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1 www.ierfh.org Os Nossos Atalhos Mentais por Isabella Bertelli * & João Lourenço ** , 2012 Este texto foi originalmente publicado na revista Psique nº 81. iser humano é um animal iracional. Há muito tempo iessa afirmação foi usada para nos diferenciar dos demais animais. Porém, recentemente tem sido cada vez mais contesta- da. Afinal, o que é ser racional? E somos mesmo racionais? O modelo do ser humano racional dominou o imaginário popular por muito tempo, apesar de ter sofrido vários golpes, de diferentes extensões. Alguns e- xemplos são a contestação da consciência de tudo que nos a- contece, dada por Freud, que tor- nou famosa a possibilidade de processos inconscientes ocorrerem na men- O A afirmação de que o ser humano é um animal racional e isso nos diferencia dos demais animais tem sido cada vez mais contestada

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Os Nossos Atalhos Mentais

por Isabella Bertelli* & João Lourenço

**, 2012

Este texto foi originalmente publicado na revista Psique nº 81.

iser humano é um animal

iracional. Há muito tempo

iessa afirmação foi usada

para nos diferenciar dos demais

animais. Porém, recentemente

tem sido cada vez mais contesta-

da. Afinal, o que é ser racional? E

somos mesmo racionais?

O modelo do ser humano

racional dominou o imaginário

popular por muito tempo, apesar

de ter sofrido vários golpes, de

diferentes extensões. Alguns e-

xemplos são a contestação da

consciência de tudo que nos a-

contece, dada por Freud, que tor-

nou famosa a possibilidade de processos inconscientes ocorrerem na men-

O

A afirmação de que o ser humano é um animal racional

e isso nos diferencia dos demais animais tem sido

cada vez mais contestada

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te; ou a aproximação da distância (inclusive comportamental) entre nós e

os outros animais realizada por Darwin, que longe de ser um abismo, era

mais uma continuidade, produto da evolução por seleção natural.

Mais recentemente, António Damásio, famoso neurocientista, publi-

cou o importante livro O Erro de Descartes, em que afirma que as emoções

fazem parte do nosso processamento de informações normal e que, sem

elas, ocorre um afastamento muito maior do comportamento considerado

racional. Vários estudos na área de Psicologia Social indicaram que o

comportamento das pessoas quando estão em grupo pode ser distante do

considerado razoável.

Kahneman e Tversky foram os pesquisadores mais notáveis na área

da racionalidade (ou melhor, falta dela) no processamento de informações.

Os autores inauguraram uma área conhecida como Heurística e Vieses, e

por ela Kahneman ganhou o prêmio Nobel de economia em 2002, seis a-

nos após a morte de Tversky.

Seus estudos foram feitos no

contexto da economia, área que se in-

teressava pela tomada de decisão, ou

seja, como que os seres humanos op-

tavam por certas decisões em face de

situações incertas. Antes dos estudos

de Kahneman e Tversky, cujo início se

deu na década de 70, predominava a

ideia de que sempre tomávamos atitu-

des racionais, ou seja, que nos leva-

vam ao maior montante de dinheiro,

por exemplo.

Esses autores foram modificando

essa noção de funcionamento humano

e mostraram que, no processamento de informações, muitas vezes utili-

zamos “atalhos” ou heurísticas, que quando utilizados sistematicamente

nos levam a tomar uma decisão equivocada, e são chamados de vieses.

São vieses cognitivos, porque ocorrem no processamento mental de infor-

mações do ambiente. Apesar de influenciarem no comportamento econô-

mico, na verdade atuam a todo o momento, fazendo parte de como funcio-

namos.

Kahneman e Tversky confrontaram a tese de que

sempre tomávamos atitudes racionais

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E o que seria um viés cognitivo, nessa área de estudos? Os autores

estudaram e nomearam vários deles, e a lista foi aumentada por outros

pesquisadores e continua crescendo. A seguir, vamos fazer algumas per-

guntas simples e mostrar se a resposta mais usual estaria ou não envie-

sada, de acordo com as pesquisas na área de vieses cognitivos. Em segui-

da, delinearemos qual o processo tido como mais provável por trás desse

possível enviesamento, e, ao fim, sugeriremos estratégias de como corrigi-

lo. É um exercício interessante pensar um pouco na sua resposta pessoal

para cada pergunta antes de continuar a leitura.

Na ponta da língua

Qual tipo de palavra inglesa é mais frequente, a que começa com R

ou a que tem R como terceira letra? Nosso cérebro imediatamente começa

a varrer as possibilidades nos dois grupos. Com R inicial teríamos: red,

right, road, room, RAM, reboot e assim por diante. Enquanto que no outro

grupo temos: dirty, turbo, e a partir daí fica difícil lembrar de mais casos.

O que é mais perigoso, ter

o hábito de toda noite andar num

beco escuro ou ser caseiro e se-

dentário? Andando num beco

escuro, à noite, você pode ser as-

saltado, roubado ou sequestrado,

e a cada canto escuro da rua e

das construções dos arredores

parece surgir uma nova ameaça.

Por outro lado, ficar em casa a

maior parte do tempo parece tra-

zer à mente poucos cenários ar-

riscados. Apesar de esses racio-

cínios parecerem plausíveis, am-

bos chegam a conclusões falsas.

A letra R aparece na terceira posição de palavras em inglês mais do

que na primeira. Ter uma vida sedentária é o maior fator de risco de morte

existente (excluindo-se fumar cigarro), enquanto mortes por homicídio são

proporcionalmente baixas. O viés subjacente a erros como esse é extre-

mamente recorrente e ficou conhecido como Viés da Disponibilidade.

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É muito mais fácil lembrar de palavras que se iniciam com R do que

as que têm sua terceira letra como R. Como consequência, a maioria das

pessoas considera as palavras que se iniciam com R como mais frequen-

tes. Analogamente, os riscos de um beco escuro à noite são muito mais

vívidos na nossa mente do que os advindos de uma maior probabilidade

de morte futura, consequente de certo hábito inofensivo no curto prazo,

como ser sedentário.

Uma diminuição da ocorrência de um evento no nosso horizonte i-

mediatamente acessível à memória nos faz, automaticamente, assumir

que esses eventos ocorrem na mesma proporção em que são acessíveis. A

disponibilidade de um dado na nossa memória não é um indicativo claro

de sua frequência. A primeira, a disponibilidade mental, é uma condição

epistêmica e computacional de um cérebro moldado pela evolução para

lidar com um mundo no qual, por exemplo, a taxa de homicídio (evitável)

era muito maior que a de infarto (inevitável). A segunda, a frequência real,

é um fato a respeito do mundo.

Probabilidades

Que probabilidade alguém deveria atribuir a que uma enchente i-

nunde uma hipotética cidade? Qual probabilidade alguém deveria ter atri-

buído que uma enchente inunde essa mesma cidade, depois de saber que

a cidade foi de fato inundada? Em nossas mentes, a segunda probabilida-

de é sempre considerada como

sendo maior do que a primeira,

quando elas deveriam ser sempre

iguais. Sempre que um evento an-

teriormente inesperado ocorre, nós

o classificamos como provável em

retrospecto.

O acidente em Fukushima, a

última crise financeira e as milhões

de mortes ocasionadas pelos tsu-

namis na Ásia foram todas consi-

deradas pelo publico geral como

tragédias que poderiam e deveriam

ter sido evitadas. Não conseguimos

nos ater ao fato de que, na época,

O acidente em Fukushima foi uma das tragédias

citadas na pesquisa. Os entrevistados acham

que poderia e deveria ter sido evitada

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não tínhamos informações suficientes para saber com segurança sobre a

probabilidade de qualquer um destes eventos. Essa tendência de sempre

dizer que um evento improvável deveria ter sido tido como provável, depois

de tomar conhecimento do acontecimento do evento, é conhecido como

Viés da Retrospecção.

Uma série de eventos foi descrita para três grupos distintos. Para

dois desses grupos foi dito que depois desta série de eventos um evento

específico ocorreu, enquanto que para o grupo restante, não. Mesmo sen-

do instruídos para avaliar qual a probabilidade do evento específico ocor-

rer da perspectiva de alguém posicionado antes da ocorrência do evento,

os grupos que sabiam do evento atribuíram uma probabilidade dez vezes

maior para o mesmo.

É necessário julgar quão provável era a probabilidade de um evento,

partindo das condições epistêmicas da época e não com base no nosso co-

nhecimento atual. Vendo a história através das lentes desse viés, nós, vas-

tamente, subestimamos a ocorrência de eventos que agora parecem im-

prováveis, pois temos a tendência a acreditar que um evento que ocorre,

necessariamente, seria avaliado como provável na época anterior à ocor-

rência. Ao fazer isso nós superestimamos o custo de nos prevenir para

uma catástrofe improvável. Isso nos leva ao próximo viés.

Um investimento que rende R$10,00 em 98% das vezes, mas perde

um milhão de reais em 0,2% dos casos é um investimento ruim? Apesar

de perder muito, o risco é extremamente baixo e, no geral, o investimento

é uma fonte de lucro constante. No entanto, isso claramente não é o caso

após calcularmos as perdas e ganhos totais

0,002] = 2). Nós tendemos a ignorar riscos de probabilidade pe-

quena, mas que tenham perdas muito altas. Essa tendência se tornou co-

nhecida como Viés dos Cisnes Negros. Ela se manifesta mesmo em casos

mais complexos analisados por grandes especialistas no assunto, um dos

inúmeros motivos da última crise econômica americana. Devemos dar

mais atenção a riscos pequenos de danos muito altos. E, se possível, cal-

cular de fato as probabilidades em vez de se guiar por intuições.

A sequência 2-4-6 obedece a uma regra, qual é ela? Posso dizer se

outras sequências obedecem à regra, quais sequências você deve pergun-

tar para testar sua hipótese? Alguém que forma a hipótese “Os números

estão aumentando +2” deve testar as triplas 8-10-12 ou 20-22-24, conclu-

ir que elas se ajustam à hipótese e anunciar a regra. Alguém que forme a

hipótese “X-2X-3X” deve testar a tripla 3-6-9, concluir que ela confirma a

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hipótese e anunciar a regra. No entanto, nenhuma dessas regras se adé-

qua à sequência como um todo, que apenas obedece à regularidade de ser

crescente.

Para testar uma regra devemos buscar evidências contrárias a ela.

Se formo a hipótese da regra +2, devo testar sequências cuja resposta a-

firmativa possa eliminar a minha hipótese por completo, e não sequências

cuja afirmativa deixe outras hipóteses mais simples em aberto.

É uma boa ideia tentar desconfirmar a hipótese para se chegar a

uma resposta mais aproximada. Tentamos sempre confirmar a nossa hi-

pótese em vez de falsificá-la. Mesmo quando somos apresentados a um

conjunto completo de evidências contrárias e favoráveis, tendemos a sele-

cionar apenas as favoráveis, numa manifestação do Viés da Confirmação.

Dois pensadores, sob a influência deste viés, irão considerar a mesma se-

quência de evidências, mas modificarão as suas crenças em sentidos con-

trários – ambos irão aceitar, seletivamente, apenas a evidência favorável.

Ou seja, o Viés da Confirmação pode tornar a pessoa completamente cega

aos dados. Devemos buscar evidências contrárias a nossa teoria, e não a

favor.

Resposta enviesada

Existem mais ou menos do que 500 pessoas num raio de 100 m a

sua volta? Alguém num lugar não muito cheio pensará: “500 é muito alto!

Menos”. Quantas pessoas existem num raio de 100 m a sua volta? Seja lá

o que você pensou, a sua resposta vai ser incorrigivelmente enviesada pelo

número 500 – um número aleatório que os escritores dessa matéria resol-

veram colocar na pergunta, sem qualquer relação com o número de pes-

soas que existe em um raio de 100 m. Sujeitos a quem se pergunta, inici-

almente, se o número de países africanos na ONU é maior ou menor do

que 15, geraram, posteriormente, estimativas bem menores do que aque-

les a quem foi perguntado se esse número era menor ou maior que 65.

Esses indivíduos tomaram o número inicial como seu ponto de par-

tida, ou âncora, e, então, ajustaram o número para cima ou para baixo até

alcançarem uma resposta que lhes parecesse razoável e, então, pararam

de ajustar. Como resultado, a estimativa foi contaminada por um número

totalmente aleatório sem nenhuma relação com a pergunta. Os números

15 e 65 tinham sido gerados aleatoriamente por uma roleta, e isso foi in-

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formado aos participantes. A tendência a calibrar o valor absoluto de sua

resposta por lastros aleatórios apresentados anteriormente foi chamada de

Viés da Ancoragem. A saída para não cair nele é não usar um valor de re-

ferência não informativo para se perguntar a magnitude de algo, porque a

sua resposta será invariavelmente contaminada pelo valor.

Antes de passar ao próximo viés, vamos iniciar uma pequena brin-

cadeira de memorização. Leia esta lista de palavras: cadeiras, mesa, toa-

lha, talheres, copos, taças, canecas, prateleira, cafeteira, pia, freezer, mi-

croondas, lixeira orgânica, lixeira de recicláveis, torneira, lavadora de pra-

tos. Mais para frente, veremos como você se lembra dela. (Não vale voltar

aqui como cola!)

Você está sentado confortavelmente no seu computador lendo arti-

gos sobre saúde, enquanto toma o seu café matinal. Você se depara então

com um artigo sobre uma pesquisa que revela uma incidência de infartos

10% maior nos usuários de café.

Passados alguns meses, já tendo se esquecido da notícia, você está

novamente tomando seu café matinal no computador quando chega um e-

mail trágico e triste lhe informando que um amigo íntimo seu morreu de

infarto, sendo a causa uma hipertrofia ventricular esquerda, agravada pe-

lo uso do café. Em quais das duas situações você ficaria mais receoso em

continuar a beber seu café matinal? Obviamente, a reação instintiva no

primeiro caso é nula, enquanto que no segundo pode envolver até jogar

sua xícara imediatamente no chão e se livrar de todo o pó de café existente

na casa.

Não só isso, mas se o referido artigo de saúde dissesse que a inci-

dência de infartos passava de 1 pessoa em 100 para 10 pessoas em 100

com o uso do café, sua resposta de abandonar o uso do café poderia ter

sido maior. As pessoas tendem a não atualizar suas crenças de maneira

correta quando os dados são apresentados em termos de porcentagens ou

probabilidades absolutas (10%, 0,01...). Mas, quando os dados são apre-

sentados em termos de ocorrências (1 pessoa em cada 10), a atualização

se torna mais próxima da correta.

Ocorrências

Evoluímos para aprender sobre a realidade com base em ocorrências

e não em números abstratos. Absorvemos muito melhor a informação so-

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bre um risco se sabemos de pessoas que sofreram esse risco, mas não se

lemos uma pesquisa. Em geral, as pesquisam científicas envolvem um

número grande de participantes, realizam o controle de outras variáveis e

fazem uma análise estatística cuidadosa. Este viés cognitivo foi chamado

de Viés do Formato Estatístico. Nosso cérebro está programado para a-

prender que algo não é seguro se descobrimos sobre alguém que sofreu os

efeitos maléficos da substância, não se vemos um número abstrato escrito

em alguma pesquisa.

Qual o nível de habilidade média dos seus familiares em: jogar fute-

bol, cozinhar e de realizar baliza? Qual sua habilidade em cada uma de-

las? Participantes foram instruídos a avaliar qual era o perfil médio de

membros de um grupo no qual estavam com respeito a uma lista de habi-

lidades. Em seguida, foram requisitados para avaliar a si próprios com

relação a essa média. Em geral, todos os participantes do grupo avaliaram

a média mais ou menos corretamente, no entanto quase todos se avalia-

ram como acima da média - mesmo a média sendo definida, justamente,

como o perfil mais representativo da amostra.

Temos uma tendência sistemática de nos considerar melhor do que

a média, com respeito a alguma habilidade ou capacidade. Essa tendência

foi denominada Viés do Excesso de Confiança. Esse viés também pode se

manifestar naquele caso do personagem lendo o artigo de saúde sobre ca-

fé, e em outros casos semelhantes, quando o indivíduo se considera um

ponto fora da amostra e que para ele o café não fará mal e ele não estará

naquele grupo de infortunados que sofrem infarto. Ou que ele não fará

parte da esmagadora maioria de pessoas que sofre com obesidade e diabe-

tes em função dos hábitos alimentares

Digno de maior atenção ainda é o fato de que esse viés faz com que

muitas pessoas se considerem imunes aos vieses e falhem em corrigi-los.

Sempre se atente para o fato que, por uma questão matemática, você mui-

to provavelmente faz parte da média com relação a habilidades e a vulne-

rabilidade a doenças e não a um pequeno grupo fora da curva.

Um experimentador fingiu ter um ataque cardíaco perto de grupos

de uma, três, cinco ou dez pessoas. Em quais dos grupos a probabilidade

dele ser atendido era maior? Acredite se quiser, no de uma pessoa! A pro-

babilidade de o experimentador ser socorrido decaiu conforme o número

de pessoas aumentou. Qual seria o mecanismo por trás desse fato estra-

nho? Ele ocorre, porque quanto maior o grupo maior a difusão de respon-

sabilidade entre as pessoas e menor a probabilidade de alguém se sentir

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responsável o suficiente para agir, numa manifestação do conhecido Viés

da Apatia.

A probabilidade de alguém reclamar caso entre um grupo de fuman-

tes num ambiente fechado é inversamente proporcional ao número de

pessoas não fumantes. Para evitar o viés, não delegue tarefas publicamen-

te que podem ser feitas individualmente por qualquer uma das pessoas de

um grupo. É mais eficaz eleger uma única pessoa ou informar as pessoas

uma a uma sobre a tarefa. E em caso de infarto ou outra necessidade de

socorro iminente, aponte uma única pessoa da multidão em vez de sim-

plesmente pedir por ajuda.

A lista

Quão bem você considera que se lembra da nossa lista de palavras

apresentada há pouco? A lista continha alguma dessas palavras: pratos,

sofá, geladeira, liquidificador? Você se lembra de onde na lista estava essa

palavra?

Se você disse que qualquer uma dessas palavras estava na lista, vo-

cê errou! Mas saiba que não está sozinho. Participantes de diversos expe-

rimentos foram apresentados a uma longa lista de palavras relacionadas a

um único tema pontual – que, no nosso caso, eram objetos presentes na

cozinha.

Em seguida, foram perguntadas se uma palavra específica relacio-

nada ao tema, que não estava na série, estava ou não na série. A grande

maioria dos participantes não só afirmou que a palavra estava na série

como inventou uma memória episódica sobre qual palavra veio depois e

antes da palavra perguntada. Essa tendência é conhecida como Viés da

Memória Fabricada. Esse viés é tão forte e se manifesta numa variedade

tão grande de situações que, atualmente, não existe nenhum método ex-

perimental conclusivo para diferenciar memórias fabricadas de verdadei-

ras.

Quão bem você jogava futebol há 10 anos? E nos últimos anos? E

hoje? Muito provavelmente sua resposta foi diferente em ao menos um dos

casos, e altamente influenciada pelo seu atual estado emocional. Se per-

guntadas sobre suas características (como traços de personalidade, habi-

lidades cognitivas, habilidades motoras, etc.) de um passado imediato as

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pessoas tendem, imediatamente, a dizer que elas são as mesmas caracte-

rísticas que as atuais.

Quando questionadas sobre suas características do passado remoto,

as pessoas tendem, imediatamente, a dizer que elas mudaram em relação

às atuais. Quando infelizes, as pessoas tendem a avaliar as características

suas no passado como melhores que as atuais. Quando felizes, as pessoas

tendem a avaliar características suas no passado como piores que as atu-

ais. Apesar de tudo isso, o que se observa é que características pessoais

mudam muito pouco ao longo do tempo. Essas tendências de supor uma

mudança que não existe são chamadas de Viés da Mudança. Tenha sem-

pre em mente que você e os outros mudam pouco com o tempo, e que co-

mo você se sente no presente pode te levar a superestimar ou subestimar

o passado. E o futuro também, mas este é um viés para outra matéria.

Os vieses cognitivos são persistentes e nos levam a conclusões intui-

tivamente certas, mas que nem sempre resistem a uma análise mais cui-

dadosa. Contudo, os vieses são mesmo falhas de raciocínio que ocorrem

em nossa mente? Essa visão foi contestada por diversos autores. Um dos

mais conhecidos foi Herbert Simon, que trouxe a noção de racionalidade

limitada. Nela, nossa mente não é considerada um processador de infor-

mações perfeito, pelo contrário, está sujeita a limitações e faz o melhor

que pode dentro desse cenário, gerando, às vezes, os vieses cognitivos.

Temos limitações variadas, como falta de acesso a todas as informa-

ções necessárias para se avaliar uma situação, nosso sistema perceptual

não é capaz de captar todos os aspectos do ambiente, temos uma quanti-

dade limitada de energia para gastarmos com a cognição etc. Enfim, essas

limitações nos levam a utilizar, muitas vezes, uma quantidade mínima de

recursos cognitivos para que encontremos uma saída satisfatória, mas

não perfeita de acordo com o modelo da racionalidade clássica, para nos-

sos problemas. Essa noção ficou conhecida também como fast and frugal,

porque corresponderia a um tipo de processamento mental rápido, eco-

nômico e simples e oposto a um processamento mais lento, cuidadoso e

eficaz, que, contudo, consumiria muito tempo e energia, sendo menos co-

mum.

O conceito de racionalidade de Simon trouxe mais realismo a como

nossa cognição funciona, diferentemente do modelo de ser humano racio-

nal clássico, que pressupunha um funcionamento lógico-utilitário, que

aproximava a mente de um processador de informações perfeito para atin-

gir objetivos. Ainda assim, não abandona totalmente esse modelo, já que

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coloca atenuantes, como o limitado acesso a informações, para justificar o

não funcionamento perfeito de nossa mente.

Uma visão mais real e naturalista de nosso funcionamento cognitivo

pode ser encontrada, considerando a evolução da nossa espécie. O ser

humano é mais uma espécie animal, que evoluiu naturalmente tendo que

resolver dilemas típicos da espécie, como encontrar comida, parceiros se-

xuais, conviver em grupo, se defender de predadores, identificar traidores

no grupo, se proteger de outros grupos, etc. Esses problemas que tivemos

que enfrentar em nosso passado evolutivo moldaram nossa mente, de mo-

do que o objetivo do nosso processador de informações não é atingir a ver-

dade em si, mas se sair bem em situações com que a espécie tipicamente

se depara.

Um paralelo pode ser feito

com nosso sistema visual, que não

funciona como uma câmera regis-

trando o mundo como ele é, mas

apresenta as denominadas ilusões

óticas; porém elas normalmente

levam a uma maior adaptação ao

mundo e raramente causam pro-

blemas sérios. Assim, a denomi-

nação ilusões visuais pode ser cri-

ticada, porque sugere uma distor-

ção, quando na verdade o que

nosso sistema visual faz é uma

interpretação do ambiente que é

vantajosa para nossa espécie, e

não pode ser considerada uma

distorção, porque não há um mo-

delo ao qual se comparar. A comparação com uma câmera de filmagem é

pobre, afinal o objetivo da câmera ao filmar é diferente dos propósitos de

um ser vivo de certa espécie ao enxergar.

O passado da mente

O ponto de partida para entender como a mente funciona pode ser

refletir sobre o que ela evoluiu para fazer adequadamente. Somos uma es-

pécie muito social, portanto é esperado que consigamos resolver proble-

Ilusão de óptica: vendo movimento onde não há. Falha visual?

Ao contrário: este é um efeito colateral de o sistema visual

interpretar de forma correta as sombras do mundo real.

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mas relacionados à vida social, como detecção de trapaceiros, avaliação de

interesse de um parceiro sexual, compreensão e respeito à hierarquia so-

cial, identificação de pessoas de fora do grupo, etc. As pesquisas na área

de Psicologia Evolucionista têm indicado que somos bons nesses campos,

que representam domínios ecológicos válidos, ou seja, situações que tive-

mos que enfrentar no ambiente de adaptação evolutiva.

Já nas pesquisas do campo da Heurística e Vieses, alguns dos vie-

ses identificados representam situações artificiais. Por exemplo, nos expe-

rimentos sobre probabilidade, os participantes têm demonstrado um de-

sempenho muito distante com relação ao que seria matematicamente cor-

reto. Porém, as pesquisas costumam envolver situações artificiais, que

pouco tem a ver com os problemas que fomos selecionados para resolver.

Portanto, normalmente os estudiosos não consideram o contexto

ambiental em que o processamento de informações foi selecionado natu-

ralmente, assim o julgamento do que é ou não uma decisão racional se

torna pouco acurado. Os humanos existem e funcionam em um ambiente

e, sob essa perspectiva, os vieses não são erros graves de uma mente irra-

cional, mas são processamentos que, normalmente, levam soluções ade-

quadas, quando verificadas as situações naturais em que ocorrem.

Steven Pinker nos lembra

que muitos vieses nos trazem

mais vantagens do que desvan-

tagens. Por exemplo, existe um

viés tipicamente masculino em

superestimar o interesse sexual

das mulheres por eles. Em mui-

tos casos, o homem estará er-

rado. Porém os casos em que

estiver certo compensam em

termos evolutivos, afinal ele

perderia chances de reprodução

se não percebesse o interesse

da mulher. Outro viés é o dos

apaixonados, que acreditam

que o alvo de sua paixão é uma

pessoa acima da média, sem

defeitos. É um viés importante para a aproximação e união do casal. No

viés em que os membros de um grupo acreditam que seu grupo é melhor

do que os demais, observamos uma vantagem de união desse grupo.

Existe um viés tipicamente masculino, que faz com que os

homens superestimem o interesse sexual das mulheres por eles

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Portanto, os vieses aparecem em vários tipos de situação. Em al-

guns, eles podem resultar em consequências mais maléficas e, em outras,

mais benéficas. Hoje em dia, temos acesso a pesquisas de qualidade e a

fontes de informação diversificadas que podem nos fornecer dados mais

precisos sobre a situação de interesse. Podemos, assim, contar com um

bom auxílio na hora de tomar decisões, e não apenas contar com nosso

processador de informações, que costuma estar enviesado e pode nos dis-

tanciar de conseguir nossos objetivos.

Notas

* Isabella Bertelli: graduada e mestre em Psicologia pela USP e analista de treina-

mento em uma consultoria de aprendizagem organizacional. Blog sobre Psicologia:

cienciaemente.blogspot.com.

** João Lourenço: mestrando em Filosofia da Mente pela USP. Estuda vieses cogniti-

vos e os aspectos éticos de aperfeiçoar a cognição humana por meio da tecnologia.

Fundador da ONG Instituto Ética, Racionalidade e Futuro da Humanidade: ierfh.org.

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Referências

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