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86 I éPOCA I 1 o de setembro de 2014 esde que conquistaram seu es- paço na cultura popular nos anos 1980, os games sempre foram sinônimo de interatividade. Seu principal atrativo, na comparação com a televisão e o cinema, era permitir que os jogadores decidissem o destino dos personagens e se envolvessem em suas aventuras. A vontade de participar da história ajudou os games a superar a indústria cinematográfica em fatura- mento e criou um mercado cheio de produções milionárias, com multidões nas portas das lojas em dia de lança- mento. As filas continuam enormes. Nos últimos anos, a indústria dos jo- gos começou a atrair um novo público: gente que não se importa nem um pouco com interatividade. São fanáti- cos por games, acompanham as prin- cipais novidades e não perdem uma aventura de seus personagens favori- tos. Só não fazem questão de tocar nos controles. Para eles, a graça está em assistir aos jogos. Há mais de dez anos, nada era mais chato que ver alguém jogar. Nas reu- niões entre amigos, a graça era torcer para quem estivesse jogando perder o mais rápido possível e me dar a vez. Descobri, recentemente, que estou fora de moda. Para milhões de fãs no mundo inteiro, a graça é torcer por D seus jogadores favoritos. No ano pas- sado, 15 mil pessoas lotaram o Staples Center, em Los Angeles. Não para ver os tradicionais times de basquete que costumam ocupar a quadra, mas para ver a final do campeonato mundial de League of legends, o jogo on-line mais jogado do mundo. A cena se repete no Brasil. No último dia 26 de julho, 8 mil pessoas lotaram o Maracanãzinho para ver a final do Circuito Brasileiro de League of legends. Os ingressos se esgotaram em cinco horas. “Foi ma- ravilhoso. Quando cheguei, fiquei assus- tado com a empolgação da plateia, a qualidade dos telões, a organização”, afirma o estudante Felipe Cordeiro, de 21 anos. A iluminação do ginásio fi- cou dividida, metade vermelha e me- tade azul, para representar KaBuM e CNB, os dois times que se enfrenta- vam. Telas formavam torres que mos- travam o personagem que cada joga- dor usava. Antes do início, uma orquestra tocou uma das músicas do jogo. A plateia enlouqueceu. Há vários motivos para assistir a um jogo em vez de jogar. Em alguns casos, os vídeos são uma escola. Jogos atuais, sobretudo os on-line, são complexos. Há dezenas de personagens e dúzias de ações, possibilitando milhares de com- binações. Observar os melhores ensina a passar de fase ou derrotar adversários na internet. Depois que descobri os vídeos de games no YouTube, meu de- sempenho melhorou muito. Outros enxergam as transmissões como uma forma de acessar os conteúdos sem a barreira financeira. Com um jogo novo ao custo médio de R$ 200, e games on-line cobrando taxas fixas dos participantes, os es- pectadores que não querem gastar muito se integram à brincadeira ob- servando. Alguns até abrem mão de ter games em casa. “Gosto mesmo é da narrativa. Comecei a assistir por- que achava que não teria tempo para EXPERIêNCIAS DIGITAIS Quem quer aproveitar os jogos de última geração não precisa de dinheiro ou habilidade. A moda é assistir às partidas dos craques, em vez de jogar Os games viraram espetáculo Felipe Germano, com Danilo Venticinque CASA CHEIA Final de um campeonato de games no Maracanãzinho, no Rio, em 26 de julho. O evento reuniu 8 mil pessoas

Os games viraram espetáculo

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Texto publicado na revista Época, sobre o crescente habito de assistir partidas de videogame, ao invés de jogá-los de fato. A matéria aborda as transmissões via internet e também encontros presenciais, que chegaram a lotar o Maracanãzinho.

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esde que conquistaram seu es-paço na cultura popular nosanos 1980, os games sempre

foram sinônimo de interatividade. Seuprincipal atrativo, na comparação coma televisão e o cinema, era permitir queos jogadores decidissem o destino dospersonagens e se envolvessem em suasaventuras. A vontade de participar dahistória ajudou os games a superar aindústria cinematográfica em fatura-mento e criou um mercado cheio deproduções milionárias, com multidõesnas portas das lojas em dia de lança-mento. As filas continuam enormes.Nos últimos anos, a indústria dos jo-gos começou a atrair um novo público:gente que não se importa nem umpouco com interatividade. São fanáti-cos por games, acompanham as prin-cipais novidades e não perdem umaaventura de seus personagens favori-tos. Só não fazem questão de tocar noscontroles. Para eles, a graça está emassistir aos jogos.

Há mais de dez anos, nada era maischato que ver alguém jogar. Nas reu-niões entre amigos, a graça era torcerpara quem estivesse jogando perder omais rápido possível e me dar a vez.Descobri, recentemente, que estoufora de moda. Para milhões de fãs nomundo inteiro, a graça é torcer por

D seus jogadores favoritos. No ano pas-sado, 15 mil pessoas lotaram o StaplesCenter, em Los Angeles. Não para veros tradicionais times de basquete quecostumam ocupar a quadra, mas paraver a final do campeonato mundial deLeague of legends, o jogo on-line maisjogado do mundo. A cena se repete noBrasil. No último dia 26 de julho, 8mil pessoas lotaram o Maracanãzinhopara ver a final do Circuito Brasileirode League of legends. Os ingressos seesgotaram em cinco horas. “Foi ma-ravilhoso. Quando cheguei, fiquei assus-tado com a empolgação da plateia, aqualidade dos telões, a organização”,afirma o estudante Felipe Cordeiro, de21 anos. A iluminação do ginásio fi-cou dividida, metade vermelha e me-tade azul, para representar KaBuM eCNB, os dois times que se enfrenta-vam. Telas formavam torres que mos-travam o personagem que cada joga-dor usava. Antes do início, umaorquestra tocou uma das músicas dojogo. A plateia enlouqueceu.

Há vários motivos para assistir a umjogo em vez de jogar. Em alguns casos,os vídeos são uma escola. Jogos atuais,sobretudo os on-line, são complexos.Há dezenas de personagens e dúzias deações, possibilitando milhares de com-binações. Observar os melhores ensina

a passar de fase ou derrotar adversáriosna internet. Depois que descobri osvídeos de games no YouTube, meu de-sempenho melhorou muito.

Outros enxergam as transmissõescomo uma forma de acessar osconteúdos sem a barreira financeira.Com um jogo novo ao custo médiode R$ 200, e games on-line cobrandotaxas fixas dos participantes, os es-pectadores que não querem gastarmuito se integram à brincadeira ob-servando. Alguns até abrem mão deter games em casa. “Gosto mesmo éda narrativa. Comecei a assistir por-que achava que não teria tempo para

experiências digitais

Quem quer aproveitar os jogos de última geraçãonão precisa de dinheiro ou habilidade. A moda éassistir às partidas dos craques, em vez de jogar

os games viraramespetáculo

Felipe Germano, com Danilo Venticinque

casa cheiaFinal de umcampeonatode games noMaracanãzinho,no rio, em 26de julho.O evento reuniu8 mil pessoas

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explorar cada jogo. Aí, quando joga-va, já sabia o que aconteceria”, afirmao analista de informática EduardoTrevisani. “Uma hora perdeu a graça.Preferia só assistir. Acabei vendendomeus videogames.”

O crescimento do público criouoportunidades de negócio para bonsjogadores. O pernambucano ThulioCarlos, de 21 anos, é um exemplo.Conhecido como SirT, ele começou ajogar League of legends aos 17. No anopassado, mudou-se para São Paulo,para atuar como jogador profissional.“Comecei na brincadeira e virei umdos primeiros brasileiros a se destacar

no ranking mundial”, afirma Carlos.Ele é um dos membros da equipePaiN, fundada por Arthur Curiati, de25 anos. Arthur era jogador do time.Aposentou-se dos teclados para sededicar aos bastidores. A PaiN temuma casa em São Paulo onde vivemtodos os participantes da equipe: osjogadores, o responsável pelo marke-ting, o designer, o fotógrafo e o téc-nico do time. Para manter isso, contacom patrocinadores. O negócio deutão certo que a empresa já contrataprofissionais do exterior. Dois sul--coreanos se juntaram à equipe paraaumentar o nível técnico do grupo.

Com treinos e imersão no sistemade jogo, os profissionais de videoga-me adquirem velocidades assustado-ras de raciocínio e movimento. Aagilidade no mouse e nos teclados émedida em ações por minuto, ouAPM. Um jogador profissional chegaa realizar 300 comandos no mouse ouno teclado em apenas um minuto –ou cinco movimentos por segundo.Para qualquer amador que se consi-dera bom no videogame, digitar“APM” no YouTube é suficiente pararecobrar a humildade. Fiz isso e ain-da não consigo acreditar na velocidadedos jogadores coreanos. s

Foto: divulgação

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Há profissionais que, em vez de com-petir e jogar em velocidades sobre-hu-manas, tentam conquistar os jogadorespelo carisma. Alguns são divertidos deassistir, porque mostram os sustos quetomam jogando games de terror. Ou-tros fazem comentários engraçados aolongo da partida. Há quem se tornecelebridade digital ao ser acompanha-do por espectadores que querem sabero que jogam no momento. Um exem-plo é Leon Martins, de 30 anos, funda-dor do canal Coisa de Nerd, com maisde 2 milhões de inscritos no YouTube.“Em 2008, eu morava na Alemanha ecriei um blog de vídeos para mostrarminha rotina à família, que estava aqui.Quando voltei ao Brasil, continuei essetrabalho na internet, mas abordandomeu principal interesse: os games”,afirma Martins.

Embora os games no YouTube façamsucesso, o grande negócio no ramoatualmente é o Twitch, um site com-prado pela Amazon por US$ 970 mi-lhões. Sustentado por anúncios, elereúne mais de 55 milhões de usuáriospor mês. “Todos na indústria usam oTwitch para promover seu conteúdo.Toda grande organização tem um ca-nal”, diz Matthew DiPietro, vice-presi-dente de marketing do Twitch.

Com os vídeos disseminados pelasredes, seus produtores acabam criandolegiões de fãs. “Tenho 90 mil pessoasem meu Facebook. É um público ativoe formador de opinião”, afirma ThulioCarlos. A influência desses jogadoresé sua maior arma. São pessoas que, pormeio de seu conteúdo e de sua criati-vidade, se tornam influenciadores. Ainfluência é um capital dentro domundo hiperconectado”, afirma Gus-tavo Teles, fundador da Influencers,agência que administra a carreira deprodutores de conteúdo para a inter-net. Teles diz que os jogadores trans-formaram sua diversão num trabalhoque dá muito dinheiro. “Temos joga-dores que faturaram no ano passadoR$ 1 milhão. Não dá para falar que issonão é uma carreira.”

Há quem jogue pelo dinheiro e háquem jogue pela arte. O programadorfinlandês Joel Yliluoma, criador do siteTAS videos, está no segundo grupo. Elese debruça sobre os jogos com a ajuda

Para todosos estilos

TwiTchComprado pela Amazonpor US$ 970 milhões, éa principal plataformapara jogadores quequerem transmitirpartidas ao vivo

hiTboxConcorrente doTwitch, tem funçõessemelhantes e umdesign simples, paraquem quer acompanharseus jogadores favoritos

YouTubeO maior site de vídeosdo planeta tem um bomacervo para quem querassistir a jogos. Algunsjogadores ganhammilhões com publicidade

esTraTégiaAdministrar recursose conquistar territóriosinimigos são os principaisobjetivos de Starcraft 2,o favorito dos coreanos,e outros games do gênero

TiroGeralmente ambientadosem guerras, jogos comoBattlefield 4 põem ojogador na pele de umpersonagem armado.São quase filmes de ação

esporTesUma partida entre bonsjogadores de Fifa 14 temcara de jogo de Copado Mundo. Partidas nãoprofissionais lembrama série C do Brasileiro

MMorpgO nome é dado a gamesde aventura em que váriosjogadores interpretamdiferentes papéis einteragem on-line. Leagueof legends é o destaque

experiências digitais

Alguns dostipos de gamesque fazem maissucesso com osespectadores

Onde assistir

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de computadores, para prever os mo-vimentos de personagens inimigos,descobrir brechas na programação echegar ao final do jogo no menor tem-po possível. O objetivo é a perfeiçãoem forma de game. “Os vídeos vãoalém do limite humano. É como senossos reflexos fossem automáticos,tivéssemos premonições e nunca co-metêssemos um único erro, nunca”,afirma Yliluoma. Ele criou um site quemostra jogadores que excedem seuslimites. Num dos vídeos, um jogadorconsegue terminar o clássico The le-gend of Zelda: majora’s mask em menosde uma hora e meia. Levei meses parafazer o mesmo e me senti humilhado.Pior ainda foi quando descobri outroprofissional que captura todos os 152monstrinhos de Pokemon yellow emum minuto e 20 segundos, graças a umerro na programação. Joguei esse jogotodos os dias durante minha infânciae nunca consegui a proeza que ele atin-giu em segundos. A frustração é inevi-tável, mas é impossível não assistir,admirado, ao resultado do vídeo. Con-fesso que me senti um pouco melhorquando descobri que o próprio Yliluo-ma já se sentiu como eu. “Meu vídeofavorito atualmente é de um jogadorque completou Super Mario Bros 2 emmenos de nove minutos, algo impen-sável para um jogador ocasional”, dizYliluoma.“Em 2004, fiz um vídeo des-se jogo e estava com o recorde. Aí, apa-receu um jogador que me superouusando o personagem mais lento dogame. Estava derrotado, mas feliz.”Tudo pela arte. E pela admiração denós, pobres jogadores ocasionais.

Seja nos vídeos com auxílio docomputador, seja nas transmissões aovivo de campeonatos no Twitch, ohábito de assistir a jogos de videoga-me parece estar a caminho de se tor-nar tão popular quanto o hábito dejogar. “É como o futebol: você gostade jogar com seus amigos, mas tam-bém aprecia ver os profissionais, boasjogadas e estratégia”, diz Roberto Ier-volino, gerente-geral da Riot GamesBrasil, empresa detentora dos direitosde League of legends no Brasil. A com-paração faz algum sentido. Para umatorcida que já lota ginásios, os estádiossão o próximo passo. u

seM as MãOsO analistade informáticaeduardo trevisani.ele vendeu seusvideogames eagora assiste aosjogos dos outros

TerrorAlém de assistir às cenasmais assustadoras deSlender e a outros sucessosdo gênero, o espectadorpode se divertir com asreações dos jogadores

avenTuraO roteiro é o grande trunfode games desse estilo. Bemjogados, The last of us eoutros jogos do tipo sãotão envolventes quanto umblockbuster de Hollywood

LuTaSucesso nos fliperamasdos anos 1990, jogos deluta popularizaram oscampeonatos de games.Street fighter 4 é oherdeiro dessa paixão

sandboxMinecraft é um exemplodesse gênero, que criamundos digitais cheios depossibilidades. Nos vídeos,os jogadores compartilhamdescobertas e experiências

speed deMos archiveReduto de jogadorescompetitivos desde1998. O objetivo deles échegar ao final de jogosem tempo recorde – eregistrar cada minuto

TasTrapacear é permitido.Com a ajuda de recursosdigitais, os jogadorestentam gravar a melhorpartida possível dediferentes games no site

Tv coreanaOs games são tãopopulares na Coreiado Sul que ganharamcanais exclusivamentededicados a eles natelevisão a cabo

Fotos: Rogerio Cassimiro/Editora Globo e reprodução (6)

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