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Os PETROLEIROS EA DESOBEDIÊNCIA CIVIL LAÉRCIO A. BECKER Advogado e mestrando na UFPR Qualquer pessoa que tenha lido a história da humanidade aprendeu que a desobediência é a virtude original do homem. Oscar Wilde. Em breve, fará três anos a greve dos petroleiros, de 1995, de triste desfecho. Triste aniversário. Mais triste ainda, a amnésia nacional, pública e notória. Naqueles dias de greve, e ainda hoje, ao lembrar dos fatos, cabia ao jurista fazer a seguinte pergunta: até que ponto é possível falarmos em desobediência a uma decisão judicial? Ou melhor: até onde vai a imperatividade da atividade jurisdicional? O presente ensaio procurará responder a essas questões, além de analisar mais detidamente a fundamentação teórica anarquista e marxista da greve e da desobediência civil - com as devidas nuances anarco-sindicalistas e frankfurtianas. IMPERATIVIDADE JURISDICIONAL E LEGITIMIDADE DO JUDICIÁRIO Temos que, pelo princípio da inevitabilidade, a SUJelçao das partes ao pronunciamento do órgão jurisdicional independe de suas

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INSTITUIÇÃO TOLEDO DE ENSINO

a Justiça Comum Federal, empregatício.

;titucional, art. 109, inc. I, Justiça Comum Federal a I de causas afetas à Justiça ese, da prestação da tutela à aduzida declaração de t. 114, caput, CF).

:0 referido escopo, ex vi

~ar a isenção existente e a Ite resta a pretensão fiscal

atinente aos menores

Os PETROLEIROS E A

DESOBEDIÊNCIA CIVIL

LAÉRCIO A. BECKER

Advogado e mestrando na UFPR

Qualquer pessoa que tenha lido a história da humanidade aprendeu que a desobediência é a virtude original do homem.

Oscar Wilde.

•Em breve, fará três anos a greve dos petroleiros, de 1995, de triste desfecho. Triste aniversário. Mais triste ainda, a amnésia nacional, pública e notória. Naqueles dias de greve, e ainda hoje, ao lembrar dos fatos, cabia ao jurista fazer a seguinte pergunta: até que ponto é possível falarmos em desobediência a uma decisão judicial? Ou melhor: até onde vai a imperatividade da atividade jurisdicional? O presente ensaio procurará responder a essas questões, além de analisar mais detidamente a fundamentação teórica anarquista e marxista da greve e da desobediência civil ­com as devidas nuances anarco-sindicalistas e frankfurtianas.

IMPERATIVIDADE JURISDICIONAL E LEGITIMIDADE DO JUDICIÁRIO

Temos que, pelo princípio da inevitabilidade, a SUJelçao das partes ao pronunciamento do órgão jurisdicional independe de suas

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vontades]. Por esse princípio, obviamente, afasta-se a possibilidade de prosperar qualquer concepção privatística de processo enquanto contrato ou quase-contrato - concepções estas mais adequadas à litis contestatio romana e às idéias individualistas do Code Napoleon, respectivamente.2

Pela litis contestatio vê-se, segundo Surgik, a primazia do privado sobre o público, afinal, as partes se submetiam voluntariamente ao decisum do index3

. Tal procedimento, cujo caráter democrático decorria do fato de que o index era escolhido pelas partes e não tinha qualquer subordinação hierárquica ao praetor (por sinal, eleito pelo voto), foi posteriormente desfigurado na cognitio extra ordinarem,4de modo a permitir a intervenção estatal5na administração da justiça. Dessa intervenção ressente-se ainda hoje a falta de legitimidade do Judiciário, conforme veremos adiante. Com a perda do valor da litis contestatio, o decisum passa a ser recorrível,6 donde chegamos ao atual sistema de caos recursal, que segundo os próprios juízes brasileiros, é o maior responsável pela demora na prestação jurisdicional. 7

O que se verifica, mormente no episódio dos petroleiros, é uma crise de imperatividade das decisões judiciais, que acompanha de

I Antônio Carlos Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover. Cândido Rangel Dinamarco. Teoria Geral

do Processo. São Paulo, Malheiros, 1994. p. 133.

2 José de Albuquerque Rocha. Teoria Geral do Processo. São Paulo, Saraiva, 1991. pp 173-5

3 Aloísio Surgik, Lineamentos do Processo Civil Romano. Curitiba, Livro é Cultura, 1990. p. 66.

4 Aloísio Surgik, Litis Contestatio, in Temas Criticos de Direito à Luz das Fontes. Curitiba, HDV,

1986. pp. 165-8.

5 Na verdade não se pode falar em Estado, durante a Antigüidade, cf. Aloísio Surgik, Lineamentos,

cit., p. 14.

6 Mario Bretone. História do Direito Romano. Lisboa, Estampa, 1990. p. 172.

7 Cf. Maria Tereza Sadek e Rogério Bastos Arantes. A crise do Judiciário e a visão dos Juízes, in

Revista USP, n° 21, março-abril-maio de 1994. p. 43. Segundo Dalmo Dallari, tal acusação dos juízes brasileiros, no entanto, não os exime da co-responsabilidade pela morosidade na prestação jurisdicional, na medida em que dão despachos protelatórios (Crise da Justiça é de cúpula, entrevista de Dalmo Dallari a Jorgemar Felix, in Jornal do Brasil, 14-5-95, p. 12).

LAÉRCIO A. BECKER

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10 Sobre as rachaduras, ver José Edl

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11. . I W IkrVeja-se Antômo Car os o histórica pesquisa de BoaventUl Pasárgada, in O Direito AchadG do pesquisado pelo jurista portul 76 ss.

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13 V d ári A··er, e v os autores, panlclp 1982. Também Aloísio Surgik, Fabris, 1986.

14 A - di·· - Iconcepçao e eglumaçao pe ( desbaratada no âmbito da sociol adeptos entre os juristas brasil Dinamarco, principalmente

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STITUIÇÃO TOLEDO DE ENSINO

Iviamente, afasta-se a )ncepção privatística de ltrato - concepções estas

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Tal procedimento, cujo rue o index era escolhido Irdinação hierárquica ao o), foi posteriormente 1,4de modo a permitir a lstiça. Dessa intervenção timidade do Judiciário, erda do valor da litis vel,6 donde chegamos ao LIndo os próprios juízes :l demora na prestação

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aulo, Saraiva, 1991. pp 173-5

iba, livro é Cultura, 1990. p. 66.

o à Luz das Fontes. Curitiba, HDV,

de, cf. Aloísio Surgik, Lineamentos,

1990. p. 172.

, Judiciário e a visão dos Juízes, in Ido Dalmo Dallari, tal acusação dos lonsabilidade pela morosidade na lrotelatórios (Crise da Justiça é de rull do Brasil, 14-5-95, p. 12).

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perto uma crise de legitimidade do Judiciário.8 A crise da imperatividade das decisões, obviamente, foi ignorada pela processualística, que tem se preocupado mais em dar subsídios teóricos para a concepção publicista de Poder Judiciário,9 em vez de observar o seguinte paradigma: a imperatividade das decisões pressupõe o monopólio da jurisdição, que por sua vez, está intimamente ligado ao monismo jurídico. Esse paradigma vem apresentando rachaduras,lo a partir da compreensão do pluralismo jurídico com um fenômeno social que não pode ser ignorado no Brasil. ll

A questão é: que legitimidadeJ2 tem hoje, o Judiciário, para impor decisões? Se tem, quando tem essa legitimidade? Por um lado, acusado de extrema dependência ao Executivo e Legislativo; por outro lado, precisando de um controle externo. Vê-se que, se a legitimidade advém da participação13 e não do procedimento,14 o

8 Basta lembrar que, em pesquisa realizada pelo Jornal do Brasil em 1995, verificou-se um interessante grau de desconfiança: dos entrevistados, 10% confiam sempre no Judiciário, 16% confiam na maior parte das vezes, 38% confiam pouco, 35% nunca confiam, e 2% não sabem (Brasileiros não acreditam na Justiça, Jornal do Brasil, 28-4-95). É impossível ignorar esses dados na condição de sintoma da crise de legitimidade.

9 Vide, V.g., Cândido Rangel Dinamarco, A instrumentalidade do Processo.São Paulo, Malheiros,

1994. pp. 95 ss.

10 Sobre as rachaduras, ver José Eduardo Faria, Justiça e Conflito, São Paulo, RT, 1991; e Eugenio

Raúl Zaffami, Poder Judiciário, São Paulo, RT, 1995.

" Veja-se Antônio Carlos Wolkmer, Pluralismo Jurídico, São Paulo, Alfa-Omega, 1994; a histórica pesquisa de Boaventura de Souza Santos, Notas sobre a história jurídico-social de Pasárgada, in O Direito Achado na Rua, Brasília, UnB, 1987; e sobre as transformações atuais do pesquisado pelo jurista português, a reportagem Aqui vacilou, dançou, in lsto É, 3 I-8-94, pp. 76 ss.

12 Para uma visão mais ampla, dentro e fora do direito, ver Jürgen Habermas. A crise de legitimação no capitalismo tardio. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1980.

13 Ver, de vários autores, A participação Popular na Administração da Justiça, Lisboa, Horizonte,

1982. Também Aloísio Surgik, O Judiciário e o Povo, in Desordem e Processo, Porto Alegre, Fabris, 1986.

14 A concepção de legitimação pelo procedimento, de Niklas Luhmann, creio ter sido devidamente desbaratada no âmbito da sociologia, desde a polêmica com Habermas, embora ainda encontre adeptos entre os juristas brasileiros, a saber, Tércio Sampaio Ferraz Jr. e Cândido Rangel Dinamarco, principalmente

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Judiciário ressente de legitimidade na medida em que é vedada a participação popular na sua composição (por concurso nas instâncias inferiores e nomeação nas superiores; a eleição para juiz de paz não passa de mais uma ficção constitucional) e nas suas decisões (salvo no procedimento do Júri). Não havendo tal legitimidade, pode-se entender que a porta da desobediência já está entreaberta. Basta dizer quando seria possível abri-la de vez: é nos três momentos em que se revela a crise da legitimação da decisão judicial:

1 - Quando a resposta jurisdicional não estiver de acordo com os reclames sociais. Afinal de contas, quer queira ou não, o Judiciário, por incrível que pareça, deveria fazer parte da realidade nacional, e como tal, não poderia se encontrar tão absorto daquilo que ocorre à sua volta, sob pena de dar ensejo à desobediência civil às suas decisões. Da mesma forma que ao não reconhecer determinadas situações de fato, o ordenamento estatal apenas está deixando de regular relações que não deixarão de existir no plano fático e que figurarão na marginalidade da lei (pluralismo jurídico), o Judiciário alienado não impede que os fatos consolidados se perpetuem no tempo.

2 - Por outro lado, pode-se dizer que a emasculação da jurisdição é análoga à questão das leis injustas. Qual seja: da mesma forma que a lei injusta pode ser considerada inconstitucional e inaplicável,15 a decisão abstraída dos fatos não pode ser cumprida, pois há uma grande probabilidade de ser

15 Nem é preciso ser alternativo ou jusnaturalista de caminhada: basta ser um Kelseniano, mais na linha do positivismo de combate de que fala Pressburger - não se confundindo positivismo de combate (utilização do direito posto em favor das classes desfavorecidas) com positivismo socialista. de caráter stalinista, à la Vichinski (criticado, com razão, por Roberto Lyra Filho, Para um direito sem dogmas,Porto Alegre, Fabris. 1980, p. 25). Cabe aproveitar a Constituição que aí está (a norma fundamental Kelseniana que, até o momento. não tem sido das piores), para considerar revogadas todas as leis ordinárias que se encontram em descordo com os direitos sociais. Esses direitos seriam então revigorados. o que vai contra a já consagrada teoriwção das chamadas normas pragmáticas. que na verdade peifazem uma construção retórica que visa a eterna inefetividade dos direitos sociais (direito à moradia. etc.) - não que isso seja culpa de José Afonso da Silva. mas daqueles que se aproveitaram de sua teoria. Com

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1I II

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NSTITUIÇÃO TOLEDO DE ENSINO LAÉRCIO A. BECKER

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inconstitucional - bastando então a tarefa mais difícil: descobrir onde está a inconstitucionalidade.

3 - Há uma crise no mito da infalibilidade das instâncias superiores. Esse mito decorre do princípio do duplo grau: diz-se que as sentenças de primeiro grau podem estar erradas, devido à falibilidade dos julgamentos, e que portanto, deve haver um sistema de recursos que corrija tal falibilidade. Mas, como disse José de Albuquerque Rocha, o duplo grau se revela um mecanismo polêmico de eficiência discutível, principalmente porque protela a solução final dos litígios e, depois, porque até agora ainda não se tem nenhuma demonstração de que os órgãos do 2° grau julguem melhor do que os do ]O (grifo nosso), 16

Segundo Paulo de Tarso Ramos Ribeiro, a busca recorrente de novos níveis de funcionalidade da legitimação das decisões jurídicas exprime ora uma inadequação sempre renovada da gestão sistêmica das demandas sociais, ora a tentativa de acomodar o efeito desagregador que a erosão acelerada do processo de legitimação produzida pelos conflitos sociais pode suscitar. 17 Dentre esses, obviamente estão os conflitos surgidos no exercício do direito de greve,

Ao tratar da absorção dos conflitos sociais pelo Poder Judiciário, Aurélio Wander Bastos toma o exemplo justamente da greve, para dizer que, embora seja um conflito social de grande velocidade (os grevistas pretendem uma mudança social rápida), não tem profundidade (qual seja, os grevistas não pretendem eliminar os vínculos trabalhistas, etc.) Até aí, a greve pode ser absorvida pelo Judiciário. Entretanto, o autor acena para a possibilidade do conflito tomar profundidade, no momento em que se transforma num movimento sedicioso - qual seja, um movimento que se revolta contra a autoridade e a ordem instituída. Tendo grande velocidade e profundidade, não mais é passível de

16 José de Albuquerque Rocha, op. cit., p. 80.

17 Paulo de Tarso Ramos Ribeiro. Processo e conflito: a crise de legitimação das decisões judiciais, in Revista de Direito Alternativo, nO I, São Paulo, Acadêmica, 1992. p. 93.

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absorção pelo Judiciário.18 O fato da greve ser considerada política (contra as refonnas constitucionais) não lhe dá um caráter sedicioso, tanto que foi absorvida pelo Judiciário. Entretanto, não tendo sua resposta correspondido aos anseios da classe, aí sim podemos falar em sedição, a partir do descumprimento da decisão judicial. Isto é: desde então, não mais adiantaria a intervenção do Judiciário, já devidamente alienado da questão.

Por falar em greve política, os noticiários insistem nessa caracterização, como um dos múltiplos instrumentos de manipulação da opinião pública contra o movimento grevista. Tal linchamento televisivo atende aos interesses privados que, segundo Habennas, invadiram os meios de comunicação de massa a partir do momento em que estes adquiriram maior eficácia jornalfstico­publicitária.19 Mas o pior é que, como notou Benedicto de Campos, pela leitura do art. 9° da Constituição Federal (os interesses que devam defender), temos que o direito de greve contempla não apenas os interesses econômicos, mas todos aqueles interesses que, de uma forma ou de outra, interfiram na vida econômica, política e social dos trabalhadores (grifo nosso).20

GREVE E VIOLÊNCIA: SOREL E A ESCOLA DE FRANKFURT

Falávamos em greve política, qual seja, de que o movimento dos petroleiros era político. Cumpre ressaltar nesse passo, a posição de Georges Sorel, que ao teorizar sobre a violência,

18 Aurélio Wander Bastos. Conflitos Sociais e Limites do Poder Judiciário. Rio de Janeiro. Eldorado. 1975. p. 46.

19 Jürgen Haberrnas. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro. Tempo Brasileiro. 1984. p. 221: Enquanto antigamente a imprensa só podia intermediar e reforçar o raciocínio das pessoas privadas reunidas em um público. este passa agora. pelo contrário. a ser cunhado primeiro através dos meios de comunicação de massa.

20 Benedicto de Campos. Constituição de 1988: uma análise marxista. São Paulo. Alfa-Omega. 1990. p. 96.

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23. .Idem. op. clt.. p. 163.

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NSTITUIÇÃO TOLEDO DE ENSINO

:ve ser considerada política não lhe dá um caráter

Judiciário. Entretanto, não anseios da classe, aí sim escumprimento da decisão diantaria a intervenção do lestão.

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distingue a greve política da greve proletária. Segundo Sorel, enquanto a greve política visa à modificação exterior das condições de trabalho (pelo que não ameaça em nada o poder do Estado), a greve proletária visa aniquilar o poder estatal (o movimento grevista não se dispõe a retomar o trabalho após meras concessões superficiais, mas somente após uma total transformação das condições de trabalho). 21

Adotando a tipologia de Sorel, verificamos que se trata, efetivamente, de um caso de greve política, e não proletária. As conseqüências de tal caracterização. Segundo Walter Benjamin, estão na violência adotada. Assim, para esse autor, a greve política é violenta e instituinte de direito, enquanto que a greve proletária é não-violenta e anarquista (não se contenta em apenas desencadear as transformações: leva-as a termo).22 Expliquemos.

WaIter Benjamin - que se não foi o pai da Escola de Frankfurt (posto que cabe a Max Horkheimer), foi dos primeiros e mais ativos membros, embora tão cedo alijado do movimento, por obra da perseguição nazista - entende que o operariado organizado é, pelo visto, o único sujeito jurídico - além do Estado - a quem cabe um direito ao poder/violência. Vale lembrar que Benjamin se utiliza da ambigüidade da palavra alemã Gewalt, que significa violência e poder. Nessas condições, Benjamin apresenta duas concepções sobre a greve: uma do Estado, outra do proletariado. Na concepção do Estado, o direito de greve não é um direito de exercer o poder/violência, mas um direito de se subtrair ao poder/violência. A violência ocorre quando a greve é praticada com a disposição de voltar ao trabalho, sob condições alheias ou externas ao serviço. Por isso é que na concepção do proletariado, o direito de greve consiste no direito de usar o poder/violência

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21 Georges Sorel. Reflexões sobre a Violência. São Paulo. Martins Fontes.

22 Walter Benjamin. Crítica da Violência - Crítica do Poder, in Documentos de Cultura, Documentos de Barbárie. São Paulo, Cultrix, 1986. p. 169.

23 'd . 16I em. op. Clt., p. 3.

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Marcuse, outro membro da Escola de Frankfurt, critica as teses A • b" 24de SoreI por tres motIvos aSICOS:

1. a greve geral escatológica de Sorel não passa de um mito;

2. sua teoria anarco-sindicalista de acefalia do movimento socialista reforça o autoritarismo das elites revolucionárias - as vanguardas proletárias leninistas - e elites dirigentes fascistas, ambas portadoras da chamada autoridade social sobre o movimento revolucionário;

3. sua teoria provoca a burguesia a utilizar abertamente o poder que defato ela já tem.

A ADVERTÊNCIA DE MALA TESTA

Já que acabamos de tecer considerações a respeito das concepções anarco-sindicalistas (Sorel) de greve, seria interessante lembrar as ressalvas que os próprios anarquistas faziam a essa questão. É de conhecimento geral que os anarquistas - depois os anarco-sindicalistas - costumam fazer a apologia da greve geral. Entretanto, isso não significa que todo anarquista defenda incondicionalmente a greve. Nesse sentido é que, com muita lucidez, o anarquista italiano Errico Malatesta alerta para o fato de que a greve nos setores essenciais (na verdade, ele falava da greve geral, mas devemos adaptar) pode fazer mal àquilo que ele chama de causa revolucionária. Segundo Malatesta, não pode a classe operária esperar, em um jejum pacífico, que a burguesia capitule de fome. 25

A greve geral de protesto, para apoiar reivindicações de ordem econômica e política compatíveis com o regime, pode ser útil se é feita em momento propício, quando o governo e os patrões acham oportuno ceder de uma só vez, por medo do pior, seria o caso? Mas não se deve esquecer que é preciso comer todos os dias (grifo

24 Herbert Marcuse. Idéias sobre uma teoria crítica da sociedade. Rio de Janeiro. Zahar, 1981. pp.

151-3.

25 Errico Malatesta. Escritos revolucionários. São Paulo. Novos Tempos, 1989. p. 110.

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NSTITUIÇÃO TOLEDO DE ENSINO

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:mpos, 1989. p. 110.

LAÉRCIO A. BECKER 371

nosso) e que, se a resistência se prolonga, ainda que por poucos dias, é preciso curvar-se ignominiosamente sob o jugo dos patrões, ou então se insurgir... mesmo que o governo ou as forças especiais da burguesia não tomem a iniciativa da violência. (é preciso lembrar a intervenção das Forças Armadas nas refinarias).

De fato, a greve não pode assumir esse caráter autodestrutivo. Mesmo as necessidades alimentares básicas, de que fala Malatesta, hoje necessitam de transporte (logo, de combustível), devido aos grandes conglomerados urbanos e à má distribuição das áreas de plantio. Esse é o perigo ressaltado pelo anarquista italiano, e não os perigos diariamente frisados pelos meios de comunicação. Fala­se, nos noticiários, da possibilidade de faltar gás de cozinha, o que sem dúvida pode trazer sérios prejuízos no âmbito da saúde pública (alimentos não cozidos, etc.), mas esquece-se que há milhares de brasileiros que sequer têm os alimentos crus (catam nos lixões), e que nem sentirão falta do gás, simplesmente porque não têm fogão. Fala-se do perigo da falta de combustível, que impede as pessoas de irem ao trabalho - isso, obviamente partindo-se do pressuposto de que todos têm um emprego. Com essas duas observações, não se pode justificar os prejuízos sociais da greve, mas também não se pode superestimá-los a ponto de achar que a greve dos petroleiros prejudica mais os pobres do que os ricos - argumento esse que faz parte da ideologia diariamente veiculada pela mídia.

PARA UMA CONCEPÇÃO MARXISTA DE GREVE

Para ensaiarmos uma concepção marxista de greve, devemos nos utilizar basicamente de três autores: Tarso Fernando Genro, José Manoel Aguiar de Barros e João José Sady. Entretanto, isso não significa que estejam totalmente de acordo sobre o assunto. Enquanto José Manoel Aguiar de Barros privilegia a greve em desfavor do direito de greve e Tarso Genro denuncia o caráter burguês da licitudelilicitude da greve, João José Sady não desmerece o direito de greve - mesmo porque teve de atuar como

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advogado de sindicato, e como tal, era imprescindível ao seu serviço a legalização do direito de greve.

Para analisarmos a concepção marxista de greve, devemos antes distinguir o fato do direito (sem que, com isso, se esteja aderindo à paradigmática separação entre mundo do direito e mundo dos fatos, donde decorre a alienação do ordenamento), lembrando que Tarso Genro entende que a greve, antes de ser um direito, é um fato. Antes de existir juridicamente, existe objetivamente. A greve legal e ilegal sim, são criações da norma. A greve que não cumpre os requisitos da legislação burguesa é rejeitada como ilícita, e o ilícito é uma criação da normatividade porque repousa sobre o

. h' . 'd 26puro conceIto Istoncamente construI o.

José Manoel Aguiar de Barros entende que o direito de greve significa a legalização (absorção pelo ordenamento jurídico burguês) da luta de classes. Como tal, promove duas conseqüências:27

1. uma conseqüência positiva: a possibilidade que a lei cria ao operário de fazer a greve e por meio dela contrapor-se aos patrões, reduzindo com isso a exploração ou ampliando suas conquistas materiais.

2. uma conseqüência negativa: o despotenciamento desse conflito de classe na medida em que ele se transforma num conflito de direito e que, via de regra, se resolve perante os tribunais (grifo nosso); dá limites e condições à greve.

Como conseqüência dessa distinção entre greve enquanto direito e enquanto fato, temos o posicionamento de Tarso Genro, segundo o qual não é possível exigir, de parte dos trabalhadores(... ) nenhum compromisso com a legislação burguesa, assim como a burguesia, ao forjar suas instituições, não se comprometeu com a ordem legal precedente. Disso decorre, que

26 Tarso Fernando Genro. Contribuição à Crítica do Direito Coletivo do Trabalho. São Paulo, LTr,

1988. p. 45.

27 José Manoel de Aguiar Barros. A ilusão operária no paraíso do direito. in Educação e

Sociedade, n"15. São Paulo, agosto de 1983. p. 14.

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nem toda greve é legal, mas toda greve é legítima - qual seja: nesse contexto, a legalidade é o que menos importa. 28

A solução dada por José Manoel Aguiar de Barros é a ruptura do cerco jurídico, defendendo mais a greve do que o direito de greve: é buscar formas alternativas - não institucionais, clandestinas - de organização.z9 É claro que o posicionamento de Aguiar de Barros é por demais radical, o que se explica pela conjuntura em que foi escrito o artigo - no fim da ditadura, ainda sob o regime da Lei de Segurança Nacional, e com uma vaga perspectiva de renovação constitucional.

Já João José Sady entende que não adianta proibir, restringir, dificultar o exercício do direito de greve, que de um modo ou de outro ela sempre ressurge, gerando uma interminável tensão entre os fatos da vida e a norma jurídica. 30 Essa tensão se consolida entre os mesmos fatos e a decisão judicial. O Ministro Almir pazzianoto tem declarado na imprensa que, ao contrário do que alega a CUT, há greves consideradas legais: basta elas apresentarem os requisitos exigidos em lei. Trata-se dos requisitos considerados, por João José Sady, como o mais formidável obstáculo ao exercício do direito de greve.3I A diferença de dois anos entre os dois escritos (1983 e 1985) se faz sentir, pela mais clara perspectiva de mudança que se vê na obra de Sady - o que sem dúvida não desmerece a corajosa abordagem de Aguiar de Barros.

28 . Tarso Fernando Genro. Op. Cl/. p. 43.

29 José Manoel de Aguiar Barros, op. cit. p. 16.

30 João José Sady, Direito Sindical e Luta de Classes. São Paulo, Instituto Cultural Roberto Morena, 1985. p. 129.

31 João José Sady, op. cit., p. 135: As formalidades são muitas. elaboradas de nwdo confuso e destinadas a tomar o nwis denwrado possível o processo de deflagração de paralização.

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LAÉRCIO A. BECKER374 REVISTA JURÍDICA - INSTITUiÇÃO TOLEDO DE ENSINO

GREVE E PLURALISMO JURÍDICO

Em sua concepção humanista dialética,32 Roberto Lyra Filho entendia, à mesma época de Aguiar de Barros (1982), que a situação de plena garantia dos direitos do trabalhador só poderá decorrer do advento de regime socialista autêntico. Entretanto, Lyra Filho não se refere aos meios clandestinos de organização de que fala Aguiar de Barros, preferindo defender o pluralismo jurídico, pelo qual não cessam nunca de brotar e afirmar-se direitos ainda não acolhidos legislativamente, que se impõem na práxis jurídica. Nessa perspectiva, o direito de greve não passou a existir no instante em que - aliás restritivamente - o acolheram certas legislações. 33

Poucos anos depois (1984), Carlos Paulon, um dos precursores do movimento do Direito Alternativo, num aprofundamento da questão do pluralismo, levantada por Lyra Filho, afirma categoricamente que a greve é uma exteriorização de uma fonte do direito (... ); um instrumento de participação na elaboração da norma jurídica. passando o trabalhador de objeto a sujeito da lei. Paulon, de quebra, vê na freve uma garantia de igualdade na negociação com os patrões.3

Ainda dentro da linha do pesamento crítico jurídico temos, do juiz do trabalho José Felipe Ledur, a tese de que a sentença declaratória da abusividade da greve não tem amparo legal, sendo juridicamente inviável, posto que a greve é um ato-fato jurídico (portanto, recebida pelo direito como um fato, qual seja, irrelevante o elemento volitivo). Logo, seria um contra-senso a necessidade de sua declaração, via ação declaratória. Assim, José Felipe Ledur faz um paralelo com a posse: constituiria um contra­senso que o possuidor esbulhado ingressasse em juízo para limitar

32 A expressão é de Antonio Carlos Wolkmer. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. São Paulo. Acadêmica. 1991. pp. 191 ss.

33 Roberto Lyra filho. Direito do Capital e Direito do Trabalho. Porto Alegre. Fabris, 1982. p. 34.

34 Carlos Artur Paulon. Direito Alternativo do Trabalho. São Paulo. LTr. 1984. p. 104.

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'aulo, LTr, 1984. p. 104.

seu pedido à declaração de existência de posse ilícita. 35 No mesmo sentido, diz o TRT/11 a região (De 2/86, Manaus, 25-3-86), com relação às greves que prosseguem após a decretação de sua ilegalidade:

Nesta situação várias matizes devem ser analisados: de pronto brota a revogação sociológica da Lei de Greve, evidenciando a sua impotência para solucionar o litígio que lhe deu motivação. (... ) Nesse panorama, a situação do Judiciário Trabalhista é singular. Premiado pela própria Lei de Greve, que de uma forma geral, como já está comprovado, impede a juridicidade do instituto, quando proclama a ilegalidade do movimento paredista e o movimento continua, assiste impotente ao descumprimento de uma decisão sua. Por outro lado, porque não adentrou o mérito do problema, tendo ficado ao largo, sente a frustração da impossibilidade de cumprimento da missão constitucional que lhe é outorgada, qual seja, a de dirimir os litígios emergentes nas relações de trabalho. Chega-se então à melancólica conclusão de que a proclamação da ilegalidade da greve não leva a nada, em termos de contribuição para o apaziguamento da denominada questão social brasileira. Pelo contrário: elimina o Judiciário trabalhista especializado da análise do mérito motivador da eclosão do movimento, e ratifica mais uma vez, e como sempre, a falência da Lei de Greve (... ). É preciso compreender, admitir com coragem, que antes de ser um fato jurídico, a greve é um fato social, meio político de pressão que deve ser encarado sem subterfúgio. Está provado que a simples decretação de sua ilegalidade não extingue o fato, não resolve suas causas nem tolhe seus objetivos. Pelo contrário, as mais das vezes o instituto revigora-se ou ressurge das cinzas, e termina por impor composições às custas de sacrifícios da empresa e do trabalhador, sacrifícios que poderiam e que devem ser evitados. 36

35 José Felipe Ledur. Abusividade de greve. Impossibilidade de sua declaração pelos tribunais. In Introdução Crítica ao Direito do Trabalho.Brasília, UnB, 1993. p. 128.

36 Apud José Eduardo Faria. Justiça e Conflito. São Paulo, RT. 1991, pp. 109-110.

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LAÉRCIO A. BECKERREVISTA JURÍDICA - INSTITUIÇÃO TOLEDO DE ENSINO376

DESOBEDIÊNCIA CIVIL: ORIGENS ANARQUISTAS

É público e notório que a chamada desobediência civil tem origem anarquista. Os anarquistas propunham a desobediência ao Estado, como primeiro passo para sua destruição. No começo defendiam-na através de uma visão individualista, que é o caso do pioneiro teórico da desobediência civil: Henry Thoreau, segundo o qual uma minoria é inerme enquanto se conforme à maioria; não é, então sequer uma minoria, toma-se, porém, irresistível quando

37obstrui com todo o seu peso. É o que leva à tese da desobediência civil, de sua autoria, e depois seguida por Mahatma Gandhi. Apliquemos à situação em questão: havendo decisões judiciais injustas (Thoreau fala em leis injustas), à minoria não cabe simplesmente obedecê-las enquanto tenta persuadir a maioria a corrigi-las (embora a pressão popular sobre os tribunais, para reformarem a decisão, é instrumento que não funciona no Brasil, podendo inclusive surtir efeito contrário - veja-se a repercussão negativa que a imprensa conseguiu extrair do epsódio do enterro do TST). Segundo Thoreau, é preciso transgredir desde logo, e se tal desobediência perfaz um mal remédio, isso é culpa do Estado.38

Também Oscar Wilde endossa os benefícios da desobediência, ao declarar que: o progresso é uma conseqüência da desobediência e da rebelião. 39

DESOBEDIÊNCIA CIVIL EM MARCUSE

Da perspectiva anarquista, passemos à Escola de Frankfurt, cujas contribuições no campo da filosofia, sociologia e psicanálise ainda não puderam ser adequadamente absorvidas pelo Direito ­há apenas alguns exemplos bem sucedidos, mais diretamente

37 Henry Thoreau. A desobediência Civil, São Paulo, Cultrix, 1993, p. 31.

38 Henry Toreau. Op. cito p. 27.

39 Oscar Wilde, Desobediência: a virtude original do homem, in George Woodcock (org.). Os Grandes Escritos Anarquistas. Porto Alegre. L&PM, 1990. p. 66.

voltados para a segund. Habermas.4o

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41 Herbert Marcuse. Psicanálise

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- INSTITUIÇÃO TOLEDO DE ENSINO LAÉRCIO A. BECKER

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voltados para a segunda geração da Escola, representada por Habermas.4o

Especificamente, seria interessante aqui lembrar um frankfurtiano que, emigrado para os Estados Unidos, caracterizou­se como ideológico dos movimentos estudantis dos anos 60 e da New Left americana - tendo, portanto, currículo suficiente para tratar do assunto: trata-se de Herbert Marcuse. Segundo Marcuse, o conflito entre o direito positivo e o direito de resistência (civil desobedience) se traduz por um conflito entre uma força de opressão (agressão da vida) e uma força de libertação (defesa da vida). Marcuse vê no direito de resistência uma garantia da liberdade, sem o qual encontrar-nos-íamos hoje num grau de civilização igual ao da mais primitiva barbárie41

- e veja-se nisso um eco do que disse Oscar Wilde.

CONCLUSÕES

A greve dos petroleiros foi um fato. O direito deles fazerem greve, embora enquanto direito seja devidamente limitado pelo ordenamento jurídico capitalista, não pode ser liminarmente desprezado. Veja~se os resultados.

Se toda a greve é legítima (Tarso Genro), o mesmo não se pode dizer de toda decisão judicial. A crise do Judiciário - amplamente divulgada a ponto de suscitar discussões a respeito do seu controle externo - não é um fenômeno inconseqüênte. Uma das conseqüências é justamente o questionamento de sua legitimidade (que apenas acompanha a crise de legitimação do capitalismo tardio, de que fala Habermas), o que implica o desafio dos fatos à propalada imperatividade das decisões judiciais.

40 Citemos Celso Ludwig, Albano Marcos Bastos Pêpe e Luiz Fernando Coelho. Agora, com a nova

obra de Habermas no campo jurídico (Factividade e Validez. ainda em vias de tradução para o português, por Flábio Beno Siebeneichler, pela Tempo Brasileiro), talvez se renove essa tendência - o que, de falO, o pensador alemão não havia conseguido apesar de Law and Morality.

41 Herbert Marcuse. Psicanálise Política. Lisboa, Moraes, 1980. p. 78.

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A desobediência civil às decisões judiciais não é um fenômeno aleatório, desmotivado e sem fundamentos, como se divulga. Tem motivos (de sobra...) e fundamentação teórica consistente, de Thoreau a Marcuse.

O principal problema da greve dos petroleiros em sua afronta à decisão do TST está no fato de que capitaneou para si a fúria da mídia, que conseguiu impingir nos telespectadores e ouvintes um profundo sentimento de rejeição pelo movimento. Ideologica­mente centrou seus holofotes nas conseqüências danosas ao bem­estar da classe média, e aí estão os resultados, dentre os quais: coloca-se em xeque mais uma vez o direito de greve dos servidores, e dá-se um xeque-mate nos resquícios de nacionalismo da Constituição Federal, que a população, teleguiada, passou a execrar.