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Os interrogatórios de Hans e Sophie Scholl à Gestapo: testemunhos da resistência estudantil ao Nacional-Socialismo ANNA CAROLINA SCHÄFER Introdução Diante do tema “Nacional-Socialismo, a aceitação aparentemente passiva do governo de Hitler por parte da população alemã é sempre uma questão recorrente. Tenta-se compreender como tal ideologia foi capaz de chegar ao poder e manter-se nele por mais de uma década, mesmo disseminando tamanho horror e cometendo tantos crimes. Nesse contexto, também chama a atenção o fato de o Nacional-Socialismo, assim como a maioria dos regimes fascistas, não ter sido destituído do poder por uma oposição interna, mas como consequência de uma derrota militar internacional (cf. SNAJDER, 2010: 25). Se à resistência alemã não logrou destituir Hitler e seus seguidores do poder, isso evidentemente não significa que ela não tenha existido. Embora seja inegável que grande parte dos alemães aceitou e de alguma forma colaborou com o nazismo, as formas de resistência na Alemanha também foram muitas e diversas. Dentre os motivos que levavam alemães a tomarem atitudes de resistência estavam as convicções políticas, crenças religiosas, comoção ou revolta diante de um fato cotidiano, vergonha dos crimes cometidos pelo Estado e compaixão pelas vítimas (cf. BENZ & PEHLE, 2008: 11). Essas atitudes podiam assumir contornos mais ostensivos, como é o caso das dezenas de atentados planejados (e parte deles de fato cometidos) contra Hitler, ou se restringirem a pequenas sabotagens cotidianas no âmbito individual, como escutar emissoras de rádio estrangeiras e oferecer apoio a vítimas de perseguição. O grupo de resistência conhecido como A Rosa Branca (alemão: Die Weiβe Rose), que figura no título deste trabalho, constituía-se sobretudo de jovens universitários de Munique que se opuseram, devido às suas biografias e às convicções religiosas, filosóficas e políticas, ao regime nacional-socialista na Alemanha. As ações da Rosa Branca eram voltadas principalmente à produção distribuição de panfletos que denunciavam os crimes cometidos pelo regime e convocavam os cidadãos alemães à resistência. Por seu caráter pacífico, que o distingue de muitos outros movimentos da resistência antinazista, o grupo tornou-se uma espécie de mito na Alemanha e é caracterizado em grande parte da literatura de memória Mestranda em Língua e Literatura Alemã pela Universidade de São Paulo. O trabalho é orientado pela Profa. Dra. Tinka Reichmann e financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

Os interrogatórios de Hans e Sophie Scholl à Gestapo · um círculo de amigos, formado pelos estudantes de medicina Alexander Schmorell, Christoph Probst, Hans Scholl e Willi Graf,

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Os interrogatórios de Hans e Sophie Scholl à Gestapo:

testemunhos da resistência estudantil ao Nacional-Socialismo

ANNA CAROLINA SCHÄFER

Introdução

Diante do tema “Nacional-Socialismo”, a aceitação aparentemente passiva do governo

de Hitler por parte da população alemã é sempre uma questão recorrente. Tenta-se

compreender como tal ideologia foi capaz de chegar ao poder e manter-se nele por mais de

uma década, mesmo disseminando tamanho horror e cometendo tantos crimes. Nesse

contexto, também chama a atenção o fato de o Nacional-Socialismo, assim como a maioria

dos regimes fascistas, não ter sido destituído do poder por uma oposição interna, mas como

consequência de uma derrota militar internacional (cf. SNAJDER, 2010: 25).

Se à resistência alemã não logrou destituir Hitler e seus seguidores do poder, isso

evidentemente não significa que ela não tenha existido. Embora seja inegável que grande

parte dos alemães aceitou e de alguma forma colaborou com o nazismo, as formas de

resistência na Alemanha também foram muitas e diversas. Dentre os motivos que levavam

alemães a tomarem atitudes de resistência estavam as convicções políticas, crenças religiosas,

comoção ou revolta diante de um fato cotidiano, vergonha dos crimes cometidos pelo Estado

e compaixão pelas vítimas (cf. BENZ & PEHLE, 2008: 11). Essas atitudes podiam assumir

contornos mais ostensivos, como é o caso das dezenas de atentados planejados (e parte deles

de fato cometidos) contra Hitler, ou se restringirem a pequenas sabotagens cotidianas no

âmbito individual, como escutar emissoras de rádio estrangeiras e oferecer apoio a vítimas de

perseguição.

O grupo de resistência conhecido como A Rosa Branca (alemão: Die Weiβe Rose), que

figura no título deste trabalho, constituía-se sobretudo de jovens universitários de Munique

que se opuseram, devido às suas biografias e às convicções religiosas, filosóficas e políticas,

ao regime nacional-socialista na Alemanha. As ações da Rosa Branca eram voltadas

principalmente à produção distribuição de panfletos que denunciavam os crimes cometidos

pelo regime e convocavam os cidadãos alemães à resistência. Por seu caráter pacífico, que o

distingue de muitos outros movimentos da resistência antinazista, o grupo tornou-se uma

espécie de mito na Alemanha e é caracterizado em grande parte da literatura de memória

Mestranda em Língua e Literatura Alemã pela Universidade de São Paulo. O trabalho é orientado pela Profa.

Dra. Tinka Reichmann e financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

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dedicada a ele como “símbolo da resistência pura, moral, não voltada para a obtenção de

poder ou influência” (MOLL, 1994: 444).

Em 18 de fevereiro de 1943, os irmãos Hans e Sophie Scholl, membros da Rosa

Branca, foram flagrados enquanto espalhavam panfletos na universidade de Munique. A

Gestapo, polícia secreta nazista, foi acionada e os dois foram conduzidos ao Palácio de

Wittelsbach, sede da polícia secreta na cidade. Seguiram-se interrogatórios exaustivos e

apreensões minuciosas nas casas de integrantes e conhecidos do grupo, que levaram

gradativamente à prisão de todos os outros membros da Rosa Branca. Sete deles, dentre os

quais estavam os irmãos Scholl, foram condenados à morte e executados ainda em 1943.

O presente trabalho dedicar-se-á à apresentação e análise de uma seleção de

documentos históricos relacionados ao grupo A Rosa Branca, a saber: os protocolos de

interrogatórios conduzidos pela Gestapo entre 18 e 20 de fevereiro de 1943 com Hans e

Sophie Scholl. Na época em que foram conduzidos, os interrogatórios com os irmãos Scholl

foram registrados por escrito, em forma de protocolo. Com o fim da guerra, estes documentos

permaneceram por décadas ocultos em um arquivo sobre o Nacional-Socialismo do Ministério

de Segurança Pública da República Democrática Alemã. Apenas em 1990, após a

reunificação, foram redescobertos, integrados acervo do Arquivo Federal da Alemanha

(Bundesarchiv), e passaram a poder ser consultados por pesquisadores em geral. Para autores

como Chaussy & Ueberschär (2013: 197), essas novas fontes documentais lançaram novas

luzes sobre os estudos relacionados à Rosa Branca e trouxeram novos dados para a

investigação da relação entre resistência e repressão durante o regime nacional-socialista.

Na primeira seção do trabalho, será descrita brevemente a trajetória do grupo A Rosa

Branca: seus integrantes, motivações, formas de ação e sua repressão pelo Estado nacional-

socialista. A segunda seção traz uma apresentação mais detalhada do corpus, que foi

traduzido para o português no bojo de um projeto de mestrado vinculado ao Programa de Pós-

Graduação em Língua e Literatura Alemã da Universidade de São Paulo. A terceira seção,

que encerra o trabalho, explora a interface entre o trabalho do historiador e o trabalho do

tradutor de textos historicamente marcados, ao apresentar exemplos de contribuições trazidas

pela pesquisa historiográfica à tradução do corpus.

1. A trajetória da Rosa Branca

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Conforme observa Kissener (2008: 135), a história do grupo A Rosa Branca (Die

Weiße Rose) representa uma peculiaridade na história da resistência alemã por duas razões

básicas. Primeiramente por este ser, dentre todos os grupos de resistência juvenil ao nazismo

conhecidos atualmente, o que mais se destaca: nenhum dos outros é tão “prestigiado” e

continua até hoje a exercer tanto fascínio sobre as pessoas quanto ele. Ao mesmo tempo, em

comparação a outros grupos de resistência, a recepção da história da Rosa Branca não seria,

ainda conforme Kissener, tão atravessada por controvérsias: por reunir diferentes tendências

de resistência, ela foi integrada à memória de diversos grupos, fossem políticos de esquerda

ou de direita, fossem católicos ou protestantes, fossem alemães “orientais” ou “ocidentais”,

etc.

O grupo surgiu entre jovens universitários de Munique. Seu núcleo era constituído por

um círculo de amigos, formado pelos estudantes de medicina Alexander Schmorell, Christoph

Probst, Hans Scholl e Willi Graf, pela estudante de biologia e filosofia Sophie Scholl e pelo

professor universitário de filosofia Kurt Huber. Alexander Schmorell e Hans Scholl cursavam

o mesmo semestre de medicina na Universidade Ludwig Maximilian. Schmorell introduziu ao

grupo seu amigo de infância Christoph Probst. Willi Graf foi apresentado a Hans e Schmorell

por Hubert Furtwängler, colega de curso dos mesmos. Sophie Scholl, irmã mais nova de

Hans, era aluna do professor Kurt Huber e foi o primeiro elo entre este e os outros integrantes.

Formado dessa maneira, o círculo se expandiu mais tarde e angariou colaboradores em

cidades como Hamburgo, Stuttgart, Freiburg e Ulm.

Os motivos que levaram as seis pessoas que integravam o núcleo da Rosa Branca a

entrarem em conflito com o Nacional-Socialismo foram múltiplos e variados. Algumas

motivações vinham de vivências individuais, outras eram compartilhadas por alguns ou todos

os integrantes. Hans Scholl e Willi Graf já haviam sofrido perseguição e sido detidos

provisoriamente pela Gestapo entre 1937 e 1938, sob a acusação de pertencerem a

associações juvenis clandestinas: Hans era membro da Juventude Alemã de Primeiro de

Novembro (Deutsche Jungenschaft 1.11.) e Graf do movimento católico juvenil Ordem Cinza

(Grauer Orden).

No caso dos irmãos Scholl, a influência do pai (Robert Scholl) também costuma ser

apontada como motivação fundamental para a resistência (cf. por exemplo KISSENER, 2008:

139). Antes da tomada de poder, Robert Scholl havia sido prefeito das cidades de Ingersheim

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e Forchtenberg e, como político liberal-democrata, tornou-se opositor de primeira hora do

Nacional-Socialismo. Em 1942, foi condenado a quatro meses de prisão por ter feito

comentários ofensivos sobre Hitler diante de funcionários de seu escritório.

Em Alexander Schmorell, a primeira grande insatisfação com a ideologia nazista teria

surgido, segundo Kissener (2008: 139), frente às medidas nazistas de doutrinação ideológica

que caracterizavam o “Serviço Obrigatório para o Reich”, o qual ele prestou em 1937.

Nascido na Rússia e descendente de russos pelo lado materno, Schmorell acompanhava com

pesar o ódio pregado pelo nazismo aos povos eslavos e, especialmente, aos russos.

Para Christoph Probst, foram determinantes os fatos de ter estudado em um internato

de orientação humanista-liberal e de sua madrasta, de origem judia, precisar viver escondida

dos nazistas até o final da guerra. Probst criticava profundamente com determinados

postulados da ideologia nazista, como o antissemitismo e a eutanásia. Além disso Probst era,

conforme relata Bald (2003: 29), membro de uma família burguesa abastada, na qual artes,

literatura e filosofia faziam parte das conversas cotidianas. Em Murnau, onde nasceu, os pais

eram vizinhos de Paul Klee e Emil Nolde, que despertaram o gosto do jovem pela arte

moderna. Nolde, apontado pelo nazismo enquanto “artista degenerado” (embora ele próprio

fosse nazista e antissemita convicto), chegou a pintar um retrato de Probst.

Por fim, o professor Kurt Huber julgava que os crimes cometidos pelos nazistas no

Oriente significavam a decadência da cultura alemã (cf. KISSENER, 2008: 139). Além disso,

havia visto algumas de suas ambições profissionais frustrarem-se devido à interferência do

Nacional-Socialismo. Huber, que havia dedicado grande parte de sua vida a estudar música,

perdeu sua oportunidade de transferência para um Instituto de Musicologia devido a conflitos

com a política cultural nacional-socialista e foi obrigado a aceitar de volta seu posto de

professor de psicologia experimental e musical na Universidade de Munique. Lá ofereceu, no

semestre de inverno de 1942/1943, uma disciplina sobre Leibniz, na qual fazia críticas veladas

ao totalitarismo nazista diante de seus 300 estudantes, dentre eles Alexander Schmorell, Willi

Graf e os irmãos Hans e Sophie Scholl (SCHOLL, 2013: 188).

Diante da grande variedade de motivações individuais (das quais apenas uma pequena

amostra pôde ser descrita aqui), Jens (1991) afirma que o que unia os integrantes da Rosa

Branca era sobretudo a ânsia de colocar fim à guerra o quanto antes e salvar os alemães da

derrocada total, além de determinados valores morais, condensados na “busca pela liberdade

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individual e por uma coletividade que levasse a sério a subjetividade das pessoas e desse valor

à sua dignidade” (JENS, 1991: 208, trad. nossa).

Já Ueberschär (2006: 126) menciona como ponto comum entre os membros da Rosa

Branca o fato de eles terem, no início, mantido expectativas positivas em relação ao regime,

mas se convertido em opositores do mesmo quando se conscientizaram da radicalização e dos

rumos inconsequentes tomados pela política nazista. Os quatro estudantes de medicina

também compartilhavam, segundo o mesmo autor, da repulsa provocada pelas vivências e

experiências enquanto sargentos-enfermeiros em diferentes fronts de guerra (UEBERSCHÄR,

2006: 126). O leque de motivações individuais desembocou, dessa forma, na rejeição conjunta

e de fundo moral à ideologia nazista.

Em meados de 1942, Hans Scholl e Alexander Schmorell começaram a redigir e

enviar panfletos anonimamente pelo correio. Deram aos quatro primeiros textos o título de

“Panfletos da Rosa Branca” (Flugblätter der Weißen Rose), nome que a Gestapo também

adotou para se referir ao grupo em sua investigação e pelo qual ele é conhecido até hoje. De

junho de 1942 a fevereiro de 1943, foram redigidos e distribuídos seis panfletos. Nos dois

últimos, Scholl e Schmorell contaram com a colaboração de Kurt Huber para redigir o texto.

Christoph Probst chegou a redigir um esboço para aquele que provavelmente seria o sétimo

panfleto do grupo, mas que não chegou a ser distribuído.

Os primeiros quatro panfletos dirigiam-se aos “intelectuais” de Munique. Em seus

interrogatórios, Hans Scholl afirmou que escolheu esse público-alvo por acreditar na

capacidade e responsabilidade dessas pessoas em influenciar toda a população e conduzi-la na

direção adequada. Tendo em vista seus destinatários, os primeiros panfletos caracterizam-se

por uma linguagem profundamente rebuscada e pela abundância de citações (explícitas e

implícitas) a textos literários, filosóficos e bíblicos:

Goethe fala dos alemães como um povo trágico, semelhante aos judeus e aos gregos,

mas hoje ele parece mais um rebanho superficial e apático de seguidores alienados,

que tiveram sua medula sugada e sua essência subtraída e que agora estão dispostos

a se deixarem lançar à ruína. (1º panfleto da Rosa Branca. SCHOLL, 2013: 87)

Toda palavra que sai da boca de Hitler é mentira. Quando ele fala em paz, está

pensando em guerra, e quando ele pronuncia — da maneira mais sacrílega possível

— o nome do Todo-Poderoso, está pensando no poder do Mal, no Anjo Caído, em

Satã. Sua boca é a garganta fétida do inferno, e seu poder é fundamentalmente

réprobo. (4º panfleto da Rosa Branca. SCHOLL, 2013: 99-100)

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Já o quinto panfleto do grupo, escrito depois de Hans Scholl, Alexander Schmorell e

Willi Graf passarem três meses como soldados-enfermeiros no front russo, dirige-se a um

público muito mais amplo, conforme está anunciado em seu título: “Apelo a todos os

alemães!” (Aufruf an alle Deutsche!). A linguagem torna-se, conforme observa Moll (2011:

216) mais clara e o apelo mais direto, exercido, muitas vezes, através de perguntas retóricas:

Alemães! Vocês e seus filhos querem padecer do mesmo destino que atingiu os

judeus? Querem ser medidos com a mesma medida que seus sedutores? Havemos de

ser para sempre o povo odiado e repudiado pelo mundo inteiro? Não! Portanto,

rompam com a subumanidade nacional-socialista. Provem através de atos que vocês

não pensam assim! Uma nova guerra de libertação se inicia. A melhor parte do povo

luta ao nosso lado. (5º panfleto da Rosa Branca. SCHOLL, 2013: 103)

O sexto panfleto, por sua vez, foi redigido integralmente pelo professor Kurt Huber e

volta-se novamente a um grupo específico de destinatários: os estudantes da universidade de

Munique, que cresceram tendo sua liberdade cada vez mais cerceada pelo Nacional-

Socialismo.

Crescemos em um Estado em que toda a livre expressão da opinião foi amordaçada

sem escrúpulos. A Juventude Hitlerista, a SA e a SS tentaram nos uniformizar, nos

remodelar e nos anestesiar nos anos de formação mais fecundos de nossas vidas. O

desprezível método de sufocar, em um nevoeiro de frases vazias, a incipiente

capacidade individual de pensar e julgar chamava-se “formação da visão de mundo”.

(6º panfleto da Rosa Branca. SCHOLL, 2013: 105)

Além de panfletos, outra forma de resistência empreendida por membros da Rosa

Branca foi a realização de pichações noturnas. No início de 1943 Hans Scholl, Alexander

Schmorell e Willi Graf picharam, em três madrugadas, os dizeres “Abaixo Hitler!” (Nieder

mit Hitler), “Liberdade!” (Freiheit) e “Hitler, assassino em massa” (Massenmörder Hitler) em

fachadas de prédios de Munique e na entrada da universidade e, nas mesmas ocasiões,

espalharam grandes quantidades de panfletos pelas ruas da cidade.

As ações da Rosa Branca tiveram fim com a prisão dos irmãos Scholl da

universidade, em 18 de fevereiro de 1943. As investigações que se seguiram levaram

gradativamente à prisão de todo o núcleo do grupo e de diversos outros envolvidos. Willi Graf

também foi detido em 18 de fevereiro de 1943, Christoph Probst em 20 de fevereiro,

Alexander Schmorell em 24 de fevereiro e Kurt Huber em 27 de fevereiro. Todos foram

julgados e condenados à morte pelo Tribunal do Povo nacional-socialista. Christoph Probst,

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Hans e Sophie Scholl em 22 de fevereiro de 1943; Alexander Schmorell, Willi Graf e Kurt

Huber em 19 de abril do mesmo ano.

2. Caracterização do corpus: protocolos de interrogatório de Hans e Sophie Scholl

Os documentos que foram analisados e traduzidos ao longo do projeto de mestrado

pertencem a um gênero textual alemão que, como observa NIEHAUS (2005), ainda é muito

pouco estudado: o “Verhörprotokoll”. Trata-se de registros escritos dos interrogatórios

realizados com o indiciado na fase de inquérito policial. Como potenciais equivalentes no

sistema jurídico brasileiro atual poderíamos citar o “termo de interrogatório” ou “auto de

qualificação e interrogatório”. As especificidades do contexto histórico em que foram

realizados e transcritos os interrogatórios com os membros da Rosa Branca divergem,

entretanto, bastante das condições em que são produzidos tais textos hoje em dia no Brasil e

na Alemanha. Por esse motivo, sempre que se fizer referência ao gênero textual

“Verhörprotokoll” neste trabalho, optamos por utilizar uma tradução literal da palavra alemã:

“protocolo de interrogatório”.

Os interrogatórios em questão foram conduzidos por oficiais da Gestapo entre

fevereiro e outubro de 1943. Começaram, mais precisamente, em 18 de fevereiro de 1943,

quando os irmãos Hans e Sophie Scholl foram flagrados pelo bedel da Universidade de

Munique enquanto espalhavam panfletos pelo edifício. Os dois foram presos e conduzidos à

central da Gestapo. A isso sucederam interrogatórios longos e exaustivos e apreensões

minuciosas nas casas de integrantes e conhecidos do grupo, que culminaram na condenação e

execução de Sophie e Hans Scholl, Christoph Probst, Willi Graf, Alexander Schmorell e Kurt

Huber na guilhotina.

Salta aos olhos o curtíssimo intervalo (de apenas quatro dias) entre a prisão dos irmãos

Scholl e a execução deles e de Christoph Probst na guilhotina, no primeiro processo. O

segundo processo se prolongou por mais tempo: entre a prisão de Graf, Huber e Schmorell e a

execução dos dois últimos passaram-se quase cinco meses. O cumprimento da sentença de

Willi Graf – preso junto com os irmãos Scholl e condenado à morte por decapitação junto

com Huber e Schmorell – ainda foi adiada por mais três meses, pois a Gestapo pretendia obter

dele mais informações sobre o envolvimento de outras pessoas nas ações da Rosa Branca.

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Com o fim da guerra, os protocolos de interrogatório desses seis membros da Rosa

Branca caíram nas mãos do exército soviético e foram levados a Moscou, onde ficaram por

alguns anos ocultos em um arquivo estatal. Alguns anos após a fundação, em 1949, da

República Democrática Alemã, esses documentos voltaram para a Alemanha, mas

permaneceram inacessíveis à pesquisa. Apenas em 1990, com a reunificação das Alemanhas

oriental e ocidental, foram integrados ao acervo do Arquivo Federal da Alemanha, em Berlim,

e passaram a poder ser consultados por pesquisadores (cf. CHAUSSY & UEBERSCHÄR,

2013: 13).

Com base nesses materiais o alemão Fred Breinersdorfer criou o roteiro do filme

“Sophie Scholl – Die letzten Tage” (título em português: “Uma mulher contra Hitler”),

lançado em 2005 na Alemanha. Sob direção de Marc Rothemund, o filme ganhou dois

prêmios no festival de Berlim e foi indicado ao Oscar na categoria “melhor filme estrangeiro”.

Ao lançar um novo olhar sobre a história da Rosa Branca, baseando-se no conteúdo por tanto

tempo desconhecido dos interrogatórios, o filme de Rothemund contribuiu para uma ampla

divulgação desse grupo de resistência.

Sabemos que, como salientam SCHULZ (2005) e CHAUSSY & UEBERSCHÄR

(2013), é necessário cautela ao interpretar tais textos como documentos históricos “fiéis” à

realidade, já que seu conteúdo foi formulado por representantes da ideologia nacional-

socialista e sua intenção era fundamentar e fortalecer os argumentos do regime contra os

interrogados. Da mesma forma, os textos não trazem informações sobre as condições em que

foram realizados os interrogatórios – por exemplo se foram ou não usados métodos de tortura

– e algumas frases aparecem profundamente descontextualizadas em meio a um texto até

então coeso. É o que ocorre, por exemplo, no excerto do primeiro interrogatório de Hans

Scholl em que a autoria do rascunho daquele que possivelmente seria o sétimo panfleto do

grupo é atribuída a Christoph Probst. A narrativa, até então linear, dos acontecimentos

daquela manhã na Universidade de Munique é interrompida e surge uma confissão repentina,

como é possível observar abaixo:

Eu mal havia acabado de fazer isso quando percebi que o zelador estaria nos

seguindo até o segundo andar. Realmente, eu estava com minha irmã a apenas

alguns metros de onde os panfletos haviam sido jogados quando esse homem veio

na nossa direção, nos deu voz de prisão e jogou na nossa cara que tínhamos acabado

de jogar panfletos no pátio interno.

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O autor da folha rasgada por mim hoje de manhã após eu ser detido é

Christoph Probst (...). (Hans Scholl em interrogatório de 18.02.1943. In:

CHAUSSY & UEBERSCHÄR, 2013: 278, tradução e grifos nossos)

Outro fato que deve ser levado em conta ao se lidar com tais textos é o de que, durante

os interrogatórios, os inquiridos utilizaram uma série de estratégias para evitar que a polícia

apurasse os fatos. Hoje em dia, ao cruzar as afirmações feitas por integrantes do grupo em

seus interrogatórios com outros documentos da investigação e com as informações levantadas

posteriormente por historiadores e estudiosos da Rosa Branca, é possível perceber claramente

algumas dessas estratégias. Os irmãos procuraram, por exemplo, assumir sozinhos toda a

culpa pelas ações do grupo, evitando ao máximo citar nomes de terceiros. Sabe-se hoje que,

para despistar a polícia e inocentar seus amigos, disseram muitas mentiras durante os

interrogatórios.

Feitas as ressalvas necessárias, é importante dizer que a divulgação dos protocolos de

interrogatório foi premissa fundamental para que os estudos acerca das motivações, ações e

objetivos da Rosa Branca tomassem novos rumos. Interpretações polêmicas e a mitificação

dos protagonistas da Rosa Branca (sobretudo dos irmãos Scholl) na Alemanha podem ser

atribuídas, entre outros fatores, ao desconhecimento de documentos que permitissem uma

análise mais realista dos fatos. Foi, por fim, a divulgação dos documentos da investigação

contra os membros da Rosa Branca, há pouco mais de duas décadas, que viabilizou uma

abordagem desse tema mais cientificamente aprofundada e melhor fundamentada do ponto de

vista histórico.

3. Contribuições da pesquisa historiográfica para o trabalho do tradutor

A experiência de traduzir os protocolos de interrogatório da Rosa Branca corroborou a

importância da pesquisa historiográfica como campo de apoio fundamental para o tradutor

que trabalha com textos marcados por um momento histórico específico. Foram diversas as

contribuições trazidas pela fundamentação teórica multidisciplinar (composta por referências

dos estudos da tradução, da linguística textual, da análise do discurso e da pesquisa

historiográfica) à produção da tradução comentada do corpus. A consulta a diferentes tipos de

fontes historiográficas permitiu que identificássemos e evidenciássemos, nos comentários

incorporados à tradução, estratégias de interrogadores e interrogados, referências (implícitas e

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explícitas) à realidade da época e “lacunas” no texto (bem como possíveis motivações para

elas).

Do ponto de vista teórico, a bibliografia sobre a ascensão e consolidação do regime

nacional-socialista (BENZ, 2008; EVANS, 2012; entre outros), sobre a resistência antinazista,

(por exemplo BENZ & PEHLE, 2008; HUDEMANN, 2013; MOMMSEN, 2000;

STEINBACH & TUCHEL, 1994) e sobre características inerentes aos regimes totalitários em

geral (CARNEIRO, 2010; BALANDIER, 1982; GIRARDER, 1987 e, em interface com a

Filosofia, ARENDT, 1985; 2004; 2012) nos auxiliou na compreensão e descrição da

conjuntura histórica mais ampla em que foram realizados e transcritos os interrogatórios de

Hans e Sophie Scholl.

Entre setembro e dezembro de 2014 tivemos a oportunidade de, com apoio da

Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, desenvolver um estágio de pesquisa

de três meses na Universidade Ludwig-Maximilian de Munique. Durante esse período,

realizamos pesquisas de documentos em arquivos da Fundação Rosa Branca, alocada na

mesma universidade, e no Instituto de História Contemporânea (Institut für Zeitgeschichte),

centro de pesquisas sobre a história alemã do início do século XX até a atualidade. O instituto,

fundado em 1949, foi o primeiro a produzir pesquisas científicas sobre o regime nacional-

socialista e continua sendo mundialmente reconhecido por sua singularidade em estudos sobre

esse tema. Hoje ele abriga, por exemplo, todo o espólio de Inge Scholl, irmã mais velha de

Hans e Sophie Scholl. Ao longo de sua vida, Inge reuniu diversos documentos, depoimentos,

cartas, diários e notícias relacionados ao grupo de resistência ao qual pertenceram seus

irmãos.

Durante o estágio em Munique, consultamos diversos tomos do espólio de Inge Scholl

no arquivo do Instituto. Especialmente os documentos presentes no tomo 176, que contém as

atas do processo movido pelo Tribunal do Povo nazista contra Hans Scholl, Sophie Scholl e

Christoph Probst, tiveram grande importância para a análise dos textos dos interrogatórios e

para a redação dos comentários da tradução. Muitos desses documentos puderam ser copiados

e trazidos para o Brasil. A consulta às atas originais tornou possível a visualização do corpus

do trabalho em seu contexto e função originais: os interrogatórios cumpriram, na verdade,

apenas uma “formalidade” do sistema policial/jurídico nazista, uma vez que, como revela por

exemplo o conteúdo de correspondências trocadas entre o chefe de distrito da região de

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Munique, Paul Giesler, e o líder do Partido Nacional-Socialista de Trabalhadores Alemães,

Martin Bormann, em 19 de fevereiro de 1943, a sentença dos três réus já estava dada antes

mesmo da formulação da denúncia e do julgamento, que aconteceria apenas quatro dias após a

prisão do mesmo.

Além disso, o conteúdo de outros documentos presentes nas atas – como o depoimento

do zelador da universidade e o laudo da perícia nas máquinas de escrever apreendidas na casa

dos irmãos Scholl – estabelece uma espécie de “diálogo” com o conteúdo dos interrogatórios.

Apenas a partir desses documentos é possível compreender, por exemplo, a motivação para

determinadas perguntas feitas pelos interrogadores. É o caso do seguinte trecho do

interrogatório de Hans Scholl: “Não tenho relação alguma com a Fábrica de Motores da

Baviera (BMW), nunca estive nessa empresa e não conheço nenhum funcionário ou

empregado de lá” (Hans Scholl em interrogatório à Gestapo, 20/02/1943. In: CHAUSSY &

UEBERSCHÄR, 2013: 295, tradução nossa). O questionamento por parte do interrogador

implícito na fala atribuída a Hans Scholl deve-se ao fato de um laudo do Instituto de

Criminalística de Berlim de 11 de fevereiro de 1943, encomendado pela Gestapo de Munique,

ter apontado que o papel utilizado na produção dos panfletos era semelhante ao papel

utilizado pela firma da BMW. Tal constatação levou à apreensão em massa de mais de 1000

máquinas de escrever daquela firma, que seriam examinadas uma a uma até que os

verdadeiros responsáveis pelos panfletos foram presos uma semana mais tarde na

universidade de Munique.

Além da leitura de textos teóricos sobre a conjuntura histórica mais ampla das ações

da Rosa Branca e da consulta a fontes documentais em arquivos da Alemanha, os testemunhos

de pessoas que conviveram com Hans e Sophie Scholl (familiares, amigos ou sobreviventes

do grupo) também tiveram grande importância para a análise, interpretação e tradução do

corpus de interrogatórios. Trata-se de relatos pessoais registrados por escrito (em SCHOLL,

2013; CHAUSSY & UEBERSCHÄR, 2013; entre outros) ou em vídeo (documentário Die

Widerständigen: Zeugen der Weißen Rose de Kathrin Seybold, 2008), que trazem, por

exemplo, informações relevantes sobre a forma com que eram conduzidos os interrogatórios.

Alguns dos sobreviventes descrevem situações de tortura psicológica às quais foram

submetidos ou que presenciaram na ocasião. Falk Harnack e Helmut Fietz (companheiro de

cela de Hans Scholl) mencionam que algumas celas da central da Gestapo em Munique,

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destinadas aos prisioneiros que seriam condenados à morte, eram equipadas com uma luz

clara e forte, que permanecia ligada durante toda a noite e os impedia de descansar:

Durante todo o tempo (no presídio da Gestapo), não estive nenhuma vez ao ar livre.

Passei dias e noites dentro da cela iluminada por uma lâmpada elétrica de luz clara e

ofuscante. Permaneci trancado em minha cela até mesmo durante os bombardeios a

Munique. (Falk Harnack. In: SCHOLL, 2013: 168)

Todas as noites, uma luz intensa ficava acesa na cela. No presídio, sabia-se que os

condenados à morte ocupavam essas celas de iluminação clara. Mesmo sabendo

disso, Hans não parecia se incomodar. Ele já contava com a sentença de morte desde

o segundo dia de prisão. (Helmut Fietz. In: SCHOLL, 2013: 201)

Todos os membros da Rosa Branca que passaram pelo presídio do Palácio de

Wittelsbach foram mantidos presos em celas desse tipo, com exceção de Sophie Scholl. Por

ser mulher, ela teria sido contemplada, conforme relatou Else Gebel pouco após o fim da

guerra, com uma “cela especial”: “Você recebeu até uma cela de honra, que em geral só

abrigava figurões nazistas ‘transviados’. A ‘honra’ consistia em uma janela maior, um

armário interno simples e um forro branco para as cobertas” (Relato de Else Gebel, IfZ, Fa

215/Bd. 3, tradução nossa).

Enquanto o Prof. Kurt Huber foi obrigado a dividir a cela da prisão com criminosos

comuns, sua esposa Clara também foi destinada a uma (pela Gestapo assim designada) “cela

especial” durante o tempo que permaneceu em prisão preventiva: “uma cela fria com duas

camas dobráveis de madeira e uma mesa pequena, onde as refeições eram, no início, ruins e

provocavam asco” (HUBER, 1986: 41, tradução nossa).

A alimentação também funcionava como recurso de tortura da Gestapo para com seus

prisioneiros. Else Gebel, companheira de cela de Sophie Scholl, relatou que os funcionários

da prisão teriam recebido ordens para não darem nada de comer aos irmãos Scholl entre um

interrogatório e outro. Referindo-se a Sophie, ela contou em seu relato: “um empregado

jovem, também prisioneiro, trouxe para você a sopa quente com pão; então tocou o telefone:

‘Os irmãos Scholl não devem comer nada. Eles continuarão a ser interrogados em meia hora’”

(IfZ, Fa 215/Bd. 3, tradução nossa).

Já Traute Lafrenz, ex-namorada de Hans Scholl, relatou a Inge Scholl que teria sofrido

formas mais ostensivas de tortura psicológica:

13

Fui conduzida até meu inquiridor Reinhard. Mal cheguei à porta, ele perguntou,

berrando, quando eu tinha ouvido emissoras estrangeiras pela última vez (eu não

estava nem um pouco preparada para esse tipo de pergunta). Por meia hora

ininterrupta, ele me acusou de crimes que eu realmente não havia cometido. Além

disso, ele tinha um método próprio de tamborilar com os dedos nos olhos do

inquirido. (Traute Lafrenz. In: SCHOLL, 2013: 151)

Não existem, porém, relatos que denunciem o uso de métodos de tortura física durante

os interrogatórios conduzidos com membros da Rosa Branca. No período pós-guerra, Anton

Mahler, um dos funcionários da Gestapo que atuaram na “comissão especial” encarregada de

solucionar o caso, foi denunciado por maus-tratos a prisioneiros (chantagem e lesão corporal).

Ele foi o responsável pelos interrogatórios de Hans Scholl, Cristoph Probst, Kurt Huber,

Traute Lafrenz, Hans Hirzel e Franz Müller. Os casos pelos quais foi condenado em 1949

foram, porém, posteriores ao da Rosa Branca (CHAUSSY & UEBERSCHÄR, 2013: 182).

No que tange especificamente aos interrogatórios de Sophie Scholl, existe ainda outra

fonte relevante: um o relato redigido pelo próprio interrogador, Robert Mohr, a pedido do pai

de Sophie (Robert Scholl) em 1950. Ao interpretar esta fonte é, entretanto, necessária a

mesma cautela dispensada aos protocolos de interrogatório, uma vez que se trata de uma

versão dos fatos apresentada por aquele que, na ocasião, era representante de um regime

criminoso e defendia os interesses do mesmo. Além disso, em diversos momentos de seu

relato, Mohr demonstra claramente ter a intenção de se isentar de sua responsabilidade pela

condenação de Sophie à morte.

Feitas essas ressalvas, no relato de Mohr estão presentes algumas informações que

encontram respaldo nos relatos de outras pessoas presentes na situação, como Helmut Fietz,

Else Gebel e Karl Alt (então capelão luterano do presídio de Stadelheim) e no conteúdo dos

protocolos de interrogatório. É o caso do trecho a seguir:

Sophie não mediu esforços em tomar toda a culpa para si para, com isso, isentar ou

até mesmo salvar seu irmão, a quem amava muito, por sinal. Não tenho dúvidas de

que se Sophie Scholl tivesse podido, teria sacrificado sua jovem e promissora vida

duas vezes para poupar seu irmão do desfecho trágico. Por outro lado, Hans Scholl

demonstrou exatamente a mesma disposição. (Robert Mohr. In: SCHOLL, 2013:

192)

Em seus interrogatórios, Sophie Scholl assumiu realmente uma responsabilidade muito

maior do que teve de fato nas ações da Rosa Branca e contou diversas mentiras no intuito de

proteger seu irmão e omitir a participação de outros membros do grupo. Hans fez o mesmo e,

14

até onde foi possível, assumiu sozinho toda a autoria das ações. Muitas das mentiras que

foram contadas pelos irmãos Scholl com o objetivo de poupar outras pessoas são

identificáveis hoje nos textos dos protocolos de interrogatório, se cruzarmos seu conteúdo

com os testemunhos e confissões de outras pessoas, bem como com informações apuradas ao

longo das últimas décadas por historiadores e pesquisadores do tema.

Os testemunhos de sobreviventes que tiveram os mesmos interrogadores que Hans e

Sophie Scholl (Anton Mahler e Robert Mohr, respectivamente) são especialmente

importantes, pois lançam luz sobre a personalidade e as estratégias utilizadas frequentemente

por aqueles investigadores da Gestapo para conseguirem dos prisioneiros as informações que

queriam. Anneliese Knoop-Graf, irmã do membro da Rosa Branca Willi Graf, foi interrogada

por Robert Mohr e, em entrevista a Chaussy & Ueberschär (2013: 180) traçou o seguinte

perfil psicológico do investigador: “Ele se disfarçava com ares paternais. Oferecia cigarros.

Mohr tinha uma mania de se portar como homem solícito diante de mulheres desamparadas.

Isso me irritava. Eu não queria essa ajuda. Para nós, ele era um dos carrascos” (In:

CHAUSSY & UEBERSCHÄR, 2013: 180, tradução nossa). A descrição de Anneliese

encontra, enfim, respaldo no modo “amistoso” com que Mohr registra – deliberadamente –

suas perguntas a Sophie Scholl nos protocolos de interrogatório e na forma com que ele

constrói o próprio ethos nas correspondências trocadas com o pai de Hans e Sophie Scholl no

pós-guerra (início da década de 50), nas quais alega estar arrependido do papel que

desempenhou durante o regime nacional-socialista.

Os interrogatórios de Hans e Sophie Scholl constituíram, assim, um corpus profícuo

para uma abordagem multidisciplinar, que lançou mão de procedimentos da linguística textual

e da análise do discurso – aliados a elementos da pesquisa historiográfica – para analisar os

textos dos protocolos e constituir uma base sólida para a delineação da estratégia de tradução.

Considerações finais

Autora importante da vertente funcionalista dos Estudos da Tradução, Christiane Nord

(1997: 51 et seq.) defende que uma tradução pode funcionar (a) como um documento da

situação na qual um emissor inserido na cultura de partida comunica-se, por meio de um

texto, com destinatários inseridos na mesma cultura ou (b) como um instrumento na cultura

15

de chegada, através do qual o emissor do texto de partida comunica-se com destinatários da

cultura de chegada por meio de um texto produzido para tal fim. Em outras palavras, quando

cumpre uma função documental a tradução é um “documento ou protocolo de uma ação

comunicativa passada (...)” (NORD, 1989: 102), enquanto que, quando assume função

instrumental, torna-se meio (ou instrumento) para uma ação comunicativa distinta.

A mesma autora criou o conceito de “lealdade em tradução”, que pode guiar até hoje o

trabalho do tradutor do ponto de vista ético-moral. Lealdade é, para ela, a responsabilidade

moral que o tradutor tem em relação a seus parceiros comunicativos: o produtor do texto de

partida por um lado e o leitor da tradução por outro. Assim, além de respeitar a intenção

comunicativa do autor do texto de partida, uma tradução leal deve levar em consideração as

expectativas dos receptores do texto de chegada. Isso não significa necessariamente fazer o

que se espera, mas sim explicar os propósitos e procedimentos de tradução utilizados, caso

eles contradigam tais expectativas. Nesse caso, o “[...] tradutor tem a obrigação moral de

justificar suas estratégias, contando aos leitores o que ele fez e por que o fez” (NORD, 2001:

196, tradução nossa).

Neste projeto, tivemos como objetivo produzir uma tradução documental comentada

de interrogatórios conduzidos pela polícia secreta nazista com membros-chave da resistência

antinazista: os irmãos Hans e Sophie Scholl. Tendo em vista a sensibilidade do corpus

selecionado, para que esta fosse também uma tradução “leal” se fez necessária uma análise

aprofundada e cuidadosa dos textos registrados dos interrogatórios, a fim de que eles

pudessem ser primeiramente compreendidos em suas diversas dimensões. Nessa empreitada, a

consulta a fontes historiográficas adquiriu importância fundamental tanto para a análise dos

textos de partida na primeira etapa do processo tradutório, quanto para a redação dos

comentários e notas contextualizadoras que seriam anexados à tradução, tendo sido

estabelecida assim uma interface proveitosa entre o trabalho do tradutor e do historiador.

Referências

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