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MIRIAM MOSCARDINI OS PERCURSOS DOS ATORES LAVO, MUNDO E JANO: A enunciação e o enunciado em Cinzas do Norte Dissertação apresentada à Universidade de Franca, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Linguística. Orientadora: Profa. Dra. Vera Lucia Rodella Abriata. FRANCA 2010

OS PERCURSOS DOS ATORES LAVO, MUNDO E JANO: e o …livros01.livrosgratis.com.br/cp123116.pdf · and the enunciate in Cinzas do Norte. 2010 .122f Dissertação (Mestrado em Linguística)-Universidade

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MIRIAM MOSCARDINI

OS PERCURSOS DOS ATORES LAVO, MUNDO E JANO: A enunciação

e o enunciado em Cinzas do Norte

Dissertação apresentada à Universidade de

Franca, como exigência parcial para obtenção

do título de Mestre em Linguística.

Orientadora: Profa. Dra. Vera Lucia Rodella

Abriata.

FRANCA

2010

Livros Grátis

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Catalogação na fonte – Biblioteca Central da Universidade de Franca

Moscardini, Miriam

M866p Os percursos dos atores Lavo, Mundo e Jano : a enunciação e o enunciado

em Cinzas do Norte / Miriam Moscardini ; orientador: Vera Lúcia Rodella

Abriata. – 2010

122 f. : 30 cm.

Dissertação de Mestrado – Universidade de Franca

Curso de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestre em Lingüística

1. Linguística – Enunciação. 2. Enunciado. 3. Hatoum, Milton 1952- –

Cinzas do Norte (romance) – Análise. 4. Ator. 5. Paixão da cólera. I.

Universidade de Franca. II. Título.

CDU – 801

MIRIAM MOSCARDINI

OS PERCURSOS DOS ATORES LAVO, MUNDO E JANO: A enunciação e o

enunciado em Cinzas do Norte

COMISSÃO JULGADORA DO PROGRAMA DE MESTRADO EM LINGUÍSTICA

Presidente: Profa. Dra. Vera Lucia Rodella Abriata

Universidade de Franca

Titular 1: Prof. Dr. Juscelino Pernambuco

Universidade de Franca

Titular 2: Profa. Dra. Tieko Yamaguchi Miyazaki

Unesp/São José do Rio Preto

Franca, 26 / 02 /2010

DEDICO aos meus pais Antônio e Mariana, à minha irmã Eila; à

minha orientadora Dr. Vera Lucia Rodella Abriata; aos meus

amigos de jornada: Amanda, Cleides, Cléviton, ao Ari, à Zilda e a

todos que, de alguma forma, contribuíram para a elaboração deste

trabalho.

AGRADECIMENTOS

A Deus, por tudo que concede em minha vida;

aos meus pais, Antônio e Mariana, pela compreensão;

à minha irmã Eila, pela ajuda quando sempre precisei;

aos meus familiares, tio Justino, tia Rosa, Susana, Alexander, pela acolhida e o

carinho;

às minhas tias Odete e Laura que me ajudaram de alguma forma;

ao Ari, pelo ensinamento e pela ajuda no momento decisivo da minha vida;

à Profª. Dra. Edna Maria Fernandes dos Santos do Nascimento, pelo carinho e

confiança de que eu era capaz;

ao Prof. Dr. Juscelino Pernambuco, pela contribuição no relatório de

qualificação;

à Cleides, pelo companheirismo, paciência e, acima de tudo, a amizade;

à Amanda, que sempre me ajudou nas horas solicitadas, pelo carinho e

amizade;

ao meu amigo Cléviton que, mesmo quando tudo parecia temeroso, mostrava-

me a luz que brilhava em meu caminho;

à Zilda que me ajudou nas horas solicitadas, agradeço as palavras que me

fazem crescer a cada dia;

à CAPES, pelo apoio financeiro;

e àquela que acompanhou meu caminho de luta, altos e baixos, agradeço a

paciência incondicional que teve comigo, minha orientadora Profª. Dra. Vera Lucia Rodella

Abriata, agradeço, ainda, pelo carinho e ensinamento.

DIGO: o real não está nem na chegada nem na saída: ele se dispõe

para a gente no meio da travessia.

Guimarães Rosa

RESUMO

MOSCARDINI, Miriam. Os percursos dos atores Lavo, Mundo e Jano. A enunciação e o

enunciado em Cinzas do Norte. 2010. 122f. Dissertação (Mestrado em Linguística)-Universidade de

Franca, Franca- SP.

Esta dissertação analisa o romance Cinzas do Norte, de Milton Hatoum por meio do

arcabouço teórico da semiótica francesa, com o objetivo de verificar de que modo se instaura

a relação conflituosa entre o ator protagonista “Mundo” e seu pai “Jano”, tendo em vista o

valor que cada um deles atribui a seus objetos de valor. Para isso, recorre-se ao estudo das

paixões, em especial, à paixão da cólera e suas variantes, com base nos estudos de A. J.

Greimas e J. Fontanille. Examina-se também a questão do ponto de vista na narrativa em que

o narrador “Lavo”, no presente da enunciação, relata a história do amigo Mundo e, por meio

de seu foco de observação, como simulacro do enunciador e como ator participante, reconstrói

o percurso do protagonista, delegando voz a outros narradores, o que propicia a criação de

efeitos de sentido de verdade ao texto. Analisam-se, por fim, as estratégias utilizadas pelo

enunciador ao mudar o foco de observação e a delegação de voz, e, ainda, a ancoragem do

texto no norte do país e no contexto da ditadura militar, buscando os efeitos de sentido

produzidos no texto por meio desses tipos de ancoragem espacial e temporal, e o caráter

pluriisotópico da figura das “cinzas” no romance hatouniano.

Palavras-chave: Milton Hatoum; ator; paixão da cólera; enunciação, enunciado

ABSTRACT

MOSCARDINI, Miriam.The paths of the actors Lavo, Mundo and Jano. The enunciation

and the enunciate in Cinzas do Norte. 2010. 122f. Dissertação (Mestrado em Linguística)-

Universidade de Franca, Franca- SP.

This work analyses the novel Cinzas do Norte by Milton Hatoum. The theory which underlies

our analysis is the French semiotics. The study aims at verifying how the dysfunctional

relation between the main character “Mundo” and his father “Jano” is established, considering

the value each one of them gives to their objects of value. For this, we resorted to the study of

passions, in special the passion of anger and its variants, based on A. J. Greimas and J.

Fontanille‟s studies. Another aim is to verify the point of view of “Lavo”, the narrator of the

novel, who relates in the present of the enunciation, the story of his friend Mundo.

Furthermore, through Lavo‟s perspective as a simulacrum of the enunciator and as a

participant actor, we examine how he reconstructs the protagonist‟s course, delegating voice

to the other narrators. This textual strategy enables the creation of truth effect of sense to the

text. We also examine the strategies used by the enunciator when he changes not only his

point of observation but also the delegation of voice. Moreover, we finally examine the

anchoring of the text in the north of the country and in the military dictatorship context.

Besides, we looked for the effects of sense produced in the text by means of the spatial and

temporal anchoring just like the pluri-isotopic character of the figure “ashes” in Hatoum‟s

novel.

Key words: Milton Hatoum; actor; the passion of anger; enunciation, enunciate.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 9

1 HATOUM: OBRA E CRÍTICA ............................................................................. 12

2 SEMIÓTICA FRANCESA E SEUS PRESUPOSTOS ........................................ 20

2.1 O PERCURSO GERATIVO DE SENTIDO ............................................................ 21

2.1.1 Nível fundamental ..................................................................................................... 22

2.1.2 Nível narrativo ........................................................................................................... 23

2.1.3 A modalização ........................................................................................................... 27

2.1.4 Nível discursivo ......................................................................................................... 29

2.2 ENTRE NARRATIVO E O DISCURSIVO: O CONCEITO DE ATOR EM

SEMIÓTICA ........................................................................................................................... 33

3 A ABORDAGEM SEMIÓTICA DAS PAIXÕES ................................................ 36

3.1 A PAIXÃO DA CÓLERA ........................................................................................ 39

3.2 A CÓLERA SOB A PERSPECTIVA DE GREIMAS .............................................. 41

3.3 A CÓLERA, SEGUNDO FONTANILLE ................................................................ 44

4 LAÇOS DE DESAFETOS ENTRE JANO E MUNDO ....................................... 49

4.1 A HISTÓRIA ............................................................................................................ 49

4.2 O ESTADO DA CÓLERA DE JANO ...................................................................... 51

4.3 A GERMINAÇÃO DA CÓLERA DE MUNDO E A AGRESSIVIDADE DE

JANO....................................................................................................................................... 55

4.4 AS EXPLOSÕES DE AGRESSIVIDADE E CÓLERA RECÍPROCAS: UM

CÍRCULO VICIOSO .............................................................................................................. 61

5 ESTRATÉGIAS ENUNCIATIVAS EM CINZAS DO NORTE ......................... 65

5.1 LAVO E MUNDO: A CONSTRUÇÃO DOS ATORES CENTRAIS ..................... 65

5.2 O SUJEITO OBSERVADOR RANULFO: UM ATOR PARTICIPANTE ............. 77

5.3 LAVO E O FOCO DE OBSERVAÇÃO SOBRE A OBRA DE MUNDO .............. 82

5.4 A DELEGAÇÃO DE VOZ A MUNDO: A CARTA E O SEGREDO REVELADO.85

6 A CONFIGURAÇÃO DAS CINZAS EM CINZAS DO NORTE ....................... 89

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 100

REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 102

ANEXOS ................................................................................................................................ 105

9

INTRODUÇÃO

O texto “A causa secreta”, de Machado de Assis, que lemos no primeiro ano de

graduação do curso de Letras, causou-nos grande impacto e fascinação, e uma das razões

eram as estratégias utilizadas pelo enunciador, relacionadas ao ponto de vista sobre os fatos da

história que ressalta o tema do sadismo. Tal texto nos inquietava a cada nova leitura. Quando

fizemos, no último ano da graduação, a disciplina optativa “Discurso e produção do sentido

em diferentes perspectivas”, ministrada pelas professoras Dra. Vera Lúcia Rodella Abriata e

Dra. Edna Maria Fernandes dos Santos Nascimento, o desejo de fazer pesquisa sobre a obra

machadiana tornou-se possível. Nessa disciplina, elaboramos um projeto de pesquisa e

analisamos o conto machadiano por meio da teoria semiótica francesa, com a qual tivemos o

primeiro contato, pois era a linha de pesquisa das docentes. Ao longo dos estudos da

disciplina, passamos a ler livros introdutórios de semiótica e objetivamos aplicar a teoria à

análise do texto machadiano para verificar a construção do ator Fortunato e o modo como seu

caráter, que primava pelo sadismo, fora construído ao longo da obra. Essa análise resultou em

nossa monografia de iniciação científica, que foi importante para a apreensão de alguns dos

efeitos de sentido do rico texto machadiano, principalmente as estratégias relacionadas ao

foco de observação. A busca por um maior aperfeiçoamento nos estudos semióticos nos levou

ao Mestrado em Linguística.

O corpus constituinte desta nova pesquisa, o romance Cinzas do Norte, de

Milton Hatoum, foi sugestão de nossa orientadora, Profa. Dra.Vera Lúcia Rodella Abriata.

Trata-se de um romance contemporâneo em que o conflito entre pai e filho é marcante. A

história gira em torno do jovem Mundo e de seu pai Jano. Ambos não se entendem,

principalmente porque Mundo não concorda com os planos que o pai tem para seu futuro.

Tem-se uma relação marcada pelo conflito e distanciamento, pois cada um dos atores concebe

valores diferentes para suas vidas, o que se revela na complexidade da narrativa.

Cinzas do Norte é composto de vinte capítulos, epílogo e prefácio. O ator

Lavo, amigo de Mundo, exerce papel actancial de narrador da história. Vale destacar que

outros dois dos capítulos da obra são constituídos do gênero “carta”, endereçadas a Lavo por

Mundo, que as reproduz. É preciso enfatizar que os demais capítulos, sem número, são

escritos em itálico e constituem relatos que Ranulfo, tio de Lavo, escreve a respeito de Mundo

e de sua mãe Alícia, amante do denominado tio Ran. Lavo simula reproduzir em seu texto,

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que constitui o romance, esses dois relatos em primeira pessoa. Junto a esse relato de tio Ran,

e a pedido deste, Lavo junta a última carta que Mundo lhe envia, doente em uma clínica,

prestes a morrer, onde revela a Lavo, no desenlace da história, segredos de sua vida e

episódios do que viveu enquanto estava fora do país. Percebemos, desse modo, que Lavo é o

narrador da história, que, no presente da enunciação, faz ressurgir por meio da memória, a

história seu amigo Mundo, sujeito protagonista do relato.

Ao começarmos a leitura do texto de Hatoum, deparamo-nos com flashbacks

conduzidos pelo narrador, os quais levam o enunciatário a reconstituir os fatos da narrativa

não linear. A partir disso, observamos que o narrador tem a necessidade de ir retomando os

fatos para constituir uma narrativa densa e trágica. Isso é comprovado pelo efeito de

veracidade que o enunciador transmite a seu enunciatário, ao simular a realidade dos fatos,

isto é, fazer com que o enunciatário creia ser verdadeiro tudo aquilo que relata.

A narrativa gira em torno da vida de Mundo, principalmente no que se refere à

relação seu pai Trajano. Lavo leva o enunciatário a buscar incansavelmente descobrir quais

as causas da ausência de afeto, carinho, amor do pai para com o filho e do filho para com o

pai.

Lavo tem o papel actancial de escritor, mas é ao mesmo tempo sujeito do

enunciado, um sujeito observador, cognitivo e, passional, pois busca entender a vida do amigo

e, ao mesmo tempo, comove-se ao tentar compreendê-la por meio da convivência com Mundo

e da estreita relação que tem com seu pai Jano.

Nosso objetivo é analisar o romance de Hatoum da perspectiva teórica da

semiótica francesa e, para conseguirmos alcançar essa meta, fizemos uma série de

questionamentos acerca da obra:

Como é construído o percurso passional de Mundo e de seu pai Jano, da ótica

do sujeito narrador?

Seria a incompatibilidade de valores o fio condutor da desavença entre pai e

filho?

Qual a função do momento histórico, em que se passa a história, a ditadura

militar, no contexto da obra?

Seria a paixão da cólera, ou da revolta aquela que move a vida de pai e filho de

modo marcante?

Para respondermos a essas questões, utilizamos elementos da semiótica da ação

e da semiótica das paixões que são os fios condutores de nossa pesquisa.

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A teoria semiótica para depreender o sentido de um texto, estabelece um

percurso em níveis que vai do mais simples ao mais complexo, em que eles se entrelaçam

hierarquicamente, levando-nos à percepção de sentidos do texto. Por outro lado, a semiótica

das paixões procura depreender o modo como os “sentimentos”, as “ emoções”, são

percebidos e decodificados na linguagem .

Nosso trabalho divide-se em quatro capítulos. No primeiro capítulo, intitulado,

Hatoum: obra e crítica, fazemos um breve estudo com base em estudiosos da literatura

hatouniana, para que, com base nessas reflexões, possamos traçar o nosso percurso de

leitura.

No segundo capítulo, denominado A semiótica francesa e seus pressupostos

esboçamos aspectos dos estudos semióticos que se referem ao percurso gerativo de sentido,

um dos pilares que sustentam nossas análises. Além disso, descrevemos a concepção de ator,

importantes para observarmos como ele se constitui como sujeito da enunciação e do

enunciado no romance de Hatoum.

O terceiro capítulo, A abordagem semiótica das paixões, tem objetivo de

apreender o modo como a teoria semiótica conceitua a paixão para, posteriormente, voltarmo-

nos para o estudo da paixão da cólera e de suas variantes que nos dão suporte para o capítulo

de análise os estados de alma que se manifesta no texto.

No quarto capítulo, Os laços de desafetos entre Jano e Mundo, centramos

nossa atenção na relação de Mundo com o pai e no modo como é construído o esquema

canônico passional da cólera no romance. Desse modo, será possível compreendermos os

estados de alma desses sujeitos do texto de Hatoum.

O quinto capítulo denomina-se Estratégias enunciativas em Cinzas do Norte

e nele focalizamos o modo como o narrador Lavo manifesta-se como ator no nível da

enunciação, como sujeito observador, tentando compreender a relação entre Mundo e o Outro,

por meio da delegação de voz que atribui ao próprio Mundo e a Ranulfo. Analisamos os dois

atores centrais em seus papéis de sujeito pragmático, cognitivo e passional, no nível da

enunciação e do enunciado e damos vozes às diferentes perspectivas que constituem a

polifonia da obra.

E, finalmente, no último capítulo, A configuração das cinzas em Cinzas do

Norte, nosso trabalho se abre para inúmeras possibilidades da metaforização das cinzas no

contexto do romance tanto no plano subjetivo, quanto no social, por meio da ancoragem da

obra no tempo da ditadura militar, observando o modo como ela se recria na obra.

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1 HATOUM : OBRA E CRÍTICA

Cada livro te ensina como escrevê-lo.

Milton Hatoum

Em entrevista à revista Au (2007), especializada em arquitetura e urbanismo,

a jornalista Bianca Antunes, questiona Milton Hatoum, sobre aspectos diversos de sua vida,

principalmente acerca de sua formação de arquiteto e de sua relação com a literatura. Ali

ficamos sabendo que Hatoum se formou pela FAU-USP em 1978 e começou a exercer a

profissão participando de alguns projetos arquitetônicos em Manaus. De acordo com Antunes

(2008), ele não pôde realizar o projeto de um conjunto habitacional popular em Manaus, pois

seus planos não se coadunavam com a política estabelecida pela prefeitura local. Desse modo,

frustrado, elege outra profissão, começa a trabalhar como repórter da revista Isto é e, ao

mesmo tempo, faz resenhas de livros. Vai para a Espanha em 1980 onde estuda literatura e

língua espanhola. Anos mais tarde, faz mestrado na Universidade de Paris III e realiza

traduções de livros de Jorge Amado. Volta para Manaus, lugar onde se estabiliza como

professor na Universidade do Amazonas e, ao mesmo tempo, é contratado como professor da

Universidade da Califórnia (Berkeley). Atualmente é colunista do jornal O Estado de São

Paulo e do Terra Magazine e não leciona mais, mas realiza palestras em algumas faculdades,

dedicando-se essencialmente à escrita de suas obras.

A aptidão para a literatura já era demonstrada por Hatoum nos tempos em que

cursava arquitetura na USP em São Paulo. O fato de frequentar disciplinas do curso de Letras

possibilitou-lhe um aprofundamento no campo da literatura. Teve renomados professores

como Alfredo Bosi, Davi Arrigucci Jr. e Leila Perrone Moisés.

Ganhador de três prêmios Jabutis com os romances Relato de um certo oriente

(1989), Dois Irmãos (2002) e Cinzas do Norte (2005)1, Milton consagrou-se como um dos

melhores escritores contemporâneos. A boa aceitação de sua obra pela crítica e o

reconhecimento dos leitores evidenciam a qualidade de seus romances. Surgem, a partir daí,

vários estudos acadêmicos, notas, artigos, entrevistas sobre a obra hatouniana os quais

alicerçam nosso estudo.

É importante observar que muitas das obras de Hatoum assemelham-se umas

às outras quanto à temática. Nos dois primeiros romances temos a imigração dos árabes, como

1 Cinzas do Norte possibilitou a Hatoum outros prêmios, Portugal Telecom, Bravo!, APCA.

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um dos temas ressaltados pelo escritor, pois Hatoum é filho de libaneses e recria em sua

ficção fatos pessoais com uma grande carga de imaginação. Já em Cinzas do Norte, o conflito

familiar, também presente em Dois irmãos (2000), é retratado pelo autor. Em Órfãos do

Eldorado (2008), as relações familiares conflituosas também são o foco da história em meio à

recriação do mito do Eldorado.

Para Telarolli (2007), o distanciamento entre o lançamento de suas obras é

decorrente do perfeccionismo do autor e revela seu cuidado ao escrevê-las. No que se refere à

produção dos romances de Hatoum, Julian Fuks (2008) observa que a maturidade da obra do

autor está ligada ao fato de o escritor levar muito tempo para escrevê-las. Cinzas do Norte,

por exemplo, foi escrita ao longo de quatro anos e, em uma carreira literária de

aproximadamente 30 anos, é apenas o terceiro livro publicado por ele. Nessa entrevista

concedida a Fucks, o autor tece comentários para o colunista, em que aponta seu desinteresse

pelo circuito comercial de literatura: “Eu quero viver de literatura, mas sem escrever para

vender, para alcançar sucesso comercial. Todo escritor quer ter leitores, de preferência bons.

São os bons leitores que justificam a literatura”.

Em outra entrevista concedida a Daniel Marques para a revista Cult On-line

(2008), Hatoum revela sua preocupação com a qualidade estética ao afirmar que o leitor busca

em uma obra literária “a linguagem, o estilo, o fazer literário, a dimensão simbólica de alguns

assuntos”, elementos a que o autor dá grande importância em sua obra.

A respeito da temática de Cinzas do Norte, comentada na coluna intitulada

“Os despojos da revolta”, do colunista Souza Andrade (2005), Hatoum afirma que produz

uma literatura a qual desperta para uma nova temática: a Amazônia pós-guerra. Quanto à

alusão à causa ambiental na obra, Souza Andrade afirma que o interesse do escritor não incide

sobre a criação de uma obra engajada. Sua pretensão é abordar a questão ambiental

relacionada ao drama familiar. Tais considerações são feitas pelo colunista ao indicar todas as

questões que envolvem a cultura do lugar que são retratadas pelo escritor:

[...] os dados da cultura local nunca são ornamentos artificiosos, mas se deixam

apreender a partir de uma dimensão universal, relativizadora, no narrador, que

reafirmam o seu estilo próprio e oferecem, em narrativa envolvente, um quadro vivo

e contraditório da nossa história recente.

Em relação à temática regional, Fuks (2005) observa que fazer uma literatura

regionalista está fora dos objetivos do escritor, pois o “regionalismo é uma visão muito

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estreita da geografia, do lugar, da linguagem. [...] O assunto, a matéria, não são garantia de

boa narrativa. O que vale é a fartura da linguagem, a forma”.

Nessa mesma linha, Fuks (2008) questiona o autor sobre a relação entre o

social e o ficcional em sua obra. Hatoum responde que tem como principal objetivo “penetrar

em questões locais, em dramas familiares, e dar um alcance universal para elas”. O escritor

considera que um dos eixos de estrutura de Cinzas do Norte é o drama familiar “[...] o ponto

de partida para uma rede de subtemas que o romance insinua: políticos, históricos, urbanos.”

Tendo em vista o engajamento político, em entrevista a Marques (2008),

Hatoum esclarece que não deve ser considerado um escritor político, contudo assevera que a

literatura tem sempre um cunho político. Para ele, a literatura é capaz de dialogar com a

“linguagem, o estilo, o fazer literário, a dimensão simbólica de alguns assuntos”, é, pois, em

razão deles que o leitor pode fazer várias leituras possíveis.

Piza (2005) compara o romance Cinzas do Norte a Dois Irmãos, referindo-se

aos temas que subjazem às obras e observa que tanto este como aquele aludem à degradação

das relações familiares, porém Cinzas do Norte além de demonstrar a destruição de uma

família abastada é ainda mais forte e intenso que Dois Irmãos. Em Cinzas do Norte, a

sensação fragmentária se instala logo que se entra na leitura da obra onde não se encontra

uma ordem que passo a passo pode implodir, mas sim uma desarmonia vigente. A trama de

Dois Irmãos, segundo o autor, tinha maior energia intrínseca, mas em Cinzas do Norte ela deu

mais vazão à ironia e à amargura.

Para Telarolli (2007, p. 1), o estilo mais contemporâneo do autor, demonstra

que ele se encarrega de certa tradição: “o próprio autor assume a busca da depuração de um

realismo de tom flaubertiano, um realismo intimista, que toca as profundezas de nossa

subjetividade [...]”. De acordo com essa pesquisadora (2007), Cinzas do Norte mostra o

cuidado em retratar os problemas urbanos que assolam Manaus nos anos 1960 e 1970 e seu

crescimento populacional desenfreado. Esse fato se explicita no texto pela construção de um

conjunto habitacional, o Novo Eldorado, o qual não tem nenhuma qualidade estrutural para os

seus habitantes. Segundo Telarolli, Hatoum recria a experiência pessoal, dos tempos em que

era arquiteto, recriando na obra sua frustração por não participar de um projeto habitacional

capaz de ajudar a amenizar os problemas da cidade. Critica o mau planejamento de diversos

conjuntos habitacionais que naquela época visavam apenas a construções rudimentares que

pudessem acolher o povo que vivia à beira dos rios. Por outro lado, os aspectos social e

ambiental eram deixados à deriva.

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Conforme Piza (2005, p. 2), o progresso da cidade de Manaus é ponto forte da

obra hatouniana revela-se na tristeza de Mundo em relação aos problemas que a reforma

urbana traz: “É o Brasil que Mundo vê, por exemplo, ao norte de Manaus, onde a floresta é

devastada para dar lugar ao Novo Eldorado, que nada mais é que uma metáfora das periferias

das grandes cidades de todo país”. Desse modo, a injustiça e a desigualdade social estão

presentes, como tema do romance, concretizado pelo sujeito “habitante da periferia” de

Manaus, que é recriado como ator em Cinzas do Norte.

Freire (2006, p. 205) enfoca em sua tese “Entre construções e ruínas: uma

leitura do espaço amazônico em romances de Dalcidio Jurandir e Milton Hatoum”, as

mudanças do ambiente da capital amazonense para demonstrar de que maneira os habitantes

são prejudicados depois da instalação da Zona Franca. O estudioso ressalta, ainda, que a

questão política está representada na obra, principalmente, pela figura do político e prefeito da

cidade Aquiles Zanda, que parece ser um idealizador de reforma urbana, que seria o marco

dos novos tempos da cidade de Manaus. No entanto, afirma que tal prefeito “irá alterar

significativamente a face urbana da cidade, revelando uma sanha megalomaníaca ao destruir

antigos traçados e abrir caminho para uma „nova‟ cidade, marcada pela pilhagem e

autoritarismo”.

Por sua vez, o estudo de Gomes (2007, p. 6-7) faz referência a outro tema

importante do romance, a violência, associada não apenas ao regime militar, na obra, mas

também à do pai contra o filho. Esse fato é merecedor de destaque, pois o tempo histórico da

narrativa se dá entre abril de 1964 e dezembro de 1973, mas no percurso da narrativa “[...] os

atos de violência só aparecem de forma esporádica, tangenciados em diálogos e comentários”.

Com isso, ao exemplificar tal questão, o autor cita um trecho em que Ranulfo conta ao

sobrinho um caso de guerrilha que este desconhecia. Assim esse episódio tem a função de

“[...] mostrar que qualquer oposição ao regime era silenciada”. Na verdade, há no livro

episódios que aludem metaforicamente ao período militar como demonstramos em nossa

análise.

Ao comentar a respeito da estrutura formal do romance, Telarolli (2007)

observa que além do narrador central da história, Lavo, seu tio Ranulfo integra a narrativa

como narrador dos capítulos não enumerados, como se fossem relatos de um diário pessoal

por meio dos quais faz referência à vida de Alícia desde sua chegada no Morro da Catita até o

casamento com o pai de Mundo, e também faz alusão a alguns episódios da vida de Mundo. A

narrativa ainda alude a duas cartas de Mundo, mas apenas a última é entregue a Lavo como

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legado, depois da morte do amigo, e esta constitui o último capítulo do romance. A autora

ressalta que o uso das cartas é marca dos romances de Hatoum.2

Nesse sentido, Fuks (2008), destaca também a intenção do escritor no que se

refere à criação das “personagens”3, peças fundamentais para a realização de um bom

romance. Sua preocupação, conforme o crítico, é de torná-los complexos e, mesmo aqueles de

menor destaque, não devem ser considerados meros ornamentos. Elucida que até o animal é

utilizado como “personagem” na trama, como é o caso do cachorro Fogo em Cinzas do Norte.

O romance de Hatoum, da perspectiva de Piza (2005, p. 1), fascina o leitor pelo

modo como é construído e sugere “um mosaico de desencontros”. Desencontros relacionados

às “personagens” que revelam de forma intensa suas emoções, isto é, são “patéticos,

desgraçados, são úmidos e viscosos como a natureza amazônica; nem por isso deixamos de

nos sentir em sua pele, de partilhar sua dor e impotência”. Isso se relaciona ao ponto de vista

de Hatoum, quando afirma para Fuks (2008) que Cinzas do Norte é um romance frio e

amargo, porque tudo termina em cinzas “a cidade, as vidas, os personagens [...] tudo conflui

para o trágico” e faz uma ressalva”: “salvo a literatura”.

Piza (2005, p. 2) comenta a epígrafe que Hatoum utiliza em Cinzas do Norte

“Eu sou donde nasci. Sou de outros lugares”, por meio da qual, como enunciador, antecipa

fatos da história relacionados ao protagonista Raimundo. Um jovem que sai do Amazonas e

parte para a Alemanha, Inglaterra, em busca de seus sonhos, mas fracassa como artista

plástico, ou melhor, sua saída se dá “mais para perder o mundo do que para ganhá-lo” é “mais

rima do que solução”.

Ao referir-se a Lavo, Freire (2006) observa que ele é também um sujeito

observador o qual, ao longo da narrativa, relata a relação conturbada entre Mundo e seu pai

Jano. O estudioso comenta que o narrador é o condutor do leitor, é por meio de sua ótica que

o leitor acompanha o desenvolvimento da narrativa.

Tendo em vista as características do narrador “Lavo”, Piza (2005) esclarece

que ele não consegue deixar a cidade (Manaus), torna-se advogado que não progride

profissionalmente, mas é ele que tece toda a narrativa, vai aos poucos desvelando os mistérios

da trama. Criado por sua tia Ramira e seu tio Ranulfo, ao assumir o relato, descreve o

comportamento de cada um: a tia trabalhadora, costura para fora e sustenta a casa. Já o tio é

aventureiro, desgarrado de um serviço sério. Quanto a Ranulfo, Piza (2005) observa que ele é

2 Em nosso trabalho, fazemos referência apenas aos três primeiros romances de Hatoum. Não incluímos a

crítica sobre Órfãos do Eldorado. 3 A semiótica não utiliza a nomenclatura “personagem”, mas sim ator.(cf p. 33)

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um “personagem machadiano”, na medida em que Hatoum cria “um desocupado, um

“cigano” que vive entre farras e livros e não quer trabalho nem responsabilidade, embora

queira dinheiro e mulheres.” Observa ainda que a família de Lavo representa uma classe

social inferior à de Mundo, que pertence à classe alta. Isso porque o pai de Mundo, Jano, é

empresário produtor de juta, e de outras mercadorias, casado com Alícia, que desfruta da

riqueza do marido e mantém um romance secreto com Ranulfo.

Ao finalizar seu texto, Freire (2006, p. 213) ressalta uma questão que não está

presente apenas no romance Cinzas do Norte, mas também nas duas primeiras obras de

Hatoum, o modo como os narradores dispõem o enredo. As narrativas são contadas no tempo

passado, mas de forma não linear. Com isso, eles (narradores) estão “[...] enredados num

passado que persiste e precisa ser esmiuçado [...]”.

As reflexões acima levantadas conduzem-nos para outra questão, que merece

destaque na obra, o emprego do recurso da memória, típico da narrativa hatouniana:

memória das personagens, memória individual, mas dissociada à da coletividade, do

grupo a que pertencem;[...] não há coincidência entre o tempo da história e o tempo

da narração; a narração dá-se no presente e os eventos, no passado(TELAROLLI,

2007, p. 4).

Em entrevista dada a Júlio Daio Borges (2006), Hatoum afirma que em Cinzas

do Norte conseguiu criar um universo ficcional bastante fechado e coeso, mas “vivenciado

com intensidade e paixão”. Aponta que, ao final do romance há uma morte simbólica, pois o

narrador esgota toda “sua experiência sobre um assunto ou conflito ou história de vida”.

Destaca que o papel fundamental de Lavo como narrador, é tentar entender, por meio do

relato, a vida do amigo. Esse fato é bastante enfatizado pelo próprio escritor:

Mas a perplexidade de Lavo é a vida do amigo, e é isso que ele tenta entender.

Porque a história de uma amizade é a história de uma compreensão e também das

lacunas dessa amizade, daquilo que é inefável ou não pode ser dito... A amizade é

uma relação de afeto e cumplicidade, mas com zonas de sombra em que aparecem a

dúvida, a perplexidade e o ciúme. Ninguém entende o outro em sua plenitude, nem o

outro nem o passado, e eu quis explorar isso [...]. O romance é um esforço dirigido a

essa compreensão, que nunca se realiza plenamente. (BORGES, 2006)

Ao ser indagado por Borges (2006) sobre seu posicionamento em relação ao

cunho artístico que possuíam Mundo e Arana, Hatoum afirma que a autocrítica da primeira é

“tão feroz, tão radical, que o imobiliza; já o segundo pretende ser “um artista de vanguarda

18

que promete revolucionar a arte e acaba cooptado, beijando os anéis do poder”. (BORGES,

2006).

Segundo Freire (2006, p 207), Mundo como artista, não corresponde às

expectativas que o pai tem a seu respeito. O modo de expressar sua rebeldia é por meio de

suas pinturas, nas quais expressa o universo de sua infância e adolescência na Vila Amazônia

e em Manaus. Suas caricaturas, no entanto, não tratam apenas do seu universo íntimo, pois

revelam “um olhar crítico sobre o entorno, muitas vezes utilizando a caricatura como forma

de apreender e responder às situações em que é obrigado a atuar em público, como na escola”.

Outra questão destacada por Freire está relacionada ao cruzamento dos

diferentes pontos de vista dos atores, responsáveis pelo relato do romance. Para o crítico, são

“fragmentos de memória trabalhados lentamente pelo tempo, indícios de uma busca não

apenas individual, mas coletiva, de sentidos”.

O mesmo crítico (2006, p. 209-210), observa quanto à projeção espacial no

romance, que o autor não pretendeu exaltar o lugar ou a natureza no romance, mas a “[...]

interação possível entre seres e lugares, pela importância afetiva que os seres humanos

projetam nos lugares, pelos significados que estes assumem para aqueles.” E prossegue

observando que a tela de Mundo, intitulada “História de uma decomposição - Memórias de

um filho querido”, em que retrata a figura do pai e da Vila Amazônia está relacionada à

“importância da memória na composição pessoal, além da sua ligação estreita com lugares e

pessoas”. Assim, Mundo ao desenhar a figura de Jano em vários momentos da obra, na

verdade, utiliza esses desenhos como “uma forma de exorcismo de sua figura opressora”.

Quanto ao tema da violência, nota-se que, na obra, ela está introjetada, nas

relações interpessoais. Desse modo, está presente na relação entre pai e filho, pois Jano quer

moldar o filho de acordo com seus princípios. Assim, de acordo com Gomes (2007, p. 8-9)

na medida em que o filho cresce, ele muda suas táticas, recorrendo então à

agressividade física. Quanto mais deseja ajustar o filho aos seus padrões, às suas

regras, mais o filho tenta subvertê-los, procurando a cada passo colocar-se em franca

oposição ao progenitor.

É importante ressaltar que Milton Hatoum se preocupa com a qualidade da

obra literária. Em sua escrita elaborada vale-se de sua experiência pessoal, mas cria um

romance de caráter estético, como apontaram os críticos. O romance, como observamos, é

ancorado no tempo do regime militar em nosso país e dele tem uma visão negativista, já que

tudo termina em cinzas. Segundo Piza (2005, p. 1), na obra hatouniana, “quem procura um

norte só vai encontrar cinzas; quem quer fugir para a cor local só vai achar a melancolia

19

universal”. O crítico faz essa afirmação devido ao fato de a família Mattoso ser dizimada no

romance. Todos os seus membros morrem. O filho, mesmo depois da morte do pai, torna-se

um artista fracassado; toda a fortuna da família é liquidada pela viúva, viciada no jogo e no

álcool. Resta, apenas, alguém para contar a história que presenciou: Lavo, o narrador, que

pela reconstrução da vida do amigo, relata, ainda, a sua própria história, tendo como pano de

fundo a região amazonense.

Assim, finalizamos essa fortuna crítica, refletindo com Telarolli (2007, p. 279),

que o caminho escolhido por Hatoum em Cinzas do Norte:

[...] traz preciosos tesouros guardados por suas desorientadas figuras-personagens

perdidas, desnorteados narradores- a lembrar que o norte está na busca e não no

encontro, a alegria e o mistério muito mais no caminho do desvendamento, nos

interditos, nos silêncios, do que na solução, se é que ela existe, fazendo renascer

sempre, magnífico e renovado, por sobre as cinzas que restam, o prazer e a perícia

de narrar e ouvir. (TELAROLLI, 2007, p. 279)

Procuraremos, ao longo das análises de cenas do romance, dialogar com a

crítica que se voltou para a obra de Hatoum, observando como essas questões se refletem na

estrutura textual.

20

2 A SEMIÓTICA FRANCESA E SEUS PRESSUPOSTOS

A teoria semiótica deve apresentar-se inicialmente como o que ela é,

ou seja, como uma teoria da significação.

A. J. Greimas e J. Courtés

Para percebemos de que modo a teoria semiótica francesa foi concebida, é

necessário recorrermos a suas fontes fundadoras. Bertrand (2003, p. 17) observa que são três

as fontes principais nas quais a teoria semiótica encontra seus fundamentos: a fonte

linguística, a fonte antropológica e a fonte filosófica. A primeira está ligada aos estudos de

Fernand Saussure no livro Curso de lingüística geral, de onde se extraem as bases de sua

metodologia, bem como aos estudos de Louis Hjelmslev em Prolegômenos a uma teoria da

linguagem e Ensaios lingüísticos. Com base nesses estudos, Algirdas Julien Greimas, o

fundador da teoria semiótica francesa, lança seu primeiro livro, Semântica estrutural, obra

cuja importância deveu-se ao fato de possibilitar a descrição formal do plano de conteúdo das

linguagens (BERTRAND, 2003, p. 18-19). Além disso, conforme Hénault (2006, p. 129) os

exemplos de análises sêmicas de Semântica Estrutural

[...] abriam amplas perspectivas, de um lado para uma renovação dos estudos

literários (permitindo objetivar os matizes ou eliminar a ambigüidade das

polissemias) e, de outro, para as pesquisas sistemáticas em lexicologia (com todas as

aplicações que se buscavam naquela época em história, no ensino de línguas ou nas

primeiras análises de textos publicitários).

Também em Semântica estrutural (1973) Greimas postula um conceito de

influência filosófica quando define “[...] a percepção como o lugar não lingüístico onde se

situa a apreensão da significação” (GREIMAS, 1973, p. 15). O semioticista lituano justifica

que a semiótica “[...] quando fala de ser, designa gramaticalmente um predicado de estado,

fora de qualquer visão ontológica” (BERTRAND, 2003, p. 21).

Tendo em vista a segunda fonte teórica, as bases antropológicas, a teoria

semiótica encarregou-se de investigar “[...] os usos culturais do discurso que modelam o

exercício da palavra individual: rituais, hábitos, motivos sedimentados na práxis coletiva das

linguagens” (BERTRAND, 2003, p. 18). Essa influência se faz sentir, de acordo com

Bertrand (2003, p.18), “[...] particularmente no estudo das leis que regem a forma mais

amplamente transcultural dos discursos, a da narrativa, na maneira como ela modela e

21

organiza o imaginário humano (da narrativa mítica ao conto popular e deste ao texto

literário)”.

Finalmente, no campo da filosofia, por meio da influência da fenomenologia, a

semiótica extraiu aspectos de sua concepção da significação. Assim, a expressão “parecer do

sentido” que se manifesta muitas vezes na obra de Greimas (vide De l‟imperfection) “[...]

subjaz à sua abordagem relativa de um sentido, se não sempre incompleto, pelo menos sempre

pendente nas tramas do discurso” (BERTRAND, 2003, p. 21). Esse “parecer do sentido”, “ se

apreende por meio das formas da linguagem e, mais concretamente dos discursos que o

manifestam, tornando-o comunicável e partilhável, ainda que parcialmente”. (BERTRAND,

2003, p. 11). Desse modo, a semiótica está preocupada em explicar de que modo se apreende

o sentido, bem como sua produção.Por outro lado, a semiótica por meio dos estudos de

linguística da enunciação, de Émile Benveniste, foi “[...] pouco a pouco foi se aproximando

da realidade da linguagem em ato, procurando apreender o sentido em sua dimensão contínua

e estreitando cada vez mais o estatuto e a identidade de seu sujeito (BERTRAND, 2003, p.

18).

Observamos como a teoria semiótica busca a apreensão do sentido observando

o modo como o texto foi construído em sua estrutura.

2.1 O PERCURSO GERATIVO DE SENTIDO

Em sua busca pela apreensão de sentido, a semiótica estabeleceu uma hipótese

metodológica, que representa a produção do sentido, o percurso gerativo. Segundo Floch

(2001, p. 15), tal percurso é “[...] uma representação dinâmica da produção de sentido; é a

disposição ordenada das etapas sucessivas pelas quais passa a significação para se enriquecer

e, de mais simples e abstrata, torna-se mais complexa e concreta”.

O percurso apresenta etapas que se convertem umas nas outras. Essas etapas

são estruturas elementares que se desdobram em estruturas das mais simples às mais

complexas em níveis que vão do mais abstrato ao mais concreto” (GREIMAS;COURTÉS,

s.d, p. 206).

A primeira etapa do percurso gerativo de sentido, a mais simples e mais abstrata,

recebe o nome de nível fundamental ou das estruturas fundamentais e, neste nível, surgem

oposições semânticas as quais podemos apreender na base do texto. No segundo patamar,

denominado nível narrativo ou das estruturas narrativas, organiza-se a narrativa, do ponto de

vista de um sujeito. O terceiro nível é o do discurso ou das estruturas discursivas em que a

22

narrativa é assumida pelo sujeito da enunciação. É, aqui, necessário fazer uma abordagem

aprofundada para compreendermos melhor como ocorre o entrelaçamento de cada um dos

níveis com o objetivo de verificar a construção do sentido depreendida dos textos.

2.1.1 Nível fundamental

De caráter abstrato e simples, o nível fundamental é composto de uma sintaxe e

uma semântica e corresponde às estruturas elementares de significação que estão inseridas na

base do texto. Para Greimas e Courtés (s.d, p. 398) a semântica fundamental é caracterizada

por possuir

[...] caráter abstrato, pelo fato de que corresponde junto com a sintaxe fundamental-

à instância a quo do percurso gerativo do discurso. As unidades que o instituem são

estruturas elementares de significação e podem ser formuladas como categorias

semânticas, suscetíveis de serem articuladas no quadrado semiótico (o que lhes

confere um estatuto lógico-semântico).

As categorias semânticas são compostas de dois termos opostos. Tais categorias

estabelecem os diferentes conteúdos de um texto e seus termos são determinados pela relação sensorial

do ser vivo com esses conteúdos que podem ser caracterizados como positivos ou eufóricos e

negativos ou disfóricos. Conforme Greimas e Courtés (s.d, p. 463) a categoria semântica

[...] desempenha um papel fundamental na transformação dos microuniversos em

axiologias: conotando como eufórica uma dêixis do quadrado semiótico e como

disfórica a dêixis oposta, ela provoca a valorização positiva e/ ou negativa de cada

um dos termos da estrutura elementar da significação.

Por outro lado, os conteúdos das oposições semânticas de uma categoria podem

ser representados por um modelo lógico, o quadrado semiótico, e a sintaxe das relações entre

os termos dessas oposições são de contrariedade, contraditoriedade e complementaridade:

Se a negação serve essencialmente para produzir termos contraditórios, a asserção é

capaz de reunir os termos situados no eixo dos contrários e no dos subcontrários.

Enquanto modelo taxionômico, na qualidade de esquema relacional preexistente,

permite circunscrever o campo das operações (de produção e /ou apreensão do

sentido), estas se constituem em seqüências, não apenas no sentido de sua

orientação, mas também em decorrência de sua capacidade „memorial‟(a denegação,

por exemplo, não é uma simples negação, mas a negação de uma asserção

anterior)[...](GREIMAS e COURTÉS, s.d, p. 433)

23

A sintaxe do nível fundamental abrange, portanto, a negação e a asserção. Na

sucessividade de um texto, ocorrem essas duas operações. Assim, tendo em vista uma

categoria como “a” versus “b”, podem aparecer as seguintes relações: afirmação de “a”,

negação de “a”, afirmação de “b” ou afirmação de “b”, negação de “b”, afirmação de “a”.

Podemos perceber tal disposição no quadrado semiótico estabelecido por Barros (1988, p. 23)

na análise que faz do poema de João Cabral de Melo Neto O vento no canavial:

S¹ S²

continuidade ruptura

morte vida

estaticidade dinamicidade

descontinuidade

não-morte

não-estaticidade

Observamos que, no poema, “nega-se a /continuidade/, a/ morte/ e a

/estaticidade/ e ocorre a afirmação da /ruptura/, /vida/, e /dinamicidade/.” (BARROS, 1988, p.

23)

De acordo com Greimas e Courtés (s.d, p. 399), a passagem do nível

fundamental ao narrativo está associada às categorias sêmanticas definidas pela semântica

fundamental que são “suscetíveis de serem exploradas pelo sujeito da enunciação, como

tantos sistemas axiológicos virtuais, cujos valores só se atualizam no nível narrativo, no

momento da junção com os sujeitos”. Vejamos, pois, os fundamentos do nível narrativo.

2.1.2 Nível narrativo

É nesse nível, que os termos das oposições semânticas do nível fundamental

são assumidos como valores pelos sujeitos, os quais podem ou não operar transformações

narrativas, assim como revelarem-se sujeitos de estado modulados por paixões.

O princípio da sintaxe narrativa deve muito aos estudos de Wladimir Propp em

sua obra Morfologia do conto maravilhoso, de 1928, que possibilitou a Greimas, retomando o

conceito de função proppiana, ultrapassar o universo das narrativas e abranger o conjunto das

“formas de discurso”, por meio da formulação da hipótese de que estas são todas igualmente

sustentadas por uma estrutura actancial”(BERTRAND, 2003, p. 286).

24

Em sua célebre obra Propp faz uma análise morfológica, elegendo como

corpus os contos maravilhosos russos em que consegue apreender cerca de trinta e uma

funções. O conceito de função, unidades constitutivas dos contos “rege a regularidade da

narração”. Definidas do ponto de vista de sua significação no desenvolvimento da intriga, elas

têm um número limitado, o que leva o estudioso russo a relegar “a segundo plano a noção de

personagem” (BERTRAND, 2003, p. 286), pois esta se define pelas distribuição das funções

que lhe são atribuídas.

Depurando a formulação do conceito de função, Greimas a reduz a um

enunciado sintáxico: “uma relação entre actantes regida por predicados” (BERTRAND, 2003,

p. 286). Empenha-se, pois, em restituir a dimensão sintagmática, própria à dinâmica narrativa,

encerrando a análise dos fenômenos narrativos na realidade do discurso, independentemente

de seu horizonte referencial, relacionado à ação, e de suas manifestações figurativas.

Com base nas conclusões de Propp de que as personagens são constituídas pela

distribuição de suas “funções”, como o “malfeitor, doador, mandante, herói, etc.”

(BERTRAND, 2003, p. 273), Greimas reduz essa lista, o que o leva à noção de actantes e de

papéis actanciais.

O princípio da sintaxe narrativa é, pois, a noção de actante, cujo termo foi

emprestado de Louis Tesnière. Greimas e Courtés (s.d, p. 12) definem actante como “um tipo

de unidade sintática, de caráter propriamente formal, anteriormente a qualquer investimento

semântico e/ou ideológico”. Essa unidade semântica comporta três figuras actanciais

denominadas de base: destinador, sujeito e objeto, antissujeito e o anti-destinador. Actantes

não precisam ser somente “[...] seres humanos, mas podem ser também animais, objetos e

conceitos”(GREIMAS ;COURTÉS, s.d, p. 13).

A operação sintáxica elementar é denominada de programa narrativo em que se

relacionam o sujeito e o objeto a que ele visa, e articula dois enunciados básicos: o de estado e

o de fazer, sendo que estes têm a função de transformar os estados. A narrativa mínima se

baseia assim, na transformação de um estado de coisas, pela privação (disjunção) ou aquisição

(conjunção), resultantes de um predicado de ação. Logo, a transformação de um enunciado de

estado, em que o sujeito disjunto de seu objeto passa para um estado de conjunção com seu

objeto, ou vice-versa, dá-se por meio do enunciado do fazer. As fórmulas do programa

narrativo são, desse modo, representadas (BERTRAND, 2003, p. 291-292):

PN = função (fazer) (S1 (sujeito do fazer)→(S2 (sujeito de estado) U O (objeto

25

- valor)).

PN = função (fazer) (S1 (sujeito do fazer)→(S2 (sujeito de estado) ∩ O

(objeto – valor)).

O pn é, por conseguinte, o modelo da estrutura elementar da ação, que se

inscreve numa série de sequências cujo encadeamento tem um sentido e que delineia a

posteriori uma intencionalidade. Surge, pois, um quadro geral de organização da narrativa,

que é transcultural, o denominado “esquema narrativo canônico. O termo esquema foi tomado

de Hjelmslev, da dicotomia esquema/uso. Tal como na língua, nos discursos, o esquema

constitui-se num sistema aberto, em cujo interior o uso seleciona combinações particulares.

Segundo Bertrand (2003, p. 419), o esquema “contextualiza o desenvolvimento dos

programas em um esquema canônico de alcance geral que ordena seu percurso e orienta suas

finalidades: eis o esquema narrativo, onde se inscreve a representação imaginária do „sentido

da vida‟.

O esquema narrativo sofreu ao longo de seu desenvolvimento várias

reformulações e, tendo-se por base a regularidade procurada na sequência de funções

proppianas, surge o esquema narrativo canônico com a iteração de três provas: prova

qualificante, prova decisiva, prova glorificante.

Bertrand (2003, p. 294), propõe a sequência das provas da seguinte maneira:

1 2 3

Sequencialização Prova → Prova → Prova

das provas qualificante ← decisiva ←glorificante

Lido no sentido da sucessão, o esquema demonstra “o percurso do sujeito da

busca”. Posto isso, temos respectivamente a “qualificação que instaura o sujeito enquanto tal,

depois sua realização pela ação e, finalmente, o reconhecimento que garante o sentido e o

valor dos atos que ele praticou”. (BERTRAND, 2003, p. 294). Lido no sentido inverso, ele

exibe uma intencionalidade que se reconhece a posteriori.

O desenvolvimento da noção de esquema se faz com a determinação da

moldura contratual que se apresenta com quatro sequências: contrato, competência,

performance e sanção (reconhecimento) . De acordo com Bertrand,

o contrato põe em relação o Destinador-manipulador e o sujeito; a competência põe

em relação o sujeito e o objeto; a performance põe em relação o sujeito e o anti-

26

sujeito em torno do objeto valor; a sanção, enfim, restabelece o contrato entre o

sujeito e o Destinador, que desempenha agora um papel de julgador.(2003, p. 295)

Constata-se, assim, que o esquema narrativo, conforme Bertrand (2003, p.

295) é emoldurado por uma estrutura contratual em que o contrato entre o Destinador e o

sujeito que fixa os valores e a missão do sujeito que deve adquirir competência para executar

a ordem e honrar o compromisso proposto no contrato. Assim, realiza a ação, ou seja, a

performance. O Destinador, por sua vez, vai certificar-se de que o sujeito cumpriu o contrato,

punindo-o ou gratificando-o, na fase da sanção, que pode ser, portanto, respectivamente

positiva ou negativa.

Para transcender o domínio da narrativa, isolando esferas semióticas

reconhecíveis em todo tipo de discurso, “três domínios semióticos se delineiam: Manipulação

- Ação – Sanção”.( BERTRAND, 2003, p. 295)

Bertrand (2003, p. 296) observa que na manipulação o Destinador-

manipulador pode mandar, prometer, incentivar, desafiar ou seduzir o sujeito por meio do

fazer-fazer, que pressupõe um fazer crer, fazer-querer ou dever, um fazer-saber e um fazer-

poder. Ele passa a ser construído por enunciados modais que assume e que o definem e não

mais por uma figura actancial realizada nos papéis fixos da estrutura actancial (Deus, pai, etc),

o que significa que qualquer ator pode estar na posição modal de um Destinador. O contrato

passa a ser visto como uma dupla manipulação que envolve dois sujeitos: o destinador

manipulador e o sujeito de estado, passível de ser manipulado, aquele ajusta seu fazer-crer em

função dos valores em jogo.

Certas configurações específicas fazem parte da manipulação, sobre a qual

Greimas e Courtés(s.d, p. 270) afirmam que

quando se trata de uma manipulação segundo o saber ,o manipulado é levado a

exercer correlativamente um fazer interpretativo e a escolher necessariamente entre

duas imagens de sua competência: positiva no caso da sedução;negativa na

provocação.Quando se trata da manipulação segundo o poder, o manipulado é

levado a optar entre dois objetos-valor: positivo, na tentação, negativo, na

intimidação.

O fazer pragmático ou cognitivo caracteriza a esfera mais geral da ação, assim

como as condições reunidas para seu exercício. Nessa esfera da ação se inserem, portanto, a

competência e performance. Definição do ato, o fazer-ser estabelece um novo estado de coisas

em que “o sujeito (...) age e o anti-sujeito lhe opõe resistência, numa confrontação da qual

resulta a aquisição ou perda dos valores.” (Bertrand, 2003, p. 297). Assim, de acordo com

27

Greimas e Courtés(s.d, p. 329) performance é um “ato humano, que interpretamos (em

português comum) como um "fazer-ser" e a que damos a formulação canônica de uma

estrutura modal, constituída por um enunciado de fazer que rege um enunciado de estado”. Na

competência, por sua vez, o sujeito da enunciação “modaliza as estruturas semióticas e

narrativas, dando-lhes o estatuto do dever-ser (quer dizer, de um sistema de coerções), e as

assume com um saber-fazer, como um processo virtual. (GREIMAS;COURTÉS, s.d, p.63).

A sanção põe em cena um Destinador, provido de um saber verdadeiro e do

poder de fazê-lo valer, isto é, inscreve-se no papel de julgador. Assim, a sanção poderá ser

“positiva (gratificação) ou negativa (reprovação), pragmática (recompensa ou punição) ou

cognitiva (elogio ou censura)”. (BERTRAND, 2003, p. 295)

A importância do esquema narrativo deve-se ao fato de que não é apenas um

dispositivo organizador dos textos narrativos, mas um modelo geral de interação, que não

mais esquematiza a narrativa, mas a comunicação entre os homens, implicando, pelo

dispositivo de seus papéis, a focalização e os efeitos programados do discurso em ato. A

ampliação de seus campos de aplicação, segundo Bertrand (2003, p. 299) levaram ao

reconhecimento de três dimensões, susceptíveis de serem assumidas pelos modelos

narrativos: pragmática, cognitiva e patêmica. Vejamos aspectos de cada uma delas.

Para Bertrand (2003, p. 299-300), a dimensão pragmática designa “a ação

propriamente dita, colocando em cena e em comunicação sujeitos somáticos e objetos

concretos ”.

A dimensão cognitiva relaciona-se ao saber dos sujeitos. De acordo com

Bertrand (2003, p. 300) “basta que dois atores não disponham de um mesmo saber sobre os

objetos, para que esse saber torne-se objeto valor e um desafio narrativo”.

Em relação à dimensão patêmica, deve-se ressaltar que ela está centralizada na

modulação dos estados de alma do sujeito, ligada pela sintaxe modal à narratividade,

constitui-se como objeto da semiótica das paixões e se preocupa não mais com a

transformação dos estados de coisas, mas à variação contínua e instável do próprio estado dos

sujeitos.

Na estrutura narrativa é importante destacar, no universo da semântica

narrativa, a questão das modalizações e das paixões que dela decorrem.

2.1.3 A modalização

28

No percurso gerativo, a semântica narrativa é o momento em que os elementos

semânticos selecionados e relacionados com o sujeito, inscrevem-se como valores no interior

dos enunciados de estado. As relações dos sujeitos com os valores podem ser modificadas por

determinações modais (BARROS, 2005, p. 42).

Para a semiótica, o conceito de modalidade não pode ser pensado

independentemente da cena actancial, ou seja, da competência modal dos sujeitos do fazer

envolvidos na interação, e da existência modal que “define, por meio de suas variações, o

estatuto do sujeito de estado”.(BERTRAND, 2003, p. 309)

Uma modalidade pode ser definida como um enunciado que modifica outro

enunciado. A relação do sujeito com os valores é determinada pelas seguintes modalidades4: o

querer, o dever, o poder e o saber que modificam (modalizam) os enunciados de fazer ou de

ser, ou então o fazer que modaliza o fazer (fazer-fazer) e todas as outras modalizações do

fazer ( fazer-querer, crer, saber, etc.) Essas modalidades podem combinar-se entre si (querer-

saber ) ou modalizarem-se a si próprias( querer-querer).

A modalidade define o estatuto próprio do actante e não se manifesta apenas

pelos verbos modais, mas também por formantes figurativos. Segundo Bertrand (2003, p.

353) um automóvel pode modalizar seu proprietário pelo poder.

Devemos lembrar que o contrato ou a manipulação (crer, querer e/ou dever-

fazer) virtualiza o sujeito, a competência o atualiza (saber e/ou poder-fazer) e a ação e o

reconhecimento o realizam (quando há a ocorrência do fazer que leva à transformação de

estados de determinado sujeito).

Além da modalização do sujeito pelo fazer, deve-se observar ainda a

modalização do ser ou dos enunciados de estado. Conforme Barros (2005, p. 45), dois

aspectos devem ser examinados nesse último tipo de modalização. A modalização

veridictória, que determina a relação do sujeito com o objeto, dizendo-a verdadeira, falsa,

mentirosa ou secreta, e o da modalização pelo querer, dever, poder e saber, que incide

especificamente sobre os valores investidos no objeto.

As modalidades veridictórias articulam-se como categoria modal, em /ser/ vs..

/parecer/: Bertrand (2003, p. 241):

4 Fontanille (2007, p. 170) define modalidade como “[...] um predicado que atua sobre um outro predicado.

Mais precisamente, é um predicado que enuncia , na perspectiva da instância de discurso, uma condição de

realização do predicado principal. Em outras palavras, a modalidade emana especificamente de um actante de

controle[...] . Esse actante de controle, enquanto actante posicional, pertence à instância de discurso e participa

da atividade enunciativa, mas representa apenas um de seus múltiplos aspectos”.

29

De acordo com Greimas e Courtés(s.d, 487-488), a modalidade veridictória

existe pela junção de dois enunciados de estado e um pode determinar o outro, de tal modo

que se estabeleça uma relação de junção, mas no plano actancial para cada enunciado deve

existir um sujeito modal e um sujeito de estado. Assim, “[...] o sujeito produtor do enunciado

de estado o submete à sanção de outro sujeito” (GREIMAS; COURTÉS, s.d, 488) e um

enunciado é dito verdadeiro quando um sujeito, diferente do modalizado, o diz verdadeiro.

Com a modalização veridictória substitui-se, a questão da verdade pela da

veridicção. Ao discorrer a respeito da veridicção, Bertrand (2003, p. 240) ressalta que ela está

[...] no âmbito da semiótica, tocando nos postulados fundamentais sobre o sentido.

E, entre estes, a consideração de que o sentido se apresenta sempre aos nossos olhos,

tanto na ordem da percepção quanto na da leitura, sob o modo do parecer”(Grifo do

autor)

Para Bertrand (2003, p. 240), Greimas, inventor desse modelo, tratava de

explicar as vicissitudes da circulação dos saberes entre os sujeitos no interior da narrativa “os

segredos e mistérios, as mentiras e os-mal-entendidos, os engodos e embustes que formam,

dos contos populares até o romance contemporâneo, matéria narrativa tão abundante”.

É a partir desse modelo que temos o contrato de veridicção, ou seja, as

condições de confiança determinantes do compartilhamento das crenças em ajuste constante

entre os sujeitos no interior do discurso.

Quanto ao estudo das paixões, concernentes também à relação dos sujeitos com

os valores, é objeto de reflexão no próximo capítulo.

2.1.4 Nível discursivo

30

O mais complexo e concreto dos níveis do percurso gerativo de sentido, o nível

discursivo é o lugar em que as transformações ocorridas nas estruturas narrativas se

manifestam em estruturas discursivas, por meio do fazer do sujeito da enunciação, que faz

determinadas escolhas, tendo em vista o efeito de sentido que quer produzir. Ele é o

responsável pela produção do discurso. Bertrand (2003, p. 90) afirma que, em termos de

sintaxe discursiva,

o enunciador, no acontecimento de linguagem, projeta fora de si categorias

semânticas que vão instalar o universo do sentido. Essa operação consiste em uma

separação, uma cisão, uma pequena „esquizia‟ ao mesmo tempo criadora, por um

lado, das representações actanciais, espaciais e temporais do enunciado. Tudo

começa, assim, com a ejeção das categorias básicas que servem de suporte para o

enunciado.

O sujeito da enunciação “[...] é apenas um simulacro construído, sujeito de uma

enunciação antiga e citada e, como tal, observável em sua incompletude, em seus percursos e

suas transformações.” (BERTRAND, 2003, p. 93). O semioticista afirma que ele deve ser

concebido como “[...] uma instância em construção, sempre incompleta e transformável, que

apreendemos a partir de fragmentos do discurso realizado” (2003, p. 83).

O sujeito enunciador tem “sua identidade resultante do conjunto das informações

e das determinações de toda ordem que lhe dizem respeito no texto” (BERTRAND, 2003, p.

82). Esse sujeito utiliza operações enunciativas que constituem o discurso. É a partir delas que

ele projeta atores, espaços e tempos no texto, utilizando dois tipos de operação: a embreagem

e a debreagem, que são ligadas a três mecanismos: actorialização, temporalização e

espacialização, constituintes da sintaxe discursiva.

Bertrand (2003, p. 90) esclarece que o sujeito enunciador cria, por meio da

debreagem, objetos de sentido diferentes do que ele é fora da linguagem: ele “projeta no

enunciado um não-eu (debreagem actancial), um não-aqui (debreagem espacial) e um não-

agora (debreagem temporal), separados do /eu-aqui-agora/ que fundamentam sua inerência em

si mesmo.” Dessa forma, a debreagem estabelece “o universo do „ele‟ (para pessoa), o

universo do „lá‟(para o espaço) e o universo do „então‟(para o tempo)”.

A projeção da embreagem acontece posteriormente à manifestação da

debreagem, pois não existe embreagem sem debreagem. Segundo Bertrand (2003, p. 91) a

embreagem:

consiste [...] , para o sujeito da fala, em enunciar as categorias dêiticas que o

designam, o „eu‟, o „aqui‟ e o „agora‟: Sua função é manifestar e recobrir o „lugar

imaginário da enunciação‟ por meio dos simulacros de presença, que são o eu, aqui e

31

o agora. Essas categorias se definem por sua relação e sua oposição às categorias

debreadas.

Tendo em vista a semântica discursiva, é também no nível discursivo que se

concretizam as mudanças de estado do nível narrativo, que passam a ser definidas por temas

e figuras. Greimas e Courtés (s.d, p. 186) observam que “[...] o discurso será figurativizado no

momento em que o objeto sintático (O) receber um investimento semântico que permitirá ao

enunciatário reconhecê-lo como figura [...]”.

O conceito de figuratividade conforme Bertrand (2003, p. 154) é oriundo

originariamente da teoria estética. Desse modo, uma primeira concepção de figura relaciona-

se à semelhança, à representação, à imitação do mundo pela disposição das formas numa

superfície. É, por meio da mimésis que a figuratividade pode revelar o efeito de sentido de

realidade do texto.

Para a semiótica não interessa, entretanto, o “referencial real” e o “referente

fictício ou imaginário” nos textos, mas o efeito de sentido de veridicção, que, de acordo com

Bertrand (2003, p. 162) consiste no

efeito produzido por ocasião da leitura que poderá ser o de „realidade‟, mas também

os de „irrealidade‟ ou „surrealidade‟. Em outras formas literárias, esse problema diz

respeito diretamente ao romance „realista‟, que só o é em virtude de uma certa

poética da escrita, culturalmente marcada: nele, a realidade não é de modo algum

legível como uma verdade intrínseca, mas como um efeito específico do discurso e

de sua organização.

Assim, as clássicas unidades do discurso: descrição, narração, diálogo,

monólogo interior, comentário, etc. são, segundo o autor, estratégias discursivas que, em

razão de sua organização, participam da criação das impressões referenciais. Cada unidade de

discurso se apoia na outra: a narrativa se alicerça numa descrição que fixou o quadro da ação,

o diálogo tira sua verdade da narrativa que o motivou, etc.

Num primeiro momento, o qualificativo “figurativo”, é empregado em

semiótica somente com relação a um conteúdo dado [...] quando este tem um correspondente

no nível da expressão da semiótica natural . Nesse sentido, em relação ao percurso gerativo de

sentido, a semântica discursiva inclui, com o componente temático ou abstrato, um

componente figurativo.

Num segundo momento, considera-se figurativo, num determinado universo de

discurso, verbal ou não-verbal, tudo que puder ser diretamente referido a um dos cinco

32

sentidos (BERTRAND, 2003, p.156-157). Assim, por meio da evolução do conceito, Bertrand

(2003, p. 159) afirma que a figuratividade é constituída por ordens do perceptível e do

sensorial que vão para o “além do sentido”. Esse além do sentido relaciona-se a uma

abordagem fenomenológica das relações entre o discurso e o mundo da percepção. Desse

modo, o mundo natural, na medida em que é instruído pela percepção, constitui, em si

mesmo, um universo significante em que

[...] ver não é apenas identificar objetos do mundo, é simultaneamente apreender

relações entre tais objetos, para construir significação. As percepções fazem sentido

na medida em que os objetos percebidos se inserem em cadeias inferenciais que os

solidarizam, como se infere o fogo a partir da fumaça.

Um componente fundamental da etapa da figurativização é a iconização, que

designa, no interior do percurso gerativo de sentido dos textos, a última etapa da

figurativização e é responsável por neles produzir o efeito de sentido de ilusão referencial.

Outro componente importante da semântica discursiva é a ancoragem. O

dispositivo fundamenta-se no “[...] conjunto de índices espácio-temporais e, mais

particularmente, de topônimos e de cronônimos que visam a constituir o simulacro de um

referente externo e a produzir o efeito· de sentido “realidade”. (GREIMAS; COURTÉS, s.d,

p. 21). A ancoragem também designa o ato de relações entre a relação de grandezas

semióticas pertencentes ou a duas semióticas diferentes “ (a imagem publicitária e a legenda;

o quadro e seu nome), ou as duas instâncias discursivas distintas (texto e título): a ancoragem

produz o efeito de transformar uma das grandezas em referência contextual, permitindo,

assim, desambigüizar a outra”(GREIMAS;COURTÉS, s.d, p. 21).

Outra questão importante que elucida o mecanismo da construção da

figuratividade relaciona-se ao conceito de isotopia. O termo foi emprestado da física e designa

na semiótica um efeito de sentido que é construído pelas disposições da construção do

discurso, isto é, pelo “desdobramento das categorias semânticas ao longo do discurso”

(BERTRAND, 2003, p. 185). Com isso, a isotopia assegura a continuidade figurativa e

temática de um texto pela recorrência, dos elementos semânticos de uma frase a outra.

(BERTRAND, 2003, p. 187). Os conectores de isotopia tais como as figuras da retórica -

metáfora, comparação, etc., - são os responsáveis pela existência de diversos planos de

significação, que permitirão várias leituras do texto. O semioticista afirma que eles

33

[...] introduzem uma isotopia inicial (por exemplo, o comparado) no campo de

atração de uma segunda isotopia (por exemplo o comparante), abrindo essa

significação inicial para um novo universo de sentido, e instalando assim duas

leituras coexistentes e parcialmente concorrentes de uma mesma significação.

(BERTRAND, 2003, p. 189)

As isotopias classificam-se em figurativas e temáticas. A primeira corresponde

a elementos figurativos e concretizam o ator, o espaço e o tempo da narrativa, por exemplo.

A segunda tem caráter abstrato e se manifesta por meio de marcas deixadas por elementos

figurativos. Por meio do encadeamento de isotopias, percebemos que se forma o percurso

figurativo e o temático. O primeiro corresponde ao “encadeamento isotópico de figuras,

correlativo a um tema dado” (GREIMAS;COURTÉS, s.d, p. 188), e, o segundo à

“manifestação isotópica, mas disseminada de um tema, redutível a um papel

temático”(GREIMAS;COURTÉS, s.d, p. 453).

Para Bertrand (2003, p. 213) tema é o que “dá valor e sentido para as figuras”.

Em relação à tematização, Bertrand especifica que a operação “consiste em reconhecer, a

partir de uma ou de várias isotopias figurativas, uma isotopia mais abstrata, subjacente aos

conteúdos figurativos cuja significação global ela condensa, orientando-a e integrando-lhe

valores”. (2003, p. 413). Esse processo se manifesta, como já citamos, quando o tema é

aquele elemento que reveste as figuras presentes na narrativa, dando-lhes sentido e valor.

Não só o encadeamento de várias isotopias nos leva a uma das construções de

inúmeros valores temáticos pertencentes à construção narrativa, mas também o fato de que a

tematização tem ainda como uma de suas principais características “[...] dotar uma seqüência

figurativa de significações mais abstratas que têm por função alicerçar os seus elementos e

uni-los, indicar sua orientação e finalidade, ou inseri-los num campo de valores cognitivos e

passionais”(BERTRAND, 2003, p. 213).

O conceito de figuratividade não pode ser, portanto, como vimos, assimilado à

“ „representação mimética‟ ”, que é apenas uma de suas realizações possíveis. A

figurativização do discurso é, de acordo com Bertrand, (2003, p. 231) um processo gradual

sustentado de um lado pela iconização, que garante a semelhança com as figuras do mundo

sensível, e, de outro, pela abstração, que delas se afasta.

2.2 ENTRE O NARRATIVO E O DISCURSIVO: O CONCEITO DE ATOR EM

SEMIÓTICA

34

Greimas e Courtés, no Dicionário de Semiótica (s.d, p. 34) observam que o

termo ator na história da semiótica foi aos poucos substituindo o conceito de personagem,

pois se observou que esse emprego não se dava apenas no âmbito literário, mas também em

outros gêneros textuais, isso se deu também, portanto, devido a uma preocupação com a

precisão e a generalização. Desse modo, exemplificam que até mesmo a um tapete voador ou

uma sociedade comercial pode ser atribuído o papel de ator.

O conceito de ator está ligado a investimentos constituintes da ordem da

sintaxe e da semântica do discurso. Por tratar-se de um componente lexical é dotado de um

papel actancial, no nível narrativo, e de um papel temático, no nível discursivo, pelo sujeito da

enunciação. Desse modo, o ator pode se manifestar nos textos tanto por procedimentos de

debreagem quanto de embreagem, e seu conteúdo semântico, como ressaltam Greimas e

Courtés (s.d., p. 34)

parece consistir essencialmente na presença do sema individualização que o faz

aparecer como uma figura autônoma do universo semiótico. O ator pode ser

individual (Pedro) ou coletivo (a multidão), figurativo (antropomorfo ou zoomorfo)

ou não-figurativo (o destino). A individuação de um ator marca-se freqüentemente

pela atribuição de um nome próprio, sem que tal coisa constitua, em si mesma, a

condição sine qua non da sua existência (um papel temático qualquer, „o pai‟ por

exemplo, muitas vezes serve de denominação do ator); a onomástica , que se

inscreve na semântica discursiva, é, desse modo, complementar à actorialização (um

dos procedimentos da sintaxe discursiva).

É importante lembrar que a concepção de ator não se relaciona somente ao

lugar de investimento dos papéis actanciais e temáticos, mas também de suas transformações,

"consistindo o discurso, essencialmente, em um jogo de aquisições e de perdas desses

valores”. (GREIMAS; COURTÉS, s. d, p. 34)

Bertrand (2003, p. 306-307) observa ainda que um mesmo ator pode, no

decorrer da narrativa, inscrever-se em numerosos percursos:

ser Destinador neste, sujeito naquele, anti-sujeito em outro ou na perspectiva de um

outro ator. Um mesmo papel actancial pode modificar-se durante o percurso, ver-se

ampliado ou amputado. Inversamente, um único papel actancial pode ser ocupado

por vários atores diferentes, ou por um ator coletivo.

Desse modo, podemos distinguir a diferença entre ator e actante:

o actante é uma figura sintáxica , existe apenas nos programas que o colocam em

jogo; o ator-que outros denominam personagem-é uma figura mais complexa,

porque é constituída ao mesmo tempo de componentes semânticos (de ordem

35

figurativa e temática: um cavaleiro, por exemplo, que se denomina Percival, etc.)e

de componentes sintáticos: um ou vários papéis actanciais. De fato, uma

“personagem” numa narrativa, que será apenas nomeada, mas não entrará em

nenhum programa de ação, será um puro elemento descritivo. Privada de papel

actancial, ela não constituíra um ator da narrativa.(BERTRAND, 2003, p. 307)

Partimos, agora, para uma reflexão sobre o conceito de paixão em semiótica.

36

3 A ABORDAGEM SEMIÓTICA DAS PAIXÕES

A única liberdade possível se realiza através do conhecimento das

paixões.

Espinosa

O estudo das paixões passou a ser objeto de interesse da teoria semiótica

francesa a partir dos anos 1980, trata de analisar o universo passional presente na produção

discursiva. A semiótica se dedicara, até então, mais especificamente ao estudo das dimensões

pragmática e cognitiva dos textos, mas a partir dessa época passa a se voltar para a

“dimensão dos sentimentos, das emoções” (BERTRAND, 2003, p. 357), enfim, dos estados

de alma dos sujeitos.

A dimensão patêmica, no contexto dos estudos semióticos, considera “a paixão

não naquilo em que ela afeta o ser efetivo dos sujeitos „reais‟, mas enquanto efeito de sentido

inscrito e codificado na linguagem” (BERTRAND, 2003, p. 258). Isso demonstra que para a

semiótica das paixões, o objetivo é demonstrar de que modo os efeitos de sentido da ordem

passional são manifestados na produção discursiva pelos sujeitos.

Para a compreensão do estudo das paixões é necessário que se considere

segundo Bertrand (2003, p. 358), suas duas vertentes: uma da ordem da ação e outra, da razão.

A primeira é aquela que “faz emergir a dimensão passional a partir da semiótica da ação”,

cujos estudos estão manifestados em Semiótica das paixões. Dos estados de coisas aos

estados de alma (1993) de Algirdas Julien Greimas e Jacques Fontanille. Nessa vertente os

estudos se voltam, sobretudo para sua dimensão sintáxica das paixões. A segunda, por sua

vez, enfatiza o sujeito passional na sua “identidade subjetiva” e reativa a categoria tópica

paixão/razão cuja descrição ela renova, enraizando-a na atividade de discurso” (BERTRAND,

2003, p. 358). Esse estudo apresenta-se na obra de J.Coquet La quête Du sens. Le langage

em question(1997).

Da Greimas e Fontanille (1993), o estudo das paixões vai, gradativamente se

sistematizando. No primeiro capítulo de Semiótica das paixões explicam a epistemologia das

paixões que

[...] aparecem no discurso como portadoras de efeitos de sentido muito particulares;

ele exala como que um cheiro confuso difícil de determinar. A interpretação que a

semiótica reteve é que esse perfume específico emana da organização discursiva das

estruturas modais. (GREIMAS; FONTANILLE, 1993, p. 21).

37

Os autores referem-se ao fato de que as paixões não são propriedades dos

sujeitos, mas pertencem ao discurso, pois “elas emanam das estruturas discursivas pelo efeito

de um „estilo semiótico‟ que pode projetar-se seja sobre os sujeitos, seja sobre os objetos, seja

sobre a junção” (GREIMAS;FONTANILLE, 1993, p. 21). Partindo, assim, dessa primeira

abordagem, devemos ressaltar que ela “leva em conta a modulação dos estados do sujeito,

agitado, instável, flutuante, em seu face a face com a ação”. Essa modulação se desdobra

como uma variação contínua em torno da junção, focalizando o dinamismo interno [...]

íntimo, dos estados que compõem o espaço passional” (BERTRAND, 2003, p. 359-360).

O espaço passional faz-se por meio de tensões e aspectualizações, seu estatuto

é da ordem do contínuo e se dispõe “„em torno‟ das transformações narrativas.” Dessa forma,

a semiótica do agir, isto é, a semiótica da ação “permite identificar o lugar, reconhecível no

discurso, de uma semiótica do sofrer. (BERTRAND, 2003, p. 361)

Dessa perspectiva, o estudo das paixões, Bertrand (2003, p. 366-367) “assenta

sobre as modalidades que definem reciprocamente o estatuto do sujeito e do objeto”. A paixão

é, pois tratada como “um excedente em relação a uma estrutura modal”. O semioticista

destaca que a modalização do fazer é a responsável pela competência do sujeito, que pode ser

percebida como uma organização paradigmática e ou sintagmática. Quanto à primeira, o

sujeito é “dotado de uma carga modal de maior ou menor complexidade, constituída por

modalidades compatíveis, contrárias ou contraditórias que o definem a cada instante de seu

percurso.” As modalidades compatíveis definem a coerência do sujeito de ação:

“/dever/,/querer/ e /poder fazer/”. As modalidades incompatíveis revelam a presença de um

sujeito conflitual de transgressão em que, por exemplo, ele /deve não fazer/, no entanto, /quer

fazer/ e /pode-fazer/. Do ponto de vista sintagmático, a carga modal é apresentada de forma

“hierarquizada e evolutiva”. Assim,

uma modalidade dominante define o sujeito, pondo as outras sob sua dependência :

por exemplo, o /querer/ regerá, ao longo do percurso: o saber e o poder fazer,

formando um „sujeito de desejo‟. Ou será o /saber/ que formará a modalidade

diretriz, dominado o querer e o poder fazer, para formar um „sujeito de direito‟.

(BERTRAND, 2003, p. 367)

Esse conjunto de modalidades, de acordo com Bertrand (2003, p. 367),

[...] permanece exclusivamente centrado nos enunciados de fazer. Ele só se interessa

pelos percursos e avatares da ação, pressupondo a estabilidade dos valores inscritos

nos objetos, a permanência do enfoque do sujeito e, sobretudo, a ausência de „restos‟

38

quando a transformação é realizada. O sujeito da busca não parece conhecer nem

entusiasmo, nem saudades, nem inquietude, nem ressentimento.

A questão passional, por outro lado, deve ser entendida como “uma variação

dos estados dos sujeitos, permitindo depreender uma outra ordem de relações, aquelas que

definem sua „existência modal‟ por meio da modalização dos enunciados de

estado”(BERTRAND, 2003, p. 367).

Quanto à modalização do ser, o semioticista (2003, p. 368-369) apresenta-a

como “o modo de existência do objeto de valor em ligação com o sujeito: ela dá conta não

mais das relações intencionais, mas das relações existenciais e define, por decorrência, o

estatuto do sujeito de estado” (grifo do autor). Isso significa que o objeto para o sujeito será

desejado ou odiado, almejado, temido, etc. Logo, o estado de alma do sujeito fica sob

dependência da modalidade investida nos objetos de seu horizonte de valores. A formação

dessas estruturas semióticas pressupõe um nível subjacente da articulação de sentido: o nível

da timia que, como ressalta Bertrand (2003, p. 378) é definida como

[...] „disposição afetiva de base‟, que determina a relação do corpo sensível com seu

ambiente. Transposta para a semântica como uma categoria classemática, a timia se

articula em uma vertente positiva, a eu-foria, em uma vertente negativa, a dis-foria,

em uma vertente neutra, a-foria, que se convertem em um nível superior em

modalidades de estado(BERTRAND, 2003, p. 378)

Em termos de estrutura semionarrativas o espaço fórico relaciona-se ao estado

modal que o articula. Nesse nível se realizam as modificações do valor do objeto na sua

relação com o sujeito de estado. O valor, nesse aspecto, deve ser entendido como uma

estrutura modal que afeta sua relação existencial com um sujeito. Assim, o sujeito possui uma

existência modal, passível de ser perturbada ou pelas modificações que ele atribui aos valores

dos objetos ou por aqueles que outros atores operam no mesmo ambiente que ele. A

existência modal coloca, portanto, “o valor em movimento e em jogo”(BERTRAND, 2003, p.

369).

As modalidades podem ainda ser intensificadas por uma sensibilização dos

objetos que procede da aspectualidade. Desse modo, podemos ter paixões incoativas como a

impulsividade, terminativas como a nostalgia, iterativas como a obstinação, durativas como a

ambição. Além disso, a estrutura passional é controlada pela moralização: “pela regulação

social que determina a medida, entre excesso e insuficiência, da circulação dos valores”

(BERTRAND, 2003, p. 378).

39

Deve-se ressaltar ainda que houve a formulação de um esquema passional

canônico, que se relaciona ao esquema narrativo e, como ele, é transcultural, sendo

responsável por inscrever o desenvolvimento passional em um percurso de quatro

sequencias: a disposição, a sensibilização, a emoção e a moralização.

É importante lembrar ainda que existem dois mecanismos por meio do quais a

paixão pode se manifestar na narrativa. O primeiro diz respeito ao que Greimas e Fontanille

(1993) denominam como “discurso passional” é aquele em que a paixão está manifestada

diretamente, o segundo o “discurso apaixonado” em que a paixão está manifestada no nível da

enunciação, isto é, elas ali aparecem tão implícitas que podemos perceber quais são pelas

estratégias enunciativas do texto. Em nossas análises, observamos que a paixão da cólera está

relacionada aos sujeitos do enunciado. Já o discurso de Lavo, revela a paixão pelo contar a

vida do amigo, é um discurso apaixonado.

3.1 A PAIXÃO DA CÓLERA

A cólera é um ódio aberto e passageiro, o ódio uma cólera oculta e

constante.

Charles Pinot Duclos

Segundo o Dicionário Houaiss e Villar (2001), a cólera é um sentimento que

desperta violência, pois pode produzir uma ação contra tudo que revolta e ocasiona algum

escândalo, produzindo uma intensa raiva, ocasionada por alguma atitude indesejada. Tais

considerações apontam que a cólera desperta uma reação de extrema fúria, perante algo ou

alguém, manifestando-se por meio de violência física ou verbal. Nosso estudo parte, a

princípio, dos estudos de Aristóteles em Retórica das paixões (2000). Faremos referências

ainda ao prefácio do mesmo livro, feito por Michel Meyer.

Para Meyer (2000, XLIII), a cólera é “o reflexo de uma diferença entre aquele

que se entrega a ela e aquele ao qual ela se dirige”. Neste aspecto, o sujeito manifesta seu

estado de cólera ou ele é o responsável por despertar tal estado em outro sujeito. Uma das

possibilidades para que a cólera se manifeste é a relação de superioridade: “[...] as pessoas

que se julgam superiores - sobretudo os jovens e os ricos - são as que em geral provocam a

cólera.” A cólera é, então, consequência de uma calúnia, da afronta, do desprezo.

40

Para Aristóteles (2000), a cólera manifesta um sentimento de tristeza do

sujeito, provocando-lhe, ao mesmo tempo, o desejo de vingar-se contra algum outro que lhe

causou o mal. Isso acontece quando o sujeito desprezado é privado de algo ao qual almejava.

Ainda para o autor, são três as espécies de desprezo que impulsionam o estado colérico do

sujeito: o desdém, a difamação e o ultraje. O primeiro equivale àquilo que um sujeito não

considera significativo para si, ou melhor, àquilo que não tem valor, provocando o estado

colérico naquele que considerava algo como valor. O segundo trata-se de obstáculo contra

outro indivíduo, para que este não consiga porventura o que gostaria de ter. É o ultrajado o

responsável por tal ato, pois o “[...] ultraje consiste em fazer ou dizer coisas que causam

vergonha à vítima, não para obter uma outra vantagem para si mesmo, afora a realização do

ato, mas a fim de sentir prazer, pois quem paga na mesma moeda não comete ultraje, e sim

vingança” (2000, p. 9).

Em Etimologia das paixões, Ivonne Bordelois observa que estudar as paixões

etimologicamente é fazer uma reinterpretação do modo como são definidas, “é a descoberta

do sentido das raízes que persistem, modificadas, nas palavras de agora. [...]. As raízes das

palavras não estão atrás, no passado: estão no profundo do aqui e do agora”(BORDELOIS,

2007, p. 18). O estudo da autora revela que ao estudarmos etimologicamente as paixões, é

necessário entendermos como elas são repensadas na contemporaneidade.

Faremos referência à etimologia da raiz eis5. Para Bordelois (2007), essa raiz

tem como principal característica termos que se correlacionam com as paixões. Os verbos

que derivam de eis estão relacionados com verbos que denotam impulso, ímpeto e

movimento. Como exemplo, a autora cita o verbo ir. Ao tratar da paixão da cólera, ressalta o

que vem a ser ira e, consequentemente, a diferença entre essa paixão e a cólera. Aponta que

eis origina a raiz hieros que, em grego, origina a ira latina. Esta está manifestada na Ilíada de

Homero, cuja história se inicia com a cólera de Aquiles. Bordelois (2007, p. 33), explica que

a cólera é a

paixão por antonomásia na tradição homérica. Mas se trata (e isto é crucial) de uma

ira inspirada pelos deuses e cantada pelas Musas, a ira da vingança justa, que

identifica e justifica o herói como tal, defensor não somente de sua própria vida

individual, mas também da integridade e sobrevivência de seu grupo e de sua

espécie. A ira, como proteção contra a ameaça de completa submissão ao inimigo

[...].

5 De acordo com Cunha (2007, p. 286) a raiz eis é de origem incerta, talvez forma evolutiva do latim ex.

Bordelois (2007, p. 28),ao mesmo respeito, diz que a raiz “[...] é sem dúvida a mais diversa e misteriosa, a que

mais nos desafia na leitura de seus sentidos plurais, de uma complexidade enigmática, que irradia uma

fascinação comparável ao deciframento de um código enterrado embaixo de muitos palimpsestos.

41

Percebemos que a ira na tradição homérica é justificada como uma boa paixão

que o herói sente para proteger sua nação, ou melhor, o que o motiva para dar cabo ao inimigo

em combate.

Para Ernout e Meillet (apud BORDELOIS, 2007, p. 34) autores de um

dicionário etimológico latino, a ira, na poesia de Virgílio e Horácio, seria uma “paixão ou

desejo violento”. Visando a esclarecer a diferença entre a ira e a cólera, a autora menciona

que a primeira é mais usada como um atributo divino. No entanto, trata a cólera como

sinônimo de ira: “ira por outro lado, se define como fúria, furor, cólera ou raiva, irritação

muito violenta na qual se perde o domínio sobre si mesmo e se cometem violências verbais ou

físicas (2007, p. 44). Percebe-se que tomado pela ira o herói perde o controle. Partimos dessas

considerações sobre as paixões da ira e da cólera, para confrontá-las ao modo como a

semiótica as sistematizou, voltando-nos especificamente à paixão da cólera.

3.2 A PAIXÃO DA CÓLERA SOB A PERSPECTIVA DE GREIMAS

Greimas (1983, p. 225)6 tem um estudo em sua obra Du Sens II, denominado

“De la cólère”. Ali o semioticista propõe uma sequência discursiva, visando a descrever e

analisar a configuração passional da cólera. Para o semioticista, a sequência canônica é feita

a partir de análises relacionadas ao âmbito lexical. Para justificar seu posicionamento,

Greimas cita uma definição do dicionário Petit Robert e aponta a cólera como “violento

descontentamento acompanhado de agressividade” (1983, p. 226).

Para Greimas, o lexema descontentamento deve ser entendido como um

“sentimento penoso” e é o ponto de partida da sequência canônica da cólera. Esse

descontentamento é decorrente da frustração e é definido como “o sentimento penoso de

ser/estar frustrado em suas esperanças e em seus direitos”. (1983, p. 226). Assim, um sujeito

descontente deve ter sido frustrado por aquilo que tinha esperança de obter ou considerava-se

no direito de possuir.

O semioticista volta-se, então, para uma das definições do verbo frustrar que

significa “privar alguém de um bem, de uma vantagem”. Utilizando a metalinguagem

6 Tradução nossa no que se refere ao texto greimasiano.

42

semiótica, Greimas define o sujeito frustrado como aquele que está em disjunção com o

objeto que ele se considerava no direito de receber, ou, ainda, com o sujeito “com o qual ele

acreditava poder contar”. Essa última definição sinaliza não mais para a relação entre um

sujeito e um objeto-valor, portanto, mas, sim para uma relação intersubjetiva. Logo,

decepcionar-se relaciona-se ao fato de não se obter resposta a uma espera e será, por

conseguinte, a espera o ponto inicial para o estudo da cólera. O semioticista lituano assinala

que a espera pode ser simples ou fiduciária. A primeira é aquela do sujeito que quer estar

conjunto ao objeto-valor. Quanto à espera fiduciária, Greimas a caracteriza como o momento

anterior à frustração. A espera do sujeito não é apenas um desejo, mas sim um estado anterior

ao da confiança, o sujeito de estado “pensa poder contar” com o sujeito do fazer para que este

realize “suas esperanças” e “seus direitos”. No entanto, afirma que o “[...] o sujeito do fazer

não se encontra de modo algum comprometido com o sujeito, sua modalização deôntica é o

produto da „imaginação‟ do sujeito de estado”. (GREIMAS, 1983, p. 230). Estabelece-se,

pois, uma relação fiduciária entre o sujeito e o simulacro que ele construiu. Com isso, o

sujeito de estado (S1) e o sujeito do fazer (S2) mantêm um contrato que, no entanto, é

estabelecido por S1 o qual, em seu estado passional de espera, depara-se com a intervenção de

S2. Este exercerá um programa narrativo, “uma atividade de atribuição (ou não-atribuição)

que, por sua vez, terá por efeito a realização ou não-realização de um sujeito de estado”

(GREIMAS, 1983, p. 231).

Tendo em vista a espera fiduciária, o semioticista esclarece que se ocorrer a

conjunção do sujeito de estado com seu objeto-valor, isso o levará ao “prazer”, ou seja, a um

estado de satisfação, já que esperava a conjunção. Assim, diante da espera, há uma tensão

que se caracteriza por um querer-ser. Nesse sentido, ele é um sujeito inicialmente atualizado.

Quando há a realização do sujeito, ocorre um abrandamento dessa tensão, levando ao estado

de satisfação do sujeito que se torna, pois, um sujeito realizado, conjunto ao objeto-valor.

Ao observar que a paciência é parte constituinte da espera, Greimas a define

como “ „ disposição do espírito daquele que sabe esperar sem perder a calma‟ ”(GREIMAS,

1983, p. 231) . Sua principal característica está no fato de preencher um espaço entre o sujeito

de estado atualizado e o sujeito realizado (ou não-realizado). O “saber esperar” é modalizado

não por um saber-fazer, mas por um poder-ser, isso significa que a paciência é um “estado

durável de satisfação”.

Na insatisfação, o sujeito de estado, torna-se descontente com o sujeito de

quem ele esperava o poder fazer. A crise de confiança é instalada pela certeza do sujeito em

estado de espera fiduciária, pois ele tinha como convicção a realização do contrato

43

estabelecido com o sujeito do fazer. Quando isso não acontece, instala-se a decepção do

sujeito de estado, resultante de uma crise de desconfiança em relação ao sujeito do fazer, o

que pode gerar a frustração do primeiro em relação ao último. O descontentamento ocorrido

pode levar à explosão da cólera.

Greimas (1983, p. 234) aponta que o descontentamento é o ponto chave das

outras estruturas do esquema canônico da cólera: a frustração e a agressividade. A não-

conjunção do sujeito com seu respectivo objeto-valor gera a insatisfação, que por sua vez,

transforma-se em sentimento de falta.

Percebemos, assim, que o sentimento de falta pode estar relacionado tanto à

malevolência, como à benevolência:

[...]o sujeito tendo que provocar o „sentimento de malevolência‟ pode ser o actante

destinador: o querer-fazer do sujeito se integrará então no programa de revolta,

comportando a recusa do destinador e a busca de uma nova axiologia.O sujeito que

inspirou a malevolência pode ser o actante anti-sujeito: o querer-fazer servirá então

de ponto de partida ao PN de vingança.É a partir disso, que o sujeito da falta

sentindo-se desprovido do que esperava, é movido por um sentimento de

decepção.(1983, p. 283)

Vimos que o sujeito motivado pela falta instala-se em um programa de revolta,

coloca-se como um sujeito que não teve a sanção positiva que esperava do seu destinador.

Para Barros (1983, p. 67) “quando o destinador não o sanciona ou, além do mais, julga-o

negativamente, o sujeito se decepciona, torna-se inseguro e aflito e se revolta”.7 O sujeito,

então, é modalizado por um /poder-fazer/ em que é seu poder que lhe dá subsídios para a

destruição daquele que lhe fez mal.

O descontentamento está relacionado ao aspecto durativo, duração longa ou

breve, que consequentemente se correlaciona à amargura e ao rancor. Para Greimas (1983, p.

235), a primeira é “„sentimento durável de tristeza misturado ao rancor, ligado a uma

humilhação, uma decepção, uma injustiça do destino‟ ”. O segundo é definido como „

“amargura que se guarda após uma desilusão, uma injustiça‟”. Apresenta, contudo, duas

definições que compõem o estudo da paixão da cólera, ou melhor, dois aspectos que podem

ser depreendidos da sua definição: novamente a definição de rancor e do ressentimento.

Ressentimento corresponde ao fato de o sujeito “ „recordar-se persistentemente com

animosidade do mal, dos danos que sofreu ‟ ”. Já no rancor o sujeito recorda-se de uma

7 Para Fontanille (1980 apud Barros, 1983, p. 71), a revolta decorre do desespero, e o sujeito desesperado rejeita

o destinador, mas não os valores do destinador, a revolta surge do conflito entre a perda de confiança no outro e

em si mesmo e a confiança em „alguma coisa de transcendente‟.

44

ofensa, de um prejuízo, com hostilidade e desejo de vingança‟ ”.Tais aspectos revelam que o

estado de descontentamento pode ser definido como algo durável “ como um „lembrar‟

presente”.

Ao tratar da vingança, o semioticista lituano define-a como “necessidade,

desejo de se vingar”, pelo fato de o sujeito não ser correspondido no que esperava do outro.

Essa vingança é, assim, decorrência de sua honra ferida, isto é, daquele que se sente ferido, o

sofrimento de S1 provoca o prazer de S2 como uma satisfação que acompanha este último em

todo programa narrativo, isto é, ele alegra- se de fazer sofrer seu inimigo.

3.3 A CÓLERA, SEGUNDO FONTANILLE

O estudo realizado por Greimas a respeito da paixão da cólera consiste,

segundo Jacques Fontanille (2005, p. 61), num “prolongamento da reflexão sobre as

estruturas narrativas do discurso”. Fontanille afirma ainda, num capítulo sobre a cólera do

Dictionnarie de passions litéraires (2005), que Greimas se interessa pela definição e

funcionamento lingüístico da cólera, enquanto seu estudo se volta para o funcionamento

textual e desenvolvimento discursivo de tal paixão8.

O semioticista francês inicia seu texto fazendo referência à “cólera literária”, e

observa que ela se manifesta sob o controle de outra paixão. Ela pode ser objeto de avaliações

positivas ou negativas, as quais se convertem em comportamento moral.

Fontanille(2005, p. 62-63) reformula a sequência canônica da cólera

estabelecida por Greimas. Para o semioticista lituano, a sequência é a seguinte: Espera

fiduciária Frustração Descontentamento Agressividade.

Em seu texto, Fontanille relembra que as flechas são orientadas da esquerda

para a direita para indicar o sentido do desenvolvimento sintático, mas a seqüência pode ser

lida e justificar-se pela pressuposição, remontando do fim (à direita) em direção ao início (à

esquerda).

O motivo que leva Fontanille a reformular a sequência canônica é a

complexidade do percurso que se realiza ao longo da cadeia do discurso, fundamentando-se

em uma cadeia de motivos:

8 Essas referências ao texto de Fontanille têm por base a tradução feita pela professora Dra.Vera Lucia Rodella

Abriata.

45

[...] o sujeito explode em razão de sua agressividade; ele é agressivo em razão de seu

descontentamento, ele está descontente em razão de sua decepção, ele está

decepcionado em razão do que ele esperava, e, enfim, ele esperava em razão do que

lhe haviam prometido ou da expectativa que haviam lhe criado. (FONTANILLE,

2005, p. 63)

Para Fontanille, portanto, a espera, mesmo fiduciária, não pode se confundir

com uma fase que ele considera preliminar, a da instalação da confiança. Essa última não se

relaciona necessariamente à cólera, na medida em que a maior parte da confiança que

depositamos no outro não conduz, felizmente, à cólera. Por outro lado, ele destaca uma fase

final, a explosão, que segundo o autor, não se confunde com a fase de agressividade. Para o

semioticista, a sequência greimasiana deveria, pois, ser completada desta forma:

Confiança → Espera → Frustração → Descontentamento →Agressividade →Explosão

De acordo com o autor, o primeiro critério distintivo, fornecido pela própria

seqüência, para se apreender a manifestação da cólera, é a existência de um antissujeito.

A seguir exporemos de forma mais precisa cada uma das etapas da sequência

canônica, com base nas considerações de Fontanille (2005, p. 64-65).

A confiança pressupõe tem-se a relação entre ao menos dois sujeitos, e pode-se

formulá-la como um estado de crença em alguém. Ela pode ser instalada de maneira informal,

puramente afetiva, ou mais explícita e formalmente, sob a forma de um contrato narrativo, ou

por meio de promessa. A confiança pode afetar a representação de um estado ou de um

acontecimento a ocorrer, que é modalizado por um “dever-ser”.

A espera parece relacionar-se somente à projeção temporal da relação entre o

sujeito- e o estado ou acontecimento modalizado- e sua capacidade para suportar a demora de

realização; nesse caso, no entanto, ela não desembocaria na cólera. De fato, a espera é

também a da participação de um outro sujeito: apenas se espera o acontecimento, porque não

se pode ter certeza plena a respeito de sua realização e porque ela depende da intervenção de

um ou de inúmeros outros sujeitos; a espera guarda, assim, a memória da confiança que a

fundamenta. “O crer, instalado pela confiança, se desdobra, portanto, na espera em um crer

em alguma coisa (o estado esperado) e um crer em alguém (aquele que deve realizá-lo)

(FONTANILLE, 2005, p. 64).

46

A frustração reatualiza a promessa de conjunção anterior, e a falta apenas se

prova, nesse caso, sob o fundo da confiança e da espera irrealizadas. Nesse momento, o

sujeito da cólera prova a privação e seu corpo sensível é tomado pela decepção. De um ponto

de vista semântico, para Fontanille (2005, p. 64), “a participação do corpo sensível distingue a

frustração de todas as outras versões (falta, decepção, privação). Nesse sentido, pode-se

afirmar que essa fase da sequência reativa o „querer‟ do sujeito”.

O descontentamento, nessa fase, o sujeito pode apenas confrontar o que ele

esperava com o que ele obtém, e tornar-se insatisfeito devido a uma inadequação entre o si

projetado e o eu atual. Entretanto o descontentamento é igualmente dirigido a algum outro,

alguém que talvez tenha feito uma promessa ao sujeito. Esse algum outro, pode ser talvez o

próprio “eu”, mas em um outro papel actancial, um outro lado do eu com o qual se contava

para a realização do acontecimento esperado.

A agressividade pode ser explicitamente endereçada a outro sujeito, o falível, o

traidor, aquele que não honrou sua promessa, ou pode se voltar para os objetos, para a

construção ou o dispositivo que se revelaram menos confiáveis do que se supunha; no limite,

ela visará diretamente à situação, ao próprio estado deceptivo, mas unicamente porque são as

configurações concretas que encarnam a promessa e a confiança iniciais, e porque eles

representam de alguma forma, o engajamento negligenciado ou traído por outro sujeito.

Convém lembrar que não importa a figurativização, a agressividade pode ser

descrita como um efeito da irrupção do antissujeito no campo de presença do sujeito:

a agressividade, nos ensina que o actante da cólera, revisou sua percepção do

outro que ele identifica como um anti-sujeito potencial. E abre um outro tipo de

seqüência, uma seqüência de afrontamento, uma prova: o actante se prepara para a

confrontação e sua eventual agitação manifesta então a emergência de um “poder

fazer” (FONTANILLE, 2005, p. 65)

A explosão, enfim, deixa o sujeito face a si mesmo e resolve brutalmente as

tensões acumuladas, sem nenhuma consideração pelos objetos perdidos, os anti-sujeitos

incriminados ou os danos causados.

Cada uma das fases da sequência canônica oferece uma nova visão da relação

entre dois sujeitos e uma nova transformação da relação fiduciária: “confiança e abandono de

um em relação ao outro, decepção e abandono de um em relação ao outro, desconfiança e

acusação, e, para terminar, um novo questionamento da relação contratual. Com isso, esses

momentos passionais expostos podem-se desdobrar em fases intermediárias:

47

[...] a espera se desenvolve então em paciência ou impaciência, segundo a confiança

concedida seja forte ou frágil, a frustração se desdobra em aflição (angústia), dor ou

desejo insatisfeito, caso o investimento no objeto seja total ou parcial, o

descontentamento se desenvolve em ressentimento, em amargura, ou mesmo em

cálculos paranóicos, segundo o fracasso seja imputado parcial ou totalmente,

acidental ou intencionalmente a outro sujeito; a agressividade, enfim, pode tomar a

forma de ódio, a longo termo, ou da vingança, segundo um princípio de

reciprocidade de danos. (FONTANILLE, 2005, p. 66)

Pelas sequências, devemos ressaltar que nenhuma das etapas garantem que a

sequência do esquema canônico da cólera será completo. Por tal motivo, Fontanille (2005, p.

66) afirma que

[...] justamente em razão de seu caráter canônico, a seqüência da cólera permite

prever variantes não canônicas. Por exemplo, todas as frustrações não terminam por

uma explosão de cólera, algumas levam ao desespero, outras, a simples e duráveis

descontentamentos; outras, enfim, serão compensadas por contra-estratégias, de

vingança ou de represália.

O semioticista refere-se também a variantes subsequentes da cólera: a

impaciência, o desespero, a revolta, o ressentimento, o despeito, o ressentimento, o ódio e a

vingança. Para Fontanille (2005, p. 66-67), a impaciência revela a capacidade (forte ou fraca)

de antecipação e de desconfiança do sujeito. Já o desespero e a revolta evidenciam a

alternativa entre duas atitudes axiológicas: ou aceitar o enfraquecimento das crenças, em

proporção ao da confiança, ou fortificar as crenças, no exato momento em que a confiança nos

destinadores se perde. O ressentimento e o despeito, por sua vez, se chocam com uma inibição

da explosão agressiva e evidenciam (sobretudo a segunda) a existência de ligações recíprocas

entre o sujeito e o antissujeito, e mesmo de programas partilhados. Enfim, a vingança

sublinha, por contraste, o caráter necessariamente unilateral da ruptura de confiança: a

explosão agressiva revela, de forma anti-frástica, a confiança de um em relação ao outro,

confiança desprezada/ridicularizada, mas intensamente sentida/lastimada/deplorada.

Destaca ainda Fontanille (2005, p. 73-74) que o ressentimento, o despeito, o

ódio e a vingança realçam a estrutura temporal e tensiva da cólera; qualquer que seja a

duração das etapas que a precedem, a última deve ser breve, intensa, decadente, quer ela se

instale no tempo e permaneça átona, quer ela adote um perfil ascendente e progressivo; em

todos os casos ela possibilita que se saia do campo passional da cólera no sentido estrito.

Por outro lado, é importante enfatizar que as variações antecedentes da

seqüência são menos freqüentes e menos significativas, segundo o autor, mas não podem ser

48

ignoradas. Assim, apesar de todo seu estudo pressupor uma confiança preliminar, a frustração

e o descontentamento podem também aparecer na seqüência de um conflito e de uma

rivalidade:

[...] a frustração não assinala então uma “confiança” anterior do sujeito, mas uma

legítima esperança de importá-la, a que ele deve renunciar e que o faz entrar em

um percurso que parece então ao fim da cólera, aí compreendidas as variantes

subseqüentes (ressentimento, ódio, vingança, etc.) (FONTANILLE , 2005, p. 74)

Quanto ao descontentamento, ele não pressupõe, de modo obrigatório, uma

frustração particular que, sustentada por uma confiança, pode muito bem pressupor uma

posição de exigência virtual e de princípio tal que nenhuma situação reencontrada

concretamente a satisfará:

O descontentamento perpétuo, se não é uma manifestação da sabedoria, não é

tampouco uma forma de vida: a que assinala não mais uma confiança traída, mas

um desacordo geral com o mundo tal qual ele é, um desacordo irredutível entre o

mundo virtual construído pelo sujeito, e o mundo atual tal qual ele o

afronta/enfrenta.( FONTANILLE, 2005, p. 74)

Em confronto com suas variantes sintáticas, a cólera, se manifesta, pois, como

um “ramo” passional e Fontanille considera o “ramo” como a versão sintáxica da “gama”

passional. Finalmente o semioticista francês estabelece o seguinte esquema do percurso da

cólera com suas variações:

Rivalidade Exigência

CONFIANÇA→ESPERA→FRUSTRAÇÃO→DESCONTENTAMENTO→AGRESSIVIDADE→EXPLOSÃO

Impaciência Angústia Ressentimento Ódio

Agitação Desespero Desrespeito Vingança

Inquietude Revolta

Parte desenvolvendo as idéias de Greimas de Greimas sobre a paixão da cólera,

partimos tal paixão e suas variantes se manifestam em cenas de Cinzas do Norte.

49

4 OS LAÇOS DE DESAFETO ENTRE JANO E MUNDO

Não há paixão que abale tanto a sinceridade dos juízos como a

cólera.

Michel de Montaigne

A razão quer decidir o que é justo, a cólera quer que se ache justo o

que ela decidiu.

Sêneca

4.1 A HISTÓRIA

A relação conflituosa entre Raimundo, cujo apelido é Mundo e seu pai Trajano,

denominado Jano ao longo da obra, é um dos aspectos centrais de Cinzas do Norte. Mundo

era um jovem rebelde, engajado em causas sociais e seus valores são diferentes de seu pai,

comerciante, produtor de malva e de juta, que eram cultivadas em sua propriedade em

Parintins, a Vila Amazônia. As relações, de Jano, como representante do poder econômico,

estabeleciam-se com os simpatizantes da ditadura militar no Brasil, tempo em que se ancora a

história. Um desses representantes, Albino Palha, era comerciante e conselheiro do pai de

Mundo, outro, era o prefeito militar, Aquiles Zanda. O espaço que perpassa grande parte da

narrativa é Manaus e abarca, desde os anos 1960 até o fim do regime militar. O contexto

histórico que permeia a história coincide, assim, com a tomada do poder político pelos

militares, e o percurso dos atores, ao final da história, coincide com a sua derrocada.

Se, para Jano, a amizade com os militares tinha muito valor, para Mundo era

um tormento ver a ligação do pai com essa classe. Jano considerava importante para os

negócios da família a manutenção de uma imagem positiva perante os políticos e os militares,

enquanto para o filho que abominava a relação do pai como os donos do poder, a vida deveria

ser levada de maneira simples, sem nenhuma ostentação da riqueza que possuíam, como era

do gosto paterno.

Mundo compadecia-se dos mais humildes, enquanto Jano explorava seus

empregados e desprezava os menos favorecidos. O filho via com tristeza a destruição da

floresta, para a construção de novos projetos arquitetônicos, e a falta de apoio do governo em

relação aos mais pobres; o pai, por outro lado, se mostrava indiferente à pobreza.

50

O sujeito narrador da história, Lavo, que se tornou, com o passar do tempo,

amigo de Mundo, revela que, desde pequeno, Mundo demonstrava interesse pela arte. Seus

desenhos demonstravam sua competência (saber-fazer) em reproduzir, por exemplo, uma

embarcação, como se percebe em:

Ao lado de uma moça, ele mirava a nau de bronze do continente Europa; olhava o

barco do monumento e desenhava com uma cara de espanto, mordendo os lábios e

movendo a cabeça com meneios rápidos como os de um pássaro. Parei para ver o

desenho: um barquinho torto e esquisito no meio de um mar escuro que podia ser o

rio Negro ou o Amazonas. (HATOUM, 2005, p. 12)

Lavo, como sujeito observador, relata que as regras disciplinares

incomodavam seu amigo e que este fazia questão de provocar os bedéis da escola, até pelo

modo de se vestir, pois para Mundo as normas escolares eram autoritárias, e ele não estava

disposto a aceitá-las. Revelando-se, assim, um sujeito de estado de disjunção com os valores

que simbolizam a subordinação à disciplina rígida.

As regras disciplinares o transtornavam; mesmo assim, o desleixo da farda e do

corpo crescia, enraivecendo os bedéis: cabelo despenteado, rosto sonolento, mãos

sujas de tinta; a insígnia dourada inclinada na gravata, o nó frouxo no colarinho,

ombreiras desabotoadas. Ele usava uma meia de cada cor, arregaçava as mangas,

não polia a fivela do cinturão. Bombom o barrava e ameaçava: preguiçoso,

displicente (HATOUM, 2005, p. 14).

O afrontamento de Mundo em relação ao poder instituído fica evidente nesse

excerto, tanto em relação às regras disciplinares da escola, como por meio do modo como se

vestia. Assim, ele não estava disposto a comportar-se segundo as regras do sistema repressor,

muito menos aos valores que o pai lhe impunha.

A habilidade com que Mundo desenhava é percebida por Lavo, como fruto de

um saber armazenado, e ele rememora os interesses do amigo pelas artes desde a infância. Há

uma cena em que se evidencia que Mundo é um grande estudioso da arte e busca meios de

aprimorar esses estudos:

[...] tirou revistas de uma pasta de couro, as folheou: caricaturas de Daumier, não

eram geniais: „ Estes são brasileiros, Guignard, Volpi, Portinari. Estes são

franceses... e a revista é sobre arte africana.‟ Era a coleção Gênios da Pintura. Falava

com entusiasmo de artistas famosos e de anônimos, e parecia embriagado pelas

imagens. (HATOUM, 2005, p. 19-20)

51

Percebe-se, pois, que, para Mundo, a arte era um objeto-valor desde a mais

remota infância e um dos motivos que foi responsável por provocar seu desentendimento com

o pai.

4.2 O ESTADO DE CÓLERA DE JANO

Para Mundo, a arte era o fato motivador de sua vida, para seu pai essa sua

paixão era considerada um pesadelo, pois queria que o filho fosse seu sucessor nos negócios

da família. No entanto, ao longo de sua vida Mundo foi percebendo que isso se tornava cada

vez mais difícil. Ao tentar estimular o filho com o convite a Lavo para a viagem que fariam à

Vila Amazônia, sua propriedade, Jano achava que Mundo poderia, de alguma forma,

demonstrar interesse pelo lugar. No entanto, foi percebendo que sua tentativa fora inútil:

Pensei que tua presença ia estimular meu filho, mas não adiantou. Ele ficou

comovido com a morte daquele índio. Ignora a Vila Amazônia, cresceu com essa

repulsa... Se eu tivesse outros filhos! Por isso, invejo a sorte de alguns proprietários

da região, homens e mulheres que criaram homens e tem herdeiros. Enquanto eu vou

morrer sem herdeiro, Deus não me deu um” (HATOUM, 2005, p. 87, grifos nossos).

No excerto acima, fica pressuposto que Jano criara uma expectativa imaginária

ao desejar que Mundo pudesse ser seu sucessor, seu herdeiro. Evidencia-se, pois, em termos

de fases do esquema passional da cólera, a confiança pressuposta que o pai depositava no

filho. Havia, portanto uma espera do pai que acreditava que isso pudesse se concretizar.

Contudo, seu pessimismo e decepção são evidentes ao apontar que eram felizes aqueles os

quais tinham “herdeiros”, e a redundância das figuras “homem” e “herdeiro” revelam a

expectativa anterior e a descrença posterior do pai diante da possibilidade de Mundo tornar-se

um sujeito responsável, capaz de cuidar dos negócios da família, como tantos outros

fazendeiros que tinham nos filhos seus sucessores nos negócios.

As desavenças de Mundo com Jano vão se intensificando ao longo do tempo da

narrativa. Ao tomar conhecimento da expulsão do filho do Colégio Brasileiro, devido a

questões disciplinares – Mundo havia discutido com o professor que elogiara o governo

militar, e fizera uma caricatura do diretor do colégio, além de sair quase nu na frente de todos

– Jano cada vez mais foi passando a descrer na possibilidade de o filho seguisse seus valores.

52

Não só os motivos relacionados ao Colégio Brasileiro levaram Jano a decepcionar-se com o

filho. Também a humilhação que Mundo sofreu no antigo colégio em que estudava, o Pedro

II, quando alguns alunos da mesma classe fizeram uma brincadeira vingativa com fogo contra

ele, devido ao fato de o rapaz ter feito uma caricatura medonha deles. Mundo, então, atirou-se

no lago da praça para apagar o fogo e não tomou nenhuma atitude contra a agressão. Desse

modo, para o pai, o filho, ao não revidar a agressão, demonstrou ser passivo, covarde, incapaz

de agir diante de uma situação agressiva dos colegas, o que muito o decepcionou.

Assim, as primeiras etapas do esquema canônico da paixão da cólera ficam

pressupostas no texto: a confiança e a espera. Jano, de início, acreditava que o filho

respeitava as regras do colégio. No entanto, isso se mostra uma mentira para ele, e o filho

configura-se um sujeito contrário aos valores pelos quais seu pai tinha grande estima:

Discutiu com um professor de história que elogiou o governo militar. [...]. Rasgou a

farda, pregou os trapos nas janelas e saiu quase nu na frente de todo mundo,

prosseguiu Jano. Meu filho se expôs ao ridículo, mangou do diretor e ainda fez uma

caricatura também do coitado. (HATOUM, 2005, p. 117)

O contrato de confiança que pressupostamente Jano estabelecera com seu filho

era modalizado pelo “dever-ser”, pois na crença, estabelecida pela hierarquia familiar, o pai

tem autoridade diante do filho e este teria o dever de obedecê-lo. Percebemos que isso não

acontece com Mundo, pelo contrário, ele é transgressor e não aceitava os valores do pai.

Jano toma, portanto, uma atitude no papel temático de pai, manipula o filho por

intimidação, oferecendo-lhe um objeto de valor negativo, o colégio interno: “Agora você vai

enfrentar o internato aqui, perto do pai”. (HATOUM, 2005, p. 119) Novamente, Jano é

tomado, por um sentimento de frustração ao saber que o filho não vai comandar os negócios

da família: “É um destruidor de sonhos, isso sim, replicou Jano. [...]. Pensa que pode construir

o futuro com devaneios. Um sonhador não ignora o trabalho de meio-século! A Vila

Amazônia...” (HATOUM, 2005, p. 118).

Jano manifesta, pois, seu descontentamento com o filho, depois de expulso do

colégio pela discussão com o professor, que iria se submeter ao regimento do colégio militar:

“[...] vai estudar no Colégio Militar. Mais pela formação moral, pelo caráter, do que pela

qualidade do ensino” (HATOUM, 2005, p. 117). Percebe-se que o pai impôs ao filho uma

condição, decorrente da frustração diante da humilhação que sofrera. O descontentamento

maior de Jano acontece no momento em que Mundo, o desafia, ao deixar claro que não vai

atender à imposição do pai: “ „Nem interno nem externo‟ ” (HATOUM, 2005, p. 120).

53

Jano, nesse momento, já dominado por um sentimento de frustração,

descontentamento, em relação ao filho, passou, para a fase da agressividade verbal contra ele,

percebida na afirmação: “ „Tua opinião não vale nada‟, disse Jano. „Não vou admitir... Foste

influenciado por aquele boa-vida, Arana. Tu e os artistas... uns inúteis‟ ”.(HATOUM, 2005, p.

120)

De acordo com Fontanille (2005, p. 64), a frustração “[...] reatualiza a

promessa de conjunção anterior, e a falta apenas se prova, nesse caso, sob o fundo da

confiança e da espera irrealizadas”. Jano foi tomado pelo descontentamento diante dos fazeres

de Mundo, pois sentiu o desrespeito do filho, a vergonha que ele lhe causou ao ser expulso do

colégio, principalmente pelo fato de ironizar o regime militar.

Decorrente do descontentamento que sofrera, o pai é dominado por um

sentimento de ódio, devidos aos danos causados: a humilhação que estava sofrendo decorrente

das atitudes do filho e, ao mesmo tempo, por saber que Mundo não se preocupava em ser seu

único herdeiro. Preferia se dedicar a seu sonho de realizar-se como artista. O pai revelou

assim, sua frustração nesse aspecto, o que se observa quando respondeu ao seu amigo Palha

que lhe diz que Mundo é um sonhador e Jano afirmou que :

„É um destruidor de sonhos, isso sim‟ ”, replicou Jano. „ Onde ele está? Alícia pediu

que o nosso filho participasse desta reunião, mas nessas horas ele some. Deve estar

escondido, rabiscando grandes obras de arte. Pensa que pode construir o futuro com

devaneios. Um sonhador não ignora o trabalho de meio século! A Vila

Amazônia...”.(HATOUM, 2005, p. 118)

Logo, o sonho do pai de ter no filho um substituto nos negócios da família

também foi gradualmente se esvaindo. É importante observar que a frustração é mútua, do pai

para com o filho e vice-versa. Desse modo, ela vai caminhando para a agressividade mútua,

pois o pai e filho almejavam valores diferentes. Tal fato se tornou evidente quando Jano

gritou com o filho, em tom de imposição, autoritário “Jano aproximou-se do filho e berrou:

„Nem morto vou te deixar em paz‟(HATOUM, 2005, p. 120). Mundo não se intimidou com

seus dizeres, e o insultou, de forma indireta, também aos militares, seus amigos:” „Zanda?

Grande vigarista. Esses teus amigos...' " (HATOUM, 2005, p. 121). Isso contribuiu para

desperta um sentimento de raiva no pai que se manifesta por meio de agressão física , a qual

figurativiza a explosão da cólera:

„ Como podes dizer isso? Sou um dos amigos do teu pai‟. A voz de Palha se calou

com o estalo de um golpe: o cinturão do pai atingira o pescoço de Mundo; a outra

lambada açoitou seus ombros, e eu corri para segurar a mão de Jano. Alícia gritou

54

por Naiá e Macau; um rosnado feroz me assustou, e logo ouvi ganidos: vi meu

amigo chutar o cachorro e depois ser imobilizado e arrastado da sala pelo chofer. A

empregada e Alícia cercaram Jano, que, olhos fixos na parede, movia apenas a

mandíbula, o corpo parecia anestesiado. [...] „Meu filho vai aprender...‟, murmurou

Jano, largando o cinturão. [...] Jano caminhou devagar entre as duas mulheres até a

escada. Enquanto ele subia, ouvi-o dizer: „Cuida do Fogo, Naiá. Foi chutado por um

selvagem‟. (HATOUM, 2005, p. 121)

Percebemos que Jano ao afirmar “Meu filho vai aprender”, evidencia

novamente, pelo tom autoritário, que o aprendizado de Mundo, deveria se dar por meio da

aceitação da atitude impositiva do pai e, mesmo que não quisesse, deveria ir para o internato.

A figura “vi meu amigo chutar o cachorro”, ação resultante da agressão que sofrera,

figurativiza toda raiva que Mundo sentia do pai, de modo que não podendo agredi-lo naquele

momento, foi Fogo, o cão fiel ao pai, a vítima de sua fúria. A fisionomia de Jano, depois do

ato da agressão em “movia apenas a mandíbula, o corpo parecia anestesiado”, revela que ele

tenta reencontrar seu autocontrole, após a surra que dera no filho. Já ao comentar a agressão

de Mundo contra Fogo em “Foi chutado por um selvagem”, o pai compara seu filho ao cão.

Como o cão, era um selvagem o qual deveria ser domesticado, Mundo também deveria

receber uma educação que pusesse limite às suas atitudes, e ele, como figura autoritária,

acreditava que isso poderia se dar no colégio militar. Assim, o pai chegou a seu limite perante

as ousadias do filho. E seu modo de expressar a cólera foi tomar a atitude de dar uma “surra”

em Mundo. Portanto, como sanção pragmática negativa, Mundo levou uma surra e foi punido

também com sua ida para o internato, o colégio militar.

Lavo ficou compadecido ao observar a cena, principalmente quando o amigo

observou que não fora a primeira vez que o pai o tinha agredido:

Não foi a primeira vez que meu pai me acertou. Na Vila Amazônia, ele chegou por

trás, me deu uns solavancos e me chamou de fresco na frente dos filhos dos

empregados. Só porque me viu rindo e brincando com os meninos de Okayama

Kem. Minha mãe discutiu um pouco com ele, mas Jano não se dobrou: me proibiu

de sair de casa e acabou com as minhas brincadeiras. Fiquei sozinho durante as

férias[...] (HATOUM, 2005, p. 125, grifos nossos)

Depois que ocorre a surra, Mundo foi obrigado a aceitar a imposição do pai

para estudar no colégio interno. O filho, no entanto, se submetera a tal imposição apenas ao

nível do parecer, mas não ao nível do ser, ou seja, em termos de modalização veridictória, a

subordinação do filho aos valores do pai se revelou uma mentira.

55

4.3 A GERMINAÇÃO DA CÓLERA DE MUNDO E A AGRESSIVIDADE DE JANO

Para entendermos de que modo foi instaurando-se a revolta, o ressentimento, o

ódio e a vingança, que levaram Mundo a uma sucessão de atitudes agressivas contra o pai, é

necessário lembrarmos os fatos que ocorreram em sua infância. Por meio do relato do

narrador Ranulfo, tio de Lavo, descobre-se os motivos que levaram Jano a trancar, um dia, o

filho no porão, ao mesmo tempo em que se revela o seu desinteresse em relação aos valores

do filho:

Tua mãe percebeu que tua maior diversão era perambular na chuva e teu maior

prazer era desenhar. [...] Então Jano te proibiu de sair na chuva, te trancava no

porão e às vezes demorava a ir ao trabalho, queria te vigiar e também vigiar tua

mãe, que te libertava logo que ele saía. Ela dizia a Jano que não havia problema em

brincar na rua em dias chuvosos, as crianças adoravam, mas Jano nem ouvia:

durante os meses de inverno daquele ano mandava um funcionário ao palacete para

ver se ainda estavas no porão, e tua mãe o expulsava aos berros [...] então ele

mesmo, voltava pra te vigiar, e, enquanto teus pais discutiam, tu fugias,[...] Aí

Macau ia atrás de ti, e teu pai te confinava no porão. Perguntavas para tua mãe por

que tudo era tão escuro e por que agora só escutavas o barulho da chuva e das

trovoadas, e por que tinhas que comer sozinho e só podias sair à noite pra dormir

no quarto[...]e um dia tu desenhaste o rosto de uma criança gritando[...]Foi em

Janeiro de 1958[...] Ele voltou para almoçar e te chamou para comer à mesa;

durante o almoço tu lhe mostraste os desenhos, e teu pai, sem olhar para as folhas

de papel nem para teu rosto, perguntou: „ É só isso que ele sabe fazer?‟. E tua mãe:

„ É uma criança, gosta de desenhar, ele brinca e desenha sozinho no porão”. Então

teus pais começaram a discutir, e no meio da gritaria tu choraste e correste para o

porão [...] „ Deixa o menino lá embaixo, ele já acostumou, agora aprendeu que não

deve brincar com malandros na chuva‟[...]. E naquele mesmo dia[...] vi um táxi

parado na rua e o rosto molhado da tua mãe na janela[...] Fui até o carro e ouvi:

„Mundo quebrou a janela do porão e fugiu‟[...] Volta pra tua casa, vou atrás de

Mundo, eu disse.[...]o relógio da matriz marcava sete horas[...] ao cruzar a

Marechal Deodoro, vi uma roda de homens e mulheres[...] Perguntei o que estava

acontecendo, um homem disse: „Um menino perdido... diz que quer mostrar os

desenhos para o pai‟.Tu choravas no meio da roda e seguravas uma folha de papel,

e um talho na tua mão direita ainda sangrava, e manchava o papel.[...] e fomos de

táxi pra tua casa, e continuaste a chorar, querendo mostrar os desenhos ao teu pai,

e eu tentava estancar o sangue com a minha camisa; na porta do palacete eu pedi

que o motorista te acompanhasse até a sala[...](HATOUM,2003, p. 251-255)

Essa cena enunciativa trata do momento no qual Mundo, de certa forma,

manifesta seu estado de espera que o pai pudesse gostar de seus desenhos. Percebe-se que o

garoto tentou manipular Jano por meio da sedução, mostrando-lhe o desenho, com o intuito de

que o pai valorizasse sua arte, mas sua espera foi um fracasso, o pai não lhe estimulou e

56

ignorou o desenho: “É só isso que sabe fazer?” (HATOUM, 2005, p. 252). Notamos que

Mundo é um sujeito que, de início, pressupostamente acreditava que o pai poderia incentivá-

lo, mas se decepciona com ele.

O fato de Jano deixar Mundo trancado no porão, e os sofrimentos pelos quais o

faz passar na infância revelam o motivo de toda sua revolta contra o pai, posteriormente, na

vida adulta. As figuras “proibiu”, “trancava”, “vigiar”, “mandava”, “voltava pra te vigiar”,

“comer sozinho”, “sair à noite pra dormir no quarto”, são indícios de que Jano queria

submeter Mundo a seu jugo disciplinar, detê-lo de qualquer possibilidade de liberdade, queria

ter o controle da vida do filho. E a figura “criança gritando”, manifesta o estado de angústia a

qual Mundo já sentia frente ao modo opressor de Jano, perante a falta de liberdade, da qual o

pai queria privá-lo. A figura do “porão”, neste caso, pode ser considerada um conector de

isotopias já que faz alusão também à ditadura militar. No dicionário de Houaiss e Villar

(2001), porão é o “lugar escondido das vistas do público onde se passam atos ilícitos,

escabrosos, vergonhosos”. Nesse sentido, o enunciador não só nos remete ao porão da casa,

em que Mundo era preso e torturado psicologicamente pelo pai, como remete aos “porões da

ditadura”. 9

Assim, percebemos que, ao longo da narrativa, as duas primeiras etapas do

esquema canônico da cólera de Mundo, a confiança e a espera, ficam pressupostas no texto,

pois é natural que qualquer filho confie que o pai o proteja e admire seus feitos. Assim, na

infância Mundo tentou aproximar-se do pai, estabelecer uma relação afetiva com ele. Na

juventude, porém, Mundo foi compreendendo que o pai não demonstrava nenhum carinho por

ele. Sua descrença em relação à falta de afeto do pai se evidencia quando percebe que Jano

revelava mais preocupação com seu cão de estimação, Fogo, que levara um chute de Mundo,

quando este saiu da sala em que foi agredido pelo pai, do que com ele, o próprio filho. Mundo

percebeu ainda que Jano era incapaz de pedir perdão, ou redimir-se depois que o agride, mas

com o cachorro tem total preocupação, ficava compadecido do animal, que fica chutado pelo

filho. Para Jano, Fogo era o ser precioso, e despertava em Mundo um sentimento de raiva: “O

cachorro tinha na pelagem uma manchas amarelas que o menino detestava porque um dia o

pai dissera: „Manchas que brilham que nem ouro. Aliás, Fogo é um dos meus tesouros”

(HATOUM, 2005, p. 11). A figura “ouro”, pelo traço visual da cor amarela, juntamente com a

figura “tesouros”, aludem ao tema da riqueza de Jano, que valorizava os bens materiais. Jano,

9 No período ditatorial militar, a expressão “porões da ditadura” se referia aos locais em que se trancafiavam os

prisioneiros que se rebelavam contra o sistema. Eles eram submetidos a diversos tipos de tortura e ali ficavam

confinados em situação subumanas.

57

por sua vez, se apegava ao cão pela fidelidade e submissão que não conseguia obter do filho.

Nesse sentido, o cão era também um tesouro para ele, sempre acompanhava o dono em todos

os lugares, e até no trabalho. De certa forma, no excerto abaixo, verifica-se o quanto o cão

comporta-se de modo subserviente, como Jano gostaria que Mundo o fizesse, por isso eram

inseparáveis:

Caminhavam juntos, sob o sol ou nos dias de chuva, Fogo e Jano, seu dono. O

cachorro se adiantava, virava o focinho pra o lado, esperava, se empinava um pouco,

farejava o cheiro do homem, escutava os sons roucos da voz „ Vamos logo, Fogo...

Vai, vai andando‟. Eram inseparáveis: Fogo dormia perto da cama do casal [...]. (

HATOUM, 2005, p. 11)

O grande valor afetivo que Jano dedicava ao cão fazia Mundo sentir-se

frustrado e em estado de decepção frente ao posicionamento paterno: “Um pai não pode

gostar mais de um cachorro do que de um filho” (HATOUM, 2005, p. 123).

Outro momento importante da história, em que se revela a frustração de

Mundo com o pai, se nota neste desabafo: “Desde que eu nasci ele não se arrepende de nada

do que fez” (HATOUM, 2005, p. 133). Vemos que, por meio de sua frustração, Mundo

manifesta-se como um sujeito ressentido, por tudo que sofrera quando criança e pelas atitudes

do pai em sua juventude. Desse modo, o filho foi deixando- se mover por um sentimento de

vingança e ódio, fruto do descontentamento em relação a Jano. A incompatibilidade de

valores foi a responsável por alimentar ainda mais a discórdia entre eles.

E na cena da viagem que fazem à Vila Amazônia, o contraste entre os valores

de pai e filho também se evidenciam. Para Mundo, a propriedade do pai, a Vila Amazônia, era

um lugar que não suportava. Durante a viagem, atracaram no vilarejo, em que Jano foi bem

recepcionado pelo padre do lugar. Mundo desaparecia e reaparecia do local, trazendo

sementes para utilizar em seus trabalhos de arte e demonstrava preocupação e solidariedade

com os problemas de insalubridade do lugar: “[...] conversara com moradores, a última

enchente inundara até a igreja, e ainda hoje viviam na escuridão”. (HATOUM, 2005, p. 63).

Enquanto o filho se preocupava com os moradores humildes, Jano por intermédio de seu

empregado, Macau, trocava, por escambo, com eles, produtos como leite em pó, tecidos,

açúcar e recebia, por sua vez, frutas, peixes do lugar, entre outros. Nota-se nesse episódio, o

confronto de posições entre o sujeito capitalista, figurativizado por Jano, e o sujeito sensível,

Mundo, engajado em causas sociais. Enquanto para Mundo o pai era um aproveitador das

condições do povo humilde da região, para Jano esse era o modo de mostrar sua posição

social de homem rico, que, ao mesmo tempo revelava sua ambição em adquirir mais e mais.

58

Desse modo, Lavo, como narrador, foi demonstrando que Mundo não queria ser como o pai,

ambicioso. Logo, era um sujeito modalizado pelo “não-querer-ser”, tinha repulsa e aversão

perante as atitudes do pai:

Quando Jano voltou, foi logo dizendo ao filho: “Estás vendo? O Macau encheu o

iate de alimento e ainda ganhou uns fardos de malva. Tudo isso por umas caixas de

ninharias. Vai aprendendo...‟. „ Aprendendo a enganar ?‟, perguntou Mundo. „ A

trabalhar‟, emendou Jano. „ Foi isso que o Macau fez‟. Mundo murmurou para mim:

„ Pensa que eu sou um idiota, ele é louco, duas vezes doente.( HATOUM, 2005, p.

63-64)

Existe, então, uma incompatibilidade de valores entre pai e filho. Para Mundo a

ostentação do luxo, o modo como os empregados bajulavam o pai, a decoração de sua casa

eram desprezíveis, isto é, ele tinha aversão e repulsa não só pela casa da Vila Amazônia, mas

também pela companhia do pai:

Na noite da chegada, Mundo me acordou para dizer que havia encontrado um índio

velho e doente. Um artista. Acendeu a luz e mostrou uma pintura em casca fina e

fibrosa de madeira: cores fortes e o contorno diluído de uma ave agônica. Tirou da

parede os quadros, os enfiou debaixo da cama e num dos pregos pendurou o obra do

índio. Disse que aquelas imagens em fundo preto tinham provocado pesadelos em

sua infância. Aliás, tudo naquela casa era detestável: o ambiente, a decoração

pretensiosa, as cadeiras de espaldar alto, as toalhas vermelhas de Alcobaça, a

bajulação das empregadas. “Nem vou entrar na sala, Lavo. Tu podes ficar grudado

no homem... ele não vai te morder. (HATOUM, 2005, p. 69, grifos nossos)

Nota-se, na cena, que Mundo estava envolvido em um tumulto modal, o que se

dá pela oposição entre o querer e o não poder-fazer, pois é era movido pelo desejo de queria

que o filho seguisse realizar suas obras artísticas, mas sabe que não pode, porque o pai não o

apoiava e quer que o filho siga outro caminho. Isso também se revela no momento em que

Mundo foi para os festejos em Parintins, e Lavo transmitiu a notícia para o pai do amigo: “

„Visitamos o galpão do Boi Vermelho. Ele ficou por lá, trabalhando.‟ ”(HATOUM, 2005, p.

77). Mundo, movido por uma incompatibilidade modal, foi levado ao descontentamento

frente ao sujeito do poder (Jano), que, no papel temático de pai, deveria apoiar o filho, mas

desejou impor-lhe uma vida pautada por valores pragmáticos, o que Mundo não aceita

aceitava. Tudo fez para negar esses valores.

Jano revelou-se, ainda, um sujeito passional, movido também pela paixão do

poder. Um empresário com um poder aquisitivo elevado, dotado de estabilidade, em sintonia

com os valores do sistema político da época, era um sujeito que tinha por desejo querer-fazer

59

de seu filho sua “propriedade”. O sujeito passional encarava seu filho como um objeto, ou

melhor, achava-se no direito de se apropriar de seus desejos e, ao mesmo tempo, queria

exercer sobre ele seu domínio. Entretanto, Mundo não aceitava o poder do pai.

O tormento por ter de permanecer na propriedade de Jano era algo insuportável

para Mundo, que buscou juntar-se ao povo em Parintins, nos festejos do Boi- bumbá, como

alternativa para permanecer na Vila Amazônia. Mas, por imposição de Jano, Mundo deveria

comparecer ao jantar no último dia de estadia na propriedade, o que não aconteceu. Isso

provocou em Jano um sentimento de revolta, ódio, pois o filho desobedeceu a ele:

O nervoso, a ânsia ou o ódio que vi no rosto de Jano quando entrou no quarto do

filho! Pisou na roupa suja embolada no chão, abriu as janelas, apanhou as folhas de

papel espalhadas sobre a cama, observou os desenhos franzindo a testa: „olha a arte

do teu amigo”. Eram desenhos a lápis das casinhas de Okayama Ken, do armazém e

do casarão. Fachadas e perspectivas.No rodapé de cada folha estava escrito:‟

Propriedade do imperador Trajano‟. Devolvi as folhas, que ele rasgou uma por uma;

foi até a parede, arrancou a pintura do Nilo e a furou com uma caneta.(HATOUM,

2005, p. 79)

Percebemos que Jano, nesse excerto, demonstra seu estado colérico devido à

fuga de Mundo. O estado de agressividade do pai de Mundo decorreu do descumprimento do

filho em relação ao último jantar na propriedade. Jano estava dominado por um estado de

espera e confiança de que o filho iria comparecer ao jantar conforme ele tinha imposto. Mas,

Mundo não cumpriu a promessa. Desse modo, a agressividade de Jano se manifestou pela

destruição dos desenhos de Mundo que estavam em seu quarto na Vila Amazônia.

Mundo, então, fugiu para ir embora sozinho para Manaus, não quer ter a

companhia do pai para a volta, pois o considerava desprezível. Dotado de insatisfação, pela

não realização de seu contrato – achava que Jano deveria apoiá-lo em sua arte –levou a tal

ponto seu descontentamento que chegou a desejar a morte do próprio pai. “Chorei tanto que

parecia que meu pai estava mesmo morrendo. E queria muito que a mentira fosse verdade”,

disse com a voz mansa, nenhum sinal de remorso (HATOUM, 2005, p. 90). Nota-se que o

sujeito era motivado por um sentimento de repulsa contra o pai, gerado por sua dor por

entender que o Jano nunca transformaria sua visão de mundo.

A partir daí houve uma sucessão de desentendimentos entre eles que eclodiu

em outras cenas de explosão da cólera de Mundo. A fase do descontentamento inicia-se

quando Mundo aceita estudar no colégio militar, como era a vontade paterna, mas isso se dá

ao nível do parecer, pois ele estava marcado pelo desejo de vingança. Isso se revela quando

ele relata seus planos a Lavo: “ „Vou estudar e morar no colégio militar‟. [...] „Não quero

60

fugir. Agora quero ir até o fim‟. [...] „O fim da vida... da minha ou da dele. Não é a aposta que

ele quer fazer?‟ ”. (HATOUM, 2005, p. 123). A surra que recebeu do pai foi o estopim para

alimentar ainda mais a desavença com Jano. E a presença da cicatriz deixada pela surra do

cinturão pode ser considerada, também, o alimento de sua raiva pelo pai, uma vez que passou

a ser uma marca presente em seu corpo, que sempre lhe trazia à lembrança a agressão paterna:

Ele não comentava o cotidiano do colégio nem os rigores da disciplina e dos

treinamentos, mas, quando tomava banho no igarapé, víamos arranhões e marcas de

ferimentos nos braços, pernas e ombros; no entanto, a cicatriz deixada pelo cinturão

do pai era mais visível e estúrdia. Mundo passava a mão no pescoço, para ter

certeza de que ela ainda estava ali.(HATOUM, 2005,p. 128, grifos nossos)

A figura da cicatriz, portanto, é a concretização de todas as marcas de

agressões operadas pelo pai em Mundo, não só da surra. A raiva de Mundo foi se acumulando

em seu interior e pode ser considerada da ordem da extensidade. O advérbio “ainda”, na cena

acima, revela a duratividade dessa raiva. É como se ao tocá-la, Mundo revivesse todas as

ofensas, a falta de carinho, a indiferença que o pai demonstrava por ele e pelos seus fazeres.

Daí, a necessidade de tocá-la: “passava a mão no pescoço, para ter certeza de que ela ainda

estava ali”.

Já a etapa da agressividade, no percurso canônico da cólera, pode ser

considerada aquela em que Mundo chegou exaltado em casa depois que prenderam Ranulfo.

Percebemos que todo o acúmulo de ofensas, recebidas do pai, eclodiu na explosão da cólera

quando prenderam tio Ran.

Ranulfo era ajudante de Mundo na confecção da obra“ Campo de cruzes”.

Mundo relembra, pois, fatos passados demonstrando todo seu ressentimento e raiva. Era como

se revivesse naquele momento tudo o que já sofrera, remoendo as ofensas pelas quais fora

atingido. Nesse momento, Mundo recorda-se do episódio em que levara uma surra do pai, e o

ato de ser trancado no porão: “Porque não tiras o cinturão agora? Por que não me trancas no

porão?”(HATOUM, 2003, p. 198). É como se fosse “um acerto de contas” que Mundo quer

ter com Jano.

A cena anterior a esse fato se dá no momento em que Lavo havia entrado na

casa do amigo e percebeu a reação de raiva de Mundo. Mundo, então, quis fazer um acerto

de contas com o pai, devido a toda humilhação que ele o fez passar, além do fato de ter

mostrado desprezo, indiferença diante de seus desenhos.

O ponto culminante da explosão da cólera dá-se, assim, depois que Mundo

agridira o pai e o viu caído na sala, após tê-lo empurrado ao chão:

61

O portão da casa de Jano estava aberto, passei sob o caramanchão, e na varanda ouvi

gritos e latidos. Quando entrei na sala, vi primeiro Mundo dizendo para o pai: „Por

que não tiras o cinturão agora? Por que não me trancas no porão?‟. Em pé, as mãos

espalmadas no peito, Jano começou a recuar quando o filho avançou para cima dele”

(HATOUM, 2005, p. 198).

Lavo chegara à casa do amigo e tentou impedir que ele continuasse o ataque

“[...] antes que eu pudesse segurar Mundo pela cintura, ele cravou as mãos na camisa do pai e

o empurrou com violência” (HATOUM, 2005, p. 198). Mundo só teve consciência do seu

estado de cólera quando vê o pai caído no chão da sala. “Com um solavanco, se desgarrou e

saiu devagar, olhando para o chão da sala, onde tombara o pai”. (HATOUM, 2005, p. 199).

Notamos que a explosão da cólera de Mundo se deu por meio da agressão

física ao pai. Jano também demonstrara os mesmos sentimentos negativos, raiva, fúria,

decepção. Podemos concluir que a agressividade se tornara um circulo vicioso, na relação

entre eles: o pai agredia o filho e o filho, consequentemente, agredia o pai.

4.4 AS EXPLOSÕES DE AGRESSIVIDADE E CÓLERA RECÍPROCAS: UM CÍRCULO

VICIOSO

A narrativa do romance por não ser linear, faz com que retomemos cenas que

antecedem a agressão do filho a Jano. Assim, devemos destacar o momento em que Jano

revelou seu estado de satisfação ao ver Mundo no desfile do aniversário do governo militar.

Assim, fica pressuposto seu estado de confiança em Mundo: Jano tinha a convicção de que o

filho concordara em estudar no colégio militar de modo pacífico, sem nenhuma rebeldia.

Estabelece-se, então, uma forma de contrato narrativo, em que o acontecimento é modalizado

pelo “dever-ser”, o filho deveria estar se comportando como o pai esperava.

A fase da espera pode ser considerada a que ocorreu no momento em que Jano

se mostrou preocupado com a doença que o filho tivera, pois poderia prejudicá-lo no

desempenho no colégio militar. Jano demonstrou sua apreensão ao conversar com o médico:

“Fora do quarto, Jano fez mais algumas perguntas sobre a infecção e pediu ao médico que

assinasse um atestado: o filho ia perder muitas aulas, isso podia prejudicá-lo”. (HATOUM,

2005, p. 133). Quando percebeu que Lavo acabara de visitar o amigo, Jano perguntou a ele

como Mundo estava, Lavo disse que ele havia melhorado. Jano sentiu, então, que a doença do

62

filho era passageira, que tal fato não impediria sua confiança e espera de que o filho iria

adequar-se ao colégio: “„ Essa infecção é uma fraqueza, logo passa. De agora em diante meu

filho vai colecionar atos de bravura.”(HATOUM, 2005, p. 135).

Nota-se que o pai imaginava que Mundo estivesse cumprindo o contrato

estabelecido com ele, mas o filho revelou seu descontentamento em relação ao tratamento

militar a que era submetido, e expôs sua revolta no momento em que encontrou seu amigo: “ „

Foi ele, eu sei... Deu ordem para eu ficar sozinho; todos me abandonaram, e eu fiquei mais de

vinte horas perdido na selva‟ ”. (HATOUM, 2005, p. 140). O rigor do colégio é observado por

Lavo, pelas marcas presentes no corpo de Mundo, figuras que revelam os rigores da disciplina

militar: “[...] quando tomava banho no igarapé, víamos arranhões e marcas de ferimentos nos

braços, pernas e ombros [...] (HATOUM, 2005, p. 128).

É importante ressaltar, ainda, que a confiança, a espera de Jano em relação aos

fazeres de Mundo, como estudante do colégio militar, levaram-no provavelmente à

frustração, quando o filho resolveu realizar a obra de arte intitulada Campo de cruzes. Essa

instalação consistia na colocação de cruzes de madeira num campo, perto das casas dos

moradores da periferia, no conjunto habitacional o Novo Eldorado. Mundo foi auxiliado por

Ranulfo e cobriram-na com panos pretos, ateando fogo a elas. Desse modo, Mundo queria

demonstrar que os moradores daquele local eram tratados como indigentes pelo governo, pois

foram retirados das proximidades do porto de Manaus e deslocados para a periferia onde não

havia condições dignas de sobrevivência. Era um conjunto mal construído, como o próprio

Lavo atesta: “Ele detestava o projeto das casinhas populares. “ „Toca de bichos‟,

dizia”.(HATOUM, 2005, p. 210). E a mesma condição é atestada pelo narrador, ao escutar

as reclamações de um dos moradores: “ Reclamou do Novo Eldorado: faltava água e luz, o

banheiro não tinha fossa, os moradores jogavam o lixo perto da mata, aí os bichos vinham

comer naquele chiqueiro.”( HATOUM, 2005, p. 178). Assim, percebe-se que os moradores

sofriam com os problemas de saneamento básico.

Mundo, modalizado pelo querer-fazer e atualizado pelo poder-fazer, soube

realizar a obra, uma instalação, e teve a habilidade para realizá-la. O motivo que leva Mundo

a tomar tal atitude decorreu da sensibilidade frente aos problemas dos moradores. O filho de

Jano conhecia a família de seu amigo, o Cará, que passou a viver no novo bairro, sabia que o

amigo de Jano, o prefeito Zanda, iria inaugurar o conjunto habitacional, percebeu as

condições miseráveis do lugar, e escolheu ali instalar sua obra, como forma de protesto:

63

Visitara as casinhas inacabadas do Novo Eldorado, andara pelas ruas enlameadas.

Casinhas sem fossa, um fedor medonho. Os moradores reclamavam: tinham que

pagar para morar mal, longe do centro, longe de tudo... Queriam voltar para perto do

rio. Alguns haviam trazido canoas, remos, malhadeiras, arpões; a cozinha, um

cubículo quente; por isso, levavam o fogareiro para a rua de terra batida e

preparavam a comida ali mesmo. Ele dormiu na casa da família do Cará. O sol da

tarde esquentava as paredes, o quarto era um forno, pior que o dormitório do

internato. Os moradores do Novo Eldorado eram prisioneiros em sua própria cidade.

Isso não justificava a escolha? (HATOUM, 2005, p. 148)

Mundo estava, portanto, modalizado por um poder-fazer, foi competente para

realizar a obra de arte Campo de cruzes, decorrente do desejo de manifestar sua revolta contra

as injustiças do sistema político e, consequentemente, contra o pai, pela relação que tinha com

os militares. Ele levou seu projeto adiante com a ajuda de Ranulfo, tio de Lavo. A partir daí,

instaurou-se novamente a frustração, decepção de Jano com o filho.

A frustração de Jano ocorreu quando foi informado pelo próprio prefeito Zanda

sobre a façanha de Mundo. Todo o seu sonho de ver o filho formado no colégio militar caiu

por terra, pois, após da instalação da obra, Mundo foi expulso do colégio.

Decepcionado com o ocorrido, Jano temia o encontro com o diretor do colégio

que ainda lhe mostrou o boletim do filho, reprovado em quase todas as disciplinas. O mais

chocante para Jano foi o filho enganar o diretor do colégio para sair e preparar a obra de arte:

Então Jano ficou sabendo que Mundo enganara todos, inclusive o diretor. Levara

uma carta do pai, com a assinatura falsificada e tudo, em que solicitava uma licença

de duas semanas para o filho, que o acompanharia numa viagem ao Rio de Janeiro.

O militar descobriu um novelo de mentiras, todas aludindo à doença de Jano; soube

que Mundo havia protestado com palavras subversivas contra a morte acidental de

um aluno durante um estágio de sobrevivência na selva e que às sextas-feiras pedia

permissão para ir visitar o pai, que estava hospitalizado. Jano viu e assinou o último

boletim de Mundo: praticamente reprovado - não receberia o diploma. Além disso, a

evasão ou fuga do colégio era uma grave transgressão disciplinar. Mais grave ainda

era a insubordinação. Como podia? Um estudante incitar todo um bairro contra o

prefeito, um oficial das Forças Armadas. [...]. O coronel citou a Lei de Ensino do

Exército: o caso fora submetido ao Comando Militar da Amazônia, que decidira

expulsar Mundo. (HATOUM, 2005, p. 185)

Jano, dominado pelo descontentamento, confrontou aquilo que esperava- ver o

filho formado - com o que obteve - o filho reprovado, sem diploma, expulso do colégio. O pai

é tomado pela agressividade, que se volta contra aquele que não cumpriu o combinado, isto é,

não honrou a promessa, mesmo que fosse imaginária. O pai passou a considerá-lo, naquele

momento, um delinquente: „ Ele já não é um menino‟, disse a voz rouca de Jano. „ é um

homem... um delinquente”( HATOUM, 2005, p. 185).

64

A explosão da cólera se deu no momento em que Jano viu a foto do filho

estampada no jornal. De modo calculista, disse para a empregada ir à padaria com o intuito de

que saísse da casa, e foi para o quarto de Mundo, pegou suas obras, suas coisas e fez com que

Macau as levasse para a quadra do palacete: “ A quadra estava coberta de cinzas, folhas de

papel e trapos chamuscados se espalhavam pelo quintal”( HATOUM, 2005, p. 186). Os

objetos de Mundo, que terminaram em cinzas, representaram o começo e o fim: o fim da era

Mattoso, pois depois disso, Jano faleceu, e Mundo foi em busca de seus sonhos, isto é, tentou

recomeçar sua vida, procurando se libertar da figura opressora do pai, no Rio de Janeiro, para

onde partiu com Alícia.

Percebemos, portanto, nessas cenas, a manifestação da paixão da cólera, assim

como de algumas de suas variantes. Quanto aos elementos do percurso gerativo de sentido é

interessante observar que se apreendem aí as oposições semânticas entre o pragmatismo e o

idealismo, associados respectivamente, em termos de nível narrativo, aos valores dos sujeitos

Jano e Mundo respectivamente. Para Jano o pragmatismo, a riqueza, calcada em bens

materiais são eufóricos, ao passo que para Mundo são disfóricos. Por outro lado, para Jano o

idealismo do filho, relacionado aos objetos de valor artísticos são disfóricos. Isso revela os

diferentes pontos de vista que alicerçam a narrativa e de que trataremos no próximo capítulo.

65

5 ESTRATÉGIAS ENUNCIATIVAS EM CINZAS DO NORTE

Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de

dentro para fora, outra que olha de fora para dentro...

Machado de Assis

5.1 LAVO E MUNDO: A CONSTRUÇÃO DOS ATORES CENTRAIS

O ator Lavo, no papel temático de narrador, revela-se um sujeito competente

para narrar a história, que relata com precisão e paixão, criando a impressão de verdade

humana.

Desde o prefácio10

do livro, percebe-se que o narrador menciona o que vai

relatar em seu livro: a vida de seu amigo e, desse modo, vai ao poucos rememorando sua

própria vida. Retoma, portanto, no presente da enunciação sua história pretérita, mas como se

ainda revivesse intensamente tudo que vivera na juventude ao lado de Mundo:

uns vinte anos depois, a história de Mundo me vem à memória com a força de um

fogo escondido pela infância e pela juventude. Ainda guardo seu caderno com

desenhos e anotações, e os esboços de várias obras inacabadas, feitos no Brasil e na

Europa, na vida à deriva a que se lançou sem medo, como se quisesse se rasgar por

dentro e repetisse a cada minuto a frase que enviou para mim num cartão-postal de

Londres: “ Ou a obediência estúpida ou a revolta”(HATOUM, 2005, p. 9-10, grifos

nossos).

Temos, nesse excerto, a presença, primeiramente, de uma debreagem temporal

enunciativa “uns vinte anos depois”, marcando o momento da enunciação, marcado

nostalgicamente, pela lembrança de história de Mundo. Lavo metaforiza essa recordação pela

figura do “fogo”, como se, no presente, se reascendessem os fatos acontecidos no pretérito.

No entanto, observamos que Lavo já demonstrava ser um sujeito cognitivo,

tinha a consciência de que o amigo fora em busca de tudo o que desejava “sem medo”. Assim,

fica implícito que sua admiração pela figura audaz de Mundo, cuja história marcou sua vida,

deveu-se ao fato de não este ser movido pela paixão do medo.

Mundo é pelo amigo caracterizado como um sujeito alheio a qualquer tipo de

disciplina, ele manifesta-se um sujeito destemido, ao contrário de Lavo, um sujeito pautado

10

Nota-se que o prefácio trata-se da construção narrativa do narrador e não do autor.

66

pela obediência. As características de Mundo que lhe voltam à memória e justificam o relato

levam-nos a perceber que o sujeito herói da história levou uma vida “à deriva”, “como se

quisesse se rasgar por dentro e repetisse a cada minuto a frase que enviou para mim num

cartão postal de Londres: „Ou a obediência estúpida ou a revolta‟ ” (HATOUM, 2005, p. 10) .

Subentende-se, por sua vez, que Lavo parece ter sido passivo diante dos fatos da vida,

enquanto Mundo foi um sujeito movido pela paixão.

Logo, no início da narrativa, Lavo relata como conhecera Mundo, o amigo

desenhava um pequeno barco, na praça São Sebastião imitando a figura de uma nau de

bronze que estava no local . O desenho de Mundo era assim: “[...] um barquinho torto e

esquisito no meio de um mar escuro que podia ser o rio Negro ou o Amazonas. Além do mar

uma faixa branca” (HATOUM, 2005, p. 12).

O narrador faz também referência à primeira vez em que vê Mundo e nota

certos privilégios que possuía:

Antes de conviver com Mundo no ginásio Pedro II, eu o vi uma vez no centro da

praça São Sebastião: magricelo, cabeça raspada.[...] No começo ele foi apenas um

colega de sala. Esquivo o mais estranho de todos, e dono de certas regalias. Nas

manhãs chuvosas, um DKW preto vinha pela Rui Barbosa e estacionava no pátio

lateral. (HATOUM, 2005, p. 13)

Percebemos que por meio de um dispositivo de ancoragem espacial,

figurativizado pela “praça São Sebastião” , “ Ginásio Pedro II”, o enunciador quer mostrar,

por meio da ótica do sujeito narrador, que os lugares dão efeito de veracidade ao espaço em

que se processa a história, que não são, assim, meros ornamentos. Além disso, ao relatar que

Mundo era “esquivo o mais estranho de todos, e dono de certas regalias”, no papel de sujeito

observador, Lavo manifesta seu juízo de valor, ou melhor, a percepção que teve do

comportamento de Mundo. Já ao declarar que Mundo tinha “certas regalias”, objetiva levar-

nos a perceber que o filho de Jano não era um aluno comum: o fato que o diferenciava de

muitos era sua condição social superior aos demais alunos.

Além da amizade que unia ambos, Lavo deixa explícito ser um sujeito

movido pela admiração também por Alícia, mãe de Mundo, desde criança, por ela se revelar

uma figura sensual. A descrição da fisionomia de Alícia foi feita por Lavo de modo detalhado

quando Mundo começou a frequentar o Pedro II, o mesmo colégio em que ele estudava:

67

[...] a mulher reapareceu, sozinha, o cabelo ondulado úmido; a blusa de seda,

molhada, provocou assobios dos veteranos. A morena de cerca de trinta anos desceu

com pressa a escadaria; na calçada, abriu a sombrinha e aproximou o rosto das

grades de ferro. Viu-me encostado a uma coluna e me chamou: era um absurdo eu

não ir visitá-la, mas agora em diante eu não teria mais desculpas, seu filho ia estudar

no Pedro II”.(HATOUM, 2005,p. 13) .

Quando Lavo se encontrou com Alícia, ele a descreveu de modo especial,

manifestando admiração por sua sensualidade: “Vi o rosto maquiado de Alícia, senti sua mão

espanar meu cabelo, os dedos perfumados roçarem meus lábios, e ouvi a voz dizer: „Como

está grandinho, é a cara da mãe‟. Inclinou-se, me deu um beijo no canto da boca e se

aprumou, repetindo: „ A cara da Raimunda‟” (HATOUM, 2005, p. 25).

Lavo passa a assumir também o papel de um sujeito coletivo pelo uso do

pronome “nós” quando relata como a figura de Mundo passou a provocar estranhamento para

o grupo de alunos da escola de que ele fazia parte: “ Nós o víamos rondar o coreto da praça

das Acácias[...]”(HATOUM, 2005,p. 14). Por sua vez , ao observar , características de Mundo

como: Ele usava uma meia de cada cor, arregaçava as mangas, não polia a fivela do cinturão”

, revela que o modo de ser do colega fugia aos padrões de disciplina do colégio, o que fazia

com que o bedel o repreendesse: “Bombom o barrava e ameaçava: preguiçoso, displicente,

pensava que filhote de papai tinha vez ali? Mundo não respondia: sentava atrás da última fila,

isolado, perto da janela aberta para a praça. (HATOUM, 2003, p. 14).

O mecanismo da debreagem interna é marcado, nesta passagem, pela

reprodução da fala que o enunciador faz do Bombom ao ameaçar Mundo por seu desleixo

com as vestimentas do colégio, criando-se, assim, o efeito de sentido de verdade.

Nos excertos a seguir o narrador revela-nos não só a indisciplina de Mundo,

que não se enquadrava às normas do colégio, mas também a admiração pela sua competência

e paixão pelo desenho, pelas artes, além de sua inteligência, na medida em que era capaz de

exercer sua paixão e, ao mesmo tempo, realizar o que dele era exigido: “No silêncio nervoso

de uma prova de matemática, ouvíamos o ruído da ponta do lápis no papel, rabiscando seres e

objetos; mesmo assim, ele respondia às questões, e era o primeiro a terminar a prova.

(HATOUM, 2005, p. 14).

Por outro lado, ao relatar a presença constante da mãe de Mundo na escola do

filho: “Ela ainda apareceu duas ou três vezes com o filho: chegavam abraçados, no portão se

despediam com beijos e afagos; ele subia a escada virando o rosto para a mãe, e a cada degrau

seu sofrimento parecia aumentar. (HATOUM, 2005, p. 16), Lavo revela-nos tanto a ligação

68

afetiva que existia entre eles, como o estado de sofrimento de Mundo por ter de se submeter à

rigidez da escola.

No transcorrer da narrativa, Lavo e Mundo tornam-se amigos, e o primeiro

descobre a existência de outro amigo de Mundo, ao segui-lo até a casa de Arana:

[...] eu observava o casario baixo e colorido do antigo bairro dos Tocos, na

Aparecida. Mundo estava perto da igreja, diante de um gradil enferrujado que

vedava o acesso a uma casa abandonada. [...] Curvou-se, pôs a mão entre as barras

de ferro e ficou assim por uns segundos; [...] Depois Mundo enfiou por uma

quebrada e foi sair no beco da Indústria; só o alcancei num terreno baldio, entre um

estaleiro e uma serraria, perto do igarapé de São Vicente . Olhava para todos os

lados, como se alguém o vigiasse [...] Fui de canoa até o flutuante [...] o catraieiro

assobiou para um gorducho baixote, só de calção, e bateu no meu ombro: “Luti, esse

rapaz, quer ir atrás daquele cara invocado‟. „O Raimundo? ‟, perguntou o outro. A

canoa de Mundo já havia desaparecido. Luti remou com rapidez no Negro, embicou

para a margem direita esperou acalmar o banzeiro de um barco recreio. Quando

tinha conhecido o meu amigo? „Isso de uns dois ou três anos... Ele levava uma

sacola cheia de papel. Diz que ia ver um artista, o mestre dele. [...] A canoa de

Mundo estava emborcada na terra. [...] Mundo, fardado, apareceu na varanda e

caminhou com passos vagarosos em nossa direção. Reconheceu Luti e logo me

perguntou: „Meu pai sabe?‟ Um assobio fraco veio de algum lugar do jardim. O

olhar de Mundo varria as margens do rio à procura de alguém. „ Foi Jano que te

falou do ateliê?‟ „Ninguém falou nada. Eu te vi na Aparecida, e o Luti me trouxe até

aqui. ‟[...] Um assobio mais nítido, e então surgiu um homem alto e descabelado,

feições arrendondadas, olhos miúdos. Descalço só de bermuda, mãos amarelas de

serragem. Abriu os braços num gesto exagerado, me abraçou e disse com voz grave:

„Deves ser o amigo de Mundo, não é? Vamos entrar. Mais um jovem no ateliê do

Arana.(HATOUM, 2005, p. 39-41)

Ao conhecer Arana, Lavo descobre que já ouvira falar dele, Jano, criara dele

uma imagem negativa ao comentar sobre o pintor, no momento em que levou Lavo para seu

escritório com o intuito que este pudesse persuadir Mundo a ter relações com mulheres, com o

intuito de desvinculá-lo de seu foco que era somente a arte: “Um vagabundo. Um pintor de

trambolhos sem pé nem cabeça.”(HATOUM, 2005, p. 36). Veremos, agora, como Lavo

descobre o “amigo de Mundo”.

Nesse momento, Lavo, como um sujeito observador das atitudes de Mundo e

de seu comportamento, quer descobrir quem era realmente o pintor em que Mundo depositava

confiança, uma vez que Jano não queria a proximidade do filho com o pintor.

Na sequência da cena, depois de cumprimentos e informalidades, além de um

presente que ganhara do artista, Lavo descreve a impressão que teve de Arana:

Percebi que não gostava do meu gesto. Abraçara-me, me dera um presente, se

esforçara para agradar, mas senti nesse primeiro encontro uma ponta de hostilidade,

ou antipatia mútua. Talvez fosse impressão falsa, pensei, vestígio das palavras de

Jano (HATOUM, 2005, p. 43).

69

Percebemos que Lavo tivera antipatia por Arana. A figura “hostilidade”

demonstra que o ele projeta no enunciado, possíveis marcas de conflito entre eles. Mas, o que

o incomodava era a afinidade de Mundo com o artista.

Ao saírem do ateliê, depois que eles chegaram à cidade, Mundo convidou seu

amigo para o aniversário do pai. Lavo observa que a casa do amigo era um palacete, e não

uma casa qualquer: “Carros estacionados nas duas ruas, e o palacete iluminado” (HATOUM,

2005, p. 46). Em seu relato, Lavo ressalta o desenho do bolo do aniversário, por meio de um

processo de ancoragem que não só revela um efeito de verdade, mas ainda tematiza a riqueza

e a nobreza da família do amigo:

No centro da mesa um bolo confeitado, miniatura do palacete da família Mattoso,

cercado por uma coroa de velas vermelhas e verdes. Mundo entrou na minha frente,

cumprimentou o pai e foi logo beijar Alícia. Dei os parabéns a Jano e segui os

passos do meu amigo, vários rostos nos encaravam, e alguns focaram o corpo de

Mundo. ”(HATOUM, 2005, p. 46-47)

O bolo figurativizado como a miniatura do palacete tem na sua simbologia

também, a ostentação e o luxo. A definição que Chevalier e Greerbrant (2007, p. 678), dão

para palácio é pertinente para palacete: local grandioso, que enfatiza o poder, fortuna e

também se relaciona ao segredo, o que será comprovado no final da história.

Outra cena importante é o momento em que Mundo e Lavo foram para a Vila

Amazônia, propriedade da família Mattoso, lugar da plantação de juta, principal matéria-

prima que Jano exportava. No caminho em direção ao lugar, Lavo descreve a grandiosidade

da figura da embarcação: “O Saracura era um dos iates mais luxuosos de Manaus: casco de

alumínio, seis camarotes com banheiro e uma saleta com ar condicionado; uma escadinha

interna conduzia à cabine de comando”(HATOUM, 2005, 61)”. Assim, o iate reitera a

isotopia figurativa relacionada ao tema da riqueza da família de Mundo.

Na cabine do iate Jano demostrou sua imponência ao apertar a buzina: “Na

cabine, Jano buzinou: um som grave, demorado, atraiu moradores da Baixa de Égua, que

apareciam nas janelas e portas acenavam para nós”. (HATOUM, 2005, p. 61). Tal fato fez

com que Mundo fosse irritado, como o narrador mostra: “Descaiu a cabeça e tapou os

ouvidos, até silenciar o berro da buzina” (HATOUM, 2005, p. 61).

70

O descontentamento de Mundo com a buzina revela seu descontentamento

com o poder econômico do pai, e sua necessidade de ostentá-lo, desse modo, o que fazia com

que os pobres reverenciassem a chegada deles ao lugar.

Quando estavam navegando no rio, encontram um barco com problemas no

motor, nele estavam os militares, amigos de Jano que faziam uma festinha com garotas de

programa. Aquiles Zanda convidou o pai de Mundo para participar da festa. Jano não aceitou,

mas Mundo, sem cerimônia, passou para o barco e desfrutou da companhia de uma das

meninas. Lavo observa como Jano ficou admirado com a atitude do filho:

Jano presenciou a cena com que sonhava: o filho grudado ao corpo de uma moça;

dançavam agarrados, de olhos fechados, as mãos de Mundo acariciando o pescoço,

os ombros da garota. [...] Jano suportou, feliz, o som alto da música e o cheiro de

óleo queimado. Sorria apalermado para mim, como se eu fosse cúmplice, sem

conseguir ver na esbórnia uma provocação alucinada. ”(HATOUM, 2005, p. 66).

Lavo, por sua vez, como sujeito observador e cognitivo percebe que o modo

como Jano via a cena era uma ilusão, na verdade não conseguia enxergar uma provocação que

Mundo queria fazer com os presentes ali: “Sorria apalermado para mim, como se eu fosse

cúmplice, sem conseguir ver na esbórnia uma provocação alucinada” (HATOUM, 2005, p.

66), pois Mundo já demonstrara aversão pelos militares, e sua atitude era apenas provocação

contra eles, o que logo a seguir se evidencia pela forma como o militar reagiu às suas atitudes,

isto é, quer mostrar para ele que estava exagerando:

O tenente Galvo segurou com força os braços de Mundo: „Não é assim que se

brinca, rapaz‟. „As putas gostam‟, gritou Mundo, arrotando na cara dele. Eu e Macau

o arrastamos para o iate, enquanto ele berrava: „ As putas, vocês e as putas...‟.(

HATOUM, 2005, p. 67)

Quando chegaram à propriedade do pai do amigo, a Vila Amazônia, Lavo

notou que Mundo se compadecera com a morte de um índio que morava na propriedade. Ele

admirava as obras do índio: “[...] pintura em casca fina e fibrosa de madeira: cores fortes e o

contorno diluído de uma ave agônica”(HATOUM, 2005, p. 69). No futuro, quando Mundo

está na Europa, prestou-lhe uma homenagem ao fazer uma pintura com sua figura e se referiu

ao índio como artista:

Anos depois, recebi da Alemanha uma pequena pintura em chapa de alumínio, com

uma cópia ao lado, em papel. Na cópia, o rosto tinha uma expressão: uma face se

esfumara, e nela se formaram cavidades. O título da obra: O artista deitado na rede

.(HATOUM, 2005, p. 73,grifo do autor)

71

Para Mundo o que se relacionava à arte era motivo de interesse, já para Lavo

percebemos que estar na Vila Amazônia, representava um desejo de um sujeito que tinha

curiosidade em conhecer o lugar que sempre lhe fora descrito como suntuoso. Jano lhe fizera

o convite, mas com um tom de imposição: “ „Em janeiro vamos para a Vila Amazônia. Tu

vais conosco‟, disse como se fosse uma ordem ou uma convocação” (HATOUM, 2005, p.

50).

Vila Amazônia... o nome e o lugar sempre me atraíram.[...]. Tio Ran dizia que era

uma propriedade grandiosa, perto de Parintins, na margem do rio Amazonas: um

casarão com piscina no alto de um barraco, de onde se avistavam ilhas imensas que

pareciam continente, como o Tupinambarana. (HATOUM, 2005, p. 55, grifos

nossos)

Percebemos que as figuras “propriedade grandiosa”, “casarão” “ alto do

barranco”, evidenciam o poder econômico da família. A disposição da altura da propriedade

marca a elevação do lugar que se harmoniza com a posição social da família de Mundo, a dos

mais abastados.

No alto de um barranco, um casarão cinzento, erguido sobre arcos sólidos, dava para

o rio Amazonas e a ilha do Espírito Santo; Jano, de braços abertos na proa,

respondia aos acenos das empregadas. Tinha a estatura de um pequeno deus, a

confiança de um ídolo. (HATOUM, 2005, p. 67-68, grifos nossos)

Quando entra realmente em contato com o lugar de que apenas tinha uma breve

noção, a utilização da figura “no alto de um barranco” revela que o enunciador, observador,

por meio do foco de observação de Lavo representa o “alto” como metáfora da superioridade,

já como um ator-participante nas palavras de Fontanille, apud Bertrand (2003, p. 125).

As figuras “estatura de um pequeno deus”, a confiança de um ídolo” se

relacionam ao modo como Lavo foi construindo seu saber, pela perspectiva por meio da qual

observa, isto é, “ o saber do observador é definido pela assunção da verdade que vê: a

composição de um mundo prévio e sabiamente ordenado”( BERTRAND, 2003, p. 130).

Desse modo, Lavo queria revelar a posição social de Jano, homem rico que se sentia superior

diante se seus empregados.

Se a focalização é o dispositivo por meio do qual o enunciador delega o saber

ao narrador, para revelar não só as ações como também os sentimentos dos outros sujeitos

que compõem a história, Lavo é dotado para tal competência.

72

Na cena em que Jano faleceu, Lavo descreveu seus últimos suspiros de vida. E

também a tristeza do animal de estimação ao ver seu dono desfalecido:

Carreguei Jano até o sofá. Os olhos entreabertos, virados para o teto, me assustaram.

Chumaços de algodão, um frasco de álcool e duas ampolas quebradas sobre a mesa

de centro. Subi até os quartos. Ninguém. Procurei Macau nos fundos da casa, não vi

o DKW. Quando voltei, Fogo farejava a cabeça do dono. Gemeu, erguendo os olhos

amarelos e murchos para mim. Peguei o pulso de Jano e senti uma palpitação fraca,

demorada. Não sei quanto tempo fiquei ali, ouvindo ganidos, perto dos dois: quatro

olhos que já não se encontravam. (HATOUM, 2005, p. 199)

Por meio de debreagens e ancoragens temporais o enunciatário tem ilusão de

quando ocorre o sepultamento de Jano. A figura “era 25 de dezembro”, cria o efeito de

realidade para mostrar realmente quando Jano foi enterrado:

Quando amanheceu, a chuva grossa alagava a servidão e respingava no quarto. Era

25 de dezembro. Fui até a saleta e cobri com o plástico as costuras e os moldes. A

laje do teto da cozinha vedava a água. Armei a rede ali e adormeci na feia manhã em

que Jano descia. (HATOUM, 2005, p. 207, grifos nossos)”.

O enunciador evidencia a riqueza da família pelo modo detalhado como o

sujeito observador a descreve, demonstrará do mesmo modo, a sua decadência: “Parecia que

toda uma época se deitara para sempre” (HATOUM, 2005, p. 199). A partir desse momento,

ele passa a relatar toda a decadência da família que se inicia a partir da morte de Jano.

Percebemos que se o enunciador projeta no enunciado, um sujeito observador deslumbrado

com a riqueza da família, figurativizada pela sala a qual descreve, será a mesma sala que

revelará o outro extremo, o da decadência da família:

O palacete de Jano já estava destelhado, janelas e portas arrancadas. Vi pela última

vez a A glorificação das belas-artes na Amazônia no teto da sala: com cortes de

formão e marteladas os operários a destruíram o estuque caiu e se espatifou como

uma casca de ovo; no assoalho se espalharem cacos de musas, cavaletes e liras, que

os homens variam, ensacavam e jogavam no jardim cheio de entulho; pedi a um

demolidor um pedaço da pintura com o desenho de um pincel. „ pode levar todo esse

lixo‟, disse ele, tossindo na poeira( HATOUM, 2005, p. 225, grifos do autor)

Lavo como sujeito observador foi gradativamente relatando as transformações

da família: da riqueza à pobreza, bem como o modo como viviam. Por meio de sua ótica, ele

conduzia o leitor a compreender quais eram os conflitos que envolviam a família de Mundo.

73

Outra importante cena para conhecermos de que modo Lavo se instaura como

sujeito observador é aquela em que ele retomou lembranças da forma de vida de Mundo e, de

maneira sutil, revela-se como um sujeito enciumado. Esse fato se comprovado com a

invocação do pronome relativo “quem”: o narrador instala um sujeito, de modo coletivo, isto

é, não só Lavo como também outros invejavam a posição de Mundo quando estudava no

colégio Pedro II e ele era o único que podia ter tais privilégios, o que se marca pelo adjetivo

“só”.

Quem, no ginásio Pedro II e depois no Brasileiro, não o invejava, quando os jornais

publicavam a fotografia dele atrás de Alícia na escada do Constellation, ela com

óculos escuros e um riso de meio palmo no rosto? Mundo era um dos poucos que

podiam estudar alemão com Gustav Dorner ou com Frau Lindemberg, e francês com

a mulher do cônsul da França. E só ele podia pagar pelas aulas particulares de inglês

com Mrs. Holly Hern, numa das chácaras da Vila Municipal. (HATOUM, 2005,p.

93-94, grifo do autor)

Quando Mundo, por imposição do pai, vai estudar no colégio militar, depois de

algum tempo, adoentou-se devido aos treinamentos rígidos a que foi submetido. Lavo, como

bom observador, relata a maneira como Jano tratava o filho ao visitá-lo em sua casa:

No meio da semana Mundo ainda estava pálido e com um pouco de febre. Alícia,

sentada a seu lado, não reagia às palavras mordazes contra Jano; o filho queria voltar

o quanto antes para o internato, não suportava escutar os latidos de Fogo anunciando

a chegada do dono, nem ver um olho cinzento vigiando-o por uma fenda. O olho o

observava do corredor, como se ele fosse um bicho numa jaula. Era tudo que um pai

podia fazer por um filho doente?(HATOUM, 2005, p. 133)

Percebemos que Mundo não suportava o convívio com o pai. O sujeito

narrador deixa clara essa questão ao figurativizar os olhos de Jano11

“olho cinzento vigiando-o

por uma fenda”. Dessa forma, sugere que a relação de Jano com Mundo não era de amor, já

que o pai vivia a vigiá-lo. E em “O olho o observava do corredor, como se fosse um bicho

numa jaula”, está nitidamente marcado como Jano gostaria que o filho se encontrasse, preso

sendo vigiado, sem a possibilidade de uma fuga, isto é, deveria se submeter a tudo que o pai

quisesse.

Ao longo da narrativa notamos que, de maneira gradativa, o sujeito narrador

vai demonstrando que o modo como passou agir, depois de adulto, em determinadas situações

11

Os olhos cinzentos são de Jano como descreve o narrador na primeira vez que o encontra: “O que eu lembro

do primeiro encontro: o cinturão, grosso, cinza-escuro, quase da cor dos olhos.”( HATOUM, 2005, p. 20).

74

passou a se dar à maneira de ser de seu amigo Mundo, que tanto admirava. Assim, já como

estudante de direito, estagiário, seu interesse era pelos casos em que o réu da ditadura militar,

não tinha direito de defesa. Logo, como profissional, passou a interessar justamente pelos

casos dos réus que se insurgiam contra a repressão militar sem medo e, por isso, quando

presos, eram julgados sem direito de defesa:

No fim de outubro ingressei como estagiário no escritório de um professor de direito

penal; interessava- me mais pelos processos julgados sumariamente, à revelia da Lei

e sem qualquer direito de defesa. Eram raros esses crimes aparecerem na imprensa;

eu lia sobre eles nos informes quase clandestinos da Ordem dos Advogados. O lema dos boletins que vinham do Rio era: „Sem medo contra a censura e o arbítrio‟.

Hoje, ao folhear esses papéis velhos, lembro da reação raivosa de Mundo contra o

medo. (HATOUM, 2005, p. 163)

Mundo era destemido, lutava contra o medo, imposto pela ditadura, o que se

nota em protestos no Rio de Janeiro, onde passou a viver com a mãe depois da morte do pai.

E, no momento em que decide construir sua obra de arte “Campo de cruzes”, foi aconselhado

por Ranulfo a adiar um pouco a sua criação, mas não desistiu e demonstra sua impaciência

com o medo que os amigos tinham dos militares. Lavo revela que todos se deixavam

atemorizar apelo sistema repressor, e o amigo, não: “ „ Medo ...‟, repetiu Mundo, com

impaciência. „Só se fala nisso... Toda frase começa com essa palavra. Tanto medo assim,

melhor morrer”.( HATOUM, 2005, p. 165)

Lavo sabia da grande amizade que Mundo tinha por seu tio Ranulfo, e que este

ajudaria seu amigo na execução da obra “Campo de cruzes”. No entanto, não foi capaz de

ajudá-los, porque sabia das consequências que ocorreriam, como uma prisão ou represálias de

Jano. Assim, instala-se como um sujeito observador, alheio a qualquer tipo de atitude, não

como um sujeito do fazer:

Tio Ran olhou para o relógio de depois para mim. Eu sabia por que ele estava

emparedado: prometera a Alícia que ia persuadir Mundo a adiar a execução de sua

obra no Eldorado. Ranulfo não podia atender aos pedidos da mãe e do filho, e esse

dilema o transtornava. (HATOUM, 2005, p. 167)

Ocupado com os estudos dos exames da faculdade, Lavo percebeu o sumiço de

Mundo e Ranulfo. Deu-se conta de que seu tio corria algum perigo pelo sonho que sua tia

Ramira tivera : Ranulfo morto enterrado no morro:

Na semana seguinte, quando me preparava para os exames de direito penal, não vi

nem tio Ran nem meu amigo. Nas madrugadas de estudo, encontrava os olhos

75

cansados de minha tia, o corpo debruçado sobre a máquina. Uma noite, ouvi a voz

abafada: “Sonhei com Ranulfo... enterrado no Morro”.(HATOUM, 2005, p. 172)

Como sujeito cognitivo, sabia que seu tio Ranulfo e Mundo estavam juntos e

que, de certa forma, corriam algum perigo. Então, foi manipulado pelo dever-fazer, ou seja,

procurar ambos. Sua preocupação com Mundo se intensificou, não o encontrava, mas quando

chegou a sua casa, Ramira lhe contou que toda roupa que tinha feito para os empregados de

Jano fora queimada, juntamente com livros e papéis de Mundo. Assim, ele, indiretamente, se

sentiu culpado pelo que tinha acontecido, isto é, como amigo de Mundo, poderia ter impedido

a execução da obra de arte geradora do desatino de Jano:

Ranulfo enterrado no Morro. Não sei por que essas palavras evocaram também meu

amigo. Onde encontrá-los na tarde quase deserta do feriado? Meu tio se pavoneava

de não dormir duas semanas seguidas sob o mesmo teto. Enquanto eu procurava

Mundo, a voz de Ramira crescia na minha imaginação. [...]. Naquele quinze de

Novembro a Castanhola era um corredor de batucadas tristes; Mundo não passara

por ali, nem pelos bares dos Educandos.[...] Voltei à Vila da ópera sem pistas do

meu amigo. Entrei faminto em casa, tia Ramira estava parada perto da mesa: mãos

na cabeça, os dedos enfiados no cabelo, a blusa de seda colada à pele suada. Ao me

ver, apanhou no chão o jornal do dia e o jogou contra mim, como se eu fosse

culpado pela notícia de sua desgraça. Via a foto do rosto de Mundo, e ia ler a

reportagem, quando Ramira desviou minha atenção, dizendo que Macau não queria

deixar o carroceiro entrar na casa de Jano. Aí, ele deu uns gritos, e aquele besta abriu

o portão. Viu um monte de livros e papéis na quadra de cimento. Não entendeu.

Olhou para a varanda da cozinha, e Jano estava lá, de braços cruzados. Ele deu um

envelope para o chofer e cochichou algo. Era o dinheiro da roupa. Macau falou

grosso como o carroceiro, e os dois puseram a roupa em cima dos livros e da

papelada, aí Macau jogou querosene e tocou fogo. A roupa novinha virando cinzas.

(HATOUM, 2005, p. 175-176, grifo nosso)

Ao saber que seu tio estava internado em um hospital, Lavo procura por

Mundo, pois este não tinha aparecido. Conseguiu encontrá-lo perto do hospital e percebeu que

a fisionomia de Mundo mudara, parecia um mendigo, descontrolado:

Mundo, sem camisa, braços e ombros escoriados, descalço, a calça arregaçada;

cachos despenteados em vez do corte à escovinha. Assustado, parecia em transe, e o

corpo ameaçava investir contra o comboio. (HATOUM, 2005,p. 197).

Ao relatar seu último encontro com Mundo, antes que o amigo embarcasse

para o Rio de Janeiro, Lavo projetou-se no enunciado como um sujeito observador, ao mesmo

tempo compadecido com o estado em que o amigo se encontrava. Tal fato pode ser

comprovado pelo excerto a seguir:

76

Já me impacientava com a demora de Mundo. Uma única lâmpada iluminava o

local, e da cozinha vinha um cheiro forte de fritura, banana e peixe. Virei a cabeça

para pedir a conta e deparei com ele, amoitado no última mesa. Inerte na penumbra,

parecia um lobo. Deve ter entrado pelos fundos, pensei; ficou esse tempo todo

observando, bebendo, matutando. Esquivo como sempre. Acenou, balançando uma

folha de papel e mostrou um desenho do interior do bar com uma perspectiva da

baía.(HATOUM, 2005,p. 210, grifos nossos)

Depois da partida de Mundo para o Rio de Janeiro com sua mãe Alícia e a

empregada Naiá, após a morte de Jano, Lavo só passou a ter contato com Mundo por meio de

cartas:

Mantive com meu amigo uma estranha correspondência: ele não respondia aos

assuntos que eu comentava nas cartas. Queria passar seis meses no Rio com a mãe e

Naiá, mas antecipara sua ida à Europa porque fora preso durante um protesto contra

a censura em frente à Biblioteca Nacional.(HATOUM, 2005, p. 220)

Evidencia-se, mais uma vez, a rebeldia de Mundo contra o sistema repressor, a

ditadura, ao participar de um protesto.

Prestes a ir ao Rio de Janeiro depois de muito tempo que mãe e filho saíram de

Manaus, com a pretensão de ver Mundo e Alícia novamente, Lavo recebeu a notícia da morte

do amigo. Ao mesmo tempo ele refletia sobre as acusações do tio com o seu “descaso” para

com Mundo e se culpou por não ter viajado antes para ver o amigo. Por outro lado, isso se

justifica pelo fato de Mundo ter sido sempre arredio e por nunca tê-lo deixado aproximar-se

efetivamente dele:

Cancelei a viagem e fiquei pensando, com culpa, se já não deveria ter viajado,

mesmo sem ter certeza de que Mundo voltara. Pensei nas acusações que Ranulfo me

fizera: o egoísmo, a falta de atenção com meu amigo, o trabalho presunçoso, a

cegueira profissional. Talvez fossem acusações de um homem enlutado e

desesperado, que perdera a grande aposta de sua vida bem antes do fim. De nada

adiantaria dizer a ele que Mundo sempre fora arredio, ainda que tivesse me contado

episódios da infância, expressando a angústia de ter de enfrentar o pai, dentro e

fora de casa, como se esse enfrentamento fosse o móvel de sua vida e de sua arte

inacabada. (HATOUM, 2005 ,p. 268-269, grifos nossos)

Nessa cena Lavo sintetiza a história de Mundo e reflete a respeito do que seu

amigo fizera com a vida, como se sua briga como o pai tivesse alimentado a sua razão de

viver.

77

Com a “arte inacabada” de Mundo, Lavo, como narrador, sugere o potencial

artístico do amigo ao longo de sua vida que foi frustrado pela repressão do pai. Ao relatar

sobre a pintura que Mundo fazia do rosto do pai, antes de morrer, o narrador conta, o que o

amigo havia lhe confessado: “Falta a desforra da imaginação, a desforra da arte, Lavo. Vou

fazer o diabo com o rosto dele, com a crueldade e a loucura...”(HATOUM, 2005,p. 214).

Podemos agora estabelecer uma comparação entre o percurso de Mundo e de

Lavo. Enquanto Mundo se aventurara pelo mundo das artes e, ao mesmo tempo, lutara contra

qualquer limite, saíra de Manaus em busca do sonho de estudar na Europa, Lavo não saíra de

sua cidade natal. O medo o impedira de ir embora e também de realizar um grande feito

profissional, de ser um advogado atuante e destacado, medo relacionado ao temor que a

ditadura impunha, bem como medo de lutar por um ideal e não ser bem sucedido. Era mais

fácil para ele acomodar-se do que fazer como Mundo, ir atrás de seu sonho, lutar por aquilo

em que acreditava:

Mundo sabia que dificilmente eu sairia de Manaus; nas cartas que enviei, insisti

nesse assunto, dizendo que minha cidade era minha sina, que eu tinha medo de ir

embora, e mais forte que o medo era o desejo de ficar ilhado, enredado na rotina de

um trabalho sem ambição. (HATOUM, 2005, p. 269, grifos nossos).

Notamos que o sujeito narrador é manipulado pelo dever-fazer, ou melhor,

ficar na cidade, aceitar a sua condição de um simples advogado, pois tinha medo de lutar. Por

outro lado, percebe que Mundo pagara um preço caro ao lutar por seus ideais. Foi reprimido

pela ditadura, preso em protesto no Rio de Janeiro, além de sofrer com a perseguição durante

sua vida.

Como se revela um sujeito medíocre, como sujeito do enunciado, o único

desejo de Lavo, o que o mobiliza com intensidade se dá no nível da enunciação, ao relatar a

vida de Mundo, sujeito que ele admirava justamente por ser o seu oposto. Mundo era aquele

que tivera a coragem de se rebelar contra o destino medíocre que o pai havia lhe traçado e

tivera a coragem que ele nunca tivera na vida. Assim, a sua única paixão, seu desejo, é contar

a vida do amigo parece ser a de contar a vida do amigo, o que se dá por meio da obra do

sujeito da enunciação de que ele é o simulacro.

5.2 O SUJEITO OBSERVADOR RANULFO: UM ATOR PARTICIPANTE

78

O fazer narrativo em Cinzas do Norte, como observamos anteriormente, é

performance de Lavo, sujeito narrador, simulacro do enunciador da história. Mas o

enunciador delega esse fazer a outros atores por meio de cartas que eles dirigem uns aos

outros ao longo da história e que também contribuem para a formação do saber do

enunciatário a respeito dos fatos que a constituem.

Primeiramente, observamos que o enunciador delega voz a Ranulfo, que

escreve seu relato para Alícia e Mundo. Fazem parte da história, também as cartas que Mundo

escreve para Lavo, e, finalmente, Lavo dá relevância aos fatos que envolvem Mundo e sua

relação com o pai, como vimos no capítulo anterior.12

O relato de Ranulfo é uma homenagem a Mundo e sua mãe e, quase ao final

do romance, Lavo reproduz, em debreagem interna, as palavras de Ranulfo: “Publica logo o

relato que escrevi. Publica com todas as letras... em homenagem à memória de Alícia e de

Mundo”(HATOUM, 2005, p. 303), relatando tudo o que gostaria de ter contado a Mundo e

não pôde.

Seu relato remete ao pretérito e começa no momento em que Alícia, sujeito em

estado de pobreza, pertencente à mesma classe social que a família de Lavo, queria ir a uma

festa de um parente distante, vestida com roupas novas. Ranulfo então roubou sua irmã

Ramira: “Eu não tinha dinheiro para comprar roupa cara, e tive de roubar um vestido de

linho que Ramira acabara de costurar para uma cliente.” (HATOUM, 2005, p. 51). Instala-

se, então, no relato de Ramira, uma debreagem actancial enunciativa, marcada pelo uso do

pronome pessoal “eu”. Quanto à debreagem temporal, também enunciativa observa-se o uso

do imperfeito, o que revela proximidade da enunciação.

Nesse sentido, Ranulfo posta-se como sujeito observador ao relatar a vida de

Alícia a Mundo. Inicia por revelar a Mundo que, na noite da festa, descobre por meio de

Algiza , irmã de Alícia, que Alícia já estava envolvida com um homem rico, com quem iria se

casar. Relata também que Ramira, não gostava de Alícia. A desavença entre elas começou na

noite da festa do parente próximo. Ramira humilhou Alícia ao revelar, no meio da festa, que o

vestido que ela usava lhe fora dela roubado.

Ramira nos surpreendeu no meio do salão e disse na frente dos convidados que

Alícia roubara o vestido [...] E, antes de sair sozinho do clube, esticou os dedos nas

ventas de Ramira e disse: „Um dia tu vais costurar pra mim, e ainda vou te dar uns

retalhos de esmola‟.(HATOUM, 2005, p. 52)

12

Não iremos discutir qual a função das cartas dentro do contexto do romance, mas o conteúdo das mesmas para

identificarmos de que modo as estratégias enunciativas estão presentes na narrativa.

79

Ranulfo também relata que, ao saber da notícia do casamento de Alícia com

Jano, toma ciência do fato indignado, revoltado com as insinuações de Alícia por compará-lo

a Jano, e ainda mais por tomar conhecimento de sua gravidez. Notamos, no trecho a seguir, a

presença do mecanismo de debreagem enunciativa: o “eu” é colocado no interior do discurso,

criando o efeito de sentido de subjetividade que podemos comprovar pelo modo como

Ranulfo manifesta seu estado emocional perante as declarações de Alícia:

Então é verdade, eu disse pra mim mesmo, e perguntei: „Quer dizer que vais mesmo

casar com aquele idiota?‟. Ela disse que sim com os olhos, um sim verdadeiro com

o olhar que eu conhecia. Esperou o sol desaparecer e a escuridão surgir neste lado

do mundo: só o contorno impreciso e a sombra imensa das árvores e os sons dos

insetos e, longe do Morro, o clarão da Colina. Então a voz da tua mãe me cortou

por dentro. A voz, as palavras que eu não esperava e pensava nunca ouvir, e que

eram mais absurdas que a notícia do casamento. Ela sentiu isso: que eu parecia

surdo ou que alguma coisa em mim se recusava a ouvir as duas palavras

pronunciadas bem perto do meu ouvido: „ Estou grávida‟. [...] Bora tomar uma

cerveja em casa? Tem uísque também. Tudo que peço ele dá em dobro. Meu noivo,

Ranulfo... trabalha com o pai, não precisa roubar...‟(HATOUM,2003, p. 83)

Percebemos que o enunciador deixa claro que Alícia estava interessada pelo

dinheiro do futuro marido, mas que não abriria mão de sua relação com Ranulfo. Isso fica

evidente, pois Alícia se retraiu diante dos carinhos íntimos de Ranulfo: “Beijei a boca, os

lábios molhados e salgados, e continuei beijando e acariciando o corpo trêmulo, que não

reagia. Ela não queria. Disse: “Hoje não, Ranulfo... Depois... depois do

casamento”(HATOUM, 2005, p. 82, grifos nossos). Ranulfo tentou estabelecer com Alícia

um jogo de manipulação por sedução, oferecendo-lhe as carícias como objeto de valor

positivo mas ela não manifestou nenhum interesse. Naquele momento, o tio de Lavo estava

manipulado pelo desejo - querer-fazer- de continuar em conjunção com seu objeto de valor,

Alícia, mas frustrou-se nas suas expectativas.

Nota-se, na cena a manifestação da isotopia figurativa facial, o sujeito

observador seleciona o que lhe interessa, o corpo de Alícia: “ Tua mãe ... os lábios carnudos e

entreabertos formavam um desenho ondulado, e os olhos escuros, da cor do cabelo, pareciam

acesos nas feições angulosas. Mas eu ainda não tinha percebido toda a beleza do rosto, do

corpo.”(HATOUM, 2005, p. 159, grifos nossos). Nos trechos que citamos, o sujeito

observador aponta o que lhe interessava, a fisionomia de Alícia, que lhe despertava o desejo

carnal, da cobiça, de um desejo sexual, por meio das figuras “lábios molhados e salgados”,

“corpo trêmulo”, “os lábios carnudos”, “a beleza do rosto, do corpo”.

80

Na cena enunciativa, segue, Ranulfo descreve os lugares que Alícia nunca mais

frequentaria. Por meio do mecanismo de ancoragem espacial, o enunciador figurativiza os

espaços da pobreza em que se inseriam: “Cidade das palhas”, “igreja de São Francisco”,

“Jardim dos Barés”. Cabe, ao sujeito observador, no papel de ator-participante, como sujeito

cognitivo, intensificar o tema da pobreza, pobreza que era um anti-objeto para Alícia, que

abandonava sua vivência paupérrima por um casamento de conveniência com Jano:

Não dava adeus para mim, mas para a casa caiada na rua de terra, para a estrada

da Índia, que anos depois seria uma avenida no meio da Cidade das Palhas, para o

arraial da igreja de São Francisco, para o Jardim dos Barés, aonde nunca mais

voltaria, nem para visitar a irmã. (HATOUM, 2005, p. 115)

O relato de Ranulfo nos desvela sua história com Alícia, nota-se que ele a

venerava e manteve um longo romance com a esposa de Jano: “Mais de trinta anos com tua

mãe, Mundo. (HATOUM, 2005, p. 283)”. O uso dos pronomes possessivos “teu”, “tua”,

deixa claro para o enunciatário para quem é dirigido o relato em que Ranulfo conta momento

íntimos com Alícia:

E, quando Lavo nasceu, minha irmã e Alícia se encontravam pra tomar tacacá em

frente ao cine Odeon, Raimunda ficava com Lavo, Naiá contigo, e eu e tua mãe

entrávamos na sala escura do cinema, namorávamos na última fila como dois

adolescentes e saíamos antes do fim do filme; fizemos isso várias vezes em sessões

vespertinas de outros cinemas, enquanto teu pai trabalhava para o herdeiro.

(HATOUM, 2005, p. 216)

Por outro lado, se o pai de Mundo demonstrava total desinteresse pelo talento

artístico do filho, Ranulfo incentivava Mundo bem como comprava produtos para que ele

desenvolvesse sua arte com o dinheiro que Alícia lhe dava. Além disso, deixa claro que Alícia

tinha medo de Jano, pois temia que o marido lhe tirasse a herança:

Tua mãe me dava dinheiro, e eu comprava caixas de lápis e tubos de tintas suíços e

ingleses para ti. Eu te incentivei a ser artista e fazer caricaturas que causaram

constrangimento e vergonha a teu pai. Eu dizia para Alícia que tu serias um artista

e não um sucessor da Vila Amazônia, ela às vezes te apoiava, mas outras vezes era

pressionada por Jano, que interferia na tua vida. Ela mesma me disse que o marido

a ameaçava só com o olhar... A maior ameaça era a perda da herança, e o medo de

Alícia foi crescendo com o tempo. (HATOUM, 2005, p. 255)

81

Não apenas a relação amorosa com a mãe de Mundo é destacada por Ranulfo,

de modo detalhado, mas o modo como Alícia conduzia sua vida, em que se nota, o seu vício

pelo jogo de cartas.

O narrador Ranulfo, desdobramento do enunciador, antevê o que o vício

causaria à vida de Alícia e de Mundo: a ruína. “O jogo de cartas era poderoso: um vício

apaixonado, dissipador do corpo e da alma. E a ilusão da sorte se completava com a

desilusão do azar. No fim das contas, urubus que devoram uns aos outros”.(HATOUM, 2005,

p. 280). Ranulfo revela ainda que Alícia, ao perder o que apostava, começou a beber de

maneira exasperada: “[...] diminuiu o valor das apostas, mas ganhava menos do que perdia, e

quanto mais perdia, mais bebia.”(HATOUM, 2005, p. 280).

O modo como descreve a aventura de Alícia, e o relato de momentos tão

íntimos com a mãe de Mundo, faz de Ranulfo um observador no papel de ator-participante,

que não é apenas sujeito cognitivo, pois deseja e se mantém conjunto com seu objeto-valor,

Alícia, após o seu casamento. Ranulfo exercia um poder sobre ela e, além disso, era dotado de

um saber-fazer: incentivar Mundo, manipulando-o para que persistisse em suas realizações

artísticas. É ator participante, também, na medida em que se revela um sujeito passional que,

para vingar-se de Jano, incentiva Mundo a não desistir de seus valores.

Em seu relato, Ranulfo, revela a Mundo que se casara com Algisa, irmã de

Alícia. Ele e a amante forjaram um plano para que o casal vivesse na Vila Amazônia. No

entanto, ia a Manaus todo mês encontrar-se com Alícia. Revela o desprezo que o casal de

amantes tinha por Jano, como empresário compactuado com os militares corruptos como

Aquiles Zanda, que depois o perseguiu a mando de Jano. Este mandara matá-lo, relata ainda

os encontros amorosos furtivos com Alícia, durante muitas tardes, seu vício pelas cartas, que

às vezes lhe proporcionava dinheiro com que presenteava Ranulfo, perdas que tinha no jogo,

do vício, paralelo que estabelecera com a bebida. Ele tinha consciência de que ninguém

poderia substituir Alícia. Ela se mantivera sua amante até mesmo quando se mudara para o

Rio de Janeiro, após a morte de Jano. Ela foi o único amor de sua vida ao longo de trinta anos.

Relata ainda a forma como enganara a mulher, Algisa, que se parecia com a irmã Alícia,

fingindo ter tido um filho com uma pobre mulher para pode abandoná-la pois, apesar da

semelhança entre elas percebe que só superficialmente elas se pareciam: “Ninguém podia ser

tua mãe. E essa foi a única coisa que não pude fingir”(HATOUM, 2005, p. 284).

82

5.3 LAVO E O FOCO DE OBSERVAÇÃO SOBRE A OBRA DE MUNDO

Se Ranulfo relata a vida de Alícia para Mundo, Lavo, no papel de sujeito

cognitivo, destaca importantes figuras que fazem parte das obras do amigo. Elas têm um

grande valor, pois remetem não só ao povo simples da Vila Amazônia, mas principalmente à

figura do pai opressor. Lavo tomou conhecimento delas depois de um tempo da morte de

Mundo, quando foi ao encontro de Alícia no Rio de Janeiro, pois seu tio havia lhe dito que ela

queria revê-lo. No encontro, Alícia mostra a Lavo esse último trabalho que o filho fez

quando estava na Europa, uma obra composta por sete quadros:

Na primeira pintura uma figura masculina aparece de corpo inteiro, os olhos

cinzentos no rosto severo, ainda jovem, terno escuro e gravata da cor dos olhos, as

mãos segurando um filhote de cachorro, e, ao fundo, o casarão da Vila Amazônia,

com índios, caboclos e japoneses trabalhando na beira do rio, Mundo no meio dos

trabalhadores, olha para eles e desenha. (HATOUM, 2005, p. 292)

Nota-se, na descrição minuciosa desse primeiro quadro, que o sujeito

observador, como simulacro do enunciador utiliza, o recurso da isotopia figurativa em que se

manifestam traços de Jano e de seu cão. Assim, “olhos cinzentos”, “rosto sereno”, “terno

escuro”, “gravata da cor dos olhos”, “um filhote de cachorro”, compõe um percurso figutativo

que sugere , respectivamente, Jano e Fogo. Mundo também compõe sua obra com figuras dos

funcionários de seu pai, que representavam o povo humilde que ele respeitava. Por outro lado,

é interessante observar que o quadro tem um aspecto metadiscursivo, pois Mundo, embreado

visualmente, em meio aos trabalhadores, em comunhão com eles, distanciado do pai, desenha

e compõe a obra.

Fazendo referência às quatro obras seguintes, Lavo descreve transformações

em relação às figuras do primeiro quadro. As transformações são, na verdade, metamorfoses

sofridas pelas figuras do cão e do homem: “Nas quatro telas seguintes as figuras e a paisagem

vão se modificando, o homem e o animal se deformando, envelhecendo, adquirindo traços

estranhos e formas grotescas, até a pintura desaparecer”.

As transformações ocorridas nas pinturas leva o enunciatário a compreender

que, com o desaparecimento das figuras, Mundo quer “destruir” a imagem do pai, o qual,

como um fantasma persistia em sua memória, entremeado à figura de Fogo. Lavo, em sua

observação, descreve minuciosamente as últimas telas da obra de Mundo:

83

As duas últimas telas, de fundo escuro, eram antes objetos: numa, pregados no

suporte de madeira, os farrapos da roupa usada pelo homem no primeiro quadro, que

havia sido rasgada, cortada e picotada; na última, o par de sapatos pretos cravados

com pregos que ocupavam toda a tela, os sapatos lado a lado mas voltados para

direções opostas, e uma frase escrita à mão num papel branco fixado no canto

inferior esquerdo: História de uma decomposição− Memórias de um filho

querido.(HATOUM, 2005, p. 292-293)

Nessa última obra de Mundo, as figuras “sapatos pretos”, “sapatos voltados

lado a lado”, “direções opostas”, que é importante destacar a figura dos aspatos simbolizam a

posição de morte de Jano. De acordo com Chevalier e Greerbrant (2007, p. 801), o sapato

“[...] teria uma significação funerária: um agonizante está partindo”. É no título da obra “

História de uma decomposição –Memórias de um filho querido”, observa-se que o termo

decomposição, relaciona-se àquilo que passa por deformação.

Mundo quer exorcizar a figura do pai, um homem opressor que queria a

qualquer custo moldar seu filho. Por outro lado, em “memórias de um filho querido”, as

memórias referem-se metaforicamente a tudo que o próprio filho foi guardando ao longo do

tempo, as ofensas, as agressões físicas e psicológicas, do pai cuja lembrança opressiva o

tempo não fora capaz de apagar. É importante observar também que a figura “decomposição”,

no lugar de “composição”, sugere, por antítese, o desejo de Mundo de libertar-se da angústia

que a lembrança obsessiva da figura repressora do pai lhe causava. A figura “filho querido”

também é irônica, pois Mundo não fora querido pelo pai, a não ser como objeto. Ele, como

dizia Jano, deveria ser seu herdeiro, o que Mundo nunca pôde e nem quis ser.

Há um momento nesta cena em que Alícia faz comentários sobre a obra de

Mundo. Temos, então, o uso da debreagem interna, em que o narrador, para dar credibilidade

ao discurso, atribuiu mãe de Mundo, a qual revela a quem pertenciam as roupas usadas nas

telas do filho:

[...] É a roupa que Jano usou no nosso casamento. Procurei-a quando ele morreu,

mas não encontrei. Achei que tivesse doado aos pobres, mas não... Mundo tinha

levado tudo para a Europa: o terno, a calça, a gravata, os sapatos. Só vi essas coisas

aqui. Ele me mostrou as telas... estava empolgado, orgulhoso; eu implorei pra ele

tirar aquele ódio da alma. Disse que não ia tirar o que sobrara da vida... „Memórias‟,

ele disse. Depois saiu sem avisar. Fugiu... (HATOUM, 2005, p. 293)

Lavo, ao dar voz a Alícia, a qual revela que Mundo utilizara como matéria de

sua obra as roupas de Jano, possibilita-nos entrar em contato, por meio da voz da mãe, com a

intensidade do ódio que o filho alimentara pelo pai que, o atormentava mesmo depois de sua

morte e de que ele tentou libertar-se catarticamente por meio da arte.

84

Ao término do comentário de Alícia, Lavo lança seu ponto de vista, sobre o

verdadeiro significado da obra de seu amigo:“[...] os sete quadros, com a história que o filho

inventara, não apenas aludiam à vida e à morte do pai, mas traduziam a angústia de Mundo e

eram o presságio de sua própria morte” (HATOUM, 2005, p. 294). E, Lavo, faz novamente, a,

uma nova reflexão a respeito dos quadros:

Pensei nos sete quadros: a técnica apurada do primeiro retrato de corpo inteiro, com

a paisagem e os trabalhadores no fundo, e, na sequência, o rosto de Jano

envelhecendo, num tempo que ele não chegou a viver, como se até o momento da

realização da pintura ( e mesmo muito anos depois) o pai estivesse vivo, e apenas a

roupa e o olhar permaneciam imunes à passagem de décadas. Os olhos sumiam em

cavidades ou manchas escuras, e na fisionomia se revelavam traços do focinho de

um cachorro, os dentes caninos; os dois corpos deformados e decompostos. A

consciência aguda da natureza animal, a verdade mais bruta, nua e crua. Mas, ao

contrário de Alícia, eu não tinha certeza de que as figuras se remetiam de fato a

Fogo e seu dono. Pareciam seres desconhecidos, que o tempo distorcia até tornar

grotescos. A casa da Vila Amazônia tem traços do palacete de Manaus, lembrei.

Mas, evocava também outro lugar, que minha memória buscava, esquadrinhando

cantos do passado... (HATOUM, 2005, p. 295).

É interessante ressaltar a observação de Lavo sobre a obra do amigo que difere

da visão que Alícia tinha dela e realça sua natureza artística. Da perspectiva de Alícia, o cão e

o dono remetiam diretamente a Jano e Fogo. Todavia, ao descrever que, ao longo das obras,

Jano foi envelhecendo, o que não acontece na sua história, Lavo nos sugere a intervenção do

artista. Pelo fato de que por meio do tema metafórico do envelhecimento do pai, ao longo de

um tempo que ele não chegou a viver, possibilita-nos observar a intensidade de sua figura

opressiva na memória do filho.

Por outro lado, a simbiose entre a figura do homem e do cão, deformados,

revela não só o tema da deformação moral que Mundo vislumbrava em Jano, mas também o

seu traço de ferocidade, bem próximo da do animal que tanto venerava, o que contribuía ainda

para tornar sua figura grotesca.

Lavo, seleciona, pois, os fatos que vai relatar quando reencontra Alícia, após a

morte do amigo: as últimas obras de Mundo e, como sujeito cognitivo, possibilita-nos

perceber o estado de angústia e de sofrimento do amigo depois da morte do pai. Ao final

dessa cena Alícia entrega a Lavo a carta que Mundo deixara a ele, observando que antes da

morte do filho lhe contara um segredo sobre sua vida.

5.4 A DELEGAÇÃO DE VOZ A MUNDO: A CARTA E O SEGREDO REVELADO

85

Faremos referência a seguir a essa última carta que Mundo escreve para Lavo,

prestes a morrer em uma clínica no Rio de Janeiro, na qual faz um balanço de sua vida. A

carta inicia-se com uma pequena expressão adverbial, “Ontem à noite”, que evidencia o

tempo em que foi escrita. O mecanismo utilizado, a debreagem temporal, aliada a debreagem

actorial enunciativa, cria o efeito de subjetividade, recurso que o enunciador utiliza para nos

sensibilizar perante a tragédia da vida de Mundo.

Em “[...] Ainda mais deitado, destruído por dentro e por fora...” (HATOUM,

2005, p. 305), percebemos que Mundo instala-se como um sujeito passional que, por meio das

figuras espaciais “ dentro” e “fora”, uma antítese , revela o seu estado de sofrimento físico

e o seu fracasso perante o desejo de ser artista, devido também à doença que o consumia.

Outra marca verbal que constantemente aparece no relato, o “agora”, manifesta

a presentificação da cena enunciativa e a proximidade do foco de observação de Mundo:

“Nem agora eu ia te escrever, não pensava que seria capaz...” (HATOUM, 2005, p. 305, grifo

nosso).

Na carta, dirigida para Lavo, Mundo revela o desejo de contar seu segredo:

“[...] eu tinha que contar a alguém essa história [...] A vida pelo avesso, Lavo”. A partir desse

momento, observamos que Mundo já está prestes a morrer, como se nota no enunciado “[...] o

fim de uma história antes do fim” (HATOUM, 2005, p. 305).

A utilização de “ontem” e “hoje” depreendidos do enunciado tem a função de

demonstrar o tempo decorrido na clínica. : “Ontem foi um dia de escuro, sono e exaustão, dia

de olhos fechados. Hoje acordei com pouca dor, vi o sorriso da enfermeira e lembrei de um

pesadelo... mas não tenho tempo pra falar de sonhos”(HATOUM, 2005, p. 305). Assim, ao

referir-se à descrença em relação à vida, indicia o presságio de sua morte, a desesperança em

sonhar com nova perspectivas.

A marcação do tempo é algo que se reitera na carta, como se concretiza em:

Em “Dia ensolarado, minha mão menos pesada, agora posso escrever” (HATOUM, 2005, p.

206). No enunciado “agora posso escrever”, a utilização do “agora” revela-se o momento da

enunciação que coincide com o tempo do enunciado, e remete ao estado de saúde de Mundo,

cuja melhora possibilita-lhe a escritura.

Com a vontade de continuar a escrever, Mundo começa a relatar suas

lembranças em relação ao pai, inspirador de suas últimas obras. O recurso que podemos

observar no relato de Mundo é, portanto, a debreagem enunciativa pelo uso da primeira

86

pessoa “eu”, o que ocasiona o efeito de sentido da subjetividade. Tal questão é comprovada

pelo dizeres de Mundo, que revela a necessidade de pintar os quadros para se “libertar” do

estado de seu pai. Reflete que Jano foi um homem conduzido pelo pai português que lhe

deixou toda fortuna e não tinha outra escolha a não ser seguir seus passos. Nesse aspecto, no

momento em que está prestes a morrer, é interessante observar a sua lucidez perante a

fatalidade da vida de Jano, que ele entende que não pôde deixar de ser o que foi, evitando,

assim, uma visão maniqueísta do pai.

Reflete sobre o dilaceramento da vida de Jano, que quase ao final se depara

com os preços baixos daquilo que produzia na Vila Amazônia. O estado de saúde é um fator

que o impulsiona, pois tinha certeza de que a doença o consumia, e revela que tinha

consciência de que não era um grande artista, mas que pintava para encontrar o sentido de sua

vida. Mundo utiliza a pintura como forma de libertação da figura do pai que o assombrava

como um fantasma. Isso se revela no excerto abaixo:

Em Londres me concentrei nos sete quadros-objetos, era um modo de me libertar. A

imagem de Jano ficou isolada na minha cabeça, era o processo que interessava, a

vida pensada, a vida vivida, dilacerada. Pintar não é uma maneira de lembrar com

cores e formas? Inventar a vida numa situação extrema? Não podia frequentar uma

escola de arte.[...] O que sei é que trabalhei de maneira exasperada, alucinada às

vezes, às vezes rindo da minha própria desgraça. Formas mais ou menos figurativas,

decompondo o retrato da família, até chegar à roupa e aos dejetos de Jano. Idéias e

emoções que nos movem. Me livrei de um peso quando terminei esse trabalho, mas

não me considero um artista, Lavo. Só quis dar algum sentido a minha vida. Tinha

medo de morrer com os meus esboços, teria sido uma vida esvaziada... medo porque

a tontura e a fraqueza e a dor me derrubando... (HATOUM, 2005, p. 307) grifos

nossos)

É bela a reflexão metadiscursiva sobre o fazer artístico da pintura e sua função

de rememoração em “pintar não é uma maneira de lembrar com cores e formas?” .Tal

reflexão novamente remete ao tema recorrente da necessidade de lembrar o passado, nesse

momento para encontrar o significado da vida por meio da arte.

Na carta, Mundo faz referência não apenas aos últimos dias de vida, mas

também aos últimos dias em Londres, a seus amigos que com ele conviveram por lá, e à

consciência de que algo de grave estava acontecendo como ele. Como sua saúde estivesse

debilitada, sentiu que seria necessário reencontrar sua mãe:

Lembro de meus amigos fazendo uma encenação maluca perto da Remnant Street

.Mona caía morta, e alguém parava o trânsito e chamava o bombeiro enquanto

Adrian filmava: eu observava apenas, sentado sob um arco da rua. De repente uma

87

vertigem me apagou, e não levantei mais. Um desconhecido, doente e estrangeiro...

Mais um artista no desterro. Telefonei pra minha mãe, de certa forma capitulei. Ela

sentiu minha aflição, meu desespero.(HATOUM, 2005, p. 307-309)

O reencontro de Mundo com Alícia casou a ela um verdadeiro tormento. Sua

angústia foi aumentando, quando viu a série de pinturas que Mundo fizera sobre o pai, mas

principalmente, devido ao segredo sobre a paternidade do filho, que sentiu então necessidade

de revelar, no momento em que percebeu a gravidade da doença do filho:

Quando ela me viu, magro e sem força, o mundo desabou. E, na volta de Londres,

passou dias no Rio prometendo me contar um segredo; ia contar e ficava entalada, e

só conseguiu revelar que estava perturbada com os quadros sobre Jano. Agora sei

que meu trabalho foi um demônio que moeu sua consciência, roendo-a e

queimando-a por dentro. O tempo, que se atirava ferozmente contra mim, dava a ela

um ultimato. Eu e minha mãe, reféns um do outro, nós dois reféns do tempo.

(HATOUM, 2005, p. 308)

A manifestação de Mundo como sujeito cognitivo que em “Agora sei que meu

trabalho foi um demônio que roeu sua consciência”, leva-nos a concluir que o motivo do seu

saber, belamente construído nessa figura metafórica, associa-se ao saber secreto que,

posteriormente ele revelará a Mundo: o saber, de que ele há muito tempo desconfiava, que

não era filho de Jano e nem de Ranulfo, como pensava, na medida em que até considerava

Lavo seu primo. Mundo tentou ainda realizar algo, escrever a carta a Lavo, sabia que sua

recuperação era quase impossível, como ele revela:

Alícia ficou comigo, quis dormir no quarto. Perguntou o que eu estava escrevendo.

„Uma carta para o meu amigo. Quando eu terminar, entrega pra ele. Só te peço isso‟

A melhor manhã. Não me sinto com mais força, nem mais animado, mas estou

lúcido, minha mãe percebeu. Me beijou muito, molhou meus olhos... (HATOUM,

2005, p. 309)

Como tinha certeza de que o fim de sua vida estava próximo, escreveu a Lavo,

um desabafo e fez ao amigo a revelação sobre sua paternidade, observando que o choro de

Alícia, na verdade, era pela mentira de toda uma vida, pois se casara com Jano por interesse, e

quando dele ficara livre, acabou-se em jogos de azar em que perdia a cada dia a herança que o

marido lhes deixara. O mais importante, todavia, foi revelado a ele por sua mãe: o nome de

seu verdadeiro pai, Arana, o homem por quem Mundo sentia desprezo, pois tinha consciência

da forma como ele passou a se utilizar da arte: suas obras de arte eram exclusivamente

produtos de venda. Toda a transformação de Arana levara Mundo a desprezá-lo como

“artista”:

88

Ela não chora só por minha causa, pensei naquele momento; chora por si mesma,

pela mentira de toda uma vida. Nem sei se Jano sabia. Agora expeliu esse nome na

minha cara e confessou tarde demais que é esse o nome do meu verdadeiro pai.

Tento relembrar cada momento no ateliê, cada conversa e encontro, mas só vejo o

que há de pior naquele homem: a covardia, o oportunismo fingido com o „aluno‟

que era seu filh .(HATOUM, 2005, p. 310-311, grifos nossos)

Ao término da carta, Mundo relata que seu estado de saúde piorara. Escrever,

para ele, era como um milagre, tira nas forças do que lhe restava. O uso do advérbio “agora”,

aproxima-nos da cena, em que escreveu a carta, sensibilizando-nos para seu estado de

debilidade. Nele faz sua última reflexão, observando que o que restava de tudo fora apenas

um amigo e não primo. Isso nos faz observar que Mundo desconfiava de que Ranulfo era seu

pai.

No excerto a seguir, quando Mundo observa “não posso mais falar nem

escrever. Amigo... sou menos que uma voz...”, ao final, o enunciador parece sugerir que

restara apenas Lavo para contar a vida de Mundo, o que se revela por meio da obra. O

enunciador metaforiza o estado de debilidade de Mundo, a morte chega, quando finaliza a

escritura da carta:

Pensei em reescrever minha vida de trás para frente, de ponta-cabeça, mas não

posso, mal consigo rabiscar, as palavras são manchas no papel, e escrever é quase

um milagre... Sinto no corpo o suor da agonia. Amigo e não primo. Esse teto baixo,

paredes vazias, ausência de cor e de céu... O sol e o céu do Rio e do Amazonas...

nunca mais Só paredes, e esse cheiro insuportável... Agora escuto a minha própria

voz zunindo e sinto fagulhas na cabeça, e a voz zunindo, fraca, dentro de mim... Não

posso mais falar. O que restou de tudo isso? Um amigo, distante, no outro lado do

Brasil. Não posso mais falar nem escrever. Amigo... sou menos que uma

voz...(HATOUM, 2005, p. 311)

Observamos, neste capítulo que a história é contada por meio dos diversos

pontos de vista instaurados pelo enunciador: o de Lavo, de Mundo e de Ranulfo, o que nos

possibilitou entrar em contato com a dimensão pragmática, cognitiva e passional dos sujeitos

da história ao nível da enunciação e do enunciado.

89

6 A CONFIGURAÇÃO DAS CINZAS EM CINZAS DO NORTE

A cor do carão é um mistério; a gente pensa que ele é preto, ou

branco.

Guimarães Rosa

O título da obra Cinzas do Norte, nos leva a buscar inicialmente a compreensão

do significado da figura “cinza”, primeiramente no nível do dicionário. Segundo Chevalier e

Gheerbrant (2007, p. 247), a figura “cinza” tem “[...] um valor residual: é aquilo que resta

após a extinção do fogo e, portanto, antropocentricamente, o cadáver, resíduo do corpo depois

que nele se extinguiu o fogo da vida”. Podemos observar, portanto, que o surgimento das

cinzas é decorrência de decomposição de algo material ou humano, por meio de um processo

em que o fogo faz com que o “objeto” seja transformado em cinzas, ou melhor, pó.

Ao observarmos a relação entre a figura das “cinzas” e a figura do “norte” em

Cinzas do Norte, observamos que a última como figura topológica, possibilita-nos várias

leituras. Uma delas é a alusão à região amazônica, ou melhor, à região norte de nosso país, de

grande riqueza natural que tem sido dizimada com o tempo. A destruição da riqueza natural

da região se evidencia em umas das andanças de Lavo com Mundo. Ao longo da história. A

cena começa a ser descrita no momento em que passam perto da sede do governo:

No fim da ponte, uma fila crescia na entrada do Éden: o edifício branco, agora

acinzentado, acabara de abrir as portas. Atrás do Palácio do Governo uma mancha

escura se movia lentamente nas margens do rio. Urubus, dezenas, bicavam dejetos

deixados pela vazante. Um cacho de asas abriu um clarão, e no meio apareceram

homens e crianças maltrapilhos. Mundo falou: „Nossa cidade... „. (HATOUM, 2005,

p. 143)

O sujeito observador, ao descrever o edifício “branco”, projeta-o

temporalmente o enunciado no presente da enunciação por meio do advérbio “agora”. Assim,

quer levar seu enunciatário a perceber a transição do tempo, o edifício do“ branco” passa ao

“acinzentado”. Por outro lado as s figuras “mancha escura”, “urubus”, “dejetos”, formam a

isotopia figurativa da podridão, a deterioração de algo que existia. Isso evidencia o descaso

com o meio ambiente, com a falta de saneamento básico, na região.

Em “um cacho de asas abriu um clarão, e no meio apareceram homens e

crianças maltrapilhos”, o enunciador, simulacro do narrador, aponta para a destruição da mata

que ocorre paralela à pobreza do povo que vivia naquele lugar.

90

Mundo, ao comentar com Lavo a situação de alguns moradores do local em

que se encontravam, faz referência à vegetação e ao modo como ela se encontrava: “Os

moradores da beira do rio. Foram jogados no outro lado da cidade. A área foi toda desmatada,

construíram umas casas... Sobrou uma seringueira. Quer dizer, o tronco e os galhos... a

carcaça ”(HATOUM, 2005, p. 145).

Quanto à figura das “cinzas” é importante fazer referência ainda a seu

cromatismo. Para Chevalier e Greerbrant (2007, p. 248) a cor cinzenta é “composta em partes

iguais, de preto e branco” elas representam, pois, a dualidade, “ dá sombra e da luz, do dia e

da noite, do conhecimento e da ignorância”( CHEVALIER;GREERBRANT, 2007, p. 742).

Com base nessa simbologia, vamos procurar observar como ela se manifesta na

construção da obra, fazendo referência, de início, a uma das cenas em que Lavo reencontrou o

pai de Mundo, antes de tornar-se seu amigo íntimo. “Era a segunda vez que o via de muito

perto, os olhos miúdos acinzentados e a testa enrugada como se estivesse sempre

franzida”(HATOUM, 2005, p. 20).

O enunciador caracteriza o empresário como um homem cuja face apresentava

a obscuridade, de alguém que sempre estava tenso, infeliz. Além disso, tal caracterização

pode ser alusão à obscuridade do momento em que se passa a história, ancorada na época da

ditadura militar, cujos valores Jano defendia.

Para Chevalier e Gheerbrant (2007, p. 653), o ato de olhar “[...] é um

instrumento de uma revelação. Mais, ainda, é um reator e um revelador recíproco de quem

olha e de quem é olhado”.

A questão do ato de olhar, no transcorrer da narrativa, foi sendo marcada pelo

modo como o sujeito observador analisava o comportamento de Jano. Assim, diante da

doença de Mundo, que o impediu de frequentar o colégio militar, ao visitar o amigo, em um

primeiro momento, Lavo percebeu que a postura adotado por Jano foi pedir para o médico

um atestado em que pudesse justificar as faltas de Mundo. Notamos, pois, que o pai não

estava preocupado com o filho, mas sim com o modo como aquilo poderia prejudicá-lo ao

ficar ausente do colégio: “Fora do quarto, Jano fez mais algumas perguntas sobre a infecção e

pediu ao médico que assinasse um atestado: o filho ia perder muitas aulas, isso podia

prejudicá-lo” (HATOUM, 2005, p. 133). Logo após o fato, quase no meio da semana

seguinte, a inquietude de Mundo era evidente, mesmo ainda debilitado, pois não suportava o

modo como o pai o vigiava, e nem suportava o cão, Fogo que demonstrava sua alegria com a

chegada do dono:

91

[...] o filho queria voltar o quanto antes para o internato, não suportava escutar os

latidos de Fogo anunciando a chegada do dono, nem ver um olho cinzento vigiando-

o por uma fenda. O olho o observava do corredor, como se ele fosse um bicho numa

jaula. Era tudo que um pai podia fazer por um filho doente (HATOUM, 2005, p.

133)

Nesta passagem, as figuras “olho cinzento”, “vigiando-o” são a representação

obscura da maneira como Jano tratava o filho, o importante seria a volta de Mundo o mais

rápido para o colégio, pois diante dos militares deveria ter um comportamento exemplar a

qualquer custo. O ato de vigiar o filho se sobrepôs, portanto, ao ato de proteção, que, nesse

momento, seria o exigido de um pai.

O comportamento de Jano, diante da doença de Mundo, fez com que a figura

paterna fosse desvinculada de seu sentido literal. Para Houaiss e Villar (2001), a figura do pai

é aquela de quem protege, abriga; aquele que desempenha o papel de progenitor, genitor, o

que não está associado a nenhuma característica do ator Jano.

Um dos aspectos ressaltados pelo sujeito narrador é o do grande laço afetivo

existente entre o pai de Mundo e seu cão Fogo. Assim, no momento em que o enunciador,

começou a tecer a narrativa: “Caminhavam juntos, sob o sol ou nos dias de chuva [...] Eram

inseparáveis” (HATOUM, 2005, p. 11). A cumplicidade existente entre eles era tão forte que

o cão não abandonou Jano nem seus últimos dias de vida: “Nos últimos meses da vida de Jano

foi assim: Fogo e seu dono num quarto, e a mulher, sozinha, no quarto do filho ausente”

(HATOUM, 2005, p. 11). Vemos que o laço afetivo era muito mais forte entre Jano e seu cão,

tal fato comprova porque Mundo detestava quando Fogo anunciava a chegada de seu dono.

Este fato revela que o pai devotava, na verdade, a proteção, o afeto ao cão e não ao filho.

A falta de compaixão com o filho demonstra o lado opressor de Jano. Isso se

evidencia desde a infância de Mundo. Quando o filho fugiu de casa, pois o pai o trancafiava

no porão, Mundo, ao sair, se machucou, e a fuga causara um corte em sua mão. O sarcasmo

de Jano chega a tal ponto perante o fato que considerou como um “ato de bravura” a coragem

do filho, quando na verdade, Mundo fugia da imensa escuridão do lugar que lhe causava

medo:

[...] mas Alícia me contou que Jano aprovara tua ousadia e começara a dizer que o

herdeiro já era um rapazinho corajoso, e, ao ver o ferimento na tua mão e a folha de

papel molhada de sangue, repetira várias vezes: „Um menino corajoso, nem

chorou‟.(HATOUM, 2005, p. 253)

92

Pelas marcas presentes no romance, podemos estabelecer o percurso sombrio

do ator Jano. A figura de pai, que no plano lexical deve ser entendido como aquele que

protege, em um contexto simbólico deve ser visto como opressor, autoritário. Uma das

primeiras cenas em que a tirania de Jano fica evidenciada se revela, quando leva Lavo a seu

escritório, e faz um comentário a respeito da forma como Mundo deveria ser educado:

O DKW entrou na avenida Epaminondas e parou poucos metros das sentinelas; no

campo ensolarado da praça General Osório soldados saltavam barreiras, corriam por

caminhos em xis segurando uma baioneta; na cintura cantil e facão, mochila nas

costas. „ Treinamento militar‟, disse Jano, saudando um oficial. „ Falta isso ao meu

filho... correr e saltar com coragem, que nem esses rapazes armados‟.(HATOUM,

2005, p. 34)

Com o destaque do treinamento militar o qual Jano enaltecia, o enunciador

evidencia o desejo absoluto de Jano de querer adequar seu filho as seus moldes. Ter o

“regimento militar” como educação é mostrar seu poder de querer ter o domínio do filho,

assim como um oficial tem em relação aos seus súditos.

O lado autoritário de Jano pode se relacionar a um dos imperadores de Roma,

Marcus Ulpius Trajanus, que tinha um comportamento parecido com o pai de Mundo. De

acordo com Giordani (1965, p. 68) Trajano “[...] uniu às notáveis qualidades de um militar

uma grande capacidade de administrador”. Competência de Jano que era um bom

administrador é ressaltada por ele próprio, ao contar a Alícia sobre várias benfeitorias da Vila

Amazônia, por que ela não se interessava: “Faz muito tempo que não vais à Vila Amazônia.

Não conheces os viveiros de peixes e tartarugas, o orquidário, a plantação de cacau, não viste

a reforma da vila Okayama” (HATOUM, 2005, p. 89).

Do mesmo modo como o imperador de Roma, a sua característica pode ser

associada à de um militar que oprime, pune, tortura, todo aquele contrário ao regime. É o que

Jano faz com o filho. Quis, a qualquer custo, impedir Mundo de exercer os trabalhos

artísticos, obrigou-o a ir para a Vila Amazônia, objetivando que ele se interessasse pelo

trabalho do lugar. Quando criança o trancafiou no porão da casa. Isso, no plano simbólico, era

o mesmo que acontecia com os presos da ditadura, que não tinham direito à liberdade e eram

submetidos a todos os possíveis tipos de tortura.

Percebemos, que, no plano conotativo, o porão poderia ser uma representação

do pai, de seu lado sombrio, capaz de deixar seu filho trancafiado em um lugar que lhe

causava medo.

93

Depois que Jano soube da expulsão do filho do colégio militar, mandou que

seu empregado pegar todas os pertences de Mundo, referentes a seus trabalhos artísticos, e

ordenou-lhe que os queimassem, juntamente com as roupas que os empregados da Vila

Amazônia iriam usar na festa de formatura de Mundo, como estava programando. O relato

dessa cena foi feito por Ramira, que lamentou o fato. Ao tomar ciência do que o fogo tinha

consumido tudo, as roupas que ela tinha confeccionado. Toda a cena acontece na quadra de

esporte do palacete: „ Meu trabalho... tanto esforço‟ [...] O fogo devorou a roupa, alguns livros

de Arana e todos os livros e desenhos de Mundo”(HATOUM, 2005, p. 177). “A quadra estava

coberta de cinzas, folhas de papel e trapos chamuscados se espalhavam pelo

quintal”(HATOUM, 2005, p. 186) .

No sentido lexical, as cinzas se referem, como vimos, a resíduo, a algo que foi

destruído pelo fogo. No plano conotativo essa cena, na verdade, alude à extinção de tudo

aquilo que fora importante para Mundo, seus pertences artísticos e suas obras. Era como se

Jano tivesse liquidado com o próprio filho.

O ato violento do pai demonstra sua fúria diante da expulsão do filho do

colégio em decorrência da obra artística “Campo de Cruzes”, com a qual o filho afrontara o

pai e, principalmente, o governo militar. Lavo relata que também a obra do amigo virara

cinza:

A obra de meu amigo, no Novo Eldorado, também terminara em cinzas. Na foto do

jornal, o tronco e os galhos secos de uma única árvore, cheios de trapos pretos, e

uma fileira de cruzes de madeira fincadas nas ruas sem calçada. O título e subtítulo

da reportagem sem dúvida haviam escandalizado o pai: “ Campo de cruzes−Filho de

magnata inaugura „obra de arte‟ macabra”.(HATOUM, 2005, p. 177)

A obra de arte de Mundo, em que juntara um monte de cruzes fincadas no

chão, coberta por uns panos pretos, construída no Novo Eldorado, bairro da periferia de

Manaus, figurativiza o protesto de Mundo com o descaso dos militares em relação aos

moradores locais: “ o Eldorado não é só um crime urbano. O Cará morreu no último

treinamento, outras pessoas morreram estão morrendo aqui e em outros

lugares...”(HATOUM, 2005, p. 149). No plano simbólico, preto “evoca, antes de tudo, o

caos, o nada, o céu noturno, as trevas terrestres da noite, o mal, a angústia, o inconsciente e a

Morte” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2007, p. 742).

A cruz, em sua simbologia cristã, refere-se aos “os sofrimentos e morte de

Cristo” (CHEVALIER;GHEERBRANT, 2007, p.310). Tais considerações nos levam a

94

considerar que a cruzes representam a sina dos moradores do bairrro, vivendo em péssimas

condições de vida, sem saneamento básico. Como Cristo, foram “condenados”, este, à morte,

aqueles, a viverem em condições subumanas. Daí as cruzes com os panos pretos,

simbolizando o “luto”, a angústia do artista, diante da falta de interesse de um governo que

deixava a população do lugar à mercê da pobreza. Como eles não tinham voz para

reivindicarem seus direitos, Mundo de certo modo, representa-os por meio da criação de sua

obra. Cabe, a Lavo, retratar como ficou o lugar, e o pouco que restou da obra, que foi

reaproveitado pelos moradores:

A visão das ruínas acentuava a tristeza do lugar. Cruzes de madeiras crestadas

cobriam um descampado: o tronco da seringueira fora abatido, as raízes arrancadas;

galhos secos espetados em trapos queimados pareciam carbonizadas. Nas ruas de

terra, mulheres juntavam pedaços de cruzes para acender um fogareiro. (HATOUM,

2005, p. 177)

A ancoragem da história, no contexto da ditadura militar de 1964, se manifesta

no começo do primeiro capítulo quando há o relato de Lavo sobre o recomeço das aulas do

colégio no Pedro II em que estudava e o reencontro com seu amigo Mundo, depois do golpe

militar:

Só fui tornar a encontrá-lo em meados de abril de 1964, quando as aulas do ginásio

Pedro II iam começar depois do golpe militar. Os bedéis pareciam mais arrogantes e

ferozes, cumpriam a disciplina à risca, nos tratavam com escárnio. Bombom de Aço,

o chefe deles, mexia com as alunas, zombava dos mais tímidos, engrossava a voz

antes de fazer a vistoria da farda: „ Bora logo, seus idiotas: calados em fila indiana‟.

(HATOUM, 2005, p. 12)

Ao tratarmos do mecanismo de ancoragem, percebemos que existe alguém que

conta a história (narrador), concretizando os fatos dentro de um espaço, o colégio Pedro II, e

um tempo, 196413

. Para comprovar a ilusão de verdade dos fatos, há a utilização de isotopias

figurativas. Podemos notar que o enunciador utiliza a isotopia educacional pelo encadeamento

das figuras: “bedéis”, “aulas”, “disciplina”, “alunos”. No entanto, essa isotopia educacional se

relaciona metaforicamente à isotopia temática da repressão, pois a forma de os bedéis agirem

e seu modo de ser indicam que a escola pode ser vista como metonímia do poder militar.

Assim, as figuras: “arrogantes”, “ferozes”, “tratavam com escárnio”, “zombava”, “calados em

fila indiana” lembram o aparelho repressor da ditadura, leitura que é possibilitada pelo

13

O ano é o marco do início do regime militar no Brasil. A respeito da data, de acordo com a Arquidiocese de

São Paulo(2009, p. 59) “Em 1° de abril de 1964, é vitoriosa a ação golpista, praticamente sem resistência”.

95

encadeamento das isotopias, principalmente, pelas ações dos bedéis (inspetores escolares),

pela forma com que tratavam os alunos de maneira rígida e repressiva. Desse modo, as obras

artísticas de Mundo demonstravam sua indignação e revolta perante o sistema:

As primeiras caricaturas causaram alvoroço no Pedro II: apareceram na capa dos

quatrocentos exemplares do Elemento 106, o jornaleco do grêmio. Destacava-se o

desenho do semblante carrancudo do marechal-presidente: a cabeça rombuda,

espinhenta e pré-histórica de um quelônio, o corpo baixote e fardado envolto numa

carapaça. Ao redor das patas, uma horda de filhotes de bichos de casco com feições

grotescas; o maior deles, o Bombom de Aço, segurava uma vara e ostentava na

testa o emblema do Pedro II. Um mês de suspensão para os redatores, dez dias para

o artista, e apreensão do jornal. Mesmo assim, a capa do Elemento 106 ficou exposta

por toda parte: nos banheiros, na cantina, nas lousas, e reaparecia no dia seguinte,

apesar das rondas dos bedéis, e das ameaças de punição e até expulsão. (HATOUM,

2005, p. 16-17, grifos nossos)

Tais acontecimentos revelam que Mundo contestava o poder instituído na

escola, sua indignação contra a repressão, ainda como aluno. No ambiente escolar vemos que

o filho de Jano fez uma caricatura na qual o marechal-presidente aparecia de forma

desfigurada, cômica, animalizado como um quelônio ao redor de cujas patas apareciam

filhotes grotescos, sendo o maior deles figurativizado pelo inspetor da escola. Ao representar

iconicamente o inspetor da escola pela figura de um “filhote”, remete-nos à expressão muito

usada na época “filhote da ditadura”14

.O colégio Pedro II é, portanto, metonímia, portanto, do

sistema da ditadura. Assim, o colégio era regido por normas e regras, da mesma forma como

foi a ditadura repressora e autoritária. Dessa forma, como Mundo denegriu, a imagem das

autoridades tanto do governo quanto da escola, teve como sanção negativa, a suspensão da

escola por um tempo. Além da figura “suspensão”, as figuras “apreensão”, “ameaças”,

“expulsão”, concretizam o tema do autoritarismo, relacionado, pois ao regime militar.

A descrição dos militares e de seus subalternos foi feita de forma caricaturesca

por Mundo, no momento que ele disse a Lavo quem era quem na festa de aniversário de seu

pai: “O coronel Zanda, que o Jano vive dizendo que é o preferido do Comando Militar da

Amazônia. O outro é o tenente Galvo, ajudante-de-ordens do Zanda (HATOUM, 2005, p. 46).

A figura “ajudante-de-obras” é uma metáfora daqueles subalternos que viviam prestando

serviços para seus superiores, típico da época da ditadura em que eram obrigados a praticar

todas as ordens, até mesmo de execução.

14

A expressão “filhote da ditadura, foi criada pelo político Leonal Brizola, no debate entre presidentes na rede

Bandeirantes no ano de 1989. O então candidato à presidência Leonel Brizola, chama Paulo Maluf de “um

filhote da ditadura”, pois para Brizola, Maluf agia como foram os ditadores da época, possuía os mesmos

valores. Fato comprovado porque a carreira política de Maluf começa com seu apoio à ditadura militar.

Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=SGNGgkII2lU.

96

O enunciador sugere que ao acariciar “as medalhas” Zanda é a figura de um

sistema em que o sofrimento alheio era motivo de orgulho. Ver o outro sofrer é indiferente

para ele e qualquer outro militar da época. Apesar disso, é eleito prefeito da cidade de

Manaus:

Zanda é um homem de linha dura. Comandou todas as instituições militares de

Manaus até hoje controla tudo. Quer ser prefeito, governador, o diabo. Ele se

considera um deus fardado. Gosta de jogar os estudantes na selva, só para testar a

resistência deles. Quando alguém fica doente, ele acaricia suas medalhas.

(HATOUM, 2005, p. 129)

Alguns trechos do diário de Mundo demonstram de que modo eram feitos os

treinamentos militares. Não eram treinamentos em que o principal objetivo era ensinar os

soldados a conseguirem sobreviver na selva. Tal espaço é metonímia, assim, de “um campo

de tortura”, em que os mais fracos e mais pobres eram os mais prejudicados com as

atrocidades dos militares:

A maioria dos alunos do internato é cobaia. Ainda não mexeram comigo, meu pai é

conhecido no Gabinete do Comando. Com os outros internos é diferente. O Cará era

tratado que nem bicho, mangavam dele o tempo todo. Quando chovia, hasteava a

bandeira no centro do pátio e tinha que ajudar na faxina. Com os pés-rapados não

tem moleza... Os filhos pobres de suboficiais que servem de frnteiras, moleques que

fazem o trabalho pesado e nunca vão conseguir ingressar numa Escola Preparatória

de Cadetes, muito menos numa academia militar[...](HATOUM, 2005, p. 174)

Praticar qualquer tipo de ofensa contra a instituição do Estado levava à

punição. Isso aconteceu com Mundo no momento em que realizou sua obra artística “Campo

de cruzes”, e, com isso, foi expulso do colégio militar. O diretor do colégio deu a sentença a

Jano com um tom que revelava que contra os militares nunca se deveria fazer nada, pois

haveria sérias consequências. “Era o que pensava quando o coronel que ele considerava

amigo pronunciou a sentença severa: „ Não se brinca com o pai e nem com a instituição‟

”.(HATOUM, 2005, p. 184)

Com a decepção frente ao ato do filho, Jano pretende puni-lo, atacando- lhe por

meio da queima de seus objetos artísticos.15

Mas o que conseguiu foi aumentar mais a fúria de

Mundo com ele. Com isso, o estado de saúde de Jano foi se agravando, e consequentemente,

ocorreu a sua morte. A morte de Jano foi descrita por Lavo de modo detalhado:

15

Toda a cena é relatada no capítulo anterior.

97

Gemeu, erguendo os olhos amarelos e murchos para mim. Peguei o pulso de Jano e

senti uma palpitação fraca, demorada. Não sei quanto tempo fiquei ali, ouvindo

ganidos, perto dos dois: quatro olhos que já não se encontravam. Parecia que toda

uma época se deitara para sempre”.(HATOUM, 2005, p. 199)

A figura “quatro olhos que já não se encontravam mais” retrata o fim da

cumplicidade entre Jano e Fogo. A metáfora usada pelo enunciador para evidenciar que Jano

morreu, quando começou a decair o regime militar está presente no enunciado “Parecia que

toda uma época se deitara para sempre”. Quando chegou a sua casa, depois do velório de

Jano, Lavo adormeceu e acordou no dia posterior, recordando um sonho que tivera com

Mundo e seu pai:

Em algum momento da noite, vi num sonho a imagem de arlequim, corsários,

debutantes e alunos do Colégio militar. Fantasiados pela metade, todos se divertiam

na sala da Vila Amazônia. Mundo surgiu com uma toga de magistrado, depois com

farda de cadete, e seu pai mudava de expressão a cada traje, mas sempre ria. Parecia

um homem pacificado. Durante o baile de formatura, meu amigo reapareceu vestido

de arlequim no meio de cadetes e oficiais; os músicos pararam de tocar, um alvoroço

agitou o recinto, o vulto de Alícia rodopiou e não pôde deter os passos de Jano, a

mão dele segurando uma pistola, e o tiro no rosto do filho. O estrondo, as vozes

estridentes, em pânico. Mundo no chão... (HATOUM, 2005, p. 207)

Por meio do sonho de Lavo, percebemos que o enunciador quis mostrar o ódio

entre pai e filho, num relacionamento, que é marcado pela oposição semânticas entre a

opressão e a rebeldia. Rebeldia figurativizada pela fantasia de arlequim de Mundo.

Quanto à ancoragem temporal, observamos que o enunciador, escolheu “25 de

dezembro”, dia de natal, a festa cristã, em que a união fraterna da família deveria ser

destacada, bem como o nascimento de Jesus Cristo. No entanto, no contexto da narrativa, o

enunciador revela que o momento fraterno não existia. Na verdade, o “nascimento”, no dia da

morte de Jano, era da liberdade que Mundo pretendia conquistar depois do falecimento do pai,

aparentemente liberto de sua opressão : “Era 25 de dezembro. Fui à saleta e cobri com

plástico as costuras e os moldes. A laje do teto da cozinha vedava a água. Armei a rede ali e

adormeci na feia manhã em que Jano descia”(HATOUM, 2005, p. 2007).

Se a morte de Jano possibilitaria a Mundo a possibilidade de fazer o que bem

quisesse, seus planos começaram de maneira atordoada. Quando chegou ao Rio de Janeiro foi

preso e internado em um hospício, devido a uma manifestação contra a censura em frente à

Biblioteca Nacional. Ele relata o fato a Lavo por meio do envio de uma carta: “Preso, e depois

internado num hospício [...] Fui sedado, amarrado... (HATOUM, 2005, p. 220). O

enunciador, por meio da ancoragem espacial do “hospício”, quer demonstrar a veracidade do

98

fato que ocorria na época da ditadura, em que os militares reprimiam os militantes e os

levavam para lugares desconhecidos. 16

Do Rio, Mundo partiu para a Europa em busca da realização artística. O seu

descaso com o dinheiro do pai evidenciou-se em uma das correspondências que Lavo recebe

do amigo. Se anteriormente à morte de Jano, Mundo não demonstrava nenhum interesse em

desfrutar do dinheiro do pai, trabalhar de modo simples era o que ele fazia na Alemanha:

“[...] contou que lavava pratos num bar latino-americano em Berlim, e que comprava

tinta e papel com o dinheiro da venda de suas obras em bares e restaurantes. Morava

de graça no ateliê de Alex Flem em Kreuzberg e, no verão, ia nadar numa piscina

pública de Charlottenburg, um luxo art déco, com água mornas e pinturas no teto.

(HATOUM, 2005, p. 227)

Como na Alemanha ele não conseguiu progredir artisticamente, Mundo

resolveu ir para Londres. De lá escreveu para Lavo relatando que conseguia trabalhar apenas

para sobreviver, isto é, ter onde comer e morar: “Faço uns trabalhos maçantes e idiotas para

sobreviver, mas consegui um teto num bairro operário, sudeste de Londres.” (HATOUM,

2005, p. 238).

Antes, de regressar ao Brasil, Mundo relatou a lembrança de algumas palavras

que Ranulfo falava para ele quando estava em Manaus, e tirou conclusões do que fez de sua

vida longe de sua terra natal: “Lembro que Ranulfo me dizia para recusar trabalhos tediosos e

mal remunerados. „Nunca deves trabalhar para ser um escravo‟, ele dizia. Mas foi o que fiz

esse tempo todo na Europa [...]” (HATOUM, 2005, p. 245).

O fracasso de Mundo como artista demonstrou que ele saiu de Manaus,

primeiramente, depois do Rio de Janeiro para a Europa. O caminho que ele fez nos leva a

compreender que o outro “norte”, para ele, pode ser considerado a metáfora para a busca de

outros lugares, onde poderia realizar seus desejos.

A busca de Mundo por uma vida que lhe proporcionaria o desejo de tornar-se

um grande artista, começou a partir, portanto, da morte de seu pai. Uma das definições que

Chevalier e Gheerbrant (2007, p. 248) dão para cinzas é a seguinte: [...] a cinza parece

efetivamente ter uma função mágica, ligada à germinação e ao retorno cíclico da vida

manifestada”. Essa definição revela que a morte de Jano representou para Mundo o “novo 16

O livro intitulado “Brasil, nunca mais”, apresenta uma série de depoimentos de presos torturados pelos

militares da época. Assim, como vimos, Mundo representa tais pessoas na ficção. Um dos depoimentos obtidos

dizia o seguinte “[...] Lá, numa sala especialmente destinada a torturas, amarraram os pulsos e os tornozelos com

cordas independentes, deitando-me numa mesa pequena e passando as cordas pelas travessas inferiores desta,

forçavam-me o tronco, aos arrancos, no sentido contrário ao movimento da espinha. (ARQUIDIOCESE DE

SÃO PAULO, 2009, p. 225).

99

nascer”, liberto aparentemente da tirania do pai, podendo almejar seus sonhos e tentar torná-

los possíveis, num ciclo em que uma morre para que o outro renasça.

Assim, o mito da Fênix está associado às considerações acima. No

cristianismo, a fênix é tida como o “símbolo da vida que se renova pela morte”. Na arte cristã,

essa ave que está sentada em um nimbo de raios sobre uma palmeira ou apenas nos galhos da

árvore, representa a ave no Paraíso, pois a ave “[...] se renova das chamas é representada e

associada à morte de Cristo pelo sacrifício.”(LURKER, 2003, p. 265)

Para Chevalier e Gheerbrant (2007, p. 421-422), a fênix é considerada um

pássaro mítico que exibe uma exuberância física jamais vista, pois dotado “[...] de uma

extraordinária longevidade, tem o poder, depois de se consumir em uma fogueira, de renascer

de suas cinzas”. Sua morte é relatada da seguinte modo:

Quando se aproxima a hora de sua morte, ela constrói um ninho de vergônteas

perfumadas onde, no seu próprio calor, se queima. Os aspectos do simbolismo

aparecem, então, com clareza: ressurreição e imortalidade, reaparecimento cíclico.

(CHEVALIER;GHEERBRANT, 2007, p. 422)

A maneira como Mundo recomeçou sua vida pode ser comparada à da fênix,

ele tentou renascer do que restava (dar seus próprios passos sem a repressão do pai), e não é

Mundo que vira pó, mas seu pai.

Em todas as cenas citadas, podemos observar que a figura das cinzas se

relaciona a tudo aquilo que nasce e morre. Existe, então, na obra uma reiteração isotópica

temática relacionada à “falta de luz”, à obscuridade, refletida na relação de pai e filho, e à

obscuridade da ditadura militar, momento em que se ancora a história. Logo, Mundo é aquele

que se sente oprimido, pelo sistema e pelo pai, além se sofrer com a falta de afeto do mesmo,

e, nesse sentido, as “Cinzas do Norte”, trágica e belamente apontam para o estado de fracasso

e angústia a que a obra alude no plano subjetivo e social.

100

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde que lemos pela primeira vez o romance Cinzas do Norte, pudemos

perceber que seu título era muito sugestivo e instigante. Uma das primeiras questões que nos

intrigaram foi apreender o modo como a figura das “cinzas” e do “norte” estavam ligadas à

relação entre Raimundo e Trajano. Porém, percebíamos que a narrativa não estava apenas

focada na relação entre eles e que haveria um modo de descobrir como tais figuras aludiam à

localização espacial e temporal em que se projetava a narrativa.

Iniciamos assim a leitura a respeito da fortuna crítica a respeito do autor,

observando como estudiosos de sua obra formulavam suas considerações sobre ela e fomos

realizando fichamentos sobre tais comentários críticos e do próprio autor a respeito do

romance. Observamos que a qualidade da obra, para eles, estava relacionada ao longo tempo

da construção do romance. A questão literária estava imbricada à histórica de modo que o

leitor era tomado por uma abordagem de temas histórico sociais como a ditadura, e o forma

como se refletia na Amazônia pós-guerra por meio da história de um conflito familiar entre

pai e filho, principalmente. Um dos pontos centrais que nos chamaram a atenção foi o fato dos

estudiosos perceberem a grandiosidade da construção do atores dentro da narrativa. Referiam-

se, principalmente, a Lavo, aquele que conduz o leitor, por ter como papel ser o narrador da

história, em que relata a vida de seu amigo Mundo. Pudemos passar a entender a importância

da focalização na obra, de como, o enunciador, ao ceder a voz a Lavo, que, por sua vez, a

cede a Mundo e a Ranulfo, possibilitou-nos refletir não só sobre as angústias existenciais do

protagonista, assim como sobre seus desafetos com o pai, mas também sobre a tessitura da

crítica que se perfaz na obra contra o sistema político da época. Nesse sentido, essas

observações nos auxiliaram a refletir sobre a obra e iniciamos nossas análises, por meio da

escritura de alguns trabalhos, utilizando-nos do referencial teórico da semiótica francesa que

paralelamente aprendíamos ao longo do curso.

Assim, começamos a esboçar resenhas em que descrevíamos os mecanismos da

semiótica francesa que nos deram subsídios para nossos capítulos de análise. Ao traçarmos a

construção do percurso gerativo de sentido, que tem como seu objetivo buscar a significação

do texto, a partir do próprio texto, vimos que a semiótica entende o texto não só com base na

análise estrutural, entendendo o texto como objeto de significação, mas também como objeto

de comunicação entre enunciador e enunciatário. A partir desse momento, começamos a

101

refletir sobre a construção do ator e percebemos que a obra deveria ser descrita em nível não

só do enunciado, mas também em nível da enunciação. Nesse último aspecto, percebemos

que Lavo passa a ter o papel temático de escritor e, como vimos, narrador da história.

Desse modo, as posições enunciativas foram ressaltadas por nós, pois nos

proporcionaram subsídios necessários para verificarmos de que modo os narradores (Lavo,

Ranulfo e Mundo) foram os responsáveis por selecionar os fatos que narraram e que dotam a

obra de unidade, por meio do papel do sujeito da enunciação.

Percebemos também a importância do estudo das paixões, e o modo como a

paixão da cólera se manifestava na obra de Hatoum, por meio da relação entre pai e filho. À

medida que esboçávamos os capítulos teóricos, fomos traçando análise do desafeto entre pai e

filho. A relação conflituosa entre os dois foi se intensificando também pela falta de simpatia

que Mundo sentia pelo militares pelos quais seu pai tinha grande admiração. Esse fato nos

levou a compreender o modo como a ancoragem foi instalada.

Observamos, portanto, a importância do conceito de ancoragem para a análise

da obra, pois as relações pessoais nela se entrelaçaram às paixões que moviam o universo

social. Assim, pudemos concluir que a cólera do pai em relação ao filho e a do filho em

relação ao pai metaforizaram na obra o duro período da ditadura militar em nosso país.

Observamos também que Mundo, por outro lado, também demonstrou seu

afrontamento ao pai por meio da criação de suas obras artísticas. E Lavo, como sujeito

narrador, observador e ator-participante, como sujeito da enunciação, responsável pela obra, é

aquele que, em nível de enunciado, admira o amigo Mundo em sua coragem e, para fazer

homenagem a ele, como alter-ego do autor, é o responsável pela escritura da obra, uma vez,

que, em nível de enunciado, não tinha o mesmo poder de rebeldia e revolta do amigo.

Devemos ressaltar a importância da posição dos três narradores na obra que,

na verdade, transmitem o ponto de vista polifônico do sujeito da enunciação sobre as diversas

vozes que compõem esse momento obscuro da história subjetiva e social, o que nos leva a

refletir, que Mundo, em seu fracasso como artista, reflete o fracasso de um período de

repressão. Assim, a obra Cinzas do Norte tragicamente aponta para as cinzas que

desnortearam o país nesse momento social. Literariamente, por outro lado, é dotada de

grandeza suficiente para levar-nos a refletir sobre a destruição de valores que um momento

ditatorial pode causar na história de um país, de seu povo, de sua cultura.

102

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105

ANEXOS

ANEXO A

Revista Cult-Ol-line

Diálogos com a literatura

Por Daniel Marques

Avesso a feiras de livros, o escritor Milton Hatoum se prepara para discutir sua

produção literária longe desses lugares barulhentos que prezam apenas o sentido

mercadológico da arte de publicar livros. A partir desta sexta, a charmosa cidade de São

Francisco Xavier abriga o escritor amazonense, além de outros grandes nomes do circuito,

como Fernando Morais, Nelson Motta e Moacyr Scliar, para a primeira edição do Festival da

Mantiqueira.

Sucesso de público, o autor de descendência libanesa aceitou o convite feito

pela direção do festival de propor novos diálogos com a literatura. Para ele, a tendência de se

politizar acontecimentos como esse tira o brilho de outros assuntos tão pertinentes em seus

romances. De acordo com o amazonense radicado em São Paulo, problemas sociais da região

do Amazonas são preteridos em razão da questão ecológica.

Em entrevista concedida o site da Revista Cult, o escritor com dois Prêmios

Jabuti no currículo pelos livros Dois irmãos e Relato de um certo Oriente explica por que

abandonou a Bienal, porque considera sua herança árabe um fator determinante para entender

melhor o Brasil e como reviveu o mito do Eldorado em seu último romance, intitulado Órfãos

do Eldorado.

Cult - Qual é o papel desses festivais de literatura?

Milton Hatoum: Acredito que tudo que se fizer pela literatura é válido nesse país que ainda lê

pouco. É um evento menos grandioso que a FLIP, mas a pretensão é ser mais intimista. Eu

acho a iniciativa muito boa. Estamos acostumados a feiras de livro e o que acontece? Feiras

como a Bienal deixam a discussão sobre literatura muito rala, parece que o ambiente é um

pouco difuso, sempre utilizadas com uma função mercadológica. Por isso que eu não participo

desses acontecimentos desde 2001. Sempre tem muita gente e muito barulho. A literatura não

convive bem com isso.

Cult - Alguns de seus romances como Cinzas do Norte e Dois Irmãos foram analisados

como obras políticas. Você se considera um escritor político?

Milton Hatoum: Não. Mas, não há literatura sem política. Sempre tem histórias: alguns

jornalistas criticaram as últimas edições da FLIP por considerarem que ela é essencialmente

política e isso é besteira. Leia qualquer livro e sempre haverá uma crítica sobre poder e

opressão. As pessoas entendem a política de forma muito limitada. Existe política até mesmo

em uma briga conjugal, pois é uma batalha em busca do poder. Como dizia Drummond: "não

são dois amantes, são dois inimigos". Por isso, acho que existe política em tudo. Não escondo

minhas convicções e também não tenho nenhuma tendência ao cinismo e à alienação.

Cult - A proposta do Festival da Mantiqueira é "dialogar com a literatura". Além da

política, a literatura permite quais diálogos?

106

Milton Hatoum: A linguagem, o estilo, o fazer literário, a dimensão simbólica de alguns

assuntos. Essas são as múltiplas leituras que o leitor encontra em uma obra. O romance, como

é um gênero tão aberto, dá espaço essa multiplicidade. Já vi tantos ensaios e teses de análises

diferentes sobre Dois irmãos. Há estudos sobre a dimensão bíblica da história dos dois

irmãos, estudos comparativos com o livro Esaú e Jacó, do Machado de Assis, existe também

a perspectiva histórica e política do livro. Eu gostaria que todos esses tópicos pudessem surgir

em uma discussão sobre literatura.

Cult - Alguma vez você percebeu que alguma análise fugiu do tema ou você não faz esse

tipo de distinção? Milton Hatoum: Não. Senti algumas vezes que eu realmente não sabia sobre o que eu estava

escrevendo, porque existem muitas interpretações psicanalíticas sobre meus livros. Já fiquei

muito surpreso com algumas análises e acho que tem muita loucura nos dois lados: o meu

lado de escritor e o lado de quem lê a obra. Isso é importante na literatura: não ler o livro de

uma única maneira, pois sempre há disparidades. Tanto melhor será o livro se houver

diferentes leituras sobre ele. Por exemplo, um livro de auto-ajuda não gera nenhuma

discussão. Ele está pronto para você viver melhor.

Cult - Você sente um crescimento do público leitor no Brasil ou ele caminha para o lado

errado, como, por exemplo, o da auto-ajuda? Milton Hatoum: Na quantidade há qualidade. Eu acho que existe um crescimento sim e isso

acontece primeiro em setores que são considerados de leitura mais fácil, como a auto-ajuda e

os best-sellers. Isso não é só no Brasil, mas sim em todos os lugares do mundo. Eu não posso

mais reclamar que as pessoas não lêem por causa do sucesso de Dois irmãos.

Cult - Você acredita que a cultura do Norte, especificamente a de Manaus, ainda é

pouco difundida? Milton Hatoum: Eu acho que o Brasil desconhece o Brasil. Se você perguntar para uma

amazonense sobre a história do Rio Grande do Sul ele também não vai saber, mas eu aprendi

muita coisa desse estado lendo Érico Veríssimo. Eu acho que a Amazônia é muito comentada,

mas ela é pouco estudada: é uma região que ainda é um mito, um mito que está sendo

destruído. Aliás, esse é um dos assuntos do meu último livro, Órfãos do Eldorado. Esse mito

será destruído antes de muita gente ter a chance de conhecê-lo. Eu acho que as pessoas não

conhecem porque não querem.

Cult - Muito se fala sobre a Amazônia como um símbolo de diversidade biológica, mas

também existe a parte urbana dessa região que é pouco discutida. Milton Hatoum: A minha Amazônia é urbana. Sou filho da cidade, não sou filho do rio ou da

floresta. Para ser sincero, para mim é mais dramática a miséria de Manaus e de Belém do que

as histórias sobre a destruição da Amazônia, pois é o ser humano que está sendo destruído.

Cult - Esse mito do Eldorado é uma constante na literatura. Como você dirigiu seu olhar

para retomar esse mito e situá-lo nesse contexto urbano de Manaus? Milton Hatoum: Esse livro já tinha sido vendido para 16 países antes de ser publicado no

Brasil, mas eu não queria fazer um livro para um chinês ler ou para um escocês ler como se

fosse algo exótico. O mito do Eldorado é universal, porque é próprio do mito ser viajante.

Como Edward Said dizia: "não existem culturas cristalizadas, elas sempre serão vasos

comunicantes".

107

Cult - A sua descendência libanesa, nesse sentido, lhe dá um olhar de estrangeiro. Essa

questão é essencial para o seu trabalho? Milton Hatoum: Eu acho que eu consegui entender melhor o Brasil. Eu consegui aprender

bastante sobre a cultura árabe, também aprendi a falar francês na minha infância, e isso tudo

isso foi importante para a minha vida cultural. A herança da imigração enriquece o olhar do

ser humano. Os nordestinos, por exemplo, enriquecem espiritualmente a cidade de São Paulo.

Esse olhar diferenciado sobre a cultura do outro define o que é a literatura.

Cult - Você acha difícil traduzir os seus romances em função desse olhar próprio que

você possui? Milton Hatoum: Eu gosto muito das traduções. Saiu agora uma tradução francesa para o livro

Cinzas do Norte e eu achei o trabalho poderoso. Acho que nada irá se comparar à dificuldade

de se traduzir um livro do Guimarães Rosa, pois ele reinventou a linguagem e seus livros são

de uma complexidade muito grande. Quando hoje se fala em vanguarda, em inovação, tudo

parece uma piada. Inovação depois de Rosa... Vamos com calma para não sermos patéticos.

Cult - Você já comentou em outras entrevistas que o sucesso já havia lhe deixado

deslumbrado e que isso era patético. Como você lida com o sucesso hoje? Milton Hatoum: Quando disse isso me referia ao meu primeiro livro Relato de um certo

Oriente, que foi logo traduzido para várias línguas e ganhou o Prêmio Jabuti. Eu confesso que

fiquei bastante deslumbrado na época. As viagens, as entrevistas, artigos no Le Monde...

Depois (e não demorou muito não) eu vi que isso não vale nada, não presta para nada. Hoje eu

acho que com a maturidade você dá mais importância ao orgulho do que à vaidade. Enfim, o

melhor mesmo é o leitor, pois é ele quem justifica a boa literatura.

Cult - Qual é o seu próximo projeto? Milton Hatoum: Eu estou reunindo e reescrevendo alguns contos que eu já havia publicado no

Brasil e em alguns outros países. Eu quero juntar isso e publicar. Alguns se passam em Paris,

outro se passa em Manaus, um outro na Califórnia... São minhas viagens (risos).

Cult - Como você trabalha? Você prefere se desligar do mundo, fugir de São Paulo...

Milton Hatoum: Não, agora eu sou um pouco mais disciplinado. Sento no meu canto, trabalho

algumas horas... Existem várias maneiras de você se dispersar e geralmente você atribui essa

falta de disciplina a alguém. A minha única falha é que eu sou lento, isso é minha essência e

esse é o meu modo de ser.

108

ANEXO B

Milton Hatoum Julio Daio Borges

Milton Hatoum nasceu em 1952, em Manaus. Morou em Brasília, na Espanha, na França e

nos Estados Unidos. Reside desde 1999 em São Paulo, cidade onde se graduou arquiteto

(FAU-USP) na década de 1970. É autor, pela Companhia das Letras, de Relato de um certo

Oriente (1989), Dois irmãos (2000) e Cinzas do Norte (2005). Ainda dá aulas de literatura, é

tradutor esporádico e colunista da EntreLivros e da Terra Magazine.

A idéia da entrevista surgiu a partir de um curso sobre o gênero romance que Milton Hatoum

ministrou em 2005 na Casa do Saber. O objetivo da entrevista era ampliar a compreensão da

obra do escritor mas acabou saindo melhor do que a encomenda, foi publicada no Suplemento

Literário de Minas Gerais e abre, agora, esta nova seção no Digestivo Cultural.

Na entrevista, Milton Hatoum fala de seus três romances, com destaque para o último.

Revisita suas principais influências e dá conselhos aos jovens escritores. Discute, ainda, o

papel do artista em nossa sociedade e esmiúça um pouco o ofício de escritor. Sobre a mesma

entrevista, Milton Hatoum depois declarou: “Foi uma das melhores conversas sobre

literatura”.

1. Milton, o que vem depois da obra-prima? Agora entendo por que você parecia tão

exaurido, quando da época do lançamento, no curso na Casa do Saber... Depois de

Cinzas do Norte, você sente que realizou uma obra – ao contrário de Mundo, seu

protagonista?

Cinzas do Norte não é uma obra-prima, e digo isso sem falsa modéstia. Mas com esses três

romances, acho que consegui realizar alguma coisa... Tentei construir um universo ficcional...

O mais importante é dar forma a esse universo fechado e coeso, mas vivenciado com

intensidade e paixão. Por isso estava exaurido. Foram mais de quatro anos de trabalho... E

escrever significa reescrever, filtrar toda uma experiência, cujo limite é a morte. O fim de um

romance é uma morte simbólica porque o narrador esgota toda sua experiência sobre um

assunto ou conflito ou história de vida. Não queria o destino de Mundo para mim. Aliás, de

nenhum de meus personagens... a não ser dos narradores, que sobreviveram para escrever um

livro. Só percebi isso quando estava terminando o Cinzas do Norte. Pensei: é o terceiro

romance que escrevo e é o terceiro narrador que sobrevive para contar uma história. Um

pouco como Sherazade, que inventa e fabula para não ser decapitada. Nós vivemos a

síndrome de Sherazade.

2. Ainda na Casa do Saber, você falava que queria discutir, através desse romance, o

papel do artista na nossa sociedade. Conforme previsto, a mídia não trouxe essa

discussão à baila... Enfim: você não acabou provando, até pela sua trajetória desde 1989,

que se pode ainda construir uma obra, mesmo em tempos tão difíceis para o artista?

É verdade, não se falou muito sobre isso, embora seja um dos temas centrais do romance. O

personagem Mundo se depara com um ambiente adverso em Manaus, onde o pai, a província

e o regime militar o oprimem. Ele é um “estranho” em sua própria terra. Mas anos depois,

109

quando mora em Berlim e Londres, ele se torna um auto-exilado, com pouca interlocução, e

cerceado pela imagem sufocante do pai. Quer dizer, é um estrangeiro, sem eira nem beira,

pois não desfruta da herança de Jano. De certo modo, ele faz o percurso que alguns da minha

geração fizeram: de Manaus (ou qualquer outra cidade periférica), para o Rio ou São Paulo e

depois para a Europa. Eu me inspirei em romances cujos personagens são intelectuais ou

artistas: Retrato do artista quando jovem, Pais e filhos... São personagens desgarrados, que

instauram uma fratura na família e na sociedade. Essas questões vêm de muito longe, o exílio,

o lugar difícil e improvável do artista num mundo movido pelo consumo e o lucro. Nos dias

de hoje a literatura já não tem o interesse que tinha na época de Joyce ou mesmo na década de

1950, mas acho que ainda há e sempre haverá bons leitores em todo o mundo. Esses leitores

existem e justificam a literatura.

3. No seu caso, mais uma vez, você acha que encontrou o equilíbrio entre Mundo, o

artista bruto e “impoluto”, e Arana, o artista consagrado e “vendido”? Esse dualismo

ainda persiste? Você sofreu pressões, por exemplo, como escritor, para pender para um

lado ou para o outro? Se, sim, como superou isso?

Mundo e Arana são pesos nas extremidades de uma mesma gangorra. A pressão social e a

ambição se refletem na vida de cada um desses personagens. Acho que esse dualismo ou

polarização é nocivo para ambos. No caso de Arana, por motivos éticos e estéticos. Ele é o

caso típico de intelectual ou artista que promete revolucionar a arte e acaba cooptado,

beijando os anéis do poder. Começa sua carreira como artista de vanguarda e no fim ele se

revela... No caso de Mundo, sua autocrítica é tão feroz, tão radical, que o imobiliza. Penso que

o equilíbrio a que você se refere não significa capitulação nem dissipação total, e sim a busca

de uma linguagem que traduza a densidade de uma experiência, sem abrir mão de certos

princípios. Não sofri nenhuma pressão editorial, pois demorei dez anos para publicar o Dois

irmãos. A maior pressão veio de dentro de mim. O primeiro romance foi bem recebido pela

crítica daqui e do exterior, e isso me inibiu. A auto-exigência aumentou e eu não gostei de

nada do que escrevi depois do Relato. Mas há também o narcisismo... O narcisismo

extremado é nocivo e deve ser evitado. Mas isso só vem com a maturidade. O tempo é

fundamental para quem lê e escreve. A passagem do tempo embaça a figura do autor e faz

com que a crítica se concentre em sua obra, que é o que interessa. Por isso sou meio neurótico

com a autobiografia, pois minha vida não devia ter nenhum interesse para quem lê meus

livros.

4. Outras dicotomias se colocam com muita força nesse livro e em sua obra como um

todo (principalmente as de família...). Mas, a meu ver, nunca foram tão bem resolvidas,

ou “discutidas”, como em Cinzas do Norte. Você, tradicionalmente, não dá “solução” e

nenhum personagem se salva no final. Pessoalmente, acredita numa visão trágica da

vida–como os gregos, como Nietzsche?

Sim, e também como Conrad, Faulkner e Dostoiévski. Os poucos personagens que se salvam

são os narradores. Se não sobrevivessem, não haveria narrativa... É o que acontece com o

narrador do conto de Poe: "A queda da casa de Usher". Ele tem de cair fora antes do

desmoronamento da casa. Trato a família como um ritual autofágico, em que todos se

devoram para no fim sobrar apenas a palavra escrita, a memória inventada da tribo.

5. No caso de Dois irmãos (2000), você contou que Raduan Nassar – que não mais

escreve, mas que ainda assim lê – lhe aconselhou, entre outras pessoas, a não pender

tanto para o lado de Yaqub, o irmão aparentemente “bom” da história, que você

110

igualmente condena no final. Em Cinzas do Norte, foi premeditado condenar também a

Lavo, aparentemente um narrador “impessoal”, através de Tio Ran?

Foi intencional... Bom, quando você chega ao terceiro livro, deve ter assimilado alguma coisa,

inclusive as falhas dos anteriores. A verdade é que os três manuscritos passaram por leituras

cerradas dos editores e de alguns poucos amigos. Por exemplo, a narrativa de Ranulfo (tio

Ran) não existia até a penúltima versão do manuscrito. Nessa versão, o texto de tio Ran era

apenas um fragmento que aparecia no fim do livro, com o título "Obituário de Mundo". Na

releitura dessa versão, senti falta de uma pré-história da vida de Mundo, de sua mãe e de

outros personagens que moravam no Morro da Catita, antes do casamento de Alícia com Jano.

Então passei uns oito meses escrevendo essa narrativa, até encontrar o tom da voz desse outro

narrador, que conta outra história, diferente da história narrada por Lavo. Quis acentuar a

aparente “impessoalidade” de Lavo, embora este sinta atração e medo do pai do amigo. Mas a

perplexidade de Lavo é a vida do amigo, e é isso que ele tenta entender. Porque a história de

uma amizade é a história de uma compreensão e também das lacunas dessa amizade, daquilo

que é inefável ou não pode ser dito... A amizade é uma relação de afeto e cumplicidade, mas

com zonas de sombra em que aparecem a dúvida, a perplexidade e o ciúme. Ninguém entende

o outro em sua plenitude, nem o outro nem o passado, e eu quis explorar isso nos três livros.

O romance é um esforço dirigido a essa compreensão, que nunca se realiza plenamente.

6. Embora o protagonista seja Mundo, e o livro se encerre com ele coroando uma

trajetória de muita frustração, todas as personagens terminam também sem realizar

suas potencialidades: Jano se frustra com o filho Mundo; Tio Ran não se junta ao amor

de toda a vida, Alícia... Talvez só Lavo, com testamenteiro, mesmo que condenado, tenha

realizado seu intuito – contar a história toda. Entre a ópera bufa, de Machado, e o som

& a fúria, de Shakespeare e Faulkner, você fica com a segunda opção? Sim, com a segunda, embora não haja nenhum sopro de esperança na obra de Machado, cujo

pessimismo era radical. Faulkner é um dos meus escritores prediletos, e toda a crítica de sua

obra à sociedade americana é muito atual, sempre sob o signo do trágico, da violência e, às

vezes, do horror. O patriotismo exacerbado, o racismo, a apologia ao consumismo, o

fanatismo religioso, o puritanismo e o moralismo, tudo isso é elaborado na ficção de

Faulkner. Você entende a América de Bush lendo Luz em agosto ou contos como "Setembro

seco"e"Dois soldados".

7. Um dos grandes méritos de Cinzas do Norte, e da sua obra, é consolidar uma

linguagem, uma visão de mundo, daquele universo brasileiro em torno da Amazônia,

misturado com a colonização libanesa e a presença indígena. Ao mesmo tempo, Cinzas

do Norte é genuinamente universal, pelo que contém de drama humano. Como foi

chegar a essa síntese desde Relato de um certo Oriente (1989)? Antes de escrever o Relato, eu já estava vacinado contra a literatura regionalista. Não ia cair

na armadilha de representar “os valores” e a cor local de uma região que, por si só, já emite

traços fortes de exotismo. Percebi que podia abordar questões a partir da minha própria

experiência e das leituras. E fiz isso sem censura, sem condescendência, usando recursos

técnicos que aprendi com algumas obras. Tive a sorte de nascer e morar numa cidade

portuária, onde não faltam novidades nem aventuras ou casos escabrosos. Além disso, os

membros da minha tribo manauara, amigos, parentes e vizinhos não eram figuras de uma

natureza-morta. Histórias que vinham de todos os lados, de minha casa, da vizinhança, do

porto, dos bordéis-balneários e até da casa do arcebispo. Quando penso na minha infância e

juventude, percebo que foi a época em que vivi com mais intensidade, dia e noite. Havia tudo,

inúmeras peripécias e também a política, pois meus tios participavam da vida política, que era

111

mais um assunto doméstico. Aos 15 anos saí sozinho e fui morar em Brasília, isso em 1968. E

depois morei em São Paulo e fora do Brasil, o que foi importante para minha formação.

Chegou um momento em que fiz uma pausa e comecei a escrever sobre esse passado. Mas

não queria escrever qualquer coisa, me debrucei no trabalho, na forma do texto, na construção

dospersonagens.

8. Machado de Assis nasceu, morreu e falou do Rio de Janeiro do século XIX;

Guimarães Rosa foi médico e diplomata, morou fora, mas falou sempre da sua Minas

Gerais; já Euclides da Cunha saiu do Rio e de São Paulo para falar de Canudos. Você,

como Mundo, passou um tempo considerável longe da sua terra natal, o Norte do Brasil,

acha que é sua sina exorcizar os demônios da época em que viveu lá? Vê, no futuro, a

possibilidade de um romance urbano (sei que não gosta da expressão)? A época em que vivi em Manaus somam trinta anos. Não gosto muito da expressão porque é

genérica e tenta classificar ou rotular um tipo de narrativa. Romance urbano é quase uma

tautologia. O romance já é, em sua origem, um gênero que nasceu na cidade e está

relacionado com a imprensa. O espaço do Rio de Janeiro de Machado é menos importante que

o conflito dos personagens e a ordem social e simbólica que representam. Alguns dos

melhores contos de Machado, como “O Espelho”, ocorrem fora do Rio, embora tenham uma

relação com a sede do Império ou com a capital da República. Ninguém mais “urbano” e

paulistano do que Mário de Andrade, mas sua obra-prima é Macunaíma, que mistura tudo:

mitos, paisagens, lugares, etnias, a floresta e a cidade. E o que dizer do romance Os ratos, de

Dyonélio Machado? O drama de Naziazeno não reside na violência de Porto Alegre, uma

cidade pacata e provinciana na época da narrativa, e sim no ritmo tenso de uma vida medíocre

e dilacerada pela pobreza, desespero e angústia. O norte dos meus romances é uma cidade,

Manaus, que mantém vínculos fortes com o interior do Amazonas mas também com São

Paulo (no Dois irmãos), e com o Rio e a Europa, no Cinzas do Norte. Manaus foi construída e

consolidada a partir dessas relações sociais, econômicas e culturais. Na literatura é importante

estabelecer vínculos de afinidade e oposição. Agora mesmo acaba de sair um conto que

escrevi (“Bárbara no inverno”, na antologia Aquela canção/Publifolha) ambientado em Paris e

no Rio. E é provável que São Paulo apareça com mais força em algum texto futuro. É só uma

questão de tempo. Por enquanto, ainda tem seiva na infância manauara.

9. Você seguiu os mestres, daqui e de fora, mas, ao mesmo tempo, inaugurou uma

linhagem própria. Acredita que, num futuro, alguém possa continuar a sua obra, em

relação a temas e mesmo no que diz respeito à ambientação – ou imagina que cada

“literatura” está condenada a ser autônoma? Penso que nenhuma literatura é totalmente autônoma. Cada escritor procura sua voz, mas essa

voz, esse estilo, que é algo pessoal, deve alguma coisa a outras vozes. Uma frase de Mundo

resume o quero dizer: Nada é puro, original, autêntico. Quando lemos Borges ou Flaubert,

estamos lendo uma biblioteca. Faulkner gostava de Conrad, que gostava de Henry James, que

gostava de Flaubert... E todos leram Cervantes... Talvez seja pretensioso imaginar que alguém

possa continuar meu trabalho. Mas escrever é inscrever-se numa tradição, que é do Oriente e

do Ocidente. Por exemplo, Proust, Stendhal e Machado de Assis foram fascinados pelo Livro

das1001Noites...

10. Sei que você não parece muito entusiasmado com o tempo presente, e não só no que

diz respeito às artes... De qualquer maneira, o que diria a um autor iniciante? Existem

conselhos a serem dados? Alguma coisa que você mudaria na sua própria trajetória? Ou

o caminho do escritor é sempre solitário, árduo e imponderável – como o destino de

Mundo?

112

Quando eu era jovem, pensava que só devia escrever e publicar depois de ter lido uma

biblioteca formada por grandes livros. Eu me obriguei a ler livros que hoje não leria mais,

textos que não me deram uma gota de prazer no ato da leitura. Foi um erro, mas não me

arrependo. O que eu posso dizer a um autor iniciante? Em primeiro lugar, a vida é mais

complexa que a literatura, mas uma literatura consistente parte exatamente da assimilação da

complexidade da vida, que inclui a leitura interessada de bons livros. Diria também que a

literatura exige paciência e muito trabalho, e que a imaginação é filha desses atributos. Por

fim, é preciso ter cuidado para não cair na tentação da vaidade extrema nem do

experimentalismo vazio e superficial. A novidade de uma obra vem da configuração do texto

pelo narrador, do vínculo necessário e profundo da linguagem com o assunto, e não da moda

literária ou de um compromisso neurótico de se escrever algo absolutamente original. Do

ponto de vista da linguagem, o nouveau roman francês não tem muita novidade, e o próprio

Barthes reconheceu isso. A busca insana de uma “originalidade genial” pode ser algo inibidor

e desastroso para um jovem. Acredito que todo ser humano tem uma experiência de vida,

aquilo que Giorgio Agamben chama de “infância do ser humano”. Ele diz algo assim: a

linguagem aparece como o lugar em que a experiência deve tornar-se verdade. E a literatura é

a transcendência pela linguagem de uma vida empírica ou do que nomeamos realidade. Uma

linguagem que transmita uma verdade interior, não mascarada nem superficial.

113

ANEXO C

Cinzas que queimam

Júlian Fuks

Construir com minúcia passados e futuros, medos e anseios, dores e prazeres. Construir a

completude de algumas tantas vidas manauaras e a complexidade de seus entrelaços nortistas.

Elaborar personagens com nome e sobrenome e conduzi-los enquanto se debatem e se

esbatem. Tudo para que depois restem apenas suas cinzas.O escritor Milton Hatoum é de

Manaus, sim, mas não amanuense. Escreve a custo, lentamente, tomando o tempo de que

disponha. Para terminar seu último romance, "Cinzas do Norte", lançado pela Companhia das

Letras, para elaborar personagens e tramas apenas para depois deitá-los às cinzas, levou

quatro anos. E um detalhe: este é apenas o terceiro livro que publica, em quase 30 anos de

carreira literária. Não por acaso, então, se tornou referência para falar sobre a construção do

romance, em cursos e palestras por todo o país. Sobre isso e sobre seu novo livro Hatoum fala

nesta entrevista à Folha.

Folha - "Cinzas do Norte" tem uma abundância de personagens completos, com

passado, presente e futuro. Como você os constrói?

Milton Hatoum - Num romance, bons personagens são fundamentais. O enredo existe através

deles, dos conflitos e das relações que criam e mantêm. Faço sempre um esforço no sentido de

construir personagens complexos, que nunca sejam acessórios. Até mesmo aos personagens

secundários, até mesmo ao cachorro, tentei dar um pouco de relevo. Para isso, os personagens

são somatórias de pessoas reais ou de outros romances, além da minha própria imaginação, é

claro.

Folha - No livro, um personagem define o artista como "aquele que procura alguma

coisa". Você acredita nessa definição?

Hatoum - É uma das definições possíveis. O artista, no caso da literatura, não tem um lugar

cômodo e utilitário no mundo. É uma questão que vem do século 19, com Baudelaire: qual a

função da obra de arte no sistema capitalista? O artista é uma espécie de ruído, uma

dissidência na sociedade.

Folha - O que você procura com seus livros?

Hatoum - Eu quero viver de literatura, mas sem escrever para vender, para alcançar sucesso

comercial. Todo escritor quer ter leitores, de preferência bons. São os bons leitores que

114

justificam a literatura. Não estou preocupado em ser o melhor. A literatura latino-americana já

tem seus grandes expoentes: Borges, Cortázar, Bioy Casares, Guimarães Rosa, Machado,

todos escritores de grande envergadura.

Folha - Qual é, então, sua intenção? Fazer uma literatura mais do Norte, de Manaus,

essa cidade que está em todos os seus romances?

Hatoum - A literatura regionalista já se esgotou há muito tempo. O regionalismo é uma visão

muito estreita da geografia, do lugar, da linguagem. É uma camisa de força que encerra

valores locais. Minha idéia é penetrar em questões locais, em dramas familiares, e dar um

alcance universal para elas. O assunto, a matéria, não são garantia da boa narrativa. O que

vale é a fartura da linguagem, a forma.

Folha - Mas quais as características de Manaus que você considera literariamente

interessantes?

Hatoum - Manaus sempre foi uma cidade ao mesmo tempo cosmopolita e bastante

provinciana, por seu isolamento geográfico. E a província tem uma coisa importante para

quem escreve. Nas cidades muito grandes, se diluem as anedotas, os eventos escabrosos, as

situações dramáticas. Ora, na província, não. A província é um palco. Ali estão os loucos, os

adúlteros, os assassinos, os corruptos, os bandidos. A província é a metonímia de um grande

teatro. E isso é o ideal para quem quer construir personagens.

Folha - Por que você sempre trata de famílias, de relações familiares conservadoras e

problemáticas?

Hatoum - A família sempre foi um dos núcleos dramáticos do romance. O drama familiar é

uma de suas grandes vertentes desde o século 18. É o ponto de partida para uma rede de

subtemas que o romance insinua: políticos, históricos, urbanos. E é a primeira grande

convenção. E também o núcleo menor de uma convenção maior, de um regimento.

Folha - Em "Cinzas do Norte", você soma o drama familiar ao romance epistolar, que

são pilares clássicos do romance...

Hatoum - O questionamento do gênero não é nada novo. Se engana quem acha que faz

literatura de vanguarda ao romper com o gênero. Isso vem do romantismo, e a literatura

fragmentada é quase tão velha quanto o romance. Fico impressionado com alguns escritores

que estão mais preocupados em destruir o romance do que em escrever um bom livro.

Folha - "Ou a obediência estúpida ou a revolta", diz um personagem seu. Para a

construção do romance, isso não é válido?

Hatoum - É uma frase roubada do Balzac que se refere ao questionamento moral do

personagem. "Cinzas do Norte" é uma espécie de educação sentimental. É meu livro mais

flaubertiano nesse sentido. É um romance da desilusão, sobretudo. Não sobra nada. É, de

longe, a coisa mais amarga que eu já escrevi. Tudo termina em cinzas: a cidade, as vidas, os

personagens. É um romance da dissipação, dessas vidas que se esvaem. Milton Hatoum

afirma que seu romance é um em que consentra-se uma grande emocional dizimada

comportamentos das personagens do romance. Milton Hatoum em entrevista ao jornal afirma

115

que: emaranhado de sentimentos que percorrem toda a narrativa Tudo conflui para o trágico.

Salvo a literatura.

Folha - Citações e episódios da vividos por você ou por outros. Essas são suas fontes?

Hatoum - A literatura se constrói por duas coisas básicas: a tradição literária e a experiência.

De resto, há a configuração desses elementos pela linguagem. O romance é sobretudo a arte

da paciência. Eu demoro anos para escrever, esboço tramas e subtramas antes de começar. E

começo pelo fim. É como atravessar uma ponte pelo lado oposto. A narrativa é essa travessia,

mas eu sinto uma necessidade de saber me situar antes nos dois extremos. Entre as duas

extremidades é que entra o imprevisível, a imaginação

116

ANEXO D

No traçado das letras

Revista Au

Bianca Antunes

Há 18 anos, já não havia mais volta: Milton Hatoum trocou, definitivamente, o traço dos

desenhos pelo das letras, quando publicou seu primeiro romance ( Relato de um certo oriente

). Formado em arquitetura pela FAUUSP em 1978, Hatoum fez de tudo um pouco. Logo que

recebeu o diploma, participou de projetos em Manaus – cidade onde nasceu, em 1952 – e

trabalhou em um escritório de arquitetura em São Paulo, além de dar aula de história da

arquitetura na Universidade de Taubaté. Depois, trabalhou na Istoé como repórter, resenhando

livros e peças teatrais. “Cobri as primeiras loucuras da Igreja Universal com a primeira grande

concentração deles no Pacaembu”, conta. Em 1980, foi estudar língua e literatura espanhola

na Espanha. Ia passar quatro meses e acabou ficando quatro anos, nos quais incluiu um

mestrado em literatura comparada na Universidade de Paris III. Durante esse período, deu

aula de português e chegou a ajudar uma tradutora a traduzir dois romances de Jorge Amado.

Voltou a Manaus em 1984, onde ficou por mais 15 anos, e ainda lecionou literatura na

Universidade do Amazonas e na Universidade da Califórnia (Berkeley). Entre a temporada na

Europa e os primeiros anos em Manaus, escreveu seu primeiro romance. Se seus projetos de

arquitetura não ficaram na história, suas obras literárias o colocam entre os principais

escritores brasileiros contemporâneos, editado em onze países. E, se lhe falta um Pritzker,

sobram-lhe Jabutis: seus três livros levaram o prêmio máximo da literatura brasileira como

melhor romance em 1990, com Relato de um certo Oriente , em 2001 com Dois irmãos e em

2006 com Cinzas do Norte. Nos três, Manaus figura como mais uma personagem, retratada

por suas ruas, sua arquitetura, suas transformações e pelas pessoas que a habitam. Hatoum

recebeu a reportagem de AU para uma conversa que abordou desde a FAU dos anos 70, as

experiências com arquitetura, as transformações de Manaus, até algumas teorizações que

tentam aproximar o fazer arquitetônico e o fazer literário.

aU Por que arquitetura?

MILTON HATOUM Um tio engenheiro-arquiteto talvez tenha me influenciado. Ouvia falar

desse tio que veio de Manaus e ficou em São Paulo. Eu também desenhava em Manaus –

além de ter uma banda e de pintar. Como achava que não podia viver nem da arte, muito

menos da palavra, acreditei que a arquitetura poderia conciliar a arte com a técnica. Uma

definição, aliás, que vem de Vitruvius: várias ciências que confluem para um ornamento, para

uma beleza. Fui a Brasília para estudar o equivalente ao ensino médio no colégio de

aplicação, da Universidade de Brasília. Era um colégio extraordinário, como depois foi a

FAUUSP. Vejo muita semelhança entre o colégio de aplicação em Brasília e a FAU, pois

eram laboratórios de experimentação, de arte, de literatura, fotografia e até mesmo de música.

Existia por trás do projeto didático uma formação humanística que desapareceu das escolas.

aU Como foi estudar na Fau nos anos 70?

HATOUM A FAU me abriu possibilidades de linguagens, fui aluno do Flavio Mota, do

Flavio Império, do Luis Carlos Daia, da Renina Katz, do Joaquim Guedes, do Rodrigo

Lefreve, de arquitetos que pensavam a cidade e a ocupação urbana politicamente. Não era

apenas uma orientação estética, passava pela leitura social. Nossa maior preocupação estava

117

voltada à habitação popular, pelo menos a de um grupo considerável de alunos. Além disso,

havia os laboratórios fotográficos, o teatro, criamos uma revista de poesia e desenho,

chamada Poetação. Éramos eu, Tânia Parma, Newton Massafumi, Rubens Matuque e a Roseli

Nakagawa. Foi uma revista que teve quatro ou cinco números e foi impressa na FAU.

aU Era um ambiente não só de arquitetura?

HATOUM Havia uma multidisciplinaridade constante. Para passar pelo projeto, fazia-se uma

pesquisa exaustiva social, econômica e geográfica. O projeto não estava desligado do

contexto, do lugar, da cidade e das pessoas que iam habitá-lo. Além disso, tinha uma vida

política e toda a brutalidade da vida brasileira no regime militar: a FAU era muito politizada e

muitos colegas participaram do movimento estudantil. Mas sabia que não ia ser arquiteto, eu

estava ali tentando me diplomar para entrar no mercado de trabalho. Foi na FAU que comecei

a escrever com mais vontade. Cursei algumas disciplinas na Letras, com o Davi Arrigucci Jr,

com a Leila Perrone Moises, o Alfredo Bosi. Esses cursos me estimularam a refletir sobre

literatura.

aU Como foi a transição para a literatura?

HATOUM Muito lenta. E também insegura, porque quando você publica, você se expõe

muito. Não pensava em viver de literatura. Isso para mim era uma quimera. Por outro lado,

existia uma grande frustração como arquiteto por não trabalhar no que queria: um projeto de

habitação popular honesto, elaborado e pensado, cuja carência era e ainda é enorme. E os

projetos de habitação popular que via, com raríssimas exceções, eram horrorosos, como canis,

pombais para os pobres. O projeto do Artigas, em Guarulhos, é uma exceção maravilhosa que

só confirma a regra.

aU Você chegou a fazer algum projeto de habitação popular?

HATOUM Em 1977, logo que me formei, fui convidado a participar do projeto de uma

cidade-dormitório ligada a Manaus – hoje tem cerca de 300 mil habitantes. Naquela época,

teria duas mil casas, com comércio, lazer e serviços. Quis estudar a área e preservar a

vegetação, porque era uma área de floresta primária linda. Questionei qual era o levantamento

social e econômico que tinha sido feito. Responderam que não precisava. Era só cortar o mato

e construir casas. A prefeitura queria o mesmo que estava sendo feito no Brasil: desmatar e

construir um imenso canil. Aí caí fora, porque era uma desfaçatez enorme. Foi quando pensei

que não podia ser arquiteto, porque iria passar a vida frustrado. Não queria passar a vida

fazendo casas burguesas – embora não seja contra e fiz isso. Então, desisti. Mas em Manaus

ainda fiz alguns projetos. Minha última recaída de arquiteto foi nos anos 80. Fiz o projeto de

uma casa e de uma loja. Não gostei de nada. Mas quando eu terminei meu primeiro romance (

Relato de um certo oriente ), gostei tê-lo escrito.

aU Você percebe alguma mudança em como se vê a moradia popular e a especulação

imobiliária com impactos ambientais e os sociais?

118

HATOUM O terrível é que não mudou. As políticas urbanas não mudaram. Há bons

exemplos pontuais, mas, no geral, a situação ainda é de total desprezo pela população.

aU Em Manaus isso é duplamente forte, porque além do lado social, há o lado ecológico.

HATOUM Exato. É uma destruição total, do meio ambiente e da possibilidade de uma

moradia digna. Nos últimos 25 anos, Manaus cresceu horizontalmente e verticalmente. E

naquele clima, as grandes torres são barreiras para a ventilação. Todo o colar fluvial, a área

beira de rio que circunda Manaus, o rio Negro, é parte ocupada pelo exército, parte por

condomínios de altíssimo luxo e uma grande parte por favelas. As cidades não são pensadas,

não são planejadas no Brasil. Depois do estrago, vem um tipo de solução que é uma espécie

de arremedo. Vou ser sincero: o arquiteto não tem voz no Brasil. O escritor não tem voz, o

jornalista não tem voz. Ninguém tem voz. Esse é o País em que os três poderes dão as costas a

qualquer tipo de crítica. Eles se completam na medida em que são auto-suficientes, desligados

da população, indiferentes a qualquer tipo de crítica. Auto-suficientes na sua mediocridade

secular. Mas do ponto de vista da cidade acho, por exemplo, que São Paulo só vai piorar. Há

milhares de favelas: os pobres ou vão para a periferia ou para o morro. E no fundo os políticos

não estão preocupados. O Ministério das Cidades está preocupado em regulamentar a

propriedade do solo e tem feito um trabalho interessante. A passos lentos porque nesse País

tudo é lento. E também porque são milhões de invasões. A periferia de Manaus é invasão.

Grilagem de terra urbana, desmatamento, venda, construção de barracos, é algo insano. Há

grupos organizados que invadem para vender os lotes invadidos. Desmatam, fazem lotes e

vendem aos imigrantes que chegam em busca de emprego.

aU Como foi sua relação com a cidade desde que desistiu da arquitetura?

HATOUM Não tinha mais intenção de trabalhar como arquiteto e, no entanto, nunca me

desliguei dos problemas da cidade e das cidades onde vivi. Porque o romance é um gênero

literário essencialmente urbano e que falam da cidade e da arquitetura. O romance é fruto da

ascensão da burguesia, é um gênero que tem muito a ver com a imprensa e a imprensa surgiu

na cidade com a revolução burguesa. Os grandes romancistas foram, de alguma forma,

cronistas da cidade e do mundo urbano. É só ler qualquer romance de Balzac. Há romances

em que a descrição da cidade, da casa e do habitat é importantíssima: é como um personagem.

Veja a Londres de Dickens, por exemplo. Para onde se olha na literatura, a cidade aparece.

Seja como representação e reinvenção da realidade ou como uma espécie de fantasmagoria.

aU Você concorda com o escritor cubano alenjo carpentier quando ele diz que é difícil

retratar as cidades latino-americanas pois elas estão há muito tempo em processo de

simbiose, amálgama e transmutação arquitetônica e humana? que elas não têm um

estilo, mas o que podemos chamar de terceiro estilo: o das coisas que não têm estilo?

HATOUM É uma espécie de hibridismo, de caos de estilos que não se configura como uma

linguagem única. Seria muito interessante se fossem cidades bonitas. Mas o que se vê são

neoclássicos e imitações grotescas de uma arquitetura de Miami, um desprezo quase

criminoso da arquitetura tradicional e da melhor arquitetura brasileira: do Reidi, do Mendes

da Rocha, do Niemeyer, do Artigas, do Joaquim Guedes, do Lelé – que, aliás, é para mim um

gênio não só da arquitetura, é uma espécie de Leonardo da Vinci acaboclado, é um inventor

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de tudo e que pensa em todas as escalas. Mas os arquitetos que construíram essas cidades,

qualquer cidade latino-americana porque é tudo igual, fizeram esses edifícios horrorosos que

não têm nada a ver com nosso clima, com janelas pequenas e apertadas, fizeram esses cinco

suítes em que os banheiros são mínimos e o quarto de empregada é uma verdadeira cela, uma

espécie de senzala vertical. Acho que 98% dos edifícios das nossas cidades são projetados por

pessoas que não entendem nada de arquitetura. É estarrecedor.

aU As obras e a urbanização retratadas em seus romances expõem um brasil de

contrastes. Há construções ou muito pobres, o que revela a falta de investimento em

habitação social, ou exageradamente ricas – a casa de mundo, em cinzas do norte , era

um palacete neoclássico. é esse o “retrato arquitetônico” do brasileiro?

HATOUM Esse palacete era autêntico, foi construído no fim do século 19 e foi um dos

monumentos da Manaus da Belle Époque na passagem do século 19 para o 20. Assim como a

vila operária também existiu. Mas o problema é que esses palacetes são derrubados e, nesses

terrenos, são construídos monstros arquitetônicos horríveis. Aí quis estabelecer um contraste

entre a casa da burguesia e a habitação de uma pessoa humilde. A minha personagem trocou a

chácara dela em um bairro ainda ermo para ir ao centro. O que conseguiu foi morar em uma

casa de vila operária construída no início do século 20.

aU Mas mesmo esse palacete mostra uma arquitetura importada, não?

HATOUM Virou uma coisa kitsch. Era importada, como tudo era importado. A nossa

literatura também é uma literatura, eu não diria importada, mas transplantada. É o que o poeta

mexicano Otavio Paz fala da literatura das Américas. Não é exatamente européia, não pode

ser, mas também não é absolutamente original. O que é? Quem somos nós? Nossa literatura

foi um pouco construída a partir de um modelo europeu, mas questionando e indo a fundo nas

questões locais, nos problemas da sociedade.

aU Mas isso com a literatura, já a arquitetura...

HATOUM Na arquitetura isso demorou mais a acontecer. A arquitetura de fato brasileira deu

um salto a partir dos anos 30, com Lucio Costa. Mas mesmo na arquitetura neoclássica – a

que foi feita em Manaus, em Belém, na Amazônia – respondia às exigências do clima: pé-

direito alto, varandas generosas, o verde integrado à casa, quintal, janelões, cozinha arejada.

Havia uma preocupação com o clima. E hoje o que se vê são caixotes. Muitos desses casarões

foram demolidos, em Manaus e em Belém, para a criação desses caixotes que são nada, são

exemplos de uma arquitetura burra: o acabamento e as aberturas são mal resolvidos, tudo é

feito para enganar, para iludir, não são feitos em função da pessoa que vai morar. E a

habitação popular ficou de lado. Em Manaus, há projetos de casas do Severiano Porto e o

projeto do Impa que são muito inteligentes, usando o refugo da madeira da região. E é incrível

como ele não foi solicitado para trabalhar com habitação popular.

aU Seus romances se passam em manaus e retratam um modo de vida regional, como a

convivência entre culturas distintas. Mas, ao mesmo tempo, tratam de dramas humanos

universais, como a relação entre as pessoas e as visões que temos – e que fazemos – dos

outros. Como ser regional e universal? e até que ponto uma arquitetura pode ser

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regional e universal: não ser cópia internacional, mas falar para o mundo? Assimilar a

cultura do outro e se manter regionalista?

HATOUM É difícil fazer essa comparação, porque a literatura não depende de fatores dos

quais a arquitetura depende. Para fazer literatura você não precisa de muita coisa. Precisa

saber escrever e se pode escrever com um lápis e um pedaço de papel. Pode-se escrever um

bom livro sem representar nenhum tipo de espaço. Nada me obriga a representar o meu lugar.

Por outro lado – e isso parece um paradoxo – a literatura precisa de um chão histórico. Ela

não surge do nada, mas de uma experiência de vida, que é também uma experiência de leitura.

A literatura, quando fala do real, é para transcendê-lo. Não é para imitá-lo ou representá-lo. A

arquitetura, não. Há limitações de materiais, técnicas, orçamento, custo, e não se pode

desprezar o lugar onde está sendo construído. Projetar uma torre de vidro em Manaus, por

exemplo, trancado com ar-condicionado central, traduz uma incompreensão total da região.

Essa é a maneira mais fácil de projetar: faz-se um caixote de vidro e protege o calor com ar-

condicionado. E isso é apenas um detalhe, mas que tem a ver com o projeto, porque tem a ver

com uma cultura: é preciso conhecer a cultura do lugar, os hábitos e até mesmo o ritmo. Há

momentos do dia em Manaus que não se consegue fazer nada de tanto calor. E, no entanto, se

você estiver em uma casa com uma varanda espaçosa, esse calor é mitilhado pela ventilação e

pela sombra. É saber trabalhar com o clima e a cultura do lugar. Dialogar com ele, e não ir

contra ele. E aí vem um verso de João Cabral que traduz um pouco isso: “portas por onde,

jamais portas contra”. As soluções que o Severiano Porto encontrou, por exemplo, foram

pensadas a partir de uma reflexão sobre as palafitas, sobre a habitação do caboclo, sobre a

ventilação, a sombra. São projetos inteligentes.

aU Uma boa obra – das palavras ou das edificações – implica ser espetáculo? Ou, ao ser

espetáculo, a obra corre o risco de se destituir de sentido?

HATOUM Se for só uma obra monumental, ela se perde na aparência, na monumentalidade,

no arrojo plástico. Mas no caso, por exemplo, de Brasília, acho que é uma monumentalidade

que vai além do que ela aparenta. Do ponto de vista funcional, Brasília é um exemplo da

funcionalidade com a estética. Não considero aquela catedral apenas os traços de um virtuoso,

há um sentido simbólico muito forte e uma beleza que, para mim, faz com que seja uma das

obras mais impressionantes da arquitetura contemporânea. A catedral estabelece um diálogo

do interior com o exterior que é muito rico do ponto de vista simbólico e espiritual. E é

arrojada do ponto de vista tecnológico. Mas no caso da literatura essa monumentalidade não

aparece de cara. A literatura precisa de muita reflexão, de uma releitura constante para avaliá-

la. Pode-se escrever um livro monumental de 100 páginas e um lixo de 500. Um best seller

norte-americano, esses tipo thriller, você lê e depois não pensa mais, é uma espécie de

entretenimento instantâneo. Ao passo que a arquitetura não, você a habita. O projeto existe na

realidade.

aU Existem gênios?

HATOUM Não acredito em gênio. Há escritores e arquitetos mais talentosos. Acredito no

trabalho das pessoas, no acúmulo da experiência. Um edifício que me impressionou foi o

Instituto do Mundo Árabe, em Paris, do Jean Nouvel. É um edifício horizontal, de frente ao

Sena, com uma estrutura muito bem pensada que não agride a paisagem parisiense, ao

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contrário. E Nouvel encontrou uma solução incrível para mostrar a influência da arquitetura

árabe e andaluza naquele edifício: pela luminosidade, pelos vãos, pelo pátio enorme em cima

em que se pode comer e beber vendo a cidade, pela solução técnica e estética da fachada com

as células fotoelétricas compondo arabescos de acordo com a incidência solar. Isso é

fabuloso: Nouvel uniu a técnica a uma tradição. Para mim é um exemplo de uma arquitetura

que não é suntuosa e, no entanto, tem uma linguagem que cumpre, do ponto de vista da

função e da estética, o que lhe foi proposto. Claro que não é um projeto simples, mas também

não é feito para impressionar, para ser um marco. Já a literatura tem uma dimensão mais

intimista, do ponto de vista do imaginário, é muito mais solitária que a arquitetura. A

arquitetura não é um trabalho solitário. É um trabalho em equipe. Ela só funciona com a

técnica, ela depende muito da técnica.

aU Mas se a literatura é solitária, ao mesmo tempo ela não brota sozinha, depende de

outras leituras...

HATOUM Ela depende do leitor, mas do leitor na sua solidão. Na arquitetura você habita,

circula, usa. A leitura de um livro é solitária. Às vezes não depende nem da arquitetura: pode-

se ler um livro em um deserto. Você não precisa de uma casa arejada. Não depende de certas

imposições que o arquiteto tem. O arquiteto tem restrições, não é um demiurgo, como diziam

na FAU nos anos 70, longe disso. Mas há algo que une a arquitetura, a literatura e todas as

artes, que é pressão do mercado. Que é enorme e cresceu exponencialmente nos últimos 15,

20 anos. Muita gente escreve livros para serem vendidos sem preocupação estética, sem

reflexão sobre o narrador ou a construção dos personagens. A arquitetura também passa por

esse tipo de pressão: para que fazer um projeto pensado, refletido, se muitos arquitetos já se

venderam para o mercado? Você pega e imita qualquer coisa – e aí vem esse grotesco de uma

arquitetura que imita Miami. Por isso nossas cidades são tão feias: os arquitetos talentosos

foram excluídos do desenho urbano e dos edifícios. E quando se vê uma casa ou um edifício

bem projetados, é quase um ruído na cidade, é um acontecimento.

aU Forma x função: a forma é importante ou determinante? O importante é ser bonito

ou funcional?

HATOUM Na literatura, o sentido histórico de um romance já esta sedimentado na forma. A

linguagem nunca é um mero artifício. É uma construção, que pode ser mais ou menos

elaborada, e tem de responder ao sentido histórico do romance. Mas é ela que no fim dá o

senso estético ao livro. O leitor vê primeiro a forma, vê os movimentos do narrador e da

linguagem. Ás vezes o conteúdo se esconde na forma, está nas entrelinhas, é uma espécie de

um texto desvendado aos poucos. Mas são inseparáveis. Não se pode pensar o tema de um

livro se primeiro não se resolver a linguagem, se não resolver organicamente, coerentemente,

a estrutura do romance. Por isso é tão importante remeter as partes ao todo: a coesão interna

dá força ao romance. Talvez isso aconteça um pouco na arquitetura. Ás vezes um projeto é

pensado por partes e, no fim, transforma-se em uma somatória dessas partes porque não foi

pensado como um todo. Quando se faz um projeto em que se pensa já a forma como um

alcance estético daquilo que o edifício vai ser como função, ele parece que traduz uma

unidade, uma coerência muito mais forte do que o projeto que soma as partes – que é, no

fundo, o feijão com arroz da arquitetura. Acho que o arquiteto, de alguma forma, tem de ter

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um senso escultural, caso do Niemeyer, Kenzo Tange, Zaha Hadid. Esses arquitetos que

fazem projetos grandiosos têm uma percepção escultural do espaço e devem imaginar a

arquitetura também como esculturas no espaço. Há uma poética nisso.

aU Pode-se comparar as arquiteturas nas cidades com os livros nas livrarias: Há alguns

bons entre muitos ruins?

HATOUM A arte é sempre difícil. Então se destacam alguns livros, algumas obras de

arquitetura. Mas um livro ruim não prejudica a cidade. A intervenção da arquitetura é muito

mais palpável que um livro ruim. 500 livros péssimos na estante da livraria fazem mal para o

leitor, mas 500 edifícios pavorosos...

aU Ao mesmo tempo esses 500 livros são publicados porque têm leitores e parece que é o

que o mercado pede...

HATOUM Infelizmente, o mau gosto e a ignorância imperam. Vivemos em um mundo em

que a pletora do consumo tende ao infinito e as pessoas já não se preocupam em ter uma

mínima formação humanista. Nem a escolas nem as políticas públicas contribuem para isso.

Os meios de comunicação não contribuem. Olhe para a televisão brasileira e olhe, por

exemplo, para a BBC. É isso. Não temos um lastro cultural disseminado na população. A

classe média não está preocupada com a boa literatura, ou a boa arquitetura. Ela pensa em

Miami. Não pensa em uma arquitetura brasileira de qualidade. E os construtores são também

responsáveis por isso.

aU Podemos definir a arquitetura como um discurso?

HATOUM A arquitetura não deixa de ser uma linguagem, mas é uma linguagem que não se

esgota em si mesma, mas que trabalha com interdisciplinaridade. Normalmente, tem

restrições no seu próprio fazer. Acho que a liberdade do arquiteto esbarra nas exigências

técnicas, sociais e econômicas. Por isso um projeto de arquitetura é, sobretudo, um projeto

cultural e social. A arquitetura é exatamente a síntese da cultura com a sociedade. É assim que

eu vejo. Não é apenas um espaço para trabalhar livremente com formas. Porque essas formas

construídas serão habitadas. Mas o grande desafio do arquiteto é esse. É saber estabelecer o

dialogo cultural com a sociedade, com uma arquitetura que seja também uma invenção

estética. Acho que esse é o desafio.

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