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A Desobediência civil de Thoreau aos impostos nos nossos dias Catarina Paulino Alves Citação como: ALVES, Catarina Paulino. A Desobediência civil de Thoreau aos impostos nos nossos dias. Paper n.º 6 /IJW/iLab/Cedis/2017, disponível em http://ilab.cedis.fd.unl.pt/workingpapersjunior/ Paper n.º 6/IJW/iLab/Cedis/2017 Setembro 2017 ISSN 2184-0970

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A Desobediência civil de Thoreau

aos impostos nos nossos dias

Catarina Paulino Alves

Citação como: ALVES, Catarina Paulino. A Desobediência civil de Thoreau aos impostos nos nossos dias. Paper n.º 6 /IJW/iLab/Cedis/2017, disponível em http://ilab.cedis.fd.unl.pt/workingpapersjunior/

Paper n.º 6/IJW/iLab/Cedis/2017

Setembro 2017

ISSN 2184-0970

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A DESOBEDIÊNCIA CIVIL DE THOREAU AOS IMPOSTOS NOS NOSSOS DIAS

THOREAU’S CIVIL DISOBEDIENCE TO THE CURRENT DAYS’ TAXES

CATARINA PAULINO ALVES1-2

RESUMO

O Direito de resistência encontra-se constitucionalmente consagrado (artigo 21º da Constituição da Républica Portuguesa), mas com os problemas económicos vividos em Portugal e no resto do mundo, colocou-se a questão de saber até que ponto existe um direito de resistência fiscal, um direito a não pagar impostos. Contudo, esta questão não era nova, já Thoreau no século XIX havia escrito sobre o assunto, e é este o ponto de partida para esta reflexão sobre a tributação na atualidade. Após uma consideração daquele que é o contexto social e económico deste direito, podemos concluir pela existência de um direito de resistência fiscal apenas face a impostos ilegais. No entanto, mais relevante do que a consideração sobre a sua existência, é a reflexão sobre os motivos que levam os cidadãos a pretender não pagar impostos, quais as consequências deste comportamento para os restantes contribuintes e, por último, o que pode, e deve, o Estado fazer para evitar tais pretensões dos contribuintes. PALAVRAS-CHAVE: Resistência Fiscal; Direito de resistência; Tributação.

ABSTRACT

The right to resistance is constitutionally protected (article 21 of the Portuguese Constitution), but with the economic problems experienced in Portugal and around the world, the question of the existence of a right to tax resistance, not to pay taxes, was raised. However, this wasn’t a new question, Thoreau had already raised it in the 19th century, and this is the starting point to our reflection on the current taxation. After considering the social and economic context of the right to tax resistance, we can conclude on the existence of this right only when face with illegal taxation. Nevertheless, more important than the consideration about its existence, is the reflection on what motivates citizens not to pay taxes, the consequences of this behavior for the taxpayers and what the State can, and should, do to avoid this claim.

1 Aluna da Licenciatura em Direito da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa e Investigadora Junior do iLab – Laboratório de Ideias sobre a Inovação Social nos domínios financeiro, tributário, da seguranças social e da economia social, pertencente ao CEDIS - Centro de Investigação & Desenvolvimento em Direito e Sociedade. Faculdade de Direito da Universidade NOVA de Lisboa – Campus de Campolide, 1099-032 Lisboa. [email protected] 2 Por vontade do autor, o texto é escrito utilizando o Acordo Ortográfico de 2011

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KEY-WORDS: Tax Resistance; Right of Resistance; Taxation

ESQUEMA DO ESTUDO

1. Introdução 2. A Desobediência Civil de Thoreau

2.1. A resistência fiscal de Thoreau 2.2. Paralelismos com a atualidade

3. O Direito de resistência fiscal na sociedade actual 3.1. Os impostos na actualidade 3.2. Os limites à tributação 3.3. Possíveis causas de resistência 3.4. Direito de resistência fiscal no ordenamento jurídico português 3.5. Eventuais métodos para evitar a resistência

4. Reflexões finais

1. Introdução

Este ensaio consiste numa reflexão sobre o direito de resistência, partindo da leitura da

obra A Desobediência Civil de Henry David Thoreau, sabendo que este é um fenómeno

já antigo, mas que se tem mantido ao longo da história da humanidade3.

Do ponto de vista sistemático, começamos por realçar os fundamentos de Thoreau, para

justificar a sua resistência fiscal, isto é, a sua recusa em pagar impostos, fazendo uma

breve comparação com a atualidade. Antes de iniciar a abordagem da possibilidade de

invocar um direito de resistência no nosso ordenamento jurídico, vamos enunciar a

relevância dos impostos para os Estados e os limites à tributação, bem como refletir

sobre as causas que podem levar o cidadão a pretender invocar esse direito. Por fim,

vamos refletir sobre os meios ao alcance do Estado para evitar que os cidadãos

pretendam não pagar impostos.

Pretende-se refletir sobre a resistência fiscal, especialmente em Portugal. No entanto,

esta reflexão abarca várias questões conexas, nomeadamente aquelas que contribuem

para uma melhor compreensão e discussão do tema, estando conscientes de que esta

matéria, tal como o Direito Fiscal, se relaciona com muitas outras áreas. Os fenómenos

de resistência fiscal estão sempre associados a movimentos sociais o que explica a

necessidade e a conveniência de os enquadrar dentro daquele que é o seu contexto

social, económico e político.

3SobreofenómenosocialehistóricodaresistênciafiscalNicolasDelalandeeRomainHuret–TaxResistance:AGlobalHistory?

4

O fenómeno da resistência fiscal mantém-se atual, especialmente após a “crise” que

vivemos, que realçou o carácter prejudicial da resistência e da fuga aos impostos, bem

como a violação dos direitos fundamentais e o arbítrio por parte do Estado.

2. A Desobediência Civil de Thoreau A obra de Thoreau, que serve de base para o aprofundamento da resistência fiscal no

presente ensaio, deve antes de mais ser enquadrada. Este livro foi escrito por Henry

David Thoreau, um norte-americano que foi preso por se ter recusado a pagar impostos,

numa época em que a América se debatia ainda com a questão da escravatura.

2.1. A resistência fiscal de Thoreau

Thoreau opõe-se clara e totalmente ao Governo, não só enquanto instituição, mas

também pela sua actuação. O autor considera que este órgão executivo é instrumento

da vontade apenas de uma parte bastante influente da população, que é ineficiente, e

desta forma entende que esta é uma instituição desnecessária para os homens. Por

outro lado, critica um Governo que aceita a escravatura e que invade outros Estados4.

Argumenta que as leis são injustas, punem os mais pobres e fracos, e deixam impunes

os mais fortes e ricos. Critica a lentidão e ineficiência da justiça, o que faz com que apele

aos homens para que não esperem pela atuação nem dos Governos nem dos tribunais,

mas que tomem eles próprios a iniciativa de atuar no sentido daquilo que defendem,

nomeadamente no seu caso, afastando-se da civilização e recusando-se a pagar

impostos, não contribuindo não só para um Governo, mas para um Estado em que não

acredita.

A dívida constitui também um ponto que sustenta as suas críticas ao Governo, pois

considera serem as suas medidas meras medidas “paliativas”, visto a dívida estatal

manter-se.

No entanto o seu principal argumento é a escravidão, o facto de o Estado não

reconhecer como iguais todos os cidadãos, não haver uma verdadeira representação de

toda a população5. Desta forma, recusa-se a contribuir para este Estado, pois considera

4HenryThoreau,ADesobediênciaCivil,p.8e95“DequeadiantaficarmoslivresdoreiGeorgeseseguimosescravosdoreiPreconceito?(…)Somosumanaçãodepolíticospreocupadosapenascomadefesaexteriordaliberdade”–HenryThoreau,obcit,p.83

5

que ao contribuir para as suas receitas, está a reconhecê-lo, a permitir a sua

subsistência.

2.2. Paralelismos com a actualidade

Apesar da distância cronológica e histórica que separa a época de Thoreau e a

actualidade, a verdade é que é possível encontrar alguns paralelismos, que se irão

revelar importantes para a discussão do direito de resistência fiscal nos tempos atuais.

Actualmente verifica-se uma grande contestação dos Governos, em especial desde a

crise, que mostrou ao mundo inteiro a actuação de anteriores governantes, assim como

deu às populações uma voz e um olhar mais crítico sobre aqueles que as governam,

assistindo-se a uma crescente exigência de maior transparência a todas as instituições

públicas.

As questões relativas ao Governo e à legislação ainda se mantêm nos nossos dias,

embora com uma diferente envolvência. Muitos são os que consideram as leis injustas e

escolhem simplesmente alhearem-se de tudo o que está relacionado com a sua

cidadania, nomeadamente não votando6. Do mesmo modo, mantém-se entre a maioria

da população a crença da impunidade dos mais ricos. Por outro lado, o problema da

ineficácia da justiça ainda se mantém, embora seja um claro objetivo dos Executivos

nos anos mais recentes torná-la mais eficaz. Outro dos grandes problemas atuais pode

considerar-se a lentidão da justiça, o que claramente leva à descrença dos cidadãos no

sistema judicial7.

Quanto à dívida, passados todos estes séculos, esta é muito provavelmente a questão

em torno da qual toda a atividade governativa e política se desenrola, e constitui um

ponto de difícil equilíbrio face às necessidades de um Estado Social.

As questões da desigualdade, apesar de em menor medida, estão ainda presentes, sendo

de realçar o caso dos desempregados e das pessoas com deficiência.

6Visívelnacrescenteabstençãoverificadanaseleiçõeslegislativas,comodemonstramosdadosdaPORDATA[http://www.pordata.pt/Portugal/Taxa+de+absten%C3%A7%C3%A3o+nas+elei%C3%A7%C3%B5es+para+a+Assembleia+da+Rep%C3%BAblica+total++residentes+em+Portugal+e+residentes+no+estrangeiro-2208(consultadoem19/04/2017)]7OquejálevouporváriasvezesàcondenaçãodoEstadoPortuguêspeloTribunalEuropeudosDireitosdoHomemtendocomobaseoartigo6.°,nº1,daConvençãoEuropeiadosDireitosdoHomem,queprevêqueacausasejadecidida“dentrodeumprazorazoável”.

6

3. O Direito de resistência fiscal na sociedade atual

Apesar de a obra base deste trabalho permitir as mais variadas, interessantes e sem

dúvida relevantes discussões e comparações, não meramente filosóficas, vamos

centrar-nos agora na questão fiscal, tendo como ponto de partida as considerações

anteriores. Apesar de atualmente a resistência fiscal não implicar uma rejeição do

Estado, como no caso de Thoreau, esta mantém-se.

3.1. Os impostos na atualidade

Os impostos são prestações patrimoniais, exigidas por lei e devidas ao Estado, mediante

a revelação de capacidade contributiva. Tal como realça Thoreau, o Estado depende das

receitas para poder atuar, para empreender as medidas necessárias e pretendidas,

para realizar as suas tarefas (conforme determinam os artigos 9º, 101º e 103º, nº 1 da

Constituição e artigos 5º e 7º da Lei Geral Tributária – constituem um “contributo

indispensável a uma vida em comum e próspera de todos os membros da comunidade

organizada em estado”8). Ora, num Estado social9, em que o Estado intervém mais, esta

necessidade de receitas é ainda maior10. Por outro lado, num Estado com uma dívida

elevada as receitas não creditícias (aquelas que não resultam de créditos), são também

extremamente relevantes. Assim, podemos concluir que sem receitas não haverá

Estado, pois não poderá haver despesas, nem atuação pública. Para além disto, em

termos de orçamento, se o Estado não receber as receitas que previu que iria receber,

nomeadamente pelo facto de os cidadãos se recusarem a pagar impostos, então terá ou

de reduzir as despesas (artigo 105º, nº 4 da CRP – equilíbrio orçamental), ou de

aumentar as receitas recorrendo a outros meios, o que irá certamente prejudicar os

cidadãos que cumprem as suas obrigações fiscais. Sendo certo que os impostos são as

receitas que o Estado consegue arrecadar em maior quantidade.

Desta forma, os impostos têm um papel fundamental e, como tal, são uma figura central

de qualquer Estado. Tudo isto explica a importância do estudo de fenómenos de não

cumprimento da obrigação fiscal, isto é, de não pagamento dos impostos devidos pelos

cidadãos, visto reduzirem as receitas públicas. Estes fenómenos podem consistir na

resistência fiscal (recusa em pagar impostos), na evasão fiscal e, actualmente, no

8CasaltaNabais–Odeverfundamentaldepagarimpostos,p.185.EsteautorconsideraosEstadoatuaiscomoEstadosfiscaispoisassuasnecessidadesfinanceirassãocobertasprincipalmentepelasreceitasdosimpostos(p.189)9Excetuandoasdespesascomosvencimentosdosfuncionáriospúblicos,asdespesascomascausassociaissãoasmaiselevadasnosOrçamentosdeEstadoportugueses10NestesentidooAcórdãoSTA7/04/2005(JorgedeSousa),Processon.º01108/03,p.23

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planeamento fiscal agressivo (o contribuinte contorna a norma fiscal de forma a obter o

resultado que pretende), e ainda na fraude fiscal (o contribuinte contraria diretamente

a norma fiscal).

Deste modo, o não cumprimento da obrigação fiscal para além de poder trazer

problemas ao nível da política orçamental, com a redução das receitas previstas, assim

como da económica11 e social, consequentemente, pode também violar o princípio da

igualdade (artigo 13º da CRP)12, visto nem todos contribuírem, mas, pelo contrário,

todos beneficiarem, não sendo tratadas da mesma forma situação iguais.

Em suma, os impostos são extremamente importantes para os Estados, nomeadamente

para Portugal13, assim torna-se claro que a proliferação da resistência fiscal seria

bastante prejudicial.

3.2. Os limites à tributação

Apesar da relevância dos impostos acima assinalada, a verdade é que são cobrados

coercivamente, podendo eventualmente chegar à execução fiscal. Contudo, o Estado

não pode cobrar impostos arbitrariamente, estando previstos diversos limites a este

poder tributário14.

Em primeiro lugar a legalidade fiscal, consagrada no artigo 103º, nº 2 da CRP. Os

impostos têm de ser criados por lei (em sentido estrito) ou em decretos-lei autorizados

(reserva relativa da Assembleia da República - artigo 165º, nº 1, i) e nº 2 da CRP). Este

ponto é crucial, pois os impostos são criados pelos representantes da população (no

taxation without representation), pelos deputados eleitos para o Parlamento, sendo que

a falta de representatividade relativamente aos escravos era uma das críticas de

Thoreau.

Por outro lado temos a segurança jurídica (103º, nº 3 da CRP), que compreende as

exigências de transparência, de publicidade, inteligibilidade e previsibilidade da

11ManuelPereira–Fiscalidade,p.477,realçaumestudorealizadopeloMinistériodaEconomiaem2010queconcluiuqueaprincipalcausadadiferençaentreaprodutividadedePortugaleadosrestantespaíseseuropeuséonãocumprimentodosimpostospelosagenteseconómicos.12NestesentidoCidáliaLopes–QuantocustapagarimpostosemPortugal?,p.91e9513SegundoEugéniaRosaareceitafiscalpotencialnãocobradaem2002erade13,8milmilhõesdeeuros(CidáliaLopes,obcit,p.76)14Oslimitesenunciadosbaseiam-senosreferidosporCasaltaNabais,obcit,títuloII

8

tributação, bem como a rejeição do arbítrio, sabendo os contribuintes antecipadamente

os impostos a que estão sujeitos, de forma a poderem decidir os seus comportamentos.

Também a igualdade fiscal limita a tributação, pois todos os cidadãos estão obrigados a

pagar impostos, mas na medida da sua capacidade contributiva (artigo 4º, nº 3 da

LGT), sendo ainda relevante assinalar a consideração do agregado familiar para o

apuramento do imposto sobre o rendimento, tratando assim de forma desigual as

situações desiguais – artigo 104º, nº 1 e 3 da CRP.

3.3. Possíveis causas de resistência

Para entender este direito de resistência é ainda necessário compreender quais os

fundamentos que podem levar algum cidadão a pretender não pagar impostos, a

pretender invocar um possível direito de resistência fiscal. A realidade é que ninguém

gosta de pagar impostos, no entanto estes são necessários para a nossa existência

enquanto coletividade.

Em primeiro lugar podemos apontar o entendimento de que os impostos são cobrados

de forma injusta (questão também levantada por Thoreau), ao que se soma a questão já

apontada da violação do princípio da igualdade, o que pode levar os contribuintes a

recusarem-se a pagar impostos. Casalta Nabais fala no fenómeno do “apartheid fiscal”15

que cada vez mais se verifica, com os trabalhadores independentes a fugirem mais

facilmente aos impostos do que os trabalhadores dependentes, declarando apenas parte

dos seus rendimentos, sendo que nestes casos os impostos não incidem sobre os seus

rendimentos reais, mas sobre os declarados (consequência da dependência em que se

encontra a AT face à colaboração dos contribuintes). Por outro lado, o atual sistema

fiscal exige aos contribuintes conhecimentos técnicos, tendo em conta todas as

operações que lhes são exigidas para procederem ao pagamento do imposto, e coloca

enormes dificuldades de compreensão para um contribuinte médio16.

Existe ainda uma excessiva complexidade e sucessivas alterações do sistema fiscal

(grande instabilidade), que fazem com que os cidadãos não o entendam, o que em parte

explica que parte da fuga aos impostos ocorra por desconhecimento do sistema, ou

mesmo por desinteresse devido a esta complexidade.

15CasaltaNabais–DireitoFiscal,p.514a51616NestesentidoCidáliaLopes,obcit,p.65

9

Acrescente-se ainda a ideia de que a corrupção domina a classe política, que se limita a

gastar os dinheiros públicos em interesses próprios, e sem consciência do impacto

desses gastos nas gerações futuras (justiça intergeracional), o que provoca o

descontentamento da população e a sua aversão ao pagamento de impostos. Os

cidadãos sentem que a relação entre os impostos que pagam e os serviços e prestações

que recebem não é proporcional, que contribuem demasiado recebendo pouco em troca

(intercâmbio fiscal)17.

3.4. Direito de resistência fiscal no ordenamento jurídico

português

O direito de resistência é uma garantia constitucional, que tem como objetivo a defesa e

conservação do ordenamento jurídico, nomeadamente contra a arbitrariedade e o

abuso de poder da Administração18. Podem distinguir-se três tipos de resistência, a

resistência passiva, recusa absoluta do cumprimento da obrigação fiscal, a resistência

defensiva, em que se utiliza a violência para responder à violência da cobrança coativa,

e, por último, a resistência ativa ou agressiva, em que o indivíduo ataca para que se não

crie sequer a obrigação19. Este, e de acordo com Maria Mesquita, é um direito análogo

aos direitos, liberdades e garantias, o que implica que tem aplicabilidade direta, vincula

as entidades públicas e confere um direito a indemnização em caso de violação (artigos

17º e 22º da CRP)20. Por outro lado, quando o contribuinte atua ao abrigo deste direito

de resistência, caso a sua conduta preencha um tipo criminal, exclui-se a sua ilicitude,

de acordo com o artigo 31º, nº 2, b), do Código Penal21. Este direito tem então origem no

princípio da legalidade e na proteção do indivíduo, nomeadamente dos seus direitos

fundamentais.

O Supremo Tribunal Administrativo já se pronunciou sobre esta questão (Processo n.º

01108/03), sendo que entendeu que o direito de resistência fiscal não pode ser mais

abrangente do que o direito de resistência geral (artigo 21º da CRP). Considerou que

existe um direito de resistência fiscal passiva e defensiva em relação a impostos ilegais.

17NestesentidoCidáliaLopes,obcit,p.107e108.ComoexemplodestefactotemososprotestosdospequenosempresáriosemFrança(NicolasDelalandeeRomainHuret,obcit,p.301)18NestesentidoMariaMesquita–Direitoderesistênciaeordemjurídicaportuguesa,p.10,15,17e1819NestesentidoMariaMesquita,obcit,p.17eoAcórdãoSTA7/04/2005(JorgedeSousa),Processon.º01108/03,adaptado20NestesentidoMariaMesquita,obcit,p.3221NestesentidoMariaMesquita,obcit,p.33

10

Defende ser a oposição à execução fiscal, o meio adequado de exercício do direito de

resistência fiscal defensiva.

Como exemplo de invocação deste direito em Portugal temos uma queixa apresentada

ao Provedor de Justiça (processo Q-3386/13 (A2)), em que o direito de resistência

fiscal é invocado numa situação de desemprego. Neste caso concreto o Provedor

entendeu, tendo como base o acórdão do STA referido, que este direito não existe, que

estas situações já se encontram protegidas através de outros meios, mas também que

este direito iria beneficiar determinados cidadãos, prejudicando outros.

Desta forma, podemos concluir que apesar de os desempregados, as pessoas com

deficiência, assim como os agregados mais desfavorecidos, se encontrarem numa

situação mais carenciada, a verdade é que muitos são os instrumentos que o Estado

criou para auxiliar estas pessoas. Claro que podemos sempre criticá-lo dizendo que

estes são insuficientes ou ineficientes, mas não parece ser o não pagamento de

impostos a forma de os auxiliar, realçando a tomada em consideração da capacidade

contributiva para apuramento do imposto, bem como a garantia de um mínimo de

existência, como garantia da dignidade da pessoa humana (apesar de atualmente este

ser demasiado reduzido).

Tal como Thoreau dizia, quem beneficia das medidas públicas deve para as mesmas

contribuir, sempre na medida das suas possibilidades. Por outro lado, ao retirar

receitas ao Estado, o resultado obtido é o inverso do pretendido, o Estado fica com

menor disponibilidade financeira para auxiliar aqueles que necessitam, e onera mais

aqueles que têm pelo menos alguma capacidade financeira, o que pode criar o efeito

dominó de estes também pretenderem não pagar impostos, por se sentirem

injustiçados.

O direito de resistência geral encontra-se constitucionalmente previsto, no artigo 21º

da CRP. Quanto ao direito de resistência fiscal é necessário contrabalançar o objetivo da

tributação com as suas consequências. Neste sentido, as receitas provindas da

tributação são utilizadas pelo Estado de forma a garantir os direitos, liberdades e

garantias dos cidadãos, constitucionalmente protegidos (artigos 24º e seguintes), como

por exemplo a saúde, a educação, a segurança. Por outro lado, o pagamento de impostos

implica um sacrifício aos cidadãos, tendo em conta que estes têm de entregar ao Estado

uma parte, que se pode dizer significativa, dos seus rendimentos. Contudo, a realidade é

11

que ao avaliarmos esta relação torna-se claro que a defesa dos direitos, liberdades e

garantias de todos aqueles que constituem a coletividade, se sobrepõe ao encargo que é

colocado sobre os contribuintes pelos impostos.

Assim, a grande distinção a fazer neste ponto será entre impostos legais e ilegais (tendo

em consideração o princípio da legalidade), sendo que, apenas no caso dos impostos

ilegais, se pode considerar que existe de facto um direito de resistência (artigo 103º, nº

3 da CRP). Mas esta resistência será meramente passiva, podendo aceitar-se que seja

também defensiva apenas nos casos em que se verifiquem pressupostos como a

proporcionalidade da reação, mas acima de tudo que não seja possível uma tutela

jurisdicional efetiva (artigos 9º e 95º da LGT), tendo assim carácter excecional. Isto

significa, que apenas se poderá aceitar a existência de um direito de resistência

defensiva, no caso de não ser possível recorrer aos tribunais (artigo 202º da CRP) para

defesa face a uma cobrança coativa de impostos ilegais, pois existe a figura da oposição

à execução, adequada para os casos em cujo fundamento é a ilegalidade e cujo processo

tem natureza judicial (artigo 103º da LGT), garantindo-se assim a sua legalidade e

conformidade com o Estado de Direito. Não pode ser deduzida uma oposição à execução

em caso de pagamento voluntário, daí que este processo possa impedir o direito de

resistência defensiva e não a passiva. A agressão aos direitos, liberdades e garantias do

sujeito ocorre pela mera cobrança de um imposto ilegal, por violação do direito ao

património (artigo 62º da CRP) que é um direito análogo. Não se pode afirmar que

existe um direito de resistência ativa, pois é necessário que primeiro haja uma atuação

da Administração e, mais uma vez, porque é necessário que não haja outra forma de

atuar, sendo que nenhum dos pressupostos se verifica na resistência ativa.

3.5. Eventuais métodos para evitar a resistência

Por fim, é ainda importante refletir sobre os métodos que a Administração pode

utilizar, de forma a evitar que no futuro, algum cidadão pretenda invocar um direito de

não pagar impostos, partindo do pressuposto que este não lhe assiste por o imposto não

ser ilegal.

Uma medida a tomar é a simplificação do sistema fiscal, o que provavelmente será

diminuto, tendo em conta as necessidades legislativas atuais de fazer face a uma

realidade cada vez mais complexa. A Administração Fiscal deve fazer todos os

possíveis para permitir aos contribuintes terem os conhecimentos necessários de

12

forma a poderem cumprir as suas obrigações fiscais, sem excessivos encargos ou

dificuldades22.

Será ainda necessária uma maior transparência por parte dos Executivos. É preciso

que os contribuintes saibam para onde estão a ser canalizadas as receitas públicas, que

sintam e vejam que o dinheiro dos impostos que pagam é utilizado nos serviços

públicos, para seu benefício. Torna-se neste ponto crucial ter em consideração o efeito

negativo das conceções de injustiça, de corrupção e de ineficácia associadas ao

exercício do poder executivo, como foi já referido.

Relativamente à tão importante questão da educação fiscal, que tem e terá um impacto

muito significativo, quando aliada a todas as outras medidas propostas. Esta política de

educação fiscal deve começar logo com os mais jovens, com os futuros contribuintes,

explicando-lhes como funciona o sistema fiscal e qual o papel e a importância dos

impostos, de forma a consciencializar a população de que o pagamento de impostos não

é o cumprimento de uma mera obrigação, mas sim um dever de cidadania 23, de

contribuição para o bem comum24.

Por outro lado, esta política seria uma boa forma de transmitir, não apenas aos futuros

mas também aos atuais contribuintes, os referidos conhecimentos necessários para o

cumprimento da obrigação fiscal25. Esta política já resultou na implementação de

programas de educação fiscal em muitos países entre os quais Portugal26.

22NestesentidoCidáliaLopes,obcit,p.66,67e106-“nenhumsistemafiscalpodefuncionar,deformaeficiente,semacooperaçãodamaioriadoscontribuintes(…)requeracooperaçãoeboavontadedoscontribuintesnocumprimentodomínimolegalexigido”23NestesentidoCidáliaLopes,obcit,p.67e104,aopassoqueCasaltaNabaisconsidera-oumdeverfundamental24Infelizmentearealidadeatualédiversa,em2006menosde40%dosnorte-americanosconsideravamqueaevasãofiscalnãoeraimoral,emaisde60%dosgregosdiscordavam(CidáliaLopes,obcit,p.67).Nosanosrecentesoproblemagregodefugaaosimpostosagravou-se,oquepodeconstatar-senoestudodaDianeosis[DIANEOSIS–TaxevasioninGreece–Astudy.Disponívelem:http://www.dianeosis.org/en/2016/06/tax-evasion-in-greece/(consultadoem19/04/2017)]25NestesentidoMariaDelgado–Laeducaciónfiscalcomoinstrumentodeluchacontraelfraudeylaevasiónfiscal,p.222,223e22526NestesentidoMariaDelgado,obcit,p.232

13

Uma outra medida que se pode revelar bastante proveitosa será a publicação de listas

de não cumpridores27, algo já feito pela AT, o que certamente levará, através da pressão

social, os contribuintes não cumpridores a reconsiderarem o seu não cumprimento.

4. Reflexões finais

O direito de resistência fiscal encontra-se associado a fenómenos sociais, e tem

acompanhado a evolução da humanidade. Tendo em conta todo o enquadramento

social, político e económico feito, podemos finalmente formular uma clara posição.

Existe de facto um direito de resistência fiscal no ordenamento jurídico português, no

entanto este tem de ser compatibilizado com todo o restante sistema. A tributação é

essencial para o Estado, e não é nem pode ser realizada de forma arbitrária pela

Administração Tributária, estando sujeita a vários limites, consagrados a nível

constitucional, e concretizados ao nível da legislação tributária. Desta forma, apesar de

do artigo 21º da CRP resultar um direito de resistência, que se estende também ao

âmbito fiscal, este não permite uma absoluta recusa de pagamento de impostos, visto

estes realizarem os objetivos previstos na Constituição, que visam o desenvolvimento e

proteção de toda a coletividade e a efetivação e proteção dos direitos, liberdades e

garantias consagrados constitucionalmente. Assim sendo, apenas se pode considerar

que existe um direito de resistência fiscal, passiva e defensiva, ao nível dos impostos

ilegais. No caso da resistência defensiva é ainda necessário que não seja possível

recorrer aos meios previstos para impugnar a execução de um imposto ilegal.

Por outro lado, muitos são os instrumentos ao dispor dos cidadãos e, muitas foram as

opções tomadas pelo legislador, no sentido de proteger aqueles que se encontram em

situações de maior fragilidade, não podendo de modo algum considerar-se que esta sua

situação pode fundamentar um direito de não pagar impostos.

É ainda a este propósito, muito relevante refletir sobre as soluções que o Estado pode

adotar, de forma a evitar que haja nos cidadãos uma qualquer vontade de não pagar

impostos. Devem de facto tomar-se medidas no sentido de demonstrar à população o

relevo dos impostos, o funcionamento do sistema fiscal e, acima de tudo, incutir-lhes a

convicção de que o pagamento de impostos constitui um dever de cidadania.

27NestesentidoCidáliaLopes,obcit,p.102

14

Em suma, existe um direito de resistência fiscal em Portugal, bastante limitado, em

muito devido à própria constituição do sistema fiscal, que já protege em grande medida

os cidadãos.

Catarina Paulino Alves Lisboa, Setembro de 2017

15

Bibliografia THOREAU, Henry David – A Desobediência Civil. Penguin Companhia das Letras

MESQUITA, Maria Margarida Cordeiro – Direito de resistência e ordem jurídica portuguesa. Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal. ISSN 0870-340X. Nº 353 (Janeiro-Março 1989), p. 7 a 46

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PIRES, Rita Calçada; PIRES, Manuel – Direito Fiscal. 5ª Edição. Coimbra: Almedina, 2012. ISBN 978-972-40-4792-8

LOPES, Cidália Maria da Mota – Quanto custa pagar impostos em Portugal?: os custos de cumprimento da tributação do rendimento. Coimbra: Almedina, 2008. ISBN 978-972-40-3431-7

PEREIRA, Manuel Henrique de Freitas – Fiscalidade. 5ª Edição. Coimbra: Almedina, 2014. ISBN 978-972-40-5845-0

DELGADO, Maria Luisa – La educación fiscal como instrumento de lucha contra el fraude y la evasión fiscal. In Fiscalidade: outros olhares. Porto: Vida Económica, 2013. ISBN 978-972-788-775-0

NABAIS, José Casalta – O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a compreensão constitucional do Estado Fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 1998. ISBN 972-40-1115-1

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CANOTILHO, Gomes; MOREIRA, Vital – Constituição da República Portuguesa anotada. Volume I. 4ª Edição. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. ISBN 978-972-32-1462-8

MORAIS, Rui Duarte – Manual de Procedimento e Processo Tributário. Coimbra: Almedina, 2012. ISBN 978-972-40-5021-8

Jurisprudência e outros

Queixa apresentada ao Provedor de Justiça, Proc. Q-3386/13 (A2)

Acórdão STA 7/04/2005 (Jorge de Sousa), Processo n.º 01108/03

Para mais literatura recomendada sobre as matérias abordadas pelo iLab, consultar a actividade de Curadoria Científica desenvolvida pelo iLab: http://ilab.cedis.fd.unl.pt/curadoria-cientifica/

Declaração de compromisso Anti-Plágio

“Declaro por minha honra que o trabalho que apresento é original e que todas as citações estão correctamente identificadas. Tenho consciência de que a utilização de

elementos alheios não identificados constitui grave falta ética e disciplinar”.

Catarina Paulino Alves