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PRÁTICAS Revista Práticas em Educação Infantil – vol. 4; nº 5 44 ISSN 2447-620X OS HABITANTES DE HAREBOOBI: UMA PROPOSTA PEDAGÓGICA VIVIDA COM CRIANÇAS NO CONTEXTO DO PIBID Aline Buy dos Santos [email protected] Professora EI CPII/ Professora Supervisora PIBID UFRJ Dulcinéa Rosa [email protected] Licencianda Pedagogia UFRJ/ Bolsista PIBID Juliana Helena Vieira [email protected] Licencianda Pedagogia UFRJ/ Bolsista PIBID Larissa Santana de Oliveira [email protected] Licencianda Pedagogia UFRJ/ Bolsista PIBID Letícia Ferreira da Silva Freitas [email protected] Licencianda Pedagogia UFRJ/ Bolsista PIBID Lívia de Fática Conceição [email protected] Licencianda Pedagogia UFRJ/ Bolsista PIBID Queila Jessica Celeste Bernardo Justino [email protected] Licencianda Pedagogia UFRJ/ Bolsista PIBID Vanessa Saraiva Ribeiro da Silva [email protected] Licencianda Pedagogia UFRJ/ Bolsista PIBID Resumo Este artigo tem por objetivo apresentar e analisar uma proposta pedagógica elaborada pelas bolsistas do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), no âmbito do Centro de Referência em Educação Infantil Realengo - CREIR. Essa proposta foi pensada e executada no contexto de um projeto em curso que abarcava a construção de uma cidade por uma turma do grupamento de 4 anos (GIV). No primeiro momento, buscou-se refletir sobre as tensões experimentadas na chegada à escola e os desafios de colocar em ação tal proposta, estando à frente de uma turma pela primeira vez. Em seguida, apresenta-se a proposta vivida com as crianças, assumindo como referências as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL) e a abordagem italiana de Reggio Emília (EDWARDS, C., GANDINI, L., & FORMAN, G.). Por fim, pretende-se compartilhar as marcas produzidas por essa experiência na formação das professoras. Palavras-chave: Educação Infantil; Formação de professores; PIBID; Proposta Pedagógica.

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PRÁTICAS Revista Práticas em Educação Infantil – vol. 4; nº 5 44

ISSN 2447-620X

OS HABITANTES DE HAREBOOBI: UMA PROPOSTA PEDAGÓGICA VIVIDA

COM CRIANÇAS NO CONTEXTO DO PIBID

Aline Buy dos Santos

[email protected]

Professora EI CPII/ Professora Supervisora PIBID UFRJ

Dulcinéa Rosa

[email protected]

Licencianda Pedagogia UFRJ/ Bolsista PIBID

Juliana Helena Vieira

[email protected]

Licencianda Pedagogia UFRJ/ Bolsista PIBID

Larissa Santana de Oliveira

[email protected]

Licencianda Pedagogia UFRJ/ Bolsista PIBID

Letícia Ferreira da Silva Freitas

[email protected]

Licencianda Pedagogia UFRJ/ Bolsista PIBID

Lívia de Fática Conceição

[email protected]

Licencianda Pedagogia UFRJ/ Bolsista PIBID

Queila Jessica Celeste Bernardo Justino

[email protected]

Licencianda Pedagogia UFRJ/ Bolsista PIBID

Vanessa Saraiva Ribeiro da Silva

[email protected]

Licencianda Pedagogia UFRJ/ Bolsista PIBID

Resumo

Este artigo tem por objetivo apresentar e analisar uma proposta pedagógica elaborada pelas

bolsistas do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), no âmbito do

Centro de Referência em Educação Infantil Realengo - CREIR. Essa proposta foi pensada e

executada no contexto de um projeto em curso que abarcava a construção de uma cidade por

uma turma do grupamento de 4 anos (GIV). No primeiro momento, buscou-se refletir sobre

as tensões experimentadas na chegada à escola e os desafios de colocar em ação tal proposta,

estando à frente de uma turma pela primeira vez. Em seguida, apresenta-se a proposta vivida

com as crianças, assumindo como referências as Diretrizes Curriculares Nacionais para a

Educação Infantil (BRASIL) e a abordagem italiana de Reggio Emília (EDWARDS, C.,

GANDINI, L., & FORMAN, G.). Por fim, pretende-se compartilhar as marcas produzidas por

essa experiência na formação das professoras.

Palavras-chave: Educação Infantil; Formação de professores; PIBID; Proposta Pedagógica.

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PRÁTICAS Revista Práticas em Educação Infantil – vol. 4; nº 5 45

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Introdução

Neste presente trabalho abordamos a experiência vivenciada no ano de 2018 por nós,

um grupo de licenciandas do curso de Pedagogia da Universidade Federal do Rio de Janeiro

(UFRJ), participantes do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID).

Apresentamos uma proposta de atividade pedagógica desenvolvida na turma 45 – uma turma

do GIV, do Centro de Referência em Educação Infantil Realengo (CREIR).

O PIBID é uma ação da Política Nacional de Formação de Professores do Ministério

da Educação (MEC) implementada, desde o ano de 2007, pela Coordenação de

Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). O Programa concede bolsas aos

discentes, que são acompanhados por um professor da escola parceira e por docentes das

Instituições de Educação Superior (IES) de origem.

Os principais objetivos consistem em melhorar a qualidade da educação básica pública

brasileira e fomentar a formação inicial, proporcionando aos licenciandos a inserção no

ambiente escolar na primeira metade do curso, permitindo a aproximação com o cotidiano das

escolas e compreensão do contexto em que elas estão inseridas. Ao longo do projeto:

[...] os estudantes, futuros pedagogos-professores, são convidados a entrar em

contato com as práticas de outros professores, práticas instituídas, ao mesmo tempo

em que experimentam o questionamento de suas próprias visões de criança e da

Pedagogia da Educação Infantil. Formar-se professor relaciona-se com refletir sobre

as práticas vigentes e experimentar a autoria de práticas [...]. (GUIMARÃES,

ARENHART e SANTOS, 2017, p.368).

O texto objetiva socializar alguns percursos formativos através das nossas narrativas,

desde a chegada ao CREIR que ocorreu no segundo semestre do ano de 2018, contando sobre

as nossas inseguranças, anseios, experiências de aproximação com o grupo até o

desenvolvimento de uma proposta pedagógica elaborada por nós e posta em prática junto com

as crianças com o auxílio da professora supervisora. Nossa presença na turma 45 nos fez

mergulhar num projeto de criação de uma cidade. A turma 45 vinha trabalhando em uma

maquete de cidade chamada “Hareboobi”, construída de sucata. Hareboobi tinha várias

estruturas físicas como casas, ruas (...), mas observamos que não possuía habitantes, assim o

projeto de “criar pessoas” começou a ser pensado. Nesse texto, trazemos as marcas desta

nossa experiência, buscando compreender e expandir os sentidos do vivido no encontro com

nossas memórias, diários de campo e os estudos teóricos.

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1. “Estamos procurando pessoas perdidas”: as tensões da chegada na escola

Constituíamos um grupo marcado pela diferença. Cada uma de nós estava em um

período diferente da graduação, algumas já tinham experiências de estágio, outras eram

oriundas de magistério e outras iniciaram sua docência a partir daquele dia. Com isso, nossas

expectativas eram diversas, mas tínhamos em comum as inseguranças.

Uma das minhas inseguranças era ligada ao fato de não ter sido normalista no

Ensino Médio, e ter caído de paraquedas na Pedagogia, assim não saber como agir

com a turma. (JULIANA, estudante do PIBID, 2018).

Meu primeiro dia nessa aventura foi um estranhamento. Muito desafiador. E a

ansiedade de entrar na sala de aula? Como me vestir? O que esperar desse

movimento? (DULCINÉA, estudante do PIBID 2018).

Antes da minha chegada na escola, minha maior insegurança era se eu ia conseguir

entender as crianças, e se elas conseguiriam me entender também. (LARISSA,

ESTUDANTE DO pibid, 2018).

Ao chegarmos à escola, não sabíamos bem como nos aproximar das crianças.

Seríamos recebidas pela turma através de uma brincadeira organizada pela professora

supervisora. As crianças foram avisadas sobre a nossa chegada. As professoras se referiram a

nós como as “pessoas amigas” que fariam parte da turma a partir daquele dia, mas que

estavam perdidas no CREIR, porque não conheciam o caminho da sala. As crianças ficaram

animadas e curiosas. Com a ajuda de um mapa - a leitura de mapas era a especialidade

daquela turma - saíram a nossa procura.

Quando Felipe passou pela minha amiga e por mim ele disse: ‘- Estamos

procurando pessoas perdidas’, junto com seus amigos que procuravam ao redor. Eu

respondi: ‘- Nós estamos perdidas’, e foi assim que nos conhecemos. (VANESSA,

estudante do PIBID, 2018).

O convívio com as crianças era surpreendente. A todo momento éramos apresentadas

a alguma nova experiência. Todas nós ficamos surpresas com a liberdade das crianças nessa

instituição. Logo nos primeiros dias foi possível ver crianças entrando e saindo das salas de

outras turmas, participando no planejamento das ações do dia, aventurando-se em

experiências com lama. O cotidiano provocava novas inseguranças e nos desafiava a uma

mudança de visão, especialmente a abrir mão de algumas ideias enraizadas pelas nossas

vivências anteriores de estágio em outras instituições e pelas nossas próprias experiências

escolares, a de que as crianças devem a aprender sentadas em carteiras e fazendo silêncio na

maior parte do tempo.

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Todo esse processo de construção da relação gerou uma insegurança. As

crianças são inesperadas e, principalmente no contexto de autonomia que

elas vivem, sabem expressar seus desejos e afinidades com clareza. (LIVIA,

estudante do PIBID, 2018).

Hoje percebo que essa insegurança era culpa do tradicionalismo enraizado

em mim, onde sentia dificuldade em saber como agir e em entender até onde

essa liberdade poderia ir. Era evidente o impulso de “nós fazemos para

eles”, “nós ensinamos a eles”, “eles aprendem com a gente”, sendo que o

que estávamos experenciando naquele momento era completamente o oposto.

(QUEILA, estudante do PIBID, 2018).

A partir de nossas observações chamou-nos atenção o modo como as crianças

vivenciam, desde o início da sua inserção na Educação Infantil, o direito de exercer a

autonomia, de apresentar seus interesses e questionamentos, de explorar os tempos-espaços,

de mostrar o seu saber através do fazer. Elas participam do planejamento e suas ideias

orientam o trabalho desenvolvido pelas professoras. Elas têm o direito de discordar, de

transitar, de visitar outras salas. Essa liberdade foi testemunhada por nós em diversos

momentos.

Na hora do almoço a turma tinha autonomia para servir seus pratos e comer

sozinha, sem as professoras interferirem. Já em escolas tradicionais praticamente

as professoras iriam ‘enfiar’ a comida na boca dos alunos, alegando falta de tempo,

que elas não sabem comer, entre outras coisas. (JULIANA, estudante do PIBID,

2018).

[...] não era necessário ficar pedindo permissão para pegar um lápis, brinquedo,

livro, para ir beber água ou usar o banheiro, porque elas sabem que podem usar;

no momento da refeição são elas que colocam o alimento no prato, de acordo com o

que gostam e na quantidade que julgam suficiente. (QUEILA, estudante do PIBID,

2018).

Após a nossa chegada e os impactos daquela proposta de educação infantil que ainda

nos surpreende, precisávamos nos tornar parte integrante daquele grupo. Observamos que as

brincadeiras favoreciam a nossa aproximação. Também percebemos a afetividade na interação

das crianças com as professoras. Seria esse o caminho? Nosso olhar esteve aguçado em busca

de pistas. Percebemos que até mesmo a nossa vestimenta deveria ser repensada, para

acompanhar a movimentação daqueles pequenos corpos. No começo, éramos nós quem

buscávamos as crianças, até que elas começaram a nos buscar também.

Logo depois de um tempo de estágio fui me aproximando das crianças nos

momentos de brincadeira, no planejamento semanal e na hora das refeições [..]

(JULIANA, estudante do PIBID, 2018).

O principal meio que usei para me aproximar das crianças foram os momentos de

brincadeira. Nesse contexto, logo após nossa chegada na sala algumas crianças já

começaram a conversar e pedir para jogar com elas. Durante essas conversas

começamos a nos conhecer e elas começaram a confiar em nós. Entretanto, isso foi

um processo não linear e ocorreu em cada criança de forma diferente. (LIVIA,

estudante do PIBID, 2018).

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E os desafios não pararam por aí, as crianças não pareciam me ver e isso era

frustrante… Até que uma das crianças se aproximou e sem perguntar quem eu era,

me chamou para brincar. (DULCINÉA, estudante do PIBID, 2018).

As nossas reuniões com as coordenadoras e supervisoras na universidade reiteravam

nossas percepções individuais, quando através dos relatos das colegas, percebíamos que todas

nós, sem exceção, estávamos revendo nossas concepções de Educação Infantil. Nossas

vivências na prática se contrapunham, em muitos aspectos as nossas expectativas. A relação

professor-criança que vinha se construindo no CREIR gerava questionamentos e sobretudo

desconstruía nossas ideias iniciais.

[...] O que esperar da minha própria prática docente? Como desenvolver aquela

prática no chão da escola, valorizando o que as crianças consideram importante

para elas? Tudo era muito novo e provocador. (DULCINÉA, estudante do PIBID,

2018).

As brincadeiras, canções, técnicas, posturas, entre tantas vivências dentro do

CREIR ainda não podem ser completamente explicadas por mim. Fazem parte de

um processo da minha formação, que está em andamento. Porém, não há dúvidas de

que minhas perspectivas foram ampliadas. Passo a ter uma visão mais crítica e rica

sobre as formas de atuação como professora dentro da escola e, especificamente, na

Educação Infantil. (VANESSA, estudante do PIBID, 2018).

Sempre achei que seria difícil trabalhar com Educação Infantil, mas depois da

turma 45 entrar na minha rotina, percebi que era mais fácil do que imaginava. As

crianças são incríveis, e as minhas inseguranças se transformaram em uma euforia.

Eu sempre esperava a semana inteira para estar no CREIR, e estar em contato com

elas, para saber que histórias elas iriam me contar, que experiências elas trariam

para mais uma semana. (LARISSA, estudante do PIBID, 2018).

2. A primeira experiência à frente de turma: o desafio de planejar e viver uma proposta

com as crianças

Após o processo de aproximação das crianças e da nossa integração com o grupo, nos

vimos diante do desafio de elaborar e viver uma proposta junto com a turma. Para isso

tínhamos os registros de campo, que nos ajudou a perceber os gostos individuais e do grupo,

seus interesses de atividade e afins. A partir das nossas observações percebemos a

importância de dialogar com o projeto da turma 45, de criação da cidade de Hareboobi. Esta

já possuía prédios, meios de transporte, animais, vulcão, lagos e ruas, porém não havia

habitantes. E se nós os criássemos junto com elas? Com esse objetivo, começamos a pensar o

planejamento durante as reuniões do PIBID, juntamente com as coordenadoras e a professora

supervisora. Para criá-lo tínhamos em mente uma concepção de “currículo emergente”

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fazendo referência a perspectiva Italiana de Reggio Emilia, que compreende assim o

planejamento:

[...] método de trabalho no qual os professores apresentam objetivos educacionais

gerais, [...] formulam hipóteses sobre o que poderia ocorrer, com base no seu

conhecimento das crianças e experiências anteriores. Juntamente com essas

hipóteses, formulam objetivos flexíveis e adaptados às necessidades e interesses das

crianças, os quais incluem aqueles expressados por elas a qualquer momento durante

o projeto, bem como aqueles que os professores inferem e trazem à baila à medida

que o trabalho avança. (RINALDI, 2016 p. 107).

Nesse contexto, iniciamos uma discussão sobre como seria a atividade. Como as

crianças têm muita segurança em dizer o que querem ou não fazer, pensávamos se elas

“comprariam” nossa ideia. Será que elas gostariam que a cidade tivesse moradores? A

professora supervisora nos relatou que em outros momentos, antes da nossa chegada, o

interesse de povoar Hareboobi já havia se manifestado em algumas crianças. Isabela, por

exemplo, ao ser indagada sobre as características do povo de Hareboobi, disse que “as pessoas

são todas diferentes”. Entretanto, a empreitada não seguira adiante. Assim, inspiradas pelas

palavras de Isabela a nossa proposta ganhou um nome: “Pessoas de Hareboobi: reflexões

sobre a diversidade”.

Depois de muito diálogo entre nós e a professora supervisora, criamos um

planejamento flexível, buscando atender as demandas das crianças. Este foi dividido em

primeira e segunda etapas, seguido de possibilidades de desdobramentos, que seriam

avaliadas de acordo com as nossas observações sobre o maior ou menor engajamento do

grupo. Na primeira etapa nós buscamos iniciar uma conversa entre a turma 45 e a Estefany –

personagem inventada por nós –, apresentar a ideia de confecção dos habitantes da cidade e

fomentar um diálogo sobre a diversidade. Na segunda etapa, criamos um espaço de narrativa,

em que as crianças poderiam contar ao outro grupo de pibidianas sobre a experiência da

primeira etapa e dar continuidade a oficina de habitantes apresentando novos recursos

materiais.

2.1. Primeira Etapa: os habitantes de Hareboobi e a misteriosa viajante do Pará

Depois da acolhida da turma 45, no início do dia, anunciamos a todos que tínhamos

uma surpresa para mostrar no momento da “reunião” que as crianças costumavam fazer com

as professoras todas as manhãs depois do desjejum. Observamos que aquele era um espaço

privilegiado de escuta, por isso planejamos trazer a proposta nessa hora. E, antes mesmo de

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falarmos do que se tratava, as crianças começaram a nos perguntar se a surpresa tinha alguma

coisa a ver com a pequena carta que estava em nossas mãos.

Bernardo, ao ler o número 45 no envelope, supôs que era uma carta enviada à turma

por uma pessoa pequena. Respondemos que sim, era uma carta enviada a eles e, em seguida,

quando pensamos em abrir o envelope, Bernardo nos surpreendeu tomando a carta de nossas

mãos, dizendo que ele mesmo iria ler. Bernardo inventou coisas que não prevíamos, causando

uma tensão maior do que esperávamos. Como lidar com essa situação imprevista e ao mesmo

tempo respeitar as hipóteses de leitura de Bernardo? Juliana apontou algumas coisas que

Bernardo não tinha percebido na sua leitura.

Figura 1: Carta da Estefany à turma 45.

Fonte: Acervo pessoal, 2018.

Após a leitura, conseguimos explicar que a carta havia sido enviada por Estefany, uma

boneca feita de sucata, que na brincadeira com as crianças, era uma pessoa muito interessada

na cidade de Hareboobi. Acreditamos que a personagem poderia despertar o interesse do

grupo pela nossa proposta de confeccionar bonecos/habitantes para a cidade.

As crianças viram as fotos da Estefany em Hareboobi e ficaram fascinadas por ela,

dizendo que queriam conhecê-la. Alguns não acreditaram que ela havia ido embora, outros

levantaram outras hipóteses. O Lucas, por exemplo, insistia na possibilidade dela ter destruído

os moradores e por isso a cidade estaria vazia, afirmava ainda que ela poderia ter destruído a

própria cidade. Lucas era uma criança muito influente no grupo, por isso algumas crianças

concordaram com as suas hipóteses.

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Figura 2: Fotos da Estefany na cidade Hareboobi quando fez a visita e não encontrou

ninguém.

Fonte: Acervo pessoal, 2018.

Embora os materiais para confeccionar os habitantes estivessem a postos e a nossa

intenção fosse convidá-los a construí-los logo após a leitura da carta, a discussão sobre a

Estefany se intensificou e, com o apoio da supervisora, mudamos o rumo do planejamento.

Achamos pertinente levar o grupo até o atelier onde a cidade costumava ficar para que eles

pudessem investigar se a cidade havia sido mesmo destruída pela Estefany e se ela ainda

estava por lá.

Fomos acolhidos no atelier pela professora de artes, que abriu as portas prontamente e

as crianças puderam começaram a procurar pela Estefany. Observaram a cidade, notaram que

tudo permanecia intacto e que não havia ninguém, nem mesmo a Estefany, por lá. Dessa

forma, convidamos a turma a criar amigos que poderiam viver na cidade junto com ela. Foi

assim que as crianças aceitaram o nosso convite e começaram a dizer, bastante animadas, que

tipo de habitantes iriam criar. Arthur queria fazer jogadores de futebol, Felipe já estava

determinado a fazer o maquinista para conduzir o trem da cidade, Lucas disse que ia fazer um

ladrão, então Miguel disse que iria fazer um policial. Dessa maneira a proposta aconteceu,

provocando em nós um sentimento de satisfação e alegria.

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Figura 3: As crianças observando a cidade e procurando a Estefany.

Fonte: Acervo pessoal, 2018.

Antes da confecção começar, apresentamos à turma 45 uma caixa chamada “Caixa da

Diversidade”. A caixa, inspirada pela fala de Isabela, continha imagens que representavam as

diferenças e a diversidade das mais variadas formas: havia fotografias de pessoas pertencentes

a diversas etnias, pessoas com necessidades especiais, de diferentes gerações, etc. Nossa

intenção era observar como as crianças iriam enxergar essas imagens, o que elas diriam? As

imagens causariam estranhamento ou seriam inspiração para suas criações?

Figura 4: Fotos da Caixa da Diversidade disponível às crianças.

Fonte: Acervo pessoal, 2018.

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Os materiais que dispomos para a confecção dos habitantes nesse primeiro momento

foram pequenas caixas de papelão de vários tamanhos e uma paleta de cores produzidas por

nós, que representavam diferentes tons de pele. Com a variedade de recursos, as crianças

começaram a criar os bonecos, cada uma a seu modo. Para outras crianças, como o Bernardo,

por exemplo, o material disponível não era o bastante. Preferiu buscar seus próprios recursos,

usando um pequeno bloco de madeira que encontrou na sala para fazer seu personagem.

Figura 5: Confecção inicial dos habitantes de Hareboobi por Miguel e Bernardo.

Fonte: Acervo pessoal, 2018.

Figura 6: Rute escolhe a cor para pintar uma das caixas com a nossa ajuda.

Fonte: Acervo pessoal, 2018.

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A escolha do tema diversidade se deu a partir da fala de Isabela, entretanto, podemos

dizer que ele se mostrou ainda mais pertinente quando, em nossas reuniões na universidade,

nos dedicamos a leitura das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil

(BRASIL, 2010) e do Parecer CNE/CEB Nº: 20/2009, que revisa essas diretrizes. O Parecer

determina, como uma das condições para a organização de um currículo capaz de promover o

desenvolvimento integral das crianças, “o combate ao racismo e às discriminações”, “sendo

objeto de constante reflexão e intervenção no cotidiano da Educação Infantil” (BRASIL,

2009, p. 9).

De acordo com EDWARDS (1999, p.161) “o papel do professor centraliza-se na

provocação de oportunidades de descobertas, através de uma espécie de facilitação alerta e

inspirada e de estimulação de diálogo”. Assim, apostamos na caixa de imagens como um

disparador de diálogos, uma oportunidade de mediarmos, quem sabe, os estranhamentos das

crianças. Nesse sentido, as crianças nos surpreenderam. Bernardo encontrou a fotografia de

uma mulher com vitiligo e disse que ela era muito bonita. “Ela é minha namorada”, ele dizia.

Arthur achou interessante a fotografia de um cadeirante e quis saber detalhes sobre as pessoas

que se locomovem com a cadeira de rodas. As crianças pareciam muito à vontade, . mediamos

diálogos marcados pela curiosidade e não pelo estranhamento. Ao final, o grupo decidiu um

lugar para colocar as caixas pintadas até que elas pudessem secar e a proposta pudesse ser

retomada.

2.2. Segunda etapa: os habitantes ganham vida ao virarem brinquedos

Passados dois dias, nós retomamos a atividade com a turma 45. Após o acolhimento e

o desjejum, a turma se dirigiu para a sala de artes e se dividiu entre os brinquedos do fundo da

sala e as mesas com propostas nossas. Com o objetivo de chamar-lhes a atenção, a cidade de

Hareboobi foi colocada no centro das mesas. Assim, com as crianças ao redor dela, nós as

indagamos sobre o que havia acontecido no primeiro momento da atividade.

O grupo relembrou a construção dos habitantes da cidade e começou a procurá-los na

caixa de diversidade, onde foram guardados depois que a tinta secou. Lucas, entretanto,

retomou a ideia de que a Estefany havia ido à cidade para “matar e destruir”. Embora

estivéssemos ansiosas para retomar a confecção dos habitantes com o grupo, nesse momento,

mais uma vez incentivamos as crianças a observarem a cidade em busca de indícios e

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conversamos a respeito, ouvindo suas hipóteses e suas narrativas até que as crianças seguiram

convictas de que Hareboobi não havia sofrido nenhum ataque.

Ao vivenciarmos a proposta com o grupo, ocorreram diversas mudanças na trajetória,

o que não seria possível se inicialmente, ao pensarmos o planejamento, não tivéssemos em

nossas intenções as possibilidades de flexibilização e de abertura às crianças. Na Educação

Infantil, e na Educação de um modo geral, deve-se estar preparado para o esperado e o

inesperado. As DCNEI (BRASIL, 2009), ao destacarem o respeito aos desejos e ritmos das

crianças, afirmam a importância do planejamento centrado nelas, tendo em vista suas

particularidades e, ao mesmo tempo, valorizando o processos vividos, para além de sua

finalidade. Rinaldi (2016) reitera esses princípios, que orientaram o nosso trabalho:

[...] o potencial das crianças é paralisado quando o ponto final de sua aprendizagem

é formulado de antemão. Em vez disso, no início de um projeto, os professores

devem reunir-se e discutir de todos os modos como o projeto poderá vir a evoluir,

considerando as ideias prováveis, as hipóteses e as escolhas feitas pelas crianças. Ao

fazer isso, (os professores) preparam-se para todos os estágios subsequentes do

projeto – mesmo se o inesperado acontecer. (RINALDI, 2016, p.109).

Quando retomamos a oficina, as crianças buscaram suas respectivas produções e

sentamos todos à mesa. Perguntamos: “o que mais podemos construir nos habitantes? ”, e as

crianças prontamente responderam: “rosto”, “cabelos”, “olhos”, “roupa”. Apresentamos os

recursos reunidos por nós, como tecidos de cores diversas, glitter, lantejoulas, fitas de cetim,

fitilhos, lãs, pompons e papel crepom. Todos os recursos foram dispostos na mesa, e as

crianças puderam explorar os materiais, projetar suas ideias e executá-las, contando com o

nosso apoio, além das professoras da turma.

As crianças seguiram pensando sobre cada um de seus projetos de habitantes, e sobre

quais materiais gostariam de usar. Porém, suas ideias extrapolaram nossos recursos. Lucas, ao

expressar o desejo de fazer os olhos de seus dois moradores, buscou papel branco, desenhou

com canetinha e recortou; Arthur S. recortou um rosto de uma revista que encontrou na sala;

Arthur N., inspirado pela caixa de diversidade, pegou uma das fotografias onde havia uma

mulher cadeirante, e recortou de uma revista a imagem de um homem que colou em uma

cadeira de rodas feita de caixas de fósforo e tampas de garrafa, de forma que o homem

parecesse sentado.

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Figura 7: Lucas desenhando os olhos do seu “bandido”.

Fonte: Acervo pessoal, 2018.

Nesse contexto, pudemos constatar a importância do papel de mediação do professor na

atividade, buscando uma forma de oferecer um ambiente e recursos propícios para o

desenvolvimento do potencial criativo das crianças. Entretanto, não é fácil perceber durante a

execução de uma proposta se a nossa presença é invasiva ou pertinente, o que acaba exigindo

de nós um exercício constante de nos perguntarmos e analisarmos rapidamente as situações.

“O desafio para o adulto é estar presente sem ser um intruso, a fim de manter melhor

a dinâmica cognitiva e social enquanto está em progresso. Ocasionalmente, ele deve

apoiar o conflito produtivo desafiando as respostas de uma ou de várias crianças.”

(RINALDI, p. 111, 2016).

Durante a construção dos moradores, questões étnico-raciais estiveram presentes.

Estávamos admiradas com o fato das crianças lidarem com tanta abertura às diferenças.

Arthur N. havia confeccionado uma pessoa cadeirante sem demonstrar nenhum

estranhamento, por exemplo. Entretanto, em determinado momento da atividade, Lucas

mencionou diversas vezes a expressão “cor de pele” ao se referir a cor de um de seus bonecos,

que era rosa claro. A professora supervisora, observando que Lucas construíra dois bonecos,

perguntou quais eram as cores que ele havia utilizado em sua produção, e Lucas respondeu

que um deles era “cor de pele” e o outro marrom. Nesse momento a professora pediu para ele

olhasse as imagens da caixa da diversidade, em seguida para as pessoas na sala. A professora

perguntou: “Lucas, qual é a cor da pele da Camila?”. Camila, a professora de artes, era uma

mulher negra. Camila prontamente se aproximou e ofereceu o braço para que Lucas pudesse

fazer sua constatação. Lucas respondeu: “Marrom”. As professoras ajudaram Lucas e as

crianças presentes a perceberem que cada um tinha uma cor e todas essas cores eram “cores

de pele”.

As crianças começaram a elaborar narrativas sobre os habitantes, indo além do

esperado para esse segundo momento. Durante o planejamento, nós elaboramos diversas

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possibilidades de desdobramentos que seriam apresentadas no terceiro momento para as

crianças. Entretanto, com a surpresa desse movimento de invenção das personagens, seus

gostos e seus propósitos na cidade de Hareboobi, ao mesmo tempo em que ajudávamos as

crianças na confecção, incentivávamos essas narrativas e registrávamos através de anotações e

vídeos. Surgiram policiais, heróis, bandidos, maquinistas, jogadores de futebol e basquete e

princesas.

Figura 8: A direita - os bandidos Hick e Hack que vivem no vulcão e planejam tomar a

cidade, criados por Lucas. A esquerda – Flortassi, que tem 5 anos, é cadeirante, é bonzinho e

gosta de comer cenoura, criado por Arthur N.

Fonte: Acervo pessoa, 2018.

Figura 9: A direita – Pou, que gosta de comer macarrão, criado por André. A esquerda -

Tiago, o super herói da cidade que mata os vilões, criado por Arthur S.

Fonte: Acervo pessoal, 2018.

Ao final dessa segunda etapa, organizamos um desfile em que os moradores da cidade

seriam apresentados pelos seus criadores. Nesse momento, as crianças puderam narrar aos

colegas sobre as suas criações. À medida em que diziam sobre seus personagens, as outras

crianças enriqueciam essa experiência, inventando enredos e fantasiando histórias. Assim, a

proposta foi se transformando num outro movimento, quando percebemos, havia pequenos

grupos se formando pelos cantos da sala, em que as crianças, cada uma com seu boneco,

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interagiam umas com as outras, interpretando as vozes e dando vida a cada morador através da

brincadeira.

2.3 A etapa não prevista: Estefany encontra a turma 45 na festa de inauguração da

cidade

Próximo ao final do ano letivo, as professoras e as crianças organizaram uma festa de

inauguração para que as famílias e as outras turmas da escola conhecessem a tão famosa

cidade, e o vulcão, que entrou em erupção pela primeira vez na festa. Com a ajuda da

professora de artes, as crianças colocaram bicarbonato de sódio e vinagre dentro do vulcão,

que entrou em erupção causando uma enorme euforia. Todos ficaram bastante interessados na

história da cidade contada pelas crianças. Na sala da turma havia cartazes com imagens e

pequenos relatos delas durante o processo.

Figura 10: Apresentação de Hareboobi aos familiares e colegas da escola.

Fonte: Acervo pessoal, 2018.

Durante a vivência da proposta, as crianças da turma 45 demonstraram o desejo de

conhecer a Estefany. Em nosso planejamento, não havíamos pensado em como esse encontro

aconteceria, entretanto, nossas leituras nos levaram a compreender a “importância do

inesperado e do possível” (RINALDI, p. 114, 2016). Assim, decidimos que a Estefany iria

aparecer de surpresa no dia em que a cidade de Hareboobi fosse aberta para visitação.

Semanas antes da inauguração, a professora supervisora participaria de um congresso na

cidade de Belém, no Pará. Então, a turma 45 escreveu uma carta endereçada a Estefany

contando as novidades e pedindo que ela viesse à cidade novamente. A carta/convite seria

entregue por intermédio da professora

“Oi, Estefany! A gente quer conhecer você. A gente quer amar você. Pode

entrar, por favor, na cidade de Hareboobi, na sala de artes. Turma 45”

(Carta da turma 45).

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Figura 11: Arthur assinando a carta da turma 45 à Estefany.

Fonte: Acervo pessoal, 2018.

Figura 12: Estefany e Aline se encontram no Pará.

Fonte: Acervo pessoal, 2018.

No dia da inauguração, as crianças ficaram bastante animadas com os moradores que

elas haviam construído, e enquanto brincavam com eles, Felipe encontrou a Estefany, que

estava escondida na “casa do maquinista”. Ele ficou muito feliz, saiu correndo e queria

mostrar a todos. Veio em nossa direção e disse, muito entusiasmado, "Gente, eu achei a

Estefany, ela veio mesmo!", e esteve com a boneca nas mãos até o final do dia.

Percebi que Felipe criou um afeto pela personagem, diversas vezes perguntando

quando iria conhecê-la. No dia da festa de abertura da cidade, após encontrá-la, ele

me abraçou agradecendo por trazermos a Estefany e disse ‘eu gosto de você’.

Naquele momento lembrei daquela insegurança do início do PIBID, e como ela foi

importante, pois me fez ser cuidadosa ao construir essa relação. (Livia, estudante do

PIBID, 2018).

As crianças continuaram apresentando a cidade de Hareboobi para as turmas que

entravam na sala e tinham a curiosidade de saber como aquele projeto teve início. Felipe, que

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ainda estava bastante animado com o fato da Estefany estar ali, foi apresentando a nova

moradora da cidade para todos os seus amigos que ainda não a conheciam. As crianças

também ficaram encantadas com o vulcão. E em algum momento da visita, uma criança disse

"A Estefany é do Pará, ela disse que lá também tem vulcão." Na inauguração da cidade, a

participação ativa, espontânea e alegre das crianças provocara em nós imensa satisfação. Foi

muito bom ter feito parte do projeto e sentir as crianças extremamente envolvidas.

Figura 13: Miguel brincando com seu morador na cidade de Hareboobi.

Fonte: Acervo pessoal, 2018.

Considerações finais

Ao longo da nossa jornada refletimos sobre nossas próprias concepções, marcas das

nossas experiências anteriores. Essas concepções que causavam o estranhamento diante da

realidade vivida na escola parceira, no contexto do PIBID, a começar pela nossa chegada.

Nunca antes havíamos sido recebidas numa escola pelas crianças e, especialmente, daquela

forma, através de uma brincadeira acolhedora para nós e instigante para as crianças. Fomos

apresentadas como “novas amigas da 45”, e depois de um tempo, pelo afeto e pelas

brincadeiras, conseguimos ganhar aos poucos a confiança das crianças, até sermos

reconhecidas e chamadas pelo nome. As pessoas perdidas que temiam se aproximar das

crianças passaram a ser parte da turma.

Estar na escola fez com que muitas das ideias pré-formadas caíssem por terra.

Experiências como ver as crianças se servirem no almoço, brincarem com a lama e sem medo

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de sujarem as suas roupas, quando elas faziam a decoração de suas próprias festas de

aniversário comemoradas na escola, quando participavam das reuniões de planejamentos,

quando podiam escolher dizer não a uma atividade, quando as crianças eram incentivadas a

falar sobre seus sentimentos diante dos conflitos. Reconhecemos nestes movimentos o

respeito às subjetividades, um princípio que hoje consideramos fundamental em nossa

formação e que norteará nossas futuras práticas.

Entrar em uma sala de aula, no contexto do CREIR foi completamente diferente de

tudo que esperávamos. Estar na Universidade e poder refletir sobre o que vivíamos na escola

foi uma experiência de suma importância. A todo momento refletíamos sobre nossas atitudes,

práticas, concepções. A oportunidade de pôr em diálogo a teoria e a prática, retornando às

nossas experiências enquanto narrávamos sobre elas nas reuniões com coordenadoras,

supervisoras e colegas bolsistas fez toda diferença, porque permitia construir novos sentidos

sobre as vivências com as crianças, algo que não era possível no tempo imediato em que elas

aconteciam na escola.

Experimentar na prática o currículo emergente foi um desafio que trouxe diversos

aprendizados. Como criar uma proposta a partir das crianças e seus desejos? As crianças

embarcariam em nossas ideias? Essa proposta não poderia estar à margem de tudo o que a

turma já vivia em seu cotidiano, por isso foi necessário observá-las, registrar essas

observações e pensar sobre elas. Nós aprendemos a olhar as crianças, entendemos a

importância, antes de qualquer proposta, de estar com elas. Percebemos como era necessária

uma escuta aberta tanto no planejamento, quanto ao longo do processo, o que nos possibilitou

adequar a nossa proposta às demandas que surgiram em diversos momentos. A participação

das crianças, o entusiasmo, o afeto desenvolvido pelo grupo e a personagem Estefany e,

especialmente, a forma como as crianças falavam sobre o trabalho desenvolvido às outras

crianças e seus familiares no dia da apresentação da cidade à comunidade escolar foram

indicadores importantes que nos permitiram perceber o envolvimento da turma na proposta

apresentada por nós, mas tudo isso só foi possível porque essa proposta não se reduziu a uma

atividade desenvolvida para as crianças, mas uma experiência que foi vivida junto com elas.

Não podemos deixar de destacar o papel das coordenadoras, da professora supervisora

e de todas as outras professoras e professores da escola parceira em nossa formação. Foi

fundamental contar com pessoas experientes que nos incentivaram, acolheram nossas

inseguranças e nossas perguntas numa postura cuidadosa e responsiva. Cabe ressaltar o papel

essencial das crianças, que nos ensinaram que através da brincadeira e das relações é possível

aprender e ensinar muitas coisas. Com elas também aprendemos a ser mais solidárias, mais

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criativas, mais sensíveis. Vimos crianças de quatro anos num processo de aproximação do

universo da escrita que parte, primeiramente, de uma leitura de mundo e que, para isso, não é

preciso, necessariamente, ter um caderno ou um alfabetário acima do quadro, como

pensávamos. Não há dúvidas de que nossas perspectivas foram ampliadas e que possuímos

depois dessa jornada uma visão mais crítica e humana sobre as formas de atuação do

professor dentro da escola de Educação Infantil.

Referências bibliográficas:

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes Curriculares

Nacionais para a Educação Infantil / Secretaria de Educação Básica. – Brasília : MEC,

SEB, 2010.

________. Ministério da Educação. Parecer Conselho Nacional de Educação Câmara de

Educação Básica nº: 20 de 11 de novembro de 2009. Revisão das Diretrizes Curriculares

Nacionais para a Educação Infantil. Relator: Raimundo Moacir Mendes Feitosa. Disponível

em: <http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/pceb020_09.pdf>. Acesso em 30/04/2019.

EDWARDS, Carolyn. Parceiro, Promotor do Crescimento e Guia: os papéis dos professores

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RINALDI, Carlina. O currículo emergente e o construtivismo social. In: EDWARDS,

Carolyn; GANDINI, Lella; FORMAN, George (Orgs.). As cem linguagens da criança: a

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