Os prelúdios para piano de Luizão Paiva

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Abordaremos analiticamente alguns prelúdios para piano do compositor, arranjador e instrumentista Luizão Paiva (1950). É constante em suas obras a justaposição de procedimentos técnicos advindos tanto da música popular quan- to da erudita. Detivemo-nos em reconhecer a gênese deste posicionamento ideológico-composicional, buscando, sobretudo, o equilíbrio entre análise e contexto.

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    Os preldios para piano de Luizo Paiva: cruzamentos entre anlise musical e scio-contextual luz de um perfil composicional

    Thiago Cabral Carvalho (UFPB)

    [email protected] Resumo

    Abordaremos analiticamente alguns preldios para piano do compositor, arranjador e instrumentista Luizo Paiva (1950). constante em suas obras a justaposio de procedimentos tcnicos advindos tanto da msica popular quan-to da erudita. Detivemo-nos em reconhecer a gnese deste posicionamento ideolgico-composicional, buscando, sobretudo, o equilbrio entre anlise e contexto.

    Palavras-chave: Anlise musical, Msica e Contexto, Luizo Paiva.

    Introduo

    No que concerne abordagem especulativo-musicolgica nos dias atuais, diagnosticamos uma

    perceptvel dilatao investigativa deste campo de estudo, haja vista o crescente nmero de pu-

    blicaes com esta multiviso1. Se considerarmos a taxonomia de Adler2 como ponto de partida,

    poderemos auferir uma concluso: um objeto, outrora reconhecido como prprio ou restrito a

    uma abordagem musicolgica, torna-se hoje passvel a um imbricamento cientfico, cngruo a

    um vis transdisciplinar.3 Outra significativa tendncia na ao musicolgica da atualidade en-

    volve a descentralizao deste objeto. Para tanto, preciso desprender-se do mito que somente

    tendncias advindas de outras realidades que no a brasileira sejam merecedoras de um status

    acadmico. Uma hierarquizao decrescente e discriminatria como esta no mnimo question-

    vel. Como compreender a relevncia de uma produo regional/local e suas particularidades sem

    uma reflexo consciente daquela realidade? A opo pelo caminho novo o qual converge musi-

    cologia e suas reas afins dar-se- num momento de transio paradigmtica vivenciada pela

    cincia ps-moderna (SANTOS, 2003), onde, a relativizao, at mesmo dos processos investi-

    gativos das cincias exatas, nos traz um panorama do atual momento.

    Na presente pesquisa, atentamo-nos a esta propenso buscando um ponto de equilbrio entre a

    discusso analtica dos materiais da msica do sculo XX e o contexto, onde fatores motivacio-

    nais so orientados, metodologicamente, pelo campo das cincias sociais. Com este princpio,

    elaboramos uma teortica denominada perfil composicional: ferramenta manipulvel tanto pelo

    terico quanto pelo intrprete musical uma vez que esta comportar informaes tcnicas devi-

    1 Nas palavras de Duprat encontramos, por exemplo, a preferncia pelo uso do paradigma hermenutico como difu-sor deste alargamento cientfico, ou segundo o autor, o "nico a poder superar de fato os chamados resduos neopo-sitivistas na Musicologia" (DUPRAT, 2007, p.15). 2 O musiclogo Guido Adler (1855-1941) sugeriu a organizao da disciplina em trs subreas: histrica, sistemti-ca e comparativa. Cf, MUGGLESTONE (1981, p. 1-21). 3 Cf, por exemplo, VOLPE, 2007.

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    damente contextualizadas4. A avaliao constante das decises tomadas e do resultado sonoro

    proposto pelo compositor fundamentar nossa reflexo quanto ao seu feitio peculiar5. Em suma,

    formulamos esta averiguao em trs nveis: 1) A construo e anlise biogrfica; 2) Estudo do

    contexto no qual o compositor se insere; 3) Uma descrio detalhada dos procedimentos musi-

    cais encontrados e o cruzamento destas informaes contidas num conjunto de obras, privilegi-

    ando investigao aos eventos intermitentes e recorrentes6.

    Luizo Paiva: aspectos biogrficos e contextuais

    Luizo Paiva natural de Teresina, PI. Aos 4 anos de idade iniciou seus estudos de piano com a

    av, a professora Adalgisa Paiva, figura importante na histria da educao musical teresinense.

    Demonstrando talento inato, parte, aos 10 anos de idade, para So Paulo a fim de continuar seus

    estudos musicais e escolares. Na dcada de sessenta, migra para o Rio de Janeiro. De 1972 a

    1975, freqenta a Escola de Msica Pr-Arte, podendo ampliar seus estudos de piano, teoria,

    anlise e histria da msica. Ingressou do curso de Engenharia da Universidade Gama Filho (RJ)

    tambm no mesmo perodo. Em 1978 desiste do curso para estudar na Berklee College of Music

    (Boston, EUA), graduando-se em composio, arranjo e performance em apenas 2 anos. De volta

    ao Brasil, atuou como pianista em diversos espetculos nacionais acompanhando diversos artis-

    tas da MPB. Ministrou workshops de msica brasileira no Rotterdam Conservatorium (Holanda)

    de 1994 a 1995. Gravou dois CDs com composies autorais: Avoante (1996) e Piau

    (2001). fundador e atual diretor da Escola de Msica Professora Adalgisa Paiva, sediada na

    Universidade Federal do Piau.

    Encampamos uma contextualizao a partir do estudo das obras (os preldios para piano com-

    postos de 1999 aos dias atuais), realizando um recorte esttico-temporal7. Numa audio prvia e

    posterior anlise, identificamos indcios de uma acepo onde o popular e o universal norteia

    lgica (arqutipo organizacional das peas), a ideologia composicional (opo esttica) e o feitio

    peculiar do compositor8.

    4 Para melhor detalhamento desta proposta, consideramos imprescindvel a consulta do artigo Anlise musical e contexto: propostas rumo crtica cultural (VOLPE, 2004). 5 H quem considere o termo feitio sinonmico de estilo. Porm, ANDRADE (1943 apud COLI, 1998, p. 47) e CARVALHO (2008, p. 15), procuraram seccion-los devido aos constantes equvocos, quanto ao seu emprego, nos tratados de msica. O primeiro concebe estilo como tcnica pessoal. O segundo assim problematiza e comenta ta-manha confuso terminolgica: por demais comum muita gente confundir feitio com estilo, dizendo, por e-xemplo, o estilo de algum em vez de ao feitio de algum ou ento, no faz o meu estilo querendo dizer no do meu feitio etc (grifos do autor). 6 Consideramos eventos intermitentes os procedimentos composicionais que no se repetem no ato comparativo-musical. Entremetes, vlido ressaltar que esta intermitncia logicamente imprescindvel para identificao dos processos inversos, ou seja, a recorrncia. 7 Tambm neste perodo (1999) que o compositor estabelece residncia fixa em sua cidade natal. 8 Ou seja, centralizando o contexto de Luizo com uma produo ps-moderna de msica popular instrumental bra-sileira, podemos identificar outros exemplos de compositores que coadunam com esta tendncia. Apenas para citar

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    Metodologia da pesquisa

    Utilizamos os seguintes meios de coleta de dados:

    1. Pesquisa bibliogrfica: discriminamos consulta as fontes: a) sobre histria da msi-

    ca/dicionrios de msica; b) tratados analticos de msica c) anlises de obras para piano

    do sculo XX (em artigos, teses e dissertaes); d) textos sobre estudos scio-culturais,

    scio-contextuais e de sociologia da arte;

    2. Pesquisa de campo: de maneira exploratria sob molde de entrevista com o compositor

    aplicada em trs nveis: no estruturado, semi-estruturado, estruturado. Objetivamos as-

    sim, concentrar o maior nmero de dados sobre o compositor (informaes pessoais e

    profissionais), para que pudssemos, com certo grau de fidelidade, redigir sua biografia.

    3. Organizao dos dados: orientada metodologicamente em oito etapas: a) Visita ao acer-

    vo do compositor; b) Seleo dos autgrafos; c) Edio das partituras; d) Anlise musical

    das partituras; e) Listagem das ocorrncias no arcabouo musical; f) Cruzamento analti-

    co entre as peas; g) Montagem de um banco de dados dos procedimentos composicio-

    nais recorrentes; h) Construo do perfil composicional.

    A questo da anlise e do contexto: luz de um norteamento metodolgico

    A anlise musical torna-se importante como valioso aparato investigativo aos processos e tcni-

    cas compositivas quando extramos de seus pressupostos informaes que nos auxiliem no pro-

    cesso de interpretao do contedo musical9. Focando-nos na prxis moderna e contempornea,

    constatamos que o estudo analtico da musica fundamentado na corrente hanslickiana10. Esta,

    por sua vez, contempla uma abordagem estrutural11 da msica, fato este, a nosso ver, decisivo

    para o surgimento de uma nova tendncia composicional j no incio do sculo XX, onde a re-

    pulsa sistmica vigente motiva novas estticas.

    alguns: Tom Jobim (1927-1994), Hermeto Pascoal (1936), Victor Assis Brasil (1945-1981), Luiz Ea (1936-1992), Baden Powell (1937-2000) etc. 9 Ou, como defende Kerman: O potencial da anlise formidvel, desde que se possa retir-la da estufa da teoria e lev-la ao mundo real (KERMAN, 1989, p. 11). 10 Para HANSLICK (1992, p. 21) toda verdadeira obra de arte estabelecer uma relao qualquer com nosso senti-mento, mas nenhuma uma relao exclusiva. Ainda sobre a tal tendncia, citamos MASSIN (1997, p. 666): Ela no considera mais a obra como a expresso do homem, mas como uma construo, um arabesco sonoro, (...) um universo parte, autnomo e especfico, cujo valor est no fato de ser harmoniosamente ordenado de acordo com princpios formais, alis, variveis e em evoluo, mas estritamente intrnsecos msica. 11 Sobre o termo estrutura, tomamos por base o conceito de KERMAN (1987. p. 77), onde, para este, refere-se estrutura global das obras de arte o que faz as composies funcionarem, que princpios gerais e que caractersti-cas [peculiaridades] individuais asseguram a continuidade, coerncia, organizao ou teleologia da msica.

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    Ao encamparmos o equilbrio taxonmico entre a techn (subentendo, neste caso, as informaes

    contidas na partitura) e motivaes socio-contextuais (ou, num sentido lato, luz de uma com-

    preenso ontolgica do fazer musical) esperamos compreender, com maior propriedade, o fazer

    musical de Luizo Paiva.

    Seguindo pioneiramente esta tendncia, mas retratando a produo musical europia dos sculos

    XVIII e XIX, destacamos o trabalho do musiclogo indonsio-americano Jan LaRue. Em Guide-

    lines for Style Analysis, LaRue auxilia-nos sobre como formular questes, levantar hipteses e

    observar os dados musicais, onde, o primeiro estgio, evoca uma observncia ao contexto da

    obra musical:

    1) Anlise de antecedentes, ou seja, entorno histrico em trajetria do autor e suas obras; 2) Observao, onde so analisados parmetros musicais (som, harmonia, me-lodia, ritmo e forma); 3) Avaliao, atitude crtica do analista onde os parmetros vistos anteriormente so avaliados (LARUE, 1989, p. 12) 12.

    Na inteno de ampliar a primeira parte da proposta analtica de LaRue, por ele denomina de

    anlise dos antecedentes, dialogamos com o campo reflexivo-epistemolgico das cincias so-

    ciais. Este, iniciado com Bachelard13, retm, em Bourdieu, um destaque investigativo sistemati-

    zado sobre os sistemas de relaes sociais e histricos em sua metodologia de pesquisa.

    Ao observar, no campo da literatura, a obra de Flaubert, Bourdieu prope em As regras da Arte

    uma abordagem sobre as trs dimenses para a anlise do campo artstico, a nosso ver, de

    grande utilidade para um estudo contextual que vislumbramos analisar:

    1) A anlise da posio do campo artstico no seio do campo de poder, e de sua evoluo no decorrer do tempo; 2) Anlise da estrutura interna do campo artstico, universo que obedece s suas prprias leis de funcionamento e de transformao, isto , a estrutura das rela-es objetivas entre as posies que a ocupam os indivduos ou grupos coloca-dos em situao de concorrncia pela legitimidade;

    12 Esta traduo foi realizada a partir da edio espanhola do livro, lanada em 1989. 13 Mesmo reconhecendo outros trabalhos precedentes a Bachelard na pesquisa cientfica das cincias sociais, opta-mos em delimitar o percurso histrico que, para tanto, ilustramos aqui nas palavras de SANTOS (2003, p. 30): A construo epistemolgica de que parto para exercer a desconstruo hermenutica a de Bachelard. Por duas ra-zes principais: a primeira, de histria intelectual, que a reconstruo lgica do processo cientfico feita por Ba-chelard foi a que maior influncia e exerceu nos ltimos anos, no s pelos trabalhos de Bachelard (alguns escritos muitos anos antes), como tambm pela repercusso dos trabalhos de outros que ele influenciou, por maiores que sejam as diferenas entre eles (Carguilhem, Foucault, Althusser, Bourdieau, Veron, Castells, Lecourt, Morin etc.). A segunda razo, terica, que a epistemologia bachelardiana representa, por assim dizer, o mximo de conscincia possvel de uma concepo de cincia comprometida com a defesa da autonomia e do acesso privilegiado verdade do conhecimento cientfico, sem para isso recorrer a outros fundamentos que no sejam os que resultam da prtica cientfica. Sendo a concepo mais avanada, tambm a que mais claramente manifesta os limites da lgica dos pressupostos em que assenta, e, portanto, a que mais opes cria sua superao. Da o equilbrio a obter entre uma hermenutica de recuperao e uma hermenutica de suspeio.

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    3) A anlise da gnese do habitus dos ocupantes dessas posies, ou seja, os sistemas de disposies que, sendo o produto de uma trajetria social e de uma posio no interior do campo artstico, encontram nessa posio uma oportuni-dade mais ou menos favorvel de atualizar-se (a construo do campo a con-dio lgica prvia para a construo da trajetria social como srie das posi-es ocupadas sucessivamente nesse campo) (BOURDIEU, 1996, p. 243).

    Os preldios: princpios tcnicos e os indcios de um feitio peculiar

    Selecionamos quatro preldios do compositor, so eles: Forr em Gilbus (2001); Mothers

    Nature Prlude (2002); La Passion (2003); Mourning Sunset (2004) 14. Ao confrontarmos

    as peas, listamos os eventos recorrentes nos parmetros selecionados: sistema, estilo, forma,

    tema15 e harmonia. Em seguida, sintetizamos tais ocorrncias a fim compreendermos a evoluo

    da complexidade relativa16 das obras, considerando o fator periodicidade 17:

    GRFICO 1

    Procedimentos tcnico-composicionais

    Espao temporal

    Par

    met

    ros

    Sistema Forma Estilo Tema Harmonia

    Observamos o fluxo/refluxo de uma conduta tradicional (prxis europia at o sc. XIX) e mo-

    derna/ps-moderna (sc. XX). Esta intencionalidade peculiariza seu feitio: uma busca constante

    de possibilidades tcnicas oriundas de mltiplas fontes.

    14 As partituras esto disponveis para download pblico em http://www.cchla.ufpb.br/gmt/hp/memberscontributions/thiago_cabral.htm. 15 No caso, consideramos tema uma melodia identificvel numa obra musical, compondo um elemento fundamen-tal (CARVALHO, 2009, p. 141). 16 Segundo GUIGUE, 2007, p. 42, a informao que serve de fundamento avaliao do grau de atividade de um dado componente numa unidade e na gerao de uma dinmica formal, a sua taxa de complexidade relativa. A complexidade mxima corresponde configurao que contribui na produo da sonoridade mais complexa possvel no domnio de competncia do componente. Na outra ponta, as configuraes mais simples so as que puxam as sonoridades para baixo, para a maior simplicidade estrutural. 17 No caso mais geral, o perodo o tempo que uma partcula leva para completar exatamente uma volta em uma trajetria fechada [ou seja, so eventos comportados e organizados diacronicamente na composio musical]. (HALLIDAY, et al. 2006, p. 76)

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    Consideraes sobre conduo de vozes e o aspecto harmnico como geradores formais

    No preldio La Passion, detivemo-nos em averiguar o controle mlico18 no decurso da obra

    adotando a metodologia schenkeriana19 na hierarquizao dos arqutipos musicais. Observe:

    Ex. 01: Nvel mediano (middleground) do preldio La Passion A Urline (3-2), presente do compasso 03 at o 26, interrompida por uma seqncia estendida

    de acordes dominantes 1 semitom acima do V do tom principal. Estes acordes so conhecidos na

    linguagem funcional da msica popular como SubV, ou seja, aquele que possui o mesmo trtono

    do V, onde, o baixo (nota mais grave) est meio-tom acima do acorde de repouso20. O retorno a

    idia inicial antecipada por uma justaposio poliacrdica21 (compasso 27-28), tencionando

    ainda mais aquela regio. Em seguida, o referencial harmnico-tradicional recobrado em con-

    traposio Urline que est invertida: de 3-2 para 6-7 resolvendo posteriormente no primeiro

    grau (compasso 32).

    O arpejamento tnica-dominante-tnica (ou bassbrechung) mantido, mesmo com uso da ex-

    panso harmnica22 (compasso 26-28) precedente ao V (compasso 30-31).

    Em Mothers Nature Prlude o compositor utiliza-se de procedimentos similares, entretanto,

    despreza uma fixao meldica na voz superior, alternando-a, quando existente, na inferior, por

    vezes em quintas diretas23 (comp. 01-16 e 33-36). Uma adoo sistmica pelo modalismo na

    voz superior refora a ausncia da Urline, observe o exemplo 2:

    18 Sinonmico meldico. 19 SCHENKER, Heinrich. Free Composition. 3 vol. New York: Longman Inc., 1979. 20 Optamos por utilizar a mesma terminologia e cifragem harmnica dos tratados de msica popular/jazz, para que a compreenso lgica e conceptiva do compositor seja mantida. Reportando a dita harmonia tradicional, o acorde SubV seria correspondente ao acorde de sexta napolitana no estado fundamental. 21 Cf, PERSICHETTI, 1985. 22 Vide BUETTNER, 2004. 23 Ou, segundo a terminologia tradicional, quintas paralelas.

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    Ex. 02: Nvel mediano (middleground) da pea Mothers Nature Prlude.

    A centralidade harmnica da pea circunda o tom de Mib maior, mesmo incorporando escalas

    modais. H prevalescena, no compasso 17 ao 36, do modo Mi ldio b7, comumente usado em

    acordes de funo dominante. H neste instante o estabelecimento, num perodo relativamente

    considervel, do acorde SubV de Mib (compasso 16) estendido cromaticamente de R (compasso

    33) para Mib (compasso 37).

    Mesmo desconsiderando a Urline, o bassbrechung configura o sistema tonal. A peculiaridade

    deste procedimento advm da fuso do jazz com a msica erudita da 1. metade do sc. XX: uma

    contnua difuso de acordes SubV e uma sobreposio de planos modais (bi ou polimodalismo) e

    planos tonais (bi ou politonalismo). Esta ornamentao ocorre sobremaneira na regio da domi-

    nante, como pudemos demonstrar nos exemplos anteriores, configurando o mbito mais comple-

    xo do preldio.

    Scriabin, Debussy e Satie, por exemplo, conservam este iderio. O dilogo entre modal, tonal,

    ps-tonal presente tambm na msica popular mais recente, principalmente com os padres

    jazzsticos ps anos 50: a third stream (terceira corrente), concebida esteticamente por Gunther

    Schller (1925), reune elementos ps-tonais s composies jazzsticas.

    Consultado sobre este no desligamento integral do sistema tonal, Luizo admite que todo seu

    arcabouo formal, meldico e contrapontstico provm do contato com a obra de J. S. Bach, es-

    pecialmente a Arte da Fuga 24, por ele analisado nos anos 70.

    Estudo da elaborao temtica

    Ao adotamos o aparato analtico-paradigmtico de Ruwet25 evidenciamos, no somente elemen-

    tos tcnicos, mas tambm recursos suplementares.

    24 "Die Kunst der Fuge", BWV 1080. 25 Vide RUWET, 1972.

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    No exemplo 03, observamos uma construo frasear onde a inverso, transposio, conteno

    rtmica etc. so empregados. Agregados a estes, vemos a alternncia no uso dos modos com pre-

    dominncia do mixoldio:

    Ex. 03: Estudo de elaborao temtica no preldio Forr em Gilbus.

    O motivo gerador quartal presente no primeiro compasso (frase 1 e 2) sucedido 1 semitom as-

    cendentemente, peculiaridade comum no jazz. Os modos contidos no segundo compasso (F

    drico, R mixoldio) remetem, alm da sonoridade nordestina, a uma preparao e retorno do

    modal principal (Sol mixoldio) ocorrido sempre no 3. compasso.

    Em Mourning Sunset, um preldio-rquiem composto para seu pai, Luizo concilia elaborao

    temtica e semntica nos fragmentos B, C e D (ex. 04). O primeiro, quanto ao segmento meldi-

    co, descensional (ou o motivo mourning lamento) e os dois seqentes so sempre ascensio-

    nais (o motivo sunset poente), aludindo retoricamente o perodo barroco.

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    Ex. 04: Mourning Sunset - Anlise Paradigmtica

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    Nveis de complexidade relativa

    Outro recurso usado pelo compositor a texturizao harmnica26. Analiticamente, seccionamos

    as unidades baseando-nos na quantidade de notas em mbito sincrnico. Em seguida, identifica-

    mos unidades de menor e maior complexidade analisando classes de notas27:

    Ex. 05: Forr em Gilbus - Nveis de complexidade acrdico-textural.

    Detivemo-nos em localizar os sets mais recorrentes, no caso (0,2,4), como demonstrado no topo

    do exemplo. O prximo passo foi encontrar o vetor intervalar similar a (0,2,4) para que puds-

    semos entender melodicamente as texturas em uso28. No clculo, a forma prima similar (95%) a

    (0,2,4) (0,2,4,6) que, por sua vez, surge apenas no compasso 3629. Apresentamos a seguinte

    hiptese sobre referido septacorde: os sets (0,2,4,6) comportam, respectivamente, o segunto te-

    26 Segundo CARVALHO, 1997, p. 146, textura harmnica ou fusionaria subdivide-se em frasear ou frsica (con-trapontstica=diacrnica) e acordal ou acrdica (harmonia=sincrnica). Outros autores preferem utilizar o termo proposto por Barry (1987, p. 192): chordal. Por tratar-se de uma taxonomia mais precisa e para fins de uma padroni-zao terminolgico-musical mais recente, utilizaremos, neste artigo, a primeira opo. 27 Para uso da teoria dos conjuntos (vide pitch-class theory in FORTE, 1973), fez-se necessrio desconsiderar notas duplicadas. Na reduo, as texturas apresentadas no esto em ordem crescente quanto quantidade de notas (Cf, partitura da pea). 28 Ou seja, converso do sincrnico para diacrnico. 29 Para tanto, utilizamos a ferramenta Pitch Class Set Common Relationship Calculator, disponvel em: http://composertools.com/Tools/PCSets/TwoPCS.html.

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    tracorde do modo F mixoldio, o primeiro e parcialmente o segundo tetracorde tambm do mo-

    do R mixoldio e o primeiro tetracorde do modo Mib ldio, gerando a textura acrdica mais

    complexa da pea30.

    Concluso

    Mesmo em fase experimental, o modelo aplicado demonstra-se vivel como meio de imbrica-

    mento tcnico e scio-contextual orientado pelo vis transdisciplinar da nova musicologia. Esta

    ampliao das dimenses analticas privilegia, conscientemente, o estudo contemplativo pr e

    ps-composicional passvel a uma adaptao e/ou extenso metodolgica a outros objetos de

    estudo.

    Referncias BERRY, W. Structural functions in music. New York: Dover, 1987 BOURDIEU, Pierre. As regras da Arte. So Paulo: Companhia das Letras, 1996 BUETTNER, Arno Roberto von. Expanso harmnica: uma questo de timbre. So Paulo: Ir-mos Vitale, 2004

    CARVALHO, Reginaldo. Teoria Musical Tomo II: Altura e Timbre. Teresina: Grfica e Edito-ra Jnior Ltda, 1997

    ____. MUSIQUS Dicionrio Essencial de Termos Musicais Peculiares. Teresina: [s.e], 2008 DUPRAT, Regis. A musicologia luz da hermenutica, Claves, (Revista do PPGM/ Universi-dade Federal da Paraba) n. 3, 2007: 7-19

    GUIGUE, D. Esttica da sonoridade: teoria e prtica de um mtodo analtico, uma introduo. Claves, (Revista do PPGM/ Universidade Federal da Paraba) n. 4, 2007 HANSLICK, Eduard. Do Belo Musical. 2. ed. Trad. N. Simone Neto. Campinas: Editora da Unicamp, 1992

    SIQUEIRA, Jos de Lima. Sistema modal na msica folclrica do Brasil. Joo Pessoa: Secreta-ria de Educao e Cultura - diretoria geral de cultura, 1981

    KERMAN, J. Musicologia. So Paulo: Martins Fontes, 1987 LARUE, Jan. Anlisis del Estilo Musical: Pautas sobre la contribucin a la msica del sonido, la armonia, la melodia, el ritmo y el crecimiento formal. Barcelona: Editorial Labor, 1989

    MASSIN, Jean. Histria da Msica Ocidental. trad. Maria Teresina Resende Costa, Carlos Sus-sekind, Angela Ramalho Viana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997

    SANTOS, Boaventura de Sousa. Introduo a uma cincia ps-moderna. 4. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2003

    SCHENKER, Heinrich. Free Composition. 3 vol. New York: Longman Inc., 1979 COLI, Jorge. Msica Final: Mrio de Andrade e sua coluna jornalstica Mundo Musical. Campi-nas: Editora da UNICAMP, 1998

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    30 Os modos mixoldio e frgio so de uso comum na tradio musical da regio nordeste. Cf, SIQUEIRA, 1981.

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    FORTE, A. The Structure of Atonal Music. New Haven: Yale University Press, 1973 VOLPE, Maria Alice. Por uma nova musicologia, Msica em Contexto (Revista do PPG-MUS/ Universidade de Braslia), vol. 1, 2007, p. 107-122

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    PERSICHETTI, Vincent. Armonia del siglo XX. Trad.: Alicia Santos. Madrid: Real Musical, 1985