciais leitores uma reduccedilatildeo nas possibilidades her-

menecircuticas minimizando interpretaccedilotildees duvidosas As exceccedilotildees ocorrem por exemplo

em textos de loacutegica onde o uso de diagramas tem uma funccedilatildeo correlata agrave das equaccedilotildees

em trabalhos de matemaacutetica permitindo condensar cadeias de raciociacutenio mais extensas

e apresentar uma visatildeo do todo em determinada questatildeo sem introduzir ambiguidade

Temos em conta esses fatores mas a tese se estabelece no territoacuterio do design disciplina

que tem como um de seus ramos mais proeminentes o design graacutefico e a infografia Como

defende o designer Gui Bonsiepe

17

Pode-se cair facilmente na armadilha de uma tendecircncia antivisual quando a teoria privilegia exclusivamente a linguagem ou mais ainda declara a lingua-gem como uacutenica forma epistecircmica A partir do chamado lsquogiro visualrsquo (iconic turn) nas ciecircncias que foi possibilitado pelo desenvolvimento da tecnologia digital e da informaacutetica o domiacutenio visual passou a ser reconhecido como um domiacutenio constitutivo epistemoloacutegico A pretensatildeo absolutista da linguagem como forma primordial do conhecimento vem perdendo espaccedilo embora ainda represente uma tradiccedilatildeo poderosa uma fortaleza institucional da discursivida-de Essa tradiccedilatildeo cria consideraacuteveis dificuldades para o avanccedilo da visualidade (bonsiepe 2011 p 184)

Neste sentido consideramos oportuno e optamos pelo uso de ilustraccedilotildees com caraacuteter

complementar ao texto como normalmente acontece no uso de infograacuteficos desenhos

e fotografias

Palavras de origem grega costumam ser transliteradas com grafias diversas por autores

de diferentes liacutenguas Por exemplo τέχνη aparece nas citaccedilotildees ora como teacuteckne ora como

teacutekhne e ateacute como techne Mantivemos a escolha de cada autor nas citaccedilotildees e optamos por

unificar somente a nossa grafia1

A nomenclatura associada a teorias princiacutepios e conceitos especialmente aqueles

advindos da filosofia utilizados por autores de aacutereas correlatas (apesar de estar firme-

mente estabelecida nos territoacuterios da esteacutetica e da arte) natildeo estaacute necessariamente ligada

agrave praacutetica do design No entanto com a ampliaccedilatildeo dos trabalhos teoacutericos desse campo

cada vez mais se faz presente nas suas pesquisas Poreacutem termos que derivam da filosofia

sofrem alteraccedilotildees e ganham definiccedilotildees divergentes ao serem empregados por pensadores

de diversas eacutepocas e com distintas posiccedilotildees ideoloacutegicas Assim decidimos apresentar

imediatamente uma lista com os termos e expressotildees mais recorrentes na tese para re-

duzir equiacutevocos hermenecircuticos e ambiguidades e ao mesmo tempo indicar algumas de

nossas filiaccedilotildees ideoloacutegicas dentro da filosofia do design e da arte tornando mais claros

os motivos de nossas posiccedilotildees e escolhas metodoloacutegicas

bull Epistemologia filosofia da ciecircncia teoria do conhecimento e gnoseologia mdash Joseacute

Ferrater Mora (1979) em seu Diccionario de filosofia afirma que epistemologia pode

ser entendida como sinocircnimo de teoria do conhecimento e de gnoseologia No entanto

1 Na transliteraccedilatildeo do alfabeto grego para o latino nos apoiamos na Gramaacutetica Grega de Antocircnio Freire S J (freire 1997) e no meacutetodo Hellenikaacute (brandatildeo saraiva lage 2005)

18

com a tendecircncia a se aproximar gnoseologia de teoria do conhecimento em seu

sentido de conhecimento geral a epistemologia passou a ser compreendida como

teoria do conhecimento cientiacutefico tendo como referecircncias as questotildees que provecircm

especificamente das ciecircncias No Dicionaacuterio filosoacutefico Comte-Sponville (2011) reforccedila

esta distinccedilatildeo e delimita mais os trecircs termos

[Epistemologia] eacute a parte da filosofia que versa sobre uma ou vaacuterias ciecircncias em particular e natildeo sobre o saber geral (teoria do conhecimento gnoseologia)Uma teoria do conhecimento se situaria a montante do saber ela se pergunta em que condiccedilotildees as ciecircncias satildeo possiacuteveis Uma epistemologia a jusante ela se interroga menos sobre as condiccedilotildees das ciecircncias do que sobre sua histoacuteria seus meacutetodos seus conceitos seus paradigmas Seraacute quase sempre regional ou plural (a epistemologia da matemaacutetica natildeo eacute a da fiacutesica que natildeo eacute a da biolo-gia) Eacute filosofia aplicada como quase sempre eacute poreacutem mais no terreno das ciecircncias do que no seu O epistemoacutelogo acampa em terra estrangeira (em geral eacute um cientista que se lanccedilou na filosofia ou um filoacutesofo que se interessa pelas ciecircncias) (comte-sponville 2011 p 196-197)

Na tese nos apoiamos na delimitaccedilatildeo de Comte-Sponville para assumir a epistemologia

como um campo regional inserido dentro da teoria do conhecimentognoseologia

e portanto limitado aos estudos daquelas aacutereas que se assumiram e se entendem

como ciecircncia ou derivadas dela como eacute o caso da teacutecnica E a teoria do conheci-

mentognoseologia como a aacuterea de abrangecircncia maior refletindo sobre as condiccedilotildees

das ciecircncias ou seja suas possibilidades origens e essecircncia2 Por uacuteltimo Filosofia da

2 Essa divisatildeo mdash em origem possibilidade e essecircncia mdash eacute relevante para a constituiccedilatildeo de uma teoria do design Johannes Hessen (2000) em seu livro Teoria do conhecimento apresenta essa triacuteade subdivi-dindo-a em inuacutemeras posiccedilotildees e representantes que se firmaram ao longo da histoacuteria do pensamento Assim a origem do conhecimento eacute compreendida a partir das posiccedilotildees do dogmatismo ceticismo relativismo pragmatismo e criticismo A possibilidade do conhecimento a partir do racionalismo em-pirismo intelectualismo e apriorismo E a essecircncia do conhecimento a partir do objetivismo subjeti-vismo realismo idealismo e fenomenalismo Portanto quando se faz a distinccedilatildeo entre os problemas do conhecimento em seu acircmbito geral e preacutevio agraves ciecircncias daquelas questotildees que se estabelecem no interior de ciecircncias jaacute fundadas e de outros campos de pesquisa pressupotildee-se a adesatildeo por parte dos pesquisadores a cada uma das posiccedilotildees gnoseoloacutegicas anteriores Assim por exemplo no acircmbito do design quando Maldonado (2012) refletindo sobre a teacutecnica afirma que ldquoDessauer deixa subenten-dido mdash platocircnica e aristotelicamente mdash que as formas dos objetos teacutecnicos jaacute estariam presentes em um cataacutelogo ideal das formas preexistentes E que a teacutecnica natildeo faria outra coisa a natildeo ser deixaacute-las expliacutecitasrdquo (maldonado 2012 p 153) ele claramente explora as posiccedilotildees gnoseoloacutegicas assumidas por Dessauer correlacionando-as com as suas em busca de fundamentar atraveacutes da teoria do conhe-cimento sua proacutepria epistemologia sobre a teacutecnica no design

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ciecircncia eacute uma expressatildeo que natildeo consta como verbete nas mais de 3500 paacuteginas do

dicionaacuterio de Ferrater Mora (1979) nem no dicionaacuterio de Comte-Sponville (2011)

mas que estaacute associada agraves investigaccedilotildees acerca das estruturas das teorias cientiacuteficas

modernas e contemporacircneas como ocorre com epistemologia Apesar da natildeo expli-

citaccedilatildeo em verbete Ferrater Mora ao expor o pensamento de epistemoacutelogos como

Alexandre Koyreacute Karl Popper e Thomas Kuhn aponta a filosofia da ciecircncia como

aacuterea de atuaccedilatildeo desses estudiosos A relevacircncia dessa aacuterea aumenta uma vez que

teoacutericos do design como Tomaacutes Maldonado (2012) confirmam sua atuaccedilatildeo dentro

dela No caso de Maldonado como suas investigaccedilotildees avanccedilam em direccedilatildeo a temas

especiacuteficos da teacutecnica que nos interessam dialogando com autores como Koyreacute e

Kuhn entre outros3 esse autor inclui como aacuterea de sua atuaccedilatildeo aleacutem da filosofia

da ciecircncia a filosofia da teacutecnica de uso menos comum Na tese optamos pelo uso

de epistemologia para a maioria das situaccedilotildees mas entendemos filosofia da ciecircncia

como um sinocircnimo de epistemologia

bull Ontologia mdash Aacuterea da filosofia que estuda o ser ou os entes em sua generalidade O

historiador da filosofia Pierre Aubenque (2012) em seu livro O problema do ser em

Aristoacuteteles nos alerta para dificuldades de diversas ordens que se enfrenta quando o

tema de estudo eacute a ontologia

Porque vivemos no pensamento aristoteacutelico do ser mdash isso seria somente porque ele reflete na gramaacutetica de inspiraccedilatildeo aristoteacutelica atraveacutes da qual pensamos e falamos nossa linguagem mdash desaprendemos a perceber o que havia de sur-preendente e talvez de eternamente surpreendente na questatildeo O que eacute o ser Eacute por isso que parece interessante nos perguntarmos por que Aristoacuteteles fez essa questatildeo que natildeo eacute evidente e como chegou a fazecirc-la enquanto tal O problema do ser eacute o mais problemaacutetico dos problemas natildeo somente no sentido de que ele natildeo seraacute talvez jamais inteiramente respondido mas no sentido de que eacute jaacute um problema de saber por que noacutes nos questionamos acerca desse problema (aubenque 2012 p 22)

3 No livro Cultura sociedade e teacutecnica (2012) a lista de autores oriundos da filosofia da ciecircncia com os quais Maldonado manteacutem interlocuccedilatildeo eacute longa Entre aqueles citados por Maldonado que produziram obras em temas subsidiaacuterios da tese merecem destaque (aleacutem de Alexandre Koyreacute e Thomas Kuhn) o disciacutepulo de Karl Popper Imre Lakatos e os fiacutesicos Isaac Newton e Werner Heisenberg que tambeacutem fizeram incursotildees em teoria do conhecimento

20

Neste espiacuterito de perplexidade diante da condiccedilatildeo imanente da linguagem do pen-

samento e do ser Umberto Eco (1998) inicia o primeiro capiacutetulo do seu livro Kant

e o ornitorrinco tratando desse problema

Pascal (Fragmento 1655) percebera isso muito bem ldquoNatildeo podemos nos preparar para definir o ser sem incorrer neste absurdo porque natildeo podemos definir uma palavra sem comeccedilarmos pelo termo eacute expresso ou subentendido Entatildeo para definir o ser eacute preciso dizer eacute e assim usar o termo definido na definiccedilatildeordquo O que natildeo eacute o mesmo que dizer com Gorgia que natildeo podemos falar do ser falamos muito dele ateacute demais a natildeo ser que esta palavra maacutegica nos sirva para definir quase tudo mas natildeo seja definida por nada Em semacircntica falariacuteamos de um primitivo o mais primitivo de todos (eco 1998 p 17)

Concordando com Aubenque e Eco assumimos que eacute preciso ir aleacutem desse ldquopro-

blemardquo e falar sobre o ser No entanto a ontologia como os demais ramos da filo-

sofia chega agrave atualidade acumulando diversas variantes de significado derivadas da

trajetoacuteria histoacuterica do pensamento ocidental ao passar pelos estudiosos que vecircm se

dedicando a essa aacuterea e seus temas Assim considerando-a em seu caraacuteter mais geral

ontologia carrega o sentido de reflexatildeo e busca por compreensatildeo da dimensatildeo mais

ampla da realidade em que cada ente que a compotildee (finito ou infinito material ou

imaterial) tem sua existecircncia estabelecida definida e validada ou natildeo dependendo

do modo como cada pesquisador elabora sua teoria Por exemplo se entendermos

a arte como um ente da realidade na concepccedilatildeo platocircnica ela eacute mera imitaccedilatildeo coacute-

pia natildeo existindo enquanto um elemento essencial consequentemente natildeo sendo

legitimada na ontologia proposta por esse pensador Jaacute para a ontologia aristoteacutelica

e tambeacutem para a nossa na tese como a realidade natildeo se estabelece em separado em

um mundo das ideias o mundo sensiacutevel em que vivemos e agimos incluindo a arte

e o design tem existecircncia real ou seja tem fundamento ontoloacutegico

bull Metafiacutesica mdash Androcircnico de Rodes no seacuteculo i aC ao editar as obras de Aristoacuteteles

se deparou com uma seacuterie de livros acerca do ser e dos primeiros princiacutepios e causas

que hoje poderiam ser classificados como escritos de ontologia No entanto como

editor Androcircnico decidiu ordenar esses livros e inseri-los apoacutes o tratado sobre a fiacutesica

com o tiacutetulo de Metagrave tagrave physikaacute (depois da fiacutesica) expressatildeo que natildeo se encontra na

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obra de Aristoacuteteles4 Ocorre que em grego o antepositivo metagrave natildeo se restringe ao

significado de ldquodepois derdquo tendo outras acepccedilotildees como ldquoaleacutem derdquo Com o passar do

tempo o sentido aleacutem de foi incorporado pela tradiccedilatildeo do pensamento ao conceito

de metafiacutesica e essa aacuterea se firmou como aquela que trata dos temas que estatildeo aleacutem

da fiacutesica e das ciecircncias da natureza e tambeacutem de um modo geral dos assuntos que

ultrapassam o conhecimento cientiacutefico ou empiacuterico Uma das possibilidades de

se entender a metafiacutesica eacute consideraacute-la como uma disciplina impossiacutevel enquanto

almejando o conhecimento de uma realidade transcendente Essa eacute por exemplo a

posiccedilatildeo do empirismo (incluindo o positivismo e o neopositivismo ou positivismo

loacutegico contemporacircneo) Outra agrave qual aderimos eacute entendecirc-la natildeo como referente

a uma realidade espiritual ou divina mas como um conjunto de conceitos e prin-

ciacutepios que formam uma base natildeo empiacuterica tatildeo fundamental quanto a experiecircncia

sensiacutevel para a constituiccedilatildeo das ciecircncias e de outros campos Em ciecircncias humanas

e sociais a distinccedilatildeo entre metafiacutesica e ciecircncia talvez seja difiacutecil de se explicitar pelo

proacuteprio entrelaccedilamento dos temas que tecircm como centro de interesse o ser humano

e suas idiossincrasias Poreacutem ao se pensar de modo correlato acerca de uma ciecircncia

da natureza como a fiacutesica (tanto pelas suas caracteriacutesticas empiacutericas e matemaacuteticas

quanto pela sua precedecircncia histoacuterica em relaccedilatildeo agraves demais ciecircncias que se reflete

na evidente distinccedilatildeo morfoloacutegica dos termos originaacuterios fiacutesica e metafiacutesica) acredi-

tamos torna-se mais clara a posiccedilatildeo com a qual nos identificamos e que exploramos

na tese no acircmbito das ciecircncias humanas e sociais Assim um exemplo que aponta

para a concepccedilatildeo com a qual estamos alinhados vem do filoacutesofo da ciecircncia Edwin

Arthur Burtt (1983) em seu livro As bases metafiacutesicas da ciecircncia moderna

Newton natildeo encontrava rival como cientista mdash mas eacute possiacutevel que natildeo estivesse infenso a criacuteticas como metafiacutesico Ele tentou escrupulosamente pelo menos em seu trabalho experimental evitar a metafiacutesica Desprezava as hipoacuteteses que para ele significavam proposiccedilotildees explicativas natildeo-deduzidas imediatamente dos fenocircmenos Ao mesmo tempo seguindo seus ilustres predecessores dava ou presumia respostas definidas a questotildees fundamentais como a natureza

4 O tiacutetulo Metafiacutesica dado agrave obra de Aristoacuteteles eacute complexo e problemaacutetico Tanto que Pierre Aubenque em O problema do ser em Aristoacuteteles (2012) dedica um capiacutetulo inteiro (A ciecircncia sem nome) buscando elucidar suas origens histoacutericas

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do espaccedilo e do tempo e da mateacuteria e as relaccedilotildees do homem com os objetos de seu conhecimento e satildeo justamente essas respostas que constituem a metafiacutesica O fato de que o tratamento por ele dado a estes grandes temas mdash que se impocircs ao mundo culto pelo peso de seu prestiacutegio cientiacutefico mdash cobria-se com a roupagem do positivismo pode ter-se tornado um perigo em si mesmo Tal fato pode ter contribuiacutedo significativamente para insinuar um conjunto de ideacuteias aceitas acriticamente a respeito do mundo no cenaacuterio intelectual comum do homem moderno (burtt 1983 p 24) Itaacutelico nosso

O ldquoperigordquo da roupagem positivista de que nos fala Burtt tambeacutem foi questionado

no neopositivismo contemporacircneo por exemplo por Karl Popper e por Thomas

Kuhn ao proporem concepccedilotildees distintas da ciecircncia atual mas que natildeo abrem matildeo da

metafiacutesica Retornando agraves ciecircncias humanas e sociais compreendemos a metafiacutesica

como um vasto campo no interior da filosofia que inclui conjecturas e hipoacuteteses e

como afirma Burtt (1983 p 24) abriga tambeacutem reflexotildees sobre ldquoas relaccedilotildees do homem

com os objetos de seu conhecimentordquo no nosso caso sobre design e arte Corrobora

nossa posiccedilatildeo o questionamento do historiador da arte e do design Rafael Cardoso

(2016) agraves ideias positivistas amplamente disseminadas nos ciacuterculos da ciecircncia e da

histoacuteria da ciecircncia desde o seacuteculo xix5 e que acabaram por encontrar espaccedilo no

acircmbito de diversas ciecircncias sociais incluindo o design Conforme suas palavras no

livro Design para um mundo complexo

Ao longo do seacuteculo xx o lado criativo do design foi sistematicamente subestimado e ateacute combatido por um ideaacuterio que ansiava firmar a metodologia projetual em bases supostamente cientiacuteficas distanciando-a das artes plaacutesticas e do artesanato Tal postura reflete uma bagagem intelectual positivista bastante rasa herdada do seacuteculo xix junto com o marxismo de panfleto que alguns designers e arqui-tetos modernistas proclamavam a tiacutetulo de ideologia (cardoso 2016 p 245)

5 O epistemoacutelogo Wolgang Stegmuumlller foi preciso ao resumir a criacutetica de Thomas Kuhn agrave visatildeo positivista que passou a permear as concepccedilotildees da historia da ciecircncia no seacuteculo xix com seacuterias consequecircncias para as ciecircncias particulares ldquoAs verdadeiras raiacutezes do movimento positivista estariam segundo Kuhn em outro ponto grosseiramente falando estariam nas introduccedilotildees e nos prefaacutecios de obras de fiacutesica e de quiacutemica do seacuteculo xix Mas natildeo seriam competentes cientistas os autores dessas obras Certamente enquanto cientistas estudiosos de fenocircmenos naturais Lamentavelmente contudo esses autores tambeacutem se julgaram aptos historiadores de suas disciplinas discorrendo naqueles prefaacutecios e naque-las introduccedilotildees a respeito de aspectos da histoacuteria dos assuntos tratados mdash campo que infelizmente ignoravam por completo Assim nasceu uma errocircnea concepccedilatildeo das ciecircncias naturais vistas em sua condiccedilatildeo de manifestaccedilotildees culturais e sociais e assim surgiram os mal-entendidos a propoacutesito da histoacuteria de tais ciecircnciasrdquo (stegmuumlller 1977 v 2 p 361)

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Neste sentido eacute portanto imprescindiacutevel tambeacutem pensar conceitos caros agrave arte e

ao design como os de criaccedilatildeo e criatividade entendendo-os como pertencentes agraves

reflexotildees da metafiacutesica pois satildeo inerentes a ela

bull Esteacutetica mdash O filoacutesofo Rodrigo Duarte (2005) ao discorrer sobre a descontinuidade

das questotildees de esteacutetica em relaccedilatildeo a de outros temas recorda que essa disciplina

nasceu recentemente no seacuteculo xviii Conforme suas palavras

Mesmo considerando que ao longo da histoacuteria as discussotildees esteacuteticas natildeo te-nham tido a mesma continuidade que as eacuteticas ou metafiacutesicas tambeacutem nesse acircmbito haacute questotildees colocadas por Platatildeo e Aristoacuteteles como o tema da miacutemesis por exemplo que ateacute hoje natildeo perderam a relevacircncia sendo mesmo recorrentes atraveacutes dos seacuteculos Quando menciono a descontinuidade na esteacutetica tenho em mente que com o referido nome essa disciplina filosoacutefica eacute um produto tipicamente moderno tendo aparecido pela primeira vez na obra homocircnima de Alexander von Baumgarten de 1750 (duarte 2005 p 377)

Se para Baumgarten o problema da esteacutetica claacutessica se circunscreve ao problema do

belo para Comte-Sponville (2011) a esteacutetica contemporacircnea recoloca a questatildeo em

outro contexto e com elementos diversos

ldquoEsteacutetica mdash O estudo ou a teoria do belo Considera-se habitualmente que eacute muito mais uma parte da filosofia do que das Belas-Artes Eacute justo O conceito de belo natildeo eacute belo O conceito de obra de arte natildeo eacute uma obra de arte Eacute por isso que os artistas desconfiam dos esteticistas que tomam o belo por um pensamentordquo (comte-sponville 2011 p 213)

Quanto agrave nossa posiccedilatildeo no desenvolvimento da tese os temas de esteacutetica e nossos

interesses vatildeo aleacutem da questatildeo do belo natildeo somente porque a arte contemporacircnea

ultrapassou sobremaneira esse referencial claacutessico mas porque as proposiccedilotildees esteacuteticas

dizem respeito tambeacutem ao campo do design

Tendo como referecircncia essa lista terminoloacutegica a seguir na figura 1 apresentamos

uma ordenaccedilatildeo e hierarquizaccedilatildeo de algumas das aacutereas da filosofia que seratildeo tematizadas

na tese O graacutefico inclui trecircs objetos de estudo dessas aacutereas mdash ciecircncia teacutecnica e arte mdash mas

natildeo propriamente o design A natildeo explicitaccedilatildeo do design se deve como veremos a certa

indeterminaccedilatildeo desse campo que no estaacutegio atual de seu desenvolvimento tanto pode

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ser abordado como objeto de estudo por qualquer das disciplinas filosoacuteficas do graacutefico

quanto pode ser entendido como pertencendo agrave ciecircncia agrave teacutecnica e agrave arte

Ressaltamos que o graacutefico representa o nosso entendimento e obviamente existem

muitas outras ordenaccedilotildees6 estabelecidas Entre essas classificaccedilotildees encontram-se aque-

las que eliminam aacutereas apresentadas no graacutefico (como a dos empiristas que excluem a

6 As divergecircncias na classificaccedilatildeo das aacutereas da filosofia eacute tatildeo antiga quanto a disciplina De autor para autor somam-se a essas diferentes ordenaccedilotildees o problema dos significados da terminologia adota-dos por cada estudioso gerando inuacutemeras variantes Tal situaccedilatildeo se agrava quando esse arcabouccedilo eacute conduzido para outros campos como o design No entanto a filosofia diversamente de outras aacutereas do conhecimento sempre retorna agraves mesmas questotildees mdash por sua proacutepria escolha e decisatildeo que eacute a de primeiramente problematizar mdash e seu vocabulaacuterio necessitar ser enriquecido enquanto ela estabelece suas proposiccedilotildees Assim novas divisotildees e tambeacutem acepccedilotildees satildeo bem-vindas a esse campo como ocorre em um dicionaacuterio A exemplo disso o dicionaacuterio Ferrater Mora inicia o verbete filosofia afirmando que ldquoentre os problemas que se colocam com relaccedilatildeo agrave filosofia estatildeo (i) o do termo lsquofilosofiarsquo (ii) o da origem da filosofia (iii) o da sua significaccedilatildeo e da divisatildeo da filosofia em diversas disciplinas Desses problemas (iii) eacute o mais discutido e o que ocuparaacute a maior parte do presente verbeterdquo (ferrater mora 1987 v 2 p 1175-1176) Itaacutelico nosso traduccedilatildeo nossa

FILOSOFIA

METAFIacuteSICA

ESTEacuteTICA

ONTOLOGIA

TEORIA

DO CONHECIMENTOGNOSEOLOGIA

EPIST

EMOLO

GIAFILOSOFIA DA CIEcircNCIA

CIEcircNCIAamp

TEacuteCNICAARTE

O SER EOS ENTES EM GERAL

Figura 1 Representaccedilatildeo de aacutereas articuladas na tese Dentro da aacuterea azul se situam outros campos de atuaccedilatildeo da filosofia natildeo representados Ciecircncia teacutecnica e arte natildeo estatildeo representados como aacutereas mas como objetos de estudo fonte autor

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metafiacutesica) ou aquelas que constroem uma hierarquizaccedilatildeo diferente (como a proposta

por Heidegger que retira a ontologia do interior da metafiacutesica e opotildee radicalmente essas

duas aacutereas) De qualquer modo a siacutentese da lista anterior disposta na figura 1 tem seus

propoacutesitos busca esclarecer ao leitor uma hierarquia e um espectro de aacutereas com os quais

identificamos os temas da tese e contribui como uma espeacutecie de fio condutor na demar-

caccedilatildeo do caminho enquanto nos movemos no interior dos capiacutetulos

Uma uacuteltima ressalva deve ser feita com relaccedilatildeo agrave escrita da tese No periacuteodo de sua

elaboraccedilatildeo algumas partes foram apresentadas em congressos e outras submetidas a

perioacutedicos na forma de artigos o que naturalmente produziu criacuteticas ao nosso trabalho

tanto por parte de avaliadores quanto de outros pesquisadores Parte dessas criacuteticas foi

respondida com correccedilotildees de rumo e ajustes no texto Outras pelo seu caraacuteter mais espe-

ciacutefico foram incorporadas na forma de perguntas colocadas por interlocutores hipoteacuteti-

cos e potenciais uma vez que infelizmente na eacutepoca natildeo os pudemos identificar Nesse

sentido tais interlocutores natildeo pretendem ter funccedilatildeo retoacuterica no texto mas assumem

seu papel de questionar nossas posiccedilotildees os quais procuramos responder

12 Percursos preacutevios

No ano de 2005 apoacutes a conclusatildeo de minha especializaccedilatildeo em teoria do conhecimento

com um tema em Descartes na Universidade Federal de Minas Gerais tendo compreen-

dido as consequecircncias problemaacuteticas tanto da visatildeo mecanicista do mundo proposta

pelos racionalistas quanto pela sua contraparte empirista busquei concepccedilotildees diversas

e alternativas Naquele momento voltei minha atenccedilatildeo para as conexotildees existentes entre

ciecircncia teacutecnica criaccedilatildeo e criatividade e elegi o design e a arte como uma nova direccedilatildeo

de trabalho Meus primeiros estudos em design ligavam temas da escrita e da tipografia

com projetos que eu implementava para o mercado editorial e se concretizaram tambeacutem

na dissertaccedilatildeo de mestrado na Escola de Design da Universidade do Estado de Minas

Gerais Paralelamente a esses temas especiacuteficos do design graacutefico e da gnoseologia (aacuterea

preferencial desde minha graduaccedilatildeo) direcionei parte do meu tempo para pesquisas no

campo da esteacutetica claacutessica um territoacuterio naquele momento por mim ainda natildeo explorado

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Assim o primeiro passo foi retornar ao meu departamento de origem e cursar uma

disciplina sobre a Poeacutetica de Aristoacuteteles texto claacutessico cuja leitura eacute obrigatoacuteria em es-

tudos de esteacutetica e cujo autor eu jaacute conhecia de pesquisas anteriores voltadas agrave teoria do

conhecimento e agrave ontologia Uma pergunta me movia mas soacute alcanccedilou uma formulaccedilatildeo

mais clara alguns anos depois em quais tipos de fundamentos eacute possiacutevel compreender as

relaccedilotildees entre design e arte

A decisatildeo de frequentar disciplinas isoladas em esteacutetica e filosofia da arte proporcio-

nou-me o alargamento da visatildeo sobre essa aacuterea Aleacutem disso levou-me ao conviacutevio com

pesquisadores de belas-artes comunicaccedilatildeo letras ciecircncias sociais histoacuteria juntamente

com os originaacuterios da filosofia Como consequecircncia forneceu-me campo feacutertil para a

abordagem e o debate de questotildees que se entrelaccedilam ampliando as possibilidades de

reflexatildeo e produzindo discussotildees com esses pesquisadores elementos essenciais para a

elaboraccedilatildeo de um tema comparativo como o meu

O contato com as reflexotildees de Vileacutem Flusser um caso raro de filoacutesofo que leva o de-

bate para o interior do design natildeo somente acrescentou controveacutersias agraves discussotildees mas

tambeacutem indicou pontos em comum com o meu tema Naquele momento a comunidade

acadecircmica voltava sua atenccedilatildeo para esse autor creio que em parte devido agrave publicaccedilatildeo de

algumas de suas obras ateacute entatildeo ineacuteditas que colocam em pauta filosofia design arte e

comunicaccedilatildeo Seu livro poacutestumo O mundo codificado por uma filosofia do design e da

comunicaccedilatildeo de 2007 revela no proacuteprio tiacutetulo essa conexatildeo e torna-se no meu entendi-

mento uma provocaccedilatildeo agrave filosofia no sentido de desafiaacute-la a pensar questotildees fora de um

confortaacutevel ciacuterculo de conhecimento jaacute estabelecido Outro exemplo eacute a sua conferecircncia

Criaccedilatildeo cientiacutefica e artiacutestica (1982) que apesar de localizar a cisatildeo entre arte e ciecircncia na

modernidade (periacuteodo que considero muito distante no tempo em relaccedilatildeo agrave construccedilatildeo

de uma das minhas hipoacuteteses) reforccedilou a crenccedila no valor da problematizaccedilatildeo da sepa-

raccedilatildeo entre esses dois campos

Como desdobramento dessas leituras cheguei ateacute Rafael Cardoso em seu artigo

Design Cultura material e o fetichismo dos objetos (1998) Cardoso historiador da arte

e do design organiza e prefacia O mundo codificado de Flusser (2005) Ao investigar um

pouco mais encontrei aleacutem de algumas concepccedilotildees concordantes entre esses dois autores

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uma questatildeo relevante para o encaminhamento da tese uma controveacutersia natildeo expliacutecita

que os coloca em posiccedilotildees ontologicamente distintas em relaccedilatildeo ao ato de projetar do

design Neste sentido independentemente das discordacircncias que tenho em relaccedilatildeo agraves

posiccedilotildees de Flusser foi um estiacutemulo encontrar um filoacutesofo disposto a especular sobre o

design colocando esse campo em um lugar de destaque na reflexatildeo teoacuterica e natildeo apenas

no acircmbito da produccedilatildeo

Somou-se a isso a defesa que o teoacuterico do design Bernhard Buumlrdek (2006) faz da filo-

sofia credenciando-a como um dos instrumentos a serem empregados na constituiccedilatildeo de

fundamentos do design Esses autores fortaleceram minha decisatildeo de abordar o problema

das relaccedilotildees entre design e arte com o auxiacutelio de conceitos filosoacuteficos

Uma vez que minha atenccedilatildeo natildeo se restringia ao campo artiacutestico ou do design mas

se concentrava nas bases das relaccedilotildees entre design e arte cursei outras disciplinas que

pudessem contribuir para o entendimento das diferenccedilas entre objetos artiacutesticos e demais

objetos da produccedilatildeo humana As reflexotildees sobre esteacutetica e filosofia da arte em Arthur

Danto cumpriram essa funccedilatildeo na medida em que esse autor em busca da compreensatildeo

do universo da arte contrapotildee objetos de arte a outros objetos como os artefatos e a

atividade de criaccedilatildeo dos artistas a outras atividades Nas suas palavras

Creio que subsistem perplexidades anaacutelogas na anaacuteloga teoria da arte segundo a qual um objeto material (ou artefato) eacute uma obra de arte quando o arcabou-ccedilo institucional do mundo da arte assim o considera A teoria institucional da arte natildeo explica embora permita justificar por que a Fonte de Duchamp passou de mera coisa a obra de arte por que aquele urinol especiacutefico mereceu tatildeo impressionante promoccedilatildeo enquanto outros urinoacuteis obviamente idecircnticos a ele continuaram relegados a uma categoria ontologicamente degradada[7] A teoria deixa ainda em aberto o problema de outros objetos indiscerniacuteveis dos quais um eacute uma obra de arte e o outro natildeo (danto 2005 p 39)

Talvez pelo fato de ter se envolvido anteriormente em questotildees de filosofia analiacutetica

o estilo dialeacutetico como Danto empreende suas anaacutelises esteacuteticas especialmente em seu

livro A transfiguraccedilatildeo do lugar-comum uma filosofia da arte (2005) aleacutem de ser o gatilho

7 Como veremos no capiacutetulo 3 Heidegger natildeo compartilha essa ideia de rebaixamento ontoloacutegico dos demais objetos em relaccedilatildeo agrave arte Ao contraacuterio de Danto para ele a arte eacute essencial para ampliar a compreensatildeo dos chamados objetos utilitaacuterios ou utensiacutelios

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para investigaccedilotildees subsequentes contribuiu para assegurar-me de assumir um pressuposto

ontoloacutegico na pesquisa sem perder de vista os fundamentos gnoseoloacutegicos adquiridos an-

teriormente Nessa trajetoacuteria busquei outros autores que possibilitassem pensar elementos

relacionais ao design e agrave arte na mesma clivagem

Reler a Obra aberta (1988) de Umberto Eco com novos objetivos em mente e um

novo olhar me fez avanccedilar na compreensatildeo de uma das categorias de discursos persuasivos

elaborados por Aristoacuteteles (o epidiacutectico) que se mostrou potencialmente feacutertil para o an-

damento da pesquisa Ao mesmo tempo tal leitura despertou-me para uma convergecircncia

teoacuterica e conceitual diversos estudiosos (entre eles Eco e Danto) ao refletirem sobre os

discursos na comunicaccedilatildeo e as formas de expressatildeo da arte da ciecircncia ou de campos de

algum modo a eles relacionados invariavelmente retornam ao pensamento aristoteacutelico

seja de forma criacutetica ou como fundamento e apoio agraves suas investigaccedilotildees

Assim quando em 2007 cheguei a uma primeira seleccedilatildeo das obras de Aristoacuteteles jaacute

estava orientado para o tema dos discursos aristoteacutelicos assim como para o conceito de

miacutemesis (estudado anteriormente na obra A poeacutetica) entendendo-os como relevantes

para a abordar alguns dos fundamentos das relaccedilotildees entre design e arte Tal recorte

contemplado em duas obras A poeacutetica (1987) e A retoacuterica (1964) foi ampliado em 2010

incluindo A poliacutetica (1986) e A fiacutesica (2009) Essas obras tambeacutem foram essenciais para

a compreensatildeo do que Umberto Eco nomeia como discurso aberto em contraposiccedilatildeo ao

discurso persuasivo em comunicaccedilatildeo

Aleacutem disso A poeacutetica e A fiacutesica forneceram as bases para o entendimento do conceito

aristoteacutelico de miacutemesis um dos elementos centrais na tese A fiacutesica em especial apresenta

o conceito de miacutemesis atrelado aos conceitos gregos de natureza (phyacutesis) e de arte (teacutekh-

ne) Nessa sequecircncia de conexotildees pude compreender como esses trecircs conceitos estatildeo

subsumidos ao conceito mais geral de produccedilatildeocriaccedilatildeo (poacuteiesis) que eacute determinante

para saber como os gregos entendiam as produccedilotildees humanas Mas nesse aspecto o que

eacute mais relevante para o tema e que tambeacutem se encontra no livro A fiacutesica satildeo aquelas

produccedilotildees que se constituem a partir de princiacutepios que estabelecem natildeo um fazer mas

um saber fazer uma teacutekhne dos quais entendo que o design eacute um dos herdeiros tardios

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A compreensatildeo dos fundamentos dessas produccedilotildees se completou com a anaacutelise que

Aristoacuteteles procede na obra A poliacutetica8 sobre as atividades humanas onde ele apresenta a

distinccedilatildeo nos conceitos de coisas uacuteteis coisas belas e de fim em si mesmo Esses conceitos

compotildeem o nuacutecleo da reflexatildeo acerca de caracteriacutesticas distintivas dos objetos de design

e dos objetos artiacutesticos

A partir dessas pesquisas identifiquei um distanciamento entre meus estudos de teoria

do conhecimento e de esteacutetica Essa falta de articulaccedilatildeo entre aacutereas soacute foi compreendida

quando em 2012 pude investigar pensadores alijados da tradiccedilatildeo epistemoloacutegica e criacuteticos

dela como Friedrich Nietzsche e Martin Heidegger Deste modo em um niacutevel subsidiaacuterio

A origem da obra de arte (2004) e A questatildeo da teacutecnica (2007) de Heidegger e O nascimento

da trageacutedia (1992) de Nietzsche contribuem de forma decisiva para a compreensatildeo do

momento histoacuterico da cisatildeo entre ciecircncia e arte no mundo grego Aleacutem disso concorrem

para o entendimento de conceitos gregos fundamentais como o de poacuteiesis phyacutesis episteacuteme

e teacutekhne em interpretaccedilotildees criacuteticas e opostas agrave visatildeo que a epistemologia tradicional tem

dos conceitos contemporacircneos de ciecircncia teacutecnica e arte

Com os estudos que efetuei sobre esses dois pensadores a partir do embate de

concepccedilotildees antinocircmicas pude assegurar-me de uma proposta de mediaccedilatildeo como soluccedilatildeo

de contradiccedilotildees ligadas por exemplo agrave objetividade e subjetividade de campos como o

design e a arte no capiacutetulo 3

Na cadeia de conexotildees retomei tambeacutem um livro de leitura bastante anterior Lingua-

gem e mito (1992) de Ernst Cassirer que fechou o ciacuterculo no diaacutelogo com esses autores

Com isso estabeleci reflexotildees sobre o mito de Prometeu enquanto arqueacutetipo da ciecircncia

e da teacutecnica e o conceito de mediaccedilatildeo como possibilidade de soluccedilatildeo de antinomias que

surgiram ao longo das investigaccedilotildees

Tambeacutem me apoiei em Cassirer na obra Determinism and indeterminism in modern

physics historical and systematic studies of the problem of causality (1956) utilizando sua

8 Do mesmo modo que as questotildees e os conceitos se entrelaccedilam no pensamento antigo as obras claacutessicas natildeo tecircm uma temaacutetica claramente delimitada como passa a ocorrer na modernidade Deste modo encontra-se por exemplo em uma obra com o tiacutetulo de A poliacutetica aleacutem dos temas proacuteprios ao nome questotildees que hoje seriam classificadas dentro da esteacutetica Esse natildeo eacute um procedimento exclusivo de Aristoacuteteles Platatildeo tem um dos momentos cruciais da sua criacutetica ontoloacutegica agrave arte mimeacutetica em sua obra A repuacuteblica

30

interpretaccedilatildeo dos princiacutepios de complementaridade indeterminaccedilatildeo e causalidade na

fiacutesica quacircntica Este autor contribui tanto ao entendimento do conceito de ldquometaacutefora

epistemoloacutegicardquo de Eco aplicada ao mundo da arte mdash em especial a arte contemporacircnea

e as conexotildees que Eco faz com a fiacutesica quacircntica mdash bem como subsidia as minhas apro-

priaccedilotildees e criacuteticas a esses conceitos no design

Por indicaccedilatildeo de meu orientador que identificou a estreita relaccedilatildeo entre os temas da

filosofia da teacutecnica e do design com as reflexotildees de Tomaacutes Maldonado pude acrescentar

autores e temas que subsidiam as minhas consideraccedilotildees sobre as distinccedilotildees entre ciecircncia

teacutecnica arte e design Neste sentido os capiacutetulos Pensar a teacutecnica hoje A ldquoidade projetualrdquo

e Daniel Defoe e Os oacuteculos levados a seacuterio do livro Cultura sociedade e teacutecnica trazem agrave tona

o debate de temas proacuteprios do design que Maldonado (2012) explora em profundidade

Ao construir o quadro geral de autores e temas percebi que o retorno a Aristoacuteteles

estava claramente vinculado a Platatildeo Natildeo era possiacutevel construir os argumentos em tor-

no das minhas posiccedilotildees sem me referir de algum modo agraves concepccedilotildees platocircnicas Essa

necessidade se deu por pelo menos dois motivos

Em primeiro lugar os autores centrais para a constituiccedilatildeo do arcabouccedilo da tese re-

tornam expliacutecita ou implicitamente a Platatildeo Aristoacuteteles trata de forma oposta e criacutetica a

seu mestre os conceitos de arte e de miacutemesis que me interessam Nietzsche e Heidegger

mesmo de modo distinto tambeacutem se insurgem contra Platatildeo e a tradiccedilatildeo ocidental esta-

belecida em torno da concepccedilatildeo de ciecircncia teacutecnica e arte em certo sentido derivada das

influecircncias teoacutericas desse pensador Desses embates extraiacute elementos para compreender

natildeo somente a cisatildeo mas tambeacutem a hierarquizaccedilatildeo entre campos do saber que manti-

nham uma equivalecircncia na antiguidade preacute-platocircnica Na esteira desses autores tambeacutem

se direcionam Eco e Danto tendo em Platatildeo o catalizador inicial de questotildees que movem

o pensamento no Ocidente

Em segundo talvez o mais relevante motivo se as preocupaccedilotildees de Platatildeo satildeo de

ordem gnoseoloacutegica o tratamento que ele oferece para distinguir e hierarquizar ciecircncia

teacutecnica e arte eacute de caraacuteter ontoloacutegico Sua obra A repuacuteblica (1987) mdash especialmente o livro

x mdash traz uma criacutetica radical agrave arte mimeacutetica natildeo sem razatildeo conhecida como a Criacutetica

ontoloacutegica Essa abordagem inevitavelmente obriga aqueles que discordam ou natildeo de

Platatildeo a discutirem a questatildeo passando de algum modo pelo crivo ontoloacutegico

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Quanto a mim jaacute estava persuadido da relevacircncia de uma abordagem que leva em

conta o problema do ser quando investiguei O princiacutepio de causalidade e a prova ontoloacutegica

da existecircncia de Deus em Descartes Mas entre esse estudo realizado haacute mais de 20 anos e

uma trajetoacuteria que culminaria no tema de doutorado soacute me tornei plenamente consciente

da relevacircncia da ontologia em minhas investigaccedilotildees quando o design e a arte se uniram

em um tema de pesquisa Percebi entatildeo seus desdobramentos expliacutecitos ou impliacutecitos em

trabalhos de autores contemporacircneos como Heidegger Danto e Flusser

Ao longo desse percurso em diversos momentos surpreendi-me com algumas con-

tradiccedilotildees A contribuiccedilatildeo de Kant um filoacutesofo das mediaccedilotildees que dirige sua atenccedilatildeo para

antinomias e paradoxos e de seu leitor e interprete contemporacircneo Thierry de Duve

(com suas anaacutelises sobre a guinada na arte contemporacircnea a partir de Marcel Duchamp)

foi determinante para eu natildeo desistir dessa empreitada complexa e guiou-me no caminho

que ultrapassa os limites da esteacutetica e da gnoseologia

Durante o processo de recorte e interconexatildeo entre autores e temas uma uacuteltima

demanda se fez presente ampliar a identificaccedilatildeo dos conceitos teoricamente reelaborados

nos processos do design e na praacutetica artiacutestica No caso da arte o caminho se descortinou

rapidamente uma vez que as reflexotildees de Arthur Danto inserem a Pop-Art como

protagonista Dentro deste contexto Danto elege Andy Warhol como uma de suas

principais referecircncias nas discussotildees sobre arte contemporacircnea Ao ler uma citaccedilatildeo

do escritor Edmund White em um ensaio de Danto tive a certeza de que Warhol natildeo

poderia deixar de ser incluiacutedo

Andy tomou todas as definiccedilotildees concebiacuteveis da palavra arte para desafiaacute-la A arte revela o traccedilo da matildeo do artista Andy optou pela serigrafia Um trabalho de arte eacute um objeto uacutenico Andy surgiu com os muacuteltiplos Um pintor pinta Andy fez cinema A arte eacute divorciada do comercial e do utilitaacuterio Andy se especiali-zou nas latas de sopa Campbell e Notas de Doacutelar A pintura pode ser definida em contraste com a fotografia Andy recicla meras fotografias Um trabalho de arte eacute o que um artista assina prova do seu trabalho criativo de suas intenccedilotildees Andy assinava qualquer objeto (danto 2001 p 106)

Warhol aleacutem de artista e um dos iacutecones da Pop-Art tambeacutem trabalhou no acircmbito

da publicidade e do design e suas obras de arte tecircm a contribuiccedilatildeo e a interseccedilatildeo desses

campos Essa conexatildeo DantondashPop-ArtndashWarhol foi oportuna para o momento de colocar

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a prova no mundo sensiacutevel a tese e o ensaio O filoacutesofo como Andy Warhol (2001) junta-

mente com os livros A filosofia de Andy Warhol (2010) e Popism de Andy Warhol (2010)

deram suporte a esta etapa Para contemplar o design nesse recorte optei por Philippe

Starck Minha intenccedilatildeo foi destacar como no caso da arte um designer reconhecido pelo

conjunto de sua produccedilatildeo que bordeja segundo criacuteticos o universo da arte Os livros

homocircnimos Philippe Starck de Judith Carmel-Arthur (2000) e de Cristina Morozzi

(2012) foram referecircncias em que me apoiei

Essa trajetoacuteria envolve diversos autores que tecircm espectros ideoloacutegicos distintos

Nesse sentido me inspirei na habilidade de Danto e Eco em construir seus raciociacutenios

percorrendo autores e temas na histoacuteria do pensamento Minha intenccedilatildeo eacute balizar cada

uma das contribuiccedilotildees de todos esses autores entendendo os conceitos e princiacutepios

dos quais me aproprio e que uma vez adaptados ou alterados para o propoacutesito da tese

proporcionam parte da base para o percurso empreendido

13 Questotildees norteadoras

As relaccedilotildees que diversos campos cientiacuteficos e tecnoloacutegicos tecircm estabelecido entre si

tornam-se cada vez mais objeto de reflexatildeo de pesquisadores que atuam nos territoacuterios

mais especiacuteficos da epistemologia ou naqueles de acircmbito mais geral da teoria do conhe-

cimento Esses estudiosos apoiando-se na metafiacutesica ou recorrendo agrave ontologia buscam

compreensatildeo dos fundamentos dessas relaccedilotildees e em domiacutenios especiacuteficos podem reavaliar

os princiacutepios e as metas que orientam o avanccedilo do saber Se aacutereas como as das matemaacuteticas

ainda se mantecircm ou acreditam se manter em certa medida imunes agraves influecircncias de ou-

tras o mesmo natildeo ocorre com as ciecircncias humanas sociais sociais aplicadas e ateacute com as

ciecircncias naturais e fiacutesicas Quando se trata de analisar as relaccedilotildees e interlocuccedilotildees de dois

ou mais campos cientiacuteficos quaisquer tal tarefa por mais complexa que seja encontra ao

seu dispor elementos estruturais desses campos jaacute secularmente elaborados Assim se for

necessaacuterio recuar ateacute essas bases ainda se atua com aacutereas do conhecimento plenamente

33

estabelecidas e com delimitaccedilatildeo teoacuterica experimental e pragmaacutetica que as suportam o

que minimamente orienta o trabalho do pesquisador

No entanto eacute necessaacuterio refletir sobre as bases dessas relaccedilotildees quando as mesmas

envolvem aacutereas que natildeo concentram seus interesses em elaboraccedilotildees de caraacuteter cientiacutefico

ou na delimitaccedilatildeo das suas fronteiras de atuaccedilatildeo como ocorre com a arte Eacute preciso

tambeacutem o mesmo cuidado com campos que ainda estatildeo constituindo seus fundamentos

teoacutericos como o design

O design enquanto um campo que emerge das ciecircncias sociais aplicadas tem ao seu

dispor e pode se apropriar dos subsiacutedios conceituais provenientes da comunicaccedilatildeo da

sociologia e da filosofia bem como dos avanccedilos tecnoloacutegicos das diversas engenharias e da

ciberneacutetica Poreacutem ainda carece mdash em parte por sua constituiccedilatildeo histoacuterica relativamente

recente e talvez pela constante movimentaccedilatildeo de suas fronteiras de atuaccedilatildeo mdash de um corpo

organizado coerente e delimitado de fundamentos assim como de uma definiccedilatildeo unifi-

cada de seu conceito enquanto aacuterea Conforme afirma o teoacuterico e designer Gui Bonsiepe

Simultaneamente emerge a contradiccedilatildeo entre a difusatildeo do termo design e os limites da teorizaccedilatildeo do fenocircmeno O design eacute hoje um fenocircmeno teoricamente inexplorado apesar de achar-se difundida sua presenccedila na vida cotidiana e na economia Como se explica esta falta de teoria Evitando dar uma resposta simplista se pode sustentar que existe uma correlaccedilatildeo entre a fragilidade do discurso projetual e a carecircncia de uma teoria convincente do design O design eacute ateacute agora um domiacutenio sem fundamento (bonsiepe 1993 p21) Itaacutelicos nossos traduccedilatildeo nossa

Mais de uma deacutecada depois do que escreveu Bonsiepe o designer e historiador do

design Bernhard Buumlrdek sinaliza para os mesmos problemas Buumlrdek tambeacutem encontra-se

entre aqueles pesquisadores que defendem a constituiccedilatildeo de uma teoria do design atenta

aos alicerces das ciecircncias humanas Seus argumentos tecircm em consideraccedilatildeo particularmente

a filosofia quando se trata de refletir sobre aspectos teoacutericos e metodoloacutegicos dos quais

o design ainda necessita

No desenvolvimento da metodologia e teoria do design as ciecircncias humanas tecircm um papel muito especial A constante crise dos sentidos da disciplina faz sentir uma maior necessidade de reflexatildeo e teoria de filosofia Por isso eacute necessaacuterio

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verificar que aspectos da teoria do design ou da metodologia do design tecircm fundamento na filosofia europeia[9] (buumlrdek 2006 p 227)

Nesta mesma direccedilatildeo satildeo conduzidos os argumentos mais recentes do designer e

historiador do design Beat Schneider ao apontar para algumas lacunas do design que

reforccedilam a necessidade de reflexatildeo sobre as bases teoacutericas desse campo

[] eacute preciso abordar os pontos fracos do design Entre eles estaacute a falta de um debate sobre o gecircnero na profissatildeo assim como o seu lado sexista e o eurocen-trismo do design Mas eacute sobretudo a deficiecircncia teoacuterica da profissatildeo do design que se expressa na fatal natildeo teorizaccedilatildeo do contexto econocircmico social e poliacutetico (SCHNEIDER 2010 p 193)

Sintoma dessas indeterminaccedilotildees eacute o fato de o design antes do seacuteculo xx mas es-

pecialmente nos uacuteltimos cem anos apresentar e defender diversas propostas agraves vezes

sobre a forma de manifestos que buscam tanto uma definiccedilatildeo do campo quanto de suas

atividades Beat Schneider ao analisar a questatildeo recua bastante no tempo em uma busca

etimoloacutegica para a palavra ldquodesignrdquo Este autor tambeacutem afirma que o verbete design

consta no Oxford English Dictionary10 pela primeira vez em 1588 Tendo como ponto

de partida essa data Schneider11 (2010 p 195-196) apresenta uma seacuterie de definiccedilotildees do

design histoacuterica e geograficamente localizadas

9 Buumlrdek tambeacutem indica como meacutetodos a fenomenologia de Husserl e a hermenecircutica de Schleiermacher Dilthey e Gadamer teorias filosoacuteficas essas que segundo ele jaacute se encontram minimamente aplicadas em pesquisas de design (burdek 2006 p 239-251) Eacute importante ressaltar que tais teorias podem tambeacutem ser empregadas em outras aacutereas do conhecimento posicionadas nem sempre especificamente dentro das ciecircncias humanas e sociais como ocorre por exemplo com a Teoria geral dos sistemas do bioacutelogo e filoacutesofo Ludwig von Bertalanffy e de seu disciacutepulo Ervin Laszlo Bertalanffy (2012) busca nos sistemas um fundamento comum agrave biologia e demais ciecircncias naturais assim como agraves ciecircncias sociais e histoacutericas Quanto ao eurocentrismo de Buumlrdek poderemos pelo menos atenuaacute-lo se atuarmos localmente criando maiores oportunidades para o intercacircmbio natildeo somente entre os ramos tradicio-nais da filosofia e do design mas entre esse e as diversas aacutereas das ciecircncias humanas e sociais

10 Ao retirar essa definiccedilatildeo do Oxford English Dictionary Schneider natildeo diz que este dicionaacuterio tambeacutem informa como origem do verbo designare (designar) natildeo o italiano mas o latim e que a forma subs-tantivada deriva do italiano para o francecircs De qualquer modo natildeo podemos nos esquecer de que tanto o italiano quanto o francecircs satildeo liacutenguas neolatinas o que faz recuar a palavra a um periacuteodo muito anterior a 1588 Aleacutem disso se o termo proveacutem do latim e vai para o inglecircs mdash uma liacutengua de origem natildeo itaacutelica mdash posteriormente retorna agraves liacutenguas neolatinas como o italiano o francecircs o espanhol e o portuguecircs com acepccedilotildees diversas das originais em latim

11 Na constituiccedilatildeo da lista Schneider tem como referecircncia Bernhard Buumlrdek Gui Bonsiepe Alan Findeli Victor Papanek e Cordula Meier

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bull Renascimentoldquo[]disegno interno significava o esboccedilo de uma obra de arte a ser

realizada o projeto o desenho e de uma forma bem geneacuterica a ideia em que se ba-

seava um trabalho Jaacute o disegno esterno significava a obra executadardquo (schneider

2010 p 195) O conceito de disegno neste momento natildeo se distingue de modo

claro da arte mas apresenta uma divisatildeo entre processo (disegno interno) e resultado

(disegno esterno)

bull Seacuteculoxix com projetos de objetos para a induacutestria surge a tematizaccedilatildeo sobre o

significado do ldquonovo fenocircmenordquo12 ldquoTratava-se em sua maior parte da sua distinccedilatildeo

de um lado perante a arte e de outro perante o artesanato ou as chamadas lsquoartes e

ofiacuteciosrdquo (schneider 2010 p 195) Nos paiacuteses de liacutengua alematilde apoacutes 1865 satildeo pro-

postos vaacuterios termos para tentar definir a atividade da profissatildeo Kunstgewerbe (artes

aplicadas agrave induacutestria) Kunsthandwerk (artes e ofiacutecios) Kunstindustrie (induacutestria

artiacutestica) Werkkunst (arte fabril) angewandter Kunst (arte aplicada) e dekorativer

Kunst (arte decorativa)

bull Seacuteculoxx (antes de 1970) ainda persiste nos paiacuteses de liacutengua alematilde uma terminologia

vernacular como industrieller Formgebung (conformaccedilatildeo de produtos industriais)

Industrie-Entwurf (projeto industrial) Industrie-Formgestaltung (configuraccedilatildeo de

produtos industriais) e Gestaltung (criaccedilatildeoconfiguraccedilatildeo de produtos)

bull Seacuteculoxx (apoacutes 1970) o termo design alcanccedila inclusive os paiacuteses de liacutengua alematilde

Nas deacutecadas finais desse seacuteculo na Franccedila o termo passa a substituir arts deacutecoratifs

A lista de Schneider poderia ser bastante ampliada se o autor incluiacutesse juntamente

com essa terminologia em grande parte de liacutengua alematilde os diversos conceitos que cada

12 Tanto Schneider quanto Bonsiepe (cf citaccedilatildeo p 33) fazem uso do termo fenocircmeno associando-0 ao design Ateacute onde pudemos ver esses autores natildeo explicitam de qual acepccedilatildeo de fenocircmeno se trata Tendo em conta que Schneider entende ldquoo design como ciecircncia jovemrdquo (schneider 2010 p 193) e Bonsiepe tem expectativa de que no futuro as perspectivas da cogniccedilatildeo da ciecircncia e do projeto no design ldquoacabem se fundindordquo (bonsiepe 2011 p 19) conjecturamos que fenocircmeno possa significar objeto do conhecimento no sentido lato estabelecido desde Kant Se assim for o design eacute um tema de teoria do conhecimento ou mais especificamente de filosofia da ciecircncia para Bonsiepe assim como o eacute para Maldonado (2010) Com relaccedilatildeo a Schneider como veremos no capiacutetulo 2 sua posiccedilatildeo conduz a um ciacuterculo vicioso

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termo agregou ao longo de suas trajetoacuterias em escolas como a Bauhaus e Ulm entre

outras espalhadas pelo mundo Mas para o argumento de Schneider e tambeacutem para o

nosso mais relevante do que um glossaacuterio histoacuterico exaustivo eacute sua conclusatildeo de que ainda

ldquohoje natildeo eacute possiacutevel uma definiccedilatildeo precisa e unitaacuteria do conceitordquo de design (schneider

2010 p 196) Tal imprecisatildeo segundo ele existe por vaacuterios motivos O primeiro seria as

mudanccedilas de significado que ocorreram desde o Renascimento ateacute a atualidade O se-

gundo diz respeito ao acircmbito de aplicaccedilatildeo do design que continua a crescer O terceiro

as ldquosituaccedilotildeesrdquo em que o termo design estaacute associado ldquocomo um procedimento (o ato ou

a atividade de projetar) ao resultado desse processo (um design um esboccedilo um plano ou

modelo) ou a produtos que foram gerados por meio de um design (design de objetos)rdquo

(schneider 2010 p 196)

Aleacutem da identificaccedilatildeo de todas essas variaccedilotildees terminoloacutegicas e conceituais o autor

acrescenta mais um problema agrave indeterminaccedilatildeo do conceito de design

Hoje nos meios especializados haacute um descontentamento com o uso inflacionaacuterio do conceito E sobretudo para escapar agrave restriccedilatildeo dominante agrave pura designaccedilatildeo de objetos Gui Bonsiepe por exemplo propotildee para a liacutengua alematilde os termos Entwerfen e EntwerferIn (projeto e projetista) Para o francecircs Alain Findeli pocircs em discussatildeo os termos projet e projecteur (schneider 2010 p 196)

Neste sentido podemos constatar no miacutenimo uma incongruecircncia quando a palavra

design eacute incorporada a outras liacutenguas Qual seja o uso generalizado do termo exclusivamente

em inglecircs natildeo garante a unidade do conceito Natildeo podemos nos esquecer de acrescentar a

esse desacordo e ao uso inflacionaacuterio de que nos fala Schneider o surgimento de novas

categorias ao lado das tradicionais design graacutefico e design de produto13 Tais subdivisotildees

e especialidades vecircm se impondo com o uso de substantivos e adjetivos incorporados ao

13 Schneider considera ateacute mesmo design graacutefico e design de produto como categorias ldquoquestionaacuteveisrdquo tanto do ponto de vista da teoria quanto da praacutetica O autor afirma que as escolas tecircm dificuldades com estas subdivisotildees tradicionais argumentando que se baseiam na segunda e terceira dimensatildeo fiacutesica (schneider 2010 p 205) Discordamos da subdivisatildeo tradicional indicada por Schneider Para noacutes o design graacutefico natildeo pode ser pensado sem a terceira dimensatildeo por exemplo os projetos editoriais e de sinalizaccedilatildeo satildeo estruturalmente tridimensionais Poreacutem enquanto atuando no ensino de design graacutefico entendemos que existe uma crescente especializaccedilatildeo nos projetos das duas catego-rias que favorece a separaccedilatildeo em aacutereas dentro dos cursos Mas com o avanccedilo da desmaterializaccedilatildeo dos produtos e a compreensatildeo de que design graacutefico tambeacutem gera produtos a divisatildeo talvez soacute faccedila sentido no acircmbito curricular

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termo design que em alguns casos poderiam ou deveriam ser inerentes ao seu conceito

como design ecoloacutegico ou ecodesign e design estrateacutegico entre outros Acerca deste tema

Bonsiepe eacute provocativo ao afirmar que ldquoagraves vezes tenho a impressatildeo de que um designer

que aspire a dois minutos de fama se sente obrigado a inventar um roacutetulo que sirva como

marca para se diferenciar dos demais profissionaisrdquo (bonsiepe 2011 p 17) Em recente

conferecircncia em seu discurso Bonsiepe foi taxativo ao exemplificar algumas consequecircn-

cias dessa indeterminaccedilatildeo

Haacute alguns anos ocorre um fenocircmeno surpreendente o uso inflacionaacuterio da palavra ldquodisentildeordquo ou ldquodesignrdquo atraente devido agrave sua imprecisatildeo e polissemia Eacute a proacutepria indeterminaccedilatildeo do conceito de ldquodesignrdquo que o torna tatildeo atraente A crescente atratividade da palavra ldquodesignrdquo manifesta-se de forma ilustrativa no uso do termo amplamente difundido ldquodesign thinkingrdquo Se com este termo quer referir-se agrave forma especiacutefica como os designers abordam um problema isso natildeo eacute uma novidade para os profissionais de design Talvez possa estimular o interesse em revelar o funcionamento dessa capacidade supostamente especiacutefica O perigo no entanto consiste em fazer supor ou insinuar-se que um diploma em design thinking habilita para fazer design profissionalmente fazer projetos de forma concreta Portanto natildeo eacute de surpreender-se que por exemplo um conhecido cientista da anaacutelise de interfaces digitais e artefatos materiais ques-tione a legitimidade do uso desse conceito que para ele eacute o que se conhece pelo antigo termo ldquocriatividaderdquo (Donald Norman) Suponhamos que haja algo como medical thinking e certificados para medical thinking Natildeo obstante um paciente consultaraacute um meacutedico de cura competente e natildeo um medical thinking que nunca curou um paciente em sua vida (bonsiepe 2019) Traduccedilatildeo nossa

Um uacuteltimo exemplo de compreensatildeo do design enquanto um campo de indeterminaccedilatildeo

e limitaccedilotildees que carrega um tom otimista e esperanccediloso eacute a posiccedilatildeo de Rafael Cardoso

Precisamos pensar com ousadia imaginar o que o design pode vir a ser para aleacutem das circunstacircncias imediatas e das limitaccedilotildees passadas Pensar em design natildeo como um corpo de doutrinas fixo e imutaacutevel mas como um campo em plena evoluccedilatildeo Algo que cresce de modo contiacutenuo e se transforma ao crescer Um caminho que se revela ao ser percorrido O design eacute muito maior e mais dinacircmico do que qualquer uma de suas manifestaccedilotildees especiacuteficas Trata-se de uma aacuterea por demais complexa e multifacetada para caber em qualquer defini-ccedilatildeo estreita muito menos para ser reduzida agrave praacutetica de determinado indiviacuteduo ou escola Campo jovem o design encontra-se ainda em fase de aprendizado e experimentaccedilatildeo (cardoso 2016 p 238)

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Em contraposiccedilatildeo ao design a arte cujo conceito em seu sentido ocidental e lato vem

modificando-se desde os gregos preserva seu nome com as respectivas traduccedilotildees para

diversas liacutenguas Aleacutem disso conforme afirma Umberto Eco apesar de a arte produzir

obras apoiando-se em programas de produccedilatildeo (poeacuteticas) e estar de algum modo ligada

aos diversos elementos da cultura inclusive a campos cientiacuteficos e tecnoloacutegicos o dis-

curso da mesma natildeo busca a univocidade como o da ciecircncia (eco 1988) Na atualidade

a dificuldade ateacute de falarmos sobre programas de produccedilatildeo e de uma histoacuteria da arte

contemporacircnea reforccedilam os problemas em se encontrar definiccedilotildees natildeo efecircmeras para

a arte Nesse contexto a questatildeo eacute ainda podemos falar de uma histoacuteria da arte na con-

temporaneidade A esse propoacutesito Rodrigo Duarte (2006) no livro Arte no pensamento

apresenta uma anaacutelise sobre O tema do fim da arte na esteacutetica contemporacircnea Depois de

percorrer as concepccedilotildees de pensadores que trataram diferentemente dessa questatildeo desde

Hegel Marx Nietzsche Lukacs Benjamin Heidegger Horkheimer e Adorno Duarte

chega aos dias atuais com a visatildeo de Arthur Danto e afirma

Danto reconhece que a designaccedilatildeo lsquocontemporacircneorsquo eacute fraca mas diante da constataccedilatildeo de que lsquopoacutes-modernorsquo mdash outro roacutetulo possiacutevel para a produccedilatildeo artiacutestica atual mdash eacute muito forte ele manifesta sua preferecircncia pela denomi-naccedilatildeo lsquoarte poacutes-histoacutericarsquo Essa significa dentre outras coisas que os filoacutesofos devem carregar a responsabilidade pela compreensatildeo das obras e os artistas podem simplesmente usufruir a liberdade de estar para aleacutem da histoacuteria (duarte 2006 p 408)

Concordando com Duarte e Danto se assumimos tal responsabilidade eacute preciso

enfrentar o indeterminado Poreacutem de certo modo tal indeterminaccedilatildeo ou uma recusa

por determinaccedilatildeo da proacutepria arte se revela no tom de perplexidade do proacuteprio Danto

Definir arte eacute uma tarefa tatildeo esquiva que a quase cocircmica inaplicabilidade das definiccedilotildees filosoacuteficas da arte agrave proacutepria arte tem sido explicada pelos poucos que perceberam nessa inaplicabilidade um problema como resultado da inde-finibilidade da arte (danto 2005 p 26)

Consequentemente as lacunas apontadas por Bonsiepe Buumlrdek e Schneider nos

fundamentos do design a condiccedilatildeo refrataacuteria da arte a esses gecircneros de fundamentos

indicadas por Eco Duarte e Danto assim como a indeterminaccedilatildeo de ambos os campos

39

por si soacute justificam e abrem espaccedilo para investigaccedilotildees sobre a essecircncia constituiccedilatildeo e

limites de cada um deles no interior de suas proacuteprias esferas de atuaccedilatildeo De um lado o

esforccedilo pela constituiccedilatildeo de uma teoria dentro do campo do design e de outro a esteacutetica

a filosofia da arte e os estudos criacuteticos de belas-artes no territoacuterio da arte acolhem em

seus espaccedilos especiacuteficos pesquisas sobre seus proacuteprios fundamentos Estudos dessa cate-

goria analiacuteticos mas com menos frequecircncia comparativos satildeo usuais e procedem quase

sempre isoladamente dentro de cada aacuterea como entre outros fazem Bonsiepe (1993 2011)

e Buumlrdek (2006) com o design e Heidegger (2004) e Danto (2005) com a arte

Nosso objetivo eacute nos deslocarmos das anaacutelises habituais natildeo elegendo uma dessas

aacutereas (design ou arte) em separado mas aquilo que funda as suas relaccedilotildees Procurando

delimitar os passos a serem seguidos concentramos nossa proposta em um pressuposto

seguido de uma hipoacutetese a se realizar em duas etapas subsequentes

Pressuposto

Distinccedilatildeo entre design e arte a partir da compreensatildeo de que esses dois campos criam

conceitos e objetos em categorias ontologicamente distintas

Hipoacutetese

a) Como consequecircncia do pressuposto a compreensatildeo dos fundamentos das relaccedilotildees

entre design e arte natildeo pode se dar unicamente no acircmbito da teoria do conhecimento

e da esteacutetica mas necessita avanccedilar ateacute o territoacuterio da ontologia Esta transposiccedilatildeo de

aacutereas deve ser construiacuteda com o apoio das reflexotildees de Imamnuel Kant e Thierry de

Duve sobre a esteacutetica e as de Martin Heidegger e Lacoue-Labarthe sobre a ontologia

b) Apesar dessa distinccedilatildeo design e arte estabelecem interlocuccedilatildeo e carreiam para seus

espaccedilos de atuaccedilatildeo especiacutefica elementos conceituais empregados e compartilhados

por ambos os campos cujos embriotildees remontam ao pensamento grego antigo Assim

os fundamentos das relaccedilotildees entre design e arte devem ser explicitados a partir da

seleccedilatildeo e do estudo especiacutefico dos conceitos de miacutemesis de belo e uacutetil e de fim em si

mesmo e do discurso epidiacutectico todos extraiacutedos da obra de Aristoacuteteles e conectados

agraves reflexotildees de Arthur Danto e Umberto Eco na atualidade

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Devemos ressaltar que do ponto de vista loacutegico e argumentativo primeiro eacute preciso

distinguir para em seguida buscar relaccedilotildees Aleacutem disso no nosso entendimento a distin-

ccedilatildeo entre design e arte apesar de atentar para o resultado das produccedilotildees eacute voltada para

os fundamentos desses dois campos Como veremos no capiacutetulo 5 com a anaacutelise de obras

de Philippe Starck e Andy Warhol e da relevante precedecircncia de Marcel Duchamp cada

vez mais o resultado do trabalho de designers e artistas apresenta caracteriacutesticas comuns

agraves duas aacutereas o que pode ensejar a defesa de que design e arte satildeo campos indistintos po-

siccedilatildeo da qual discordamos No entanto como a ausecircncia de unanimidade entre designers

artistas e teoacutericos nesta questatildeo permanece eacute importante vermos alguns exemplos14 de

posiccedilotildees a favor e contra tal distinccedilatildeo

O filoacutesofo e teoacuterico da arte Thierry de Duve (2010) no artigo O que fazer da

vanguarda Ou o que resta do seacuteculo 19 na arte do seacuteculo 20 apresenta o artista Marcel

Duchamp como um ldquomensageirordquo da arte contemporacircnea com o entendimento de que

todos podem ser artistas e tudo pode ser arte Em suas palavras

A pintura e a escultura a paisagem e o nu e todos os ldquoismosrdquo do seacuteculo 20 fazem parte ao contraacuterio da arte em geral jaacute que ela nada exclui e inclui aleacutem disso as praacuteticas recentes mdash a instalaccedilatildeo a arte conceitual ou a videoarte assim como outras que ainda natildeo tecircm nome De fato o teor da expressatildeo eacute o seguinte fazer arte com tudo e com qualquer coisa eacute hoje tecnicamente possiacutevel e institucional-mente legiacutetimo como bem percebeu Suzi Gablik Decerto nem tudo eacute arte A priori poreacutem qualquer coisa pode secirc-lo A arte em geral eacute o nome da novidade de que Duchamp foi mensageiro Esse nome substitui a denominaccedilatildeo geneacuterica

ldquobelas-artesrdquo que corresponde agrave situaccedilatildeo que encarnavam a Academia a Escola e o sistema das belas-artes antes que sua falecircncia fosse declarada pelas vanguardas histoacutericas Portanto qualquer coisa pode ser arte qualquer um pode ser artista Para quem essa eacute uma novidade ruim para quem eacute boa (de duve 2010 p182)

Arthur Danto (2005) eacute outro teoacuterico que invoca esta possibilidade apontando espe-

cificamente para os objetos criados

[] em fases de estabilidade artiacutestica costumava-se pensar que as obras de arte possuiacuteam certas propriedades cuja ausecircncia bastava para pocircr seriamente em duacutevida seu status de arte Mas esse tempo jaacute passou haacute muito e assim como

14 Um estudo extenso e pormenorizado que entre outros temas aborda as posiccedilotildees de designers artistas e teoacutericos sobre a polecircmica em torno da distinccedilatildeo entre design e arte foi elaborado por Andreacute Stolarski (2012) em sua dissertaccedilatildeo de mestrado

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qualquer coisa pode expressar qualquer coisa desde que se conheccedilam as conven-ccedilotildees pertinentes e os fatores que explicam seu status como expressatildeo qualquer coisa pode ser uma obra de arte natildeo haacute condiccedilotildees necessaacuterias enunciaacuteveis na forma de predicados de um lugar Decerto natildeo se deve concluir do fato de que qualquer coisa pode ser uma obra de arte que qualquer coisa o seja A maacutequina de escrever que estou usando poderia ser uma obra de arte mas natildeo eacute O que torna tatildeo interessante o conceito de arte eacute que dizer que minha maacutequina de escrever poderia ser uma obra de arte natildeo eacute o mesmo que dizer que ela eacute um sanduiacuteche de presunto embora um certo sanduiacuteche ateacute pudesse ser (e quem sabe se jaacute natildeo eacute) um objeto de arte Mas a explicaccedilatildeo disso natildeo se encontra unicamente na concepccedilatildeo de que uma obra de arte eacute um objeto relacional a razatildeo deve ser mais profunda (danto 2005 p 113)

Essa abertura proporcionada pela arte contemporacircnea pode conduzir a direccedilotildees que

a primeira vista natildeo seriam previsiacuteveis Paradoxalmente as reflexotildees de Thierry de Duve

e Arthur Danto localizadas exclusivamente no territoacuterio da arte apesar de defenderem

uma distinccedilatildeo da arte e seus objetos em relaccedilatildeo a outros campos e outros objetos podem

ensejar argumentos como sinaliza Andreacute Stolarski (2012) agravequeles que de modo contraacuterio

se dispotildeem a ver nas palavras todos podem ser artistas e tudo pode ser arte uma porta para

a indistinccedilatildeo entre design e arte

Em um sentido diverso da possibilidade anterior mas tambeacutem defendendo a indis-

tinccedilatildeo entre design e arte existe o argumento da indefiniccedilatildeo das fronteiras ou ateacute em

casos extremos da ausecircncia de fronteiras desses dois campos Esse eacute o caso por exemplo

do artista plaacutestico Almir Mavignier Atentemos para a transcriccedilatildeo que os criacuteticos de arte

Daniela Name e Felipe Scovino (2008) fazem da afirmaccedilatildeo de Mavignier no cataacutelogo

Diaacutelogo concreto mdash design e construtivismo no Brasil

Em 1957 Mavignier comeccedilou sua produccedilatildeo de cartazes quando legitima ldquoarte eacute design Pintura e cartaz satildeo objetos a pintura fascina e o cartaz informa A fronteira entre os dois eacute instaacutevel porque ambos podem fascinar A fim de reco-nhececirc-la fui estudar em Ulm [onde] aprendi que a fronteira natildeo existerdquo (name scovino 2008 p 48)

Eacute no miacutenimo surpreendente saber que Mavignier atribui a ausecircncia de fronteiras

entre design e arte ao seu aprendizado na renomada escola racionalista e funcionalista

onde Gui Bonsiepe tambeacutem estudou e lecionou Bonsiepe assume posiccedilatildeo diametralmente

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oposta a Mavignier e coloca a filosofia como capaz de refutar a indistinccedilatildeo entre design e

arte No entanto Bonsiepe considera a posiccedilatildeo assumida em favor da indistinccedilatildeo dentro

das instituiccedilotildees de ensino uma possiacutevel convenccedilatildeo que favorece orccedilamentos Conforme

suas palavras ldquoHaacute muito tempo dispomos de conceitos filosoacuteficos para fazer distinccedilatildeo

entre arte e design Classificar design em categorias artiacutesticas soacute pode ser explicado por

criteacuterios da poliacutetica de distribuiccedilatildeo de verbas nas universidadesrdquo (Bonsiepe 2011 p 181)

Nesse contexto o autor natildeo nos diz como tal refutaccedilatildeo deve ocorrer mas defende clara-

mente a distinccedilatildeo E o mais importante coloca a filosofia como o territoacuterio de decisatildeo o

que seraacute de interesse como veremos para o capiacutetulo 2

Outra defesa de certa distinccedilatildeo difundida na atualidade eacute a do teoacuterico da comuni-

caccedilatildeo Andreacute Villas Boas (1998) mas que natildeo coaduna com a nossa proposta tambeacutem de

distinccedilatildeo por sustentar seus argumentos de modo diverso e em outras bases A esse pro-

poacutesito citamos a criacutetica agrave posiccedilatildeo de Villas Boas feita por outro teoacuterico da comunicaccedilatildeo

Carlos Alberto Barbosa

[] o design para o autor ldquo() eacute realizado para reproduccedilatildeo eacute reproduziacutevel e eacute efetivamente reproduzido a partir de um original (ainda que virtual) Do contraacuterio eacute uma peccedila uacutenica circunscrita ao campo da arte (o manuscrito me-dieval por exemplo ()rdquo (villas-boas 1998 p 12) Tal perspectiva parece natildeo levar em conta as obras de arte mecanicamente reproduziacuteveis as tais que foram objeto do famoso ensaio A obra de arte na eacutepoca de sua reproduti-bilidade teacutecnica de Walter Benjamin no qual a proacutepria noccedilatildeo de ldquooriginalrdquo eacute colocada em jogo O entendimento sobre o que eacute arte para Villas-Boas diz respeito notadamente a uma produccedilatildeo de peccedila uacutenica Mais adiante o autor cerca um pouco mais seu conceito e se debruccedila sobre o campo do projeto de design ldquo() satildeo peccedilas de design graacutefico todos aqueles projetos graacuteficos que tecircm como fim comunicar atraveacutes de elementos visuais (textuais ou natildeo) uma dada mensagem para persuadir o observador guiar sua leitura ou vender um produtordquo (villas-boas 1998 p 12ndash13) Talvez isso cerque de forma mais efetiva o campo do design Deve ser um projeto que vise a reproduccedilatildeo tendo como fim a persuasatildeo e a venda Seraacute que a partir do advento da Induacutestria Cultural e sua radicalizaccedilatildeo explicitada pela tecnologia associada ao consumo em massa a arte por vezes natildeo se insere tambeacutem nessa categoria de ldquoper-suasatildeo e vendardquo principalmente se levarmos em conta uma sociedade que soacute percebe a obra de arte como mercadoria o que entatildeo tambeacutem a aproximaria do campo do design (barbosa 2003 p 52)

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Existem vaacuterias implicaccedilotildees na citaccedilatildeo anterior e a aproximaccedilatildeo da arte com o design

eacute uma das intenccedilotildees de Barbosa Mas o relevante para os nossos propoacutesitos eacute que a criacutetica

de Barbosa que se estende a outras posiccedilotildees como agrave de Rafael Cardoso mostra que a

questatildeo da distinccedilatildeo entre design e arte eacute antes de tudo intrincada No entanto longe de

ser um ldquoproblemardquo em um sentido negativo acreditamos eacute justamente esse emaranhado

envolvendo a questatildeo que nos impotildee a necessidade de uma distinccedilatildeo ontoloacutegica que

conecta como veremos cada elemento aparentemente divergente na tese

Diante desses exemplos nossa posiccedilatildeo pela distinccedilatildeo entre design e arte enquanto

pressuposto busca um ponto delimitado de diferenciaccedilatildeo sem incorrer em definiccedilotildees que

tambeacutem defendem a distinccedilatildeo mas apropriam-se de elementos mutaacuteveis tornando-se

rapidamente obsoletas Natildeo podemos nos esquecer de que tanto a arte quanto o design

estatildeo sempre se reinventando o que torna essa tarefa mais difiacutecil

Assim nossa premissa estabelece suas bases na clivagem ontoloacutegica que Danto propotildee

para separar objetos artiacutesticos de outros objetos e consequentemente distinguir a arte de

outros campos Nas suas palavras

[] aprender que um objeto eacute uma obra de arte eacute saber que ele tem qualidades que faltam ao seu siacutemile natildeo transfigurado e que provocaraacute reaccedilotildees esteacuteticas diferentes E isso natildeo eacute institucional mas ontoloacutegico mdash estamos lidando com ordens de coisas completamente diferentes (danto 2005 p 157)

Acreditamos que essa delimitaccedilatildeo inicial ao colocar objetos da arte contrapondo-se

a outros objetos aceita implicitamente os do design na oposiccedilatildeo Deste modo entende-

mos tal dicotomia em princiacutepio como condiccedilatildeo necessaacuteria apenas enquanto pressuposto

e natildeo como causa15 sendo portanto somente o primeiro passo no encaminhamento de

nossa hipoacutetese Indo aleacutem do acircmbito da esteacutetica e da posiccedilatildeo de Danto como veremos

15 Assumimos o significado de condiccedilatildeo necessaacuteria como distinto do significado de causa Causa tem sentido positivo eacute aquilo que produz o efeito Condiccedilatildeo necessaacuteria (oposta agrave condiccedilatildeo suficiente de sentido positivo) tem sentido negativo eacute aquilo sem o qual natildeo se produz o efeito (condiccedilatildeo sine qua non) Tal condiccedilatildeo determina que a existecircncia do elemento condicionante natildeo implica na existecircncia do condicionado Em outras palavras nosso pressuposto enquanto condiccedilatildeo necessaacuteria estabelece o paracircmetro ontoloacutegico (elemento condicionante) e aponta em uma direccedilatildeo de pesquisa mas natildeo eacute conclusivo e natildeo nos garante nada aleacutem do seu ponto de partida Assim iniciando com o pressuposto precisamos percorrer todo o caminho da hipoacutetese para confirmaacute-la ou natildeo como ocorre de praxe em uma tese

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no capiacutetulo 3 Heidegger com propoacutesito e estrateacutegias diversas agraves empregadas por Danto

corrobora nosso pressuposto ao especificar em sua anaacutelise os objetos que se contrapotildeem

aos artiacutesticos enquanto objetos uacuteteis E avanccedila em um ponto essencial ao defender

a tese de que a apreciaccedilatildeo das obras de arte nos coloca em contato com significados

mais profundos para os objetos utilitaacuterios Essa defesa abre portas para pensarmos os

objetos do design para aleacutem do mero uso consumo e exploraccedilatildeo ou seja indo aleacutem da

utilidade e da instrumentalidade E ir aleacutem do uacutetil e instrumental acreditamos eacute funda-

mental para a compreensatildeo dos objetos de design que expandiram seus significados na

contemporaneidade

Neste ponto uma questatildeo de ordem histoacuterica precisa ser levantada Porque retornar

a Platatildeo e a Aristoacuteteles Em nossos estudos sobre as origens da linguagem e do mito e

suas possiacuteveis influecircncias na constituiccedilatildeo dos discursos cientiacuteficos e tecnoloacutegicos uma

afirmaccedilatildeo de Ernst Cassirer nos marcou e nos guia desde entatildeo

[] toda reflexatildeo histoacuterica genuiacutena em lugar de se perder na percepccedilatildeo do meramente uacutenico deve buscar aqueles momentos ldquopejadosrdquo do acontecer para onde confluem como para pontos focais seacuteries inteiras de eventos Em tais pontos fases temporais largamente separadas entre si conectam-se em um todo unitaacuterio para a concepccedilatildeo e a compreensatildeo histoacuterica Ao serem certos momentos destacados da corrente uniforme do tempo estabelecendo relaccedilotildees e concatenando-se em seacuteries iluminam-se com isso justamente a origem e a meta de todo acontecer seu de onde (Woher) e seu para onde (Wohin) (cassirer 1992 p 48)

Considerando que design e arte satildeo campos distintos e natildeo encontrando respostas

suficientes para as semelhanccedilas e diferenccedilas na atualidade nos inspiramos em Cassirer e

recuamos na histoacuteria do pensamento ocidental Na busca pelo periacuteodo histoacuterico em que

as teorias que originaram os fundamentos desses campos se constituiacuteram chegamos ao

pensamento grego Foi na polecircmica de Platatildeo em favor da ciecircncia grega e contra a arte

que o pensamento de Aristoacuteteles criacutetico de Platatildeo emergiu em apoio e base de nossa

hipoacutetese Apropriando-nos das palavras de Cassirer em Platatildeo e Aristoacuteteles encontram-

se os ldquopontos focaisrdquo e descortinaram-se a origem e a meta o onde e o para onde da tese

A centralidade desses dois pensadores em torno de nosso tema e de outros assuntos

subsidiaacuterios se justifica dado que estatildeo entre os primeiros a abordar questotildees sobre a

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constituiccedilatildeo da realidade como a entendemos Apesar de essa primazia natildeo ser sempre

deles mas de seus antecessores os chamados preacute-socraacuteticos encontramos no bojo dos

sistemas platocircnico e aristoteacutelico conceitos e soluccedilotildees que se tornaram referecircncia para as

reflexotildees posteriores inclusive contemporacircneas

Platatildeo eacute o ponto fulcral de onde nossas questotildees partem Deste modo necessitamos

sempre retornar a Platatildeo Fazemos isso ao longo do texto como tambeacutem quase todos os

autores referenciados na tese Aristoacuteteles faz o contraponto e encaminha os problemas na

direccedilatildeo que desejamos normalmente discordando de Platatildeo neste tema Como os con-

ceitos e criteacuterios aos quais aderimos na constituiccedilatildeo baacutesica de nosso texto satildeo de origem

aristoteacutelica cabe justificar o motivo pelo qual elegemos esse pensador para o centro da

proposiccedilatildeo de nossas questotildees Examinemos como isso ocorre

Um dos pontos que atrai nossa atenccedilatildeo para a obra aristoteacutelica eacute o fato de que ao

tempo em que seus textos foram escritos o Ocidente ensaiava os primeiros passos na cons-

tituiccedilatildeo de teorias gerais acerca do mundo e do saber Como consequecircncia as diversas

aacutereas e ramificaccedilotildees do conhecimento que com o passar dos seacuteculos e milecircnios foram

sendo delimitadas ainda natildeo estavam claramente definidas (figura 2)

Deste modo os conceitos elaborados por pensadores desse periacuteodo incluindo Aris-

toacuteteles tecircm uma plasticidade e satildeo concebidos para abarcar diversos domiacutenios teoacutericos

e praacuteticos certamente indo aleacutem daquilo que passamos a compreender sob o nome de

filosofia Ir ao nascedouro de aacutereas do conhecimento e de conceitos com tais propriedades

Figura 2 Linha do tempo indicando desdobramento do conceito grego de poacuteiesis (produccedilatildeo) em episteacuteme (ciecircncia) e teacutekhne (arte) e posteriormente sua divisatildeo em ciecircncia teacutecnica e arte em seus sentidos moder-nos fonte autor

asymp aC dC dCGreacutecia Ocidente

EPISTEacuteME

TEacuteKHNE

CIEcircNCIA

TEacuteCNICA

ARTE

POacuteIESIS

PERIacuteODO DE PLAacuteSTICIDADEENTRE OS CONCEITOS

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auxilia no rastreamento de elementos que permanecem compartilhados ainda hoje mesmo

quando tais aacutereas e as disciplinas delas derivadas satildeo agora distintas

Essas concepccedilotildees dadas a suas pretensotildees agrave universalidade aliadas a uma variedade

de possibilidades hermenecircuticas vecircm mobilizando pesquisadores ao longo da histoacuteria

interessados em anaacutelises de cunho geral mas tambeacutem de natureza epistemoloacutegica gno-

seoloacutegica e ontoloacutegica visando instaurar fundamentos em campos culturais cientiacuteficos

e tecnoloacutegicos Aleacutem disso Aristoacuteteles eacute um daqueles pensadores em que as teorias e os

conceitos que nos interessam vecircm sendo interpretados reinterpretados e aplicados ou

criticados nos mais diversos campos na teoria literaacuteria nas artes plaacutesticas nas anaacutelises da

esteacutetica na linguiacutestica e na comunicaccedilatildeo Entre os pesquisadores envolvidos com estudos

sobre a obra de Aristoacuteteles e seus desdobramentos no presente elegemos dois estudiosos

em campos distintos para ratificar nossa posiccedilatildeo

Jacyntho Lins Brandatildeo das letras claacutessicas ao estudar a obra A retoacuterica de Aristoacuteteles

que conteacutem um dos gecircneros de discursos abordados em nossa pesquisa afirma

Num mundo como o contemporacircneo em que eacute a ciecircncia que se tornou o discurso autorizado por excelecircncia (difundido pelos meios modernos de comunicaccedilatildeo) natildeo seria razoaacutevel admitir que [] a retoacuterica eacute que eacute hoje um tipo de literatura para a multidatildeo (atraveacutes dos jornais da televisatildeo da publicidade) e que a ciecircn-cia por seu lado eacute uma espeacutecie de retoacuterica popular (basta lembrar o quanto o discurso poliacutetico se converteu em econocircmico isto eacute supostamente cientiacutefico) (brandatildeo 2007 p 19)

Fernando Santoro da filosofia e esteacutetica ao retomar a obra A poeacutetica de Aristoacuteteles

eacute enfaacutetico ao defender a relevacircncia que os conceitos elaborados por esse pensador ainda

manteacutem na contemporaneidade

Portanto ainda que Aristoacuteteles natildeo tenha pensado sobre as artes tal como as entendemos hoje o que ele escreveu foi decisivo ao longo da histoacuteria das artes ocidentais especialmente apoacutes o Renascimento A Poeacutetica de Aristoacuteteles muitas vezes chegou a determinar os cacircnones de vaacuterios estilos principalmente os de inspiraccedilatildeo claacutessica classicismos e neoclassicismos diversos E mesmo quando se queria contestar alguma tradiccedilatildeo ou escola artiacutestica a Poeacutetica serviu quando natildeo era o modelo a seguir de modelo a contestar como por exemplo ao se cri-ticar o naturalismo ou o figurativismo ou as famosas prescriccedilotildees de unidade (de tempo de espaccedilo de accedilatildeo) Assim se Aristoacuteteles natildeo abordou as artes tal como

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as entendemos hoje em contrapartida ele foi decisivo para o que entendemos hoje como arte Muitas das clivagens dos valores das categorias e dos princiacutepios das teorias esteacuteticas modernas e contemporacircneas tecircm origem nas especulaccedilotildees de Aristoacuteteles sobre a poesia eacutepica sobre a muacutesica e sobre a poesia dramaacutetica (santoro 2006 p 77)

Tal potecircncia das especulaccedilotildees contida nos textos de Aristoacuteteles eacute um dos elementos

que subsidiam este trabalho Eacute tambeacutem por isso que nos apoiamos como veremos nos

estudos de Heidegger Danto e Eco Esses teoacutericos contemporacircneos cada um a seu modo

compartilham desse olhar interessado na aurora do pensamento grego e instauram re-

flexotildees conectando as indagaccedilotildees aristoteacutelicas com problemas da atualidade indagaccedilotildees

estas que iluminam e fomentam nossas proacuteprias questotildees

No entanto como Aristoacuteteles atuou natildeo somente como filoacutesofo no sentido estrito

mas produziu conhecimento em biologia fiacutesica e outros campos cientiacuteficos ocorre de

criacuteticas procedentes agraves suas concepccedilotildees ligadas agraves ciecircncias naturais serem indevidamente

estendidas para o acircmbito de conceitos metafiacutesicos e ontoloacutegicos Um exemplo claacutessico e

um truiacutesmo em ciecircncias naturais eacute a afirmaccedilatildeo de que a fiacutesica de Aristoacuteteles eacute ultrapassada

e completamente distinta de qualquer concepccedilatildeo da natureza em pensadores posteriores

a Galileu ou que uma visatildeo aristoteacutelica de coacutesmos natildeo se sustenta diante da concepccedilatildeo de

universo infinito do mundo moderno O que natildeo se expotildee de modo imediato quando

se mostra tal incongruecircncia entre a teoria fiacutesica antiga e a moderna eacute a impossibilidade

de correspondecircncia entre a base metafiacutesica da fiacutesica aristoteacutelica que essencialmente eacute

qualitativa e a da fiacutesica newtoniana quantitativa

Mas esse exemplo adequado ao acircmbito especiacutefico da fiacutesica moderna natildeo deve ser

impedimento para um pesquisador fazer conexotildees que ultrapassam a esfera estrita de

determinado campo em direccedilatildeo agrave fundamentaccedilatildeo de uma teoria cientiacutefica Para nos

mantermos dentro do escopo da fiacutesica sigamos as palavras do filoacutesofo da ciecircncia e

epistemoacutelogo F S Northrop na introduccedilatildeo do livro Fiacutesica e Filosofia de Heisenberg

A tese mais nova e importante deste livro talvez seja a afirmaccedilatildeo feita pelo autor de que a mecacircnica quacircntica reviveu o conceito aristoteacutelico de potencialidade na fiacutesica moderna Consequecircncia disso eacute que a mecacircnica quacircntica eacute igualmente importante para a ontologia e a epistemologia (heisenberg 1987 p 11)

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Em outras palavras seria questionaacutevel tentar unir ou correlacionar conceitos fiacutesicos

aristoteacutelicos e modernos em uma mesma concepccedilatildeo de natureza fiacutesica pois tal pretensatildeo

levaria a contradiccedilotildees Mas quando se recua da ciecircncia para a epistemologia buscando

fundamentaccedilatildeo ou se retrocede ainda mais na esfera da metafiacutesica seja no acircmbito da

teoria do conhecimento da esteacutetica ou da ontologia os conceitos mdash que natildeo satildeo mais

das ciecircncias mas dos pilares que as fundam mdash tornam-se mais propensos a intercacircmbios

e passiacuteveis de serem explorados em vaacuterios campos como o da arte e do design Assim a

plasticidade dessa categoria de conceitos eacute ainda maior quando envolve esteacutetica retoacuterica

e arte como eacute o nosso caso com Aristoacuteteles e os autores modernos e contemporacircneos a

ele relacionados

Um exemplo eacute o conceito de coacutesmos aristoteacutelico que aleacutem de associado agrave sua fiacutesica

expressa uma ordem e uma harmonia que natildeo eacute de cunho matemaacuteticoquantitativo

Natildeo sem razatildeo o radical κόσμος (coacutesmos) eacute a base de palavras como κοσμητής (cosmeteacutes)

cujo significado eacute daquele que potildee ordem dispotildee e regula como procedem o deus Zeus

e tambeacutem o profissional decorador na antiga Greacutecia (malhadas dezotti neves

2008 v 3 p 87-88) Faz sentido portanto que a palavra cosmeacutetico usada na atualidade

derive desse radical Em qualquer dos casos o conceito de coacutesmos aristoteacutelico antes de

ser uma concepccedilatildeo fiacutesica tem caraacuteter metafiacutesico E a ecircnfase de Aristoacuteteles a uma essecircncia

qualitativa desse conceito o coloca em uma posiccedilatildeo privilegiada para abordarmos os

temas da arte e do design

Acreditamos que a defesa desses teoacutericos seja satisfatoacuteria e possa pelo menos mitigar

as criacuteticas de caraacuteter hermenecircutico agrave distacircncia temporal dos mais de 2300 anos que nos

separam das especulaccedilotildees e das teorias aristoteacutelicas Ainda assim algum criacutetico atento

agrave estrutura das concepccedilotildees aristoteacutelicas poderia opor argumentos baseados na ideia de

finalismo deste pensador tanto nos seus conceitos de natureza quanto de arte que satildeo

desdobramentos da teoria das quatro causas Natildeo faz parte do tema enveredar por essa

teoria mas como ela pode ser associada a diversas espeacutecies de determinismo e consequen-

temente ser entendida como limitadora agraves possibilidades de compreensatildeo das relaccedilotildees

entre design e arte somos obrigados a justificar minimamente o finalismo aristoteacutelico

ou pelo menos natildeo consideraacute-lo como nocivo agraves reflexotildees ligadas a esses dois campos A

esse respeito no acircmbito mais amplo da reflexatildeo filosoacutefica Aristoacuteteles entende que uma

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das caracteriacutesticas do homem eacute exercer accedilotildees voluntaacuterias mas nos atendo especificamente

ao campo do design chamamos novamente em nossa defesa Carlos A Barbosa

A questatildeo eacute que a causa final na visatildeo aristoteacutelica eacute a que daacute iniacutecio e tambeacutem dirige todo o processo ou accedilatildeo De nada adiantaria ou talvez nem mesmo existiria um juiacutezo uacutenico para os casos semelhantes se antes natildeo se apresentasse uma razatildeo ou uma finalidade para tal juiacutezo Um designer por exemplo natildeo sai simplesmente projetando para ver se chega em algo Na verdade esse ldquoalgordquo ao qual o designer pretende chegar pressupotildee um uso o qual orienta e determina a necessidade do projeto Ou seja o projeto de design eacute movido pela sua finali-dade que eacute aquilo que se pretende com o projeto ou para que se pretende um objeto (barbosa 2003 p 58)

Diante de um pensador da envergadura de Aristoacuteteles como apontou Fernando San-

toro tanto as defesas quanto as contestaccedilotildees e querelas enriquecem e ampliam as possibi-

lidades de reflexatildeo quando o tema em questatildeo tem raiacutezes que partem de investigaccedilotildees em

sua eacutepoca e continuam a reverberar no modo como concebemos a realidade atualmente

Com relaccedilatildeo ao meacutetodo compreendendo-o em seu sentido originaacuterio de caminho

ele foi efetivado nas seguintes etapas na tese cada uma circunscrita a um capiacutetulo

1 Origens platocircnicas da cisatildeo e hierarquizaccedilatildeo da ciecircncia teacutecnica e arte e suas conse-

quecircncias para o design e para a arte (capiacutetulo 2)

2 Transposiccedilatildeo da abordagem do tema de um vieacutes esteacutetico e gnoseoloacutegico para onto-

loacutegico (capiacutetulo 3)

3 Rastreamento identificaccedilatildeo anaacutelise e reelaboraccedilatildeo dos conceitos aristoteacutelicos de

miacutemesis coisas belas coisas uacuteteis o fim em si mesmo e o discurso epidiacutectico para o design

e a arte contemporacircnea (capiacutetulo 4)

4 Ampliaccedilatildeo na identificaccedilatildeo dos conceitos teoricamente reelaborados na praacutetica

artiacutestica de Andy Warhol precedido historicamente por Marcel Duchamp e nos

projetos de design de Philippe Starck (capiacutetulo 5)

Com esse roteiro estabelecido falta explicitar os caminhos contidos no meacutetodo que

tornaram possiacutevel avanccedilar de modo coerente Ao tratarmos acerca dessa estrutura guia

consideramos necessaacuterio justificar a inclusatildeo de autores de espectros ideoloacutegicos distintos

no bojo das discussotildees

50

Acreditamos que a inclusatildeo de autores de correntes divergentes e ateacute opostas na busca

de consenso em um constructo teoacuterico somente eacute um problema se ao final chega-se a uma

antinomia na teoria Aleacutem disso nossa proposta natildeo eacute unir pensadores que dialogam entre

si tendo em conta uma filiaccedilatildeo genealoacutegica comum Ao contraacuterio articular discordacircncias

em torno dos fundamentos das relaccedilotildees entre design e arte mdash buscando inteligibilidade a

partir de uma abordagem centrada no vieacutes ontoloacutegico mdash eacute o que traz unidade e coerecircncia

interna ao tema Polecircmicas que surgiram no periacuteodo claacutessico da cultura grega seguiram

em frente na histoacuteria das ideias e ainda permanecem em alguns casos sob formas diver-

sas e (em determinadas circunstacircncias) impliacutecitas na atualidade Natildeo temos a pretensatildeo

de alinhar nosso pensamento com uma corrente especiacutefica mas selecionar autores que

tendo estabelecido uma questatildeo como objeto de estudo procuram submetecirc-la ao exame

mesmo diante de posiccedilotildees discordantes Esse eacute um desafio metodoloacutegico que guia esta tese

Para atender aos cruzamentos de conteuacutedos sobre as relaccedilotildees das aacutereas pesquisadas

com os autores estabelecemos padrotildees que conduzem aos diversos toacutepicos da tese O

resultado foi um meacutetodo de estrutura hiacutebrida constituiacutedo de elementos habituais nas

pesquisas em ciecircncias humanas e sociais O que fizemos foi incorporar estrateacutegias de

abordagem jaacute existentes que nos permitiram controlar melhor os percursos

1ordf Analiacutetica mdash garantir a decomposiccedilatildeo dos diversos conceitos compreender suas parti-

cularidades e testar suas possibilidades de aplicaccedilatildeo na atualidade bem como limites

2ordf Comparativa mdash ser capaz de identificar e descrever elementos comuns aos dois campos

investigados design e arte contemporacircnea descrevendo as interligaccedilotildees descobertas

3ordf Diacrocircnica e sincrocircnica mdash uma vez que parte dos conceitos extraiacutedos procede de

autores do passado (Platatildeo e Aristoacuteteles) em cotejo com autores contemporacircneos a

abordagem diacrocircnica necessariamente atenta agrave hermenecircutica apoia-se principalmen-

te nas anaacutelises e interpretaccedilotildees de estudiosos contemporacircneos como Arthur Danto

Thierry de Duve Martin Heidegger Philippe Lacoue-Labarthe e Umberto Eco O

propoacutesito eacute assegurar que a transposiccedilatildeo desses conceitos para o presente preserve seu

vigor e validade Na abordagem sincrocircnica por outro lado dirigimos nossa atenccedilatildeo

a autores contemporacircneos como Vileacutem Flusser Rafael Cardoso Tomaacutes Maldonado

Gui Bonsiepe e Beat Schneider e privilegiamos mais a tomada de posiccedilatildeo deles em

51

relaccedilatildeo aos conceitos jaacute estabelecidos Esse giro intencional assegura que o embate

se fixe no presente uma vez que o tema se concentra nos fundamentos de campos

da atualidade design e arte Com isso acreditamos obtemos um leque maior de

possibilidades na discussatildeo tendo em conta as significativas diferenccedilas ideoloacutegicas

que esses estudiosos apresentam no tratamento dos conceitos

4ordf Sinteacutetica mdash comprovar a hipoacutetese e sua validaccedilatildeo ateacute onde eacute possiacutevel em uma tese

no acircmbito das ciecircncias humanas e sociais

A variaccedilatildeo dessas estrateacutegias combinando-as quando necessaacuterio a um tratamento

especiacutefico (como por exemplo anaacutelise comparativa diacrocircnica ou anaacutelise comparativa

sincrocircnica) tornou a abordagem flexiacutevel agraves nossas necessidades Apesar de cada estudioso

ter suas particularidades na aplicaccedilatildeo de recursos analiacuteticos e comparativos Danto de

Duve Heidegger Lacoue-Labarthe Eco e outros autores modernos e contemporacircneos

estudados fazem uso recorrente desses procedimentos o que favorece nossa abordagem

Como jaacute pode ser constatado neste primeiro capiacutetulo as escolhas tanto do tema

quanto da perspectiva adotada e dos autores envolvidos na construccedilatildeo de nosso cami-

nho nos conduzem invariavelmente a retornar em periacuteodos histoacutericos constituintes do

pensamento da ciecircncia do design e da arte em diversos momentos do texto Estamos

perseguindo o que Cassirer (1992 p 48) acertadamente nomeou de ldquopontos focaisrdquo ldquopara

ondeconfluem[]seacuteriesinteirasdeeventosrdquoContudotemosconsciecircnciadequeessa

tese natildeo eacute sobre histoacuteria do design da arte ou da filosofia Mas sabemos que existe sempre

o risco de se avanccedilar sobre o sedutor territoacuterio da histoacuteria dessas disciplinas e deixar de

lado a reflexatildeo sobre a trama das ideias propostas Portanto concentramos esforccedilos em

mantermos demarcados os temas de contextualizaccedilatildeo Mas natildeo abrimos matildeo da histoacuteria

da filosofia ou de qualquer outra disciplina quando elas contribuem para a genealogia

dos objetos estudados Assim ocorreu no atual capiacutetulo na anaacutelise da indeterminaccedilatildeo

do design e da arte e seraacute no proacuteximo na transposiccedilatildeo de quatro conceitos gregos que

ainda satildeo potencialmente fecundos e influentes na atualidade Atentos especificamente

ao acircmbito da historiografia nos esforccedilamos tambeacutem no sentido de buscar equiliacutebrio no

tratamento do tema das relaccedilotildees tendo consciecircncia da longa histoacuteria da arte ocidental

em comparaccedilatildeo com o curto periacuteodo formal da histoacuteria do design

52

Outro ponto que precisa ser ressaltado eacute que apesar da ampliaccedilatildeo do interesse em

torno do tema das relaccedilotildees entre design e arte se confirmar com mais estudos debates e

publicaccedilotildees ateacute onde pudemos averiguar natildeo encontramos autores que o tratem sob o

crivo da ontologia Natildeo entendemos a falta de bibliografia especiacutefica como um problema

Ao contraacuterio tal situaccedilatildeo eacute oportunidade estimulante de se avanccedilar em um novo territoacuterio

No entanto o diaacutelogo com os autores especialmente os do design torna-se agraves vezes mais

difiacutecil de se efetivar uma vez que os temas relacionados agrave nossa pesquisa se encontram

esparsos em artigos e livros dedicados a outras questotildees

Aleacutem disso apesar da proposta daquilo que atualmente eacute nomeado uma ldquofilosofia do

designrdquo estar avanccedilando nas reflexotildees sobre design sentimos falta em alguns autores de

uma caracteriacutestica usual aos teoacutericos das ciecircncias humanas e sociais a de explicitar suas

filiaccedilotildees ideoloacutegicas ou a que linhas de pensamento eles se contrapotildeem ao defenderem

suas proacuteprias posiccedilotildees Nesses casos somos obrigados a um adicional exerciacutecio de her-

menecircutica buscando razotildees subjacentes aos textos as vezes em frases curtas e palavras

extraindo delas nossa interpretaccedilatildeo Dadas essas circunstacircncias trazer os fundamentos

ontoloacutegicos para o debate nas relaccedilotildees entre design e arte eacute tarefa que exige a inserccedilatildeo de

elementos propedecircuticos de origem filosoacutefica (como a lista terminoloacutegica do iniacutecio deste

capiacutetulo) que pode se tornar enfadonha para parte dos leitores Por tudo isso quanto

ao escopo da tese procuramos natildeo avanccedilar em direccedilatildeo a abordagens de acircmbito pedagoacute-

gico social e econocircmico entre outras igualmente relevantes e produtivas para se pensar

as bases das relaccedilotildees entre design e arte mas privilegiamos o enfoque ontoloacutegico que

acreditamos precede aos demais

53

2 ORIGENS E CONSEQUEcircNCIAS DA HIERARQUIZACcedilAtildeO DA

CIEcircNCIA TEacuteCNICA E ARTE

Tendo o escopo da tese delimitado iniciamos o capiacutetulo atual com algumas consideraccedilotildees

sobre a intenccedilatildeo que nos guia e jaacute se encontra anunciada quando apresentamos o graacutefico

da figura 2 (p 45) a propoacutesito das origens histoacutericas de nosso tema As definiccedilotildees de

phyacutesis poacuteiesis episteacuteme e teacutekhne tecircm um entrelaccedilamento de suas essecircncias proacuteprio da

visatildeo de mundo grega mas que foi se esgarccedilando com o passar dos seacuteculos e chegam agrave

atualidade separadas nas ideias de natureza produccedilatildeo ciecircncia e arte O presente capiacute-

tulo efetiva a primeira das quatro etapas do meacutetodo ou seja busca uma compreensatildeo

preliminar de alguns elementos constituintes e comuns ao design e agrave arte que no nosso

entendimento foram herdados de um periacuteodo na histoacuteria do pensamento onde uma

cisatildeo e hierarquizaccedilatildeo dos conceitos de ciecircncia teacutecnica e arte estavam em andamento

Assim eacute preciso retornar a essa eacutepoca para compreender as razotildees desse processo O

texto se divide em trecircs partes

Na primeira seccedilatildeo iniciamos com as quatro concepccedilotildees gregas anteriores como

parte da formaccedilatildeo da estrutura do pensamento claacutessico que nos chancelam a entrada no

universo teoacuterico de Platatildeo acerca do conhecimento

Na segunda seccedilatildeo tendo em conta a divisatildeo e hierarquizaccedilatildeo que a teoria platocircnica

propotildee para o conhecimento e as produccedilotildees humanas analisamos a ruptura que se esta-

belece ainda na Greacutecia antiga entre ciecircncia entendida como conhecimento verdadeiro

(episteacuteme) e arte mimeacutetica enquanto mera coacutepia no mundo sensiacutevel

Na terceira frente a influecircncia quase hegemocircnica dessa concepccedilatildeo de origem platocircnica

nos ciacuterculos cientiacuteficos da contemporaneidade partimos das descriccedilotildees de Koyreacute e das

criacuteticas de Nietzsche para destacarmos as nuances das posiccedilotildees de Tomaacutes Maldonado

Gui Bonsiepe Rafael Cardoso e Beat Schneider no emaranhado das relaccedilotildees entre ciecircncia

teacutecnica design e arte E em busca de um contraponto conceitual criticamos a visatildeo do

platonismo apoiando-n0s nas posiccedilotildees de cada um desses quatro autores Em seguida de

posse de alguns conceitos de Vileacutem Flusser e Rafael Cardoso encaminhamos as reflexotildees

para conexotildees especiacuteficas entre design ciecircncia teacutecnica e arte e propomos uma primeira

incursatildeo no acircmbito da ontologia contrapondo as concepccedilotildees desses dois autores

54

21 A essecircncia compartilhada de quatro conceitos gregos

Para a anaacutelise das palavras gregas phyacutesis poacuteiesis teacutekhne e episteacuteme buscamos definiccedilotildees

principalmente no Diccionario de Filosofia Joseacute Ferrater Mora (1979) e no Dicionaacuterio

Grego-Portuguecircs (dgp) de Malhadas Dezotti e Neves (2006ndash2010) Nossa intenccedilatildeo

foi equilibrar os conteuacutedos mais especiacuteficos do primeiro leacutexico com os mais gerais do

segundo A especificidade do Diccionario de Filosofia Ferrater Mora expliacutecita no proacuteprio

nome se comprova em verbetes que privilegiam os sentidos ligados agrave filosofia e aacutereas cor-

relatas Por outro lado de forma complementar o Dicionaacuterio Grego-Portuguecircs (dgp)

tem como proposta atender ldquodiversas aacutereas do conhecimentordquo sendo ldquoum dicionaacuterio de

liacutengua isto eacute natildeo-enciclopeacutedicordquo (malhadas dezotti neves 2006 v 1 p vii)

Aleacutem disso ambos os dicionaacuterios privilegiam o momento histoacuterico de nosso interesse

o Ferrater Mora inicia cada verbete discorrendo sobre a origem da entrada enunciada

normalmente a antiguidade claacutessica e o dgp concentra-se na liacutengua grega antiga natildeo

incluindo o leacutexico moderno

Em relaccedilatildeo agrave pesquisa dos conceitos subjacentes a essas quatro palavras nos apoiamos

sobretudo em dois autores Novamente Ferrater Mora (1979) por seu direcionamento

a temas filosoacuteficos e por suas anaacutelises circunscreverem tambeacutem as posteriores traduccedilotildees

dessas palavras para o latim E Heidegger (2012) por fazer um caminho no tempo na

direccedilatildeo inversa agrave de Ferrater Mora incorporando aos seus estudos filoloacutegicos o momento

do pensamento preacute-socraacutetico imediatamente anterior ao periacuteodo claacutessico de Platatildeo e

Aristoacuteteles Nesse sentido a contribuiccedilatildeo de ambos eacute relevante para a compreensatildeo de um

contexto histoacuterico mais alargado da cisatildeo entre ciecircncia teacutecnica e arte Passemos entatildeo

agraves palavras e seus conceitos

211 Phyacutesis

Entre os gregos a ideia de phyacutesis (φύσις) corresponde ao real enquanto independente

ou seja aquilo que existe por si Phyacutesis pode ser empregada em vaacuterios sentidos Talvez o

55

mais comum dos seus significados seja a ideia de reuniatildeo ou totalidade dos seres naturais

ou natureza Nesse sentido geral como afirma Ferrater Mora (1979 v 3 p 2309) ocorre

o emprego da grafia com maiuacutescula como um nome proacuteprio ldquoa Naturezardquo

Em uma acepccedilatildeo especiacutefica e independente da anterior natureza determina a essecircn-

cia de um ser particular como por exemplo ao afirmar-se que a natureza do homem eacute

a razatildeo a poliacutetica ou a guerra Entre os diversos sentidos da palavra acumulados desde

entatildeo essas duas acepccedilotildees (uma abrangente outra restritiva) se preservaram ateacute os dias

de hoje o que favorece de algum modo nosso entendimento acerca deste conceito pelo

menos nesses dois aspectos

Tal eacute a importacircncia da palavra em sua origem que Ferrater Mora inclui em seu Dic-

cionario de Filosofia aleacutem do verbete natureza o verbete phyacutesis considerando o

segundo uma introduccedilatildeo ao primeiro A este propoacutesito ele afirma

Geralmente traduz-se φύσις [phyacutesis] por lsquonaturezarsquo [] Com efeito φύσις eacute o nome que corresponde ao verbo φύω [phyacuteo] (infinitivo φύειν [phyacuteein]) o qual significa ldquoproduzirrdquo ldquofazer crescerrdquo ldquoengendrarrdquo ldquocrescerrdquo formar-serdquo etc [] daiacute φύσας [phyacutesas] ldquoengendradorrdquo ldquogeradorrdquo ldquoprogenitorrdquo quer dizer ldquopairdquo Analogamente natura [latim] eacute o nome que corresponde ao verbo nascor (in-finitivo nasci) que significa ldquonascerrdquo ldquoformar-serdquo ldquocomeccedilarrdquo ldquoser produzidordquo como em ex me natus est ldquonascido de mim (eacute meu filho)rdquo Daiacute que φύσις [phyacutesis] equivale (pelo menos em grande parte) a natura e seja traduzido por lsquonaturezarsquo enquanto que ldquoo que surgerdquo ldquoo que nascerdquo ldquoo que eacute engendrado (ou engendra)rdquo e por isso tambeacutem certa qualidade inata ou propriedade que pertence agrave coisa de que se trata e que faz que esta coisa seja o que eacute em virtude de um princiacutepio proacuteprio seu (ferrater mora 1979 v 3 p 2569) Traduccedilatildeo nossa

A variedade de significados de phyacutesis na liacutengua grega tambeacutem se mostra no Dicionaacuterio

de Grego-Portuguecircs (dgp) tanto pelo espaccedilo maior dedicado ao verbete quanto pelas

15 acepccedilotildees das quais apresentamos em resumo as oito primeiras

1 natureza qualidade natural qualidade ou propriedade constitutiva maneira de ser [] 2 natureza do corpo compleiccedilatildeo fiacutesica forma exterior talhe es-tatura etc [] 3 natureza do espiacuterito ou da alma disposiccedilatildeo natural iacutendole caraacuteter [] 4 instinto (de animal) 5 ordem natural natureza [] 6 gera-ccedilatildeo nascimento [] 7 Fil natureza como princiacutepio origem 8 constituiccedilatildeo geral das coisas natureza universo mundo criado [] (malhadas dezotti neves 2010 v 5 p 225)

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Como podemos observar no dgp somente a partir da quinta acepccedilatildeo os significados

se aproximam mais de conceitos filosoacuteficos Mas tendo em vista a semelhanccedila do sentido

de palavras como engendrar gerar e produzir empregadas nos dois dicionaacuterios consta-

tamos que o conceito de produccedilatildeo perpassa diversas acepccedilotildees de phyacutesis Isso jaacute era de se

esperar uma vez que como afirmamos a natureza eacute aquilo que existe por si Portanto

esta existecircncia espontacircnea exige capacidade de autoproduccedilatildeo

Faccedilamos uma pausa para refletir sobre o que se conquista ateacute aqui A identificaccedilatildeo

desse liame entre natureza e produccedilatildeo eacute decisiva para a nossa abordagem Estaacutevamos nos

referindo a esse tipo de viacutenculo quando no capiacutetulo 1 defendemos a ideia de plasticidade

dos conceitos gregos que abarcam diferentes domiacutenios teoacutericos e praacuteticos O conceito de

produccedilatildeo que ateacute este momento se apresenta como constituinte da phyacutesis iraacute se revelar

tambeacutem nas anaacutelises da teacutekhne e da episteacuteme Para tanto eacute necessaacuterio compreender pro-

duccedilatildeo primariamente em seu sentido lato como poacuteiesis

212 Poacuteiesis

Normalmente traduzida como produccedilatildeo poacuteiesis (ποίησις) tambeacutem tem vaacuterias acepccedilotildees

por seu emprego em diversas aacutereas e circunstacircncias desde o uso comum e cotidiano na

vida grega ateacute no discurso mitoloacutegico artiacutestico e filosoacutefico Eacute fundamentalmente uma

concepccedilatildeo abstrata por sua caracteriacutestica de generalidade Dela derivam seus modos

particulares e concretos E como ocorre com os conceitos de caraacuteter geral a compreen-

satildeo da abstraccedilatildeo favorece ao entendimento de suas manifestaccedilotildees concretas e vice-versa

Algumas acepccedilotildees no dgp mostram isso

1 accedilatildeo de fazer criaccedilatildeo 2 crist a criaccedilatildeo ie o mundo criado 3 fabrica-ccedilatildeo confecccedilatildeo de (trabalho manual) gen 4 accedilatildeo de compor obras poeacuteticas 5 faculdade de compor obras poeacuteticas arte da poesia 6 composiccedilatildeo poeacutetica obra poeacutetica poema 7 arte poeacutetica [] (malhadas dezotti neves 2009 v 4 p 101)

57

Heidegger confirma e reforccedila a abrangecircncia da poacuteiesis ao afirmar que ela abarca tanto

as produccedilotildees humanas como as da natureza indicando uma classificaccedilatildeo ou ordenaccedilatildeo

em graus de importacircncia na constituiccedilatildeo da realidade

Tudo agora depende de se pensar a pro-duccedilatildeo[1] e o pro-duzir em toda a sua amplitude e ao mesmo tempo no sentido dos gregos Uma pro-duccedilatildeo ποίησις [poacuteiesis] natildeo eacute apenas a confecccedilatildeo artesanal e nem somente levar a aparecer e conformar poeacutetica e artisticamente a imagem e o quadro Tambeacutem a φύσις [phyacutesis] o surgir e elevar-se por si mesmo eacute uma pro-duccedilatildeo eacute ποίησις [poacuteiesis] A φύσις [phyacutesis] eacute ateacute a maacutexima ποίησις [poacuteiesis] Pois o vigente φύσει [phyacutesei] tem em si mesmo (ἐν ἐαυτῷ) [en eautoacutei] o eclodir da pro-duccedilatildeo Enquanto o que eacute produzido pelo artesanato e pela arte por exemplo o caacutelice de prata natildeo possui o eclodir da pro-duccedilatildeo em si mesmo mas em um outro (ἐν αλλῷ) [en alloacutei] no artesatildeo e no artista (heidegger 2012 p 16)

A densidade do texto de Heidegger exige uma anaacutelise por partes Existem pelo

menos trecircs pontos que se entrelaccedilam na citaccedilatildeo anterior que merecem ser explicitados

Primeiramente Heidegger subsume phyacutesis agrave poacuteiesis e a classifica como o mais alto niacutevel

de produccedilatildeo Tal viacutenculo entre poacuteiesis e phyacutesis dentro de uma hierarquia mais do que

apontar para a essecircncia comum de natureza e produccedilatildeo apresenta a natureza como um

entre outros tipos de produccedilatildeo Heidegger no entanto atenta para um segundo pon-

to o que justifica a posiccedilatildeo ldquomaacuteximardquo da phyacutesis dentro do gecircnero das produccedilotildees eacute sua

1 Heidegger tem um estilo de escrita que separa palavras e une outras para reforccedilar sentidos que natildeo se expressam explicitamente na grafia normal Isso segundo ele pode gerar ldquomal-entendidosrdquo Mas a liacutengua em que ele escreve favorece a esse tipo de intervenccedilatildeo Como afirma Fernando Mendes Pessoa

ldquoHeidegger utiliza-se de um recurso que a liacutengua alematilde oferece em sua possibilidade de compor palavras atraveacutes da junccedilatildeo de diferentes partiacuteculas a um mesmo radical dando diversas nuances a seu sentidordquo (pessoa 2009 p 195) Aleacutem disso o proacuteprio Heidegger a propoacutesito do uso incomum que ele oferece por exemplo para a palavra ldquoGestellrdquo (composiccedilatildeo) como teacutecnica considera uma estravagacircncia e se justifica ldquoSoacute que esta extravagacircncia eacute um antigo costume do pensamento E os pensadores tornam-se extravagantes precisamente quando tecircm de pensar o mais elevado Noacutes epigonais jaacute natildeo possuiacutemos condiccedilatildeo de avaliar o significado do fato de Platatildeo aventurar-se a utilizar a palavra εἶδος [eidos] para dizer a essecircncia de tudo e de cada coisa Pois na linguagem de todo dia εἶδος [eidos] diz a visatildeo que uma coisa visiacutevel nos apresenta agrave percepccedilatildeo sensiacutevel Ora Platatildeo pretende da palavra algo inteiramente extraordinaacuterio Pretende designar o que jamais se poderaacute perceber com os olhos E a extravagacircncia natildeo termina aiacute Pois ἰδέα [idea] natildeo evoca apenas o perfil natildeo sensiacutevel do que se vecirc sensivelmente Ιδέα [idea] o perfil significa e eacute tambeacutem o que perfaz a essecircncia de tudo que se pode ouvir tocar sentir de tudo que de alguma maneira se nos torna acessiacutevel Comparado com o que Platatildeo pretende da liacutengua e do pensamento neste e em outros casos o uso que ousamos agora fazer da palavra ldquoGestellrdquo com-posiccedilatildeo para dizer a essecircncia da teacutecnica moderna eacute quase inocente E natildeo obstante continua sendo uma pretensatildeo sujeita a muitos mal-entendidosrdquo (heidegger 2012 p 23-24)

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capacidade de autoproduccedilatildeo sua autonomia ou com suas palavras ldquoo surgir e elevar-se

por si mesmordquo O terceiro ponto eacute que a percepccedilatildeo da diferenciaccedilatildeo entre produccedilatildeo natu-

ral e produccedilatildeo humana ocorre justamente pelo entendimento de que produccedilatildeo humana

natildeo eacute autoproduccedilatildeo mas produccedilatildeo em um ldquooutrordquo Se a coesatildeo e organizaccedilatildeo em torno

desses trecircs pontos apresenta seu nuacutecleo na ideia de produccedilatildeo a uacuteltima delas por natildeo ser

em si mesma conduz nossa anaacutelise para a teacutekhne

213 Teacutekhne

Teacutekhne (τέχνη) eacute mais uma palavra com muitas acepccedilotildees pois tambeacutem acrescenta aos

sentidos de uso comum os de caraacuteter e emprego filosoacutefico que foram sendo atribuiacutedos

pelos pensadores gregos Conforme o que define o dgp

1 destreza manual habilidade 2 exerciacutecio de uma habilidade manual ofiacutecio profissatildeo [] 3 arte habilidade [] 4 conhecimento teoacuterico metodologia 5 artifiacutecio astuacutecia intriga maquinaccedilatildeo 6 meio expediente [] 7 produto de uma arte obra de arte obra 8 tratado sobre uma arte [] (malhadas dezotti neves 2010 v 5 p 122)

Considerando que a ordem de numeraccedilatildeo das acepccedilotildees em um dicionaacuterio procede

dos significados mais evidentes e usuais para os menos comuns ou mais exclusivos a seacuteti-

ma posiccedilatildeo deve indicar um sentido subjacente ou especiacutefico ligado agrave palavra produccedilatildeo

ou pelo menos com o resultado de uma produccedilatildeo isto eacute seu ldquoprodutordquo Uma vez que

importa dados os nossos propoacutesitos buscarmos relacionar cada nova palavra e conceito

com os demais jaacute descritos vamos direto para a seacutetima acepccedilatildeo Associar teacutekhne a produto

como faz o dicionaacuterio a insere dentro do domiacutenio da poacuteiesis E Heidegger argumenta na

mesma direccedilatildeo

τέχνικόν [teacutekhnikoacuten] diz o que pertence agrave τέχνη [teacutekhne] Devemos considerar duas coisas com relaccedilatildeo ao sentido desta palavra De um lado τέχνη [teacutekhne] natildeo constitui apenas a palavra do fazer na habilidade artesanal mas tambeacutem do fazer da grande arte e das belas-artes A τέχνη [teacutekhne] pertence agrave pro-duccedilatildeo a ποίησις [poacuteiesis] eacute portanto algo poeacutetico (heidegger 2012 p 17)

59

Na citaccedilatildeo anterior o mais relevante para a nossa anaacutelise eacute a identificaccedilatildeo do viacutencu-

lo entre teacutekhne e poacuteiesis equivalente ao que Heidegger reconhece ocorrer entre phyacutesis e

poacuteiesis A consequecircncia eacute que ambas podem ser entendidas como produccedilatildeo Aleacutem disso

o filoacutesofo indica o emprego ambivalente da palavra tanto no trabalho artesanal quanto

no das belas-artes significados que se concentram nas trecircs primeiras acepccedilotildees do dgp

Essas por serem atividades profissionais pressupotildeem produccedilatildeo e conhecimento poreacutem

carregam o sentido mais comum de habilidade associada ao uso das matildeos como ofiacutecio

ou arte Ferrater Mora de modo semelhante mostra como os conceitos de teacutekhne e arte

se imbricam em algumas acepccedilotildees

Os gregos usavam o termo τέχνη [teacutekhne] (com frequecircncia traduzido por ars lsquoartersquo e que eacute a raiz etimoloacutegica de lsquoteacutecnicarsquo para designar uma habilidade mediante a qual se faz algo mdash geralmente se transforma uma realidade natural em uma realidade ldquoartificialrdquomdash A teacutechne natildeo eacute no entanto qualquer habilidade senatildeo uma que segue certas regras por meio das quais se consegue algo Por isso existe uma teacutechne da navegaccedilatildeo (ldquoarte da navegaccedilatildeordquo) uma teacutechne da caccedila (ldquoarte da caccedilardquo) uma teacutechne do governo (ldquoa arte de governarrdquo) etc (ferrater mora 1979 v 4 p 2569) Traduccedilatildeo nossa

O trecho acima eacute o prenuacutencio do duplo caminho que teacutekhne iraacute seguir historicamente

quando por um lado for traduzida por ars (arte) na liacutengua e cultura latina e por outro

passar etimologicamente tambeacutem para o latim com o conceito diverso de teacutecnica Aten-

temos aqui para a duplicidade de sentidos de teacutekhne apontada por Ferrater Mora como

trabalho artesanal e belas-artes que se aproxima da ambivalecircncia indicada por Heidegger

Ainda uma uacuteltima questatildeo em relaccedilatildeo agrave citaccedilatildeo anterior eacute a particularidade da teacutekhne

em funccedilatildeo de sua necessidade de ldquoregrasrdquo Tal especificidade eacute correlata agrave quarta acepccedilatildeo

do dgp que relaciona teacutekhne com conhecimento teoacuterico e metodologia Esse acordo de

sentidos entre teacutekhne conhecimento teoacuterico e metodologia eacute tambeacutem confirmado por

Heidegger na permuta de significados que ocorre entre os conceitos de teacutekhne e espisteacuteme

[] o que vale considerar ainda a propoacutesito da palavra τέχνη [teacutekhne] eacute de maior peso Τέχνη [teacutekhne] ocorre desde cedo ateacute o tempo de Platatildeo juntamente com a palavra ἐπιστήμη [episteacuteme] Ambas satildeo palavras para o conhecimento em seu sentido mais amplo Dizem ser versado em alguma coisa dizem entender do assunto (heidegger 2012 p 17)

60

Se a quarta acepccedilatildeo do dgp tambeacutem se destaca ao relacionar teacutekhne com conheci-

mento o que mais sobressai nesse caso eacute ser conhecimento no acircmbito teoacuterico Natildeo sem

razatildeo Heidegger declara tal relaccedilatildeo ser ldquode maior pesordquo O conhecimento especificado

enquanto ldquoteoacutericordquo atrai a atenccedilatildeo uma vez que na esfera da filosofia episteacuteme deteacutem a

primazia para exprimir um saber especulativo distinto do saber praacutetico Tal proximidade

de sentidos nos leva ateacute a anaacutelise da ultima palavra episteacuteme

214 Episteacuteme

Diferentemente das palavras anteriores episteacuteme (ἐπιστήμη) no dgp somente apresenta

quatro acepccedilotildees

1 experiecircncia habilidade destreza em algo [] 2 conhecimento saber 3 conhecimento cientiacutefico ciecircncia (op a τέχνη [teacutekhne] e a ἐμπειρία [empeiriacutea] e a δόξα [doacutexa]) 4 aplicaccedilatildeo do espiacuterito estudo (malhadas dezotti neves 2007 v 2 p 131)

Apesar do nuacutemero reduzido de sentidos que creditamos agrave especificidade da palavra

os conceitos envolvidos satildeo complexos e isto se mostra na oposiccedilatildeo entre a primeira e a

terceira acepccedilotildees Essa oposiccedilatildeo (indicada pela abreviaturaldquooprdquo no dgp) contrapotildee expe-

riecircncia (empeiriacutea) agrave ciecircncia Outras duas oposiccedilotildees satildeo entre ciecircncia e teacutekhne e ciecircncia e

doacutexa (opiniatildeo) No nosso entendimento considerando a posiccedilatildeo de Platatildeo que veremos

a seguir diriacuteamos que ao inveacutes de pura oposiccedilatildeo ocorreria a partir desse pensador uma

subordinaccedilatildeo em niacuteveis de conhecimento em que episteacuteme se estabelece no topo do saber

teacutekhne em um niacutevel intermediaacuterio e empeiriacutea (experiecircncia sensiacutevel) e doacutexa (opiniatildeo) no

mais baixo niacutevel do senso comum estabelecido no cotidiano

O nuacutemero de variantes de significado das palavras analisadas ateacute aqui eacute muito maior

do que essa exposiccedilatildeo pode mostrar Nossa seleccedilatildeo teve como principal criteacuterio as caracte-

riacutesticas em comum dessas palavras privilegiando suas relaccedilotildees com o conceito de produccedilatildeo

Complementando a anaacutelise apresentamos dois graacuteficos O da figura 3 sintetiza o que foi

exposto ateacute aqui Ele retoma a linha do tempo do graacutefico da figura 2 (cf capiacutetulo 1 p 45)

acrescentando o conceito de phyacutesis e restringindo-se o periacuteodo agrave antiguidade greco-latina

61

O graacutefico da figura 4 manteacutem a estrutura matriz de poacuteiesis da figura 3 e associa as

produccedilotildees humanas agrave teoria pela proacutepria caracteriacutestica do pensamento grego que entende

tanto episteacuteme quanto teacutekhne como um saber que antecede e subsidia o fazer Na origem

de teoria no uso cotidiano da liacutengua teoroacutes (θεωρός) se referia ao espectador dos jogos

oliacutempicos e de outros espetaacuteculos Teoriacutea (θεωρία) significa accedilatildeo de ver de observar con-

templar examinar e especular Sua relaccedilatildeo com o olhar aproxima-a do sentido da palavra

oida (οἶδα) mdash que significa ao mesmo tempo ver e compreender Isso eacute mais um indiacutecio

do quanto os gregos associavam a visatildeo ao conhecimento E o Ocidente eacute herdeiro desse

modo de compreender a realidade

Figura 3 Linha do tempo indicando os sucessivos desdobramentos do conceito de poacuteiesis (produccedilatildeo) no periacuteodo claacutessico greco-latino fonte autor

asymp aC

PERIacuteODO DE PLAacuteSTICIDADEENTRE OS CONCEITOS

EPISTEacuteME

TEacuteKHNE

PHYacuteSIS

SCIENTIA

TECHNICUS

ARS

NATURA

POacuteIESIS

Greacutecia

Figura 4 Representaccedilatildeo das trecircs categorias de produccedilatildeo e a relaccedilatildeo das produccedilotildees humanas (teacutekhne e episteacuteme) com seus fundamentos teoacutericos fonte autor

NATURALTEOacuteRICA TEOacuteRICAPRAacuteTICA

POacuteIESIS

PHYacuteSISTEacuteKHNEEPISTEacuteME

PRODUCcedilAtildeO GERAL

62

22 Hierarquia platocircnica cisatildeo e ruptura

Platatildeo herda os conceitos de phyacutesis poacuteiesis teacutekhne e episteacuteme de seus antecessores e os

reelabora para fundamentar sua teoria acerca do conhecimento No acircmbito de nossa pes-

quisa selecionamos na obra deste pensador o diaacutelogo A repuacuteblica percorrendo algumas

de suas passagens e seguindo seus passos para identificar a hierarquizaccedilatildeo e classificaccedilatildeo

dos tipos de conhecimento e produccedilatildeo humana

A repuacuteblica trata o tema de nosso interesse em trechos distintos como de praxe

em um diaacutelogo platocircnico Nesses momentos Platatildeo constroacutei argumentos tendo como

opositor principal Homero reconhecido na eacutepoca como o grande educador da Greacutecia

A intenccedilatildeo expliacutecita de Platatildeo eacute substituir a poesia pela filosofia reivindicando para esta

uacuteltima o primado da educaccedilatildeo e conduzindo os filoacutesofos ao governo da cidade Para noacutes no

entanto o que importa satildeo as estrateacutegias impliacutecitas a essa intenccedilatildeo Nelas como veremos

estaacute a metafiacutesica de Platatildeo que critica e afasta a arte poeacutetica2 da ciecircncia e da teacutecnica O

diaacutelogo platocircnico tem como protagonista Soacutecrates e alguns disciacutepulos que se revesam na

discussatildeo dos temas Nos trechos analisados os personagens concentram sua reflexatildeo em

torno da proposta de criaccedilatildeo de uma cidade justa Para tanto Soacutecrates argumenta sobre

o imperativo de que cada fundador da cidade trabalhe no ofiacutecio que conheccedila melhor

Ƕ Por Zeus que nada me admira mdash disse eu mdash Ao ouvir-te falar penso tambeacutem que em primeiro lugar cada um de noacutes natildeo nasceu igual a outro mas com naturezas diferentes cada um para a execuccedilatildeo de sua tarefa Ou natildeo te parece

Ƕ Parece-me Ƕ Como assim Uma pessoa faraacute melhor em trabalhar sozinho em muitos ofiacutecios ou quando for soacute um a executar um

Ƕ Quando for um soacute a executar um Ƕ Mas julgo eu que eacute tambeacutem evidente que se algueacutem deixar fugir a oportunidade de fazer uma coisa perde-a

Ƕ Eacute evidente

2 A criacutetica platocircnica agrave arte pode ser dividida em trecircs partes A primeira (de conteuacutedo) vai do fim do livro ii ao iniacutecio do livro iii A segunda (ligada agrave forma ao estilo) inicia-se em 392c e avanccedila pelo livro iii A terceira (ontoloacutegica) vai do iniacutecio do livro x ateacute 608b sendo a mais contundente e relevante para os nossos propoacutesitos

63

Ƕ Eacute que creio eu a obra natildeo espera pelo lazer do obreiro mas forccedila eacute que o obreiro acompanhe o seu trabalho sem ser agrave maneira de um passatempo

Ƕ Eacute forccediloso Ƕ Por conseguinte o resultado eacute mais rico mais belo e mais faacutecil quando cada pessoa fizer uma soacute coisa de acordo com a sua natureza e na ocasiatildeo proacutepria deixando em paz as outras

Ƕ Absolutamente (platatildeo 1987 p 74)

Se os homens possuem naturezas distintas a teacutekhne mdash arte em seu sentido de ofiacutecio

pressupondo um conhecimento que cada profissional deve dominar mdash se impotildee como

criteacuterio de separaccedilatildeo entre as atividades mas tambeacutem de hierarquizaccedilatildeo dos saberes Aqui

a intenccedilatildeo impliacutecita de Platatildeo eacute que a compreensatildeo sobre o domiacutenio da arte ou das diver-

sas artes ultrapasse o acircmbito gnoseoloacutegico em busca de seus fundamentos ontoloacutegicos

Como afirma o filoacutesofo Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro

Afinal de contas em se tratando de viajar por alto mar natildeo eacute indiferente admitir a opiniatildeo do piloto ou a do leigo Um primeiro sentido de ldquoarterdquo eacute esse uma com-petecircncia que se aprende e se exercita pela qual os que de fato a aprenderam e a exercitaram se distinguem dos demais constituindo-se em autoridades ldquonaturaisrdquo nos seus respectivos domiacutenios Mas o ponto mais importante natildeo eacute de ordem gnosioloacutegica e sim ontoloacutegica os domiacutenios de coisas teriam um modo de ser proacuteprio teriam um ldquoem-sirdquo vale dizer que o experiente conheceria e dominaria pouco a pouco tirando partido posteriormente daquilo que natildeo escolheu mas a que se rendeu a essecircncia da proacutepria coisa A existecircncia de vaacuterias artes parece atestar que sim (ribeiro 2006 p 104)

No entanto essa proposta subjacente ao texto de Platatildeo mdash de um domiacutenio de um

territoacuterio real da teacutekhne que pode ser acessado atraveacutes do aprendizado mdash eacute apresentada em

um processo dialoacutegico em que o discurso de Soacutecrates caminha no sentido de constituir

uma cidade justa e portanto livre de tudo o que segundo ele eacute supeacuterfluo E os disciacutepulos

que ouvem na roda do diaacutelogo suas sugestotildees para uma cidade saudaacutevel onde o que mais

importa eacute a subsistecircncia humana discordam da consequente simplicidade de vida a que

seus habitantes devem se submeter Glaacuteucon eacute o mais ousado deles ao replicar

Ƕ Se estivesses a organizar oacute Soacutecrates mdash interveio ele mdash uma cidade de porcos natildeo precisavas de outra forragem para eles

Ƕ Mas entatildeo como haacute-de ser oacute Glaacuteucon

64

Ƕ O costume mdash respondeu ele mdash Acho que devem reclinar-se em leitos se natildeo quiserem que se sintam infelizes e que jantem agrave mesa iguarias como hoje haacute e sobremesas

Ƕ Seja mdash disse eu mdash Compreendo Natildeo estamos apenas a examinar ao que parece a origem de uma cidade mas uma cidade de luxo Talvez natildeo seja mau Efectivamente ao estudarmos uma cidade dessas depressa podemos desco-brir de onde surgem nas cidades a justiccedila e a injusticcedila A verdadeira cidade parece-me ser aquela que descrevemos como uma coisa satilde mas se quiserdes observaremos tambeacutem a que estaacute inchada de humores Nada o impede Bem estas determinaccedilotildees natildeo bastam ao que parece a certas pessoas nem este pas-sadio mas acrescentar-lhes-atildeo leitos mesas e outros objectos e ainda iguarias perfumes e incenso cortesatildes e guloseimas e cada uma destas coisas em toda a sua variedade Em especial natildeo mais se colocaraacute entre as coisas necessaacuterias o que dissemos primeiro mdash habitaccedilotildees vestuaacuterio e calccedilado mdash ir-se-aacute buscar a pintura e o colorido e entender-se-aacute que se deve possuir ouro marfim e preciosidades dessa espeacutecie Eacute ou natildeo

Ƕ Eacute mdash respondeu ele (platatildeo 1987 p 79)

A consequecircncia imediata de se aceitar o ldquoluxordquo na cidade eacute a obrigatoriedade de trazer

para ela os artiacutefices que com suas respectivas artes possam produzir e prover as demais

aspiraccedilotildees dos cidadatildeos Poreacutem junto com esses produtores que tem domiacutenio de uma

teacutekhne precisam vir tambeacutem aqueles cujo trabalho Platatildeo entende como imitaccedilatildeo Nas

palavras de Soacutecrates

Ƕ Portanto temos de tornar a cidade maior A que era satilde natildeo eacute bastante mas temos de a encher de uma multidatildeo de pessoas que jaacute natildeo se encontra na cidade por ser necessaacuteria como os caccediladores de toda a espeacutecie e imitadores muitos dos quais satildeo os que se ocupam de desenho e cores muitos outros da arte das Musas ou seja os poetas e seus servidores mdash rapsodos actores coreutas empresaacuterios mdash artiacutefices que fabriquem toda a espeacutecie de utensiacutelios sobretudo adereccedilos femi-ninos E em especial precisaremos de mais servidores Ou natildeo te parece que careceremos de pedagogos amas governantes accedilafatas cabeleireiros e ainda cozinheiros e marchantes (platatildeo 1987 p 80)

A narrativa de Platatildeo impressiona por sua semelhanccedila com a histoacuteria dos problemas

e das necessidades de uma cidade contemporacircnea em crescimento E as consequecircncias

tambeacutem a longo prazo com mais pessoas na cidade a terra se torna escassa e com a falta

de espaccedilo para pastagens lavoura e outras atividades de subsistecircncia segue-se a falta de

alimentos o que conduz agrave guerra contra outras cidades

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221 A metafiacutesica impliacutecita ao tema da cidade ideal

Cabe neste ponto uma ressalva os textos antigos normalmente natildeo tratam separada-

mente temas de poliacutetica justiccedila eacutetica loacutegica ciecircncia e arte entre outros Assim como

jaacute dissemos eacute preciso nos manter atentos pois paralelamente a essa narrativa hipoteacutetica

sobre a origem e constituiccedilatildeo de uma Cidade Estado (poacutelis) estaacute impliacutecita a metafiacutesica

platocircnica com a divisatildeo que nos interessa explicitar a hierarquia dos tipos de saberes e

produccedilatildeo como a teacutekhne em sua relaccedilatildeo com a episteacuteme De um lado encontra-se a classe

dos artiacutefices que tecircm um conhecimento e uma teacutekhne que oferece suporte ao seu trabalho

realizando somente um tipo de obra em que satildeo capacitados e tecircm domiacutenio De outro a

dos artiacutefices que produzem obras que satildeo imitaccedilotildees Essa segunda classe depreciada3 por

Platatildeo tem como representantes maacuteximos os poetas Como afirma Ribeiro

Se a arte em sentido lato portanto estaacute no homem desde o comeccedilo a arte em sentido estrito surge quando o homem supera o patamar da mera subsistecircncia e se entrega agrave dimensatildeo supeacuterflua de sua existecircncia O preccedilo dessa superaccedilatildeo eacute cariacutessimo mas o fato de os homens estarem sempre dispostos a pagaacute-lo revela o elemento traacutegico de sua condiccedilatildeo (ribeiro 2006 p 111)

Portanto para fazer a guerra eacute necessaacuterio uma nova classe de profissionais os guerreiros

ou ldquoguardiotildeesrdquo com uma teacutekhne especiacutefica ou uma ciecircncia (episteacuteme) especiacutefica como

prefere Platatildeo neste trecho4dodiaacutelogoldquoEssaciecircnciaeacutedavigilacircncia[]eencontra-se

naqueles chefes que agora mesmo classificamos de guardiotildees perfeitosrdquo (platatildeo 1987 p

178) Assim o proacuteximo passo eacute pensar como educar essa classe desde a infacircncia pois ela

iraacute proteger a cidade e fazer guerra quando necessaacuterio E a educaccedilatildeo depende da literatura

3 Tal depreciaccedilatildeo eacute relativa Platatildeo critica um procedimento do qual ele tambeacutem faz intenso uso Con-forme Ribeiro ldquoPlatatildeo ele mesmo usou mais imitaccedilatildeo que narraccedilatildeo em seus diaacutelogos filosoacuteficos e mesmo no caso da narraccedilatildeo sempre pocircs outrem a narrar por ele Natildeo obstante reclamar por uma esteacutetica ldquomais austera e menos apraziacutevelrdquo (austeroteacutero kaigrave aedesteacutero) seu texto eacute na histoacuteria da filoso-fia aquele em que mais interveacutem o elemento pateacutetico pela presenccedila dramaacutetica natildeo raro traacutegica ou cocircmica dos personagens E eacute tambeacutem o mais apraziacutevelrdquo (ribeiro 2006 p 121)

4 Nesta parte de A Repuacuteblica Platatildeo associa episteacuteme natildeo somente agrave profissatildeo dos guardiotildees como tam-beacutem de outras das quais ele normalmente trata como teacutekhne Assim nesse momento ao inveacutes de arte temos ldquociecircncia dos carpinteirosrdquo ldquociecircncia da construccedilatildeordquo ldquociecircncia dos utensiacutelios de madeirardquo ldquociecircncia de trabalhar objetos de bronzerdquo etc (platatildeo 1987 p 177) Isso comprova como afirmou Heidegger anteriormente que tambeacutem Platatildeo explora a ambivalecircncia dos conceitos de teacutekhne e episteacuteme

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Ƕ Mas haacute duas espeacutecies de literatura uma verdadeira e outra falsa Ƕ Haacute Ƕ E ambas seratildeo ensinadas mas primeiro a falsa Ƕ Natildeo entendo o que queres dizer Ƕ Natildeo compreendes mdash disse eu mdash que primeiro ensinamos faacutebulas agraves crianccedilas Ora no conjunto as faacutebulas satildeo mentiras embora contenham algumas verdades E servimo-nos de faacutebulas para as crianccedilas antes de as mandarmos para os ginaacutesios

Ƕ Assim eacute (platatildeo 1987 p 87)

As palavras de Soacutecrates demonstram a estrateacutegia de Platatildeo de fechar o cerco em torno

dos poetas e rapsodos sob o argumento de que os guerreiros devem ser corajosos e natildeo dar

ouvidos a histoacuterias que estimulam a ira o medo e outras emoccedilotildees que prejudiquem suas

accedilotildeesldquo[]quantomaispoeacuteticasmenosdevemserouvidasporcrianccedilaseporhomens

que devem ser livres e temer a escravatura mais do que a morterdquo (platatildeo 1987 p 178)

222 O argumento ontoloacutegico contra a arte mimeacutetica

No fundamento de uma decisatildeo de caraacuteter pedagoacutegico (educar com excelecircncia os guar-

diotildees) encontra-se a divisatildeo platocircnica em trecircs niacuteveis da produccedilatildeo (poacuteiesis) que buscamos O

passo final de Soacutecrates eacute associar o poeta e outros artistas como o pintor e o tragedioacutegrafo

ao mais baixo niacutevel de uma hierarquia ontoloacutegica em que o resultado de seus trabalhos

natildeo satildeo entendidos como produccedilatildeo mas somente imitaccedilatildeo (miacutemesis)

Ƕ Acaso natildeo existem trecircs formas de cama Uma que eacute a forma natural e da qual diremos segundo entendo que Deus a confeccionou Ou que outro Ser poderia fazecirc-lo

Ƕ Nenhum outro julgo eu Ƕ Outra a que executou o marceneiro Ƕ Sim Ƕ Outra feita pelo pintor Ou natildeo Ƕ Seja Ƕ Logo pintor marceneiro Deus esses trecircs seres presidem aos tipos de leito Ƕ Satildeo trecircs Ƕ Ora Deus ou porque natildeo quis ou porque era necessaacuterio que ele natildeo fabricasse mais do que uma cama natural confeccionou assim aquela uacutenica cama a cama real Mas duas camas desse tipo ou mais eacute coisa que Deus natildeo criou nem criaraacute

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Ƕ Como assim Ƕ Eacute que se fizesse apenas duas apareceria outra cuja ideia aquelas duas realizariam e essa seria a cama real natildeo as outras duas

Ƕ Exactamente Ƕ Por saber isso julgo eu eacute que Deus querendo ser realmente o autor de uma cama real e natildeo de uma qualquer nem um marceneiro qualquer criou-a na sua natureza essencial una

Ƕ Assim parece Ƕ Queres entatildeo que o intitulemos artiacutefice natural da cama ou algo de semelhante Ƕ Eacute justo uma vez que foi ele o criador disso e de tudo o mais na sua natureza essencial

Ƕ E quanto ao marceneiro Acaso natildeo lhe chamaremos o artiacutefice da cama Ƕ Chamaremos Ƕ E do pintor diremos tambeacutem que eacute o artiacutefice e autor de tal moacutevel Ƕ De modo algum Ƕ Entatildeo que diraacutes que ele eacute em relaccedilatildeo agrave cama Ƕ O tiacutetulo que me parece que se lhe ajusta melhor eacute o de imitador daquilo de que os outros satildeo artiacutefices

Ƕ Seja mdash concordei eu mdash Chamas por conseguinte ao autor aquilo que estaacute trecircs pontos afastado da realidade um imitador

Ƕ Exactamente Ƕ Logo tambeacutem o tragedioacutegrafo seraacute assim (se na verdade eacute um imitador) como se fosse o terceiro depois do rei e da verdade e bem assim todos os outros imitadores (platatildeo 1987 p 455)

Esta longa exposiccedilatildeo faz parte daquilo que ficou conhecido como o argumento

ontoloacutegico de Platatildeo contra a arte mimeacutetica e tem sido motivo de estudo e debate desde

a antiguidade O ponto fundamental para o nosso tema eacute a divisatildeo que este pensador

estabelece para a realidade em trecircs esferas com caracteriacutesticas ontoloacutegicas distintas

Grosso modo a primeira e mais elevada esfera de onde derivam as demais eacute a do

mundo inteligiacutevel ou mundo das ideias Do ponto de vista ontoloacutegico essa eacute a realidade

e laacute se encontra um ldquomodelordquo (παραδειγμαmdashparadeigma) universal para cada ente Pla-

tatildeo nomeia ora como ldquoDeusrdquo ora ldquodemiurgordquo ora ldquoartiacutefice naturalrdquo aquele que fabrica ou

modela cada elemento da realidade a partir de ideias preexistentes O conceito de pree-

xistecircncia das ideias pode parecer extravagante mas ele tem mais proximidade ao conceito

de produccedilatildeo empregado ateacute agora do que ao de criaccedilatildeo Esta questatildeo seraacute retomada ainda

neste capiacutetulo nas anaacutelises sobre as concepccedilotildees de Flusser mas para o momento importa

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saber que o conceito de produccedilatildeo (poacuteiesis) difere do conceito de criaccedilatildeo (creatio) no sen-

tido hebraico-cristatildeo de criaccedilatildeo a partir do nada (creatio ex nihilo) Produccedilatildeo pressupotildee

uma mateacuteria primordial desordenada e sem forma (χάοςmdashcaos) que pela accedilatildeo (poacuteiesis)

do demiurgo daacute origem ao coacutesmos (κόσμος) o universo ordenado Conforme a figura 5

A segunda esfera eacute a do mundo sensiacutevel e temporal Ela compartilha ou ldquoparticipardquo

dos modelos eternos da realidade transcendente da primeira esfera mas eacute imperfeita

e aparente A essecircncia da realidade natildeo se encontra nela poreacutem os artiacutefices humanos

atraveacutes do conhecimento (teacutekhneepisteacuteme) tecircm acesso aos modelos ideais e os aplicam

na confecccedilatildeo dos objetos e utensiacutelios e demais artefatos do mundo humano Assim por

exemplo uma uacutenica ideia de cama em sua plenitude e perfeiccedilatildeo permite aos marceneiros

produzirem toda a diversidade de camas existentes Como afirma Ribeiro

Uma coisa pelo menos estaacute totalmente a cargo do artista o remate o efetivo pocircr matildeos agrave obra Dizer que ele obedece a um modelo significa dizer que natildeo cria arbitrariamente [] Nenhuma obra esgota o ser do modelo que imita mas de alguma maneira a criaccedilatildeo contiacutenua de obras pereniza na dimensatildeo temporal nos limites do ser mortal o caraacuteter eterno desse modelo (ribeiro 2006 p 128)

Se o mundo inteligiacutevel eacute a realidade laacute eacute o lugar da verdade Portanto o mundo sensiacutevel

se encontra ontologicamente abaixo do primeiro Na forma de se expressar Platatildeo estaacute

dois pontos afastado da realidade e tambeacutem da verdade Entretanto eacute por ter em mente

o modelo eterno da cama que o marceneiro mesmo executando uma coacutepia imperfeita

da ideia pode carregar o tiacutetulo de ldquoartiacuteficerdquo Conforme a figura 6

Figura 5 Representaccedilatildeo na teoria platocircnica do primeiro niacutevel ontoloacutegico e seu produtor o demiurgo ou artiacutefice natural fonte autor

ARTIacuteFICE NATURAL1ordm NIacuteVEL

MODELOS PERFEITOSE UNIVERSAIS

MATEacuteRIA PREEXISTENTEIDEIAS

DEMIURGO

MUNDO INTELIGIacuteVELREALIDADE

CAOS

Tudo em sua natureza essencial

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Agrave terceira e uacuteltima esfera pertencem todos os que segundo Platatildeo natildeo efetivamente

produzem mas imitam O pintor por exemplo ao produzir uma imagem de uma cama

natildeo vai ateacute agrave ideia de cama mas recorre apenas agrave cama do marceneiro como guia Neste

sentido o pintor ldquoestaacute trecircs pontos afastado da realidaderdquo A figura 7 incorpora o mais

baixo niacutevel ontoloacutegico aos demais superiores e completa o quadro da hierarquia platocircnica

Figura 6 Representaccedilatildeo na teoria platocircnica do segundo niacutevel ontoloacutegico e seu produtor o artiacutefice hu-mano fonte autor

ARTIacuteFICE HUMANO2ordm NIacuteVEL

MATEacuteRIA PREEXISTENTEMODELOS PERFEITOS

E UNIVERSAISIDEIAS

MARCENEIRO

MUNDO INTELIGIacuteVELREALIDADE

MUNDO SENSIacuteVELAPAREcircNCIAS

TEacuteKH

NEE

PIST

EacuteME

Figura 7 Representaccedilatildeo dos trecircs niacuteveis ontoloacutegicos reunidos na hierarquia da metafiacutesica platocircnica O artiacutefice natural e os artiacutefices humanos como o marceneiro satildeo produtores (poieteacutesmdashποιητής) enquanto que os artistas como o pintor o poeta e o ator satildeo apenas imitadores (mimeteacutesmdashμιμητής) fonte autor

ARTIacuteFICE NATURAL1ordm NIacuteVEL

IMITADOR3ordm NIacuteVEL

ARTIacuteFICE HUMANO2ordm NIacuteVEL

MATEacuteRIA PREEXISTENTEMODELOS PERFEITOS

E UNIVERSAISIDEIAS

PINTOR

MARCENEIRO

DEMIURGO

MUNDO INTELIGIacuteVELREALIDADE

MUNDO SENSIacuteVELAPAREcircNCIAS

CAOS

TEacuteKH

NEE

PIST

EacuteME

MIacuteMESIS

Tudo em sua natureza essencial

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O problema da miacutemesis tem lugar privilegiado na discussatildeo platocircnica sobre o criteacuterio

diferenciador entre o conhecimento (episteacuteme) que busca a universalidade e consequente-

mente a verdade orientando as produccedilotildees e a mimeacutetica que eacute apenas aparecircncia e conduz

agraves coacutepias e agrave falsidade Ribeiro resume este ponto explicitando a diferenccedila e a distacircncia

que separa arte enquanto pura teacutekhne da arte mimeacutetica

Mas que mal haacute em ser imitador Todo demiurgo tambeacutem natildeo ldquoimitardquo algo Repetir-se-ia aqui o dogma de que um estaacute dois pontos afastado da verdade (da ideacuteia) enquanto o outro estaacute trecircs por imitar natildeo diretamente a ideacuteia mas seu homocircnimo sensiacutevel e o lugar-comum de que a obra de arte seria a coacutepia da coacutepia Importante poreacutem eacute interpretaacute-los A imitaccedilatildeo fracassa por natildeo corres-ponder ao modo de ser da teacutechne pressuposto como criteacuterio Em primeiro lugar a mimeacutetica imita toda e qualquer coisa como algueacutem que caminha com um espelho nas matildeos reproduzindo os seres naturais e artificiais com que cruza no caminho natildeo se deteacutem como a teacutechne sobre um campo determinado do real [] Homero imita um general um meacutedico e um arauto sem ser perito em nenhum desses domiacutenios Aleacutem disso a mimeacutetica natildeo se preocupa em conhecer como eacute em si e por si mesmo o real correspondente a cada arte que imita jaacute que lhe basta o aparente (phainoacutemenon) para agradar o grande puacuteblico ignorante que julga pela cor (chrocircma) e formato (schecircma) A mimeacutetica natildeo eacute conhecimento (episteacuteme) natildeo se ateacutem agraves determinaccedilotildees universais e necessaacuterias das coisas [] (ribeiro 2006 p 125-126)

Essa busca por um ldquoreal correspondente a cada arterdquo assim como a subordinaccedilatildeo ldquoagraves

determinaccedilotildees universais e necessaacuterias das coisasrdquo que colocamos em relevo na citaccedilatildeo

anterior proacuteprio da pura teacutekhne e mais ainda da episteacuteme satildeo elementos que se preser-

varam como valores intriacutensecos ao conhecimento na trajetoacuteria posterior do pensamento

impondo assim uma hierarquia do saber

Ao teacutermino dessa exposiccedilatildeo sobre Platatildeo um dos pontos que consideramos relevante

sobre a teoria desse pensador para o presente capiacutetulo estaacute ligado a um elemento que

natildeo se encontra agrave primeira vista expliacutecito em sua concepccedilatildeo hierarquizada do conheci-

mento Esse elemento pode ser extraiacutedo de sua metafiacutesica quando entendemos que este

autor procura uma ordem e permanecircncia que natildeo encontra no mundo sensiacutevel em fluxo

e devir Para Platatildeo natildeo eacute possiacutevel aceitar que a verdade possa estar em um lugar em que

tudo muda o tempo todo E a busca por estabilidade exige delimitaccedilotildees que distinguam

cada componente da realidade dos demais Uma cama deve ser somente uma cama e um

71

marceneiro somente um marceneiro Aquilo que natildeo se encaixa nesse criteacuterio eacute confuso

e indeterminado e portanto natildeo tem lugar ontoloacutegico assegurado em sua concepccedilatildeo da

realidade Mas como vimos no capiacutetulo anterior a questatildeo eacute que a arte e o design por

motivos diversos satildeo indeterminados Portanto eacute necessaacuterio avanccedilar sobre alguns desdo-

bramentos da posiccedilatildeo platocircnica e buscar autores que discordam parcial ou inteiramente

dela para estabelecer um modelo alternativo de conhecimento e realidade ou pelo

menos reelaborar essa concepccedilatildeo de modo a tornaacute-la capaz de mediar a indeterminaccedilatildeo

e a heterogeneidade como propriedades a se preservar

Uma ressalva deve ser feita acerca do tom criacutetico que assumimos em relaccedilatildeo agrave posiccedilatildeo

de Platatildeo Apoacutes 20 seacuteculos de histoacuteria do pensamento ocidental torna-se difiacutecil avaliar

ateacute onde reverberam as suas concepccedilotildees Muito foi dito e natildeo soacute por filoacutesofos sobre a

influecircncia de suas ideias desde a sua contribuiccedilatildeo na formaccedilatildeo do nosso modo de pensar

a vida no acircmbito do senso comum ateacute na construccedilatildeo de elaboradas e abstratas teorias

acerca da realidade Haacute algum tempo eacute lugar comum entre as citaccedilotildees acerca deste pen-

sador a frase do filoacutesofo Alfred North Whitehead ldquoA caracterizaccedilatildeo geral mais segura da

tradiccedilatildeo filosoacutefica europeacuteia eacute que ela consiste em uma seacuterie de notas de rodapeacute a Platatildeordquo

(whitehead 1978 p 39) Traduccedilatildeo nossa Independentemente de se entender tal afir-

maccedilatildeo como retoacuterica5 aceitar ou natildeo a onipresenccedila das ideias desse pensador ou pelo

menos a ubiquidade e recorrecircncia de temas primeiramente por ele propostos parte do

que se credita a Platatildeo foi inspirado em sua metafiacutesica mas estabelecido depois dele e

portanto natildeo pode ser de sua exclusiva responsabilidade para o bem ou para o mal

Subjacente a essa concepccedilatildeo um paracircmetro que orienta o entendimento do tipo de

princiacutepio ordenador da realidade que Platatildeo persegue tem destaque natildeo somente em

seus diaacutelogos No portal da Academia Platocircnica havia uma inscriccedilatildeo com a advertecircncia

ldquoQuem natildeo eacute geocircmetra natildeo entrerdquo (cornelli gabriele 2007 p 420) A forccedila dessa

frase se revela no fato de que ela serve de inspiraccedilatildeo ateacute hoje natildeo soacute para racionalistas mas

tambeacutem para seus opositores empiristas que neste ponto concordam entre si seguros

da validade universal da matemaacutetica Se a matemaacutetica constroacutei seus objetos sem necessi-

dade da experiecircncia sensiacutevel seus fundamentos estatildeo em consonacircncia com concepccedilotildees

5 Essa frase antes de ser publicada no livro Process and Reality foi proferida em uma palestra de Whi-tehead na Gifford Lectures da Universidade de Edimburgo durante as seccedilotildees de 1927 e 1928

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metafiacutesicas de mundos transcendentes O mundo das ideias platocircnico eacute somente o pri-

meiro representante deste tipo de paradigma que com muitos opositores ainda se faz

presente na atualidade

223 Desdobramentos da hierarquizaccedilatildeo do conhecimento

Na Idade Meacutedia um interluacutedio apoiado no pensamento de Aristoacuteteles havia estabelecido

uma concepccedilatildeo qualitativa que explicava de modo diverso tanto a natureza quanto o ho-

mem No entanto os aspectos quantitativos caros a um racionalista e matemaacutetico como

Platatildeo satildeo retomados com forccedila no pensamento daqueles que iratildeo direcionar os rumos

do conhecimento natural a partir da modernidade Copeacuternico Kepler Galileu e Descar-

tes entre outros Assim contrariando uma visatildeo qualitativa da realidade se estabelecem

a partir da Renascenccedila as bases de uma nova concepccedilatildeo de ciecircncia de caraacuteter descritivo

apoiada em equaccedilotildees nuacutemeros e medidas precisas (burtt 1983) Tal estrutura (aliada

aos conceitos de universalidade e de necessidade apontados por Ribeiro na subseccedilatildeo an-

terior) prosperaraacute em parte pelos resultados extraordinaacuterios de suas realizaccedilotildees praacuteticas

no acircmbito da teacutecnica mas que natildeo eacute bem-sucedida em explicar o homem e seus valores

qualitativos Vale ressaltar as palavras de Maldonado sobre trecircs pilares da modernidade

cientiacutefica e tecnoloacutegica base da revoluccedilatildeo industrial dos seacuteculos xvii e xviii que fomen-

taraacute aspectos formais de disciplinas como o design ldquoUm universo no qual a observaccedilatildeo

escrupulosa a mediccedilatildeo acurada e a quantificaccedilatildeo exata transformaram-se nos trecircs elementos

que sustentam o mundo do engenho estrutural e funcionalrdquo (maldonado 2012 p 178)

A precisatildeo na mediccedilatildeo de que nos fala Maldonado eacute um dos elementos centrais que

o historiador da ciecircncia Alexandre Koyreacute recorre para justificar e tornar inteligiacutevel a

nascente tecnologia da modernidade

De minha parte acredito que a histoacuteria ou melhor a preacute-histoacuteria da revoluccedilatildeo teacutecnica dos seacuteculos xvii e xviii confirma a concepccedilatildeo cartesiana de que foi em consequumlecircncia de uma conversatildeo da ἐπιστήμη [episteacuteme] na τέχνη [teacutekhne] que a maacutequina eoteacutecnica⁹ se transformou na maacutequina moderna (paleoteacutecnica) pois foi essa conversatildeo em outros termos foi a tecnologia nascente que atribuiu agrave

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segunda aquilo que forma o seu caraacuteter proacuteprio e a distingue radicalmente da primeira ou seja nada mais do que a precisatildeo (koyreacute 1991 p 275)

⁹ Emprego a terminologia extremamente sugestiva do Sr Lewis Mumford Tech-nics and Civilisation 4ordf ed New York 1946 [nota em peacute de paacutegina do autor]

Em outra passagem o autor alerta para a imprecisatildeo do caacutelculo nos periacuteodos histoacute-

ricos anteriores

[] consideremos que o homem do Renascimento o homem da Idade Meacutedia (e a mesma coisa vale tambeacutem para o homem antigo) natildeo sabia calcular E natildeo estava habituado a fazecirc-lo Sabia sem duacutevida bastante bem11 jaacute que a ciecircncia antiga elaborou e desenvolveu os meacutetodos e os meios apropriados executar caacutelculos astronocircmicos mas natildeo sabia mdash12 jaacute que a ciecircncia antiga se preocupou pouco ou nada com isso mdash executar caacutelculos numeacutericos (koyreacute 1991 p 275)

11 Os astrocircnomos o sabiam 12 O comum dos mortais Mesmo as pessoas instruiacute-das [notas em peacute de paacutegina do autor]

Isso natildeo significa que Koyreacute natildeo valorize e natildeo compreenda a habilidade dos estu-

diosos e profissionais anteriores e a relevacircncia de seu trabalho em um periacuteodo em que

a teacutekhne (como vimos) tem componentes teacutecnicos e artiacutesticos mesclados Com plena

consciecircncia disso Koyreacute recorre a uma longa citaccedilatildeo do historiador Lucien Febvre acerca

das conquistas ateacute aquele momento que reproduzimos a seguir

Atualmente noacutes natildeo falamos ou falamos cada vez menos (e jaacute haacute algum tempo) da Noite da Idade Meacutedia Nem do Renascimento como um guerreiro vitorioso que dissipou as trevas para sempre Isso porque prevalecendo o bom senso natildeo poderiacuteamos continuar acreditando nessas obliteraccedilotildees totais de que nos falavam antigamente obliteraccedilotildees da curiosidade humana obliteraccedilotildees do espiacuterito de observaccedilatildeo e se preferirmos obliteraccedilatildeo de invenccedilatildeo Isso porque conside-ramos afinal que uma eacutepoca que teve arquitetos com a envergadura dos que conceberam e construiacuteram nossas grandes basiacutelicas romacircnticas Cluny Veacutezelay Saint-Sernin etc e nossas grandes catedrais goacuteticas Paris Chartres Amiens Reims Bourges e as poderosas fortalezas dos grandes barotildees Coucy Pierre-fonds Chacircteau-Gaillard com todos os problemas de geometria de mecacircnica de transporte de levantamento de materiais pesados de manutenccedilatildeo que seme-lhantes construccedilotildees supotildeem todo o tesouro de experiecircncias bem-sucedidas e de insucessos consignados que esse trabalho ao mesmo tempo exige e alimenta mdash a uma eacutepoca assim seria ridiacuteculo negar em bloco e sem discernimento o espiacuterito de observaccedilatildeo e o espiacuterito de inovaccedilatildeo Olhando com atenccedilatildeo os homens que

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inventaram ou reinventaram ou adotaram e implantaram em nossa civilizaccedilatildeo do Ocidente a atrelagem dos cavalos pelo peito a ferradura o estribo o botatildeo o moinho de vento e de aacutegua a plaina a buacutessola a poacutelvora para canhatildeo o papel a imprensa etc mdash esses homens bem que fizeram jus ao espiacuterito da invenccedilatildeo e da humanidade (febvre 1946 apud koyreacute 1991 p 274)

No entanto sua posiccedilatildeo eacute de defesa de um ideal em que a ciecircncia quantificada (diriacutea-

mos de inspiraccedilatildeo platocircnica) iraacute se impor sobre a teacutecnica e estabelecer o que ele define

como tecnologia ldquofazer a teoria da praacuteticardquo (koyre 1991 p 267) A figura 8 apresenta

a linha do tempo com a inclusatildeo do conceito de tecnologia proposto por Koyreacute e seu

aporte a partir da segunda metade do seacuteculo xvii para a teacutecnica com consequecircncias

revolucionaacuterias sobre a nascente induacutestria e seus derivados

Se avaliarmos a histoacuteria da ciecircncia tendo em conta particularmente autores que refor-

mularam essa disciplina ao longo do seacuteculo xx como Koyreacute (1982) Burtt (1983) e Koestler

(1989) podemos afirmar que a partir do seacuteculo xv a confianccedila nos aspectos quantitativos

em detrimento dos qualitativos cresce em todas as aacutereas do conhecimento com a busca e

seleccedilatildeo de elementos que demonstrem caracteriacutesticas universais numericamente calculaacute-

veis e aliadas agrave objetividade no que passou a ser conhecido como a mathesis universalis

Os meacutetodos derivados desse modo de explicar parte da realidade foram corroborados

pelo sucesso que as pioneiras ciecircncias naturais alcanccedilaram a partir do seacuteculo xvii com

a matematizaccedilatildeo de seus fundamentos Se tal proposta gnoseoloacutegica foi parcialmente

aceita como verdade porque funciona em seus desdobramentos cientiacuteficos tecnoloacutegicos

Figura 8 Linha do tempo indicando desdobramento do conceito grego de poacuteiesis (produccedilatildeo) em episteacuteme (ciecircncia) e teacutekhne (arte) Apoacutes a cisatildeo entre ciecircncia teacutecnica e arte a tecnologia eacute estabelecida como um elo de ligaccedilatildeo teoacutericopraacutetico entre ciecircncia e teacutecnica fonte autor

asymp aC dC 7 dC dCGreacutecia Ocidente

EPISTEME

TEacuteKHNE

CIEcircNCIA

TEacuteCNICA

ARTE

POacuteIESIS

TECNOLOGIA

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e teacutecnicos com os inegaacuteveis resultados da industrializaccedilatildeo o avanccedilo e hipertrofia desse

empreendimento conhecido como cientificismo levou agrave extremos na tentativa de exportar

esse modelo bem-sucedido nas ciecircncias naturais para disciplinas de aacutereas humanas

No entanto parte dos estudiosos das ciecircncias humanas e sociais desde o seacuteculo xix

discorda dessas posiccedilotildees Subjacente a esse questionamento se encontram as diferenccedilas

entre diversos conceitos que foram reelaborados entre os quais estatildeo os de natureza fiacutesica

e natureza humana Como hoje sabemos esse segundo conceito estaacute longe de ser descrito

satisfatoriamente como o primeiro por um modelo quantitativo

Nesse periacuteodo ateacute a virada do seacuteculo xx Nietzsche eacute um dos que se destaca indo

aleacutem do papel criacutetico que a gnoseologia na figura de Kant6 teve em relaccedilatildeo agraves bases

das ciecircncias Como um precursor agraves interpelaccedilotildees de Heidegger ele se insurge contra a

hegemonia da racionalidade cientiacutefica e a questiona de forma radical desde o seu primei-

ro livro O nascimento da trageacutedia publicado em 1872 No prefaacutecio da segunda ediccedilatildeo

dessa obra que Nietzsche intitula de uma ldquotentativa de autocriacuteticardquo seu questionamento

carregado de um tom pessoal aponta para um argumento distinto das criacuteticas de base

epistemoloacutegica daquele periacuteodo Para este pensador soacute eacute possiacutevel compreender o ldquopro-

blemardquo da ciecircncia se nos situarmos fora de seus domiacutenios E mais importante cabe agrave arte

essa tarefa inquiridora

O que consegui entatildeo apreender algo terriacutevel e perigoso um problema com chi-fres natildeo necessariamente um touro por certo em todo caso um novo problema hoje eu diria que foi o problema da ciecircncia mesma mdash a ciecircncia entendida pela primeira vez como problemaacutetica como questionaacutevel Mas o livro em que se ex-travasava a minha coragem e a minha suspicaacutecia juvenis mdash que livro impossiacutevel teria de brotar de uma tarefa tatildeo contraacuteria agrave juventude Edificado a partir de puras vivecircncias proacuteprias prematuras e demasiado verdes que afloravam todas agrave soleira do comunicaacutevel colocado sobre o terreno da arte mdash pois o problema da ciecircncia natildeo pode ser reconhecido no terreno da ciecircncia mdash []

[] ante um olhar mais velho cem vezes mais exigente poreacutem de maneira alguma mais frio nem mais estranho agravequela tarefa de que este livro temeraacuterio ousou pela primeira vez aproximar-se mdash ver a ciecircncia com a oacuteptica do artista mas a arte com a da vida (nietzsche 2013 p 12-13)

6 Kant assumindo para si a tarefa de uma criacutetica gnoseoloacutegica dos extremos racionalista e empirista busca uma mediaccedilatildeo e nomeia suas obras principais como Criacutetica da razatildeo pura Criacutetica da razatildeo praacutetica e Criacutetica da faculdade de julgar Ao contraacuterio de Kant Nietzsche natildeo propotildee mediaccedilatildeo

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Uma reaccedilatildeo dessa magnitude que seraacute um ideaacuterio perseguido por Nietzsche nas suas

obras posteriores ateacute a sua morte em 1900 tem relevacircncia natildeo somente pela sua criacutetica agrave

ciecircncia em um contexto de crescente valorizaccedilatildeo do conhecimento fundado em meacutetodos

racionais mas tambeacutem porque nega uma hierarquia em que a arte estaria submetida agrave

ciecircncia e a eleva agrave condiccedilatildeo superior de instacircncia avaliadora da episteacuteme

Este giro conceitual em clara oposiccedilatildeo agrave ordenaccedilatildeo de inspiraccedilatildeo platocircnica influencia

opositores desde o iniacutecio do seacuteculo xx ateacute os dias de hoje natildeo somente na arte mas nos

demais campos que partilham elementos qualitativos com ela Mas a efervescecircncia cultural

e de constituiccedilatildeo de disciplinas do saber natildeo se reduz a uma simples divisatildeo entre dois

polos opostos O tom da criacutetica nietzschiana eacute sintoma de uma eacutepoca em que os valores

tradicionais e modelos estabelecidos sofrem questionamentos constantes com novas

teorias ideias e movimentos nas mais variadas aacutereas com as obras de Duchamp Freud

Piaget e Darwin provocando mudanccedilas radicais na arte e na ciecircncia influenciando a

cultura e atingindo ateacute a fiacutesica que avanccedilava com estabilidade e linearidade Por exemplo

algumas concepccedilotildees de Plank e Einstein publicadas ainda na primeira deacutecada do seacuteculo

xx comprovam quebras de paradigma no cerne de ciecircncias ldquodurasrdquo Tais mudanccedilas aliadas

agrave efervescecircncia cultural refletem como veremos com Eco no capiacutetulo 4 naquilo que este

autor nomeia de ldquometaacutefora epistemoloacutegicardquo em uma circularidade que retorna agrave arte Essas

inter-relaccedilotildees atravessam o seacuteculo xx e se ampliam Assim uma visatildeo natildeo hierarquizada

do saber continua a ser um modo criacutetico no sentido nietzschiano de assumir a crescente

pluralidade de aacutereas como um valor Rafael Cardoso adota este preceito no livro Design

para um mundo complexo Como historiador da arte e do design ele insiste na defesa da

equidade entre os campos

Arte eacute um meio de acesso ao desconhecido em peacute de igualdade com a ciecircncia a filosofia a religiatildeo mdash enfim os poucos caminhos que o ser humano encon-trou para relacionar seu interior com o universo que o cerca mdash e nesse sentido design eacute uma categoria subordinada mais agrave arte que aos outros trecircs citados (cardoso 2016 p 246)

Devemos atentar para a questatildeo de que mesmo defendendo a igualdade entre arte e

ciecircncia Cardoso natildeo escapa de manter-se adepto a uma hierarquia onde o design em certo

sentido subordina-se agrave arte Beat Schneider outro historiador do design aparentemente

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se aproxima da declaraccedilatildeo de Cardoso acerca da submissatildeo do design agrave arte No entanto

Schneider natildeo afirma como Cardoso que compreende o design como um campo su-

bordinado agrave arte mas de um ponto de vista mais descritivo do que prescritivo considera

com inflexatildeo criacutetica que o design ldquoentendeu-se como subcategoria da disciplina arterdquo

Examinemos a afirmaccedilatildeo de Schneider contextualizada

De uma perspectiva histoacuterica podemos encontrar uma razatildeo para o impedimento da discussatildeo teoacuterica no ocircnus artiacutestico presente no autoentendimento do design O design entendeu-se como subcategoria da disciplina arte e natildeo como disciplina autocircnoma e deixou com excessiva frequecircncia a teoria e o registro histoacuterico a cargo da ciecircncia e da histoacuteria da arte Uma tradiccedilatildeo forte e ateacute agora dominante na histoacuteria do design desde a industrializaccedilatildeo ateacute a atualidade eacute marcada pela motivaccedilatildeo artiacutestica pela inspiraccedilatildeo artiacutestica para um design expressivo Essa tradiccedilatildeo se manifesta na tendecircncia a fetichizar a proacutepria praacutetica como artiacutestica e desobrigar-se agrave argumentaccedilatildeo racional e cultivar a aura do design de autor Nesse contexto eacute recorrente o mito do ldquodesigner-artistardquo criativo que com seu

ldquobomrdquo design organiza as coisas do mundo (schneider 2010 p 260)

A posiccedilatildeo de Cardoso inclina-se claramente para a defesa da arte como um ldquocaminhordquo

que permite ao homem se relacionar com o universo e neste sentido o autor justifica a

sua relevacircncia para a disciplina do design mais do que a ciecircncia a filosofia e a religiatildeo

Por outro lado Schneider entende de modo negativo certa influecircncia da arte sobre o

design por sua inspiraccedilatildeo e fetichizaccedilatildeo da praacutetica deste campo pois segundo ele tende

a reduzir o compromisso com a ldquodiscussatildeo teoacutericarsquo e com a ldquoargumentaccedilatildeo racionalrdquo

Indo aleacutem das diferenccedilas entre as posiccedilotildees desses dois autores que satildeo relevantes para

a compreensatildeo das nuances nas relaccedilotildees entre os campos na atualidade devemos estar

atentos ao questionamento sobre a real necessidade de uma hierarquizaccedilatildeo e da consta-

taccedilatildeo de uma categorizaccedilatildeo em niacuteveis que estabelece a dependecircncia entre aacutereas do saber

As abordagens de Cardoso e Schneider nos fazem pensar que o proacuteprio Nietzsche mdash ao

colocar a arte como o lugar e a instacircncia para uma criacutetica procedente da ciecircncia mdash talvez

natildeo deixe de refletir dentro de um modelo hieraacuterquico e de dependecircncia entre campos

De qualquer modo a questatildeo natildeo nos parece simples Em oposiccedilatildeo agrave ideia de depen-

decircncia defender a autonomia pode conduzir agrave incongruecircncias Isso porque a definiccedilatildeo

de autonomia (em seu sentido originaacuterio de ser governado por suas proacuteprias leis e deter-

minaccedilotildees) pressupotildee separaccedilatildeo Entatildeo como pensar a ideia de independecircncia sem a sua

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contraparte de ruptura Em outras palavras eacute possiacutevel garantir autonomia a cada uma

dessas disciplinas e ao mesmo tempo ultrapassar ou pelo menos mitigar o modelo de cisatildeo

que existe entre elas Apesar das dificuldades nossa aposta eacute que sim tendo em conta que

os elos de ligaccedilatildeo jaacute existem vecircm do passado e satildeo os pontos comuns agrave ciecircncia e agrave teacutecnica

que se conectam agrave arte e ao design

23 Design entre ciecircncia teacutecnica e arte

Natildeo acreditamos que seja possiacutevel retornar a uma compreensatildeo da realidade como um coacutesmos

harmocircnico em que cada ramo do saber esteja intimamente relacionado aos demais e natildeo

hierarquizados como na antiguidade preacute-platocircnica Mas eacute importante ter esse referencial

em mente para pensarmos duas espeacutecies de dificuldades com as quais precisamos lidar na

contemporaneidade Uma inerente agrave fragmentaccedilatildeo que enfrentamos no acircmbito geral da

cultura e do saber que se estabelece de forma acentuada desde o advento da modernidade

Outra consequecircncia da hierarquizaccedilatildeo do conhecimento que afeta diversas aacutereas mas

diretamente duas de nosso interesse design e arte Diante disso Tomaacutes Maldonado se

apresenta como um dos criacuteticos importantes para nossa anaacutelise pois une seus argumen-

tos provenientes de conhecimentos no design e na arte7 com um interesse na filosofia da

ciecircncia e da teacutecnica questionando a tradiccedilatildeo idealista proveniente de Platatildeo Conforme

ele afirma no capitulo Pensar a teacutecnica hoje do livro Cultura sociedade e teacutecnica

Vivemos atualmente em um momento particularmente inovador da longa (e atribulada) histoacuteria da reflexatildeo sobre a teacutecnica Constata-se nas uacuteltimas deacutecadas uma tendecircncia cada vez maior de afastamento daquelas interpretaccedilotildees com vieacutes idealista que sempre dificultaram as tentativas de se fazer reflexatildeo sobre a teacutecnica

[] Basta pensar por exemplo na contribuiccedilatildeo de E Zschimmer (1914) e F Dessauer (1927 e 1959) dois engenheiros-cientistas-filoacutesofos de filiaccedilatildeo hege-liana e kantiana respectivamente [] esses estudiosos estavam convencidos de que as respostas agraves questotildees levantadas pela teacutecnica deveriam ser buscadas

7 Maldonado formou-se pela Academia de Belas Artes de Buenos Aires em 1939 e participou do movi-mento de Arte Concreta da Argentina entre os anos de 1943 e 1954 antes de se tornar professor de design e reitor na Alemanha na escola de Ulm

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dentro da proacutepria teacutecnica A teacutecnica seria uma realidade autocircnoma um sistema fechado que se desenvolve e se autoexplicaria sem ter de recorrer a fatores exoacute-genos Poder-se-ia dizer mdash utilizando um termo agora muito na moda mdash que a teacutecnica eacute autopoieacutetica

Dessauer deixa subentendido mdash platocircnica e aristotelicamente mdash que as formas dos objetos teacutecnicos jaacute estariam presentes em um cataacutelogo ideal das formas preexistentes E que a teacutecnica natildeo faria outra coisa a natildeo ser deixaacute-las expliacutecitas (maldonado 2012 p 153)

Trecircs pontos interligados na citaccedilatildeo anterior devem ser destacados Primeiro a criacutetica

de Maldonado estaacute dirigida agraves interpretaccedilotildees que se apoiam no idealismo Segundo a

delimitaccedilatildeo da forma mais atual desse idealismo estaacute vinculada ao conceito de autopoiese

ou autoproduccedilatildeo Terceiro (promovendo a conexatildeo dos dois primeiros pontos) este autor

faz uma clara remissatildeo dessa concepccedilatildeo de teacutecnica ao ideaacuterio platocircnico ao relacionaacute-la

com ldquorealidade autocircnomardquo e ldquocataacutelogo ideal das formas preexistentesrdquo

Natildeo haacute duacutevida da criacutetica direta de Maldonado agrave posiccedilatildeo platocircnica Mas devemos fazer

duas ressalvas A primeira eacute que (como vimos na seccedilatildeo 1 deste capiacutetulo) na antiguidade

o conceito de poacuteiesis na sua especificaccedilatildeo de existecircncia espontacircnea eacute autoproduccedilatildeo e estaacute

intrinsecamente associado agrave natureza (phyacutesis) Mas o mesmo natildeo ocorre na sua especifi-

caccedilatildeo enquanto episteacuteme ou teacutekhne No entanto seguindo as palavras de Maldonado que

fala de ldquoautopoieacuteticardquo afirmando ser um termo da moda podemos supor que talvez ele se

refira agrave ldquoautopoieserdquo palavra cunhada pelo bioacutelogo e epistemoacutelogo Humberto Matura-

na na deacutecada de 1970 para caracterizar a capacidade dos seres vivos de produzirem a si

proacuteprios e que ficou em evidecircncia com os debates em torno da relevacircncia dos sistemas8

na compreensatildeo dos fenocircmenos bioloacutegicos Apesar do neologismo autopoiese tambeacutem

remeter agrave phyacutesis grega tanto no conceito quanto na etimologia e raiz da palavra poiese se

Maldonado estaacute apenas se apropriando de sua designaccedilatildeo contemporacircnea relacionada agrave

biologia e aplicando-a a uma concepccedilatildeo de teacutecnica entendida como endoacutegena a ressalva

pode ser mitigada

8 Conforme afirmam Humberto Maturana e Francisco Varela no livro De maacutequinas y seres vivos au-topoiesis la organizacioacuten de lo vivo sobre a delimitaccedilatildeo do conceito de autopoiese ldquoA compreensatildeo do caraacuteter sistecircmico dos fenocircmenos que envolvem a vivecircncia possibilitada pela teoria da autopoiese permite explicar a origem dos seres vivos na terra ou em qualquer parte do cosmo como o surgi-mento espontacircneo de um ser vivo como entidade discreta assim como ocorre a dinacircmica molecular autopoieacutetica como um fenocircmeno sistecircmicordquo (maturana varela 2003 p 24) Traduccedilatildeo nossa

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A segunda ressalva diz respeito a inclusatildeo do nome de Aristoacuteteles alinhando-o com

o pensamento platocircnico Como veremos no capiacutetulo 4 Aristoacuteteles se opotildee frontalmente

a um mundo de formas ideais preexistentes ou a um ldquocataacutelogordquo Essa eacute uma das posiccedilotildees

fundamentais de Aristoacuteteles que o potildee historicamente como o primeiro a discordar de

Platatildeo e com argumentos suficientes para justificar nossa escolha de colocaacute-lo no centro

da discussatildeo sobre a criacutetica agrave hierarquia do conhecimento No entanto essa restriccedilatildeo natildeo

invalida a posiccedilatildeo tambeacutem criacutetica de Maldonado em relaccedilatildeo a uma concepccedilatildeo de teacutecnica

entendida como ldquoum sistema fechadordquo Mas eacute importante tambeacutem atentar que mesmo nas

concepccedilotildees de tendecircncia ldquoplatocircnicardquo com ldquorealidades autocircnomasrdquo a teacutecnica compreen-

dida como um campo separado da ciecircncia estaacute cada vez mais atrelada e hierarquicamente

submetida a uma teoria que a fundamenta e que se efetiva atraveacutes da tecnologia como

vimos na definiccedilatildeo de Koyreacute (cf p 72-73)

Aleacutem de Maldonado identificamos a disposiccedilatildeo de outros pesquisadores em buscar

elementos comuns e a integraccedilatildeo de fenocircmenos em campos distintos na forma de novas

teorias ou princiacutepios organizadores alguns defendendo somente as conexotildees de seus

objetos de estudo e outros apostando em um caraacuteter holiacutestico ou totalizante de seus

fundamentos Analisemos em recorte como esse processo vem ocorrendo

231 Afastamentos aproximaccedilotildees e interaccedilotildees

De acordo com o graacutefico da figura 1 (cf capiacutetulo 1 p 24) o ciacuterculo da epistemologia

incorpora ciecircncia e teacutecnica como seus objetos de estudo Deste modo selecionamos um

grupo de epistemoacutelogos que se tornaram referecircncia para a compreensatildeo das relaccedilotildees dessas

duas aacutereas para subsidiar nossa anaacutelise das posiccedilotildees de Maldonado Bonsiepe Schneider

e Cardoso contextualizando ciecircncia e teacutecnica com o design

O seacuteculo xx eacute proliacutefico em obras como as de Edwin A Burtt (1983) e Alexandre

Koyreacute (1982) O conhecimento acumulado a partir desses autores que se especializaram

em histoacuteria da ciecircncia influenciou mais de uma geraccedilatildeo de pesquisadores como Arthur

Koestler (1989) e Thomas S Kuhn (1987) contribuindo inclusive para os ceacutelebres

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debates desse uacuteltimo contra Karl R Popper (1972 1975 1993) e suas posiccedilotildees Seus es-

tudos compotildeem um quadro rico e heterogecircneo calcado na histoacuteria dessas ciecircncias e de

seus desdobramentos para a teacutecnica demonstrando a construccedilatildeo de relaccedilotildees e avanccedilos

pragmaacuteticos jaacute centenaacuterios Tais relaccedilotildees entre as teorias e as suas aplicaccedilotildees interessam

a vaacuterios campos inclusive ao design Os trabalhos de Tomaacutes Maldonado como vimos

unem esses temas e autores explorando a histoacuteria da ciecircncia e da teacutecnica na busca por

compreensatildeo de aspectos intriacutensecos ao design Eacute o que se pode constatar em Os oacuteculos

levados a seacuterio onde os avanccedilos na estrutura da teacutecnica e da funcionalidade derivam dos

fundamentos de teorias das ciecircncias naturais

As lentes abriram o caminho para o desenvolvimento das primeiras lunetas e os primeiros microscoacutepios compostos Prenunciaram ainda o advento da oacutetica fina e de altiacutessima precisatildeo ou seja daquele conjunto de instrumentos e de aparelhos que serviram de alicerce para a poderosa revoluccedilatildeo que nos levou do lsquomundo da aproximaccedilatildeo ao universo da precisatildeorsquo para utilizar a feliz expressatildeo de A Koyreacute (1961) (maldonado 2012 p 178)

Neste capiacutetulo exemplar do livro Cultura sociedade e teacutecnica Maldonado discursa natildeo

somente como designer mas tambeacutem como epistemoacutelogo e busca explicar a invenccedilatildeo

de objetos que incorporam design como os oacuteculos rastreando sua origem na histoacuteria

das ciecircncias e da teacutecnica Com os subsiacutedios teoacutericos de Alexandre Koyreacute argumenta de

modo analiacutetico em favor de uma aproximaccedilatildeo dessas duas aacutereas E do mesmo modo no

capiacutetulo Pensar a teacutecnica hoje Maldonado reforccedila a atenccedilatildeo concentrada na atualidade

no acircmbito da ciecircncia e da teacutecnica agrave discussatildeo dos seus fundamentos

Trata-se da velha questatildeo da atualidade ou natildeo das estrateacutegias cognitivas que desde F Bacon propiciaram alcanccedilar formidaacuteveis resultados nos campos da descoberta cientiacutefica e da inovaccedilatildeo tecnoloacutegica Ela permanece no centro do debate entre os filoacutesofos e cientistas Eacute cada vez menor o nuacutemero daqueles que atribuem uma validade universal e uma objetividade absoluta agrave metodologia da pesquisa tecnociecircntiacutefica Outros a colocam em discussatildeo em nome do pluralismo e do relativismo outros ainda levantam a hipoacutetese de uma mediaccedilatildeo entre essas duas posiccedilotildees extremas ou entatildeo rejeitam a ambas Eacute um debate que no fundo refere-se aos fundamentos loacutegico-epistemoloacutegicos do empreendimento cientiacutefico (maldonado 2012 p 155)

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Apesar de natildeo citar neste ponto quais autores estatildeo no centro deste debate Maldonado

identifica uma reduccedilatildeo no nuacutemero de estudiosos que privilegiam conceitos (como vi-

mos anteriormente) caros agrave ciecircncia ortodoxa quantitativa como ldquovalidade universalrdquo e

ldquoobjetividade absolutardquo Tal percepccedilatildeo de Maldonado eacute sintoma de seu posicionamento

atento a uma flexibilizaccedilatildeo de princiacutepios que podem conduzir a uma relativizaccedilatildeo de

elementos riacutegidos do platonismo E supomos que seu entendimento da conexatildeo entre

ciecircncia e teacutecnica eacute forte o bastante para levaacute-lo agrave fusatildeo desses dois conceitos no neologismo

ldquotecnocientiacuteficardquo Mas poderiacuteamos tambeacutem supor um sinal de hierarquia ou pelo menos

de causa e efeito preservado na descriccedilatildeo de Maldonado ao falar dos ldquoformidaacuteveis resul-

tadosrdquo ordenando em primeiro lugar o campo da ldquodescoberta cientiacuteficardquo e em segundo o

da ldquoinovaccedilatildeo tecnoloacutegicardquo Depois de seacuteculos de confianccedila em tal ordenaccedilatildeo faz parte ateacute

do senso comum9 considerar ciecircncia em primeiro e teacutecnica em segundo o que se reflete

tambeacutem na forma como escrevemos Mas Maldonado tem consciecircncia da complexidade

das relaccedilotildees entre ciecircncia e teacutecnica Tanto que mais uma vez no seu capiacutetulo sobre os

oacuteculos destaca a importacircncia de reconsiderarmos a questatildeo

Novamente se propotildee a velha ideia que satildeo os doutos mdash e natildeo os praacuteticos mdash os principais protagonistas da inovaccedilatildeo tecnoloacutegica Essa ideia estaacute no centro das controveacutersias de muitas invenccedilotildees Quem foi por exemplo o inventor da maacute-quina a vapor o douto Denis Papin ou o praacutetico Thomas Newcomen O douto Joseph Black ou o douto-praacutetico James Watt (maldonado 2012 p 182)

Acerca dessa polecircmica que Maldonado insere no cerne da causalidade (2012 p

176-177) Koyreacute diria que natildeo importa quem foi o autor se um ldquodoutordquo ou um ldquopraacuteticordquo

mas que qualquer dos dois protagonistas precisou necessariamente de fundamentaccedilatildeo

teoacuterica para guiar seu projeto ldquotecnoloacutegicordquo dado o niacutevel de complexidade deste tipo de

invenccedilatildeo Com relaccedilatildeo a Maldonado podemos afirmar que dessa complexidade pode

derivar o ldquopluralismordquo de que ele nos fala associando-o a busca por elementos comuns e

relaccedilotildees entre os campos (rotulada sob certas circunstacircncias de interdisciplinaridade) tatildeo

9 Como afirma Koyreacute em nota do seu consagrado ensaio ldquoDo mundo do lsquomais-ou-menosrsquo ao universo da precisatildeordquo reverenciado por Maldonado ldquoO senso comum natildeo eacute alguma coisa de absolutamente constante noacutes natildeo examinamos mais a aboacutebada celeste Da mesma forma o pensamenteo teacutecnico tradicional as regras dos ofiacutecios a τέχνη [teacutekhne] pode absorver mdash e o fez no decorrer da histoacuteria mdash elementos do saber cientiacuteficordquo (koyreacute 1991 p 287)

83

caracteriacutestica de nossa eacutepoca e que pode ser incorporada tambeacutem aos objetivos teoacutericos

do design Em suas palavras

Torna-se cada vez mais claro que somente seraacute possiacutevel desenvolver uma histoacuteria da teacutecnica mais proacutexima aos nossos problemas atuais com a cola-boraccedilatildeo dos filoacutesofos historiadores etnoacutelogos engenheiros economistas psicoacutelogos e socioacutelogos [] Eacute improvaacutevel que se possa estudar a teacutecnica sem recorrer a tal cooperaccedilatildeo interdisciplinar Cada estudioso deveria procurar assimilar o saber oriundo de outras disciplinas mesmo permanecendo fiel agraves particularidades do seu proacuteprio campo de pesquisa Esse saber seria capaz de tornar o seu trabalho menos parcial e portanto mais verdadeiro e concreto (maldonado 2012 p 159)

Reflexotildees dessa natureza indicam que as divisotildees que ocorreram na ciecircncia e na teacutecni-

ca principalmente a partir da eacutepoca moderna tecircm um movimento em direccedilatildeo contraacuteria

ou de refluxo na busca por um entendimento integral dos fenocircmenos O pensamento

sistecircmico defendido por entre outros Rafael Cardoso eacute mais uma prova do interesse

de pesquisadores do design em avanccedilar na seara das conexotildees entre os campos Partindo

da mesma linhagem de epistemoacutelogos com a qual Maldonado dialoga Cardoso explora

um caminho diverso e se insurge contra uma concepccedilatildeo do design enquanto ciecircncia de

cunho analiacutetico

A maior e mais importante contribuiccedilatildeo que o design tem a fazer para equacionar os desafios do nosso mundo complexo eacute o pensamento sistecircmico Poucas aacutereas estatildeo habituadas a considerar os problemas de modo tatildeo integrado e comunicante O procedimento metodoloacutegico baacutesico em qualquer atividade cientiacutefica eacute recor-tar e fracionar o problema para constituir uma situaccedilatildeo experimental passiacutevel de averiguaccedilatildeo Esse meacutetodo funciona extremamente bem para uma seacuterie de anaacutelises mas eacute de pouca valia para lidar com a elaboraccedilatildeo de grandes sistemas complexos sua manutenccedilatildeo e planejamento Quando os problemas atravessam saberes e disciplinas por exemplo eacute limitado o que cada uma delas pode fazer para resolver o todo Assim como outras aacutereas projetuais mdash em especial a enge-nharia e a arquitetura mdash o design parte de uma abordagem diferente Em vez de fracionar o problema para reduzir as variaacuteveis o designer visa gerar alternativas cada uma das quais tende a ser uacutenica e totalizante Sua meta eacute viabilizar uma soluccedilatildeo e natildeo garantir a reprodutibilidade do experimento mdash construccedilatildeo e natildeo desconstruccedilatildeo ldquofactibilidaderdquo e natildeo ldquofalseabilidaderdquo partidos e funccedilotildees em vez de conjeturas e refutaccedilotildees (cardoso 2016 p 243-244)

84

A desvinculaccedilatildeo de Cardoso de uma epistemologia apropriada agraves ciecircncias naturais

segundo ele natildeo adequada ao design natildeo apresenta na citaccedilatildeo anterior um autor expliacutecito

(como o faz Maldonado com Koyreacute) talvez por uma questatildeo de estilo Mas eacute possiacutevel

identificar que Cardoso estaacute se referindo a Popper ao fazer uso dos termos ldquofalseabilidaderdquo

e ldquoconjeturas e refutaccedilotildeesrdquo respectivamente um conceito e um tiacutetulo de uma das obras

mais influentes desse epistemoacutelogo E portanto ao propor a siacutentese e a factibilidade ao

inveacutes da anaacutelise e falseabilidade reitera sua posiccedilatildeo de afastar o design de uma concepccedilatildeo

de ciecircncia stricto sensu Tal posiccedilatildeo faz sentido se o design recorre frequentemente ao

argumento de que eacute um campo com fronteiras pouco definidas e que trabalha transver-

salmente em conjunto com outras disciplinas

Beat Schneider a propoacutesito dessas fronteiras e da complexidade dos campos tambeacutem

recomenda a interdisciplinaridade

O pensamento e a reflexatildeo satildeo uma parte do processo de criaccedilatildeo Deles pode partir a teoria mdash no sentido de uma reflexividade que problematiza o processo de criaccedilatildeo Hoje essa reflexividade faz-se mais necessaacuteria do que nunca pois tanto a praacutetica social e teacutecnica quanto a praacutetica do design tornaram-se muito complexas O design precisa de uma teoria que corresponda agrave sua complexi-dade Essa complexidade do design estaacute em seu objeto e em sua constituiccedilatildeo interdisciplinar e transdisciplinar Uma rede de muitas disciplinas cientiacuteficas das aacutereas das ciecircncias humanas sociais e da engenharia disciplinas da induacutestria comeacutercio administraccedilatildeo e cultura bem como a complexa multiplicidade de usuaacuterios participam do processo de design e da resoluccedilatildeo comum de tarefas (schneider 2010 p 266)

Compartilhando com Cardoso a essecircncia projetual do design Schneider no entanto

considera este campo como ciecircncia Depois de haver nomeado o ldquodesign como ciecircncia

jovemrdquo (schneider 2010 p 193) este autor discorre sobre as atividade deste campo

ldquoSua tarefa eacute contribuir enquanto ciecircncia para tornar nosso complexo mundo visiacutevel e

legiacutevel Ela se situa no contexto normativo da tradiccedilatildeo iluminista da alfabetizaccedilatildeo e da

democratizaccedilatildeo do saber e do conhecimentordquo (schneider 2010 p 266)

Bonsiepe tambeacutem resguarda o mesmo acircmbito projetual que Cardoso e Schneider

e almeja uma interaccedilatildeo entre design entendido como projeto e ciecircncias enquanto

conhecimento

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Enquanto as ciecircncias enxergam o mundo sob a perspectiva da cogniccedilatildeo as disciplinas de design o enxergam sob a perspectiva do projeto Essas duas perspectivas diferentes que oxalaacute no futuro acabem se fundindo Estou con-vencido de que no futuro haveraacute uma interaccedilatildeo frutiacutefera entre o mundo das ciecircncias e o mundo do projeto que hoje se daacute no maacuteximo esporadicamente (bonsiepe 2011 p 17)

Mas eacute importante atentar que tal interaccedilatildeo de perspectivas na concepccedilatildeo de Bonsiepe

natildeo significa transformar o design em ciecircncia

A atitude de colocar o projeto relacionado com as ciecircncias natildeo deve ser in-terpretada como um postulado por um design cientiacutefico ou para transformar design em ciecircncia Seria grotesco querer projetar um cinzeiro baseando-se em conhecimentos cientiacuteficos Deveria ser criada uma correspondecircncia entre complexidade temaacutetica e metodologia O design deve recorrer a conhecimentos cientiacuteficos quando a temaacutetica o exige Por exemplo quando se quer projetar uma nova embalagem para leite que minimize os impactos ecoloacutegicos (ecological footprints) (bonsiepe 2011 p 17)

A posiccedilatildeo assumida por Bonsiepe tem aspectos que nos atraem pois tambeacutem natildeo

consideramos um problema recorrer a conhecimentos cientiacuteficos de outras aacutereas Pelo

contraacuterio esse procedimento de natildeo reinventar a roda eacute cada vez mais comum em dis-

ciplinas que ampliam sua atuaccedilatildeo em novos territoacuterios Mas como veremos no capiacutetulo

3 natildeo ser ciecircncia natildeo implica que o design natildeo se caracterize enquanto campo de conhe-

cimento O atributo da cogniccedilatildeo natildeo eacute exclusividade da ciecircncia

Portanto acreditamos que quando Bonsiepe afirma que os dois campos enxergam o

mundo com perspectivas diferentes ele natildeo estabelece categorias estanques o que para noacutes

eacute essencial na medida em que natildeo compreendemos o design isolado ou enrijecido em suas

fronteiras com outras aacutereas sejam elas cientiacuteficas teacutecnicas ou artiacutesticas Diriacuteamos que o

expressivo uso por Bonsiepe da palavra ldquoenxergarrdquo une ciecircncia e design em atividades

de caracteriacutesticas comuns em que a ldquoperspectivardquo apenas direciona a visatildeo para aspectos

distintos de uma mesma realidade Se for assim o liame proposto por esse autor para as

concepccedilotildees de ciecircncia e design retoma de forma elegante o legado conceitual de teoria

em sua origem na Antiguidade Como evidenciamos (cf capiacutetulo 1 p 61) teoria (θεωρία)

denota accedilatildeo de ver de observar contemplar examinar e especular E sua relaccedilatildeo com o

olhar aproxima-a de oida (οἶδα) significando ao mesmo tempo ver e compreender

86

232 Artifiacutecios fronteiras moacuteveis e pontes

Diante do quadro construiacutedo na subseccedilatildeo anterior eacute necessaacuteria uma anaacutelise em retros-

pecto cotejando as posiccedilotildees dos quatro autores e implicando-as com a nova etapa Ini-

ciando por Bonsiepe estaacute claro seu entendimento a respeito da distinccedilatildeo entre ciecircncia e

design assim como sua expectativa de uma futura interaccedilatildeo efetiva entre esses campos

Maldonado nos escritos analisados apesar de natildeo ser tatildeo expliacutecito a esse respeito tem um

crivo epistemoloacutegico semelhante ao de Bonsiepe Mas a posiccedilatildeo de Bonsiepe se conecta

com outro aspecto do seu pensamento que exploramos anteriormente (cf capiacutetulo 1 p

42) sendo importante retomar neste momento Naquele ponto ele distingue tambeacutem

categoricamente design de arte Bonsiepe (para justificar sua adesatildeo agrave distinccedilatildeo entre

esses campos) poderia estabelecer como territoacuterios de argumentaccedilatildeo a ciecircncia ou o de-

sign como faz Schneider ou ateacute mesmo a arte caso estivesse em sintonia com uma visatildeo

por exemplo Nietzschiana No entanto como vimos esse autor firma a filosofia como a

disciplina capaz de explicitar essa distinccedilatildeo o que confirma sua atuaccedilatildeo coerente como

epistemoacutelogo e designer e natildeo como cientista

Schneider por seu lado ao entender o design como ciecircncia e a arte como um ldquoocircnusrdquo

para esse campo argumenta ora como um cientista que precisa se assegurar de fundamentos

estabelecidos para o design (recentemente estabelecidos uma vez que para ele este campo

eacute ldquociecircncia jovemrdquo) ora como epistemoacutelogo em busca de fundamentos Assim sua criacutetica

agrave falta de fundamentos do design fragiliza a sua defesa dessa disciplina enquanto ciecircncia

A questatildeo do modo como a encaminha Schneider leva a um ciacuterculo vicioso pois de um

ponto de vista epistemoloacutegico e portanto de fundamentaccedilatildeo de um campo cientiacutefico

para se imputar o tiacutetulo de ciecircncia a uma disciplina eacute necessaacuterio que a mesma jaacute tenha

posse sobre os alicerces especiacuteficos de tal categoria de conhecimento

Quanto a Cardoso pelas nuances de seu pensamento e o entrelaccedilamento de temas

que nos interessam sua posiccedilatildeo precisa ser investigada com mais detalhes Sua pesquisa

chama a nossa atenccedilatildeo natildeo somente por suas reflexotildees de caraacuteter epistemoloacutegico que no

nosso entendimento mesmo implicitamente questionam de modo mais radical a hierar-

quia e a ruptura de inspiraccedilatildeo platocircnica mas tambeacutem porque como veremos avanccedila para

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o territoacuterio da ontologia buscando fundamentos para o design Aliado a esse enfoque

Cardoso se liga ao pensamento de Flusser com acordos e desacordos entre ambos que

fornecem a mateacuteria prima tanto para a subseccedilatildeo atual quanto para a uacuteltima deste capiacutetulo

As ligaccedilotildees entre o pensamento de Rafael Cardoso e o de Vileacutem Flusser natildeo se res-

tringem somente aos temas que esses dois autores abordam Cardoso interessado na obra

flusseriana organizou e escreveu a Introduccedilatildeo do livro ldquoO mundo codificado por uma

filosofia do design e da comunicaccedilatildeordquo de Flusser (2007) cujo subtiacutetulo sinaliza para a

relevacircncia e a singularidade dessa obra em teoria e reflexatildeo filosoacutefica no acircmbito do design

e da comunicaccedilatildeo Em tom de advertecircncia Cardoso afirma

Flusser eacute um pensador de causas e natildeo de comportamentos por conseguinte ele natildeo hesita em ultrapassar as limitaccedilotildees metodoloacutegicas necessaacuterias ao pensa-mento de cunho histoacuterico Para aacutereas marcadas desde sempre pelo predomiacutenio de abordagens e pressupostos advindos das ciecircncias sociais mdash como eacute o caso tanto da comunicaccedilatildeo quanto do design mdash o efeito eacute surpreendente e enriquecedor Passado o susto inicial eacute melhor dizer visto que o autor eacute afeito a generalizaccedilotildees e aproximaccedilotildees capazes de provocar ataques de apoplexia em qualquer cientista social ortodoxo (flusser 2007 p 11)

Se essas caracteriacutesticas dos textos flusserianos que aparecem ateacute certo ponto disfarccedila-

das com as provocaccedilotildees de seu autor perdem na contextualizaccedilatildeo histoacuterica e socioloacutegica

ganham ao aprofundarem-se nas matrizes estruturantes do pensamento ocidental ainda

preservadas na atualidade que eacute o foco de nosso interesse Assim concordando com

Cardoso essa transposiccedilatildeo de limites tem seu valor genuiacuteno enquanto reflexatildeo filosoacutefica

por voltar-se para as causas Para o nosso propoacutesito abordaremos especificamente dois

pequenos escritos de Flusser reunidos como capiacutetulos do livro O mundo codificado mas jaacute

publicados anteriormente como ensaios separados ldquoSobre a palavra designrdquo e ldquoA alavanca

contra-atacardquo Apesar do peculiar tiacutetulo do segundo texto natildeo explicitar o seu propoacutesito

como veremos as duas investigaccedilotildees tratam de temas correlacionados

Sobre a palavra design eacute um escrito de apenas seis paacuteginas mas seminal Como carac-

teriacutestico das produccedilotildees de filoacutelogos e filoacutesofos o texto comeccedila com definiccedilotildees de palavras

e conceitos indo ateacute suas origens para assim construir argumentos

Em inglecircs a palavra design funciona como substantivo e tambeacutem como verbo (circunstacircncia que caracteriza muito bem o espiacuterito da liacutengua inglesa) Como

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substantivo significa entre outras coisas ldquopropoacutesitordquo ldquoplanordquo ldquointenccedilatildeordquo ldquometardquo ldquoesquema malignordquo ldquoconspiraccedilatildeordquo ldquoformardquo ldquoestrutura baacutesicardquo e todos esses e outros significados estatildeo relacionados a ldquoastuacuteciardquo e a ldquofrauderdquo Na situaccedilatildeo de verbo mdash to design mdash significa entre outras coisas ldquotramar algordquo ldquosimularrdquo ldquopro-jetarrsquorsquo ldquoesquematizarrdquo ldquoconfigurarrdquo ldquoproceder de modo estrateacutegicordquo (flusser 2007 p 181)

Flusser apresenta essas acepccedilotildees com a clara intenccedilatildeo de reforccedilar os sentidos do con-

ceito de astuacutecia fraude simulaccedilatildeo e trama que eacute o centro de seu interesse Esse propoacutesito

eacute confirmado quando ele tambeacutem natildeo deixa duacutevidas impondo o mesmo crivo ao definir

a atuaccedilatildeo do designer

A palavra design ocorre em um contexto de astuacutecias e fraudes O designer eacute portanto um conspirador malicioso que se dedica a engendrar armadilhas Outros termos tambeacutem bastante significativos aparecem nesse contexto como por exemplo as palavras ldquomecacircnicardquo e ldquomaacutequinardquo Em grego mechos designa um mecanismo que tem por objeto enganar uma armadilha e o cavalo de Troia eacute um exemplo disso Ulisses eacute chamado polymechanikos o que traduziacuteamos no coleacutegio como ldquoo astuciosordquo (der Listenreiche) (flusser 2007 p 182)

Comparada aos demais autores que investigamos ateacute o momento essa eacute uma anaacutelise

e posiccedilatildeo incomum10 Flusser transita do conceito de design para o de designer e deste

para o de mecacircnica e de maacutequina conectando seus significados com o que ele entende

ser sua essecircncia comum a astuacutecia Indo ateacute a origem dessa palavra ele a associa a Odisseus

(ou Ulisses como ficou conhecido no Ocidente) heroacutei grego e personagem da Odisseia

construiacutedo por Homero para encarnar um caraacuteter uacutenico com o epiacuteteto de o astuto

Neste ponto importa compreender esse elemento fundamental na dinacircmica do texto

flusseriano porque este autor para pensar o conceito de astuacutecia e demais elementos a ele

associados movimenta-se entre um sentido positivo (de sagacidade e habilidade estrateacutegi-

ca) e outro negativo (de fraude e conspiraccedilatildeo) em uma dialeacutetica proacutepria da sua exposiccedilatildeo

Para tanto e seguindo a trilha aberta por Flusser no acircmbito da mitologia grega eacute preciso

10 Entre os anos de 2013 e 2017 lecionamos na Escola de Design da Universidade do Estado de Minas Gerais para estudantes dos cursos de Design e de Artes Visuais em turmas do 1ordm 2ordm 4ordm 5ordm e 7ordm pe-riacuteodos Nas diversas oportunidades em que esse ensaio de Flusser foi investigado e discutido em sala de aula para nossa surpresa (e apesar de natildeo procedermos com nenhuma pesquisa empiacuterica) um nuacutemero expressivo de estudantes concordou com Flusser acerca da associaccedilatildeo do conceito de astuacutecia ao design e aos designers

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nos determos mesmo que de forma natildeo aprofundada sobre narrativas de origem e de

conquista do conhecimento em nossa cultura Faremos isso tanto em sua vertente grega

quanto na do texto biacuteblico da tradiccedilatildeo judaico-cristatilde uma vez que no nosso entendimen-

to as diferenciaccedilotildees desses escritos trazem elementos correlatos aos que Flusser explora

no tratamento de seu tema Investigaremos especificamente os atributos que tornaram

o ser humano distinto dos outros seres e o destacaram da natureza O tema cresce em

complexidade e importacircncia na medida em que as duas narrativas a serem investigadas

contecircm elementos em oposiccedilatildeo como nas contraposiccedilotildees do ensaio de Flusser

Entre as diversas cosmogonias que de algum modo influenciaram e continuam a

ter relevacircncia nas concepccedilotildees de realidade no Ocidente a de origem grega eacute uma das

que se destaca por sua capacidade de conectar os discursos primordiais miacuteticos com o

subsequente pensamento racional da filosofia Como apresentamos (cf p 56-58) a con-

cepccedilatildeo da poacuteiesis se insere nessa categoria em que um deus ou demiurgo produz o cosmos

a partir do caos uma massa preexistente e informe De modo distinto dessa construccedilatildeo

encontra-se a narrativa biacuteblica em que Deus produz ou mais exatamente cria o mundo

a partir do nada (ex nihilo) Tal diferenciaccedilatildeo entre concepccedilotildees eacute essencial pois se traduz

em duas espeacutecies de caminhos para o ato criativo Grosso modo na concepccedilatildeo grega exis-

tem modelos a se descobrir para efetivar a produccedilatildeo que carreia a racionalizaccedilatildeo para o

interior do processo criativo Na judaico-cristatilde se natildeo eacute possiacutevel explicar racionalmente

tal processo elementos como a imaginaccedilatildeo a originalidade e a subjetividade conduzem

agrave ideia de inspiraccedilatildeo divina e de gecircnio criativo como o liame entre os correlatos criador

e criatura e artista e criaccedilatildeo Ao longo da histoacuteria da cultura ocidental essas duas visotildees

se alternaram e disputam ainda hoje a primazia da explicaccedilatildeo dos processos criativos11

Seguindo adiante nas duas cosmogecircneses de um lado temos o mito de Prometeu cujo

personagem principal um semideus astuto e capaz de antever o futuro daacute tiacutetulo agrave narrati-

va Prometeu com o objetivo de salvar a raccedila humana da extinccedilatildeo furta o conhecimento

11 Para uma anaacutelise comparativa dessas duas concepccedilotildees com suas caracteriacutesticas e seus pontos fortes e fracos ver o artigo A Teoria de Soluccedilatildeo de Problemas Inventivos (TRIZ) como complementar aos pro-cessos intuitivos de criatividade no design (silva S domingues F dias M R A C 2017) Nessa investigaccedilatildeo defendemos a ideia de que se natildeo for possiacutevel unificar as duas visotildees (a intuitiva e a racional) em um mesmo procedimento pelo menos eacute aceitaacutevel trabalhar com ambas como instru-mentos complementares e natildeo excludentes de suporte agrave criaccedilatildeo potencializando-os mutuamente

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teacutecnico da deusa Athenaacute e o fogo e a arte de plasmar metais do deus Hefestos Com isso

ele garante aos homens condiccedilotildees de sobreviver diante dos elementos da natureza em

peacute de igualdade com os outros seres vivos O ser humano que natildeo tinha acesso a esses

conhecimentos tendo-os recebido como presentes garante sua sobrevivecircncia Mas uma

vez de posse desse saber a humanidade natildeo cessa de ampliaacute-lo elevando-se em relaccedilatildeo aos

demais seres buscando controlar a natureza em benefiacutecio proacuteprio e consequentemente

aproximando seus atributos aos da divindade

No livro biacuteblico do Gecircnesis haacute uma narrativa correlata que fala de uma aacutervore do

conhecimento do bem e do mal e seu fruto acessiacutevel apesar de ser expressamente proi-

bido para a mulher e o homem sob pena de morrerem A Serpente o mais astuto dos

animais atua de modo a enganar a mulher e convencecirc-la a comer e a dar de comer ao

homem Adatildeo e Eva antes de comerem do fruto vivendo no Eacuteden natildeo correm o risco

de perecerem Mas o castigo dado a eles pela transgressatildeo se estende tambeacutem agrave toda a sua

descendecircncia com a perda do paraiacuteso e da vida eterna e a aquisiccedilatildeo de uma capacidade

de conhecer que natildeo eacute apenas do bem mas tambeacutem do mal

Nosso propoacutesito em relaccedilatildeo agraves duas narrativas apesar das inuacutemeras semelhanccedilas

entre elas eacute ressaltar as diferenccedilas12 para confrontaacute-las com o pensamento de Flusser em

uma busca por compreensatildeo de suas ideias sobre o design a arte a ciecircncia e a teacutecnica No

Prometeu a humanidade natildeo vivia em um paraiacuteso mas correndo o risco de extinccedilatildeo por

natildeo ter as proteccedilotildees e capacidades naturais dos demais seres vivos Aleacutem disso a puniccedilatildeo

que os humanos sofreram apoacutes o furto de Prometeu de serem obrigados a trabalhar para

sobreviver eacute apenas uma parte do que padece o homem biacuteblico com a expulsatildeo do pa-

raiacuteso O titatilde Prometeu apesar de ser condenado a ficar preso a uma rocha e ter o fiacutegado

dilacerado todos os dias por uma ave de rapina permanece na sua condiccedilatildeo de imortal

12 Na histoacuteria de Prometeu existiam variantes orais que foram cristalizadas em inuacutemeras versotildees de poetas e tragedioacutegrafos ao contraacuterio do texto unificado da Biacuteblia Assim destacam-se entre outros autores Hesiacuteodo Eacutesquilo e ateacute Platatildeo que narram com diferenccedilas a histoacuteria de Prometeu Conforme afirma o classicista Junito de Souza Brandatildeo ldquoO mito como jaacute se assinalou vive em variantes ora a obra de arte de conteuacutedo mitoloacutegico somente pode apresentar e eacute natural uma de suas variantes Acontece que dado o imenso prestiacutegio da poesia na Greacutecia a variante apresentada por um grande poeta impunha-se agrave consciecircncia puacuteblica tornando-se um mito canocircnico com esquecimento das demais variantes talvez artisticamente menos eficazes mas nem por isso menos importantes do ponto de vista religiosordquo (brandatildeo 1986 p 27)

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Assim comparando a Serpente a Prometeu ambos satildeo astutos e catalizadores do

processo da aquisiccedilatildeo do conhecimento e nos dois casos fazem uso de um ardil No en-

tanto Prometeu eacute retratado como heroacutei enaltecido como benfeitor da raccedila humana e

natildeo perde seu status de semideus ao passo que a Serpente eacute descrita como o ser maldito

que engana e desencadeia os males sobre a humanidade sendo punida com uma vida

rastejante alimentando-se de poacute Aleacutem disso o conhecimento adquirido pelos protegi-

dos de Prometeu eacute algo valioso que encerra uma visatildeo virtuosa e nobre na faculdade de

conhecer enquanto que o conhecimento advindo do fruto biacuteblico estaacute cindido em um

maniqueiacutesmo que o torna um risco constante para a humanidade

Deste modo um espiacuterito positivo e em certo sentido ateacute otimista em relaccedilatildeo ao

conhecimento e ao ato de conhecer perpassa e reaparece em outras histoacuterias formadoras

e estruturantes da cultura grega como a Iliacuteada e a Odisseia de Homero de que Flusser se

apropria a propoacutesito de elaborar seu raciociacutenio Como eacute sabido o personagem Ulisses no

livro da Iliacuteada usando de seu atributo principal a astuacutecia esconde-se com seus guerreiros

em um grande cavalo de madeira que eacute a chave para a vitoacuteria contra a cidade de Iacutelion

(Troia) No livro seguinte Odisseia esse heroacutei consegue enfrentar com engenhosidade

toda a sorte de dificuldades e aventuras e retornar a salvo agrave sua terra e lar

A disposiccedilatildeo grega de entender a astuacutecia em sua acepccedilatildeo de valor a se preservar res-

surge em outras narrativas como por exemplo na lenda do Noacute Goacuterdio Essa histoacuteria narra

a soluccedilatildeo inusitada que Alexandre o Grande teria dado para desfazer um noacute em cordas

aparentemente impossiacutevel de ser desatado Apoacutes um tempo estudando a amarraccedilatildeo Ale-

xandre desembainha sua espada e corta o noacute Essa atitude entendida pela tradiccedilatildeo grega

positivamente como sagacidade engenhosidade e arguacutecia tambeacutem pode ser interpretada

negativamente como fraude ardil ou trapaccedila Como Flusser transita entre duas acepccedilotildees

e medidas valorativas consideramos essa dupla visatildeo (grega e judaico-cristatilde) uma chave

de leitura para compreender a proposta desse autor para o design

Apoacutes definir design e designer Flusser com o mesmo meacutetodo etimoloacutegico procura

caracterizar tanto a teacutecnica quanto a arte indo ateacute as suas raiacutezes gregas que satildeo comuns

Sigamos seus passos

92

Outra palavra usada nesse mesmo contexto eacute ldquoteacutecnicardquo Em grego techneacute significa ldquoarterdquo e estaacute relacionada com tekton (ldquocarpinteirordquo) A ideia fundamental eacute a de que a madeira (em grego hyleacute) eacute um material amorfo que recebe do artista o teacutecnico uma forma ou melhor em que o artista provoca o aparecimento da forma (flusser 2007 p 182)

Essa descriccedilatildeo estaacute claramente vinculada ao conceito de produccedilatildeo demiuacutergica em que

preexiste um ldquomaterial amorfordquo (equivalente ao caos) que deve ser trabalhado e enforma-

do pelo artista Em seguida ele avanccedila para a liacutengua latina com o mesmo procedimento

etimoloacutegico e vieacutes em torno da fraude enquanto um artifiacutecio

O equivalente latino do termo grego techneacute eacute ars que significa na verdade ldquomanobrardquo (Dreh) O diminutivo de ars eacute articulum mdash pequena arte mdash e indica algo que gira ao redor de algo (como por exemplo a articulaccedilatildeo da matildeo) Ars quer dizer portanto algo como ldquoarticulabilidaderdquo ou ldquoagilidaderdquo e artifex (ldquoartistardquo) quer dizer ldquoimpostorrdquo O verdadeiro artista eacute um prestidigitador o que se pode perceber por meio das palavras ldquoartifiacuteciordquo ldquoartificialrdquo e ateacute mesmo

ldquoartilhariardquo (flusser 2007 p 183)

Aqui Flusser vai aleacutem das definiccedilotildees claacutessicas gregas de artista e se alinha especifica-

mente com o conceito platocircnico de artista pois poderiacuteamos afirmar que um impostor ou

prestidigitador eacute na essecircncia um imitador Eacute importante destacar que esses termos se ligam

na origem com outros com os quais atualmente natildeo fazemos normalmente conexatildeo Por

exemplo o mesmo sentido de impostor se encontra tambeacutem em um dos significados de

hipoacutecrita que em sua origem grega tem como uma das suas acepccedilotildees principais a de ator

Tendo essas associaccedilotildees estabelecidas Flusser pode entatildeo retomar a questatildeo do design

na atualidade indicando o problema (que segundo ele se instaura no periacuteodo moderno)

e defender sua tese acerca do papel do design neste contexto

Essas consideraccedilotildees explicam de certo modo por que a palavra design pocircde ocupar o espaccedilo que lhe eacute conferido no discurso contemporacircneo As palavras design maacutequina teacutecnica ars e Kunst[13] estatildeo fortemente inter-relacionadas cada um dos conceitos eacute impensaacutevel sem os demais e todos eles derivam de uma mesma perspectiva existencial diante do mundo No entanto essa co-nexatildeo interna foi negada durante seacuteculos (pelo menos desde a Renascenccedila)

13 Nesse ensaio Flusser tcheco nascido em Praga tambeacutem apresenta o correlato de cada palavra defi-nida em alematildeo Na medida em que natildeo incluiacutemos essa liacutengua ao escopo de nossa anaacutelise natildeo nos estendemos sobre essas comparaccedilotildees

93

A cultura moderna burguesa fez uma separaccedilatildeo brusca entre o mundo das artes e o mundo da teacutecnica e das maacutequinas de modo que a cultura se dividiu em dois ramos estranhos entre si por um lado o ramo cientiacutefico quantificaacutevel ldquodurordquo e por outro o ramo esteacutetico qualificador ldquobrandordquo Essa separaccedilatildeo desastrosa comeccedilou a se tornar insustentaacutevel no final do seacuteculo xix (flusser 2007 p 183)

A citaccedilatildeo anterior merece especial atenccedilatildeo Flusser defende uma ldquointer-relaccedilatildeordquo entre

os conceitos de design e maacutequina teacutecnica e arte com a qual concordamos pelo menos

em parte Nossa posiccedilatildeo difere desse autor quanto ao momento em que ocorreu a cisatildeo

entre esses conceitos Para Flusser tal separaccedilatildeo entre ciecircncia teacutecnica e arte ocorre ldquopelo

menosrdquo a partir da Renascenccedila enquanto para noacutes como afirmamos anteriormente ela

se inicia com Platatildeo com uma teoria acerca da realidade que cinde o conhecimento em

aacutereas Mas o mais importante para noacutes tal teoria tambeacutem hierarquiza o conhecimento

Independentemente dessas diferenccedilas a proposta de Flusser para atenuar essa ldquoseparaccedilatildeo

desastrosardquo ou ldquobrechardquo entendida com ldquoinsustentaacutevelrdquo eacute relevante

A palavra design entrou nessa brecha como uma espeacutecie de ponte entre esses dois mundos E isso foi possiacutevel porque essa palavra exprime a conexatildeo interna entre teacutecnica e arte E por isso design significa aproximadamente aquele lugar em que arte e teacutecnica (e consequentemente pensamentos valorativo e cientiacutefico) caminham juntas com pesos equivalentes tornando possiacutevel uma nova forma de cultura (flusser 2007 p 183)

Devemos nos manter atentos ao alerta anterior de Cardoso sobre a forma de Flusser

conduzir seus raciociacutenios e expressar suas ideias Por exemplo nas duas uacuteltimas citaccedilotildees

ele natildeo se preocupa em explicitar a diferenccedila entre ciecircncia e teacutecnica permutando o uso

desses conceitos Como vimos essa tambeacutem eacute uma postura adotada por Platatildeo em alguns

de seus diaacutelogos em relaccedilatildeo agrave teacutekhne e agrave espisteacuteme

Ao mesmo tempo Flusser natildeo assume com todas as letras a existecircncia na atualidade

de uma hierarquizaccedilatildeo do conhecimento Mas tal consciecircncia se manifesta em poucas

palavras quando ele qualifica o design para estabelecer a arte e a teacutecnica ldquocom pesos

equivalentesrdquo Essa visatildeo peculiar difere do pensamento de Cardoso que natildeo considera

necessaacuteria a accedilatildeo do design para instituir a equidade entre a arte e outros campos ldquoArte

eacute um meio de acesso ao desconhecido em peacute de igualdade com a ciecircncia a filosofia a

religiatildeo[]rdquo(cardoso 2016 p 246)

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Quando Flusser emprega o termo ldquoconexatildeo internardquo pode parecer que ele compreende

design e arte como indistintos No entanto as palavras ldquocaminham juntasrdquo indicam que

seguem uma mesma direccedilatildeo mas natildeo de indistinccedilatildeo entre aacutereas Isso se torna mais claro

com o seu conceito de ldquoponterdquo pois a indistinccedilatildeo natildeo carece desse artifiacutecio de ligaccedilatildeo Assim

paradoxalmente o ponto de vista de Flusser um filoacutesofo que procura ligar design e arte

natildeo necessariamente se opotildee agrave posiccedilatildeo de Bonsiepe um designer que pensa a filosofia

para distinguir design e arte Aleacutem disso podemos afirmar que ambos concordam com

outra conexatildeo aquela entre design e ciecircnciateacutecnica Lembremos o que Bonsiepe diz a

esse respeito ldquoEstou convencido de que no futuro haveraacute uma interaccedilatildeo frutiacutefera entre

mundo das ciecircncias e o mundo do projeto que hoje se daacute no maacuteximo esporadicamenterdquo

(bonsiepe 2011 p 17)

Ateacute aqui mesmo com o modo natildeo usual de conduzir sua reflexatildeo Flusser chega a

algumas conclusotildees semelhantes agraves de autores do design como Cardoso e Bonsiepe Mas

a questatildeo da astuacutecia ainda precisa ser esclarecida Flusser sabe disso e propotildee assumirmos

esse caraacuteter que segundo ele eacute inerente agrave nossa cultura

A cultura para a qual o design poderaacute melhor preparar o caminho seraacute aquela consciente de sua astuacutecia A pergunta eacute a quem e ao que enganamos quando nos inscrevemos na cultura (na teacutecnica e na arte em suma no design) Vamos a um exemplo a alavanca eacute uma maacutequina simples Seu design imita o braccedilo humano trata-se de um braccedilo artificial Sua teacutecnica provavelmente eacute tatildeo antiga quanto a espeacutecie Homo sapiens talvez ateacute mais E o objetivo dessa maacutequina desse design dessa arte dessa teacutecnica eacute enganar a gravidade trapacear as leis da natureza e ardilosamente liberar-nos de nossas condiccedilotildees naturais por meio da exploraccedilatildeo estrateacutegica de uma lei natural Por intermeacutedio de uma alavanca mdash e apesar de nosso proacuteprio peso mdash podemos nos lanccedilar ateacute as estrelas se for o caso e se nos derem um ponto de apoio somos capazes de tirar o mundo de sua oacuterbita Esse eacute o design que estaacute na base de toda cultura enganar a natureza por meio da teacutecnica substituir o natural pelo artificial e construir maacutequinas de onde surja um deus que somos noacutes mesmos Em suma o design que estaacute por traacutes de toda cultura consiste em com astuacutecia nos transformar de simples mamiacuteferos condicionados pela natureza em artistas livres (flusser 2007 p 184)

O exemplo da alavanca que seraacute retomado no segundo ensaio de Flusser jaacute aparece

aqui de modo a explorar o aspecto positivo e diriacuteamos culturalmente grego da astuacutecia

ou seja nos libertar como artistas para alcanccedilarmos as estrelas e ateacute nos tornarmos deuses

95

Mas a dialeacutetica de Flusser natildeo para neste ponto Ele entende que ldquoum ser humano eacute um

design contra a naturezardquo e que ldquose o design continuar se tornando cada vez mais o foco

de interesse e as questotildees referentes a ele passarem a ocupar o lugar das preocupaccedilotildees

concernentes agrave ideia certamente natildeo pisaremos em chatildeo firmerdquo (flusser 2007 p 185) E

em um movimento de oposiccedilatildeo Flusser aponta o que pagamos por assumirmos a astuacutecia

como inerente agrave nossa cultura

Como explicar essa desvalorizaccedilatildeo de todos os valores Pelo fato de que graccedilas agrave palavra design comeccedilamos a nos tornar conscientes de que toda cultura eacute uma trapaccedila de que somos trapaceiros trapaceados e de que todo envolvimento com a cultura eacute uma espeacutecie de autoengano [] Mas o preccedilo que pagamos por isso eacute a renuacutencia agrave verdade e agrave autenticidade O que a alavanca faz de fato eacute tirar de oacuterbita tudo o que eacute verdadeiro e autecircntico e substituiacute-lo mecanicamente por artefatos desenhados com perfeiccedilatildeo Desse modo todos os artefatos adquirem o mesmo valor que as canetas de plaacutestico convertem-se em gadgets descartaacuteveis E isso se evidencia no mais tardar quando morremos Pois apesar de todas as estrateacutegias teacutecnicas e artiacutesticas (apesar da arquitetura do hospital e do design do leito de morte) o fato eacute que morremos como todos os mamiacuteferos A palavra design adquiriu a posiccedilatildeo central que tem hoje no discurso cotidiano porque estamos comeccedilando (e provavelmente com razatildeo) a perder a feacute na arte e na teacutecnica como fontes de valores Porque estamos comeccedilando a entrever o design que haacute por traacutes delas (flusser 2007 p 185-186)

Nesse ponto claramente o tom e a argumentaccedilatildeo flusseriana procuram identificar

os aspectos negativos de assumirmos o que ele entende como um modo de vida artificial

sem verdade e autenticidade Flusser acredita que junto com a identificaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo

da astuacutecia e a busca pela perfeiccedilatildeo renunciamos a diversos valores na arte e na teacutecnica

Poreacutem natildeo concordamos com Flusser que a perda ou rejeiccedilatildeo desses valores possa ser

creditada agrave astuacutecia inerente ao homem e aos princiacutepios que constituem a essecircncia do

design A ambivalecircncia que este autor explora nesse conceito (que associamos agrave cultura

ocidental ora em direccedilatildeo a uma compreensatildeo da vida como um ldquopresenterdquo de Prometeu

ora como a perda da imortalidade e da existecircncia apraziacutevel pela cilada da Serpente biacuteblica)

natildeo indica a real causa das possibilidades que o design enquanto ponte pode nos oferecer

No nosso entendimento o perigo no uso que fazemos da astuacutecia natildeo diz respeito

propriamente a posse que temos dela mas agrave nossa capacidade de discernir valores e agraves

direccedilotildees que nossas escolhas conscientes podem nos levar Flusser no fundo parece

96

ciente disso quando afirma ao final do seu texto que ldquoEste ensaio segue um design

determinado ele quer trazer agrave luz os aspectos peacuterfidos e ardilosos da palavra design que

normalmente costumam ser ocultadosrdquo (flusser 2007 p 186) E aponta que outros

caminhospoderiamserseguidosmasconcluildquo[]eacuteexatamenteassimtudodepende

do designrdquo (flusser 2007 p 186) Natildeo consideramos essa afirmaccedilatildeo como retoacuterica O

conceito de ponte que Flusser propotildee eacute potente o suficiente para fazer pensar sobre as

possibilidades que o design tem enquanto um camp0 com fronteiras moacuteveis A ampliaccedilatildeo

expressiva dessas fronteiras estaacute representada no graacutefico da figura 9 onde linhas partem

do design em direccedilatildeo agrave arte teacutecnica tecnologia e ciecircncia O proacuteximo passo eacute de modo

anaacutelogo percorrer o segundo ensaio deste autor ldquoA alavanca contra-atacardquo atentando

para uma conexatildeo inesperada entre o design e a natureza

Existe um liame visiacutevel entre o primeiro e segundo ensaio Da mesma forma que Flusser

coloca a astuacutecia no centro da discussatildeo no primeiro ele o faz conduzindo esse caraacuteter de

artifiacutecio para o conceito de alavanca no segundo Nessa reflexatildeo de quatro paacuteginas no-

vamente ele inicia com uma definiccedilatildeo ldquoAs maacutequinas satildeo simulaccedilotildees dos oacutergatildeos do corpo

humanordquo (flusser 2007 p 46) Em seguida ele retoma os primoacuterdios da vida humana

imaginando na preacute-histoacuteria alguns instrumentos que contribuiacuteram para o desenvolvimento

de nossa espeacutecie Tanto a alavanca quanto a faca de pedra satildeo enquadradas na categoria

de ldquomaacutequinas inorgacircnicasrdquo enquanto o burro o chacal (que podemos interpretar como

DESIGN

asymp aC dC 7 dC 85 dC dCGreacutecia Ocidente

EPISTEacuteME

TEacuteKHNE TEacuteCNICA

ARTE

TECNOLOGIA

POacuteIESIS CIEcircNCIA

Figura 9 Linha do tempo acrescentando o design com as influecircncias que esse campo acolheu e as conexotildees que Flusser propotildee como desdobramento de suas atividades fonte autor

97

o catildeo) e o escravo pertencem agrave classe das ldquomaacutequinas orgacircnicasrdquo Ao criteacuterio de distinccedilatildeo

entre maacutequinas vivas e inanimadas seguem-se as vantagens e desvantagens de cada um

desses gecircneros As inorgacircnicas satildeo mais fortes resistentes e consequentemente duram mais

No entanto satildeo ldquoestuacutepidasrdquo Jaacute as orgacircnicas duram menos mas por sua complexidade satildeo

consideradas ldquointeligentesrdquo14 (flusser 2007 p 46-47) Em seguida em um salto (na

expressatildeo de Cassirer para outro ldquoponto focalrdquo da histoacuteria) este autor aborda a eacutepoca da

Revoluccedilatildeo Industrial onde uma inflexatildeo e mudanccedila sensiacutevel ocorrem

A maacutequina industrial se distingue da preacute-industrial pelo fato de que aquela tem como base uma teoria cientiacutefica Certamente a alavanca preacute-industrial tambeacutem tem a lei da alavanca em seu bojo mas somente a industrial sabe que a tem Habitualmente isso se expressa assim as maacutequinas preacute-industriais fo-ram fabricadas empiricamente ao passo que as industriais o satildeo tecnicamente (flusser 2007 p 47)

Aqui a semelhanccedila da posiccedilatildeo de Flusser com a que apresentamos de Koyreacute eacute evidente

Para Koyreacute (1991) as teorias cientiacuteficas satildeo o fundamento da diferenciaccedilatildeo que conduz

da teacutecnica agrave tecnologia ao passo que para Flusser essas mesmas teorias distinguem maacute-

quinas preacute-industriais e industriais Ateacute o periacuteodo histoacuterico em que esse processo ocorre

eacute o mesmo para ambos os autores Flusser natildeo faz uso dos mesmos termos de Koyreacute mas

eacute clara sua aderecircncia a essa compreensatildeo que se mostraraacute uma das bases para ele pensar

o design Natildeo sem razatildeo na figura 9 preservamos o elemento da tecnologia e sua linha

de derivaccedilatildeo que vai da ciecircncia ateacute o design

As teorias a respeito do ldquomundo inorgacircnicordquo que possibilitaram as maacutequinas da Re-

voluccedilatildeo Industrial trazem vantagens em relaccedilatildeo agraves duas classes de maacutequinas anteriores

Mas e quanto ao homem e sua relaccedilatildeo com esses instrumentos Flusser prossegue em seu

raciociacutenio mostrando a inversatildeo que ocorre

Daiacute que a partir da Revoluccedilatildeo Industrial o boi deu lugar agrave locomotiva e o cavalo ao aviatildeo O boi e o cavalo eram impossiacuteveis de ser feitos tecnicamente Com relaccedilatildeo aos escravos a coisa era ainda mais complicada As maacutequinas teacutecnicas natildeo apenas iam se tornando cada vez mais eficazes como tambeacutem maiores e

14 O proacuteprio Flusser insere aspas ao se referir agrave caracteriacutestica ldquoestuacutepidardquo ou ldquointeligenterdquo destacando o sentido figurativo desses termos nessa situaccedilatildeo

98

mais caras Desse modo a relaccedilatildeo ldquohomem-maacutequinardquo inverteu-se de tal modo que as maacutequinas natildeo serviam aos homens mas estes serviam a elas Haviam-se convertido em escravos relativamente inteligentes de maacutequinas relativamente estuacutepidas (flusser 2007 p 47)

Simultaneamente ele se pergunta acerca de uma nova fronteira que precisava ser

ultrapassadapelaciecircncialdquo[]emrelaccedilatildeoaomundoorgacircnicoasteoriaserambastante

escassas Que leis tem o burro no seu ventre Natildeo soacute o proacuteprio burro as desconhecia

como tambeacutem os cientistas pouco sabiam sobre elasrdquo (flusser 2007 p 47) Esse passo

eacute importante porque marca um giro em direccedilatildeo agrave natureza aacutepice do ensaio Assim ele vai

da revoluccedilatildeo dos seacuteculos xviii e xix de caraacuteter predominantemente inorgacircnico para

a do xx que volta parte das suas atenccedilotildees para o mundo orgacircnico Nas suas palavras

Mas essa natildeo eacute a mudanccedila realmente importante Muito mais significativo eacute o fato de que estamos comeccedilando a dispor tambeacutem de teorias que se aplicam ao mundo orgacircnico Comeccedilamos a saber que leis o burro traz no ventre Em consequecircncia em breve poderemos fabricar tecnologicamente bois cavalos escravos e superescravos Isso seraacute chamado provavelmente a segunda Revo-luccedilatildeo Industrial ou a Revoluccedilatildeo Industrial ldquobioloacutegicardquo (flusser 2007 p 48)

Flusser chama a nossa atenccedilatildeo para um ramo da ciecircncia que avanccedila em uma aacuterea natildeo

pensada pela tradiccedilatildeo Lembremos que a poacuteiesis em sua vertente de phyacutesis eacute uma atividade

exclusiva da natureza com os seus atributos de autonomia e autoproduccedilatildeo Tendo em

conta a extraordinaacuteria ampliaccedilatildeo do conhecimento que vem ocorrendo desde meados

do seacuteculo xx (a partir da elaboraccedilatildeo de teorias como a do dna) tornou-se inevitaacutevel a

ligaccedilatildeo e o gradativo controle da ciecircncia (episteacuteme) sobre a produccedilatildeo natural (phyacutesis) em

um niacutevel de compreensatildeo natildeo imaginado pelos gregos e a tradiccedilatildeo que se seguiu ateacute aquele

momento Assim apoacutes mostrar que estamos unindo as vantagens do mundo inorgacircnico

com as do orgacircnico Flusser afirma o resultado dessa hibridizaccedilatildeo Metaforizada pelo

autor nas figuras dos ldquochacais de pedrardquo tal ingerecircncia da produccedilatildeo teoacuterica na produccedilatildeo

natural pode tornar as maacutequinas resultantes mais espertas e levaacute-las a nos contra-atacar

como uma alavanca que devolve o golpe causando dor (flusser 2007 p 48-49)

A velha alavanca nos devolveu o golpe movemos os braccedilos como se fossem ala-vancas e isso desde que passamos a dispor delas Imitamos os nossos imitadores Desde que criamos ovelhas nos comportamos como rebanhos e necessitamos de

99

pastores Atualmente esse contra-ataque das maacutequinas estaacute se tornando mais evidente os jovens danccedilam como robocircs os poliacuteticos tomam decisotildees de acordo com cenaacuterios computadorizados os cientistas pensam digitalmente e os artistas desenham com maacutequinas de plotagem Por conseguinte toda futura fabricaccedilatildeo de maacutequinas tambeacutem deveraacute levar em conta o contragolpe da alavanca Jaacute natildeo eacute possiacutevel construir maacutequinas considerando apenas a economia e a ecologia Eacute preciso pensar tambeacutem como essas maacutequinas nos devolveratildeo seus golpes Uma tarefa difiacutecil se levarmos em consideraccedilatildeo que na atualidade a maioria das maacutequinas eacute construiacuteda por ldquomaacutequinas inteligentesrdquo e noacutes apenas observamos o processo para intervir ocasionalmente (flusser 2007 p 49)

Essa visatildeo impressiona em seu aspecto preditivo uma vez que este ensaio de Flusser

foi escrito ainda no seacuteculo xx15 No entanto sua proposta mais radical com a qual ele

encerra o ensaio natildeo diz respeito a essas antecipaccedilotildees e exerciacutecios de futurologia mas

tem a ver com sua decisatildeo de colocar o design no centro da ldquoRevoluccedilatildeo Industrial lsquobioloacute-

gicarsquordquo e se perguntar sobre a capacidade do designer de elaborar soluccedilotildees para os efeitos

do contragolpe da alavanca

Esse eacute um problema de design como devem ser as maacutequinas para que seu con-tragolpe natildeo nos cause dor Ou melhor como devem ser essas maacutequinas para que o contragolpe nos faccedila bem Como deveratildeo ser os chacais de pedra para que natildeo nos esfarrapem e para que noacutes mesmos natildeo nos comportemos como chacais Naturalmente podemos projetaacute-los de modo a que nos lambam em vez de morder-nos Mas queremos realmente ser lambidos Satildeo questotildees difiacuteceis porque ningueacutem sabe de fato como quer ser No entanto devemos debater essas questotildees antes de comeccedilarmos a projetar chacais de pedra (ou talvez clones de invertebrados ou quimeras de bacteacuterias) E essas questotildees satildeo ainda mais inte-ressantes do que qualquer chacal de pedra ou qualquer futuro super-humano Seraacute que o designer estaraacute preparado para colocaacute-las (flusser 2007 p 49-50)

15 Natildeo encontramos referecircncia agrave data da publicaccedilatildeo original deste ensaio mas Flusser morre em 1991 o que distancia suas reflexotildees dos raacutepidos avanccedilos cientiacuteficos e tecnoloacutegicos do seacuteculo atual e reforccedila o tom profeacutetico de sua narrativa Sua preocupaccedilatildeo eacute compartilhada por outros teoacutericos e escritores desse periacuteodo O teor de suas palavras lembra tambeacutem a efervescecircncia dos temas de ficccedilatildeo cientiacutefica de claacutessicos da literatura como os livros Admiraacutevel mundo novo (1932) de Aldous Huxley Eu robocirc (1950) de Isaac Asimov Androides sonham com ovelhas eleacutetricas (1968) de Philip K Dick levado ao cinema por Ridley Scott em Blade Runner o caccedilador de androides (1982) e o conto Sentinela (1951) de Arthur C Clarke que foi a base para o filme 2001 uma odisseia no espaccedilo (1968) de Stanley Kubrick Os escritos de Flusser parecem estar em constante diaacutelogo com esses autores e obras

100

Eacute notaacutevel que Flusser um filoacutesofo transfira pelo menos em parte a responsabilidade

de reflexatildeo sobre os fins do homem e da natureza da esfera da filosofia e da ciecircncia para

o acircmbito do design incluindo o designer no ldquodebaterdquo dessas questotildees que devem se-

gundo ele e com razatildeo preceder aos projetos A figura 10 apresenta duas novas conexotildees

uma entre ciecircncia e natureza e outra surpreendentemente representando a concepccedilatildeo

de Flusser entre design e natureza

Talvez o deslocamento ou rearranjo de compromissos esteja associado ao conceito

de projeto com o qual Flusser abarca tambeacutem o mundo bioloacutegico em suas ldquoquimeras de

bacteacuteriasrdquo Neste sentido podemos afirmar que novamente Bonsiepe tem uma compreen-

satildeo alinhada com a proposta flusseriana

Natildeo se pode mais restringir o conceito de projeto agraves disciplinas projetuais como ocorre na arquitetura no design industrial e no design de comunicaccedilatildeo visual pois nas disciplinas cientiacuteficas tambeacutem haacute projeto Quando um grupo de enge-nheiros agrocircnomos desenvolveu uma nova merenda com base na semente de algaroba acrescida de sais minerais e vitaminas baacutesicas para escolares realizou um claro exemplo de projeto

Portanto jaacute registramos uma zona de contato entre ciecircncias e projeto embora ainda natildeo tenhamos ateacute o momento uma teoria projetual que abarque todas as manifestaccedilotildees projetuais como na engenharia geneacutetica que sem duacutevida alguma deve ser considerada uma disciplina projetual cientiacutefica (bonsiepe 2011 p 19)

DESIGN

asymp aC dC 7 dC 85 dC dCGreacutecia Ocidente

EPISTEacuteME

TEacuteKHNE

PHYacuteSIS NATUREZA

CIEcircNCIA

TEacuteCNICA

ARTE

TECNOLOGIA

POacuteIESIS

Figura 10 Linha do tempo incluindo aleacutem da ligaccedilatildeo entre ciecircncia e natureza a proposta de Flusser para a ligaccedilatildeo entre design e natureza fonte autor

101

Na citaccedilatildeo anterior nossa atenccedilatildeo se concentra na semelhanccedila entre a ideia de ldquozona

de contatordquo em Bonsiepe e a de ldquoponterdquo em Flusser As possibilidades que esses dois con-

ceitos liberam para o design e outros campos atuarem como conectores entre aacutereas do

conhecimento satildeo substanciais e promissoras Bonsiepe expotildee sua ideia sobre uma ldquoteoria

projetualrdquo como um viacutenculo entre diversas aacutereas Atuando como epistemoacutelogo propotildee

de modo perspicaz uma disciplina que do modo como entendemos exerceria (enquanto

um substrato metafiacutesico) suporte agrave etapa de projeto do qual os campos implicados em

praacuteticas projetivas poderiam usufruir De modo similar agrave visatildeo de Bonsiepe a ideia de

Flusser no entanto nos atrai mais pelos diversos desdobramentos que pudemos identificar

e que tem proximidade com nossa abordagem

1 Apesar da semelhanccedila conceitual diferentemente da zona de contato na ideia de

ponte o design eacute a proacutepria ponte

2 A ponte liga ciecircncia de um lado e arte do outro o que eacute um modo de nos esquivarmos

da cisatildeo entre aacutereas do saber

3 A ponte tambeacutem permite reconsiderar se o problema da hierarquizaccedilatildeo do conheci-

mento advinda da cisatildeo em aacutereas pode ser eventualmente mitigado ou ateacute eliminado

4 A possibilidade de quebra ou supressatildeo parcial da hierarquia aponta um caminho

para avanccedilarmos na reflexatildeo sobre o estatuto ontoloacutegico do design e da arte

Para os nossos propoacutesitos o quarto desdobramento eacute o mais relevante Para ser ex-

plicitado eacute necessaacuterio avanccedilarmos um pouco mais contrapondo ao conceito de ldquoponterdquo

de Flusser (2007) o de ldquorelogiosidade do reloacutegiordquo de Cardoso (1998)

233 Essecircncia ontoloacutegica e epistemoloacutegica

Rafael Cardoso no artigo ldquoDesign cultura material e o fetichismo dos objetosrdquo (1998)

apesar de considerado por ele mesmo mais um ensaio ou ldquoum exerciacutecio de especulaccedilatildeordquo

aprofunda-se ao longo de 29 paacuteginas em um amplo espectro de questotildees No entanto

nosso interesse se restringe aos dois niacuteveis de significados propostos para o que este autor

102

nomeia como ldquoartefatosrdquo16 No primeiro niacutevel encontram-se os significados essenciais em

seus aspectos ontoloacutegicos e epistemoloacutegicos No segundo incorporam-se os significados

natildeo inerentes dessa classe de objetos Como outros autores investigados ateacute aqui Cardoso

elabora algumas definiccedilotildees chave para formar uma base de onde partem suas ideias

Na verdade o design graacutefico moderno conta com um verdadeiro arsenal de me-canismos para despertar uma vasta gama de emoccedilotildees sendo o desejo e a cobiccedila as mais empregadas atualmente para fins mercadoloacutegicos Partamos entatildeo para um esboccedilo de definiccedilatildeo o design eacute em uacuteltima anaacutelise um processo de investir os objetos de significados significados estes que podem variar infinitamente de forma e de funccedilatildeo e eacute nesse sentido que ele se insere em uma ampla tradiccedilatildeo lsquofetichistarsquo (cardoso 1998 p 28-29)

Considerando que a atribuiccedilatildeo de significaccedilatildeo estaacute longe de se restringir aos aspectos

materiais essa definiccedilatildeo de design como ldquoum processo de investir os objetos de significadosrdquo

por si soacute jaacute indica uma compreensatildeo do design que natildeo necessariamente estaacute vinculada agrave

produccedilatildeo material Cardoso partindo desse ldquoesboccedilordquo busca delimitar o campo do design

em relaccedilatildeo agrave arte ao artesanato e agrave ciecircncia empregando a palavra artifiacutecio o que obvia-

mente remete ao uso anterior dado por Flusser

O que eu quero enfatizar aqui eacute que o esforccedilo histoacuterico do design para afastar-se do sentido artesanal e individualista da tradiccedilatildeo artiacutestica ocidental e para acercar-se de uma pretensa objetividade cientiacutefica e tecnoloacutegica acarretou entre outros resultados uma relativa perda de consciecircncia do teor artificioso do campo Natildeo quero dizer de modo algum que o design natildeo passe de uma espeacutecie de artifiacutecio no sentido pejorativo de fingimento ou artimanha Quero antes recuperar o sentido mais primitivo da palavra artifiacutecio o de habilidade ou engenho de inventividade e mdash por que natildeo dizer mdash de criatividade O ato de projetar tem na sua essecircncia um componente baacutesico de criaccedilatildeo de artifiacutecio que natildeo difere substancialmente daquele mesmo elemento factiacutecio (no sentido de lsquofeiturarsquo) que estaacute por traacutes do artesanato da arte e ateacute da magia segundo Kris e Kurz26 Em todos esses casos o artifiacutecio da coisa consiste em dar forma agraves ideacuteias em gerar o fato material e concreto a partir de um ponto eminentemente imaterial e abstrato O que distingue o design de grande parte do artesanato da arte e mdash presumo eu mdash da magia eacute que no design o fato material (factum)

16 Cardoso estabelece os artefatos como uma das particularizaccedilotildees dos objetos ldquoMais correta do que lsquoob-jetorsquo no contexto atual seria a palavra lsquoartefatorsquo a qual se refere especificamente aos objetos produzidos pelo trabalho humano em contraposiccedilatildeo aos objetos naturais ou acidentaisrdquo (cardoso 1998 p 19)

103

que se pretende gerar natildeo eacute feito (factus) pelo mesmo indiviacuteduo que deu iniacutecio ao processo ao conceber a ideacuteia (cardoso 1998 p 29-30)

26 Ernst Kris amp Otto Kurz Legend myth and magic in the image of the artist (New Haven Yale University Press 1981) [nota em peacute de paacutegina do autor]

Independentemente de ser discutiacutevel qual sentido da palavra artifiacutecio eacute o mais primi-

tivo17 se o de engenho ou de fingimento a posiccedilatildeo de Cardoso indica sua predileccedilatildeo pela

primeira acepccedilatildeo bem justificada por estar associada agrave criatividade e diriacuteamos um sentido

positivo e grego se nos lembrarmos da correlaccedilatildeo com a dialeacutetica de Flusser acerca da

astuacutecia Essa determinaccedilatildeo eacute reforccedilada uma vez que logo em seguida na mesma citaccedilatildeo

ele explicita que entende por artifiacutecio o ldquodar forma agraves ideiasrdquo partindo do imaterial e do

abstrato o que reflete um caraacuteter aleacutem de grego platocircnico

Assim Cardoso propotildee o design como uma esfera de concepccedilatildeo de ideias o que do

nosso ponto de vista implica mesmo de modo impliacutecito aceitar um componente platocirc-

nico de objetividade Mas em contraponto a essa posiccedilatildeo ele caminha tambeacutem em um

sentido inverso de valorizar a criatividade da arte criticando o ldquoesforccedilo histoacutericordquo18 do

design de se afastar dos aspectos individualistas e artesanais e se aproximar de elementos

como a objetividade normalmente associados agrave ciecircncia e tecnologia Por fim Cardoso

une esses elementos diversos em uma caracterizaccedilatildeo complexa do design

Quero sugerir portanto que a atividade do design caracteriza-se mais como um exerciacutecio de processos mentais (artifiacutecioengenho) do que de processos manuais (artes aplicadas ou plaacutesticas propriamente ditas) e como tanto assemelha-se ao fetichismo que tambeacutem forja uma ligaccedilatildeo entre o imaterial e o material sem passar necessariamente pela feitura27 (cardoso 1998 p 30)

27 Ignorando por um momento o fato de que o designer depende tradicio-nalmente de meios de expressatildeo manuais e ateacute artiacutesticos para transmitir as

17 No nosso entendimento pelo menos ateacute pudemos investigar etimologicamente eacute difiacutecil precisar qual eacute o sentido mais primitivo para a palavra artifiacutecio

18 A afirmaccedilatildeo de Cardoso sobre ldquoo esforccedilo histoacuterico do design para afastar-se do sentido artesanal e individualista da tradiccedilatildeo artiacutestica ocidental e para acercar-se de uma pretensa objetividade cientiacutefica e tecnoloacutegica []rdquo (cardoso 1998 p 29-30) confirma a oposiccedilatildeo frontal que jaacute anunciamos ante-riormente (p 77) entre ele e Schneider Lembremos que Schneider entende que ldquouma tradiccedilatildeo forte e ateacute agora dominante na histoacuteria do design desde a industrializaccedilatildeo ateacute a atualidade eacute marcada pela motivaccedilatildeo artiacutestica pela inspiraccedilatildeo artiacutestica para um design expressivo Essa tradiccedilatildeo se manifesta na tendecircncia a fetichizar a proacutepria praacutetica como artiacutestica e desobrigar-se agrave argumentaccedilatildeo racional e cultivar a aura do design de autorrdquo (schneider 2010 p 260) Itaacutelico nosso

104

suas concepccedilotildees Esta questatildeo tem que ser sempre levada em consideraccedilatildeo ao problematizar a relaccedilatildeo entre design e arte [nota em peacute de paacutegina do autor]

Aqui se condensa mais um ponto relevante da comunhatildeo de ideias de Cardoso e

de Flusser Com articulaccedilatildeo distinta Cardoso partilha da visatildeo de Flusser de reconexatildeo

entre aacutereas do saber mesmo que ele natildeo assuma explicitamente neste artigo uma criacutetica e

proposiccedilatildeo de superaccedilatildeo da cisatildeo dessas aacutereas Deste modo os componentes em oposiccedilatildeo

dialeticamente mesclados por Cardoso em sua definiccedilatildeo do design mdash de um lado uma

objetividade de cunho platocircnico e epistecircmico e de outro um fetichismo quase maacutegico

subjetivo e por que natildeo dizer artiacutestico mdash natildeo satildeo difiacuteceis de ser associados com o conceito

da Ponte Flusseriana

Paralelamente a isso os dois constituintes desse conceito tecircm algo em comum

conectam segundo Cardoso o imaterial com o material natildeo sendo nos dois casos me-

diados necessariamente nessa ligaccedilatildeo pela operaccedilatildeo do fazer Para este autor o design

caracteriza-se portanto por ser um ldquoprocesso mentalrdquo sem a intervenccedilatildeo da execuccedilatildeo

material ficando a produccedilatildeo a cargo de outros profissionais que natildeo o designer E tal de-

terminaccedilatildeo entre conceito abstrato e fazer concreto em outras palavras projeto e execuccedilatildeo

pode ser comprovada na praacutetica com os seus ganhos e perdas para o ser humano desde

a Revoluccedilatildeo Industrial quando a divisatildeo de tarefas entre designers e artesatildeosoperaacuterios

torna-se evidente

Em complemento a esses argumentos no livro ldquoUma introduccedilatildeo agrave histoacuteria do designrdquo

publicado uma deacutecada depois desse artigo Cardoso confirma seu entendimento acerca

da separaccedilatildeo entre projeto e execuccedilatildeo ao discorrer com inuacutemeros exemplos19 sobre

19 Tal separaccedilatildeo se confirma tambeacutem ateacute nas atividades em que a parte projetual define a maior parte das estruturas que guiaratildeo a execuccedilatildeo como no caso dos projetos editoriais de livros e a criaccedilatildeo de faces tipograacuteficas Nesses projetos o imaterial espantosamente equivale ao digital e pode em certo sentido prescindir do mundo material como no caso dos e-books e suas fontes tipograacuteficas Em relaccedilatildeo agraves fontes a ocorrecircncia da divisatildeo de seu processo de produccedilatildeo entre projeto e execuccedilatildeo eacute ainda mais recuada no tempo Desde o periacuteodo da tipografia mecacircnica que se inicia com Gutenberg o trabalho conceitual da criaccedilatildeo das formas dos tipos ou de seu conjunto a face tipograacutefica pelos ldquodesignersrdquo de faces se diferenciava da produccedilatildeo fiacutesica da fonte tipograacutefica pelos puncionistas profissionais que geravam as matrizes para a posterior produccedilatildeo das letras em ligas de chumbo Mas neste caso especiacutefico em que a separaccedilatildeo de tarefas vai ateacute a terminologia (de um lado faces de tipo e de outro fontes tipograacuteficas) tal divisatildeo natildeo impedia nem impede na atualidade de um mesmo profissional atuar em ambas as eta-pas Para mais detalhes ver silva SL Faces e Fontes Multiescrita fundamentos e criteacuterios do design tipograacutefico 1ordf ed Belo Horizonte Adaequatio Editora 2016 lt wwwfacesefontescombr gt

105

as diferenccedilas entre as etapas de planejamento e de produccedilatildeo que permitiram reduzir o

tempo de fabricaccedilatildeo baratear o custo com a matildeo de obra especializada ao colocar cada

trabalhador executando uma tarefa simples e repetitiva separada das demais ldquoEm vez de

contratar muitos artesatildeos habilitados bastava um bom designer para gerar o projeto um bom

gerente para supervisionar a produccedilatildeo e um grande nuacutemero de operaacuterios sem qualificaccedilatildeo

nenhuma para executar as etapas de preferecircncia como meros operadores de maacutequinasrdquo (car-

doso 2008 p 34)

Retornando ao artigo de 1998 atentemos para como esse autor constroacutei a ligaccedilatildeo

entre os conceitos de design e designer com dois niacuteveis de significados dos objetos na

categoria de artefatos

Quero sugerir aqui que os artefatos mesmo natildeo possuindo significados perma-nentes ou fixos satildeo capazes de conter significados ligados tatildeo intimamente agrave sua natureza fiacutesica e concreta que estes podem ser considerados mais ou menos lsquoinerentesrsquo ou seja estaacuteveis em um grau infinitamente maior do que qualquer significado verbal [] (cardoso 1998 p 32)

Cardoso estabelece entatildeo outra diferenciaccedilatildeo que nos interessa por distinguir dois

aspectos de significaccedilatildeo quanto agrave essecircncia desses objetos Eacute importante destacar a rele-

vacircncia da abordagem de Cardoso operando uma clivagem entre aspectos ontoloacutegicos

e epistemoloacutegicos de um lado e aspectos natildeo essenciais de outro em um escrito de 20

anos atraacutes Ateacute onde pesquisamos abordagens expliacutecitas dessa natureza calcadas nessa

espeacutecie de diferenciaccedilatildeo ainda satildeo pouco exploradas em textos sobre teoria do design

Avancemos na linha de raciociacutenio deste autor

[] mesmo que natildeo funcione e mesmo que seja apropriado para outro uso (eg como um peso de papel ou um elemento decorativo) o reloacutegio reteacutem pelo menos dois niacuteveis de significaccedilatildeo que dificilmente satildeo apagados primeiramente a sua identificaccedilatildeo como exemplar de uma classe especiacutefica de objetos (a sua essecircncia ontoloacutegica) e em segundo lugar o fato de remeter agrave mediccedilatildeo da passagem do tempo (a sua essecircncia epistemoloacutegica) (cardoso 1998 p 32)

Acreditamos que a escolha que Cardoso faz do reloacutegio como exemplo para as duas

classes de objetos natildeo eacute arbitraacuteria Lembremos que Koyreacute seguido de Maldonado (cf

p 72-73 e 81-82) indica que a mudanccedila operada no surgimento da ciecircncia moderna com

consequecircncias para a Revoluccedilatildeo Industrial eacute de ordem da precisatildeo E Koyreacute recorre ao

106

exemplo do reloacutegio que segundo ele deixa de ser um utensiacutelio impreciso para o uso co-

tidiano e torna-se um instrumento de mediccedilatildeo para uso cientiacutefico epistecircmico

Todavia natildeo foi da relojoaria dos relojoeiros que finalmente saiu a relojoaria de precisatildeo O reloacutegio dos relojoeiros nunca ultrapassou mdash e jamais poderia fazecirc-lo mdash o estaacutegio do ldquoquaserdquo e o niacutevel do ldquomais-ou-menosrdquo O reloacutegio de pre-cisatildeo o reloacutegio cronomeacutetrico tem uma origem totalmente distinta De modo algum eacute uma promoccedilatildeo do uso praacutetico do reloacutegio Ele eacute um instrumento ou seja uma criaccedilatildeo do pensamento cientiacutefico ou melhor ainda a realizaccedilatildeo consciente de uma teoria Eacute verdade que uma vez realizado um objeto teoacuterico pode se tornar um objeto praacutetico objeto de uso corrente e cotidiano [] Mas natildeo eacute a utilizaccedilatildeo de um objeto que determina a sua natureza eacute a estrutura um cronocirc-metro continua sendo um cronocircmetro mesmo que marinheiros o empreguem E isso nos explica por que natildeo se atribui aos relojoeiros mas aos saacutebios natildeo a Jost Burgi e a Isaak Thuret mas a Galileu e a Huygens (assim como a Robert Hooke) as grandes invenccedilotildees decisivas a quem tambeacutem devemos o reloacutegio de pecircndulo e o reloacutegio regulado de mola (koyreacute 1991 p 283)

A concepccedilatildeo de que os instrumentos possuem fundamentos epistemoloacutegicos isto eacute

uma teoria subjacente agrave sua concepccedilatildeo e produccedilatildeo faz sentido e justifica a distinccedilatildeo entre

teacutecnica e tecnologia No entanto Koyreacute entende que a essecircncia de um instrumento per-

manece mesmo quando eacute usado cotidianamente de modo praacutetico como um cronocircmetro

para saber somente as horas e natildeo milissegundos em um laboratoacuterio Assim quando Koyreacute

afirma que eacute a estrutura que determina a natureza de um objeto e natildeo o uso ele estaacute im-

plicitamente defendendo que a essecircncia ontoloacutegica dos objetos da classe dos instrumentos

natildeo se altera Cardoso ateacute onde pudemos entender identifica tambeacutem essas estruturas e

faz uma distinccedilatildeo entre os significados inerentes ou ldquomais ou menos lsquoinerentesrsquordquo e os natildeo

essenciais Poreacutem ele nos alerta como antes dele Koyreacute para mudanccedilas de significados

dos artefatos que podem ocorrer com o passar do tempo

Se pensarmos no artefato natildeo como uma entidade abstrata mas a partir de exemplos concretos torna-se evidente que nenhum objeto possui um significado monoliacutetico ou fixo Os artefatos existem no tempo e no espaccedilo e vatildeo portanto perdendo sentidos antigos e os adquirindo novos agrave medida que mudam de contexto (cardoso 1998 p 31)

Quando cotejamos os discursos desses dois autores devemos ter em conta que Koyreacute

tratando do mesmo objeto que Cardoso mdash o reloacutegio mdash propotildee a classe ontoloacutegica dos

107

instrumentos enquanto Cardoso a classe dos artefatos cada um com suas nuances e di-

ferenccedilas de sentido De qualquer modo ambos os autores tem uma compreensatildeo de que

os significados originaacuterios e constitutivos desses gecircneros de objetos ligados agrave estrutura

(Koyreacute) ou a essecircncia (Cardoso) tendem a se preservar e ser mais estaacuteveis que aqueles

adquiridos com o passar do tempo e a popularizaccedilatildeo de suas aplicaccedilotildees

Existem apenas dois mecanismos baacutesicos para investir o artefato de significa-dos a atribuiccedilatildeo e a apropriaccedilatildeo os quais correspondem em linhas gerais aos processos paralelos de produccedilatildeodistribuiccedilatildeo e consumouso Varia o grau de estabilidade dos diversos significados (sua capacidade de lsquoaderecircnciarsquo ao artefato) mas grosso modo pode-se dizer que os significados atribuiacutedos no momento de produccedilatildeodistribuiccedilatildeo tendem a ser mais duradouros e universais do que aqueles advindos das instacircncias muacuteltiplas de apropriaccedilatildeo pelo consumouso (cardoso 1998 p 33)

Discordamos das posiccedilotildees de Koyreacute e de Cardoso acerca de propriedades que satildeo

inerentes aos objetos No entanto para compreender nossa divergecircncia eacute necessaacuterio

irmos ateacute agrave sua causa que se desloca das questotildees ontoloacutegicas tratadas neste momento

pelos dois autores e se estabelece em outra esfera o campo da teoria do conhecimento

gnoseologia conforme a figura 11

METAFIacuteSICA

ONTOLOGIA ESTEacuteTICA

ARTE

TEORIA

DO CONHECIMENTOGNOSEOLOGIA

EPIST

EMOLO

GIAFILOSOFIA DA CIEcircNCIA

CIEcircNCIAamp

TEacuteCNICA

O SER EOS ENTES EM GERAL

Figura 11 Representaccedilatildeo das esferas da ontologia e da gnoseologia e dos movimentos de reflexatildeo que precisamos empreender em cada um desses campos para identificar as caracteriacutesticas dos artefatos fonte autor

108

Grosso modo20 de um ponto de vista gnoseoloacutegico isto eacute pressupondo que o conhe-

cimento se estabelece em uma relaccedilatildeo entre sujeito e objeto21 as afirmaccedilotildees de Koyreacute e

Cardoso sinalizam para uma compreensatildeo dessa relaccedilatildeo de caraacuteter realista uma vez que

ambos os autores entendem o objeto possuindo propriedades constitutivas intriacutensecas

e reais independentes do sujeito Jaacute o idealismo posiccedilatildeo diametralmente oposta ao rea-

lismo entende que o objeto eacute construiacutedo em nossa consciecircncia Nossa posiccedilatildeo em certo

sentido fenomenalista22 procura mediar realismo e idealismo Entendemos que os objetos

satildeo constituiacutedos a partir de uma uniatildeo de elementos sensiacuteveis (empiacutericos) e inteligiacuteveis

(intelectivos) e o sujeito (enquanto sujeito do conhecimento) eacute quem procede com essa

uniatildeo no ato de conhecer

Com essa diferenciaccedilatildeo estabelecida ao retornar ao acircmbito da ontologia podemos

pensar diferentemente de Koyreacute e Cardoso os aspectos estruturais ou essenciais que

estariam segundo esses autores mais fortemente ligados ao significado iacutentimo dos ob-

jetos (sejam eles instrumentos artefatosutensiacutelios ou de outros gecircneros como artiacutesti-

cos e ateacute naturais) podem ultrapassar a fronteira de seus sentidos originais natildeo apenas

incorporando novas caracteriacutesticas mas saltando de uma classe ontoloacutegica para outra

Acreditamos que quando algueacutem faz uso de um cronocircmetro fora do acircmbito da pesquisa

cientiacutefica para o qual foi originalmente concebido tal objeto deixa de ser compreendido

ontologicamente como um instrumento de precisatildeo e se torna um artefato ou utensiacutelio

Nosso entendimento eacute de que um objeto natildeo precisa sofrer qualquer alteraccedilatildeo fiacutesica para

passar de uma classe ontoloacutegica a outra O exemplo do urinol de Marcel Duchamp que

seraacute investigado no capiacutetulo 5 eacute radical a este respeito Para transformaacute-lo (ou transfi-

guraacute-lo como diria Arthur Danto) de artefato ou utensiacutelio em obra de arte Duchamp

20 Nosso procedimento de exposiccedilatildeo e atribuiccedilatildeo de posiccedilotildees a Koyreacute e a Cardoso eacute bastante superficial e somente se justifica para indicar o ponto de origem de nossa discordacircncia com esses autores Tanto o realismo quanto o idealismo conteacutem diversas categorias (realismo ingecircnuo natural e criacutetico e idealismo subjetivo e objetivo) com inuacutemeras e ricas variantes que satildeo abordadas em detalhes por Hessen (2000)

21 Conforme afirma Hessen ldquoNo conhecimento encontram-se frente a frente a consciecircncia e o objecto o sujeito e o objecto O conhecimento apresenta-se como uma relaccedilatildeo entre estes dois elementos que nela permanecem eternamente separados um do outro O dualismo sujeito e objeto pertence agrave essecircncia do conhecimentordquo (hessen 1980 p26)

22 Com essa denominaccedilatildeo que normalmente estaacute associada agrave posiccedilatildeo de Kant natildeo pretendemos assumir sua concepccedilatildeo gnoseoloacutegica como um todo com a qual partilhamos algumas convicccedilotildees mas com reservas

109

do ponto de vista fiacutesico apenas acrescentou uma assinatura que natildeo era a sua Frente ao

nosso posicionamento temos mais um uacuteltimo ponto em que a compreensatildeo de Cardoso

nesse artigo se distingue da nossa

Natildeo cabe ao design atribuir relogiosidade a um reloacutegio pois este jaacute o possui necessariamente com ou sem a participaccedilatildeo de um designer no processo de produccedilatildeo Natildeo a funccedilatildeo do designer natildeo eacute de atribuir ao objeto aquilo que ele jaacute possui aquilo que jaacute faz parte (in haerere) da sua natureza mas de enriquececirc-lo de fazer colar mdash aderir mesmo (ad haerere) mdash significados de outros niacuteveis bem mais complexos do que aqueles baacutesicos que dizem respeito apenas agrave sua identidade essencial Conforme assinalei acima esses significados podem ser de ordens diversas desde questotildees de seguranccedila e facilidade de uso ateacute noccedilotildees de moda prestiacutegio ou sexualidade Independentemente do tipo de significado que o designer queira atribuir ao artefato existe a questatildeo da capacidade de aderecircncia do significado em questatildeo Como todos os significados

mdash com a possiacutevel exceccedilatildeo dos mais baacutesicos mdash satildeo fluidos estando sujeitos agrave transformaccedilatildeo eou subversatildeo pelos mecanismos de apropriaccedilatildeo eles podem ser considerados como sendo mais ou menos duradouros dependendo da sua capacidade de resistir a esses e outros mecanismos (cardoso 1998 p 35)

Neste ponto Cardoso define o que ele compreende como a funccedilatildeo dos designers

enriquecerem os objetos com mais significados do que os ldquobaacutesicosrdquo proacuteprios da sua

natureza De modo nenhum recusamos o valor do enriquecimento mas natildeo podemos

abrir matildeo da consciecircncia e da capacidade do design e dos designers de atuar ontoloacutegica

e epistemologicamente sobre seus projetos Quando um designer (trabalhando isolada-

mente em grupo ou como vem ocorrendo cada vez mais em equipes multidisciplinares)

desenvolve um novo artefato ou instrumento (seja esse objeto algo ldquooriginalrdquo como

uma invenccedilatildeo ou uma reuniatildeo inusitada de conceitos e ideias jaacute existentes) o mundo se

amplia com a inclusatildeo de um novo item agrave realidade Essa ampliaccedilatildeo natildeo eacute de ldquoaderecircnciardquo

de significados mas de ordem de significaccedilatildeo mais profunda existencial e ontoloacutegica E

seu fundamento mdash no acircmbito subjacente da gnoseologia mdash eacute o de se conceber o objeto

como a somatoacuteria de um mundo sensiacutevel unido ao inteligiacutevel pelo sujeito

Mas qual a relevacircncia da diferenciaccedilatildeo entre uma atuaccedilatildeo na natureza iacutentima dos

objetos e aquela que os enriquecem aleacutem de uma explicitaccedilatildeo teoacuterica ou um exerciacutecio

mental de compreensatildeo da atividade projetual dos designers Acreditamos que uma das

110

vantagens da indeterminaccedilatildeo do design eacute a possibilidade caso desejemos de franquearmos

esferas do conhecimento que teoricamente (no sentido literal dessa palavra) natildeo teriacuteamos

acesso e onde natildeo poderiacuteamos atuar caso as fronteiras desse campo fossem claramente

delimitadas Assim nos unimos agrave Flusser ao retomar a pergunta da paacutegina 78 eacute possiacutevel

garantir autonomia a cada uma dessas disciplinas (ciecircncia teacutecnica design e arte) e ao

mesmo tempo ultrapassar ou pelo menos mitigar o modelo de cisatildeo que existe entre elas

Neste sentido acreditamos que o design pode atuar natildeo construindo pontes mas efeti-

vamente sendo a ponte que conecta aacutereas Com isso tambeacutem eacute possiacutevel avanccedilarmos em

direccedilatildeo a domiacutenios ateacute entatildeo impensados como o da natureza em seu acircmbito bioloacutegico

Essa atuaccedilatildeo natildeo pode ser considerada meramente um enriquecimento por mais que a

valorizaccedilatildeo dos artefatos seja entendida como um processo em um niacutevel mais complexo

como pensa Cardoso

Com todos os riscos que Flusser aponta e devemos atentar para eles o design opera

uma ampliaccedilatildeo da realidade em outras palavras uma operaccedilatildeo ontoloacutegica como tambeacutem

procede a arte de modo expliacutecito desde Duchamp No entanto uma pergunta precisa

ser respondida com quais elementos tal ponte se concretiza Como veremos no capiacutetulo

4 o conceito aristoteacutelico de miacutemesis eacute plenamente capaz de estruturar a ldquoponterdquo entre

diversas aacutereas como tambeacutem eacute constitutivamente um princiacutepio de natureza ontoloacutegica

Mas antes eacute necessaacuterio compreender e ultrapassar a questatildeo da subjetividade e objetividade

no design e na arte um dos temas do proacuteximo capiacutetulo jaacute anunciado no atual (cf p 103-

104) com a concepccedilatildeo de Cardoso que une esses dois elementos na disciplina do design

111

3 DA ESTEacuteTICA Agrave ONTOLOGIA NA ARTE E NO DESIGN

No capiacutetulo anterior construiacutemos uma estrutura de conexotildees entre ciecircncia arte e design

que demandou um percurso circular mais direcionado aos eixos ou esferas gnoseoloacutegica

e ontoloacutegica do que agrave esteacutetica (cf figura 11 p 107) A partir da constituiccedilatildeo desse arca-

bouccedilo parcial de caraacuteter propedecircutico a convergecircncia estabelecida conduziu as ques-

totildees investigadas para o foco da ontologia confirmando que nossa busca por elementos

relacionais entre design e arte no acircmbito desta esfera eacute profiacutecua No entanto devemos

considerar que tal confluecircncia ainda carece de uma investigaccedilatildeo orientada a partir da

esteacutetica Existem trecircs razotildees para esse movimento

1 Tendo em conta que rejeitamos a hierarquizaccedilatildeo do conhecimento eacute imprescindiacutevel

garantir equiliacutebrio nas anaacutelises sem privileacutegio da ciecircncia em detrimento da arte

2 A esfera da esteacutetica sedia temas inerentes agrave arte ou seja tem autonomia em relaccedilatildeo

agraves outras duas

3 Os temas como veremos podem ser correlacionados ao design quando transpomos

o nuacutecleo esteacutetico em direccedilatildeo agrave gnoseologia e ontologia

Dentro do processo de ordenaccedilatildeo da tese os trecircs motivos listados prefiguram a segun-

da etapa do meacutetodo transposiccedilatildeo da abordagem do tema de um vieacutes esteacutetico e gnoseoloacutegico

para ontoloacutegico (cf capiacutetulo 1 p 49)

A operaccedilatildeo baacutesica do capiacutetulo atual se efetiva a partir do cotejo dos conceitos de

subjetividade e objetividade nos domiacutenios da arte que satildeo em seguida transpostos para o

design No capiacutetulo anterior jaacute haviacuteamos identificado no pensamento de Cardoso (1998)

uma contraposiccedilatildeo que interpretamos como sendo essencialmente um desdobramento

dialeacutetico desses dois conceitos Mas na concepccedilatildeo de Cardoso o centro da questatildeo era

o design em sua relaccedilatildeo de um lado com a ciecircncia em seu caraacuteter de objetividade e de

outro com a arte com sua base de subjetividade Nossa tarefa atual (pressupondo o vieacutes

da epistemologia e da gnoseologia jaacute circunscrito e apontando para criteacuterios objetivos)

eacute pensar o vieacutes da esteacutetica que incorpora a subjetividade agrave compreensatildeo dos seus objetos

A intenccedilatildeo eacute primeiramente aprofundar na esfera da esteacutetica investigando a arte e seus

112

objetos e extrair os conceitos de que necessitamos Em seguida ultrapassar os limites

dessa esfera (como ultrapassamos os da gnoseologia no capiacutetulo anterior) incorporando

suas demandas ao territoacuterio da ontologia territoacuterio esse capaz de suportar os elementos

exclusivos das duas primeiras esferas na tarefa de fundamentar as relaccedilotildees entre design e

arte (figura 12)

Para esse empreendimento primeiramente nos apropriamos de uma releitura da

antinomia kantiana acerca do belo aplicada agrave arte contemporacircnea que transpomos ao

design Em seguida a partir das conclusotildees que chegamos com Kant da impossibilidade

de compreendermos o design por uma abordagem exclusivamente esteacutetica ou episte-

moloacutegica voltamos nossa atenccedilatildeo para a viabilidade de um caminho de caracteriacutesticas

ontoloacutegicas apoiados em Heidegger A intenccedilatildeo eacute mostrar como o modo de produccedilatildeo

da arte investigado atraveacutes desse vieacutes ao mesmo tempo possibilita alargar a compreensatildeo

do que satildeo os utensiacutelios e instrumentos como tambeacutem do que entendemos ser o campo

do design em suas relaccedilotildees com a arte

METAFIacuteSICA

ESTEacuteTICA

ONTOLOGIA

O SER EOS ENTES EM GERAL

TEORIA

DO CONHECIMENTOGNOSEOLOGIA

EPIST

EMOLO

GIAFILOSOFIA DA CIEcircNCIA

CIEcircNCIAamp

TEacuteCNICAARTE

Figura 12 Representaccedilatildeo da etapa de centralizaccedilatildeo da investigaccedilatildeo na esfera da esteacutetica em sua relaccedilatildeo com a da gnoseologia e ontologia fonte autor

113

31 Kant e a abordagem esteacutetica na arte e no design

Esta primeira seccedilatildeo tem origem na discussatildeo proposta pelo filoacutesofo e teoacuterico da arte Thier-

ry de Duve no capiacutetulo Kant after Duchamp de seu livro homocircnimo (de duve 1998)

A reflexatildeo de Thierry de Duve parte de uma anaacutelise do trabalho de Clement Greenberg

criacutetico de arte e do artista e ensaiacutesta Joseph Kosuth ambos envolvidos nas polecircmicas em

torno da arte e da esteacutetica que se desenrolaram principalmente nas deacutecadas de 1960 e 1970

nos Estados Unidos Sua abordagem busca em uma antinomia kantiana o entendimento

das posiccedilotildees associadas a Greenberg e Kosuth em relaccedilatildeo a subjetividade e a objetividade

dentro do territoacuterio da arte

Com o aprofundamento dessa investigaccedilatildeo especiacutefica percebemos as discussotildees

de meados do seacuteculo xx (das quais de Duve eacute testemunha) como um ldquoponto focalrdquo de

Cassirer (1992 p 48) Elas ainda se justificam tanto por causa da crescente ampliaccedilatildeo das

fronteiras da arte no contexto contemporacircneo quanto pelas suas interseccedilotildees com outros

campos como o design que tambeacutem vecircm alargando seus limites Assim assumindo que

esse tema estabelece viacutenculos com outros campos construiacutemos trecircs hipoacuteteses para inves-

tigar exclusivamente a questatildeo da subjetividade versus objetividade no acircmbito do design

1 A questatildeo se transfere da arte e contamina o design de forma perifeacuterica

2 A questatildeo se transfere da arte e contamina o design indo aleacutem da periferia atingindo

o seu cerne conceitual

3 A questatildeo natildeo se transfere mas eacute intriacutenseca ao design e suscita de modo anaacutelogo ao

que ocorre com a arte discussotildees sobre o estatuto ontoloacutegico do design

Nenhuma dessas trecircs hipoacuteteses a princiacutepio nos parece simples de perseguir como

meta nesta primeira seccedilatildeo mas dependendo da posiccedilatildeo que assumimos somos enviados as

concepccedilotildees de design investigadas no capiacutetulo anterior que se aproximam ou se distan-

ciam do que hoje se entende como ciecircncia1 enquanto campo direcionado agrave objetividade

1 Na confirmaccedilatildeo de qualquer das trecircs possibilidades existe uma tarefa adicional e singular pela frente uma vez que as controveacutersias que partem de Kant sobre a subjetividade e a objetividade ateacute onde pudemos investigar ainda persistem no territoacuterio da arte da esteacutetica e da filosofia da arte Isto obrigaraacute em um estudo posterior a busca por respostas para o design que ainda natildeo foram encontradas para a arte

114

Thierry de Duve inicia o capiacutetulo supracitado apresentando-nos trecircs nomes no campo

da arte dentro do contexto Flower Power e guerra do Vietnatilde das deacutecadas de 1960 e 1970

Jack Burnham Joseph Beuys e Clement Greenberg Todos com afirmaccedilotildees aparentemente

coincidentes a ldquotodo ser humano eacute um artistardquo mas que trazem grandes diferenccedilas ideo-

loacutegicas quando vistas em profundidade A partir disso sua anaacutelise se pauta pela praacutetica

artiacutestica desse periacuteodo tendo como referecircncia a influecircncia dos readymades de Duchamp

sobre artistas e criacuteticos de arte mas principalmente levando em conta as posiccedilotildees de

Kosuth e de Greenberg O texto repleto de informaccedilotildees histoacutericas e teoacutericas passa pelo

romantismo alematildeo chegando ateacute Lombroso e Freud entre muitos outros pesquisadores

de aacutereas distintas da arte e retorna afinal ao seacuteculo xx Mas encoberta nessa reconstituiccedilatildeo

histoacuterica o que interessa mais a de Duve acreditamos (o tema que atravessa esse capiacutetulo

do seu livro) eacute a antinomia kantiana sobre o gosto com a sua releitura substituindo ldquoisto

eacute belordquo do julgamento esteacutetico claacutessico por ldquoisto eacute arterdquo da cultura contemporacircnea

No entanto de Duve tem uma forma peculiar de construir sua argumentaccedilatildeo que

coloca Kosuth e Greenberg como personagens opostos na antinomia apontando o que

ele considera erros e limitaccedilotildees de cada um deles Na medida em que nosso propoacutesito tem

encadeamento em dois niacuteveis isto eacute primeiro a arte e depois o design vamos reservar a

seccedilatildeo atual para explorar a antinomia kantiana do gosto no territoacuterio da arte e em seguida

na seccedilatildeo 32 investiremos na transposiccedilatildeo da problemaacutetica para o acircmbito do design com

o apoio heideggeriano

311 Subjetividade e objetividade no territoacuterio da arte

Thierry de Duve mostra-nos como Greenberg relutou durante os anos 1960 em reconhe-

cer a relevacircncia de Duchamp2 Mas quando esse criacutetico norte-americano assume a obra

de Duchamp aponta para a crenccedila em uma sobreposiccedilatildeo entre arte e esteacutetica Conforme

mostra de Duve com duas citaccedilotildees de Greenberg

2 No capiacutetulo 5 veremos em detalhe como Duchamp precede Andy Warhol com a ldquotransfiguraccedilatildeordquo mdash para usar a expressatildeo de Danto (2005) mdash de objetos do design em obras de arte

115

Demonstrou-se algo que de fato valia a pena demonstrar Arte do tipo da de Duchamp mostrou como nunca acontecera ateacute entatildeo o quatildeo ampliada pode ser a categoria da experiecircncia esteacutetica formal Embora sempre tivesse sido verdade tinha que ser demonstrado para que pudesse ser reconhecida como verdadeira A disciplina da esteacutetica recebeu nova luz (greenberg 1976 p 93 apud de duve 1998 p 130)

Desde entatildeo [dos readymades de Duchamp] tornou-se mais evidente tambeacutem que tudo o que pode ser experimentado esteticamente pode tambeacutem ser expe-rimentado enquanto arte Em resumo arte e esteacutetica natildeo soacute se sobrepotildeem mas coincidem (greenberg 1979 p 129 apud de duve 1998 p 130)

Entretanto seguindo a anaacutelise de Thierry de Duve Kosuth ao final dos anos 1960

vai em direccedilatildeo oposta apontando para uma separaccedilatildeo entre arte e esteacutetica (figura 13)

Entatildeo qualquer parte da filosofia que lidasse com a lsquobelezarsquo e consequentemente com o gosto seria de forma inevitaacutevel obrigada a discutir tambeacutem a arte Desse lsquohaacutebitorsquo surgiu a noccedilatildeo de existecircncia de ligaccedilatildeo conceitual entre arte e esteacutetica o que natildeo eacute verdadeiro (kosuth 1969 p 76 apud de duve 1998 p 131)

312 Os conceitos de act e art

Por um lado Greenberg tem em vista a pintura e escultura modernista Por outro Kosuth

procura regras para muitas das praacuteticas artiacutesticas dos anos 1960 que iam aleacutem das fronteiras

GREENBERG

sobreposiccedilatildeo e coincidecircncia entre arte e esteacutetica

separaccedilatildeo entre arte e esteacutetica

KOSUTH

Figura 13 Esquema da interpretaccedilatildeo de Thierry de Duve da posiccedilotildees de Clement Greenberg e Joseph Kosuth em relaccedilatildeo agrave arte e agrave esteacutetica fonte autor

116

dos meios tradicionais mas com uma separaccedilatildeo conceitual entre arte e esteacutetica neste caso

ou se reivindica o nome ldquoarterdquo mas ao preccedilo da esteacutetica ou fica-se com a esteacutetica sem

fazer uso do termo ldquoarterdquo Eacute a partir dessa dicotomia que de Duve apropriando-se dos

acrocircnimos act (Aesthetically Claimed Things mdash Coisas Consideradas Esteacuteticas) e art

(Aesthetically Rejected Things mdash Coisas Rejeitadas Esteticamente)3 apresenta exemplos

dessas duas categorias (figura 14)

Para act ele apresenta principalmente o Fluxus4 que com suas performances e

happenings procurava experiecircncias esteacuteticas sem que isto fosse considerado arte As

command-pieces ou intructions-pieces (figura 15) poderiam ser executadas por qualquer

um ou seja o trabalho natildeo era mais denominado arte nem o autor deveria ser mais artista

Para art temos desde o Erased de Kooning (1953) de Robert Rauschenberg (figura 16)

e o Burning Small Fires (1969) de Bruce Naumann ateacute o trabalho sem tiacutetulo (1967) de

Christine Koslov que consistia num rolo de filme de 16 mm virgem (figura 17)

3 Acrocircnimos criados pelo casal canadense Ian e Elaine Baxter que separam sua praacutetica em duas catego-rias Thierry de Duve lembra que o casal natildeo tem exatamente a mesma posiccedilatildeo de Kosuth pois art se produz a partir de coisas rejeitadas esteticamente e natildeo a partir de uma rejeiccedilatildeo agrave esteacutetica

4 Grupo de artistas de vaacuterias nacionalidades estruturado ao redor da figura de George Maciunas um artista lituanecircs radicado nos Estados Unidos

ACT

Aesthetically Claimed Things mdash Coisas Consideradas Esteacuteticas

Perfomances e happenings (experiecircncias esteacuteticas sem ser arte) Fluxus

Aesthetically Rejected Things mdash Coisas Rejeitadas Esteticamente

Erased de Kooning (arte sem esteacutetica) Robert Rauschenberg

ART

Figura 14 Esquema da interpretaccedilatildeo de Thierry De Duve dos acroacutenimos act e art criados por Ian e Elaine Baxter fonte autor

117

Figura 15 Fotografia da performance (1962) de George Maciunas para Jackson Mac Low fonte momaorg

Figura 16 Fotografia da obra de Robert Rauschen-berg (1953) criada apagando um desenho do artista Willem de Kooning fonte momaorg

Figura 17 Fotografia de obra sem tiacutetulo (1967) de Christine Koslov a partir de um rolo de filme virgem A legenda na tampa da lata tem a inscri-ccedilatildeo ldquoTransparent Film nordm2 ndash White 100ft 16mm ndash 1967 fonte henry-mooreorg

118

313 Antinomia e dilema

A partir dos exemplos anteriores dois obstaacuteculos surgem para as concepccedilotildees de Greenberg

e Kosuth Em primeiro lugar com act os trabalhos correm o risco de serem produzidos

solipsisticamente caso natildeo sejam comunicados ao mundo da arte Em segundo com

art natildeo se pode negar que os trabalhos tenham propriedades visuais e sejam passiacuteveis

de apreciaccedilatildeo esteacutetica (figura 18)

Tudo isso aponta segundo de Duve para uma contradiccedilatildeo ou antinomia se ficamos

com act (esteacutetico no sentido de Greenberg) natildeo eacute possiacutevel acreditar que a arte tenha sido

modificada em sua natureza e que o julgamento de gosto (aquele aplicado agrave arte antiga

ateacute a modernista) perdeu seus direitos Para de Duve uma possiacutevel consequecircncia dessa

concepccedilatildeo levada ao extremo eacute considerarmos o readymade uma fraude ou buscarmos

uma continuidade na histoacuteria da arte rejeitando a antiarte ou movimentos do Dadaiacutesmo

em diante Se ficarmos com art (arte no sentido de Kosuth) acreditamos que a arte

depois de Duchamp eacute conceitual e da mesma forma exagerando podemos retroagir

essa concepccedilatildeo e apagar a arte anterior a Duchamp Thierry de Duve lembra que isto eacute o

que Kosuth pretende quando afirma ldquoNo que concerne agrave arte as pinturas de Van Gogh

ACT (esteacutetico no sentido de Greenberg

Aesthetically Claimed Things mdash Coisas Consideradas Esteacuteticas

OBSTAacuteCULO risco de solipsismo em relaccedilatildeo ao mundo da arte

Aesthetically Rejected Things mdash Coisas Rejeitadas EsteticamenteOBSTAacuteCULO os trabalhos de ART continuam podendo ser apreciados esteticamente

ART (arte no sentido de Kosuth)

Figura 18 Esquema dos obstaacuteculos a cada posiccedilatildeo act e art que as impedem de cumprir seus objetivos plenamente fonte autor

119

natildeo valem mais do que sua paletardquo (kosuth 1969 p 82 apud de duve 1998 p 134)

Este dilema para de Duve eacute intoleraacutevel pois tanto act quanto art eliminam metade

dos fatos e tornam os trabalhos de arte presos a uma determinada ideologia (figura 19)

Baseado nos argumentos anteriores de Duve avanccedila entatildeo em sua criacutetica agraves posiccedilotildees

de Greenberg e Kosuth que foge ao escopo da tese e em seguida apresenta a sua saiacuteda

para o dilema art versus act apoiado em Kant Sigamos seu raciociacutenio

314 Uma releitura de Kant do belo agrave arte

A proposta de Thierry de Duve para escapar agrave antinomia eacute a de que a afirmaccedilatildeo que pro-

duziu os readymades ou seja ldquoisto eacute arterdquo expressa um julgamento esteacutetico no sentido

kantiano Para desenvolver seu argumento esse autor cita parte do paraacutegrafo 56 da Criacutetica

da faculdade do juiacutezo (figura 20)

Tese o juiacutezo de gosto natildeo se funda sobre conceitos pois do contraacuterio se poderia disputar sobre ele (decidir mediante demonstraccedilotildees)

ACT (esteacutetico no sentido de Greenberg

Aesthetically Claimed Things mdash Coisas Consideradas Esteacuteticas

EXTREMO a arte natildeo foi modificada em sua natureza mdash o readymade eacute uma fraude

Aesthetically Rejected Things mdash Coisas Rejeitadas EsteticamenteEXTREMO a arte depois de Duchamp eacute conceitual mdash natildeo existiu arte anterior

ART (arte no sentido de Kosuth)

Figura 19 Esquema do caso extremo cuja consequecircncia segundo Thierry de Duve proveacutem das posiccedilotildees adotadas por Greenberg e Kosuth fonte autor

120

Antiacutetese o juiacutezo de gosto funda-se sobre conceitos pois do contraacuterio natildeo se poderia natildeo obstante a diversidade do mesmo discutir sequer uma vez sobre ele (pretender a necessaacuteria concordacircncia de outros com este juiacutezo)

(kant 2005 p 183 sect 56)

Thierry de Duve faz questatildeo de lembrar-nos neste ponto que Kant define gosto

como ldquoa faculdade de julgar o belordquo5 acrescentando que o principal interesse dele era o

belo natural E mais uma vez cita Kant para mostrar como o filosofo alematildeo resolve a

antinomia (figura 21)

Por isso na tese dever-se-ia dizer o juiacutezo de gosto natildeo se fundamenta sobre conceitos determinados na antiacutetese poreacutem o juiacutezo de gosto contudo se funda sobre um conceito conquanto indeterminado (nomeadamente do substrato supra-sensiacutevel dos fenocircmenos) e entatildeo natildeo haveria entre eles nenhum conflito (kant 2005 p 185 sect 57)

5 Thierry de Duve alerta-nos para o fato de que tal julgamento natildeo eacute de cogniccedilatildeo (consequentemente natildeo loacutegico) mas sim esteacutetico ou seja segundo ele o ldquoisto eacute belordquo eacute o que se pode denominar julgamento esteacutetico claacutessico

TESE

SOLUCcedilAtildeO DA ANTINOMIA KANTIANA DE GOSTO

o juiacutezo de gosto funda-se sobre um conceito indeterminado

ANTIacuteTESE

o juiacutezo de gosto natildeo se funda sobre conceitos determinados

Figura 21 Esquema da resoluccedilatildeo da antinomia do gosto kantiana fonte autor

TESE

A ANTINOMIA KANTIANA DE GOSTO

o juiacutezo de gosto funda-se sobre conceitos

ANTIacuteTESE

o juiacutezo de gosto natildeo se funda sobre conceitos

Figura 20 Esquema da antinomia do gosto kantiana fonte autor

121

Mas para que possamos compreender a saiacuteda kantiana de Duve discorre sobre o con-

ceito de ldquosubstrato supra-sensiacutevelrdquo De forma bastante resumida o que se pode afirmar eacute

que este conceito eacute tratado nas trecircs Criacuteticas sendo um requisito de razatildeo necessaacuterio para

pensar a natureza (primeira Criacutetica) a liberdade eacutetica (segunda Criacutetica) e o julgamento de

gosto enquanto reivindicando validade universal (terceira Criacutetica) mesmo sendo resulta-

do de sentimento subjetivo Poreacutem o essencial eacute que apesar de subjetivo o supra-sensiacutevel

eacute um princiacutepio compartilhado com toda a humanidade Essa eacute a saiacuteda de Kant que une

subjetividade e universalidade

Quando substituiacutemos o ldquoisto eacute belordquo por ldquoisto eacute arterdquo podemos colocar qualquer

obra de arte de nossa escolha no lugar do ldquoistordquo e endossar qualquer ideia de arte que

escolhermos Se acreditarmos em um conceito de arte (ideia de arte determinada) ele

poderaacute ser contrariado pela ideia de qualquer outra pessoa Se entretanto nossa doutrina

eacute de gosto (ideia de arte indeterminada) ela pode ser contrariada tanto pelos que natildeo

compartilham de nosso gosto quanto pelos que pensam que arte natildeo eacute uma questatildeo de

gosto (figura 22)

315 Uma soluccedilatildeo incompleta ou a incompletude como soluccedilatildeo

Se a saiacuteda kantiana parece incompleta retomar o panorama da esteacutetica da eacutepoca em que

Kant a propotildee contribui para entender o que se ganha com sua posiccedilatildeo Grosso modo de

IDEIA DE ARTE DETERMINADA

APROPRIACcedilAtildeO DA SOLUCcedilAtildeO KANTIANA PARA A ARTE

doutrina de gosto contrariada por quem natildeo compartilha nosso gosto e por aqueles que pensam que arte natildeo eacute questatildeo de gosto

isto eacute arte endossa qualquer obra de arte e qualquer ideia de arte

IDEIA DE ARTE INDETERMINDA

Figura 22 Esquema da apropriaccedilatildeo e transferecircncia feita por Thierry de Duve da resoluccedilatildeo da antinomia do gosto kantiana para o universo da arte contemporacircnea fonte autor

122

um lado encontravam-se as esteacuteticas de cunho racionalista que derivavam o conceito de

belo dos conceitos de harmonia e de perfeiccedilatildeo De outro as esteacuteticas de caraacuteter empirista

com uma ideia de gosto derivado somente da sensaccedilatildeo As primeiras estavam presas a

uma universalidade que perdia a singularidade da experiecircncia artiacutestica e as uacuteltimas atadas

a uma singularidade da opiniatildeo do chamado ldquogosto natildeo se discuterdquo que as impedia de

ascender ao universal

No entanto a foacutermula de Kant apresenta uma esteacutetica universalista sem conceito

ou universalista subjetiva (distinta do universalismo conceitual ou objetivo da ciecircncia)

Este universalismo subjetivo pode ser interpretado como inacabado na medida em que

sustenta de modo paradoxal6 uma totalidade que natildeo abre matildeo da singularidade da

experiecircncia de cada um Resta saber se eacute possiacutevel para os nossos propoacutesitos aceitar uma

soluccedilatildeo dessa natureza

Do nosso ponto de vista o inacabado do conceito natildeo eacute um problema mas pelo

contraacuterio espelha a proacutepria incompletude inerente ao fazer artiacutestico contemporacircneo

em seus diversos aspectos no trabalho do artista na atuaccedilatildeo do criacutetico e na fruiccedilatildeo do

espectador que se tornou ativo Nesse sentido as palavras da filoacutesofa Virginia Figueiredo

reforccedilam a posiccedilatildeo kantiana

Eacute a insistecircncia kantiana de que o juiacutezo esteacutetico natildeo eacute capaz de nos forne-cer um conceito o que a torna estranhamente atual Pois a meu ver todo e qualquer criteacuterio objetivo ou conceito preacutevio seja ele de belo de feio ou de sublime estaacute fadado ao fracasso na sua tentativa de apreensatildeo filosoacutefica da produccedilatildeo recente da arte Num ambiente em que ldquotudo pode ser arterdquo a ne-cessidade de uma reflexatildeo singular caso a caso soacute se agrava Mesmo sem ou exatamente porque natildeo dispotildee de qualquer criteacuterio ou conceito estabelecido a priori (daiacute decorre uma das grandes dificuldades das condiccedilotildees contempo-racircneas da experiecircncia esteacutetica) o espectador natildeo pode permanecer passivo acatando tudo o que lhe colocam diante dos olhos como se fosse arte Mais do que nunca o espectador estaacute ldquoobrigadordquo ao exerciacutecio da criacutetica mais do que nunca ele tem de se perguntar como de Duve nos indicou ldquoisto eacute arterdquo (figueiredo 2008 p 37)

6 Paradoxal natildeo tem aqui a mesma conotaccedilatildeo de antinocircmico como ocorre no uso desses termos em um sentido menos rigoroso ou as vezes indiscriminado A antinomia pressupotildee uma tese e uma antiacutetese (figura 20 p 120) no interior de um raciociacutenio ou princiacutepio O paradoxo distintamente carrega em sua constituiccedilatildeo uma uacutenica tese ou conceito que contraria a opiniatildeo ou crenccedila compartilhada por uma maioria

123

316 Subjetividade e objetividade no territoacuterio do design

Mesmo aceitando Duchamp como um marco e um divisor de aacuteguas bem como constatando

o niacutevel de ampliaccedilatildeo das fronteiras da arte nos uacuteltimos cem anos e interpretando tudo isso

sob o crivo kantiano uma objeccedilatildeo poderia ser feita a uma transposiccedilatildeo subsequente do

princiacutepio kantiano da arte ao design E mesmo para aqueles que admitem o argumento de

Thierry de Duve (da passagem do belo agrave arte) franquear o uso desse princiacutepio kantiano

ao design (princiacutepio esse que eacute ao mesmo tempo subjetivo mas compartilhado por todos

os seres humanos) eacute se comprometer com um procedimento que exige detalhamento e

fundamentaccedilatildeo para se tornar claro

No entanto existe um fator externo agrave questatildeo da passagem da arte ao design que

uma vez elucidado pode minimizar o esforccedilo de compreensatildeo No nosso entendimento

parte da desconfianccedila em relaccedilatildeo ao princiacutepio kantiano natildeo vem apenas de dentro dos

ciacuterculos epistemoloacutegicos Pode vir de certa compreensatildeo disseminada em nossa cultura

em que se associa universalidade a objetividade E esses dois conceitos como vimos no

capiacutetulo anterior natildeo por coincidecircncia tambeacutem satildeo pilares da concepccedilatildeo ocidental de

ciecircncia Mas esse eacute um problema trataacutevel dentro do proacuteprio sistema de Kant uma vez que

esse autor trabalha com o conceito de universalidade subjetiva no acircmbito da esteacutetica na

Criacutetica da faculdade do juiacutezo (kant 2005) mas trabalha tambeacutem com o de universali-

dade objetiva no acircmbito das ciecircncias onde sua Criacutetica da razatildeo Pura (kant 1989) tem

inegaacutevel contribuiccedilatildeo para a teoria do conhecimento

317 Outra releitura de Kant da arte ao design

Racionalistas e empiristas contemporacircneos atrelados a soluccedilotildees preacute-kantianas que pri-

vilegiam apenas a mente ou as sensaccedilotildees diriam que eacute difiacutecil aceitar uma posiccedilatildeo como

a de Kant que procura uma mediaccedilatildeo mas inclui um paradoxo em seu interior Poreacutem

o tipo de argumento kantiano que afasta antinomias mas admite paradoxos vem se

tornando cada vez mais recorrente Como afirma Bonsiepe

124

Encontramo-nos diante de um paradoxo Projetar significa expor-se e viver com paradoxos e contradiccedilotildees mas nunca camuflaacute-los sob um manto harmoniza-dor O ato de projetar deve assumir e desvendar essas contradiccedilotildees Em uma sociedade torturada por contradiccedilotildees o design tambeacutem estaacute marcado por essas antinomias (bonsiepe 2011 p 25)

Essas ocorrecircncias natildeo se restringem somente a teorias das ciecircncias humanas e sociais (pe-

las proacuteprias caracteriacutesticas imanentes ao objeto dessas disciplinas que eacute indissociado da

complexidade do ser humano) mas encontram-se tambeacutem nas chamadas ciecircncias ldquodurasrdquo

como a fiacutesica quacircntica7 e a relativista

Assim para prosseguirmos com nosso objetivo eacute necessaacuterio avaliar em retrospecto

o que foi conquistado concordar pelo menos provisoriamente com duas construccedilotildees

teoacutericas e apostar em uma terceira elaboraccedilatildeo Esses passos podem ser sintetizados na

lista a seguir

1ordm A soluccedilatildeo de Kant para a antinomia do gosto nos domiacutenios da esteacutetica pode ser

questionada mas eacute construiacuteda com requisitos de razatildeo

2ordm A tese de Thierry de Duve transpondo a soluccedilatildeo kantiana da antinomia do gosto do

acircmbito do belo no seacuteculo xviii para o da arte contemporacircnea segue os operadores

kantianos

3ordm A tese de Thierry de Duve pode ser conduzida do acircmbito da arte contemporacircnea

para o campo do design

Portanto para avanccedilarmos eacute preciso aceitar que a foacutermula original kantiana ainda se

mostra adequada para pensar a questatildeo da subjetividade versus objetividade em disciplinas

como o design que preservam o subjetivo como parte central de seus fundamentos Mas

diante de pelo menos dois saltos conceituais devemos nos atentar para um questionamento

7 Ficaremos com apenas dois exemplos paradoxais na mecacircnica quacircntica sem recorrer ao ceacutelebre caso do Paradoxo epr (Einstein-Podolsky-Rosen) que eacute um desdobramento dessa teoria Um primeiro exemplo eacute o Princiacutepio de Complementaridade de Niels Bohr que aceita aspectos mutuamente exclu-dentes em niacutevel subatocircmico considerando-os ao mesmo tempo complementares Um segundo eacute o Princiacutepio de Incerteza de Werner Heisenberg (cujo nome jaacute aponta para um paradoxo) que derivou do formalismo quacircntico independentemente das relaccedilotildees de incerteza serem interpretadas como ligadas agraves alteraccedilotildees de condiccedilotildees produzidas pelo observador e seus instrumentos como queria inicialmente o proacuteprio Heisenberg ou serem caracteriacutesticas essenciais da mecacircnica quacircntica como acreditou Bohr (cassirer 1956)

125

de caraacuteter hermenecircutico eacute possiacutevel avanccedilar nas cadeias que se conectam por meio de uma

uacutenica foacutermula para compreender o belo a arte e o design

Nossa resposta a este tipo de inquiriccedilatildeo para justificar que podemos seguir em frente

eacute de que primeiramente um passo semelhante jaacute foi dado por Cardoso (capiacutetulo 2 p

103-104) quando de sua proposta para pensar o que caracteriza o design e que inter-

pretamos como uma dialeacutetica entre objetividade e subjetividade E essa dialeacutetica vem se

mostrando profiacutecua Em segundo um princiacutepio como o kantiano que busca validade

universal deve ser capaz de ultrapassar a provisoriedade heuriacutestica e se estabelecer como

lei Mas devemos ressaltar lei entendida como sempre passiacutevel de refutaccedilatildeo

318 A universalidade objetiva no design

Se como vimos no capiacutetulo 2 pensar a universalidade em seu caraacuteter epistecircmico leva

a conectaacute-la quase que invariavelmente com a objetividade seraacute possiacutevel encontrarmos

correspondecircncia desse par conceitual com o campo do design Ou seja o design faz uso

da universalidade objetiva ou conceitual analogamente ao que faz a ciecircncia Acreditamos

que sim mesmo que tal uso natildeo seja suficiente para categorizaacute-lo como ciecircncia Vamos

aos argumentos

Um primeiro argumento eacute de ordem histoacuterica jaacute sinalizado por Cardoso (1998) no

capiacutetulo 2 (p 102) Como uma disciplina jovem e derivada das ciecircncias sociais aplicadas

que busca fundamentos natildeo somente na sociologia antropologia e histoacuteria mas tambeacutem

em outras ciecircncias como a comunicaccedilatildeo e a psicologia e estreita cada vez mais suas re-

laccedilotildees com as ciecircncias naturais e exatas o design necessita de uma elaboraccedilatildeo discursiva

que amplie o diaacutelogo com seus pares E para isso eacute preciso evidentemente ter entre seus

pressupostos a universalidade e a objetividade natildeo somente para efetivar esse diaacutelogo

mas tambeacutem para construir suas bases metafiacutesicas Tais bases como vimos no capiacutetulo

1 desde o iniacutecio da modernidade satildeo formadoras de princiacutepios meacutetodos e criteacuterios que

ordenam novos campos de pesquisa mesmo que alguns desses campos natildeo almejem se

firmar enquanto ciecircncia

126

Exemplos dessas bases podem ser detectados nos departamentos e escolas de be-

las-artes e de muacutesica das universidades onde natildeo se cogita fazer ciecircncia em seu sentido

estrito Mas seus programas de poacutes-graduaccedilatildeo atuam com procedimentos cientiacuteficos ou

pelo menos com pressupostos metafiacutesicos tanto em seu aspecto teoacuterico para organizar

e ordenar seus meacutetodos de pesquisa quanto em seu caraacuteter pragmaacutetico para justificar e

receber as verbas8 de que necessitam como propor e executar projetos em parceria com

a iniciativa privada e com outras instituiccedilotildees

Indo aleacutem desses arranjos estruturais aos quais cada disciplina se adeacutequa existe um

segundo argumento na defesa da universalidade objetiva como imprescindiacutevel ao design

Ele estaacute expliacutecito na afirmaccedilatildeo recorrente de que o design natildeo pode prescindir da ideia

de conceito Essa ideia mesmo nos esquecendo dos pressupostos metafiacutesicos eacute inerente

aos processos que conduzem e ordenam qualquer projeto de design das fases iniciais de

concepccedilatildeo e planejamento agrave finalizaccedilatildeo e concretizaccedilatildeo do produto Ou seja o conceito

(equivalente agrave objetividade) estaacute tambeacutem na praacutetica desse campo

319 A universalidade subjetiva no design

Se aceitamos a universalidade objetiva nos territoacuterios da epistemologia e da gnoseologia

resta buscarmos confirmaccedilatildeo para a universalidade subjetiva Assim retomemos a ideia

contida na figura 22 na paacutegina 121 que representava a apropriaccedilatildeo feita por de Duve da

soluccedilatildeo kantiana para a arte contemporacircnea e faccedilamos a sua conduccedilatildeo para o design

Atentemos que essa dupla passagem vem da soluccedilatildeo de Kant para a antinomia sobre o

gosto nos domiacutenios da esteacutetica em que de Duve substitui o ldquoisto eacute belordquo pelo ldquoisto eacute arterdquo

e agora por nossa conta substituiacutemos ldquoisto eacute arterdquo pelo ldquoisto eacute designrdquo

8 A justificativa de Gui Bonsiepe apresentada no capiacutetulo 1 paacutegina 42 sobre o orccedilamento ser o motivo pelo qual algumas instituiccedilotildees de ensino se posicionam a favor da indistinccedilatildeo entre arte e design ob-viamente natildeo explica tudo acerca da defesa dessa indistinccedilatildeo No entanto no acircmbito da organizaccedilatildeo interna dessas instituiccedilotildees indica uma mescla do uso de argumentos administrativos de poliacutetica universitaacuteria juntamente com os de fundamentaccedilatildeo metafiacutesica

127

Ao substituirmos o ldquoisto eacute arterdquo pelo ldquoisto eacute designrdquo podemos colocar qualquer pro-

duto de design de nossa escolha no lugar do ldquoistordquo e endossar qualquer ideia de design que

escolhermos Se acreditarmos em um conceito de design (ideia de design determinado)

ele poderaacute ser contrariado pela ideia de qualquer outro designer Se entretanto nossa

doutrina eacute de gosto em seu sentido de convicccedilatildeo subjetiva (ideia de design indeterminado)

ela pode ser contrariada tanto pelos que natildeo compartilham de nosso gosto quanto pelos

que pensam que design natildeo eacute uma questatildeo de gosto A figura 23 representa a transferecircncia

da soluccedilatildeo kantiana para o design

Se concordarmos com essa transposiccedilatildeo ficam claros pelo menos dois pontos funda-

mentais Primeiro tanto a ideia de design determinado quanto a ideia de design indeter-

minado colocam o design em equivalecircncia com a arte e como consequecircncia eliminam

nossa primeira hipoacutetese inicial deste capiacutetulo de que a questatildeo da subjetividade versus

objetividade se transfere da arte e contamina o design de forma perifeacuterica Mas a trans-

posiccedilatildeo vai aleacutem da periferia Se por um lado o design enquanto campo tem uma histoacuteria

extremamente curta em relaccedilatildeo agrave da arte conectado agrave produccedilatildeo em seacuterie e agrave revoluccedilatildeo

industrial por outro alguns dos pressupostos que o animam (teacutecnicos artiacutesticos e cien-

tiacuteficos) caminham juntos desde suas origens gregas Deste modo cai por terra tambeacutem

a segunda hipoacutetese de contaminaccedilatildeo pela arte Resta-nos a terceira com a qual ficamos

a questatildeo da subjetividade versus objetividade eacute intriacutenseca ao design e suscita de modo

anaacutelogo ao que ocorre com a arte discussotildees sobre o estatuto ontoloacutegico do design

IDEIA DE DESIGN DETERMINADO

APROPRIACcedilAtildeO DA SOLUCcedilAtildeO KANTIANA PARA O DESIGN

doutrina de gosto contrariada por quem natildeo compartilha nossa opiniatildeo e por aqueles que pensam que design natildeo eacute questatildeo de opiniatildeo

isto eacute design endossa qualquer projeto e qualquer ideia de design

IDEIA DE DESIGN INDETERMINADO

Figura 23 Esquema da apropriaccedilatildeo e transferecircncia da resoluccedilatildeo da antinomia do gosto kantiana para o design fonte autor

128

Assim podemos dizer que aceitando-se a terceira hipoacutetese9 natildeo eacute possiacutevel pensar o

design como um campo com pretensotildees a se tornar ciecircncia pelo menos no modelo da

atualidade uma vez que a ideia de design determinado e a de design indeterminado apesar

de conduzirem a uma universalidade almejada pela ciecircncia contemplam e incorporam

tambeacutem o subjetivo Mas isso jaacute era previsiacutevel por dois motivos

1 O capiacutetulo 2 ao expor as posiccedilotildees de proeminentes autores como Maldonado Bon-

siepe Schneider Cardoso e Flusser que se movem entre as duas posiccedilotildees (determi-

naccedilatildeo e indeterminaccedilatildeo) jaacute indicava essas distintas perspectivas teoacutericas Mas faltava

explicitar tais estruturas com um procedimento como o da antinomia kantiana

2 A soluccedilatildeo original de Kant foi produzida para resolver um problema fora do acircmbito

da ciecircncia ou seja no campo da esteacutetica

Quanto agrave saiacuteda kantiana natildeo podemos nos esquecer que este autor atua de modo a

pensar soluccedilotildees dentro de um sistema mas separadamente a questatildeo do belo e a questatildeo

da ciecircncia Poreacutem no nosso caso ocorre uma mistura entre aspectos esteacuteticos artiacutesticos

teacutecnicos e epistecircmicos que tornam o design um campo de entendimento bastante com-

plexo De qualquer modo ser ou natildeo ser ciecircncia ou ser uma nova forma de ciecircncia natildeo

pode ser encarado como depreciativo como por exemplo a tradiccedilatildeo do platonismo

enfatiza O status ontoloacutegico do design ainda estaacute por se estabelecer mas sua relevacircncia

e significaccedilatildeo jaacute estatildeo garantidas em sua trajetoacuteria histoacuterica

Indo aleacutem existem algumas questotildees subjacentes ao que estamos tratando no mo-

mento mdash que seratildeo retomadas ao final da tese mdash e podem ser iluminadas com a ideia de

universalidade subjetiva no design Algumas perguntas nos guiam

bull Asinuacutemerasdefiniccedilotildeesdedesignaolongodesuacurtahistoacuteriaeaampliaccedilatildeode

seu campo de atuaccedilatildeo tecircm alguma relaccedilatildeo com a equivalente expansatildeo do universo

artiacutestico contemporacircneo

9 Corrobora empiricamente a terceira hipoacutetese de modo anaacutelogo ao procedimento de Duve com Green-berg e Kosuth uma conexatildeo com designers que possam se posicionar nos dois polos da antinomia kantiana Por exemplo podemos colocar de um lado a tradiccedilatildeo e o racionalismo de Alexandre Wollner e de outro o vanguardismo de Guto Lacaz

129

bull Asdificuldadesatuaisdeseestabelecerdefiniccedilotildeesparaodesignpodemserdevidasa

esse campo ter uma generalidade incipiente de autopromoccedilatildeo ou inerente e anaacuteloga

a disciplinas como a da filosofia

Do ponto de vista histoacuterico essas satildeo questotildees ainda muito proacuteximas de noacutes o que as

torna mais difiacuteceis de compreender e responder E por sua complexidade eacute bem provaacutevel

que as respostas a elas continuem a produzir paradoxos e outros raciociacutenios que aparentam

incompletude Mas essa incompletude nasce com as respostas ou pertence agrave essecircncia do design

Se o inacabado faz parte dessa essecircncia as palavras do escritor portuguecircs Fernando Pessoa

apontam um caminho que reforccedila a posiccedilatildeo kantiana ldquoNatildeo consigo evitar a aversatildeo que

tem o meu pensamento ao ato de acabarrdquo (pessoa sem data apud giannetti 2008

p 356) Para noacutes a forccedila dessa afirmaccedilatildeo revela menos da personalidade desse escritor e

mais da poacuteiesis artiacutestica Se natildeo pudermos admitir tal disposiccedilatildeo de espiacuterito no exerciacutecio

do design que pelo menos possamos apostar na incompletude como uma das possiacuteveis

chaves de interpretaccedilatildeo desse campo

32 Heidegger e o vieacutes ontoloacutegico na arte e no design

Pensemos nas comunidades cientiacuteficas e tecnoloacutegicas da atualidade e na sua forma de

atuaccedilatildeo Eacute a partir delas que a maioria dos campos de pesquisa e de trabalho tem seu

status estabelecido delimitado e regulado de acordo com os fundamentos teoacutericos e

pragmaacuteticos em que se baseiam Como sabemos eacute preciso que perante as comunidades

cientiacuteficas uma determinada disciplina se apresente com diversas credenciais de caraacuteter

gnoseoloacutegico e epistemoloacutegico conectadas agrave sua praacutetica efetiva para ser aceita no grupo

das ciecircncias e das teacutecnicas modernas

Deste modo em relaccedilatildeo ao design quando perguntamos sobre seu status especifica-

mente ontoloacutegico estamos procurando identificar elementos que possam garantir sua

validade enquanto disciplina dentro de uma dada concepccedilatildeo de realidade mesmo pres-

cindindo de uma fundamentaccedilatildeo epistecircmica O encaminhamento de caraacuteter ontoloacutegico

130

que apresentamos aqui propotildee um giro na questatildeo e possibilita reflexotildees sistemaacuteticas que

independem de anaacutelises calcadas em fundamentaccedilatildeo de caraacuteter cientiacutefico ou esteacutetico Tal

procedimento tem vantagens quando natildeo eacute possiacutevel estabelecer um viacutenculo direto entre

um determinado campo e as ciecircncias ou quando o viacutenculo deste campo com a esteacutetica

expotildee caracteriacutesticas do mesmo que dificultam uma possiacutevel conexatildeo com as ciecircncias

como ocorreu em nossa anaacutelise do design na seccedilatildeo 31

321 O giro em direccedilatildeo agrave ontologia

No design ocorre uma confluecircncia e um amaacutelgama entre aspectos esteacuteticos artiacutesticos

teacutecnicos e epistecircmicos que natildeo sucede de forma expliacutecita10 em campos onde a cientifi-

cidade natildeo eacute questionada Assim se por um lado o status ontoloacutegico do design ainda

estaacute por se firmar e por outro natildeo concordamos com uma hierarquia em que ciecircncia

estaacute no topo do saber e aliada agrave verdade nada melhor do que buscar em um autor con-

traacuterio a esse tipo de pensamento argumentos que possam contribuir para subsidiar a

fundamentaccedilatildeo ontoloacutegica desse campo Este autor no nosso entendimento eacute Martin

Heidegger um dos filoacutesofos que se insurge contra a tradiccedilatildeo do pensamento ocidental

de modo correlato ao que fez Nietzsche criticando ciecircncia e teacutecnica contrapondo essas

disciplinas agrave arte

Nosso propoacutesito eacute seguir o pensamento de Heidegger e explorar uma de suas ideias

fundamentais a de que a obra de arte estaacute associada agrave verdade e que contribui de forma

singular para a compreensatildeo da essecircncia dos utensiacutelios ldquodescortinandordquo uma dimensatildeo

ontoloacutegica dessa categoria de objetos Conforme afirma Heidegger em seu livro A origem

da obra de arte

10 No entanto mesmo em ciecircncias consideradas abstratas como a matemaacutetica podem existir preocu-paccedilotildees de caraacuteter natildeo estritamente formais Por exemplo quando duas respostas para determinada questatildeo satildeo encontradas a justificativa pela escolha da resposta mais simples ou com menor nuacutemero de etapas (tambeacutem entendida pelos matemaacuteticos como mais ldquofinardquo e ldquoeleganterdquo) natildeo poderia ser atri-buiacuteda a uma preocupaccedilatildeo esteacutetica se as duas soluccedilotildees forem equivalentes e igualmente precisas

131

A que domiacutenio pertence uma obra A obra instaura um certo domiacutenio ao qual pertence e que eacute aberto por ela mesma porque somente nessa abertura existe o seu ser-obra Dissemos que na obra se realiza o acontecer da verdade e exem-plificamos esse fato nos referindo ao quadro de Van Gogh Tratamos entatildeo de questionar sobre o sentido da verdade e sobre o seu acontecer (heidegger 1987 p 228)

O fato de que o texto de Heidegger explora expressotildees incomuns e ataca o problema

de modo inusitado pode dificultar neste primeiro momento o entendimento do essencial

oculta em toda a complexidade no discurso heideggeriano o que nos interessa e veremos

eacute a singular conexatildeo estabelecida por este pensador entre objetos artiacutesticos e objetos uacuteteis

Diante disso nossa hipoacutetese eacute de que na busca por fundamentaccedilatildeo aleacutem dos produ-

tos do design (especialmente os utensiacutelios e instrumentos) alcanccedilarem uma compreensatildeo

ampliada por esse modo de concepccedilatildeo da realidade o proacuteprio design pode caminhar

em direccedilatildeo a estabelecer seu status ontoloacutegico ao lado de outros campos jaacute delimitados

Voltando-nos para uma anaacutelise de nossos proacuteprios procedimentos o que faremos neste

ponto eacute atuar de modo correlato agrave seccedilatildeo anterior em que a apropriaccedilatildeo de um princiacutepio

kantiano mdash bem-sucedido em aclarar aspectos de sua investigaccedilatildeo acerca do belo mdash con-

duziu Tierry de Duve a uma proposta de alargamento das fronteiras do entendimento da

arte contemporacircnea e levou-nos posteriormente a adaptar o mesmo modelo estrutural

para o design

Pretendemos manter a mesma estrateacutegia de apropriaccedilatildeo agora com uma abordagem

de caraacuteter claramente ontoloacutegico e mediada pelas reflexotildees heideggerianas sobre a obra

de arte Utilizando-nos de tal modus operandi seguiremos desta vez apoiados principal-

mente nos estudos de Philippe Lacoue-Labarthe (1996) em busca de compreender mini-

mamente tanto a criacutetica de Heidegger agrave posiccedilatildeo platocircnica quanto agraves possiacuteveis conexotildees

natildeo declaradas de seu pensamento com alguns conceitos aristoteacutelicos A relevacircncia de

Lacoue-Labarte eacute tanto maior uma vez que como veremos este autor defende a tese da

concepccedilatildeo ontoloacutegica da miacutemesis tanto em Aristoacuteteles quanto em Heidegger Para tanto

dividimos a seccedilatildeo atual em trecircs toacutepicos

132

1 Pressupondo a criacutetica platocircnica agrave arte (exposta no capiacutetulo 2) ligada ao conceito de

miacutemesis apresentamos a oposiccedilatildeo de Heidegger a essa concepccedilatildeo

2 Avanccedilamos para a posiccedilatildeo de Heidegger que segundo Lacoue-Labarthe reelabora

o conceito de miacutemesis aristoteacutelico de modo natildeo expliacutecito na obra A origem da obra

de arte

3 Com esses elementos estabelecidos passamos a operar no registro do conceito hei-

deggeriano de obra de arte buscando comprovar nossa hipoacutetese (cf capiacutetulo 1 p 39)

sobre o design

322 A criacutetica a Platatildeo a arte natildeo eacute imitaccedilatildeo

Platatildeo no livro x do diaacutelogo A repuacuteblica (1987) ao criticar a arte tem como alvo a poesia

mas utiliza como um dos exemplos a pintura A poesia vem simplesmente aderida ao

argumento Se tal eacute a estrateacutegia platocircnica para a construccedilatildeo de seu discurso contra a arte

a de Heidegger no livro A origem da obra de arte (2004) toma o caminho contraacuterio em

favor da arte Numa oposiccedilatildeo frontal a Platatildeo Heidegger busca constituir uma ontologia

em que a arte ocupa uma posiccedilatildeo privilegiada ao mesmo tempo em que aponta a insu-

ficiecircncia dos conceitos metafiacutesicos originados no filoacutesofo ateniense para tratar o tema

Assim sendo seu caminho no texto tambeacutem eacute inverso Heidegger inicia com exemplos

da pintura e culmina com um de arquitetura

Ou seraacute que com a proposiccedilatildeo ldquoa arte eacute o pocircr-se-em-obra-da-verdaderdquo se pre-tende reanimar de novo aquela ideia em boa hora superada segundo a qual a arte seja uma imitaccedilatildeo e coacutepia do real A reproduccedilatildeo do que estaacute perante noacutes (Vorhandenen) requer aliaacutes a conformidade com o ente a adaptaccedilatildeo a este adaequatio diz a Idade Meacutedia ὁmicroοίωσις[11] diz Aristoacuteteles A conformidade com o ente vale de haacute muito como a essecircncia da verdade Mas seraacute que o que queremos dizer eacute que o quadro de Van Gogh copia um par de sapatos de cam-ponecircs que realmente estaacute aiacute e eacute uma obra porque consegue fazecirc-lo De modo nenhum (heidegger 2004 p 28)

11 Homoiosis (ὁmicroοίωσις) eacute transformaccedilatildeo de modo a tornar-se semelhante semelhanccedila similitude (ma-lhadas dezotti neves 2008 v 3 p 228)

133

Importa observar aqui que o fato de Heidegger levantar a questatildeo do conceito medieval

de adequaccedilatildeo e o de homoiosis (ὁmicroοίωσις) semelhanccedila em Aristoacuteteles natildeo significa que

ele esteja relacionando a concepccedilatildeo de imitaccedilatildeo ao pensamento aristoteacutelico Arte como

imitaccedilatildeo e coacutepia do real eacute uma concepccedilatildeo platocircnica e a criacutetica de Heidegger portanto estaacute

dirigida a Platatildeo Para Heidegger o imitar no sentido de copiar natildeo explica o processo

constituinte de uma obra de arte Mais agrave frente ele afirma

Fazemos agora a pergunta sobre a verdade em vista da obra Para que todavia nos possamos familiarizar com o que estaacute em questatildeo eacute necessaacuterio tornar de novo visiacutevel o acontecimento da verdade da obra Para esta tentativa escolhemos uma obra que natildeo[12] se conta entre as obras arquitectoacutenicas Um edifiacutecio um templo grego natildeo imita nada Estaacute ali simplesmente erguido nos vales entre os rochedos (heidegger 2004 p 32) Negrito nosso

Dado que Heidegger se recusa a pensar a imitaccedilatildeo em termos platocircnicos vamos nos

apoiar na tese de Lacoue-Labarthe sobre uma mimetologia de sua interpretaccedilatildeo da arte

Nas palavras de Lacoue-Labarthe

[] apesar da criacutetica radical agrave qual ele [Heidegger] submete todos os conceitos da esteacutetica inclusive o conceito de miacutemesis apesar da sua desconstruccedilatildeo sem resto da esteacutetica a interpretaccedilatildeo que Heidegger propotildee da arte eacute fundamentalmente uma mimetologia Eacute certo que jaacute o lembrei antes Heidegger recusa a palavra ele afasta com o maior desprezo um desprezo aliaacutes estranhamente platocircnico e filosoacutefico toda consideraccedilatildeo da ldquoimitaccedilatildeordquo e vocecircs sabem que se o exemplo maacuteximo em ldquoA Origem da Obra de Arterdquo eacute um templo eacute porque ldquoo templo natildeo eacute feito agrave imagem de nadardquo Dito isso o que ele recusa exatamente com esta pala-vra Muito explicitamente mas tambeacutem muito paradoxalmente a interpretaccedilatildeo platocircnica da miacutemesis ou seja mdash refiro-me ainda a uma passagem da Introduccedilatildeo de 35 mdash a miacutemesis compreendida a partir da idea em si mesma pensada como paradigma ou como modelo sob o horizonte da aletheia interpretada em termos de adequaccedilatildeo ou de homoiosis Ora isso natildeo impede absolutamente a tese que concerne a arte de ser a reelaboraccedilatildeo jamais abertamente apresentada como

12 A frase ldquoPara esta tentativa escolhemos uma obra que natildeo se conta entre as obras arquitectoacutenicasrdquo na traduccedilatildeo de Maria da Conceiccedilatildeo Costa (Ediccedilotildees 70) parece contradizer a frase seguinte em que Heidegger remete a um templo grego Na traduccedilatildeo da Revista Kriterion em lugar de ldquoarquitectoacutenicasrdquo encontra-se ldquorepresentativasrdquo o que torna coerente o argumento de Heidegger No entanto a traduccedilatildeo da Kriterion natildeo utiliza o verbo imitar mas sim reproduzir ldquoUma obra de arquitetura mdash um templo grego mdash nada reproduz []rdquo (heidegger 1987 p 228) Esse foi o motivo pelo qual escolhemos a citaccedilatildeo das Ediccedilotildees 70

134

tal mas tambeacutem nunca totalmente dissimulada da concepccedilatildeo aristoteacutelica da particcedilatildeo entre phusis e techne isto eacute da concepccedilatildeo ontoloacutegica da miacutemesis fazer da arte no combate (o polemos) entre terra e mundo (ou em Soacutefocles dike e techne) que eacute o proacuteprio combate do einai e do noein inaugural do pensamento ocidental o suplemento e ateacute mesmo o traccedilo ou o arqui-traccedilo originariamente suplementar e desvelador com respeito agrave proacutepria phusis (ao ser do ente) fazer da arte aquilo de que a phusis precisa para aparecer como tal eacute mdash num outro niacutevel de profundidade mdash repetir o que diz Aristoacuteteles da miacutemesis enquanto o que ldquoleva a termordquo o que a phusis por si mesma natildeo pode ldquoefetuarrdquo (lacoue-labarthe 1996 p 154-155) Negrito nosso

Esse longo trecho oferece-nos um olhar e uma nova possibilidade tanto porque natildeo

abre matildeo da oposiccedilatildeo que Heidegger faz agrave tradiccedilatildeo platocircnica mas ao mesmo tempo

reforccedila a posiccedilatildeo de Lacoue-Labarthe a partir do pensamento aristoteacutelico de uma ldquocon-

cepccedilatildeo ontoloacutegica da miacutemesisrdquo natildeo entendida como simples imitaccedilatildeo ou coacutepia Sigamos

portanto Heidegger em busca desse caminho para explicitar a proposta Labartheana

323 Poacuteiesis como produccedilatildeo phyacutesis como terra e teacutekhne como mundo

Lembrando o que tratamos no capiacutetulo 2 a produccedilatildeo mais geral poacuteiesis (ποίησις) ao atuar

como forccedila da natureza eacute delimitada como phyacutesis (φύσις) modalidade de produccedilatildeo que

se faz a partir de si mesma Um exemplo de phyacutesis eacute a transformaccedilatildeo de uma semente em

aacutervore ou como Heidegger afirma em A questatildeo da Teacutecnica ldquo[]noadventodaflorao

florescer[]rdquo(heidegger 2007 p 379) Poacuteiesis pode ser tambeacutem teacutekhne (τέχνη) mo-

dalidade de produccedilatildeo que ocorre natildeo a partir de si mesma mas a partir de outro Teacutekhne eacute

arte manual induacutestria ofiacutecio e tem por princiacutepio natildeo o fazer mas principalmente o saber

fazer a habilidade o meacutetodo o artifiacutecio o conhecimento teoacuterico que suporta uma atividade

Lacoue-Labarthe associa o conceito de teacutekhne ao conceito heideggeriano de mundo

e o conceito de phyacutesis ao de terraconformeafigura24ldquo[]atesequeconcerneaarte

deserareelaboraccedilatildeo[]daconcepccedilatildeoaristoteacutelicadaparticcedilatildeoentrephusis e techne isto

eacute da concepccedilatildeo ontoloacutegica da miacutemesis fazer da arte no combate (o polemos) entre terra

emundo[]rdquo(lacoue-labarthe 1996 p 155) Nas palavras de Heidegger

135

Aquilo em direccedilatildeo ao qual a obra se retrai permitindo que ela ressurja desse proacuteprio retraimento chamamos a Terra (die Erde) Ela estaacute sempre eclodindo de sua proacutepria reserva A terra eacute o impulso silencioso e infatigaacutevel do que eacute gratuito Sobre a Terra e na Terra o homem histoacuterico funda a sua morada no mundo Quando apresenta um mundo a obra produz (revela) a Terra Produzir deve ser pensado aqui em sentido rigoroso A obra move e manteacutem a proacutepria Terra no aberto de um mundo A obra tem o poder de fazer a Terra tornar-se Terra (heidegger 1987 p 234)

Mesmo que Heidegger ao trabalhar os conceitos de Terra e Mundo volte-se apenas

para o pensamento grego antigo sem pensar especificamente em Aristoacuteteles mas talvez

animado pelo pensamento anterior de Heraacuteclito a interpretaccedilatildeo de Lacoue-Labarthe estaacute

bem costurada e estabelecida Na traduccedilatildeo da Revista Kriterion o asterisco da citaccedilatildeo

anterior (associado agrave palavra produzir) envia para a seguinte nota da tradutora Maria Joseacute

R Campos que segue a mesma via interpretativa de Lacoue-Labarthe

PRODUCcedilAtildeO (poacuteiesis)

Phyacutesis Teacutekhne

CONCEPCcedilAtildeO GREGA DE PRODUCcedilAtildeOCRIACcedilAtildeO

PRODUCcedilAtildeO DA NATUREZA A PARTIR DE SI MESMA PRODUCcedilAtildeO A PARTIR DE OUTRO

Terra Mundo

CONCEPCcedilAtildeO DE HEIDEGGER CORRELATA Agrave PHYacuteSIS E TEacuteKHNE GREGAS

Figura 24 Representaccedilatildeo da associaccedilatildeo entre os conceitos gregos de Phyacutesis e Teacutekhne e os conceitos hei-deggerianos de Terra e Mundo fonte autor

136

Produzir executar significa em alematildeo herstellen Mas em Heidegger a palavra possui aqui um sentido especial Aleacutem de produzir significando fazer qualquer coisa de qualquer mateacuteria (produccedilatildeo artesanal) a palavra tambeacutem pode indicar manifestar demonstrar revelar o que soacute acontece na obra de arte Aiacute a mateacuteria ainda que utilizada natildeo eacute jamais utilizada a serviccedilo da utilidade da obra Na obra de arte herstellen possui o sentido de trazer agrave superfiacutecie o que estaacute oculto trazer agrave luz o sombrio manifestar o que estaacute em reserva A palavra possui em Heidegger um sentido semelhante ao de herausstellen colocar para (fora) A obra de arte revela traz agrave superfiacutecie o que haacute de mais profundo na realidade material ela revela a Terra a physis dos gregos (heidegger 1987 p 234-235) Nota da tradutora

Para compreender plenamente o significado da citaccedilatildeo anterior e da relevacircncia

do conceito de produccedilatildeo (poacuteiesis) em seus desdobramentos a partir da arte em pos-

sibilidades para o acircmbito do design eacute necessaacuterio passarmos em revista o modo como

Heidegger entende o problema da cisatildeo entre ciecircncia teacutecnica e arte na modernidade Eacute

o que analisaremos a seguir

324 Os trecircs modos de produccedilatildeo e sua influecircncia sobre o design

Tendo em conta a importacircncia do conceito de produccedilatildeo para a constituiccedilatildeo do pensamento

heideggeriano torna-se compreensiacutevel que esse autor use-o de forma recorrente em suas

reflexotildees Na verdade como veremos Heidegger entende as categorias de ciecircncia teacutecni-

ca e arte em conexatildeo com o mundo grego como trecircs modalidades de produccedilatildeo Como

afirma o filoacutesofo brasileiro Fernando Mendes Pessoa

Heidegger caracteriza a produccedilatildeo o pocircr-se em obra do real como desencobri-mento com o verbo stellen ldquopocircrrdquo estabelecendo uma distinccedilatildeo entre essas trecircs modalidades produtivas a partir do acreacutescimo de trecircs partiacuteculas diferentes a esse verbo ele caracteriza a produccedilatildeo cientiacutefica de Vor-stellen a produccedilatildeo tecnoloacutegica de Ge-stellen e a produccedilatildeo artiacutestica de Her-stellen mdash termos que para manter uma analogia na liacutengua portuguesa poderiacuteamos traduzir como pro-pocircr com-pocircr e ex-pocircr (no sentido de produzir criar) (pessoa 2009 p 195)

137

Em primeiro lugar para Heidegger a ciecircncia como um dos modos de produccedilatildeo do

real eacute o propor de uma teoria do real E na modernidade esse ldquorealrdquo se funda na concepccedilatildeo

de causa e efeito noccedilatildeo cara a filoacutesofos e cientistas desde esse periacuteodo ateacute a atualidade O

princiacutepio de causalidade eacute um recurso eficiente na descriccedilatildeo e previsatildeo de fenocircmenos o

que leva a ciecircncia a partir da modernidade seduzida por esse poder preditivo a concen-

trar-se cada vez mais em questotildees voltadas para o como os eventos se datildeo ao inveacutes de porque

eles ocorrem Natildeo eacute sem razatildeo que Descartes e toda a tradiccedilatildeo que vem em seguida de

pensadores cientistas e teoacutericos incluindo na atualidade os do design13 a favor ou contra

o cartesianismo reportam-se sempre ao Princiacutepio de Causalidade seja para reafirmar ou

criticar esse conceito como um ponto nodal para a compreensatildeo da realidade Como

afirma Heidegger em Ensaios e conferecircncias (Ciecircncia e pensamento do sentido)

A ciecircncia potildee o real E o dispotildee a propor-se num conjunto de operaccedilotildees e pro-cessamentos isto eacute numa sequumlecircncia de causas aduzidas que se podem prever Desta maneira o real pode ser previsiacutevel e tornar-se perseguido em suas conse-quumlecircncias Eacute como se assegura do real em sua objetidade [sic] Desta decorrem domiacutenios de objetos que o tratamento cientiacutefico pode entatildeo processar agrave vontade (heidegger 2012 p 48)

A criacutetica de Heidegger se insurge contra toda uma tradiccedilatildeo a partir de Platatildeo que

segundo esse pensador propotildee uma realidade coisificada em que homem e mundo satildeo

compreendidos como separados em sujeito cognoscente e objeto a se conhecer Em outras

palavras sujeito e objeto dos quais tratamos no capiacutetulo 2 e que para Heidegger estatildeo

problematicamente cindidos por uma teoria de ldquocausas aduzidasrdquo

13 Maldonado (2012) a propoacutesito de pensar a teacutecnica em suas relaccedilotildees com a sociedade usando o exemplo de um dos seus produtos mdash os oacuteculos mdash argumenta em favor dos conceitos de causa e efeito ldquoNatildeo se pode desprezar o fato de que os conceitos de causa e de agente tecircm uma notoacuteria e longa tradiccedilatildeo no pensamento filosoacutefico Basta pensar na doutrina aristoteacutelica das lsquoquatro causasrsquo e nas complexas construccedilotildees conceituais da escolaacutestica medieval sobre as relaccedilotildees de causa e efeito E ainda os sofis-ticados quebra-cabeccedilas loacutegico-epistemoloacutegicos da moderna filosofia da ciecircncia sobre esse assuntordquo (maldonado 2012 p 176) Em seguida associando causa e efeito agrave metaacutefora de ldquoempurrarrdquo e ldquopuxarrdquo entre a teacutecnica e a sociedade esse autor mostra como a questatildeo eacute ainda mais complexa ao explorar o conceito de causalidade circular ldquoNo tema que estamos discutindo a questatildeo da circularidade natildeo pode ser ignorada Para continuarmos na metaacutefora se eacute verdade que em uma certa fase eacute de fato a teacutecnica que empurrou e a sociedade que puxou eacute tambeacutem verdadeiro que em uma fase precedente foi a sociedade que empurrou e a teacutecnica que puxourdquo (maldonado 2012 p 177)

138

Em segundo a teacutecnica eacute o compor do real em sua exploraccedilatildeo Ou seja a teacutecnica a

partir da modernidade busca disponibilizar a natureza em seu propoacutesito dominando-a

e explorando-a Nas palavras de Heidegger

O desencobrimento que domina a teacutecnica moderna possui como caracteriacutestica o pocircr no sentido de explorar (Herausforderung) Esta exploraccedilatildeo se daacute e acon-tece num muacuteltiplo movimento a energia escondida na natureza eacute extraiacuteda o extraiacutedo vecirc-se transformado o transformado estocado o estocado distribuiacutedo o distribuiacutedo reprocessado (heidegger 2012 p 20)

Esse segundo modo de produccedilatildeo de exploraccedilatildeo energeacutetica do real segundo Hei-

degger eacute distinto do primeiro e torna o sujeito e o objeto da ciecircncia respectivamente forccedila

de trabalho e mateacuteria prima no acircmbito da teacutecnica Maldonado (2012) aponta que essa

preocupaccedilatildeo de Heidegger em relaccedilatildeo a esse disponibilizar e controlar que eacute pretendido

pela teacutecnica jaacute se manisfesta no livro Ser e Tempo (Sein und Zeit) obra anterior agrave Ciecircncia

e pensamento do sentido

No tom elevado que distingue seu estilo de raciociacutenio ele [Heidegger] examina a pretensatildeo (proacutepria e de outros) de querer ldquocontrolar espiritualmente a teacutecnicardquo Em resumo de querer submetecirc-la dominaacute-la Em Sein und Zeit (1927) Heidegger jaacute havia analisado as sutis implicaccedilotildees ontoloacutegicas do querer ldquocontrolarrdquomdash sem referir-se explicitamente agrave teacutecnica mdash quando introduziu a sua famosa distinccedilatildeo entre o modo de ser ldquoutilizaacutevelrdquo ldquopraacuteticordquo (Zuhandenheit) e o modo de estar

ldquopresenterdquo ldquoagrave disposiccedilatildeordquo (Vorhandensein) (maldonado 2012 p 154)

Diante da gravidade da criacutetica de Heidegger aos modos de produccedilatildeo da ciecircncia e

da teacutecnica diversas tecircm sido as apropriaccedilotildees de seus argumentos em prol de uma maior

atenccedilatildeo e precauccedilatildeo aos desdobramentos desses dois campos A discussatildeo sobre a impos-

sibilidade de neutralidade da ciecircncia e da teacutecnica as consequecircncias nefastas de se separar

sujeito e objeto e de ver o homem e a natureza a serviccedilo de um sistema de produccedilatildeo satildeo

apenas algumas das diversas questotildees que apontam para uma dimensatildeo catastroacutefica de

nossa sociedade contemporacircnea e na qual podemos sem duacutevida incluir reflexotildees sobre o

papel e a responsabilidade do design Flusser como vimos segue essa linha de raciociacutenio

Mas por outro lado pensando em todos os benefiacutecios gerados pela ciecircncia e pela

teacutecnica podemos e devemos recusar esses modos de produccedilatildeo que por milhares de anos

foram se constituindo e garantindo a formaccedilatildeo de nossa civilizaccedilatildeo levando-nos ateacute onde

139

chegamos Heidegger tem plena consciecircncia da importacircncia da ciecircncia e da teacutecnica e

natildeo as recusa simplesmente Sua intenccedilatildeo eacute (compreendendo que a ciecircncia e a teacutecnica

nos fazem construir uma visatildeo da realidade empobrecida e atuar de forma exploratoacuteria

voltada para a dominaccedilatildeo) procurar um modo de produccedilatildeo que resgate para o ser humano

o habitar do mundo em um sentido mais digno e responsaacutevel E esse modo segundo ele

se encontra na arte

Em terceiro portanto Heidegger estabelece a arte como o modo de expor o real em

sua liberdade Em uma passagem de A origem da obra de arte Heidegger explicita tal

produccedilatildeo atraveacutes da anaacutelise de uma pintura de Van Gogh

Aiacute estatildeo os sapatos sejam eles de que tipo forem com as solas e a pala de cou-ro percorridas pelas costuras e os pregos Seu material e sua forma variam de acordo com sua finalidade trabalhar danccedilar etc Tudo isto apenas reforccedila o que jaacute sabemos o ser do instrumento enquanto tal consiste em servir para alguma coisa Mas seraacute esta a realidade essencial do instrumento Natildeo devemos exploraacute-la melhor A camponesa usa seus sapatos na terra lavrada pois eacute aiacute que os sapatos satildeo o que realmente satildeo Quanto menos atenccedilatildeo a camponesa dedica a eles em seu trabalho mais eles se prestam ao serviccedilo de alguma coisa mais correspondem ao seu ser Dessa forma estaremos nos afastando sensivelmente do ser do instrumento se apenas nos detivermos em sua representaccedilatildeo geral ou na imagem desse quadro perdida no vazio onde os sapatos estatildeo desligados da ideacuteia de algueacutem que os possa estar usando [] No entanto natildeo eacute soacute isto

Observemos as sombras da abertura de seu interior jaacute gasto onde se esboccedila a fadiga do andar laborioso e eis que percebemos os passos rudes pesados e fa-tigados do camponecircs que sob um vento avassalador imprime com sua marcha lenta grandes e monoacutetonos sulcos na terra lavrada No couro engordurado pela terra feacutertil e negra e nas duas solas imoacuteveis desliza a solidatildeo dos vastos espaccedilos das tardes do campo No par de sapatos eclode o secreto apelo da Terra o cuidado pelo patildeo de cada dia na promessa do trigo as auroras glaciais as tardes enigmaacuteticas agrave espreita do inverno Atraveacutes desse instrumento o cam-ponecircs experimenta o exerciacutecio pela sobrevivecircncia da doce espera do filho que retorna agrave casa a alegria de sentir a vida o cuidado de temer a morte Se o par de sapatos eacute propriedade da Terra em sua dignidade tranquumlilidade e seguranccedila o mundo do camponecircs o resguarda Eacute o proacuteprio ser do instrumento que emerge dessa propriedade resguardada pois sob esse gesto de proteccedilatildeo ele repousa em si mesmo (heidegger 1986 p 205-206)

140

Foi necessaacuterio apresentar essa longa e instigante passagem com trechos sempre

referenciados por comentadores e especialistas de Heidegger para colocar claramente

a relevacircncia da obra de arte indo aleacutem do universo artiacutestico A obra de arte torna-se

subsidiaacuteria da compreensatildeo do utensiacutelio um tipo de ldquoenterdquo cujo entendimento natildeo se

esgota em sua utilidade O caraacuteter poeacutetico que Heidegger empresta ao texto demonstra

como um filoacutesofo desta envergadura eacute capaz de atuar no sentido de conduzir o leitor ul-

trapassando os argumentos da pura reflexatildeo sistemaacutetica Isso porque para Heidegger a

essecircncia dos instrumentos e utensiacutelios em seu significado mais profundo e sua dimensatildeo

ontoloacutegica se mostra com mais vigor a partir de nossa experiecircncia e fruiccedilatildeo da obra de

arte Conforme as palavras de Virginia Figueiredo

Eacute no sentido de uma ldquopromoccedilatildeo ontoloacutegicardquo da qual falava Arthur Danto ou de uma reversatildeo do platonismo que tento ler o famoso ensaio de Heidegger Assim retomando os resultados da ceacutelebre anaacutelise aiacute contida sobre o quadro de Van Gogh acho que se pode concluir que os sapatos no quadro mdash dizendo enfaticamente a imagem pictoacuterica dos sapatos de Van Gogh mdash exatamente porque escapam da utilidade possuem um valor ontoloacutegico muitas vezes supe-rior a qualquer sapato da realidade Satildeo os sapatos do quadro de Van Gogh que nos tornam aptos a retornando agrave experiecircncia cotidiana atribuir algum sentido a ela Satildeo os sapatos pictoacutericos que ldquosalvamrdquo do naufraacutegio do afogamento da cotidianidade os sapatos reais (figueiredo 2005 p 454-455)

Do nosso ponto de vista o discurso heideggeriano nos serve a um propoacutesito que

contribui para a formaccedilatildeo de uma consciecircncia da produccedilatildeo no acircmbito do design Sua anaacute-

lise resgata um modo de compreensatildeo das categorias de objetos que satildeo especificamente

utensiacutelios e instrumentos mas cuja utilidade eacute apenas um dos seus aspectos constituintes

Ao contraacuterio do que poderia parecer e isso eacute de suma importacircncia para nosso argumento

tais objetos a partir de um olhar proporcionado pelo modo de produccedilatildeo da arte natildeo se

desvalorizam ou se rebaixam pois natildeo satildeo apenas utilitaacuterios forjados pela teacutecnica subsi-

diaacuteria da ciecircncia Tais entes passam a carregar uma dimensatildeo ontoloacutegica que nos potildee em

contato com o mundo e com a natureza em uma relaccedilatildeo que natildeo eacute nem de conhecimento

nem de exploraccedilatildeo ou em outras palavras nem de ciecircncia nem de teacutecnica Neste sentido

as palavras de Maria Joseacute R Campos corroboram a posiccedilatildeo heideggeriana de que a arte

141

natildeo somente tem assegurado seu proacuteprio status ontoloacutegico como tambeacutem contribui de

modo fundamental para a compreensatildeo dos objetos utilitaacuterios

[] a arte possui ainda o poder de revelar que as coisas natildeo se esgotam na sua instrumentalidade pois que sua essecircncia permanece aqueacutem dos nossos projetos utilitaacuterios a arte torna manifesto o ser-instrumento do par de sapatos de campo-necircs pintado por Van Gogh A verdade das coisas natildeo se fundamenta pois senatildeo na significaccedilatildeo no sentido projetado (heidegger 1987 p 188 - Apresentaccedilatildeo)

E se a apreciaccedilatildeo das obras de arte nos leva a perceber esses outros significados talvez

tambeacutem contribua para nos colocar em uma relaccedilatildeo com os objetos do design que natildeo

seja somente de mero uso exploraccedilatildeo acumulaccedilatildeo e consumo

325 O design aleacutem da instrumentalidade e da utilidade

Diante do percurso empreendido satildeo necessaacuterias algumas consideraccedilotildees Em primeiro

lugar atentos ao contexto mais geral da discussatildeo de cunho ontoloacutegico se nossa sociedade

se estabeleceu de modo a dar a primazia ao arcabouccedilo gnoseoloacutegico e epistemoloacutegico e

seus desdobramentos cientiacutefico-tecnoloacutegicos natildeo podemos nos esquecer que este modo

de compreender a realidade tem suas vantagens mas cobra como vimos um preccedilo alto

Este eacute o alerta que permeia o discurso heideggeriano

Se Heidegger repete seus argumentos em diversas obras talvez seja porque ele tem

plena consciecircncia do quanto estamos acostumados a uma ideia de verdade apoiada em

bases cientiacuteficas E se essa ideia eacute um construto mental existem modos distintos de enten-

dimento como ele nos sugere que podem levar-nos a possibilidades ainda natildeo imaginadas

Mas podemos tambeacutem questionar Heidegger sobre o fato de ele trocar uma verdade por

outra De qualquer modo existe um risco pelo menos no acircmbito das teorias cientiacuteficas

da verdade se confundir com a essecircncia pois a doutrina essencialista tem seacuterias limita-

ccedilotildees O essencialismo eacute a concepccedilatildeo que postula que as verdadeiras teorias descrevem

as essecircncias das coisas Se for assim o cientista pode estabelecer a verdade destas teorias

Karl Popper no entanto eacute contraacuterio agrave essa concepccedilatildeo e apresenta uma incisiva criacutetica ao

142

essencialismo em seu livro Conjecturas e refutaccedilotildees (1972) Para Popper toda teoria eacute uma

hipoacutetese (conjectura) e natildeo conhecimento indubitaacutevel ldquoEstou plenamente de acordo

emqueasteoriasnatildeooferecemnenhumacerteza(quesemprepodemserrefutadas)[]rdquo

(popper 1972 p 139) Traduccedilatildeo nossa Popper natildeo eacute contra a busca do que ainda estaacute

oculto mas eacute contra a doutrina de que a ciecircncia tende agraves explicaccedilotildees uacuteltimas Em outras

palavras no acircmbito da teoria precisamos realmente de explicaccedilotildees uacuteltimas No nosso

entendimento buscaacute-las eacute como ir atraacutes de uma quimera e nos bastaria uma ontologia

soacutebria para apoiar a construccedilatildeo de teorias que nos ajudem a compreender as produccedilotildees

humanas Ateacute onde podemos ver um programa dessa magnitude mesmo abrindo matildeo

da essecircncia jaacute eacute extremamente ambicioso

Em segundo lugar outra consideraccedilatildeo em acircmbito especiacutefico eacute a de reafirmarmos

a posiccedilatildeo assumida no iniacutecio da tese de natildeo simplesmente submeter a fundamentaccedilatildeo

ontoloacutegica agraves exigecircncias gnoseoloacutegicas epistemoloacutegicas e esteacuteticas Tal proposiccedilatildeo eacute

estabelecida em dois sentidos De um lado na ampliaccedilatildeo do entendimento sobre os

objetos do design indicando um caminho a seguir aleacutem de sua instrumentalidade e uti-

lidade De outro na proposta alternativa para a compreensatildeo de algumas caracteriacutesticas

do design em sua relaccedilatildeo com a arte Apostando nesta seara eacute preciso avanccedilar em torno

de elementos que natildeo sejam estanques como os da ciecircncia e da teacutecnica criticados por

Heidegger Os conceitos aristoteacutelicos cumprem este objetivo conforme investigaremos

no proacuteximo capiacutetulo

143

4 OS CONCEITOS ARISTOTEacuteLICOS NO DESIGN E NA ARTE

Como verificamos no capiacutetulo anterior a construccedilatildeo da via ontoloacutegica possibilita avanccedilar

na compreensatildeo das relaccedilotildees entre design e arte sem precisarmos abrir matildeo da subjetivi-

dade e da incompletude no design ao mesmo tempo em que podemos prescindir de uma

credencial especificamente epistemoloacutegica Mas existe um ganho adicional nessa estrateacutegia

ao qual jaacute haviacuteamos nos referido na Introduccedilatildeo se o vieacutes ontoloacutegico iniciado por Platatildeo

em sua criacutetica agrave arte mimeacutetica eacute uma espeacutecie de fio condutor que facilita a aproximaccedilatildeo dos

autores com o seu tema o giro da epistemologia e da esteacutetica agrave ontologia coloca-nos agora

na mesma circunscriccedilatildeo desses investigadores Deste modo ao finalmente contrapormos

o pensamento de Aristoacuteteles ao de Platatildeo e transitarmos pelos seus conceitos apoiados

nos demais autores procedemos tendo um viacutenculo coerente entre todos

Na primeira seccedilatildeo deste capiacutetulo a estrateacutegia de abordagem metodoloacutegica que se-

guimos entre Aristoacuteteles e Platatildeo eacute comparativa e obviamente sincrocircnica Colocamos em

relevo as posiccedilotildees de cada um deles principalmente em trecircs obras (A repuacuteblica de Platatildeo

A poeacutetica e A fiacutesica de Aristoacuteteles) privilegiando e revelando a questatildeo da miacutemesis Como

apoio a estes textos centrais fazemos uso das anaacutelises de historiadores da filosofia como

Werner Jaeger e Claacuteudio Veloso e do filoacutesofo Philippe Lacoue-Labarthe e dos comentaacuterios

de traduccedilatildeo do helenista Eudoro de Souza da filoacutesofa Virginia Figueiredo e do linguista

e tradutor Joatildeo Camillo Penna

Na segunda seccedilatildeo a abordagem eacute diacrocircnica nossa confianccedila neste procedimento

eacute a da possibilidade de atualizar o conceito de miacutemesis e deslocaacute-lo de sua funccedilatildeo e objetos

originais ou seja aplicaacute-lo no campo do design e na arte Como vimos este tipo de con-

duta na verdade tem sido praacutetica comum a diversos pesquisadores ao longo da histoacuteria

do pensamento ocidental com a apropriaccedilatildeo (fundamentada ou natildeo) dos mais diversos

conceitos como instrumentos para alcanccedilar fins que extrapolam seu propoacutesito original

Na terceira e uacuteltima seccedilatildeo mantemos a abordagem diacrocircnica em relaccedilatildeo ao conceito

de fim em si mesmo o discurso persuasivo epidiacutectico e o discurso aberto entrelaccedilando as

concepccedilotildees de Aristoacuteteles Danto Nietzsche e Eco agraves nossas proacuteprias em uma proposta

complementar agrave aplicaccedilatildeo da miacutemesis

144

41 O fundamento ontoloacutegico do conceito de miacutemesis

Criatividade sempre foi uma palavra associada ao design Isto torna-se mais evidente

quando ao voltar nosso olhar para o passado atentamos para o fato de que a proacutepria

palavra inglesa design estaacute ligada em sua origem latina a desiacutegnio intenccedilatildeo propoacutesito

cujos sentidos acompanham em nossa tradiccedilatildeo cultural os diversos significados de cria-

ccedilatildeo E sendo criatividade uma palavra derivada de criaccedilatildeo o ciacuterculo se fecha e justifica tais

conexotildees entre conceitos O problema com essa descriccedilatildeo (representada no lado esquerdo

da figura 25) eacute que apesar de conectar elementos fundamentais na verdade natildeo esclarece

sobre o que motiva e anima essas conexotildees E mesmo considerando que tal estrutura natildeo

eacute explicativa mas somente descritiva tal concepccedilatildeo elaborada em pesquisa preacutevia1 natildeo

explicita o elemento que atua como mediador entre os trecircs termos Assim aprimorando

essa descriccedilatildeo o que propomos a seguir eacute pensar a miacutemesis metaforicamente como um

substrato onde a criatividade a criaccedilatildeo e o design estatildeo imersos e portanto conectados

por meio desse elemento conceitual (lado direito da figura 25)

Faccedilamos novamente um recuo nos deslocando do acircmbito do design e refletindo

sobre a questatildeo originaacuteria da produccedilatildeocriaccedilatildeo em seus aspectos gerais Se entendemos

o esforccedilo de construccedilatildeo do arcabouccedilo platocircnico como uma tentativa de compreender

o que subjaz agrave criaccedilatildeo em seu sentido amplo (poacuteiesis phyacutesis teacutekhne e episteacuteme) por que

1 A descriccedilatildeo do ciacuterculo criativo e a parte esquerda da figura 25 foram publicadas no artigo O conceito aristoteacutelico de miacutemesis aplicado ao processo criativo em design (silva silva 2013)

CIacuteRCULO CRIATIVO METAacuteFORA DA MEDIACcedilAtildeO

CRIATIVIDADEuma palavra unida intrinsecamente ao DESIGN

DESIGN palavra inglesa associada em sua origem latina a desiacutegnio intenccedilatildeo propoacutesito cujos sentidos acompanham em nossa tradiccedilatildeo cultural os diversos significados de CRIACcedilAtildeO

CRIACcedilAtildeOor igem da palavraCRIATIVIDADE

MIacuteMESIS

CRIACcedilAtildeO DESIGN

CRIATIVIDADE

Figura 25 Diagramas das conexotildees entre os conceitos de criatividade criaccedilatildeo e design As setas em ciacuterculo indicam que natildeo existe um ponto inicial ou final mas apenas circularidade entre os conceitos fonte autor

145

natildeo aplicar esse modelo aos nossos propoacutesitos Porque como vimos a teoria platocircnica

cinde e hierarquiza as aacutereas do conhecimento de nosso interesse desvalorizando ontolo-

gicamente a arte e a miacutemesis elementos essenciais para a nossa proposiccedilatildeo No entanto

Aristoacuteteles tendo agrave sua disposiccedilatildeo os mesmos recursos conceituais caminha em sentido

oposto ao de Platatildeo Portanto sigamos os procedimentos desse pensador

411 A inversatildeo aristoteacutelica miacutemesis mediadora ativa e criativa

Aristoacuteteles como um dos primeiros pensadores ocidentais tratou de uma variedade de

temas dentre os quais se encontra o da criaccedilatildeo Seus textos foram estudados e reinter-

pretados pela tradiccedilatildeo grega aacuterabe e latina alcanccedilando os dias de hoje O relevante para

nossos propoacutesitos eacute que o tema da criaccedilatildeo estaacute em alguns dos seus textos mutuamente

imbricado com o conceito de miacutemesis Mas diversamente do que propotildee Platatildeo Aristoacuteteles

alccedila a miacutemesis2 agrave condiccedilatildeo privilegiada de meio ou instrumento de conhecimento Tendo

a valorizaccedilatildeo desse conceito em conta ao identificar a conexatildeo entre criaccedilatildeo e miacutemesis

despertamos nossa atenccedilatildeo para outras conexotildees possiacuteveis se em Aristoacuteteles como ve-

remos a miacutemesis eacute intriacutenseca agrave criaccedilatildeo e agrave arte esse conceito pode ser estabelecido como

mediador na compreensatildeo do processo criativo em campos como o do design

Ao contraacuterio da atitude de afastamento que tem Platatildeo em relaccedilatildeo agrave arte no livro A

repuacuteblica e em outros diaacutelogos Aristoacuteteles na obra A poeacutetica busca a sua regulamenta-

ccedilatildeo e normatizaccedilatildeo aleacutem de procurar descrever o que estava ocorrendo neste campo no

tempo em que vivia Conforme Virginia Figueiredo e Joatildeo Camillo Penna Platatildeo (que

pensa em termos de uma verdade una) considera a arte tatildeo sedutora e perigosa que o

melhor a fazer eacute mantecirc-la a distacircncia para natildeo correr o risco de a ldquoimitaccedilatildeo substituir-se

ao modelordquo (figueiredo penna 2000 p 10) Neste sentido a criacutetica platocircnica se faz

2 O fato de a discussatildeo sobre a miacutemesis nos textos escolhidos de Platatildeo e Aristoacuteteles girar em torno do tema da arte natildeo significa que estamos associando arte (em seu sentido esteacutetico atual) a design O motivo dessa escolha deve-se a Aristoacuteteles e Platatildeo terem elaborado o conceito de miacutemesis no acircmbito da arte de seu tempo Isto eacute como vimos no segundo capiacutetulo uma arte entendida como teacutekhne arte manual ofiacutecio de artiacutefices e tambeacutem como poesia mas natildeo com as diferenciaccedilotildees da atualidade em seu sentido esteacutetico

146

com mais intensidade agrave arte poeacutetica em especial a autores como Homero Poreacutem se A

repuacuteblica de Platatildeo condena a arte por ser medida pelo paradigma da ideia exterior a

ela A poeacutetica de Aristoacuteteles caminha em direccedilatildeo oposta

Se a trageacutedia eacute imitaccedilatildeo de homens melhores que noacutes importa seguir o exem-plo dos bons retratistas os quais ao reproduzir a forma peculiar dos modelos respeitando embora a semelhanccedila os embelezam Assim tambeacutem imitando homens violentos ou fracos ou com tais outros defeitos de caraacuteter devem os poetas sublimaacute-los sem que deixem de ser o que satildeo assim procederam Agatatildeo e Homero para com Aquiles paradigma de rudeza (aristoacuteteles 1987 p 215)

Aquiles tambeacutem eacute o paradigma da coragem na Iliacuteada E para Aristoacuteteles natildeo existe

um paradigma da coragem externo a arte se daacute o seu proacuteprio paradigma Recusando o

mundo das ideias ele natildeo separa essecircncia e aparecircncia como faz Platatildeo Assim descolado

da referecircncia da hierarquia de um mundo inteligiacutevel o conceito de miacutemesis pode ser com-

preendido para aleacutem da concepccedilatildeo de simples imitaccedilatildeo Como afirma Fernando Santoro

A mimesis aristoteacutelica eacute um contraponto agrave mimesis de Platatildeo natildeo define o valor artiacutestico mas o valor de verdade se para Platatildeo a imitaccedilatildeo era o distanciamento da verdade e o lugar da falsidade e da ilusatildeo para Aristoacuteteles a imitaccedilatildeo eacute o lugar da semelhanccedila e da verossimilhanccedila o lugar do reconhecimento e da represen-taccedilatildeo A funccedilatildeo mimeacutetica em Aristoacuteteles nem eacute uma exclusividade das artes poeacuteticas ela se apresenta tambeacutem por exemplo na linguagem humana em sua funccedilatildeo de representar as coisas Tal funccedilatildeo a de adequar o nome ou signo em geral agrave coisa significada eacute a funccedilatildeo mimeacutetica ou representativa da linguagem lugar em que pode acontecer o verdadeiro ou o falso (santoro 2006 p 75-76)

Dois pontos destacam-se nessa citaccedilatildeo primeiro a miacutemesis entendida como tendo

uma ldquofunccedilatildeordquo eacute estabelecida segundo Santoro tambeacutem na linguagem humana de um

modo anaacutelogo ao que propomos anteriormente com a metaacutefora da mediaccedilatildeo mimeacutetica

(figura 25 p 144) confirmando assim seu status de substrato de caraacuteter representativo

com ampla atuaccedilatildeo Segundo a natildeo exclusividade de sua atuaccedilatildeo no acircmbito da arte jus-

tifica nossa intenccedilatildeo de apropriaacute-la ao design Acreditando que esta concepccedilatildeo central

no pensamento aristoteacutelico pode ser explorada contemporaneamente o proacuteximo passo

eacute compreender a defesa do caraacuteter universal da poesia (um dos campos mais relevantes da

arte ao tempo de Aristoacuteteles) Natildeo podemos nos esquecer de que a universalidade continua

sendo um atributo almejado pelos campos de pesquisa na atualidade incluindo o design

147

412 A alianccedila entre universalidade verdade e arte poeacutetica

No livro iii de A repuacuteblica de Platatildeo (1987 p 115) Soacutecrates (a propoacutesito de discorrer

sobre as trecircs formas de narrativa) pergunta a Adimanto ldquoAcaso tudo quanto dizem os

prosadores e poetas natildeo eacute uma narrativa de acontecimentos passados presentes ou futu-

rosrdquo Por outro lado o livro ix de A poeacutetica de Aristoacuteteles pode ser considerado como

um momento de confronto com Platatildeo Jaacute no primeiro paraacutegrafo deste livro Aristoacuteteles

discordadePlatatildeoaoafirmarqueldquo[]natildeoeacuteofiacuteciodepoetanarraroqueaconteceue

sim o de representar o que poderia acontecer o que quer dizer o que eacute possiacutevel segundo

a verossimilhanccedila e a necessidaderdquo (aristoacuteteles 1987 p 209) Aleacutem disso continua o

estagirita o historiador e o poeta diferem natildeo pelo estilo que empregam (prosa ou verso)

mas por tratarem respectivamente do particular e do universal Daiacute Aristoacuteteles pode

concluir(contrariamenteaoqueestudounaAcademiaPlatocircnica)queldquo[]apoesiaeacute

algodemaisfilosoacuteficoemaisseacuteriodoqueahistoacuteria[]rdquo(aristoacuteteles 1987 p 209)

A verossimilhanccedila e a necessidade3 representam a coerecircncia e conexatildeo causal dos fatos

e accedilotildees Como afirma Eudoro de Souza em comentaacuterio (aristoacuteteles 1987 p 246)

existe um ponto de contato entre poesia e histoacuteria uma vez que acontecido e aconteciacutevel

satildeo ambos verossiacutemeis Entretanto quando pensamos que o poeta trabalha no acircmbito

da possibilidade tem em matildeos algo sempre mais amplo que a realidade enquanto o his-

toriador tem que se ater com o particular acontecido A figura 26 contrapotildee a posiccedilatildeo de

Aristoacuteteles em relaccedilatildeo agrave de Platatildeo tendo como base um saber que busca o universal sem

cindir a realidade em essecircncia e aparecircncia

Ainda no livro ix Aristoacuteteles nos diz que

[] o poeta deve ser mais fabulador que versificador porque ele eacute poeta pela imitaccedilatildeo e porque imita accedilotildees E ainda que lhe aconteccedila fazer uso de sucessos reais nem por isso deixa de ser poeta pois nada impede que algumas das coisas que realmente acontecem sejam por natureza verossiacutemeis e possiacuteveis e por isso mesmo venha o poeta a ser o autor delas (aristoacuteteles 1987 p 209)

3 Em Aristoacuteteles o conceito de necessidade estaacute relacionado ao que existe somente de um determinado modo ou seja do ponto de vista ontoloacutegico aquilo que eacute necessaacuterio natildeo pode ser de outro modo

148

Seguindo ainda o comentaacuterio de Eudoro de Souza (aristoacuteteles 1987 p 246)

ldquoSe aqui ainda natildeo eacute possiacutevel falar de lsquocriaccedilatildeorsquo eacute porque para o grego lsquocriaccedilatildeorsquo sempre

significou lsquodescobrimentorsquordquo4 Assim o poeta seria o descobridor das ldquoverdadeiras relaccedilotildees

que existem entre fatosrdquo Portanto se Aristoacuteteles contraria Platatildeo ao retirar a arte poeacutetica

do mais baixo niacutevel ontoloacutegico (3ordm niacutevel na figura 26) e recolocaacute-la em primeiro plano

como entendia a tradiccedilatildeo grega antes do platonismo ao mesmo tempo ele preserva um

criteacuterio caro a Platatildeo e agrave tradiccedilatildeo posterior do pensamento ocidental a universalidade

Com essa estrateacutegia singular de contrariar Platatildeo mantendo um conceito essencial o

estagirita torna sua operaccedilatildeo robusta o suficiente para convencer aqueles que natildeo aceitam

a criacutetica platocircnica agrave arte mas concordam com a relevacircncia da universalidade como um

caraacuteter necessaacuterio de uma teoria

A operaccedilatildeo de Aristoacuteteles se desdobra em pelo menos dois pontos positivos para

nossos propoacutesitos Primeiro ao conectar arte (teacutekhne) ao conceito de universalidade

4 Platatildeo em um certo sentido espelha a concepccedilatildeo grega de realidade Talvez por isso esse pensador eacute considerado a metoniacutemia do Ocidente Se retomamos a figura 4 (cf capiacutetulo 2 p 61) temos teoria associada agrave visatildeo com a representaccedilatildeo de um olho Assim o ldquodescobrimentordquo em seu sentido grego e especialmente platocircnico significa tirar a cobertura ldquodes-cobrirrdquo

Figura 26 Diagrama da separaccedilatildeo ontoloacutegica entre essecircncia e aparecircncia em Platatildeo (esquerda) e sua in-distinccedilatildeo em Aristoacuteteles (direita) que conduz a um conceito de miacutemesis diferenciado e potencialmente capaz de abarcar o universal com consequecircncias relevantes para a arte e o design fonte autor

PLATAtildeO ARISTOacuteTELES

1ordm NIacuteVEL mdash ARTIacuteFICE NATURAL (DEUS)No mundo inteligiacutevel Deus criou uma uacutenica cama modelo de todas outras

2ordm NIacuteVEL mdash MARCENEIRONo mundo sensiacutevel (imitaccedilatildeo do inteligiacutevel) o marceneiro cria sempre coacutepias da cama ideal

3ordm NIacuteVEL mdash POETA Baseia-se no mundo sensiacutevelpara criar suas obras que satildeo imitaccedilotildees de imitaccedilotildees

MIacuteMESISConceito compreendido aleacutem da simples imitaccedilatildeo

ARTERepresentaccedilatildeo natildeo narraccedilatildeo

POESIATrata do universal natildeo do particular

POETATrabalha no acircmbito da possibilidade Tem nas matildeos algo sempre mais amplo que a realidade

VERDADE UNA DO MUNDO DAS IDEIAS A IMITACcedilAtildeO NAtildeO PODE SUBSTITUIR O MODELO

RECUSA O MUNDO DAS IDEIAS A ARTE FORNECE SEU PROacutePRIO MODELO

ESSEcircNCIA

APAREcircNCIA MIacuteMESIS

SEM HIERARQUIA E SEPARACcedilAtildeO

ENTRE ESSEcircNCIA E APAREcircNCIA

149

preserva com isso o criteacuterio de verdade que para Platatildeo soacute a teoria (episteacuteme) pode-

ria oferecer Neste sentido a manobra aristoteacutelica assegura agrave arte se manter dentro

do registro ontoloacutegico proposto por Platatildeo Segundo se eacute imitando accedilotildees que o

poeta atraveacutes da possibilidade e da verossimilhanccedila realiza seu trabalho a miacutemesis

natildeo pode mais ser entendida como mera imitaccedilatildeo ou coacutepia como queria Platatildeo Eacute

neste contexto de ultrapassamento da imitaccedilatildeo ordinaacuteria que se faz necessaacuteria uma

anaacutelise da miacutemesis na sua relaccedilatildeo com a teacutekhne e a phyacutesis

413 As relaccedilotildees entre miacutemesis teacutekhne e phyacutesis

Se como afirma Virginia Figueiredo e Joatildeo Camillo Penna (figueiredo penna 2000

p 25) o livro iv de A poeacutetica eacute compreendido pela tradiccedilatildeo como o lugar para se extrair

o conceito de miacutemesis em Aristoacuteteles entendemos que eacute necessaacuterio um consideraacutevel

esforccedilo para aclarar tal conceito Como aponta Claacuteudio Veloso (2004 p 15) ldquoantes de

tudoemlugaralgumAristoacutetelesdefineotermomicroίmicroησις[miacutemesis]rdquoNoentantoWerner

Jaeger(1986p710)indica-nosoutrafontedepesquisadestaquestatildeoldquo[]Aristoacuteteles

define a relaccedilatildeo entre a arte e a natureza dizendo que natildeo eacute esta que a arte imita mas

sim que a arte se inventou para preencher as lacunas da naturezardquo e remete a outra obra

sua Nela Jaeger diz

Eacute uma ideacuteia caracteristicamente aristoteacutelica de que a natureza eacute finalista em mais alto grau inclusive que a arte e que o finalismo que reina no trabalho seja arte ou destreza natildeo eacute senatildeo uma imitaccedilatildeo de finalismo da natureza A mesma ideacuteia acerca da relaccedilatildeo entre as duas coisas se expressa brevemente no livro ii da Fiacutesica que eacute um dos escritos mais antigos de Aristoacuteteles Tambeacutem se faz alusatildeo incidentalmente em outros lugares mas nunca tatildeo bem desenvolvida e articulada como aqui Uma expressatildeo como a seguinte eacute rigorosamente original

ldquonatildeo imita a natureza a arte senatildeo a arte agrave natureza e a arte existe para ajudar a levar a cabo o que deixa de fazer a naturezardquo (jaeger 1946 p 92-93)

Philippe Lacoue-Labarthe (2000 p 257) vai tambeacutem ateacute a Fiacutesica com a mesma in-

tenccedilatildeoldquo[]trata-secommuitacertezadeumadasmaissegurasinterpretaccedilotildeesdateoria

150

aristoteacutelica da mimese tal como a encontramos com efeito quanto ao essencial no livro

b da Fiacutesica (194a)rdquo e diz-nos em seguida

De acordo com o que diz Aristoacuteteles a teacutekhne eacute pensada literalmente como o a-creacutescimo [sic] da phyacutesis quer dizer do aparecer (phaiacutenen) como o crescer o eclodir e o desabrochar (phyacuteein) agrave luz [] Formulado de outro modo apenas a arte (a teacutekhne) eacute capaz de revelar a natureza (a phyacutesis) Ou ainda sem a teacutekh-ne a phyacutesis escapa porque em sua essecircncia a phyacutesis kryptesthai phiacutelei ela adora dissimular-se (lacoue-labarthe 2000 p 257-258)

Considerando tanto estas passagens quanto o texto do livro iv de A poeacutetica aquilo

que eacute um acreacutescimo natildeo pode ser considerado mero arremedo ou duplicaccedilatildeo O apren-

der do homem com as representaccedilotildees por exemplo ldquode animais ferozes e de cadaacuteveresrdquo

(aristoacuteteles 1987 p 203) aponta para um conceito de miacutemesis que busca reassumir

os procedimentos da natureza A miacutemesis estaacute ligada ao real empiacuterico (natildeo eacute coacutepia de

uma realidade inteligiacutevel) e natildeo vai simplesmente reproduzir a natureza porque eacute ativa e

criativa Em outras palavras a miacutemesis em Aristoacuteteles tem fundamento ontoloacutegico

42 Deslocamento do conceito de miacutemesis e sua contribuiccedilatildeo ao design e agrave arte

Com o entendimento de que a miacutemesis ao se expressar na produccedilatildeo das coisas com suas

capacidades criativas explicita seu fundamento ontoloacutegico dois passos importantes para

a tese podem ser dados ao mesmo tempo em que satildeo subsumidos a esse conceito

1ordm A confirmaccedilatildeo do potencial para a miacutemesis ser explorada na anaacutelise do design enquan-

to processo criativo e produtivo Ao delimitar (mesmo que de forma esquemaacutetica e

procurando evitar equiacutevocos hermenecircuticos) os pontos de contato entre os conceitos

de produccedilatildeo e criaccedilatildeo ao tempo de Aristoacuteteles e na atualidade poderemos deslocar

o conceito de miacutemesis para o presente e apropriaacute-lo para o design e para a arte

2ordm Ao apresentar exemplos no design do uso da miacutemesis confirmamos empiricamente

o viacutenculo de natureza ontoloacutegica entre o conceito aristoteacutelico e esse campo

151

Assim o proacuteximo passo eacute direcionar o conceito aristoteacutelico de miacutemesis em sua relaccedilatildeo

original com a arte (teacutekhne) e a natureza (phyacutesis) para uma relaccedilatildeo contemporacircnea que

dividiremos em duas categorias uma exoacutegena por conectar duas esferas distintas design

e natureza e outra endoacutegena para aspectos intriacutensecos ao design Estamos aceitando

como pressuposto que a produccedilatildeo enquanto teacutekhne possa ter seu sentido ampliado ateacute o

da produccedilatildeo (ou criaccedilatildeo a partir de algo) entendida como design na atualidade

Nossa aposta considera o conceito de teacutekhne amplo e flexiacutevel o bastante para poder

adequar-se a esta transposiccedilatildeo trazendo consigo o de miacutemesis Nesse sentido eacute impor-

tante ter em mente como jaacute foi visto no capiacutetulo 2 que teacutekhne e episteacuteme (utilizadas em

diversos contextos da Greacutecia claacutessica como palavras quase sinocircnimas)5 tecircm como uma

de suas acepccedilotildees a de conhecimento universal o que estreita seu viacutenculo com um campo

de pesquisa e de trabalho como o design Analisemos os exemplos

421 A miacutemesis exoacutegena no design acreacutescimo e processo agrave natureza

Diante das diversas possibilidades inerentes agrave miacutemesis em sua vertente aristoteacutelica toma-

remos como ponto de partida duas ideias que o conceito comporta para suportar nossos

argumentos A primeira citada anteriormente eacute a ideia de acreacutescimo Quando em 1941 o

engenheiro George de Mestral enquanto caminhava pelos Alpes voltou sua atenccedilatildeo para

os carrapichos que grudavam em suas meias e no pelo de seu catildeo ele buscava entender

um evento singular da natureza Ao perceber que os ganchos microscoacutepicos dos carrapi-

chos prendiam-se aos minuacutesculos laccedilos do tecido das meias Mestral compreendeu uma

estrateacutegia de reproduccedilatildeo de uma planta que normalmente faz uso do pelo dos animais

para espalhar suas sementes em vastos territoacuterios

5 Luiacutes Felipe Bellintani Ribeiro mostra a aproximaccedilatildeo das atividades da teacutekhne e da episteacuteme quando revela a intenccedilatildeo de Platatildeo no diaacutelogo Iacuteon em distanciar a atividade do poeta (rapsodo) das duas pri-meiras ldquoOra a explicaccedilatildeo eacute que a atividade do rapsodo entendida como arte mimeacutetica natildeo se daacute por teacutechne ou episteacuteme faculdades tipicamente humanas mas por forccedila divina (theiacutea dyacutenamis) e inspiraccedilatildeo divina (theiacutea moira) Enquanto o teacutecnico-epistecircmico discursa soacutebrio nos limites do discernimento (eacutem-phron) exercendo certo domiacutenio sobre o seu praacutegma determinado (a etimologia de episteacuteme remete agrave accedilatildeo de ldquocolocar-se por cimardquo) o rapsodo fala fora de si (eacutek-phron) possuiacutedo (katechoacutemenos) tomado pelo deus (eacuten-theos) entusiasmado (en-thousiaacutezon)rdquo (ribeiro 2006 p 133) Negrito nosso

152

Mestral no entanto foi aleacutem e criou o Velcro um fecho que simula as caracteriacutes-

ticas do carrapicho Mas obviamente muitos anos se passaram entre o vislumbre que

Mestral teve de um novo produto (figura 27) e a conclusatildeo de suas pesquisas entre um

mecanismo de auxiacutelio agrave reproduccedilatildeo de uma planta e um fecho de alto desempenho

vaacuterios elementos e caracteriacutesticas foram acrescentados agrave ideia original para transfor-

maacute-la naquilo que utilizamos em roupas acessoacuterios esportivos e ateacute em componentes

de naves espaciais

Neste caso se usarmos os argumentos de Aristoacuteteles a traduccedilatildeo da estrutura origi-

nal do carrapicho em um objeto produzido pelo homem eacute mimeacutetica na medida em que

reassume de modo exoacutegeno os procedimentos da natureza mas natildeo eacute coacutepia uma vez

que os acreacutescimos (que envolvem estudos pesquisas e soluccedilotildees para diversos problemas)

garantem agrave miacutemesis sua condiccedilatildeo ativa e criativa

Uma segunda ideia constitutiva do conceito de miacutemesis eacute a noccedilatildeo de processo O

poeta e escritor portuguecircs Fernando Pessoa (1967 p 21) atraiacutedo por esse conceito

aristoteacutelico tem uma interpretaccedilatildeo sinteacutetica acerca da miacutemesis que pode nos orientar

ldquoO fim da arte eacute imitar perfeitamente a Natureza Este princiacutepio elementar eacute justo se

natildeo esquecermos que imitar a Natureza natildeo quer dizer copiaacute-la mas sim imitar os seus

Figura 27 Imagem ampliada da estrutura bioloacutegica de um carrapicho (esquerda) e detalhe do projeto de George de Mestral do Velcro para registro de patente da invenccedilatildeo (direita) fontes designculturecombr e google patentscom

153

processosrdquo Assim no proacuteprio exemplo do Velcro podemos perceber como a noccedilatildeo de

processo se sobrepotildee ao desenvolvimento deste produto Mestral dedicou-se dez anos

para aperfeiccediloar sua invenccedilatildeo e adaptar os mecanismos necessaacuterios ao seu processo

de produccedilatildeo industrial

422 A miacutemesis endoacutegena no design adaptaccedilatildeo e evoluccedilatildeo

Mais um aspecto do deslocamento do conceito de miacutemesis complementar agrave relaccedilatildeo exoacute-

gena entre design e natureza eacute o caraacuteter endoacutegeno de realimentaccedilatildeo positiva que cada

produto pode e deve ter na busca para aprimorar-se O Velcro ao longo dos seus mais de

50 anos de existecircncia foi aperfeiccediloado em diversos aspectos A busca por novos materiais

e formas mais eficientes de produccedilatildeo e disposiccedilatildeo de seus componentes satildeo algumas das

inovaccedilotildees que foram implementadas No entanto a miacutemesis se preserva em todas essas

adaptaccedilotildees e mudanccedilas na medida em que a ideia original se manteacutem incorporada ao

produto orientando seu propoacutesito natildeo sendo simplesmente reproduzida (copiada) em

seus aspectos formais e estruturais

Ainda dentro da atuaccedilatildeo endoacutegena podem ocorrer evoluccedilotildees que se distanciam formal

e estruturalmente do produto sem no entanto abrir matildeo dos seus conceitos e propoacutesitos

Um exemplo disso eacute o Slidingly Engaging Fastener (sef) tambeacutem conhecido como New

Velcro e inventado por Leonard Duffy a partir de uma pesquisa de oito anos A estrutura

diferente do sef (figura 28) faz com que ele atenda a uma seacuterie de requisitos do fecho

Velcro aleacutem de ser mais duraacutevel forte silencioso e natildeo reter pelos poeira e odor como

seu antecessor

Tendo chegado a este ponto eacute importante fazer uma correlaccedilatildeo conceitual entre dois

autores distantes na histoacuteria do pensamento mas com questotildees em comum Aristoacuteteles e

Flusser O par teacutekhneepisteacuteme (entendido pelos gregos como habilidade e conhecimento

teoacuterico e desmembrado em ciecircncia teacutecnica e arte) na concepccedilatildeo de Aristoacuteteles se apropria

tanto da natureza quanto dos objetos produzidos pelo homem recorrendo agrave miacutemesis Se

em Aristoacuteteles haacute uma conexatildeo que parte da natureza (phyacutesis) em direccedilatildeo agrave arte (teacutekhne)

154

que imita os processos da primeira resultando em conhecimento humano em Flusser

a conexatildeo ou ldquoponterdquo ocorre em sentido contraacuterio partindo de um dos campos do co-

nhecimento humano o design e avanccedilando ateacute a natureza Neste contexto se justifica

com mais intensidade procurar compreender essa acepccedilatildeo da miacutemesis eacute ir ateacute um dos

fundamentos mesmos da nossa cultura resgatando um sentido ou sentidos esquecidos e

transfigurados com o tempo na histoacuteria do pensamento ocidental A figura 29 apresenta

as conexotildees que derivam da relaccedilotildees entre phyacutesis episteacuteme e teacutekhne se efetivam atraveacutes do

conceito de miacutemesis e seguem em direccedilatildeo ao design Tal conceito uma vez incorporado

ao design amplia as possibilidades de fundamentaccedilatildeo teoacuterica deste campo

Figura 28 Imagem com detalhe do projeto de Leonard Duffy do New Velcro para registro de patente da invenccedilatildeo fonte google patentscom

TECNOLOGIA

asymp aC dC 85 dC dCGreacutecia Ocidente

EPISTEacuteME

TEacuteKHNE

PHYacuteSIS NATUREZA

CIEcircNCIA

TEacuteCNICA

MIacuteMESIS

ARTE

POacuteIESIS

DESIGN

Figura 29 Linha do tempo que mostra as trecircs conexotildees que partem da phyacutesis episteacuteme e teacutekhne possibili-tando sua ligaccedilatildeo com o design na atualidade atraveacutes do conceito de miacutemesis fonte autor

155

Dado esse passo atualizar a relaccedilatildeo da miacutemesis com a teacutekhne direcionando-as ao

design nos permite operar com um conceito que pela sua riqueza de possibilidades

pode ser usado para a interpretaccedilatildeo e entendimento de diversas questotildees assim como fez

Aristoacuteteles em sua eacutepoca Quando pensamos que campos como a biocircnica e a ciberneacutetica

(para citar apenas dois) atuam de forma mimeacutetica ao transferirem conhecimentos da

biologia para diversas outras aacutereas incluindo o design a compreensatildeo do conceito de

miacutemesis cresce em importacircncia

Paralelamente a esses avanccedilos de caraacuteter mimeacutetico as instituiccedilotildees de ensino e o mer-

cado tambeacutem podem incorporar o modelo imitativo enquanto preceitos e dogmas de

caraacuteter mais reprodutivo ou de coacutepia Dijon De Moraes (2006) em seu livro Anaacutelise do

design brasileiro entre mimese e mesticcedilagem dedica um capiacutetulo inteiro agrave investigaccedilatildeo

da imitaccedilatildeo do modelo racional funcionalista alematildeo (originaacuterio da Bauhaus e da Escola

de Ulm) e agraves consequecircncias destas referecircncias (positivas e negativas) para o design local

No mercado esta praacutetica pode ser nomeada com justa razatildeo de coacutepia quando por

exemplo uma patente expira ou natildeo eacute respeitada e os concorrentes simplesmente reproduzem

o que jaacute existe muitas vezes com perda na qualidade final do produto Neste sentido pensar

a partir do crivo ontoloacutegico nos permite tambeacutem compreender a distinccedilatildeo entre criaccedilatildeo

e coacutepia em design como um rebaixamento ontoloacutegico da imitaccedilatildeo em relaccedilatildeo ao original

RetomandoalgumaspalavrasdeAristoacuteteles(1987p203)ldquo[]detodoseacuteele[o

homem]omaisimitadoreporimitaccedilatildeoaprendeasprimeirasnoccedilotildeesrdquoNatildeodeixadeser

curioso o fato de que se levarmos a afirmaccedilatildeo de Aristoacuteteles ao peacute da letra o esforccedilo de

trazer o conceito de miacutemesis para o presente e para sua relaccedilatildeo com o design tambeacutem eacute

uma accedilatildeo mimeacutetica

423 A miacutemesis complementar na arte saiacuteda para o dilema de Euriacutepedes

Se nas palavras de Aristoacuteteles aprendemos as primeiras noccedilotildees atraveacutes da miacutemesis pode-

mos compreender esse conceito com um tipo de procedimento que pode ser efetuado por

qualquer ser humano Por mais que a miacutemesis em sua acepccedilatildeo aristoteacutelica possa explicar

diversas operaccedilotildees do processo criativo no design na arte e em outros campos existem

156

problemas que podem tambeacutem ser associados com a atitude mimeacutetica Em outras palavras

com a miacutemesis atraiacutemos por um lado vaacuterias possibilidades de explicaccedilatildeo do processo de

criaccedilatildeo mas por outro encontramos questionamentos a esse tipo de operaccedilatildeo Arthur

Danto (2005) por exemplo lanccedila matildeo de um dilema nietzscheano para demonstrar os

limites da apropriaccedilatildeo da miacutemesis no universo da arte No entanto acreditamos que a

saiacuteda para a contradiccedilatildeo que nos apresenta Danto se encontra dentro da proacutepria miacutemesis

em uma de suas caracteriacutesticas jaacute apresentadas a de atuar como processo Como veremos

enquanto um processo a miacutemesis aleacutem de escapar dessa contradiccedilatildeo faz a mediaccedilatildeo

com os demais conceitos aristoteacutelicos explorados por Umberto Eco e que datildeo o fecho

agraves anaacutelises deste capiacutetulo

No capiacutetulo inicial do livro A transfiguraccedilatildeo do lugar-comum Arthur Danto indaga

sobre o que eacute uma obra de arte Sua intenccedilatildeo eacute compreender a arte contemporacircnea como

manifestaccedilatildeo cultural com todas as suas caracteriacutesticas exclusivas mas que se conecta e se

entrelaccedila com diversas outras aacutereas da cultura de nosso tempo Danto introduz este pri-

meiro problema trabalhando a questatildeo da representaccedilatildeo atraveacutes do conceito de imitaccedilatildeo6

O que buscamos neste primeiro momento eacute uma possiacutevel saiacuteda para o questionamento de

Danto (apresentado sob a forma de um raciociacutenio nomeado por ele Dilema de Euriacutepedes)

correlacionando-o com algumas proposiccedilotildees de Aristoacuteteles ligadas ao conceito de miacutemesis

Em Obras de arte e meras coisas reais capiacutetulo 1 do seu livro Danto analisa inuacuteme-

ros conceitos passando pelas ideias de pensadores artistas e obras de arte ele recorre

a Wittgenstein depois a Platatildeo Soacutecrates Shakespeare Sartre Van Gogh e Aristoacuteteles

Uma das questotildees que estatildeo na origem deste trajeto eacute qual a natureza da fronteira entre

arte e natildeo arte O ponto especiacutefico que nos interessa comeccedila quando Danto ao tratar do

problema da imitaccedilatildeo conclui que a mesma ldquotem a funccedilatildeo mais importante de representar

as coisas reaisrdquo (danto 2005 p 55) Eacute importante salientar aqui que a expressatildeo ldquocoisas

reaisrdquo sinaliza a intenccedilatildeo de Danto de manter sua criacutetica agrave miacutemesis aristoteacutelica dentro

dos limites da ontologia Assim em seguida ele afirma que a representaccedilatildeo conteacutem uma

6 Com relaccedilatildeo agrave associaccedilatildeo entre representaccedilatildeo e imitaccedilatildeo Timo Maran em artigo publicado em 2003 (Mimesis as a phenomenon of semiotic communication) analisa diversas interpretaccedilotildees deste conceito indo aleacutem do ciacuterculo estrito da tradiccedilatildeo filosoacutefica e investigando a miacutemesis enquanto um fenocircmeno de comunicaccedilatildeo

157

ambiguidade e para diferenciar os dois sentidos recorre agrave Nietzsche Analisemos como

ele faz tal aproximaccedilatildeo

No livro O nascimento da trageacutedia (a mesma obra em que no capiacutetulo 2 apresentamos

a criacutetica nietzschiana agrave ciecircncia atraveacutes da arte) Nietzsche associa a origem da trageacutedia

grega aos rituais dionisiacuteacos Nesses rituais havia a crenccedila de que Dioniacutesio sempre se fazia

presente este seria o primeiro sentido de representaccedilatildeo uma (re)apresentaccedilatildeo Com o

passar do tempo o teatro traacutegico grego substituiu os rituais por reproduccedilatildeo simboacutelica

Assim o deus natildeo mais aparecia mas era representado por algueacutem (figura 30) Este seria

o segundo sentido de representaccedilatildeo algo que estaacute no lugar de outro

Dessa forma para Nietzsche Euriacutepedes destruiu a trageacutedia ao introduzir elementos

que faziam com que a representaccedilatildeo teatral se tornasse mais proacutexima da realidade possiacutevel

Esse eacute o programa euripidiano (que sacrifica uma parte do misteacuterio) e a sua contrapartida

eacute fazer arte que natildeo tenha correspondecircncia na realidade consequentemente natildeo con-

duzindo agrave prevalecircncia da imitaccedilatildeo Danto resume assim os dois programas (figura 31)

O Dilema de Euriacutepedes consiste em que uma vez completado o programa mimeacutetico o produto fica tatildeo parecido com o que se encontra na realidade que exatamente por ser idecircntico ao real cabe perguntar o que o torna uma obra de arte A tentativa de fugir ao dilema exagerando os elementos natildeo-mimeacuteticos purgados em nome do programa produz uma coisa tatildeo diferente da realidade que essa pergunta perde sentido Mas permanece outra questatildeo igualmente importante dado que no final obtemos algo que eacute descontiacutenuo com a realidade o que ainda o distingue como arte (danto 2005 p 68)

RITUAIS DIONISIacuteACOS

DOIS CONCEITOS DE REPRESENTACcedilAtildeO

Dioniacutesio natildeo presente representaccedilatildeo simboacutelica

TEATRO TRAacuteGICO GREGO

Dioniacutesio presente representaccedilatildeo como (re)apresentaccedilatildeo

Figura 30 Esquema da oposiccedilatildeo entre representaccedilatildeo e reapresentaccedilatildeo conforme a criacutetica nietzschiana ao programa euripidiano fonte autor

158

Mais agrave frente Danto afirma que

Talvez seja mesmo impossiacutevel escapar desse dilema enquanto continuarmos tentando definir a arte em funccedilatildeo de aspectos comparaacuteveis ou contrastantes com os do mundo real Mas nesse caso eacute bem possiacutevel que o dilema seja fa-talmente inescapaacutevel pois que outra coisa aleacutem de aspectos comparaacuteveis ou contrastantes poderia servir de base para a construccedilatildeo de uma teoria da arte (danto 2005 p 70)

Danto entatildeo sugere uma saiacuteda para esse dilema as convenccedilotildees Tudo aquilo que a

convenccedilatildeo aceitar como obra de arte eacute obra de arte Esta saiacuteda ele jaacute havia apontado no

iniacutecio do capiacutetulo quando o pintor J (um personagem do livro) declara que sua super-

fiacutecie vermelha eacute uma obra de arte Mas essa ldquosaiacutedardquo jaacute natildeo havia satisfeito Danto naquele

momento do texto e obviamente ainda continua natildeo o satisfazendo mdash nem a quem quer

que busque compreender o que estaacute em questatildeo Eacute uma soluccedilatildeo precaacuteria que natildeo nos

satisfaz em termos de fundamentaccedilatildeo

Neste ponto da argumentaccedilatildeo de Danto propomos uma via intermediaacuteria entre o

seus programas mimeacutetico e contramimeacutetico Se pudermos encontrar algo mediador entre

continuidade e descontinuidade com o real talvez uma parte da questatildeo possa tornar-se

mais clara Nossa intenccedilatildeo eacute escapar da contradiccedilatildeo buscando em Aristoacuteteles nos proacute-

prios elementos associados ao seu conceito de miacutemesis condiccedilotildees que possam nos ajudar

a construir uma saiacuteda para a aporia instalada no acircmbito da arte

Assim retomando a miacutemesis em Aristoacuteteles e uma de suas caracteriacutesticas fundamen-

tais a de acreacutescimo poderiacuteamos dizer que natildeo se trata de a arte ser nem contiacutenua nem

descontiacutenua mas de ser complementar com o real Desta maneira ao inverter nosso olhar

PROGRAMA MIMEacuteTICO

O DILEMA DE EURIacutePEDES

Arte descontiacutenua com o real

PROGRAMA CONTRAMIMEacuteTICO

Arte contiacutenua com o real

Figura 31 Esquema do Dilema de Euriacutepedes e a dificuldade segundo Danto de se encontrar uma definiccedilatildeo para obra de arte fonte autor

159

sobre a questatildeo o fato de a teoria da contramimese estar ldquoconceitualmente entrelaccedilada

com a teoria que rejeita isto eacute a proacutepria teoria da mimeserdquo (danto 2005 p 67) natildeo

seria mais um problema como considera Danto mas parte da soluccedilatildeo (figura 32)

43 Ampliaccedilatildeo das determinaccedilotildees ontoloacutegicas nas relaccedilotildees entre design e arte

A soluccedilatildeo anterior atraveacutes da complementaridade tem caraacuteter parcial uma vez que se

restringe ao universo da arte Eacute necessaacuterio seguir em frente para saltar do acircmbito da arte e

estabelecer a reflexatildeo dentro do acircmbito do design e vice-versa Quase ao final do primeiro

capiacutetulo Danto apresenta-nos o resumo de algumas questotildees que jaacute havia desenvolvido

em momentos anteriores Uma delas acreditamos tambeacutem pode ser respondida pela

nossa proposta de soluccedilatildeo mimeacutetica mas como veremos traz um elemento a mais A

perguntadesteautordecaraacutetereminentementeontoloacutegicoeacuteldquo[]seraacutequecadanovo

item da realidade mdash digamos uma nova espeacutecie ou uma invenccedilatildeo mdash deve ser considerado

uma contribuiccedilatildeo para a arterdquo (danto 2005 p 67)

Se como vimos novos objetos de arte podem natildeo ser simplesmente descontiacutenuos

com a realidade mas complementares e revelar aspectos desta realidade que de outro

modo estariam ocultos esta segunda pergunta estaacute em parte respondida um novo item

da realidade pode ser considerado uma obra de arte No entanto porque usamos o pode

e natildeo o deve a questatildeo ainda natildeo se esgotou Ainda se poderia levantar mais uma duacutevida

a partir do que estabelecemos ao final do capiacutetulo 2 outros objetos como os instrumentos e

os dispositivos de novas tecnologias entre os quais o design eacute incorporado tambeacutem satildeo capa-

zes de revelar novos aspectos da realidade Seriam eles tambeacutem objetos de arte Aristoacuteteles

Arte complementar com o real

MIacuteMESISCONTRAMIacuteMESIS

SAIacuteDA DO DILEMA

Figura 32 Esquema do entrelaccedilamento da miacutemesis e da contramiacutemesis com a complementaridade solucio-nando o dilema entre continuidade e descontinuidade da arte com o real fonte autor

160

elabora conceitos que mais uma vez natildeo satildeo oferecidos em A poeacutetica mas que podem

nos auxiliar na resposta

431 Da arte ao design o conceito de ldquofim em si mesmordquo

Em outra obra de sua autoria A poliacutetica Aristoacuteteles faz uma distinccedilatildeo entre coisas uacuteteis

e coisas belas que visa natildeo especificamente as artes mas as atividades humanas em geral

Mantendo o espiacuterito de apropriaccedilatildeo que ateacute agora nos conduziu podemos fazer um uso

correlato dessa distinccedilatildeo para a questatildeo de Danto sobre quais itens da realidade podem

ser considerados obra de arte Como afirma Aristoacuteteles

Toda a vida estaacute dividida em trabalho e oacutecio guerra e paz e dentre as actividades umas satildeo necessaacuterias e uacuteteis e outras satildeo dignas [belas] A guerra existe em vista da paz o trabalho em funccedilatildeo do oacutecio as actividades necessaacuterias e uacuteteis em vista das honrosas [belas] (aristoacuteteles 1998 p 537) Itaacutelicos nossos

Fernando Santoro (2006 p 78) traduz as palavras ldquodignasrdquo e ldquohonrosasrdquo por ldquobelasrdquo

Concordando com esse autor privilegiamos tal sentido uma vez que no texto em grego

constam ldquoτὰ καλάrdquo (taacute kalaacute) e ldquoτῶν καλῶνrdquo (toon kaloon) palavras que nas suas primeiras

acepccedilotildees em dicionaacuterio tecircm o sentido de belo Atentando a esse ponto notemos que Aris-

toacuteteles associa o uacutetil e o negoacutecio de um lado e o belo e o oacutecio de outro Obviamente na

atualidade a arte jaacute natildeo busca mais as coisas simplesmente belas7 Mas uma caracteriacutestica

7 Quando Aristoacuteteles fala de coisas belas em conexatildeo com o oacutecio eacute importante compreender conforme afirma Fernando Santoro (2006 p 74) que para este pensador grego as coisas belas estatildeo mais ligadas agraves melhores accedilotildees humanas (principalmente a accedilatildeo teoreacutetica e contemplativa) do que propriamente aos objetos produzidos pelas diversas artes Eacute relevante tal distinccedilatildeo uma vez que a arte grega (teacutekhne) enquanto ofiacutecio era um trabalho pelo qual oleiros escultores pintores arquitetos e outros profissio-nais recebiam remuneraccedilatildeo Essa praacutetica que na Idade Meacutedia tinha como principais patrocinadores a Igreja e a Nobreza posteriormente passou a contar com os mecenas da crescente classe comerciante e natildeo perdeu seu caraacuteter de negoacutecio ateacute os dias de hoje Se uma parte dos artistas atuais aqueles que atuam no chamado campo das belas-artes entendem que sua criaccedilatildeo soacute passa agrave condiccedilatildeo de produto a ser negociado quando termina e vai para as matildeos do marchand natildeo significa que assim o seja numa sociedade capitalista por excelecircncia A proacutepria expressatildeo ldquomercado internacional de obras de arterdquo comumente utilizada no meio cultural e econocircmico faz pensar que um artista que deseje ou necessite sobreviver de sua criaccedilatildeo natildeo se arriscaria a produzir arte que natildeo estivesse de alguma maneira enga-jada no espiacuterito e tendecircncias de seu tempo Sob esse ponto de vista arte tambeacutem eacute negoacutecio

161

essencial da visatildeo aristoteacutelica ainda se preserva na arte o seu fim continua sendo ela mesma

Um objeto de arte eacute para ser fruiacutedo independentemente do modo como isso se decirc seja com

apreciaccedilatildeo culto ou estranhamento Nesse sentido podemos dizer que a arte natildeo eacute uacutetil

Mas e quanto ao que eacute uacutetil que segundo Aristoacuteteles tecircm seu fim e funccedilatildeo fora dele

mesmo Poderiacuteamos afirmar que o fim de um martelo (a sua utilidade se bem projetado)

eacute pregar pregos Mesmo um instrumento mais elaborado como um computador que pelo

seu proacuteprio conceito transformou-se em algo que exerce muacuteltiplas tarefas ainda assim

teria sua finalidade nos inuacutemeros trabalhos que executa e natildeo nele mesmo Neste sentido

a concepccedilatildeo de que a forma segue a funccedilatildeo defendida pelo modernismo no seacuteculo xx e

seus seguidores racionalistas aponta nesta direccedilatildeo

Poreacutem se nos atentarmos um pouco mais para as complexas relaccedilotildees que estabele-

cemos com as coisas em nossa sociedade contemporacircnea aqueles objetos caracterizados

primariamente como instrumentos como vimos com Rafael Cardoso se recobrem de

inuacutemeros valores carregando significados que ultrapassam a mera execuccedilatildeo de um trabalho

com um fim exterior a eles mesmos Um espremedor de frutas projetado por Philippe

Starck (figura 33) concebido para retirar o suco das frutas (ou pelo menos seu projeto

teve como uma das motivaccedilotildees uma utilidade especiacutefica no mundo humano) talvez passe

o resto dos dias em cima de uma mesa ou estante em uma residecircncia abandonado a uma

exposiccedilatildeo meramente esteacutetica

Figura 33 Fotografia do espremedor de frutas Juicy Salif (1990) de Philippe Starck projetado para a empresa italiana Alessi fonte alessicom

162

Nesse caso extremo poreacutem a cada dia mais comum o espremedor se ainda natildeo eacute uma

obra de arte institucionalizada pelo menos no acircmbito privado seu proprietaacuterio assim o

considera Mas na circunstacircncia de um artefato desses ser utilizado para espremer frutas

eacute de se supor (pelo menos eacute o que esperam os designers) que seu usuaacuterio contemporacircneo

tenha uma experiecircncia que vaacute aleacutem do simples manejo de um instrumento bem projetado

e uacutetil para um fim fora dele mesmo Este algo mais supostamente presente em um ins-

trumento pode natildeo ser fruiccedilatildeo no sentido artiacutestico mas aponta para uma caracteriacutestica

que eacute proacutepria da arte e natildeo das coisas uacuteteis o fim em si mesmo

A divisatildeo aristoteacutelica fundada no belo versus uacutetil se destaca por dois motivos Primei-

ro porque sinaliza-nos que a questatildeo eacute mais complexa do que a princiacutepio afigura-se em

uma dicotomia Segundo e mais importante com a ampliaccedilatildeo e o aprofundamento do

problema (paralelamente agrave elaboraccedilatildeo do conceito de fim em si mesmo que permite uma

maior discriminaccedilatildeo entre arte e design) tal investigaccedilatildeo detecta e expotildee caracteriacutesticas

anteriormente atribuiacutedas ao universo exclusivo da arte e que se encontram apoacutes a ava-

liaccedilatildeo imbricadas ao design Isso poderia ser encarado como um problema para aqueles

que procuram apenas a delimitaccedilatildeo desses campos mas em nossa perspectiva eacute o ponto

de inflexatildeo que indica um viacutenculo (ainda natildeo completamente compreendido) que parte

do universo artiacutestico em direccedilatildeo ao design Nesse sentido poderiacuteamos dizer que o fim

em si mesmo eacute outro liame de caracteriacutesticas semelhantes agrave ldquoPonte Flusserianardquo mas com

um sentido inverso pois um elemento essencial da arte e se encaminha para o design na

expansatildeo dos domiacutenios deste campo

A figura 34 apresenta o graacutefico com as conexotildees que partem do design defendidas

na proposta de Flusser (linhas marrom) Aleacutem delas duas conexotildees (linhas alaranjadas)

partem da arte para o design A linha 1 jaacute haviacuteamos estabelecido anteriormente no capiacutetulo

2 com o entendimento que a arte eacute historicamente uma das disciplinas que contribuiacute-

ram para a formaccedilatildeo do design A linha 2 acaba de se estabelecer com a compreensatildeo do

conceito de fim em si mesmo

Assim avanccedilamos mais dois passos no caminho de nossa hipoacutetese vimos primei-

ramente que o conceito de miacutemesis eacute adequado para a compreensatildeo de objetos onde

a funcionalidade eacute preponderante como o caso do velcro e em segundo lugar que o

163

conceito de fim em si mesmo (de modo complementar ao de miacutemesis) vai ao encontro

das possibilidades da experiecircncia do usuaacuterio com os objetos O exemplo do espremedor eacute

modelar na medida em que o design na contemporaneidade cada vez mais explora o fim

em si mesmo em busca de produzir experiecircncias ultrapassando os atributos funcionais e

instrumentais de seus objetos

432 Da arte ao design o discurso aberto e o persuasivo epidiacutectico

Depois de superar o Dilema de Euriacutepedes com a aposta numa complementaridade extraiacuteda

do conceito de miacutemesis aristoteacutelico o fecho da estrateacutegia anterior foi a partir de uma

visatildeo geral das atividades humanas apropriar-nos das distinccedilotildees (tambeacutem aristoteacutelicas)

dos pares de conceitos de uacutetilnegoacutecio e belooacutecio para identificar em quais dessas catego-

rias nossos objetos de estudo se alinham Mas o que percebemos eacute que arte e design pela

proacutepria complexidade inerente aos mesmos satildeo nuanccedilados nos seus pontos de encontro

similaridades e distanciamentos de fronteiras conceituais Assim avanccedilaremos mdash operando

da mesma maneira analiacutetica e mantendo o foco nos fundamentos ontoloacutegicos mdash sobre

FIM EM SI MESMO

asymp aC dC 7 dC 85 dC dCGreacutecia Ocidente

EPISTEacuteME

TEacuteKHNE

PHYacuteSIS NATUREZA

CIEcircNCIA

TEacuteCNICA

ARTE

TECNOLOGIA

POacuteIESIS

1 2

DESIGN

Figura 34 Linha do tempo indicando o conceito de fim em si mesmo (linha 2) em um caminho inverso ao da ldquoPonte Flusserianardquo partindo da arte em direccedilatildeo ao design fonte autor

164

outro elemento constituinte das atividades humanas a comunicaccedilatildeo A busca eacute por uma

perspectiva que amplie nosso entendimento sobre a questatildeo

Em seu livro Obra aberta Umberto Eco atento aos pressupostos de comunicaccedilatildeo da

arte e de outros campos estabelece uma distinccedilatildeo entre discurso aberto e discurso persua-

sivo Para Eco (1988 p 279-280) o discurso aberto tem duas caracteriacutesticas principais

eacute ambiacuteguo e envia-nos natildeo agraves coisas mesmas mas ao modo como o discurso as expressa

Essas duas caracteriacutesticas segundo ele satildeo proacuteprias da arte Essa ambiguidade do discurso

aberto que natildeo tem a mesma conotaccedilatildeo da anaacutelise anterior de Danto no Dilema de Eu-

riacutepedes reforccedila a distinccedilatildeo baacutesica entre arte e campos que se supotildeem direcionados apenas

agrave objetividade como a ciecircncia enquanto o discurso da arte eacute equiacutevoco o desses campos eacute

uniacutevoco ou pelo menos pretende ser

Em primeiro lugar o discurso da arte eacute ambiacuteguo porque natildeo pretende oferecer uma

definiccedilatildeo da realidade que seja plena e cabal

[] o discurso artiacutestico nos coloca numa condiccedilatildeo de ldquoestranhamentordquo de ldquodespaisamentordquo apresenta-nos as coisas de um modo novo para aleacutem dos haacutebitos conquistados infringindo as normas da linguagem agraves quais haviacuteamos sido habituados As coisas de que nos fala nos aparecem sob uma luz estranha como se as viacutessemos agora pela primeira vez precisamos fazer um esforccedilo para compreendecirc-las para tornaacute-las familiares precisamos intervir com atos de escolha construir-nos a realidade sob o impulso da mensagem esteacutetica sem que esta nos obrigue a vecirc-la de um modo predeterminado Assim a mi-nha compreensatildeo difere da sua e o discurso aberto se torna a possibilidade de discursos diversos e para cada um de noacutes eacute uma contiacutenua descoberta do mundo (eco 1988 p 280)

Como afirma Eco (1988 p 280) a mensagem que proveacutem do discurso aberto natildeo se

consuma sempre respondendo diversamente para cada um que tenha acesso ao discurso

Talvez em parte por causa dessa caracteriacutestica noacutes retornamos mais de uma vez para a fruiccedilatildeo

de uma mesma obra de arte E estando essa obra carregada de possibilidades discursivas

jaacute que eacute ambiacutegua sempre nos atingiraacute e nos ofereceraacute algo novo em sua apreciaccedilatildeo

Em segundo lugar o discurso da arte vai em direccedilatildeo ao modo como expotildee seus ob-

jetos e natildeo aos objetos mesmos Natildeo importa por exemplo se uma maccedilatilde pintada em

uma natureza morta assemelha-se mais ou menos com uma maccedilatilde real O que importa eacute

165

que ela se abre para um modo diverso de percepccedilatildeo e revela sempre algo mais Este modo

diverso de percepccedilatildeo que o discurso aberto propicia por sua capacidade de revelar algo

mais natildeo busca a simples imitaccedilatildeo Assim um elemento importante a ser ressaltado eacute que

tal caracteriacutestica ainda que natildeo explicitada ou pretendida por Eco estabelece a conexatildeo

dessa categoria de discurso com o conceito de miacutemesis em sua vertente aristoteacutelica

Em um exemplo distinto afastando-nos do modelo representacionista de arte um

ready made de Duchamp como A fonte (figura 35) natildeo tem a intenccedilatildeo ou natildeo assume

como primeira intenccedilatildeo enviar-nos ao objeto que a originou isto eacute a um urinol Como

diz Eco a arte ldquonatildeo quer agradar e nem consolar mas colocar problemas renovar a nossa

percepccedilatildeo e o nosso modo de compreender as coisasrdquo (eco 1988 p 280)

Quando vai tratar do discurso persuasivo Umberto Eco lembra-nos que o primeiro

teoacuterico a abordar essa categoria de mensagem foi Aristoacuteteles ao estudar as suas diversas

modalidades na Arte retoacuterica Tanto quanto em A poeacutetica Aristoacuteteles escreve esse tratado

visando ao mesmo tempo descrever um determinado tema e prescrever maneiras de uti-

lizar as teacutecnicas advindas do seu estudo descritivo Analisemos como Eco apresenta-nos

a divisatildeo que Aristoacuteteles faz para o discurso persuasivo

Figura 35 Fotografia de A fonte (1917) de Marcel Duchamp fonte tateorg

166

[] Persuasivos satildeo o discurso judiciaacuterio o discurso poliacutetico e o discurso da propaganda [] Ele [Aristoacuteteles] examinou os modos do discurso deliberativo (poliacutetico) judiciaacuterio e epidiacutetico (ieacute o discurso em louvor ou em reprovaccedilatildeo de qualquer coisa diriacuteamos hoje ldquoo discurso publicitaacuteriordquo) e prescreveu as regras de um discurso que partindo de ldquoopiniotildees comunsrdquo leve o ouvinte a assentir a concordar com aquele que fala Nesse sentido o discurso persuasivo quer convencer o ouvinte com base naquilo que ele jaacute sabe jaacute deseja quer ou teme O discurso persuasivo tende a confirmar o ouvinte nas suas opiniotildees e conven-ccedilotildees Natildeo lhe propotildee nada de novo natildeo o provoca mas o consola assim hoje a publicidade me induz a comprar aquilo que eu jaacute desejo e a desejar aquilo que natildeo desejo mas responde agraves minhas tendecircncias secretas fotonovelas e histoacuterias em quadrinhos me fazem rir chorar ou estremecer com os problemas de sempre os sinais de traacutefego me levam a parar ou a passar referindo-se a necessidades elementares de seguranccedila ao medo do acidente ao temor de uma multa (eco 1988 p 281) Itaacutelico nosso

Nessa citaccedilatildeo algo que nos chama a atenccedilatildeo satildeo os exemplos que Eco oferece para as

classes de discurso persuasivo de Aristoacuteteles Particularmente o epidiacutectico ou demonstra-

tivo eacute o que nos interessa por uma de suas caracteriacutesticas o elogio Natildeo eacute difiacutecil associar o

discurso epidiacutectico ao discurso subjacente ao design principalmente depois do passo dado

por Umberto Eco ao associaacute-lo agrave publicidade E podemos usar os mesmos argumentos de

Eco da citaccedilatildeo anterior mudando apenas o sujeito da oraccedilatildeo de publicidade para design

e afirmar que o design ldquome induz a comprar aquilo que eu jaacute desejo e a desejar aquilo que

natildeo desejo mas responde agraves minhas tendecircncias secretasrdquo

Assim aproveitando ainda as palavras de Eco uma vez que o discurso epidiacutectico

responde tambeacutem agraves nossas ldquotendecircncias secretasrdquo cabe ao design se antecipar a elas e criar

produtos jaacute inconscientemente desejados pelos consumidores E isso o design que se quer

estrateacutegico e que atua na relaccedilatildeo produtoconsumidorusuaacuterio sabe fazer Sabe inclusive

colocar certo ldquosaborrdquo de discurso aberto em seus produtos para atrair o consumidor e

futuro usuaacuterio ansioso por interagir criar ele mesmo sua obra personalizada e ter uma

experiecircncia iacutempar ao utilizaacute-lo para fins especiacuteficos ou natildeo Neste sentido a compreensatildeo

desses discursos aponta para uma resposta aquele algo mais detectado por noacutes anterior-

mente e atribuiacutedo a uma parcela de fim em si mesmo deslocado da esfera da arte pode se

explicar por meio da introduccedilatildeo de caracteriacutesticas do discurso aberto no design Foi o que

constatamos anteriormente com o espremedor de frutas o que conceitualmente sinaliza

167

para trabalhos como o de Philippe Starck enquanto referecircncia concreta da incorporaccedilatildeo

do discurso aberto ao universo do design

A figura 36 traz uma siacutentese da subseccedilatildeo atual Por um lado representa o movimento do

discurso aberto de Eco que parte da arte em direccedilatildeo ao design combinando seus atributos

com os conceitos aristoteacutelicos de miacutemesis (conexatildeo identificada na paacutegina 165) e de fim em

si mesmo determinada no paraacutegrafo anterior Por outro incorpora o discurso persuasivo

epidiacutectico proveniente da Retoacuterica de Aristoacuteteles no interior do design potencializando

as accedilotildees deste campo tambeacutem no acircmbito dos conceitos de miacutemeses e de fim em si mesmo

433 Do design agrave arte a metaacutefora epistemoloacutegica e os objetos sensiacuteveis

A descriccedilatildeo da subseccedilatildeo anterior elucida somente parte da questatildeo uma vez que satisfaz

somente um dos sentidos da relaccedilatildeo Aquele em que o discurso aberto proacuteprio da arte se

encaminha em direccedilatildeo ao design e pode se estabelecer em seu interior Resta ainda pensar

se ocorre o inverso eacute possiacutevel que o discurso persuasivo proacuteprio do design seja de algum

modo apropriado pela arte De novo Umberto Eco fornece subsiacutedios para iniciarmos

este segundo caminho

Atento a determinadas relaccedilotildees que se estabelecem no interior da cultura Eco percebe

a influecircncia que teorias cientiacuteficas exercem sobre grupos especiacuteficos na sociedade Entre

eles encontram-se o dos artistas interessados nos rumos das ciecircncias suas descobertas e

nas mudanccedilas culturais que as mesmas geram Tal interesse segundo Eco os conduz a

Figura 36 Esquema das origens e movimentos dos discursos aberto e persuasivo em suas conexotildees com a arte a comunicaccedilatildeo e o design fonte autor

ARISTOacuteTELESDISCU

RSO

ABER

TO

MIacuteMESIS + F

IM E

M SI

MESMO

DISCURSO PERSUASIVO

EPIDIacuteTICO

ECOARTE

RETOacuteRICA

DESIGN

168

proporem poeacuteticas baseadas nessas concepccedilotildees Na busca por explicar essa relaccedilatildeo entre

metodologia cientiacutefica e poeacutetica Eco sugere que ldquotoda forma artiacutestica pode ser encarada

[]comometaacuteforaepistemoloacutegicardquo(eco 1988 p 54) Itaacutelico nosso Assim segundo ele

em cada eacutepoca a arte incorpora por meio de metaacuteforas o modo pelo qual tanto a ciecircncia

quanto a cultura moldam as concepccedilotildees da realidade Em seguida Eco corrobora sua

hipoacutetese com exemplos posteriores agrave Idade Meacutedia ateacute o seacuteculo passado correlacionando

de modo plausiacutevel as poeacuteticas de alguns periacuteodos com as tendecircncias da ciecircncia

Natildeo eacute imprescindiacutevel concordarmos com o caraacuteter de necessidade da proposta de

Eco (explicitado com o adjetivo ldquotodardquo da citaccedilatildeo anterior) para admitirmos a plausibi-

lidade de sua concepccedilatildeo Nem tampouco eacute necessaacuterio aderirmos agrave sua visatildeo de que no

seacuteculo xx o conceito de complementaridade8 da mecacircnica quacircntica assume o posto de

ldquometaacutefora epistemoloacutegicardquo para diversos modelos adotados de poeacuteticas Eacute preciso cautela

com tal constructo evitando polarizar ou estreitar as possibilidades do universo artiacutestico

de uma eacutepoca em torno de programas cientiacuteficos No nosso entendimento o interesse

pela diversidade que eacute proacuteprio da arte conduz agrave incorporaccedilatildeo e exploraccedilatildeo de novas

descriccedilotildees da realidade propostas pela ciecircncia como ocorre tambeacutem de um modo geral

com a cultura Aleacutem disso mesmo admitindo a concepccedilatildeo de metaacutefora epistemoloacutegica

como capaz de influenciar pelo menos em parte os rumos da arte esse caminho que

parte da ciecircncia em direccedilatildeo agrave arte natildeo explica o segundo sentido da relaccedilatildeo que vai do

design ateacute agrave arte pois apesar de termos em conta a relevacircncia da objetividade no design

natildeo o entendemos como ciecircncia estrita Em outras palavras uma vez que chegamos no

capiacutetulo passado agraves transposiccedilotildees da antinomia kantiana para o campo do design natildeo

podemos simplesmente substituir naquela formulaccedilatildeo o conceito de ciecircncia pelo de design

E mesmo que isso fosse possiacutevel tal recurso natildeo abarcaria um dos componentes essenciais

de nossa proposta a saber seu vieacutes ontoloacutegico Mas essa caracteriacutestica pode ser resgatada

se retornarmos a um autor que natildeo abre matildeo da ontologia Assim deixemos essa parte

8 Sendo o princiacutepio de complementaridade da fiacutesica estabelecido a partir de descriccedilotildees experimentais de sistemas quacircnticos que se excluem mas descrevem aspectos complementares do fenocircmeno fiacutesico (como a dualidade entre onda e partiacutecula) Eco considera que na arte contemporacircnea de forma cor-relata as diversas possibilidades interpretativas se complementam e tambeacutem se excluem Jaacute em nossa proposta fundada na miacutemesis aristoteacutelica a complementaridade com o real eacute um caminho do meio e portanto natildeo excludente

169

da concepccedilatildeo de Eco que contribui indicando o caminho a natildeo se seguir e procuremos

em Danto a resposta a essa segunda parte constituinte da relaccedilatildeo A seguinte afirmaccedilatildeo

de Danto em um ensaio sobre Andy Warhol apresenta diversos elementos interligados

que podem subsidiar a construccedilatildeo deste sentido inverso da relaccedilatildeo

Tinha prometido dar alguma explicaccedilatildeo sobre como a exaltaccedilatildeo do ordinaacuterio ajudou a dar agrave arte uma consciecircncia de sua natureza filosoacutefica Os expressionistas abstratos certamente se assumiram como metafiacutesicos na pintura e acreditaram que a sua arte conectava-se com uma seacuterie de sentidos a que tinham acesso pelo inconsciente Eles usaram a linguagem da filosofia com rebuscamento e falaram com familiaridade sobre o Self o noumecircnico o Ding an sich O mundo ordinaacuterio como na grande tradiccedilatildeo vinda de Platatildeo era menosprezado como inferior como mero como alheio agrave realidade com a qual supunham-se em contato A relaccedilatildeo entre arte e realidade natildeo poderia ser constituiacuteda nas estruturas que eles tornaram possiacuteveis Soacute poderia ser quando se pudesse aceitar um objeto ordinaacuterio ie ver que alguma coisa poderia ser arte e ainda se parecer com um objeto ordinaacuterio da mesma forma que os objetos ordinaacuterios se parecem entre si Uma vez que isso foi possiacutevel ficou imediatamente claro que a arte natildeo era o que a teoria dos expressionistas abstratos havia promulgado e natildeo poderia ser filosoficamente concebida enquanto estivesse naquela forma O entendimento filosoacutefico comeccedila quando se percebe que nenhuma propriedade visiacutevel distingue a realidade da arte em geral E isso foi algo que finalmente Warhol demonstrou (danto 2001 p 112)

Na citaccedilatildeo anterior o primeiro ponto significativo para a nossa posiccedilatildeo eacute a contra-

posiccedilatildeo que Danto faz entre a atitude dos expressionistas abstratos e a atitude de Warhol

Danto identifica os primeiros com a mesma postura advinda de Platatildeo de criacutetica ao mundo

sensiacutevel ldquomundo ordinaacuteriordquo nas palavras de Danto Subjacente agrave posiccedilatildeo dos expressio-

nistas abstratos eacute que se para Platatildeo a arte enquanto imitaccedilatildeo busca seus objetos no

mundo sensiacutevel e isso como vimos no capiacutetulo 2 eacute condenado por esse filoacutesofo deve-se

afastaacute-la do mundo sensiacutevel buscando no mundo inteligiacutevel a verdadeira realidade Natildeo

sem razatildeo Danto os rotula ldquometafiacutesicos da pinturardquo

Ao unir Platatildeo ao Expressionismo Abstrato contrapondo-os agrave Pop-Art na figura de

Warhol Danto ao mesmo tempo favorece trecircs pontos em nossa posiccedilatildeo

1 Confirma a nossa escolha por Warhol uma vez que este artista conscientemente ou natildeo

faz parte dos que criticam a posiccedilatildeo platocircnica e a tradiccedilatildeo que a segue tradiccedilatildeo essa

que concebe a realidade de modo hierarquizado onde o sensiacutevel natildeo tem relevacircncia

170

2 Concomitante ao primeiro ponto se o sensiacutevel tem relevacircncia na constituiccedilatildeo da

realidade significa que o ordinaacuterio passa a ter seu status ontoloacutegico reconhecido

3 Possibilita a associaccedilatildeo dos ldquoobjetos ordinaacuteriosrdquo com os objetos de design

Analisando a lista anterior em relaccedilatildeo ao primeiro item e agrave duacutevida sobre Warhol

estar consciente do que faz enquanto artista Danto natildeo acredita na sua ingenuidade

mas cita diversos personagens da cena nova-iorquina das deacutecadas de 1960 e 1970 que

pensam assim Entre eles o escritor Thom Jones potildee nas palavras de um narrador de suas

histoacuterias a seguinte afirmaccedilatildeo

Ele [Andy Warhol] mdash o que ele tinha era como uma grande antena de raacutedio Funcionava em todas as vibraccedilotildees coacutesmicas Ele apenas fazia as coisas acho que natildeo sabia a metade delas Ele era um desses idiotas engenhosos penso Suas pinturas satildeo muito vagas Vick Natildeo consigo fazer uma leitura delas (jones Thom ldquoThe pugilist at restrdquo 1993 apud danto 2004 p 99)

A descriccedilatildeo de Jones contraacuteria agrave compreensatildeo de Danto carrega um tom criacutetico ao subs-

titiuir a consciecircncia pela inspiraccedilatildeo na caracterizaccedilatildeo de Warhol comparando-o com ldquouma

grande antena de raacutediordquo Subjacente a tal afirmaccedilatildeo encontra-se uma tradicional concepccedilatildeo

de arte enquanto atividade inspirada que vem pelo menos desde Platatildeo No diaacutelogo Iacuteon

(cf citaccedilatildeo de Ribeiro nota 5 p 151) Platatildeo afirma que o poeta e o rapsodo natildeo se guiam

por uma teacutekhne ou episteacuteme mas falam fora de si possuiacutedos pelo deus entusiasmados e

sem consciecircncia Natildeo obstante esse entendimento que Jones expressa sobre Warhol e seu

trabalho mantemos nossa posiccedilatildeo apoiados na interpretaccedilatildeo de Danto Como veremos

no proacuteximo capiacutetulo este artista tem mais a nos revelar em suas obras e afirmaccedilotildees

Quanto ao segundo ponto da lista a inclusatildeo e a defesa de Danto em favor de uma

ontologia do sensiacutevel explorando o trabalho de Warhol (e obviamente contrariando a

posiccedilatildeo platocircnica) coaduna com as concepccedilotildees em retrospecto de Bonsiepe Maldona-

do Cardoso Flusser e Aristoacuteteles Todos eles evidentemente com as particularidades

de seus interesses e objetos de estudo procuram preservar esse aspecto da realidade que

fundamenta a empiria e o pragmaacutetico de seus campos de atuaccedilatildeo

Por uacuteltimo eacute faacutecil de se identificar a equivalecircncia do terceiro ponto (entre objetos

ordinaacuterios e do design) quando pensamos que Warhol parte por exemplo de caixas de

sabatildeo e latas de sopa (figura 37) e as ldquotransfigurardquo em obras de arte Com essa implicaccedilatildeo

171

muacutetua completamos nosso movimento que sai do design e chega ateacute a arte constituindo

o inverso do caminho na seccedilatildeo anterior nessas relaccedilotildees

A figura 38 apresenta alguns dos exemplos analisados neste capiacutetulo e suas conexotildees

com a arte e o design No entanto apesar da configuraccedilatildeo simples e dos poucos elementos

que compotildeem o graacutefico devemos estar atentos para a complexidade da base conceitual que

subjaz aos trecircs objetos representados (o urinol a caixa de sabatildeo e o espremedor de frutas)

Figura 37 Fotografias da Brillo box (1964) e dos 32 quadros das latas de sopa Campbell (1962) criados por Andy Warhol fonte momaorg

Figura 38 Esquema dos dois sentidos de apropriaccedilatildeo da arte e do design fonte autor

ARTE

DESIGN

172

Do ponto de vista da aparecircncia ou do sensiacutevel natildeo eacute possiacutevel distinguir quais satildeo

obras de arte quais satildeo artefatos de design ou quais se encontram no meio do caminho

entre um campo e outro Assim como defendemos anteriormente apoiados em Danto

(2005) apesar das diferenccedilas ontoloacutegicas entre design e arte no acircmbito da experiecircncia

sensiacutevel cada vez mais torna-se difiacutecil identificar o que eacute arte e o que natildeo eacute

Existe uma circularidade na figura 38 em que a parte esquerda indica o caminho do

design ateacute a arte em que se transfiguram um urinol em A fonte e uma embalagem de sabatildeo

em poacute na Brillo Box Mas na parte direita no sentido inverso natildeo satildeo obras de arte que

se convertem em artefatos mas objetos do design que passam a incorporar caracteriacutesticas

ateacute entatildeo exclusivas do universo artiacutestico Em outras palavras se existe uma simetria nos

processos e conceitos que envolvem a passagem de um campo ao outro esta se daacute no

primeiro sentido com a arte se apropriando de objetos do design ao alterar seus significa-

dos e no segundo com o design se apropriando de conceitos da arte tambeacutem alterando os

significados de seus objetos

173

5 A PRODUCcedilAtildeO DE OBJETOS NO MUNDO SENSIacuteVEL

A partir das anaacutelises de obras de arte e objetos do design estabelecidas no capiacutetulo anterior

o caminho agora eacute de verticalizaccedilatildeo da investigaccedilatildeo na praacutexis do design e da arte man-

tendo a circunscriccedilatildeo nos nomes de Marcel Duchamp Andy Warhol e Philippe Starck

No entanto natildeo eacute nossa intenccedilatildeo proceder de forma catalograacutefica dada a existecircncia de

inuacutemeras pesquisas dessa natureza (em parte pela relevacircncia e celebridade conquistadas

pelos artistas e designer em foco) mas tambeacutem porque do ponto de vista da apresen-

taccedilatildeo de exemplos relacionados aos conceitos investigados entendemos que o capiacutetulo

anterior cumpre este papel sem procurar ser um registro empiacuterico de comprovaccedilatildeo pela

quantidade Diante dessa delimitaccedilatildeo inicial o objetivo neste capiacutetulo se concentra no

quarto e uacuteltimo item do meacutetodo (cf capiacutetulo 1 p 49) na ampliaccedilatildeo da identificaccedilatildeo dos

conceitos jaacute elaborados a partir das produccedilotildees de objetos do design e da arte tornando

mais evidentes suas estruturas

Esse procedimento acreditamos permite o aprofundamento na compreensatildeo das

trajetoacuterias e produccedilotildees desses dois campos e alguns dos consequentes desdobramentos

em suas relaccedilotildees uma vez que os trecircs nomes investigados contam com trabalhos (prin-

cipalmente Duchamp e Warhol) minimamente afastados no tempo para permitirem o

uso do criteacuterio histoacuterico dos ldquopontos focaisrdquo de Cassirer (1992) de modo mais objetivo

analiacutetico e distanciado Na medida em que os autores estudados atuam em suas aacutereas

de modo predominantemente pragmaacutetico o que normalmente se espera de artistas e

designers intensifica-se a necessidade de recorrermos a estudiosos contemporacircneos de

perfil teoacuterico especializados na pesquisa das obras e vidas desses trecircs profissionais para

suportar e corroborar nossos argumentos

Para a anaacutelise de Marcel Duchamp e Andy Warhol retornamos a dois autores centrais

aos capiacutetulos anteriores Arthur Danto e Thierry de Duve Com relaccedilatildeo a Arthur Danto

desta vez procuramos apoio principalmente em dois de seus trabalhos especiacuteficos e recentes

mais ligados agraves atuaccedilotildees dos artistas do que propriamente agrave constituiccedilatildeo de sua complexa

teoria sobre a arte Assim exploramos o artigo O filoacutesofo como Andy Warhol de 2004 e

o livro Andy Warhol Arthur C Danto de 2012 em que o proacuteprio Danto afirma buscar

174

ldquoum texto de faacutecil leitura[1] em linguagem agradaacutevelrdquo (danto 2012 p 19) E com Tierry

de Duve retomamos um artigo sobre Duchamp de 2010 O que fazer da vanguarda Ou

o que resta do seacuteculo 19 na arte do seacuteculo 20 Para Philippe Starck nos baseamos nos livros

homocircnimos Philippe Starck da historiadora do design Judith Carmel-Arthur de 2000

e da jornalista e criacutetica de arte Cristina Morozzi de 2012 assim como em um capiacutetulo do

livro organizado pela curadora de design Valeacuterie Guillaume Scritti Su Starck de 2004

escrito pelo filoacutesofo Michel Onfray Nossa abordagem em diaacutelogo com esses pesquisa-

dores constitui a base preferencial para as duas seccedilotildees deste capiacutetulo

Assumir autores de perfil teoacuterico como nossos interlocutores principais possibili-

tando a mediaccedilatildeo com Duchamp Warhol e Starck natildeo significa deixar de atentar para

as declaraccedilotildees dos dois artistas e do designer acerca de seus trabalhos Fazemos incursotildees

em textos relatos e afirmaccedilotildees de Warhol e Starck Como veremos entre as criaccedilotildees e suas

narrativas e discursos especialmente no caso de Philippe Starck podem ser identificadas

divergecircncias conceituais o que natildeo deve causar surpresa por tratar-se de um profissional

acentuadamente inclinado para o acircmbito criativo e projetivo e natildeo teoreacutetico Em certo

sentido essas afirmaccedilotildees trazem a tona algumas das caracteriacutesticas dos discursos de ma-

nifestos que permeiam a histoacuteria da arte e do design

Os manifestos em design a comeccedilar pelo nome assumido pelos designers que os

propotildeem ainda hoje guardam semelhanccedila estrutural com os manifestos em arte e se dis-

tanciam do modelo de persuasatildeo estabelecido de um modo geral pelas ciecircncias Como

sabemos as ciecircncias mesmo quando propotildeem alteraccedilotildees radicais em suas teorias publi-

cam seus enunciados de mudanccedilas preferencialmente na forma de artigos e livros Se

pensarmos do ponto de vista epistemoloacutegico por exemplo como assevera Popper (1993)

poderiacuteamos dizer grosso modo que os cientistas buscam incessantemente questionar e

falsear suas teorias Se nos apoiarmos diversamente em Kuhn (1962) admitiremos que

1 Nesta obra Danto alerta-nos que natildeo se deteraacute nos aspectos ontoloacutegicos de constituiccedilatildeo de uma teoria voltando-se mais para o artista Warhol e sua obra ldquoNatildeo vou me aprofundar aqui no que os filoacutesofos denominam ontologia da obra de arte mdash o que eacute uma obra de arte mdash quais as condiccedilotildees necessaacuterias para que um objeto seja uma obra de arte A esse respeito peccedilo ao leitor que procure meus estudos sobre filosofia da arte Em contraposiccedilatildeo os vaacuterios desafios de Andy agraves definiccedilotildees dos filoacutesofos e outros pensadores sobre a arte satildeo insignificantes se comparadas agraves caixas de super-mercadordquo (danto 2012 p 94)

175

subjacente agrave cada teoria existe uma ldquocrenccedilardquo no paradigma que a fundamenta e que parte

da comunidade cientiacutefica soacute comeccedila a questionaacute-lo quando surgem problemas profundos

e resistentes ateacute a soluccedilotildees ad hoc nessa teoria

Pode-se aderir agraves descriccedilotildees antagocircnicas de Popper ou Kuhn ou de outros epistemoacutelo-

gos contemporacircneos acerca de como e quando os cientistas questionam radicalmente suas

proacuteprias teorias e regras dispostos a abandonaacute-las por novas concepccedilotildees Diversamente disso

por tudo o que investigamos ateacute este momento sabemos que permanece uma distacircncia entre

o modelo de questionamento assumido por cientistas mas natildeo plenamente implementado

por designers e claramente avesso ao tipo de questionamento que propotildeem os artistas Com

esses elementos em consideraccedilatildeo entendemos ser imprescindiacutevel examinar os ldquopontos focaisrdquo

representados por Duchamp Warhol e Starck e suas obras tendo em conta suas posiccedilotildees

e afirmaccedilotildees mas tambeacutem o crivo da anaacutelise dos estudiosos que os investigam

51 ldquoPontos focaisrdquo na arte Andy Warhol e Marcel Duchamp

O tiacutetulo desta seccedilatildeo inicia-se deliberadamente com uma inversatildeo cronoloacutegica ao colocar

Andy Warhol que atua intensamente nos anos de 1960 e 1970 precedendo a Marcel

Duchamp que estabelece um fulcro na arte institucionalizada ainda no final da segunda

deacutecada do seacuteculo xx Subjacente a essa transgressatildeo histoacuterica encontra-se nosso interesse

(e de certo modo tambeacutem de Arthur Danto por motivos completamente distintos do

nosso) em destacar a relevacircncia de Warhol para a contemporaneidade da arte e da cultura

de um modo exclusivo em relaccedilatildeo agrave proposta radical e originaacuteria de Duchamp

Danto defende sua posiccedilatildeo em diversos momentos e obras Sua convicccedilatildeo parece em

parte ser reforccedilada por uma compreensatildeo diversa daquela de seus colegas criacuteticos de que

Warhol natildeo tinha exatamente consciecircncia do que ele mesmo propunha como arte O proacute-

prio Danto se questiona a princiacutepio sobre a relevacircncia da Pop-Art e de seus seguidores

Eu havia me mudado para Nova York apoacutes a guerra motivado por um imenso entusiasmo pela arte da Escola de Nova York na qual esperava fazer carreira como artista Eu era veterano de guerra e possuiacutea uma bagagem educacional que decidira aplicar ao estudo da filosofia Embora tivesse feito algum sucesso

176

como artista a filosofia acabou se revelando mais interessante para mim No princiacutepio de 1960 eu era professor da Universidade Coluacutembia e estava em gozo de um periacuteodo sabaacutetico na Europa onde pretendia escrever meu primeiro livro Foi na Biblioteca Americana de Paris que vi pela primeira vez um trabalho da arte pop uma reproduccedilatildeo em preto e branco publicada na revista artnews Seu tiacutetulo era O beijo de Roy Lichtenstein [figura 39] e parecia ter sido recortada da seccedilatildeo de quadrinhos de um jornal americano Basta dizer que fiquei pasmo Eu tinha certeza de que aquilo natildeo era arte mas no decorrer de minha temporada em Paris fui aos poucos elaborando a ideia de que se aquilo era arte qualquer coisa podia ser arte Tomei entatildeo a decisatildeo de ver tudo o que pudesse da arte pop quando voltasse aos Estados Unidos (danto 2012 p 11-12)

Essa perplexidade e incompreensatildeo inicial de Danto e a sua consequente recusa da

Pop-Art daacute lugar a uma visatildeo diversa em relaccedilatildeo aos seus colegas criacuteticos da eacutepoca

Eu fico frequumlentemente impressionado com a ironia de que algueacutem tatildeo inveros-siacutemil como Warhol que parecia tatildeo pouco dotado de dons e poderes intelectuais no mundo das artes tatildeo ldquomaneirordquo tatildeo ligado na baixa cultura mdash kitsch mdash pudesse ter introduzido intuiccedilotildees filosoacuteficas tatildeo aleacutem daqueles seus pares que liam Kant ou que arrotavam existencialismo citavam Kierkegaard e usavam o vocabulaacuterio mais complicado e erudito Quando eu em um ensaio que publiquei na eacutepoca da sua exposiccedilatildeo retrospectiva poacutestuma no Museu de Arte Moderna

mdash MoMA reivindiquei que ele era o mais proacuteximo de um gecircnio filosoacutefico que a arte do seacuteculo vinte havia concebido fui abordado com pouca aceitaccedilatildeo pela grande maioria dos meus amigos que o considerava num patamar intelectual muito abaixo (danto 2004 p 113)

Figura 39 Reproduccedilatildeo da pintura O beijo (1961) de Roy Lichtenstein fonte image duplicatorcom

177

Danto prossegue com sua anaacutelise procurando encontrar os elementos subjacentes agrave

icocircnica imagem de Warhol imagem essa que o proacuteprio artista ajudou a cunhar naquela

eacutepoca com suas atitudes e afirmaccedilotildees aparentemente banais E como em outras anaacutelises

do filoacutesofo a Brillo Box eacute seu exemplo preferido

Uma fotografia de Warhol entre suas caixas [figura 40] parece indistinguiacutevel de uma fotografia de um funcionaacuterio entre as caixas do supermercado Com que licenccedila podemos supor que podemos diferenciar uma obra de arte de um objeto meramente utilitaacuterio Um eacute feito de compensado e o outro de caixa de papelatildeo mas pode a diferenccedila entre arte e realidade residir numa diferenccedila que

ldquopoderia ser de outro modordquo (danto 2004 p 105-106)

Na citaccedilatildeo anterior a propoacutesito de expor a forma trivial como a arte de Warhol era

divulgada pelo proacuteprio artista Danto retoma um dos pontos que perpassa sua concepccedilatildeo

Figura 40 Fotografia da instalaccedilatildeo Warhol (1964) Stable Gallery Nova York fonte revista ars

178

ao longo de sua carreira como filoacutesofo da arte O cerne encontra-se na mesma pergunta

que jaacute vimos Danto expressar com outras palavras como diferenciar uma obra de arte de

um objeto utilitaacuterio E obviamente como filoacutesofo Danto faz o exerciacutecio de sua reflexatildeo

conectar-se com a origem ocidental desse problema

A indagaccedilatildeo sobre a definiccedilatildeo de arte fazia parte da filosofia desde o tempo de Platatildeo Mas Andy nos obrigou a repensar a questatildeo de modo inteiramente novo O novo formato da antiga questatildeo era a seguinte dados dois objetos de aparecircncia exatamente igual como eacute possiacutevel que um deles seja uma obra de arte e o outro apenas um objeto comum (danto 2012 p 92)

Acrescentando um elemento a mais agrave jaacute complexa questatildeo da diferenciaccedilatildeo Danto

lembra-nos que o projeto graacutefico das caixas de sabatildeo Brillo vendidas em supermercados

foi realizado por James Harvey que coincidentemente tambeacutem era pintor do Expres-

sionismo Abstrato estilo ao qual (como vimos no capiacutetulo anterior) a Pop-Art se opunha

frontalmente E como afirma Danto Harvey na condiccedilatildeo de autor do ldquoprojeto graacuteficordquo

da caixa de sabatildeo natildeo admitiria que esse seu trabalho de ldquoarte comercialrdquo mdash diriacuteamos

de design graacutefico mdash pudesse ser entendido como arte principalmente sendo ele um ex-

pressionista abstrato e obviamente recusando a licenciosidade da Pop-Art Nas palavras

de Danto

Harvey ficou espantado quando viu durante a inauguraccedilatildeo da exposiccedilatildeo das caixas de supermercado de Andy que a Stable Gallery estava vendendo por centenas de doacutelares as caixas que ele tinha projetado enquanto as dele natildeo valiam nada Mas Harvey com certeza natildeo julgava que suas caixas fossem arte Elas eram reconhecidamente arte comercial e como tais excelentes Deve ser possiacutevel explicar por que todo mundo se lembra da caixa de Brillo mas natildeo por exemplo das caixas de suco de maccedilatilde da Mott Natildeo cabe a Warhol o meacuterito pela genialidade do projeto graacutefico da Brillo Box o meacuterito eacute todo de Harvey mas cabe a Warhol o creacutedito por transformar em arte o que natildeo passava de um objeto absolutamente corriqueiro da vida cotidiana Foi ele quem transformou em escultura o que ningueacutem considerava arte E repetiu o feito com caixas de design ainda mais anoacutedinos que a embalagem de Brillo como a caixa de cereais Kelloggrsquos Cada uma das oito variedades de caixas era uma escultura e natildeo apenas a Brillo Box (danto 2012 p 92-93)

Esta citaccedilatildeo eacute de importacircncia capital por permitir compreender e articular alguns

dos elementos e circunstacircncias histoacutericas ligadas a criaccedilatildeo artiacutestica de Warhol e como elas

179

relacionam design e arte Danto eacute expliacutecito quanto a identificar que o artista Warhol eacute

o responsaacutevel por ldquotransformarrdquo um objeto do uso cotidiano em obra de arte escultural

a partir de um projeto graacutefico especiacutefico de outro artista que neste caso atua como de-

signer De nossa parte entendemos essa transformaccedilatildeo (ou transfiguraccedilatildeo como Danto

tambeacutem aprecia) operada pelo artista como um giro na significaccedilatildeo de um objeto e suas

caracteriacutesticas ontoloacutegicas E nisso se encontra a dupla relevacircncia de Warhol para a tese

1ordm A ocorrecircncia do giro ontoloacutegico fundamental para a nossa hipoacutetese se confirma na

accedilatildeo do artista

2ordm Essa confirmaccedilatildeo eacute explicitada em um objeto em que estaacute contida originalmente a

configuraccedilatildeo e a estrutura do design e se transforma em obra de arte

Warhol corrobora nossos argumentos ao narrar suas memoacuterias de maneira pessoal

e desprendida no livro Popismo (2013) no periacuteodo em que mdash enquanto trabalha com

ldquoarte comercialrdquomdash desperta para o mundo da arte

A pessoa que me formou como artista foi Emile de Antonio mdash quando conheci De eu era um artista comercial Nos anos 60 De ficou famoso por seus filmes sobre Nixon e McCarthy mas nos anos 50 ele havia sido agente de artistas plaacutes-ticos Fazia a ligaccedilatildeo de artistas com tudo desde cinemas de bairro ateacute lojas de departamentos e grandes corporaccedilotildees Mas soacute trabalhava com amigos se De natildeo gostasse de vocecirc natildeo se dava ao trabalho

De foi a primeira pessoa que conheci a ver a arte comercial como arte de verdade e a arte de verdade como arte comercial e ele fez todo o mundo artiacutestico de Nova York ver as coisas desse jeito tambeacutem (warhol hackett 2013 p 12)

Independentemente de Warhol creditar a Emile de Antonio a origem da compreensatildeo

de uma circularidade entre ldquoarte comercialrdquo e ldquoarte de verdaderdquo o que importa eacute a proacutepria

circularidade em si que permite a apropriaccedilatildeo de um acircmbito da realidade por outro

Diante disso eacute preciso retomar um ponto jaacute delimitado no capiacutetulo anterior (cf

p 169 - 171) derivado da contraposiccedilatildeo que propusemos entre PlatatildeoExpressionismo

Abstrato de um lado e WarholPop-Art de outro Procurando oferecer a exata dimensatildeo

da questatildeo haviacuteamos apresentado uma lista em trecircs itens indicando como a Pop-Art se

distingue e se afasta do Expressionismo Abstrato fundamentando-se na valorizaccedilatildeo do

180

mundo sensiacutevel e seus objetos ldquoordinaacuteriosrdquo Para os nossos interesses presentes vamos

nos ater aos dois uacuteltimos itens da lista (2) com a relevacircncia do sensiacutevel na constituiccedilatildeo

da realidade o ordinaacuterio passa a ter seu status ontoloacutegico reconhecido (3) a associaccedilatildeo dos

ldquoobjetos ordinaacuteriosrdquo com os objetos de design

Mas atentemos o ordinaacuterio no trabalho de Warhol natildeo se resume apenas agrave consti-

tuiccedilatildeo da imagem de suas obras O processo de produccedilatildeo tambeacutem tem sua significaccedilatildeo

Por um lado a caixa e outras obras de arte criadas por ele e montadas em seacuterie em seu

ateliecirc em uma linha de produccedilatildeo mdash natildeo sem razatildeo nomeado Factory (como conta um

de seus assistentes Gerard Malanga2) mdash mimetizam o processo da mecanizaccedilatildeo de uma

faacutebrica Por outro esse processo natildeo eacute simplesmente coacutepia de uma faacutebrica pois eacute execu-

tado manualmente por ele e seus assistentes com o cuidado e a atenccedilatildeo que suas obras

exigem Conforme Danto

Eacute como se a realidade natildeo fosse mecacircnica o suficiente para se acomodar a ima-ginaccedilatildeo de Warhol Eacute importante notar ainda que o trabalho era tatildeo central em sua concepccedilatildeo da arte que a ideia de usar como arte algo que natildeo resultasse do trabalho natildeo teria interesse nenhum para ele (danto 2012 p 77-78)

Tal imersatildeo no cotidiano da vida mescla de um lado elementos de projeto e produccedilatildeo

de objetos utilitaacuterios e de consumo como ocorre no design e de outro a criaccedilatildeo no fazer

artiacutestico Como resultado um dos seus sentidos eacute o escultural

Quando pensamos em escultura lembramos de Michelangelo Canova Rodin Brancusi ou Noguchi que criaram objetos uacutenicos de beleza e significado Antes de Warhol jamais ocorreria a algueacutem criar como escultura uma coisa semelhante a uma caixa de papelatildeo para transporte de mercadorias de consumo Warhol natildeo soacute fez exatamente isso como usou um processo que de certo modo parodiava a produccedilatildeo em massa (danto 2012 p 76)

2 Conforme Danto ldquoMalanga eacute nossa fonte principal sobre a confecccedilatildeo dessas caixas e sobre a ideia de Andy de organizar a Factory segundo linhas industriais um paradoxo porque as pessoas que participa-vam da Factory eram tudo menos robocircs lsquoAndy estava fascinado pelas prateleiras dos supermercados e pelo efeito repetitivo maquinal que criavam [hellip] Ele queria reproduzir esse efeito mas logo descobriu que a superfiacutecie de papelatildeo era impraticaacutevelrsquo Como o efeito em questatildeo eacute geralmente obtido pelo empilhamento de caixas de papelatildeo em armazeacutens e depoacutesitos eacute difiacutecil entender o que havia de errado com o papelatildeo que Warhol podia ter usado com muito menos esforccedilo simplesmente comprando as embalagens dos fabricantes e tratando-as como ready-madesrdquo (danto 2012 p 77-78)

181

Se retomarmos a fotografia de Warhol junto com as pilhas de caixas (cf figura 40

p 177) veremos como a ambiguidade do papel do artista combina com essa ldquoparoacutedia da

produccedilatildeordquo E a decisatildeo de investir um objeto de novos significados transfigurando-o de

artefato ou utensiacutelio em obra de arte recai assim sobre a responsabilidade do artista A

visatildeo de Danto se harmoniza com o que afirmamos ao final do capiacutetulo anterior (p 171-

172 sintetizada na circularidade da parte esquerda da figura 38) em que a arte se apropria

de objetos do design ao alterar seus significados

Um exemplo adicional no gecircnero da pintura mas com as mesmas caracteriacutesticas

da caixa de sabatildeo eacute o das latas de sopa Campbell que possui segundo Danto relatos

diferentes acerca de sua origem Entre aquelas que circulavam em Nova York a narrativa

da preferecircncia de Danto eacute a de que Warhol solicitou uma ideia agrave designer de interiores

Muriel Latow

Warhol disse a Latow que precisava de uma ideia ldquode grande impacto diferente de Lichtenstein e Rosenquist algo bem pessoal que natildeo pareccedila que estou fa-zendo exatamente o que eles fazemrdquo Latow respondeu-lhe que ele devia pintar alguma coisa que ldquotodo mundo vecirc todos os dias que todo mundo reconhecehellip como uma lata de sopardquo A proacutepria maneira como Warhol formulou a pergunta jaacute eliminava muitas possibilidades Ele natildeo estava interessado em pintar uma abstraccedilatildeo bonitinha e agradaacutevel ou Manhattan ao luar ou uma mulher bonita lendo uma carta perto da janela Tinha de ser algo ligado agrave cultura comum que ainda natildeo tivesse sido trabalhado por ningueacutem Algo que as pessoas comentas-sem mesmo sem ter visto (danto 2012 p 58)

Esse tipo de comportamento em relaccedilatildeo agraves ideias dos outros descrito por Danto na

citaccedilatildeo anterior eacute confirmado por Warhol em seu livro Popismo

ldquoNunca tive a menor vergonha de perguntar a algueacutem literalmente lsquoO que devo pintarrsquo porque o Pop vem de fora e que diferenccedila existe entre pedir ideacuteias a algueacutem ou procurar numa revista Henry [Henry Geldzahler curador do Me-tropolitan Museum of Art] entendeu isso mas algumas pessoas o desprezam se vocecirc pede conselho a elas natildeo querem saber nada sobre como vocecirc trabalha querem que vocecirc conserve a sua miacutestica para elas poderem te adorar sem fica-rem envergonhadas com as especificidadesrdquo (warhol hacket 2013 p 27)

Ao lado dessa atitude que pode como o proacuteprio Warhol diz incitar criacuteticas Danto

reforccedila aquela caracteriacutestica jaacute apresentada do trabalho de Warhol que desloca a atenccedilatildeo

182

do artista com uma ideia originaacuteria ponto de partida para uma obra de arte e vai ao

encontro das escolhas envolvendo os processos de criaccedilatildeo e diferentes gecircneros de arte

como as instalaccedilotildees compreendendo-os como centrais na produccedilatildeo artiacutestica Se Warhol

opta por natildeo necessariamente ser o autor da ideia ele natildeo simplesmente a executa como

um operaacuterio em uma linha de produccedilatildeo

Uma coisa eacute dizer ao artista que ele devia pintar latas de sopa outra eacute decidir como pintaacute-las A decisatildeo de Warhol envolveu mais que a mera pintura de uma lata de sopa Ele construiu um painel com trinta e duas telas (508 x 406 cm cada) organizadas em quatro fileiras de oito cada tela representando uma das variedades das sopas Campbell produzidas naquela eacutepoca mdash como uma insta-laccedilatildeo de retratos de pessoas notaacuteveis (danto 2012 p 58-59)

Tendo em consideraccedilatildeo a reconstituiccedilatildeo de alguns elementos das narrativas sobre o

processo de criaccedilatildeo de Warhol podemos assumir que Danto defende e destaca a relevacircncia

desse artista de um modo equivalente ao que entendemos como um ldquoponto focalrdquo na

histoacuteria da arte E este jaacute explicitamos anteriormente eacute um dos elementos que atua como

um dos noacutes na tese atando design e arte

Em termos ainda mais incisivos pode-se dizer que seria impossiacutevel que as caixas de Warhol fossem arte muito antes de 1964 O grande historiador da arte Heinrich Wolfflin disse que nem tudo eacute possiacutevel em todas as eacutepocas A histoacuteria da arte sempre estaacute aberta a novas possibilidades mas natildeo teria aberto a possibilidade de um objeto como uma caixa de Brillo ser arte digamos em 1874 quando a pintura impressionista era a vanguarda (danto 2012 p 91)

Mas Danto tambeacutem natildeo ignora a importacircncia histoacuterica de Duchamp Ele tem ple-

na consciecircncia de que ldquoa precedecircncia de Marcel Duchamp projeta uma certa sombra

sobre todos os subsequumlentes esforccedilos de delimitar as fronteiras da arterdquo (danto 2004

p 107) Assim ele argumenta sobre a clivagem distinta da proposta de Warhol para a

arte em relaccedilatildeo ao que aparentemente jaacute havia sido realizado em 1917 por Duchamp

com A fonte

De forma radical Danto afirma que (em princiacutepio) a indistinccedilatildeo entre obras de arte

e coisas reais decreta o que ele nomeia de ldquoO fim da Arterdquo (danto 2012 p 95) ou em

outras palavras o fim de uma histoacuteria acerca dos movimentos artiacutesticos Natildeo eacute nosso

183

propoacutesito analisar a concepccedilatildeo de Danto acerca do fim3 da arte tema que implica diversos

conceitos fora do escopo desta tese No entanto a expressatildeo fim da arte por si soacute denota

o grau de relevacircncia que este filoacutesofo atribui a Warhol natildeo somente dentro do fenocircmeno

da Pop-Art mas na histoacuteria da arte como um todo

Alguns criacuteticos me perguntam por que acho que Warhol pocircs fim agrave histoacuteria da arte da maneira como a entendiacuteamos antes mdash por que natildeo Duchamp com seus ready-mades Ora a verdade eacute que Andy fazia suas caixas enquanto Duchamp de maneira geral natildeo podia fazer seus ready-mades Soacute que nem todo objeto pode ser um ready-made jaacute que Duchamp os restringia a objetos indistinguiacuteveis do ponto de vista esteacutetico Mas por que fazer essa restriccedilatildeo a natildeo ser que se tenha uma persistente aversatildeo agrave arte retiniana (danto 2012 p 95)

Na concepccedilatildeo de Danto o que subjaz agrave posiccedilatildeo duchampiana eacute que ele criticava o

entendimento da esteacutetica claacutessica que valorizava o prazer visual ou o chamado sentido

ldquoretinianordquo ldquolsquoO deleite esteacutetico eacute o inimigo a ser derrotadorsquo mdash diz Duchamp com relaccedilatildeo

a esse gecircnero de trabalho pois os readymades segundo ele foram escolhidos precisamente

pela sua falta de interesse visualrdquo (danto 2004 p 107)

Enquanto Duchamp pode entre suas motivaccedilotildees usar ldquoo banal como um tipo de

bomba contra o conceito fortificado de arterdquo (danto 2004 p 108) e essa eacute uma atitude

natildeo soacute de Duchamp mas do movimento ao qual ele pertencia o Dadaiacutesmo Warhol

de modo distinto compreende o banal e o corriqueiro como algo que pode e deve ser

incorporado agrave arte Aleacutem disso segundo Danto Warhol com sua proposta coloca uma

pergunta de caraacuteter filosoacutefico mdash ultrapassando Duchamp que natildeo perguntou ldquopor que

todos os outros urinoacuteis natildeo eram obras de arterdquomdash ldquopor que a Brillo Box era uma obra

de arte enquanto as caixas de Brillo comuns eram meras caixas de Brillordquo (danto

2004 p 108)

Outra posiccedilatildeo que acrescenta mais elementos para a questatildeo e reforccedila os ldquopontos

focaisrdquo em Duchamp e Warhol eacute a de Tierry de Duve Em uma palestra que posterior-

mente foi publicada na forma de artigo de Duve primeiramente considera que somente

3 Danto natildeo eacute o primeiro teoacuterico a propor e tratar do tema do fim da arte Como vimos no capiacutetulo 1 (cf p 38) ele eacute precedido por filoacutesofos como Hegel Marx Nietzsche Lukacs Benjamin Heidegger Horkheimer e Adorno Para uma anaacutelise detalhada do tema ver Rodrigo Duarte (2006)

184

na deacutecada de 1960 a ldquomensagemrdquo de Duchamp foi assimilada o que em certo sentido

destaca o papel visionaacuterio deste artista

O mundo da arte natildeo acusou verdadeiramente a recepccedilatildeo da mensagem de Du-champ antes dos anos 60 quando nos rastros do neodadaacute (pop arte aliaacutes) da minimal art e da arte conceitual comeccedilou a definir-se de modo mais ou menos consciente como poacutes-duchampiano (de duve 2010 p 192)

No entanto se Duchamp foi o mensageiro para de Duve isso natildeo significa que ele

tenha sido responsaacutevel pela mensagem

Alguns ateacute atribuem o feito unicamente a Marcel Duchamp sempre ele ao inventar o ready-made Duchamp teria criado um novo gecircnero artiacutestico e um novo personagem o artista simplesmente Essa opiniatildeo comete o erro de inter-pretaccedilatildeo claacutessico ao fazer do mensageiro o responsaacutevel pela mensagem que traz Minha palestra de hoje tem o objetivo de corrigir esse erro de interpretaccedilatildeo A arte em geral natildeo substitui os meios tradicionais como a pintura e a escultura natildeo se vem juntar aos gecircneros tradicionais como a paisagem ou o nu natildeo eacute um novo estilo que se possa reconhecer por algum traccedilo comum como os ldquoismosrdquo abundantes no seacuteculo 20 A pintura e a escultura a paisagem e o nu e todos os

ldquoismosrdquo do seacuteculo 20 fazem parte ao contraacuterio da arte em geral jaacute que ela nada exclui e inclui aleacutem disso as praacuteticas recentes mdash a instalaccedilatildeo a arte conceitual ou a videoarte assim como outras que ainda natildeo tecircm nome De fato o teor da expressatildeo eacute o seguinte fazer arte com tudo e com qualquer coisa eacute hoje tecni-camente possiacutevel e institucionalmente legiacutetimo [] (de duve 2010 p 182-183)

Em outro trecho de Duve eacute mais expliacutecito em sua afirmaccedilatildeo ldquoDuchamp eacute apenas

o mensageiro Seja para o incensar ou maldizer eacute um erro de interpretaccedilatildeo atribuir ao

mensageiro a responsabilidade pelo conteuacutedo da mensagemrdquo (de duve 2010 p 186)

Quer concordemos ou natildeo com de Duve acerca do papel e consciecircncia do mensageiro

o que importa destacar no interior da posiccedilatildeo deduviana eacute o entendimento deste autor

de que a arte em geral ldquonada exclui e incluirdquo Tal compreensatildeo jaacute se encontra exposta

no capiacutetulo 3 quando vimos esse autor discordar das posiccedilotildees antagocircnicas de Clement

Greenberg e Joseph Kosuth (cf p 118-119) que se levadas ao extremo conduzem a uma

antinomia ou procurar uma continuidade na histoacuteria da arte entender o readymade

com uma fraude e rejeitar a antiarte e movimentos do Dadaiacutesmo em diante ou entender

a arte como conceitual depois do readymade e anular toda a arte anterior a Duchamp

185

Como vimos naquele momento de Duve de modo consistente recusa as duas posiccedilotildees

radicais e propotildee uma soluccedilatildeo mediadora baseada em Kant Danto de modo correlato

tambeacutem eacute partidaacuterio dessa inclusatildeo Ao final do livro A transfiguraccedilatildeo do lugar comum

eleapropoacutesitodaadmissatildeodaBrilloBoxnomundoarteafirmaldquoSuareivindicaccedilatildeo[ada

BrilloBox]pareceseraomesmotemporevolucionaacuteriaerisiacutevelelanatildeodesejasubvertera

sociedade das obras de arte mas ser admitida nela ocupando o mesmo lugar dos objetos

sublimesrdquo (danto 2005 p 296)

Atentos a esse espiacuterito de mediaccedilatildeo e inclusatildeo que atravessa as concepccedilotildees de Warhol

Danto Kant e de Duve do nosso ponto de vista tanto Duchamp quanto Warhol cum-

prem o giro ontoloacutegico com suas propostas independentemente da posiccedilatildeo que se assume

em relaccedilatildeo agrave quem tem mais relevacircncia se Duchamp ou Warhol

Quanto a aversatildeo agrave arte retiniana de Duchamp que natildeo procura mediaccedilatildeo e mostra-se

como uma das diferenccedilas entre o Dadaiacutesmo e a Pop-Art Danto acrescenta um comen-

taacuterio aos seus argumentos no tom leve que caracteriza seu livro Andy Warhol mas que

natildeo deixa de nos faz pensar sobre o sentido da vida cotidiana que Warhol e Duchamp

capturam cada um a seu modo atraveacutes dos objetos do mundo sensiacutevel (figura 41)

Uma coisa deve ser dita a respeito das Brillo Boxes elas satildeo muito bonitas Minha esposa e eu temos uma haacute anos e ainda nos maravilhamos com sua beleza Por que teriacuteamos de conviver com objetos esteticamente desinteressantes em vez de coisas tatildeo bonitas quanto a Brillo Box (danto 2012 p 95)

Figura 41 Fotografias de A fonte (1917) de Marcel Duchamp (esquerda) e da Brillo Box (1964) de Andy Warhol (direita) fontes tateorg e momaorg

186

Apesar das diferenccedilas conceituais entre os autores das anaacutelises desta seccedilatildeo acreditamos

que todos os envolvidos nas reflexotildees partilham da compreensatildeo de que na contempo-

raneidade a ampliaccedilatildeo dos domiacutenios da arte e do design leva cada um de noacutes a assumir

a responsabilidade de nossas escolhas quando decidimos sobre o que nos comove no

sentido de sermos movidos com a arte (cum-mouĕo) e tambeacutem com o design

A defesa que Danto faz da relevacircncia da Pop-Art e de Andy Warhol como ele mesmo

afirma encontra resistecircncia em outros criacuteticos americanos E Danto tambeacutem nos lembra

de mais uma interpretaccedilatildeo diametralmente oposta vinda da criacutetica europeia implicando

a Pop-Art com uma condenaccedilatildeo irocircnica agrave cultura e aos valores americanos

Estivesse ou natildeo correta a interpretaccedilatildeo dos europeus de que a arte pop conti-nha uma criacutetica da cultura dos Estados Unidos a verdade eacute que eles pelo menos perceberam que havia algo mais na nova arte do que nossos olhos americanos podiam ver De sua parte Andy ansiava por apresentar-se aos europeus como tudo menos um artista fuacutetil (danto 2012 p 9-10)

Contrabalanccedilando essas diversas posiccedilotildees criacuteticas a filoacutesofa Virginia Figueiredo

oferece sua contribuiccedilatildeo contextualizando a posiccedilatildeo de Danto

Natildeo tenho a menor ideacuteia se ele [Danto] concordaria com este epiacuteteto mas no meu modo de ver ele eacute ldquoO filoacutesofo da Pop-Artrdquo sintetizando-se aqui grossei-ramente sob o nome ldquoPop-Artrdquo a produccedilatildeo norte-americana de arte a partir do final dos anos 1950 e iniacutecio dos anos 1960) da qual talvez ele mais do que qualquer outro tentou extrair o aspecto criacutetico diminuindo a margem ambiva-lente a do elo inegaacutevel para muitos outros criacuteticos motivo de uma condenaccedilatildeo irreparaacutevel com o mercado e com a induacutestria cultural Sabe-se o quatildeo pequena foi a diferenccedila que a maioria dos criacuteticos viu entre o movimento da Pop-Art e a propaganda direta1⁶ Ainda no meu modo de ver Danto tenta pocircr a produccedilatildeo da arte contemporacircnea dos norte-americanos em sintonia com os movimentos da vanguarda europeacuteia do iniacutecio do seacuteculo xx Se natildeo em ldquosintoniardquo talvez em busca de um ldquolastrordquo ou de uma legitimaccedilatildeo histoacuterica visando agrave conquista de um lugar na histoacuteria mundial (internacional) daquela produccedilatildeo Tratava-se a meu ver portanto de um possiacutevel processo de ldquointernacionalizaccedilatildeordquo da arte norte-americana da chamada mudanccedila de referencial de Paris para Nova York Nada mais ldquopoliacuteticordquo portanto Natildeo eacute agrave toa que ele potildee em diaacutelogo de modo recorrente artistas como Andy Warhol e o francecircs Marcel Duchamp (1887-1968) (figueiredo 2005 p 449-450)

16 Cf mccarthy David Arte Pop Trad Otaciacutelio Nunes Satildeo Paulo Cosac amp Naify 2002 p 35 [nota em peacute de paacutegina da autora]

187

Mas as palavras do proacuteprio Warhol natildeo negam a importacircncia que o mercado de con-

sumo tem para os norte-americanos e para ele O entendimento que Warhol tem acerca

do consumismo do qual ele natildeo vecirc problema em assumir se releva em obras como a da

figura 42 e em seu livro A filosofia de Andy Warhol de A a B e de volta a A

Comprar eacute muito mais americano que pensar e eu sou absolutamente ameri-cano Na Europa e no Oriente as pessoas gostam de comerciar mdash comprar e vender e vender e comprar satildeo basicamente mercadoras Americanos natildeo estatildeo interessados em vender mdash na verdade eles preferem jogar fora a vender O que eles realmente pensam eacute em comprar mdash pessoas dinheiro paiacuteses (warhol 2008 p 255)

Se a associaccedilatildeo da Pop-Art com o mercado induacutestria cultural e a propaganda direta

(e Warhol estaacute longe de negar tal viacutenculo) pode ser entendida como negativa por parte

da criacutetica artiacutestica por outro lado ela tambeacutem eacute indiacutecio de que a arte contemporacircnea

assume natildeo poder nem querer prescindir desses viacutenculos Esse eacute um dos pontos em co-

mum que a arte tem com diversos outros campos inclusive o design No entanto como

veremos na proacutexima seccedilatildeo consumo e consumismo satildeo caracteriacutesticas tatildeo generalizadas

e disseminadas na sociedade contemporacircnea que natildeo podem servir de paracircmetro para

as especificidades das relaccedilotildees de apenas dois campos

Figura 42 Reproduccedilatildeo do quadro 200 notas de um dolar (1962) de Andy warhol fonte sothebyscom

188

52 ldquoPonto focalrdquo no design Philippe Starck

No livro Philippe Starck da jornalista criacutetica e diretora de arte Cristina Morozzi o desig-

ner italiano Andrea Branzi abre a Apresentaccedilatildeo lembrando que Starck inicia sua carreira

ainda na deacutecada de 1970 ganhando destaque posteriormente nos anos 1980 a partir de

um trabalho para o governo de Franccedilois Mitterrand no palaacutecio Eacuteliseeacute

O presidente encarregou o jovem Starck de mobiliar o Palaacutecio do Eliseu sede do governo francecircs em Paris foi um sinal poderoso (que nenhuma outra naccedilatildeo europeacuteia tinha condiccedilotildees de acompanhar incluindo a Itaacutelia) de uma etapa na qual a cultura se tornava parte estrateacutegica de uma nova grandiosidade e cujos embaixadores no mundo eram os filoacutesofos os artistas os maestros e os jovens projetistas Philippe Starck representou o melhor natildeo soacute dessa nova e ambiciosa etapa mas tambeacutem da tradiccedilatildeo anterior formas ogivais cenografia ambiental invenccedilotildees ininterruptas de funccedilotildees novas e imprevisiacuteveis mdash um design que era simultaneamente antidesign teatro e decoraccedilatildeo urbana com arroubos de pura genialidade anunciando-se como Rei de Paris e ao mesmo tempo como Bobo da Corte (morozzi 2012 p 4)

A ambivalecircncia que caracteriza Starck retratada por Branzi entre o brilhantismo

de um ldquoReirdquo na criaccedilatildeo e a sua exposiccedilatildeo amplificada na miacutedia e no mercado como um

ldquoBobo da Corterdquo eacute algo que vende4 o conceito de designer como mais importante do que

o das empresas para as quais Starck trabalha E tal oposiccedilatildeo talvez sintetize o sentido

das palavras de Morozzi recorrendo a estudos na aacuterea da comunicaccedilatildeo para explicar a

celebridade associada agrave marca e ao nome Philippe Starck

Cristine Bauer docente da faculdade de Ciecircncia da Comunicaccedilatildeo na Universi-dade de Evry dedicou um ensaio a Le Cas Phlippe Starck ou de la Construction de la Notorieacuteteacute (Paris LrsquoHarmattan 2001) Durante um ano ela consultou os arquivos de Starck recolhendo definiccedilotildees que aparecem na foto ldquoUma lenda uma extraordinaacuteria combinaccedilatildeo de pop star e inventor maluco () astro do design francecircs que transforma tudo em design () o Picasso da deacutecada de 1990 () Philippe Starck estaacute para o design assim como uma mistura de Marcel Du-champ e Andy Warhol estaacute para a arterdquo (morozzi 2012 p 25)

4 No livro de Morozzi (2012) em detrimento da ideia de usuaacuterio os conceitos de consumo e consumidor satildeo recorrentes tanto no texto de Branzi quanto no da autora

189

De qualquer modo pelo tom das afirmaccedilotildees de Morozzi ela faz parte de um

grupo de pesquisadores que analisam o trabalho de Starck considerando que os

argumentos desse designer satildeo sempre coerentes Consequentemente ela natildeo toma

um distanciamento mais criacutetico como ocorre veremos com a historiadora do design

Judith Carmel-Arthur (2000) Morozzi afirma que ldquoNarrar paraacutebolas com palavras

e com objetos eacute a grande habilidade de Philippe Starckrdquo (morozzi 2012 p 32)

E mais a autora acredita que este designer eacute capaz de um ldquoencantamentordquo em seu

discurso

Se perguntam a Starck qual eacute o seu segredo ele responde ldquoA loquacidade Os filoacutesofos se calam por isso cabe ao designer explicar a vida e as coisasrdquo E com as palavras ele sabe encantar sempre encontrando bons argumentos Diz que seus projetos satildeo antes de tudo pretextos para contar histoacuterias e criar relacio-namentos como o Juicy Salif o espremedor da Alessi pouco eficiente como utensiacutelio mas oacutetimo para puxar uma conversa (morozzi 2012 p 25)

A ldquoloquacidaderdquo de Starck pode ser confirmada por ele mesmo quando conta acerca

do propoacutesito de seu espremedor de frutas

Philippe Starck em seu Starck Explications publicado pelo Centre Georges Pompidou por ocasiatildeo de sua mostra independente narra uma paraacutebola ldquoUm dia uma jovem recebe a sogra pela primeira vez Fica um pouco assustada e natildeo sabe o que falar Ganhara de presente o espremedor Juicy Salif A sogra pergunta lsquoMas o que eacute este objetorsquo A jovem fala de seu espremedor e a con-versa fica animada Estabelece-se um contato entre as duas mulheres que nem imaginavam que iriam se dar bemrdquo (morozzi 2012 p 32)

O tema repete-se em uma entrevista concedida agrave fotoacutegrafa e jornalista Marcelle Katz

onde ele conta sobre o seu processo de criaccedilatildeo

Certa vez em um restaurante eu tive essa visatildeo de um espremedor de limatildeo em forma de lula e comecei a projetaacute-lo e quatro anos depois ele ficou famosiacutessimo Mas para mim eacute mais uma micro-escultura simboacutelica que um objeto funcional Seu objetivo real natildeo eacute espremer milhares de limotildees mas permitir a um receacutem-casado entabular conversa com a sogra (carmel-arthur 2000 p 13)

Mas a quem a loquacidade de Starck se dirige As trecircs uacuteltimas citaccedilotildees trazem ele-

mentos comuns ao discurso de Starck que podem contribuir para entendermos estrateacutegias

190

impliacutecitas em suas narrativas aparentemente despretensiosas Primeiro a afirmaccedilatildeo do

proacuteprio designer de que um produto projetado por ele natildeo prioriza a funcionalidade

Partindo desse pressuposto expliacutecito resta a duacutevida se ele levou ou natildeo em 1990 tal pro-

posta de um projeto mais voltado a atributos natildeo funcionais agrave empresa que contratou seu

trabalho a italiana Alessi Em segundo como Branzi nos alerta Starck propotildee que ldquoa grife

do projetista eacute mais importante do que a marca da empresa que fabrica seus produtosrdquo

(morozzi 2012 p 4) Itaacutelico nosso Por exemplo a embalagem em que o espremedor eacute

vendido na atualidade tem o nome de Starck na parte superior da caixa junto agrave fotografia

do produto e a marca da empresa fabricante encontra-se na inferior Aleacutem disso uma foto

do designer eacute estampada como pano de fundo ocupando dois lados da caixa E entre os

escritos de marketing e publicidade inseridos na embalagem constam um slogan sobre

a empresa afirmando que a ldquoAlessi eacute um comerciante de felicidaderdquo e uma frase bem-hu-

morada sobre o produto ldquolsquoJuicy Salif rsquo poderia muito bem ser visto como um pequeno

alieniacutegena que passou a nos visitar em casardquo Traduccedilatildeo nossa (figura 43)

Poreacutem a despeito do discurso que orienta a divulgaccedilatildeo e venda do produto e do proacute-

prio conceito de ldquomicro-escultura simboacutelicardquo que Starck lhe atribui se nos dispusermos

Figura 43 Fotografia do espremedor de frutas da Alessi impressa na embalagem do produto fonte alessi

191

a usaacute-lo como um espremedor ele funciona com eficiecircncia5 Assim se por um lado ob-

temos a resposta para a pergunta sobre o alvo da loquacidade ser o consumidorusuaacuterio

por outro nova duacutevida se estabelece ateacute que ponto a funcionalidade natildeo eacute priorizada

Morozzi aponta para uma possiacutevel resposta que aparece entre parecircnteses

Sua grande qualidade eacute transformar o objeto banal em algo especial uacutenico a ponto de corresponder agraves expectativas inconscientes do consumidor E isso significa conferir agraves coisas normais natildeo apenas valores funcionais (no fundo a funcionalidade eacute dada como certa) mas dotaacute-las da capacidade de expressar mensagens poliacuteticas de amor de ternura impregnadas de humor (morozzi 2012 p 39)

Assim do nosso ponto de vista o que subjaz ao discurso de marketing da ldquoparaacutebolardquo

da sogra e da nora eacute o entendimento de que a funcionalidade jaacute se encontra estabeleci-

da e consequentemente pressuposta pelo designer e pelos clientes que demandam seus

projetos Starck enquanto designer sabe que a funcionalidade eacute essencial para que o seu

campo de trabalho preserve atributos como ergonomia e eficiecircncia entre outros o que

natildeo o impede de ampliar as possibilidades de significaccedilatildeo e ateacute de transfiguraccedilatildeo de seus

objetos criados Seus clientes querem vender mais em um mercado competitivo em que

os produtos tem atributos funcionais semelhantes

Atenta a esse aspecto Judith Carmel-Arthur afirma que Starck ldquoComo estrateacutegia de

marketing explora o culto agrave grife do objeto a fim de despojar os bens do significado fun-

cional primaacuterio transformando-os em artefatos de adoraccedilatildeo particular e inveja puacuteblica

simultaneamente imbui-os mais de fantasia que de fatordquo (carmel-arthur 2000 p 12)

De posse dessa interpretaccedilatildeo do artifiacutecio de Starck eacute necessaacuterio uma pausa para

cotejarmos sua proposta com outra que jaacute analisamos no capiacutetulo 2 e que seraacute frutiacutefera

5 Realizamos diversas praacuteticas informais de uso com turmas de Design na Universidade do Estado de Minas Gerais Apesar da difusatildeo da opiniatildeo inclusive entre possuidores desse artefato de que ele natildeo eacute um utensiacutelio bem projetado para sua tarefa e da inseguranccedila inicial que se sente com o apoio das matildeos em um tripeacute os estudantes se surpreendem com o seu funcionamento simples e eficiente ateacute para frutas maiores como laranjas E quanto agrave expectativa de quase todos diante da forma inusitada do espremedor de que ele natildeo conduziria o liacutequido para o recipiente de coleta comprova-se o con-traacuterio Outros atributos que os estudantes apontam satildeo a independecircncia em relaccedilatildeo agrave eletricidade e a facilidade de limpeza Entre as limitaccedilotildees identificadas o espremedor natildeo barra as sementes e natildeo permite recolher o suco em recipientes maiores que copos

192

para ampliar nossa compreensatildeo das significaccedilotildees incorporadas aos objetos de sua criaccedilatildeo

Trata-se de uma das concepccedilotildees de Rafael Cardoso Como vimos no entendimento de

Cardoso natildeo cabe ao designer atribuir ao objeto a funccedilatildeo (ou funccedilotildees que ele jaacute possui)

como no exemplo do reloacutegio e sua relogiosidade (cf p 109) e sim de enriquececirc-lo com

significados de outros niacuteveis Agrave primeira vista a concepccedilatildeo de Cardoso e a praacutetica de Starck

caminham juntas Ocorre no entanto que Starck conduz sua praacutexis em uma direccedilatildeo

diversa da proposta teoacuterica de Cardoso Como isso se daacute

Distintamente do que propotildee Cardoso Starck mitiga os sentidos funcionais originaacute-

rios dos seus projetos na sua forma e estrutura constitutiva e no discurso que ele profere

sobre os artefatos deles resultantes para os futuros consumidores e usuaacuterios Mesmo que

tais artefatos por necessidade dos fundamentos do design preservem implicitamente

sentidos e funccedilotildees subjacentes a ampliaccedilatildeo e destaque de outros significados deve se

impor e sobrepor agraves suas funccedilotildees Esta inteligente inversatildeo nos conceitos que pode ser

compreendida como parte de uma estrateacutegia de marketing e vendas tem no entanto

seus perigos

Um risco que se corre com a exaltaccedilatildeo excessiva dos sentidos e significados que vatildeo

aleacutem do que Cardoso chama de ldquobaacutesicosrdquo (cardoso 1998 p 33) eacute o que podemos de-

nominar de uma hipertrofia de caracteriacutesticas natildeo funcionais que no extremo inviabiliza

o uso de um artefato seja porque se desconhece suas funccedilotildees seja porque elas estatildeo

ocultas ou bastante dissimuladas ou porque natildeo existe interesse em utilizaacute-lo No caso

de um objeto que se adquire para uso pessoal este risco eacute menor uma vez que o usuaacuterio

normalmente o faz consciente do que compra No entanto quando um objeto eacute de uso

comunitaacuterio mesmo estando em uma residecircncia a probabilidade de um possiacutevel visitante

encontrar dificuldades em abrir (acionar) por exemplo uma torneira6 ou ligar uma sim-

ples lacircmpada tem se tornado maior e exige esforccedilos adicionais do designer para tornar

seu projeto e soluccedilotildees coesas e suas funccedilotildees identificaacuteveis

6 Eacute cada vez mais comum torneiras serem acionadas por sensores de movimento O conceito se bem elaborado e implementado tem inuacutemeras vantagens principalmente em aacutereas puacuteblicas como econo-mia no consumo de aacutegua e higienizaccedilatildeo Mas eacute fundamental que todos os usuaacuterios sejam capazes de identificar e saber usar os sistemas de acionamento Na praacutetica com a crescente ampliaccedilatildeo dos tipos de dispositivos produzidos e a falta de sinalizaccedilatildeo adequada abrir uma torneira tem cada vez mais se tornado uma tarefa de tentativa e erro um problema que natildeo pode ser ignorado pelos designers

193

Cabe ao designer saber dosar e equilibrar as caracteriacutesticas funcionais com as enri-

quecedoras para que uma espeacutecie natildeo encubra ou ateacute suprima a outra Neste sentido vale

lembrar a relevacircncia da concepccedilatildeo de Flusser de que o design enquanto uma ponte atua

na lacuna entre ciecircncia teacutecnica e arte tornando-se mais preponderante na atualidade

Um designer natildeo deve apenas projetar mas saber estabelecer a delicada proporccedilatildeo de cada

elemento constituinte de seu trabalho para ser bem-sucedido natildeo somente na criaccedilatildeo

mas tambeacutem na divulgaccedilatildeo e aceitaccedilatildeo de seus produtos

Neste cenaacuterio 0utro exemplo que confirma nosso entendimento acerca das concep-

ccedilotildees de Starck que se encontram impliacutecitas agrave sua narrativa e que evidenciam o risco da

hipertrofia de caracteriacutesticas vem tambeacutem da Alessi quase uma deacutecada depois da criaccedilatildeo

do espremedor Trata-se de uma espaacutetula para bolo (figura 44) que Philippe Starck nomeia

lsquoCeci nrsquoest pas une truellersquo se inspirando em uma frase do quadro de Reneacute Magritte A

traiccedilatildeo das imagens de 1929 (figura 45) O instrumento disponiacutevel para compra no site

da Alessi vem com um aviso esclarecedor ldquoProduzido desde 1998 apesar de seu atraente

nomelsquoCecinrsquoestpasunetruellersquo[Estanatildeoeacuteumacolherdepedreiro]eacutetatildeosoacutelidoefaacutecil

de manusear quanto a espaacutetula de um pedreirordquo7 Traduccedilatildeo nossa

7 lt httpswwwalessicomit_itdesignersdalla-p-alla-sphilippe-starckpala-per-torta-ceci-n-es-t-pas-une-truelle-90078html gt

Figura 44 Fotografia da espaacutetula para bolo Ceci nrsquoest pas une truelle (1998) de Philippe Starck projetada para a Alessi fonte alessicom

194

Para compreender a associaccedilatildeo que Starck propotildee entre a obra de arte e sua espaacutetula eacute

preciso antes retomar a polecircmica que o quadro de Magritte provocou e que ainda hoje tem

ressonacircncias na arte filosofia e cultura Na base dessa polecircmica estaacute a frase que pertence

ao quadro e natildeo foi escrita mas pintada por Magritte ldquoCeci nrsquoest pas une piperdquo ldquoIsto

natildeo eacute um cachimbordquo e que eacute parafraseada por Starck ao nomear sua espaacutetula Novamente

recorremos agrave Virginia Figueiredo para uma siacutentese da questatildeo em relaccedilatildeo ao quadro de

Magritte A filoacutesofa divide sua anaacutelise e reflexatildeo em trecircs momentos interpretativos dos

quais para os nossos propoacutesitos fazemos uso apenas do primeiro

A perspectiva do primeiro momento leva a seacuterio o comentaacuterio (na verdade irocircnico) de Magritte e conclui com a obediecircncia do pintor natildeo soacute agrave concepccedilatildeo platocircnica da arte mas tambeacutem ao papel tradicional (de designaccedilatildeo ou repre-sentaccedilatildeo) das palavras Aqui ldquoplatonismordquo deveraacute ser entendido abrupta e grosseiramente enquanto uma concepccedilatildeo da essecircncia da arte como ilusatildeo ou coacutepia da coacutepia isso quer dizer que a pintura na sua realidade de ldquosuperfiacutecie preenchida unidimensionalmente por coresrdquo natildeo tem o menor direito de reivin-dicar qualquer estatuto ontoloacutegico A cama pintada jamais poderia ter realidade (ou verdade) para Platatildeo na medida em que apenas a Ideacuteia eacute essencialmente real como todo mundo jaacute sabe Segundo essa hierarquia agrave cama pintada natildeo eacute concedido sequer compartilhar da realidade que tem a cama do marceneiro sobre a qual se pode seguramente dormir jaacute que a utilidade sempre foi um cri-teacuterio inquestionaacutevel de valor das coisas Estamos por conseguinte no ambiente claacutessico da representaccedilatildeo E Magritte concordando com o irredutiacutevel Platatildeo sussurra ldquoO famoso cachimbo Como fui censurado por isso E entretanto Vocecircs podem encher de fumo o meu cachimbo Natildeo natildeo eacute mesmo Ele eacute apenas

Figura 45 Reproduccedilatildeo da pintura A traiccedilatildeo das imagens (1929) de Reneacute Magritte fonte lacmaorg

195

uma representaccedilatildeo Portanto se eu tivesse escrito no meu quadro lsquoisto eacute um cachimborsquo eu teria mentidordquo 1⁰ (figueiredo 2005 p 446-447)

10 Reneacute Magritte citado na contra-capa da 3ordf ediccedilatildeo brasileira de foucault Isto natildeo eacute um cachimbo [nota em peacute de paacutegina da autora]

Independente de Starck estar a par dessas implicaccedilotildees platocircnicas mais profundas ou

natildeo e da ironia8 de Magritte o certo eacute que ele explora a celebridade adquirida pelo quadro

talvez pela polecircmica culturalmente disseminada especialmente na Europa e Estados Unidos

e a direciona para um puacuteblico alvo que de algum modo jaacute esteve em contato com a obra de

Magritte ou com a discussatildeo em torno dela No entanto na hipoacutetese de faltar conhecimento

dos meandros artiacutesticos a algum provaacutevel comprador a Alessi acrescenta a frase de reforccedilo

junto agrave foto do produto como garantia da funcionalidade do objeto E supondo-se que os

usuaacuterios utilizem tal objeto para cortar bolo como no caso do espremedor o ato corriqueiro

pode se tornar assunto para outras conversas de usuaacuterios em um encontro celebraccedilatildeo ou

festa Mas se compararmos a paacute com o espremedor o risco de hipertrofia de caracteriacutesticas

natildeo funcionais parece ser maior nesse segundo produto jaacute que a empresa que o comercializa

sente necessidade de lanccedilar matildeo de explicaccedilotildees adicionais acerca de suas funccedilotildees

Este tipo de diaacutelogo expliacutecito com a arte e com a histoacuteria da arte ocorre em outros tra-

balhos de Starck O projeto de algumas de suas escovas de dentes como a Dr Kiss para a

Alessi trazem referecircncias a uma seacuterie de esculturas de Constantin Brancusi Paacutessaro no Espaccedilo

criadas entre 1923 e 1940 (figura 46) Carmel-Arthur descreve esses utensiacutelios e aponta para

as intenccedilotildees que ela acredita o designer tem ao fazer ligaccedilotildees com a obra de arte

A base alargada cocircnica da Escova de Dentes para LrsquoOreacuteal de 1990 funciona como um significante que orienta o usuaacuterioobservador no reino da histoacuteria da escultura A base ou ldquopedestalrdquo sustenta o que chamou corretamente de haste

ldquoagrave la Brancusirdquo da escova propiciando ao proprietaacuterio consciente do design e da arte um sentimento de confiante erudiccedilatildeo uma recompensa por reconhecer

8 Em um segundo momento Figueiredo (2005 p 453) reforccedila seu entendimento sobre a ironia de Magritte ldquoSe adotamos a perspectiva estritamente loacutegica a conclusatildeo desse segundo momen-to eacute que sendo a frase lsquoIsso natildeo eacute um cachimborsquo essencialmente irocircnica ela eacute ao mesmo tempo verdadeira e falsa Como dizia Suzuki sendo a ironia o ponto de indiferenccedila entre o real e o ideal2⁷ lsquoela eacute inteiramente uma coisa e ao mesmo tempo inteiramente outrarsquo A frase entatildeo po-deria enunciar que lsquoIsto tanto eacute quanto natildeo eacute um cachimborsquo ou simplesmente lsquoIsto eacute e natildeo eacute um cachimborsquo Ambivalente por excelecircncia esse momento aleacutem de provisoacuterio nada pode decidirrdquo 27 Cf suzuki O gecircnio romacircntico p 178 [nota em peacute de paacutegina da autora]

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as referecircncias de que o objeto eacute portador e a citaccedilatildeo do Paacutessaro no Espaccedilo de Constantin Brancusi de 1925 (carmel-arthur 2000 p 20)

Se concordarmos com a autora independentemente dos atributos de uso de uma escova

de dentes Starck explora intencionalmente a associaccedilatildeo que o ldquoproprietaacuterio consciente do

design e da arterdquo consegue fazer entre os dois tipos de objetos Mas em um produto como

esse de uso estritamente pessoal o designer pode abusar da hipertrofia por entender que

aqueles que a adquirem sabem do que se trata Na verdade se nos mantemos dentro da

metaacutefora de Flusser de que o design eacute uma ponte ela deve ser soacutelida e ampla o suficiente

para os designers poderem se movimentar tanto na direccedilatildeo da arte quanto na da ciecircncia

sem que essa estrutura de ligaccedilatildeo se abale preservando seus fundamentos (figura 47)

Figura 47 Esquema da possibilidade de o designer se movimentar entre ciecircncia e arte enquanto a ponte do design se manteacutem estruturada fonte autor

DESIGN

ARTECIEcircNCIA

DESIGNER

Figura 46 Fotografia de uma das esculturas Paacutessaro no Espaccedilo (1928) de Constantin Brancusi (esquerda) e fotografia da escova de dentes Dr Kiss (1996) de Philippe Starck (direita) fonte momaorg

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Paralelamente a essas conexotildees e movimentaccedilotildees em direccedilatildeo ao mundo da arte existe

outro elemento conceitual que Starck explora Quando por exemplo ele discursa sobre

as qualidades intriacutensecas de sua cadeira La Marie (figura 48) entre as inuacutemeras que pro-

jetou suas palavras para caracterizar a criaccedilatildeo remetem a conceitos que podem oferecer

indiacutecios adicionais acerca dos caminhos que este designer percorre em seus trabalhos

Sobre Marie a cadeira para a Kartell ele diz por exemplo que conseguiu ldquofazer o maacuteximo com o miacutenimo menos material quase natildeo haacute material menos pre-senccedila de fato eacute totalmente transparente E apesar de tudo oferece o maacuteximo de serviccedilos mdash resistecircncia leveza e possibilidade de ser empilhada Trata-se de um objeto sem idade extremamente honesto e profundamente moderno Um objeto quase ideal Vocecirc natildeo a vecirc pois eacute totalmente transparente Mas se quiser vecirc-la encontraraacute algo formidaacutevel Trata-se de uma verdadeira faccedilanha tecnoloacutegica com uma uacutenica modelagem um objeto transparenterdquo (morozzi 2012 p 25)

Denominaccedilotildees como ldquoimaterialidaderdquo ldquotransparecircnciardquo ldquoquase idealrdquo e ldquouacutenica mo-

delagemrdquo remetendo agrave atributos de qualidade superior mdash comprovando o interesse do

designer em ldquorecorrerrdquo aos avanccedilos da ciecircncia e da tecnologia como propotildee Bonsiepe

Figura 48 Fotografia da cadeira La Marie (1998) de Philippe Starck projetada para a empresa Kartell fonte kartellcom

198

(2011 p 17) e oferecendo equiliacutebrio agrave Ponte Flusseriana mdash podem ser facilmente asso-

ciadas com a conhecida posiccedilatildeo platocircnica investigada no capiacutetulo 2 Mas a duacutevida sobre

a compreensatildeo que o proacuteprio Starck tem de conceitos dessa natureza que podem de

algum modo fundamentar os processos que guiam seus projetos permanece Em entre-

vista concedida a Cristina Morozzi em 2011 a propoacutesito da relevacircncia de seus projetos

sua resposta eacute ambiacutegua

Cristina Morozzi Dos seus projetos quais gostaria de conservar

Philippe Starck Natildeo conservaria nenhum pois os projetos satildeo mateacuteria O que eu gostaria de conservar do meu trabalho eacute apenas um ponto de vista um espiacuterito uma loacutegica uma batalha uma rebeliatildeo uma poesia um humor e pontos fracos

CM E o que gostaria de jogar fora

PS Teoricamente tudo eacute para jogar fora natildeo haacute nenhum interesse em se ocupar da mateacuteria A mateacuteria A mateacuteria transpira a mateacuteria fede a mateacuteria sua a mateacuteria morre Investir na mateacuteria eacute um peacutessimo investimento Natildeo haacute histoacuteria Natildeo haacute motivos para conservaacute-la (MOROZZI 2012 p 104-105) Itaacutelicos nossos

Ao mesmo tempo em que como um possiacutevel herdeiro do platonismo Starck critica

enfaticamente a materialidade entendendo-a como pereciacutevel contraria esse ideal teoacuterico

de Platatildeo colocando sua atividade projetiva tambeacutem no acircmbito da mateacuteria Essa afirma-

ccedilatildeo que por si soacute jaacute seria um problema se agrava logo em seguida quando ele declara

que ldquoteoricamente tudo eacute para jogar forardquo Onde restaria o espaccedilo para o teoacuterico em seu

trabalho lugar no qual ele mesmo indica ser o patamar de onde constroacutei suas afirmaccedilotildees

Mas ao contraacuterio do que possa parecer Starck estaacute atento agrave importacircncia da teoria

na fundamentaccedilatildeo de projetos Carmel-Arthur a propoacutesito de enfatizar a relevacircncia que

Starck daacute para estabelecer sua identidade em um sentido linguiacutestico lembra-nos que

ele sempre ldquobatizardquo seus produtos com nomes conduzindo a uma associaccedilatildeo entre suas

obras rotuladas e ele mesmo E em seguida cita uma afirmaccedilatildeo de Starck muito anterior

agrave entrevista com Morozzi (1978-9) para o International Design Yearbook ldquoCreio ser

tarefa dos designers passar mais tempo produzindo signos e menos produzindo objetosrdquo

(carmel-arthur 2000 p 11)

Poderiacuteamos considerar que as declaraccedilotildees (proferidas durante uma entrevista) carre-

gam por vezes contradiccedilotildees proacuteprias do discurso oral diversamente de um texto escrito

199

refletido e elaborado previamente No entanto essa possibilidade natildeo pode levar em

consideraccedilatildeo o testemunho de sua entrevistadora Cristina Morozzi ao afirmar que ldquoEle

responde concentrado Acompanha as perguntas com atenccedilatildeo As respostas satildeo precisas

seguras definitivas Ele natildeo daacute opiniotildees mas faz afirmaccedilotildees cristalinas puras confirmando

suas convicccedilotildeesrdquo (morozzi 2012 p 104)

Em relaccedilatildeo agraves entrevistas Judith Carmel-Arthur confirma a posiccedilatildeo de Morozzi

ao afirmar que ldquoSuas entrevistas satildeo normativas Satildeo cronometradas e formuladas para

disseminar o consumo e dizem o que eacute e o que deixa de ser um ldquobomrdquo designrdquo (carmel

-arthur 2000 p 13) Mas atenta ao fundamento do consumo a autora vai em outra

direccedilatildeo e reforccedila uma suspeita ldquoNo entanto as entrevistas devem ser lidas igualmente

como confissotildees autopromocionais apontadas diretamente para o bolso do consumidor

de Starckrdquo (carmel-arthur 2000 p 14) E vai aleacutem

Eacute justo dizer que Starck tentou gerar um discurso genuiacuteno entre si e o mundo do design Eacute o que enfatiza a narrativa pessoal oferecida por suas numerosas entrevistas compensando a ausecircncia de informaccedilatildeo igualmente valiosa no contexto do design contemporacircneo no qual pouco se sabe dos designers (carmel-arthur 2000 p 14)

Apesar da relevacircncia do apelo consumista identificada no trabalho de Starck que

pode distinguir aquilo que ele afirma do que efetivamente ele produz devemos nos per-

guntar ateacute que ponto as conexotildees expliacutecitas com obras de arte como nos projetos da

escova de dentes e da espaacutetula de bolo satildeo estabelecidas por um interesse conceitual de

Starck em seu trabalho e portanto fazem sentido para os nossos propoacutesitos de relaccedilotildees

entre o design e a arte em seu acircmbito ontoloacutegico Talvez natildeo saibamos a resposta Poreacutem

observando a mesma questatildeo da perspectiva de Andy Warhol (que tambeacutem se envolveu

com o tema e a polecircmica do consumismo) entendemos que natildeo faz sentido considerar

o valor do consumo como um elemento comum ao design e agrave arte para ser incluiacutedo no

recorte da nossa investigaccedilatildeo das relaccedilotildees entre esses campos Em outras palavras na

contemporaneidade o capitalismo enraizado eacute uma reacutegua que impotildee medidas e paracircme-

tros que garantem a sobrevivecircncia de profissotildees enquanto eliminam outras Quais dessas

atividades escapam dessa reacutegua Se houver as que escaparem satildeo exceccedilotildees e obviamente

200

asseguram ao consumismo senatildeo universalidade generalidade suficiente para natildeo poder

ser usado como indicador privilegiado de relaccedilotildees entre dois campos

Assim em um caminho diverso um autor que pode ajudar a avanccedilarmos no entendi-

mento ou a encontramos uma siacutentese de alguns elementos constituintes do trabalho de

Starck eacute o filoacutesofo Michel Onfray No livro Scritti su Starck de 2004 (organizado por

Valeacuterie Guillaume) Onfray escreve o capiacutetulo Anatomia di alcuni sortilegi Traduzimos o

tiacutetulo por Anatomia de alguns fetiches e natildeo feiticcedilos uma vez que Onfray ao longo de seu

texto alude ao conceito de fetiche de mercadoria Nos limitaremos a poucos trechos deste

capiacutetulo de 13 paacuteginas dado que Michel Onfray na maior parte de sua escrita apresenta

um discurso em tom elogioso como dissemos que ocorre com o texto de Morozzi o

que frusta a expectativa de uma criacutetica de caraacuteter mais assertivo em texto de um filoacutesofo

Sintoma de um tipo de narrativa que lembra as apresentaccedilotildees de um cataacutelogo de expo-

siccedilatildeo de arte (e natildeo sabemos se o texto de Onfray originalmente teve esse propoacutesito) eacute

que a palavra artista eacute a preferida pelo autor para caracterizar Starck ao longo de todo

o texto Os exemplos a seguir mostram o estilo narrativo com que o filoacutesofo conduz a

maior parte de sua anaacutelise

Designer certamente arquiteto evidentemente criador de formas e de objetos infaliacuteveis designer claro e outras atividades correspondentes se vocecirc realmente quer roacutetulos Mas esses vastos mundos testemunham uma universalidade de uma totalidade que indica adequadamente o artista aquele que procede de um demiurgo e transforma poderosamente tudo o que toca (guillaume 2004 p 60) Traduccedilatildeo nossa

O real imanente o voluntarismo da construccedilatildeo a celebraccedilatildeo das formas orgacircnicas a cenografia do bizarro a paixatildeo pela anamorfose a sublimaccedilatildeo do sangue frio a dialeacutetica das formas e forccedilas eacute assim que circunscrevemos o xamanismo que eacute tudo trabalhar nos objetos de Philippe Starck Palavras de objetos comunica-ccedilotildees de coisas interaccedilotildees de homens e moacuteveis de vida e materiais glossolalia necessaacuteria para atingir ritmos melodias cantadas sussurradas ouvimos uma muacutesica de cerimocircnias de magia de misteacuterio uma melodia eacute surpreendida do misticismo pagatildeo uma voz que veio do nada nutrida pelo espiacuterito dos animais a alma dos animais e a respiraccedilatildeo dos materiais Couro papel alumiacutenio ma-deira epoacutexido vidro accedilo modulam agrave maneira de antepassados equipados para cerimocircnias xamacircnicas (guillaume 2004 p 68) Traduccedilatildeo nossa

201

No entanto uma das questotildees colocadas por esse autor se releva de nosso interesse

pois estaacute ligada ao tema da relaccedilatildeo entre o mundo dos objetos utilitaacuterios e o das obras de

arte Onfray identifica em Starck o que apontamos no capiacutetulo anterior como caracteriacutes-

tica de um modo de projetar atento ao mesmo tempo agrave vida cotidiana e agraves conceituaccedilotildees

e dinacircmicas da arte contemporacircnea

Com Starck os objetos resolvem por si mesmos imediata e violentamente a antiga antinomia entre o artigo ordinaacuterio e a obra de arte o fim do mundo mutilado no qual a trivialidade da vida cotidiana encontra a natureza excep-cional da criaccedilatildeo esteacutetica superando a oposiccedilatildeo entre detalhes materiais do mundo impuro e invisibilidade abstrata do puro universo artiacutestico aboliccedilatildeo da contradiccedilatildeo entre a rua e o museu a casa particular e a coleccedilatildeo puacuteblica A arte natildeo mais serve para especular acumular valores na esperanccedila de que eles sejam impostos jaacute natildeo tem a funccedilatildeo de agir como um siacutembolo social de uma classe com problemas de legitimidade e identidade ou reconhecimento tribal faz parte da realidade transfigura-a e cancela as separaccedilotildees entre o museu e o cotidiano Com ele e graccedilas a ele vocecirc pode viver em casa como em um museu (guillaume 2004 p 60-61) Traduccedilatildeo nossa

Essa ldquotransfiguraccedilatildeordquo9 de elementos das obras de arte em objetos ordinaacuterios eacute com-

preendida por Onfray em sentido inverso ao que vai do cotidiano agrave galeria de arte ou

ao museu Neste caminho o cotidiano representado pela ldquocasardquo pode se transfigurar em

museu uma realidade que natildeo nos atrai10 Se Onfray apresenta essa possibilidade somente

como uma hipeacuterbole dramaacutetica que reforccedila sua posiccedilatildeo ou se acredita que tal condiccedilatildeo

possa se efetivar independente de desejarmos ou natildeo que nossas casas assemelhem-se a

museus ou galerias e algumas delas jaacute o satildeo o relevante eacute que esse autor tambeacutem aponta

para a relaccedilatildeo inversa que investigamos da apropriaccedilatildeo do design de conceitos da arte

Nesse sentido a visatildeo de Onfray estaacute em sintonia com o que afirmamos ao final do ca-

piacutetulo anterior (p 171-172 sintetizada na circularidade da parte direita da figura 38) em

que o design ao tomar posse de conceitos da arte tambeacutem altera os significados de seus

objetos E Onfray acrescenta

9 O conceito de transfiguraccedilatildeo ateacute onde sabemos foi primeiramente empregado nesta temaacutetica por Danto

10 O filme Mon Oncle (1958) de Jacques Tati eacute um prenuacutencio da ideia de casas-museus Com um olhar bem-humorado o cineasta apresenta sua visatildeo criacutetica sobre conceitos de modernizaccedilatildeo na arquitetura influenciando o cotidiano da vida francesa do final da deacutecada de 1950

202

A praacutetica do objeto que difunde a arte de forma infinitesimal homeopaacutetica mas cotidiana resulta em uma interessante aristocratizaccedilatildeo do consumidor Cada indiviacuteduo colocado na presenccedila de um objeto pensado desejado criado pro-duzido e vendido por Philippe Starck vecirc sua casa transformada em um museu Invertendo o movimento habitual que leva o amante da arte para as galerias de arte Starck percebe o desejo querido pelos poetas que aspiram a uma poesia ativa e saem agraves ruas Para fazer isso ele entra no particular desce do pedestal onde as elites os burgueses os esnobes os conservadores o mantecircm e entatildeo integra em si os menores detalhes da vida cotidiana Quando Duchamp convidou a abo-liccedilatildeo de aacutereas artiacutesticas esterilizadas ele abriu o caminho para sonhadores que surpreendem com estranheza criam o bizarro solicitam o inesperado depois fazem poesia na mais banal existecircncia no momento mais inesperado no lugar mais inesperado menos apropriado (guillaume 2004 p 69) Traduccedilatildeo nossa

Seja aristocratizaccedilatildeo ou mais provavelmente seu oposto democratizaccedilatildeo e apesar

de natildeo sabermos se Michel Onfray distingue design e arte diante de sua proposta natildeo

eacute surpresa que este filoacutesofo sele seu entendimento desse movimento do design (do qual

Starck eacute um legiacutetimo representante) com a arte de outro francecircs Marcel Duchamp

Se Duchamp e Warhol satildeo ldquopontos focaisrdquo na arte em parte pela conversatildeo de arte-

fatos em obras de arte Philippe Starck se apresenta como ldquoponto focalrdquo no design natildeo

somente pelo movimento que ele realiza no sentido inverso com os objetos do design

incorporando caracteriacutesticas exclusivas do universo artiacutestico Com isso ele de modo cor-

relato aos dois artistas opera um giro na significaccedilatildeo desses objetos e suas caracteriacutesticas

ontoloacutegicas mas tambeacutem incorpora os demais conceitos que investigamos anteriormente

e que corroboram a segunda parte de nossa hipoacutetese (cf capiacutetulo 1 p 39) e conclui o

objetivo do uacuteltimo item do meacutetodo (cf capiacutetulo 1 p 49)

Assim em retrospecto desta segunda seccedilatildeo devemos atentar para a mimetizaccedilatildeo ine-

rente a diversos projetos de Starck desde oacuteculos com articulaccedilotildees derivadas de princiacutepios

de estruturas oacutesseas ateacute bancos com formas inusitadas (figura 49) sem nos esquecermos

do tatildeo referenciado espremedor que o proacuteprio Starck disse ser inspirado na forma de uma

lula Objetos monstruosos nas palavras de Onfray que fazem de Starck um ldquodemiurgo

malignordquo ldquoum inventor e criador de quimerasrdquo (guillaume 2004 p 66) e como

tambeacutem propotildee Flusser de modo apreensivo por considerar a criaccedilatildeo de ldquoquimeras de

bacteacuteriasrdquo um problema de design (flusser 2007 p 49-50)

203

Ao analisar mais objetos aleacutem dos investigados no capitulo 4 percebemos que os

conceitos aristoteacutelicos de belo versus uacutetil e de fim em si mesmo satildeo recorrentes na proposta

de Starck No entanto como vimos podem caminhar perigosamente em direccedilatildeo agrave hi-

pertrofia de elementos natildeo funcionais em um artefato Se natildeo o transfiguram em obra de

arte podem levaacute-lo agrave condiccedilatildeo de objeto de adorno com uma ambiguidade subjacente

do discurso aberto de Umberto Eco

Por uacuteltimo ao lado desses conceitos aparece o do discurso persuasivo epidiacutectico de

Aristoacuteteles nas declaraccedilotildees do proacuteprio Starck defendendo sua obra e buscando convencer

o consumidor sempre atento aos interesses da publicidade e do mercado

Figura 49 Fotografia do banco WW (1990) de Phili-ppe Starck projetado para o cineasta Wim Wenders e produzido pela empresa Vitra fonte starckcom

204

CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS

Ao concluir-se uma pesquisa existe uma expectativa de caraacuteter cientiacutefico nas conheci-

das expressotildees empregadas por Kuhn (1987) de soluccedilatildeo de ldquoenigmasrdquo ou de resoluccedilatildeo

de ldquoquebra-cabeccedilasrdquo No entanto a ideia de consideraccedilotildees finais eacute mais proacutexima das

investigaccedilotildees que envolvem filosofia na medida em que o exerciacutecio da reflexatildeo nessa

aacuterea eacute antes de tudo indagaccedilatildeo e natildeo necessariamente resposta definitiva Nesse sentido

compreendemos o sentimento do poeta Fernando Pessoa (cf capiacutetulo 3 p 129) e a sua

aversatildeo ao ato de acabar Natildeo eacute mera coincidecircncia que filosofia e poesia de algum modo

se conectem em um mesmo zelo pelo exerciacutecio do percurso empreendido Portanto para

noacutes o tiacutetulo Consideraccedilotildees Finais expressa melhor nossas intenccedilotildees do que Conclusatildeo

Retomando o percurso da tese no capiacutetulo 2 partimos da cisatildeo e hierarquizaccedilatildeo pla-

tocircnica da ciecircncia teacutecnica e arte direcionando o foco desta etapa a primeira do meacutetodo

(cf capiacutetulo 1 p 49) mais para as esferas gnoseoloacutegica e ontoloacutegica do que para a esteacutetica

Nesse momento propedecircutico intensificar e estreitar a articulaccedilatildeo do tema explorando

o diaacutelogo com Maldonado Bonsiepe Schneider Cardoso e Flusser em contraponto agraves

ideias de Koyreacute foram estrateacutegias decisivas para explicitar as consequecircncias dessa cisatildeo

e hierarquizaccedilatildeo no acircmbito do design e da arte

No capiacutetulo 3 com a investigaccedilatildeo sendo direcionada para a esfera esteacutetica e poste-

riormente para a ontoloacutegica estabelecemos um niacutevel de compreensatildeo das relaccedilotildees entre

design e arte preservando ao lado dos conceitos de universalidade e objetividade dois

outros elementos essenciais a esses campos a subjetividade e a incompletude confirmando

assim a primeira parte de nossa hipoacutetese (cf capiacutetulo 1 p 39) Este percurso apoiado nas

reflexotildees de Kant e Thierry de Duve sobre a esteacutetica e nas investigaccedilotildees de Heidegger e

Lacoue-Labarthe sobre ontologia nos permitiu ao mesmo tempo transpor a via epis-

temoloacutegica e demonstrar a capacidade da arte de ampliar a compreensatildeo dos objetos do

design indo aleacutem da instrumentalidade e utilidade Deste modo concluiacutemos a segunda

etapa do meacutetodo

Centrado em Aristoacuteteles o capiacutetulo 4 natildeo trata simplesmente de pensar as relaccedilotildees

entre design e arte mas de ir ateacute os fundamentos daquelas relaccedilotildees que se sustentam em

205

bases ontoloacutegicas Apoiados principalmente em Danto Nietzsche e Eco procedemos

finalmente com o deslocamento dos conceitos aristoteacutelicos para nossos propoacutesitos

Em seguida avanccedilamos da abordagem de cunho mais teoacuterico para seus aspectos mais

pragmaacuteticos ratificando as reflexotildees na esfera da produccedilatildeo com a anaacutelise de objetos do

design e de obras de arte representativos de nossa posiccedilatildeo O procedimento de rastreio

dos conceitos aristoteacutelicos nos exemplos do velcro do espremedor de frutas da Brillo

Box e das latas de sopa Campbel explorados tanto no design quanto na arte encerrou

a terceira etapa do meacutetodo e confirmou a segunda parte da hipoacutetese tendo seu aacutepice ao

compor o quadro das interconexotildees desses dois campos Essa praacutexis com a funccedilatildeo de

corroboraccedilatildeo no mundo sensiacutevel foi ampliada no uacuteltimo capiacutetulo

Atentos ao trabalho de Duchamp Warhol e Starck no capiacutetulo 5 dirigimos nossa

atenccedilatildeo para a praacutetica da arte e do design em seu sentido mais abrangente encerrando

o quarto e uacuteltimo item do meacutetodo Esse contraponto pragmaacutetico da teoria anterior

particularmente em relaccedilatildeo ao design contribuiu para percebemos que com o decorrer

do tempo e a crescente produccedilatildeo praacutetica esse campo se vecirc diante de um duplo desafio

construir sua identidade e justificar sua existecircncia para se estabelecer em peacute de igualdade

com outros campos e dialogar com eles com jaacute ocorre em sua relaccedilatildeo com a arte

Algumas caracteriacutesticas que explicitamos talvez natildeo fossem relevantes se o design natildeo

atuasse de modo interdisciplinar Mas que disciplina contemporacircnea escapa da interdis-

ciplinaridade Aleacutem disso existe a necessidade de certo ldquoegordquo centralizador de ideias que

as aacutereas de pesquisa e trabalho apresentam Esse nuacutecleo que natildeo deixa de ser no nosso

entendimento uma antropomorfizaccedilatildeo das disciplinas conduzida por seus membros

cobra uma identidade dessas aacutereas Por que seria diferente com o design

Poreacutem uma fundamentaccedilatildeo de caraacuteter ontoloacutegico se bem elaborada pode contribuir

para contornar as exigecircncias de exclusividade de bases epistemoloacutegicas quando cobradas

de um ponto de vista ortodoxo E se natildeo for possiacutevel ou natildeo se desejar contornar tais

exigecircncias o design pode assumir-se enquanto uma disciplina indefinida em sua essecircncia

Tal posiccedilatildeo de incompletude aleacutem de natildeo retirar relevacircncia do design acrescenta algo

a autodeterminaccedilatildeo de seu status ontoloacutegico assim como acontece com a arte por de-

finiccedilatildeo indefinida Esta pode ser mais uma caracteriacutestica a compartilhar com a arte sem

206

necessariamente confundir os dois campos E se for para ser indefinido e inacabado que

o design se assuma enquanto tal para natildeo correr o risco de dissolver-se na generalidade

Se por um lado a comprovaccedilatildeo de nossa hipoacutetese de que os fundamentos das rela-

ccedilotildees entre design e arte firma seus alicerces mais profundos no territoacuterio da ontologia

(cf capiacutetulo 3) com os embriotildees da interlocuccedilatildeo entre esses dois campos remontando

ao pensamento grego antigo (cf capiacutetulo 4) por outro a trajetoacuteria seguida ateacute essas

afirmaccedilotildees gera como eacute previsiacutevel em pesquisas de natureza reflexiva novos elementos

e possibilidades natildeo completamente compreendidas Como tais elementos enquanto

desdobramentos do tema satildeo inerentes agrave tese acreditamos que possam ser nesse mo-

mento de exame retrospectivo melhor delineados Admitindo a importacircncia dessa tarefa

retomamos o tema da natureza e essecircncia do design

Procederemos somente com o compromisso de demarcaccedilatildeo do assunto aceitando

que sua completa exploraccedilatildeo demanda espaccedilo maior do que o reservado para essa etapa

No entanto devido ao fato de que o tema emerge ainda na metade do desenvolvimento

da tese na clivagem teoacuterica que separa Kant de Heidegger e se manteacutem dentro do nosso

nuacutecleo propositivo dos fundamentos das relaccedilotildees entre design e arte buscamos pelo

menos fixar alguns marcos a partir de um memento que conduz agrave nossa compreensatildeo

atual da questatildeo

Ao teacutermino da primeira seccedilatildeo sobre Kant (cf capiacutetulo 3 p 128-129) em que chegamos

agrave concepccedilatildeo de design determinado e indeterminado e a consequente formulaccedilatildeo de uma

universalidade subjetiva nesse campo nos confrontamos com duas questotildees Propusemos

respondecirc-las ao final da tese considerando a impossibilidade de compreendecirc-las em toda

a sua extensatildeo naquelas circunstacircncias e etapa As questotildees eram

bull Asinuacutemerasdefiniccedilotildeesdedesignaolongodesuacurtahistoacuteriaeaampliaccedilatildeode

seu campo de atuaccedilatildeo tecircm alguma relaccedilatildeo com a equivalente expansatildeo do universo

artiacutestico contemporacircneo

bull Asdificuldadesatuaisdeseestabelecerdefiniccedilotildeesparaodesignpodemserdevidasa

esse campo ter uma generalidade incipiente de autopromoccedilatildeo ou inerente e anaacuteloga

a disciplinas como a da filosofia

207

Em relaccedilatildeo agrave primeira indagaccedilatildeo apoacutes as investigaccedilotildees empreendidas especialmente

tendo em conta os estudos sobre Duchamp e Warhol no capiacutetulo 5 a resposta eacute que a

expansatildeo do universo artiacutestico efetivamente contribui para a proliferaccedilatildeo de definiccedilotildees

sobre o design E com mais convicccedilatildeo do que no capiacutetulo 3 consideramos que a incom-

pletude do design (decorrente dessa indeterminaccedilatildeo) eacute essencial a esse campo devendo

ser acrescida agraves chaves de interpretaccedilatildeo das suas relaccedilotildees com a arte

A segunda pergunta eacute uma decorrecircncia da primeira e por admitir trecircs respostas distintas

torna-se uma questatildeo de escolha orientada ao passos que foram dados posteriormente agrave

sua formulaccedilatildeo Ficamos com a terceira possibilidade acreditando que uma generalidade

inerente e anaacuteloga agrave filosofia tem raiacutezes no modo de atuaccedilatildeo do design Neste sentido

Arthur Danto estabelece uma proposiccedilatildeo especificamente para a arte mas passiacutevel de ser

conduzida para o territoacuterio do design contribuindo para se natildeo elucidar completamente

a questatildeo pelo menos justificar a nossa escolha

Uma das teses de Danto repetidamente defendida por este autor natildeo somente nos

trecircs escritos selecionados nesta investigaccedilatildeo O filoacutesofo como Andy Warhol (2004) A

transfiguraccedilatildeo do lugar comum (2005) e Andy Warhol Arthur C Danto (2012) se fixa de

maneira persistente na ideia de uma natureza filosoacutefica da arte De nossa parte concor-

damos com essa concepccedilatildeo de Danto jaacute defendida por Aristoacuteteles na obra A poeacutetica (cf

capiacutetulo 4 p 147) tanto pelos seus argumentos que expusemos em distintos momentos

da tese mas tambeacutem por uma constataccedilatildeo factual explorada por este pensador

A natureza da filosofia eacute de tal sorte que ela parece estar logicamente co-implicada com todos os objetos de que se ocupa Se esse raciociacutenio for correto deve-se pocircr em evidecircncia uma pergunta raramente formulada na filosofia da arte por que a arte faz parte das coisas sobre as quais pode haver uma filosofia e por que eacute um fato histoacuterico que nenhum grande pensador de Platatildeo e Aristoacuteteles a Heidegger e Wittgenstein deixou de dizer alguma coisa sobre esse tema (danto 2005 p 99)

Tal constataccedilatildeo de Danto e tambeacutem de outros autores corrobora seus argumentos

de um ponto de vista histoacuterico No entanto o mais relevante para o momento eacute que

se a filosofia realmente efetiva uma ldquoco-implicaccedilatildeordquo com seus objetos de estudo (e essa

convicccedilatildeo foi se sedimentando em nossa consciecircncia durante a escrita da tese) natildeo basta

208

assumi-la apenas como um dos fundamentos na constituiccedilatildeo de uma teoria do design

como sugerem entre outros designers Bonsiepe (2011) Buumlrdek (2006) e Maldonado

(2012) Podemos propor uma consequecircncia (que o proacuteprio Danto entende no acircmbito

da arte como de caraacuteter ldquoloacutegicordquo) derivada dessa co-implicaccedilatildeo da filosofia com os seus

objetos um componente filosoacutefico na natureza do design

No entanto de modo oposto ao nosso raciociacutenio a identificaccedilatildeo de uma essecircncia do

design correlata agrave da filosofia pode ser entendida como apenas uma inferecircncia indevida

a partir de uma vinculaccedilatildeo de elementos comuns aos dois campos Afinal diversas aacutereas

buscam na filosofia bases para constituiccedilatildeo de princiacutepios e fundamentos e apesar disso

natildeo satildeo consideradas detentoras de uma natureza filosoacutefica As ciecircncias modernas por

exemplo nasceram da filosofia e no entanto satildeo compreendidas tanto por epistemoacutelogos

quanto por cientistas como tendo natureza especulativa distinta de sua matriz originaacuteria1

Diante da oposiccedilatildeo entre a visatildeo anterior e a nossa a gnoseologia pode contribuir

para escaparmos desse dilema Uma das distinccedilotildees que essa disciplina faz entre filosofia e

ciecircncia diz respeito agraves classes de pergunta que esses campos encaminham ateacute seus objetos

de estudo como assinalamos anteriormente (cf capiacutetulo 3 p 137) Grosso modo a filosofia

de caraacuteter generalista questiona mais o ldquoque eacuterdquo e o ldquoporquecirc eacuterdquo da realidade enquanto as

ciecircncias especialistas e cada vez mais voltadas aos aspectos descritivos e preditivos dos

fenocircmenos se detecircm principalmente em compreender ldquocomordquo tais eventos ocorrem ou

podem ser previstos

Assim apoiados nesses pressupostos da gnoseologia obtemos condiccedilotildees miacutenimas

para prosseguirmos em nossa proposiccedilatildeo sobre o design Como ponto de partida se

aceitamos a afirmaccedilatildeo de uma essecircncia filosoacutefica nesse campo de imediato satildeo geradas

duas consequecircncias positivas Uma para as relaccedilotildees entre design e arte e outra exclusiva

ao design

1 A filosofia eacute incorporada como mais um elemento comum ao design e agrave arte auxi-

liando a compreender a riqueza e intensificando suas relaccedilotildees

1 Se instituiccedilotildees como o cnpq (httplattescnpqbrwebdgparvore-do-conhecimento) ao categoriza-rem as aacutereas do conhecimento colocam a filosofia sob a classe das ciecircncias humanas natildeo significa que do ponto de vista conceitual essa disciplina natildeo tenha caracteriacutesticas distintas daquilo que a ciecircncia moderna e contemporacircnea estabeleceu para si mesma

209

2 Independentemente de circunscrever o design dentro de uma determinaccedilatildeo ou aacuterea

especiacutefica do conhecimento torna-se expliacutecita sua associaccedilatildeo com a reflexatildeo de carac-

teriacutesticas filosoacuteficas o que reforccedila nossa posiccedilatildeo de que o design faz uso das ciecircncias

mas natildeo eacute uma delas (cf capiacutetulo 3 p 127-129)

Acreditamos na relevacircncia desses dois resultados por entendecirc-los como conquistas para

ambos os campos Quanto a comprovar sua origem como fundados na natureza filosoacutefica

do design em primeiro lugar eacute importante retornar a alguns dos autores investigados na

tese e agraves suas posiccedilotildees que de forma distinta anteveem e prenunciam essas ldquoco-implicaccedilotildeesrdquo

Gui Bonsiepe (2011 p 181) (cf capiacutetulo 1 p 42) autoriza especificamente a disciplina da

filosofia distinguir design de arte Vileacutem Flusser (2007 p 48-50) (cf capiacutetulo 2 p 98-

100) impotildee ao design parte consideraacutevel da responsabilidade (normalmente cobrada da

filosofia e da ciecircncia) sobre pensar e equacionar os fins e responsabilidades do homem e

suas produccedilotildees perante a natureza Rafael Cardoso e Philippe Starck compreendem alguns

aspectos constituintes do design de modo semelhante embora matizado para o primeiro

ldquo[]odesigneacuteemuacuteltimaanaacuteliseumprocessodeinvestirosobjetosdesignificados[]rdquo

(cardoso1998p29)eosegundoacreditaldquo[]sertarefadosdesignerspassarmais

tempo produzindo signos e menos produzindo objetosrdquo (carmel-arthur 2000 p

11) Em ambos o design estaacute mais associado agrave etapa do projeto2

2 Essa separaccedilatildeo entre elaboraccedilatildeo de conceitosplanos e execuccedilatildeo jaacute se encontra estabelecida desde a cultura grega claacutessica O sentido de saber fazer da teacutekhne se revela por exemplo nos trabalhos de Phiacutedias (c 490ndash430 aC) Encarregado das obras puacuteblicas de Atenas por seu governante Peacutericles (494ndash429 aC) orientou e fiscalizou as equipes que produziram templos preacutedios puacuteblicos e escultu-ras (woodford 1982 p 52) Esse sentido segue ao longo da histoacuteria passando pelo Renascimento onde a produccedilatildeo de obras arquitetocircnicas de esculturas e pinturas deixadas a cargo de mestres eram executadas em parte por uma equipe Na atualidade com os avanccedilos da teacutecnica e a exigecircncia cada vez maior de conhecimentos especiacuteficos para a produccedilatildeo de obras com novos materiais o conceito de saber fazer estaacute atrelado agrave especializaccedilatildeo pela proacutepria dificuldade de os profissionais dominarem aacutereas em raacutepida expansatildeo Nesse sentido a atuaccedilatildeo de parte dos artistas e designers tende a se concentrar no acircmbito conceitual e criativo transferindo a produccedilatildeo a profissionais especializados na execuccedilatildeo Exemplos disso no acircmbito da arte satildeo as gigantescas esculturas em metal de Tomie Ohtake E em design editorial a especializaccedilatildeo com exceccedilotildees confina os designers na etapa projetiva e no maacuteximo ao acompanhamento (produccedilatildeo graacutefica) da execuccedilatildeo que fica a cargo das graacuteficas No entanto os avanccedilos recentes da tecnologia e a reduccedilatildeo de custo de equipamentos como cncs e impressoras 3d tecircm propiciado em nichos especiacuteficos um caminho diverso para aqueles que se propotildeem a atuar desde a concepccedilatildeo ateacute o produto acabado

210

Nas posiccedilotildees anteriores algumas de modo mais evidente do que outras os autores

buscam estabelecer o design como um domiacutenio em que no nosso entendimento as inten-

ccedilotildees e motivaccedilotildees originaacuterias nos projetos estatildeo ligadas agrave possibilidade de ampliaccedilatildeo da

realidade que satildeo assumidas pelos designers como mais relevantes do que a constataccedilatildeo

ou descriccedilatildeo de como a realidade eacute Se os designers em sua praacutetica tecircm plena consciecircncia

desse modus operandi eacute algo que demanda outra investigaccedilatildeo

Em segundo lugar (indo aleacutem da questatildeo da universalidade subjetiva analisada no

capiacutetulo 3) agora podemos afirmar que a indeterminaccedilatildeo do design se deve tambeacutem agrave

indeterminaccedilatildeo de seus objetos Recordemos que a Ponte Flusseriana representada em

sua forma mais ampliada na figura 10 (cf capiacutetulo 2 p100) expande consideravelmente

os acircmbitos de atuaccedilatildeo do design e dos designers conectando natildeo somente ciecircncia e arte

mas alcanccedilando ateacute os domiacutenios da natureza Enquanto as ciecircncias tradicionais mantecircm

seus objetos circunscritos aos seus princiacutepios paradigmas e leis e se aprofundam em

descriccedilotildees cada vez mais precisas desses objetos o design pode conceber ou participar da

elaboraccedilatildeo de novos conceitos e objetos fiacutesicos ou desmaterializados sem extrapolar seus

limites de atuaccedilatildeo Por exemplo a estrutura da World Wide Web e outras instacircncias de

realidades virtuais como as concepccedilotildees computadorizadas em trecircs e quatro dimensotildees

receberam e ainda continuam a receber significativas contribuiccedilotildees do design em suas

constantes implementaccedilotildees

O alargamento de fronteiras direcionado a conceitos e objetos a partir de um afasta-

mento do senso comum e de uma busca por problematizaccedilatildeo da realidade ou ateacute da criaccedilatildeo

de novos problemas3 eacute antes de tudo inerente agrave filosofia desde os seus primoacuterdios Essa

rica caracteriacutestica natildeo se dissemina a todos os campos do conhecimento pelas proacuteprias

especificidades necessidades e prioridades de cada aacuterea E uma parte apreciaacutevel dessas

3 Um exemplo de limitaccedilatildeo que o senso comum impotildee ateacute aos ciacuterculos da reflexatildeo filosoacutefica vem de Pierre Aubenque Este historiador da filosofia com o propoacutesito de ressaltar a originalidade de determinados problemas e conceitos filosoacuteficos como o da ontologia afirma que ldquoO problema do ser mdash no sentido da questatildeo O que eacute o ser3⁸mdash eacute o menos natural de todos os problemas aquele que o senso comum nunca se colocou aquele que nem a filosofia preacute-aristoteacutelica nem a tradiccedilatildeo imediatamente posterior se colocaram enquanto tal aquele que tradiccedilotildees outras que as ocidentais jamais conjecturaram ou abordaram (aubenq ue 2012 p 22)

38 Aristoacuteteles natildeo se fez tanto como o pensamento grego em seu conjunto esta outra questatildeoPor que haacute o ser em vez do nada [nota em peacute de paacutegina do autor]

211

aacutereas objetiva apenas solucionar problemas o que natildeo eacute pouco Mas o mesmo natildeo ocorre

com a arte e com o design

Pode-se recorrer a um mundo inteligiacutevel para pensar a infinidade de possibilidades

do mundo sensiacutevel tanto na natureza quanto na produccedilatildeo humana O exemplo da cama

(cf capiacutetulo 2 p 66-70) mdash que poderia ser uma cadeira ou qualquer outro objeto que

solicita a atenccedilatildeo do designer para ser concebido mdash eacute simboacutelico e estrutural na medida

em que estabelece a essecircncia da poacuteiesis em suas vertentes de episteacuteme e teacutekhne No entanto

acreditamos que o design e os designers estatildeo cada vez mais conscientes e dispostos a natildeo

simplesmente atuarem solucionando enigmas e quebra-cabeccedilas mas em uma atitude que

vai aleacutem desses protocolos e ao mesmo tempo afastando-se do senso comum criarem novos

problemas antes de solucionaacute-los Em outras palavras ateacute onde podemos compreender o

projeto de uma cadeira ou outro objeto que natildeo eacute previsto (preacute-visto mdash prae-uidĕo) pelos

usuaacuterios natildeo eacute uma antevisatildeo mas antes de tudo um problema inventado com base em

teoria e que pode gerar diversas soluccedilotildees

Esta capacidade de problematizar herdada da filosofia pelo design tambeacutem estaacute des-

crita por Umberto Eco (cf capiacutetulo 4 p 165) como essencial agrave arte que ldquonatildeo quer agradar

e nem consolar mas colocar problemas renovar a nossa percepccedilatildeo e o nosso modo de

compreender as coisasrdquo (eco 1988 p 280) O que enfatizamos eacute que o problema que

normalmente4 se estabelece antes da soluccedilatildeo natildeo necessita ser dado somente pela phyacutesis

(natureza) mas tambeacutem pode ser produzido pelas mentes criativas

Neste ponto aquela advertecircncia platocircnica (de caraacuteter pedagoacutegico) para que cada

profissional cuide de seu trabalho e deixe os demais ldquoem pazrdquo (platatildeo 1987 p 74)

reforccedila certa concepccedilatildeo do design que Cardoso questiona tambeacutem pedagogicamente

Segundo o senso comum mdash ainda ensinado em algumas escolas mdash ldquodesigner natildeo eacute artistardquo tampouco artesatildeo arquiteto engenheiro estilista marqueteiro publicitaacuterio e assim por diante Em meio a tantas advertecircncias sobre o que os

4 O problema surge normalmente mas natildeo necessariamente antes de sua soluccedilatildeo Tal inversatildeo eacute comum na matemaacutetica Em diversas ocasiotildees essa ciecircncia contrariou a ideia do problema ser estabelecido em primeiro lugar Por exemplo os polinocircmios propostos por Sergei Bernstein foram criados sem a intenccedilatildeo deste matemaacutetico de aplicaacute-los como soluccedilatildeo a problemas da induacutestria de automoacuteveis ou de fontes tipograacuteficas digitais e estruturas 3d computadorizadas que surgiriam anos depois (silva 2016 p 41-42)

212

alunos natildeo devem ser esquece-se muitas vezes de lhes dizer o que de fato eles podem vir a ser A resposta vem em duas partes por um lado natildeo satildeo nada disso por outro satildeo tudo isso e mais (cardoso 2016 p 231)

Nas primeiras liccedilotildees de filosofia aprendemos que o conceito de senso comum eacute dia-

metralmente oposto agrave atitude criacutetica e com certeza Cardoso sabe disso O paradoxo

presente nas palavras desse autor que compreendemos e aceitamos como inerente ao de-

sign reforccedila nossa convicccedilatildeo de que uma complementaridade natildeo excludente seraacute sempre

bem-vinda a esse campo Resta propor com mais ecircnfase agraves novas geraccedilotildees de designers

que a incompletude pode ser uma virtude

213

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NIETZSCHE Friedrich O nascimento da trageacutedia ou helenismo e pessimismo

Traduccedilatildeo notas e posfaacutecio J Guinsburg Satildeo Paulo Companhia das Letras 1992

NIETZSCHE Friedrich A gaia ciecircncia Traduccedilatildeo Paulo Ceacutesar de Souza Satildeo Paulo

Companhia das Letras 2001

PENROSE Roger A mente nova do rei computadores mentes e as leis da fiacutesica

Traduccedilatildeo Waltensir Dutra Rio de Janeiro Editora Campus 1991

PEREIRA Isidro Dicionario greco-portuguecircs e portuguecircs-greco 4ordf ediccedilatildeo Porto

Livraria Apostolado da Imprensa 1969

PESSOA Fernando Paginas de esteacutetica e de teoria e criacutetica literaacuterias Textos

estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho Lisboa

Aacutetica 1967

PESSOA Fernando Mendes Arte e verdade no pensamento de Heidegger In

Arqueologias da criaccedilatildeo estudos sobre o processo de criaccedilatildeo Org Acircngela Maria

Grando Bezerra e Joseacute Cirillo Belo Horizonte CArte 2009

PLATAtildeO A repuacuteblica Introduccedilatildeo traduccedilatildeo e notas Maria Helena da Rocha Pereira

5ordf ediccedilatildeo Lisboa Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian 1987

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POPPER Karl R Conjecturas y refutaciones el desarrollo del conocimiento

cientiacutefico Barcelona Paidos 1972

POPPER Karl R Conhecimento objetivo uma abordagem evolucionaacuteria Belo

Horizonte Itatiaia Satildeo Paulo Editora Universidade de Satildeo Paulo 1975

POPPER Karl R A loacutegica da pesquisa cientiacutefica Satildeo Paulo Cultrix 1993

ROBERT Paul REY-DEBOVE Josette REY Alain Le nouveau petit Robert

dictionnaire alphabetique et analogique de la langue franccedilaise nouv ed Paris

Dictionnaires Le Robert 1993

ROVELLI Carlo A realidade natildeo eacute o que parece a estrutura elementar das coisas

Traduccedilatildeo Silvana Cobucci Leite Rio de Janeiro Objetiva 2017

ROVELLI Carlo A ordem do tempo Traduccedilatildeo Silvana Cobucci Rio de Janeiro

Objetiva 2018

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SARAIVA F R dos Santos QUICHERAT L Noviacutessimo dicionaacuterio latino-

portuguecircs etimoloacutegico prosoacutedico histoacuterico geograacutefico mitoloacutegico biograacutefico etc

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e econocircmico Satildeo Paulo Bluumlcher 2010

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  • CAPA
  • PAacuteGINAS PREacute-TEXTUAIS
    • Folha de Rosto
    • Ficha Catalograacutefica - verso Folha de Rosto
    • Folha de Aprovaccedilatildeo
    • Dedicatoacuteria
    • Agradecimentos
    • Epiacutegrafe
    • Resumo
    • Abstract
    • Lista de Ilustraccedilotildees
    • Lista de fontes na Internet
    • Sumaacuterio
      • PAacuteGINAS TEXTUAIS
        • 1 INTRODUCcedilAtildeO
          • 11 Estrutura do texto
          • 12 Percursos preacutevios
          • 13 Questotildees norteadoras
            • 2 ORIGENS E CONSEQUEcircNCIAS DA HIERARQUIZACcedilAtildeO DA CIEcircNCIA TEacuteCNICA E ARTE
              • 21 A essecircncia compartilhada de quatro conceitos gregos
                • 211 Phyacutesis
                • 212 Poacuteiesis
                • 213 Teacutekhne
                • 214 Episteacuteme
                  • 22 Hierarquia platocircnica cisatildeo e ruptura
                    • 221 A metafiacutesica impliacutecita ao tema da cidade ideal
                    • 222 O argumento ontoloacutegico contra a arte mimeacutetica
                    • 223 Desdobramentos da hierarquizaccedilatildeo do conhecimento
                      • 23 Design entre ciecircncia teacutecnica e arte
                        • 231 Afastamentos aproximaccedilotildees e interaccedilotildees
                        • 232 Artifiacutecios fronteiras moacuteveis e pontes
                        • 233 Essecircncia ontoloacutegica e epistemoloacutegica
                            • 3 DA ESTEacuteTICA Agrave ONTOLOGIA NA ARTE E NO DESIGN
                              • 31 Kant e a abordagem esteacutetica na arte e no design
                                • 311 Subjetividade e objetividade no territoacuterio da arte
                                • 312 Os conceitos de ACT e ART
                                • 313 Antinomia e dilema
                                • 314 Uma releitura de Kant do belo agrave arte
                                • 315 Uma soluccedilatildeo incompleta ou a incompletude como soluccedilatildeo
                                • 316 Subjetividade e objetividade no territoacuterio do design
                                • 317 Outra releitura de Kant da arte ao design
                                • 318 A universalidade objetiva no design
                                • 319 A universalidade subjetiva no design
                                  • 32 Heidegger e o vieacutes ontoloacutegico na arte e no design
                                    • 321 O giro em direccedilatildeo agrave ontologia
                                    • 322 A criacutetica a Platatildeo a arte natildeo eacute imitaccedilatildeo
                                    • 323 Poacuteiesis como produccedilatildeo phyacutesis como terra e teacutekhne como mundo
                                    • 324 Os trecircs modos de produccedilatildeo e sua influecircncia sobre o design
                                    • 325 O design aleacutem da instrumentalidade e da utilidade
                                        • 4 OS CONCEITOS ARISTOTEacuteLICOS NO DESIGN E NA ARTE
                                          • 41 O fundamento ontoloacutegico do conceito de miacutemesis
                                            • 411 A inversatildeo aristoteacutelica miacutemesis mediadora ativa e criativa
                                            • 412 A alianccedila entre universalidade verdade e arte poeacutetica
                                            • 413 As relaccedilotildees entre miacutemesis teacutekhne e phyacutesis
                                              • 42 Deslocamento do conceito de miacutemesis e sua contribuiccedilatildeo ao design e agrave arte
                                                • 421 A miacutemesis exoacutegena no design acreacutescimo e processo agrave natureza
                                                • 422 A miacutemesis endoacutegena no design adaptaccedilatildeo e evoluccedilatildeo
                                                • 423 A miacutemesis complementar na arte saiacuteda parar o dilema de Euriacutepedes
                                                  • 43 Ampliaccedilatildeo das determinaccedilotildees ontoloacutegicas nas relaccedilotildees entre design e arte
                                                    • 431 Da arte ao design o conceito de fim em si mesmo
                                                    • 432 Da arte ao design o discurso aberto e o persuasivo epidiacutectico
                                                    • 433 Do design agrave arte a metaacutefora epistemoloacutegica e os objetos sensiacuteveis
                                                        • 5 A PRODUCcedilAtildeO DE OBJETOS NO MUNDO SENSIacuteVEL
                                                          • 51 Pontos focais na arte Andy Warhol e Marcel Duchamp
                                                          • 52 Ponto focal no design Philippe Starck
                                                            • CONSIDERACcedilOtildeES FINAIS
                                                              • PAacuteGINAS POacuteS-TEXTUAIS
                                                                • REFEREcircNCIAS
                                                                      1. Button 100
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