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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO OS PROCESSOS DE CRIMINALIZAÇÃO: UMA ABORDAGEM CRÍTICA DA ATUAÇÃO SELETIVA DO SISTEMA PENAL ELINTON CASSIANO NOLLI DECLARAÇÃO “DECLARO QUE A MONOGRAFIA ESTÁ APTA PARA DEFESA EM BANCA PUBLICA EXAMINADORA”. ITAJAÍ (sc), de de 2010. ___________________________________________ Professor Orientador: Msc. Airto Chaves Junior UNIVALI Campus Itajaí-SC

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO

OS PROCESSOS DE CRIMINALIZAÇÃO: UMA ABORDAGEM CRÍTICA DA ATUAÇÃO SELETIVA DO

SISTEMA PENAL

ELINTON CASSIANO NOLLI

DECLARAÇÃO

“DECLARO QUE A MONOGRAFIA ESTÁ APTA PARA DEFESA EM BANCA PUBLICA EXAMINADORA”.

ITAJAÍ (sc), de de 2010.

___________________________________________

Professor Orientador: Msc. Airto Chaves Junior

UNIVALI – Campus Itajaí-SC

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO

OS PROCESSOS DE CRIMINALIZAÇÃO: UMA ABORDAGEM CRÍTICA DA ATUAÇÃO SELETIVA DO

SISTEMA PENAL

ELINTON CASSIANO NOLLI

Monografia submetida à Universidade do

Vale do Itajaí – UNIVALI, como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel

em Direito.

Orientador: Professor MSc. Airto Chaves Junior

Itajaí, SC, Novembro de 2010

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AGRADECIMENTO

Agradeço ao professor MSc. Airto Chaves Junior

pelas sugestões e incentivos de estudo na área do

Direito Penal e Processual Crítico, da Sociologia e

Criminologia Críticas durante a graduação; e por ter

aceitado e orientado essa monografia com zelo e

dedicação, estando sempre disponível nos

momentos solicitados.

Muito Obrigado Professor!

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DEDICATÓRIA

Dedico está monografia a minha Mãe, por ter

dedicado sua vida em função da educação e bem

estar, minha e de meu irmão, tendo sempre feito de

tudo para proporcionar o que precisássemos, que foi

o que me possibilitou de estar concluindo esse curso

de Direito.

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4

“O pior mal já está feito quando se tem pobres para

defender e ricos para conter. É apenas sobre a

mediocridade que a força das leis se exerce

completamente: elas são igualmente impotentes contra

os tesouros do rico e contra a miséria do pobre; o

primeiro as engana, o segundo lhes escapa. Um rompe

a rede, o outro passa através dela.” (Rousseau, in

discours sur l’ Economie Politique)

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TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo aporte

ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do Vale do

Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o Orientador de

toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.

Itajaí, SC, Novembro de 2010

Elinton Cassiano Nolli

Graduando

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PÁGINA DE APROVAÇÃO

A presente monografia de conclusão do Curso de Direito da Universidade do Vale do

Itajaí – UNIVALI, elaborada pelo graduando Elinton Cassiano Nolli, sob o título Os

Processos de Criminalização: Uma Abordagem Crítica da Atuação Seletiva do

Sistema Penal, foi submetida em 26/11/2010 à banca examinadora composta pelos

seguintes professores: MSc. Airto Chaves Junior (Presidente) e MSc. Isaac Newton

Sabbá Guimarães, e aprovada com a nota.

Itajaí, SC, Novembro de 2010

Professor MSc. Airto Chaves Junior

Orientador e Presidente da Banca

MSc. Antonio Augusto Lapa Coordenação da Monografia

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ROL DE CATEGORIAS

Rol de categorias que o Autor considera estratégicas à compreensão do seu

trabalho, com seus respectivos conceitos operacionais.

Controle social

“(...) toda sociedade apresenta uma estrutura de poder, com grupos que dominam e

grupos que são dominados, com setores mais próximos ou mais afastados dos

centros de decisão. De acordo com essa estrutura, se “controla” socialmente a

conduta dos homens, controle que não só se exerce sobre os grupos mais distantes

dos centros de poder, como também sobre os grupos mais próximos a ele, aos quais

se impõe controlar sua própria conduta para não debilitar-se (...)” 1

Criminalização primária

“(...) processo que define as condutas como criminosas (...).” 2

Criminalização secundária

“(...) processo que (...) seleciona e atribui a determinadas pessoas a condição ou

etiqueta de criminosas, estigmatizando-as (...)”. 3

1 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. 6

ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. v. I. p. 56. 2 BISSOLI FILHO, Francisco. Punição e divisão social: do mito da igualdade à realidade do apartheid

social. In ANDRADE, Vera Regina Pereira de (org.). Verso e reverso do controle penal – (dês) aprisionado a sociedade da cultura punitiva. Homenagem a Alessandro Baratta. Florianópolis:

Fundação Boiteux, 2002. v. II. p. 78. 3 BISSOLI FILHO, Francisco. Punição e divisão social: do mito da igualdade à realidade do apartheid

social. In ANDRADE, Vera Regina Pereira de (org.). Verso e reverso do controle penal – (dês) aprisionado a sociedade da cultura punitiva. Homenagem a Alessandro Baratta. Florianópolis:

Fundação Boiteux, 2002. v. II. p. 78.

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Prisão

“[...] região mais sombria do aparelho de justiça [...] é o local onde o poder de punir,

que não ousa mais se exerce com o rosto descoberto, organiza silenciosamente um

campo de objetividade em que o castigo poderá funcionar em plena luz como

terapêutica e a sentença se inscrever entre os discursos do saber.” 4

Processo de criminalização

“(...) construção da realidade criminal, no âmbito do sistema de controle social formal

(sistema penal).” 5

Sistema penal

“(...) controle social punitivo institucionalizado, que na prática abarca a partir de

quando se detecta ou supõe detectar-se uma suspeita de delito até que se impõe e

executa uma pena, pressupondo uma atividade normativa que cria a lei que

institucionaliza o procedimento, a atuação dos funcionários e define os casos e

condições para esta atuação (...) englobando a atividade do legislador, do público,

da polícia, dos juízes, promotores e funcionários e da execução penal.” 6

4 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história de violência nas prisões. Tradução de Ligia M. Ponde

Vassallo. Petrópolis/RJ: Editora Vozes, 1989, p. 227. 5 BISSOLI FILHO, Francisco. Punição e divisão social: do mito da igualdade à realidade do apartheid

social. In ANDRADE, Vera Regina Pereira de (org.). Verso e reverso do controle penal – (dês) aprisionado a sociedade da cultura punitiva. Homenagem a Alessandro Baratta. Florianópolis:

Fundação Boiteux, 2002. v. II. p. 78. 6 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. 6

ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. v. I. p. 63-64.

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SUMÁRIO

RESUMO............................................................................................ X

INTRODUÇÃO .................................................................................. 11

CAPÍTULO 1 ..................................................................................... 15

OS PARADIGMAS CIENTÍFICOS DE COMPREENSÃO DO FENÔMENO CRIMINAL ................................................................... 15

1.1 PARADIGMA ETIOLÓGICO ............................................................................. 15 1.2 PARADIGMA DA REAÇÃO SOCIAL ............................................................... 35

CAPÍTULO 2 ..................................................................................... 52

O CONTROLE SOCIAL: INSTRUMENTOS DE LIMITAÇÃO DE COMPORTAMENTOS E ESPAÇOS (DE QUEM?) ........................... 52

2.1 INTERPRETAÇÃO ESTRUTURAL .................................................................. 52 2.1.1 CONTROLE SOCIAL DIFUSO ................................................................................ 55 2.1.1.1 Religião .......................................................................................................... 55 2.1.1.2 Mídia .............................................................................................................. 57

2.1.2 CONTROLE SOCIAL INSTITUCIONALIZADO ............................................................ 59 2.1.2.1 Sistema escolar ............................................................................................. 59 2.1.2.2 Sistema penal ................................................................................................ 61

CAPÍTULO 3 ..................................................................................... 66

A OPERACIONALIDADE SELETIVA DO SISTEMA PENAL ........... 66

3.1 A DUPLA SELEÇÃO DO SISTEMA PENAL ................................................... 66 3.1.1 A CRIMINALIZAÇÃO PRIMÁRIA ............................................................................. 66

3.1.2 A CRIMINALIZAÇÃO SECUNDÁRIA ....................................................................... 69 3.2 A PRISÃO: INSTRUMENTO CENTRAL DE CONTROLE SOCIAL ............... 73

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................. 79

REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS ........................................... 81

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RESUMO

O presente trabalho busca analisar de forma crítica como o sistema penal, através

de suas instâncias oficiais, opera no controle social do comportamento desviante a

partir de uma premissa central: abordagem do fenômeno criminal não pode

prescindir da análise da punição e dos seus efeitos no meio social, especialmente na

divisão da sociedade em classes e grupos. Para tanto, investiga-se o

desenvolvimento do pensamento criminológico, desde a escola positiva até a

criminologia crítica, devido à importância que o discurso teórico – como estudo do

fenômeno criminal - possui como legitimador e justificador da atuação do sistema

penal. Além da análise crítica dos discursos ideológicos legitimadores do sistema

penal, para se compreender a sua operacionalidade manifesta, faz-se necessário a

análise das outras formas de controle social, tanto difusas como institucionais, pois

na sociedade punitiva, elas se inter-relacionam e se complementam nas funções de

manutenção da estrutura social. Com isso, chega-se à análise de como se opera a

seletividade do sistema penal, desde a edição da lei penal (criminalização primária)

até a execução da pena privativa de liberdade (criminalização secundária), bem

como os efeitos da instituição prisional na sociedade.

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INTRODUÇÃO

A presente Monografia tem como tema “Os processos de

criminalização: uma abordagem crítica da atuação seletiva do sistema penal”. Como

objetivo: institucional de produzir uma monografia jurídica para obtenção do grau de

bacharel em Direito, pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI; investigatório

geral: analisar de forma crítica a atuação seletiva do sistema penal; específicos:

analisar a seletividade do sistema penal por meio da criminalização primária e

secundária, e suas relações com a estrutura social e econômica de desigualdade na

sociedade capitalista; analisar como o sistema penal produz e reproduz essas

relações de desigualdade; analisar como os interesses das classes detentoras do

poder econômico direciona a atuação do sistema penal; analisar, como o sistema

penal, produz a marginalização dos indivíduos que são submetidos ao seu processo

seletivo de criminalização; e por fim, analisar a função instrumento central no

controle social que a prisão desempenha na sociedade, como a última instância no

processo de marginalização social, em razão de suas características estruturais,

notadamente invertidos quanto a seus objetivos declaradamente divulgados.

(ressocialização e reeducação do condenado).

A escolha do tema se deu em virtude da constatação da

contradição do discurso da ideologia penal dominante, de que o sistema penal atua

de forma igual no controle social institucionalizado, pois na realidade sua atuação

acaba ocorrendo de forma seletiva, tanto na proteção dos bens jurídicos como na

criminalização dos que transgridem tais normas protetivas, refletindo a desigualdade

de tratamento pelo sistema penal dos bens, interesses e pessoas, conforme a classe

social que seus possíveis alvos ocupam no plano social.

Dessa forma, a pesquisa será realizada no âmbito da

criminologia e sociologia críticas em face da atuação do sistema penal

contemporâneo.

Para tanto, principiar-se-á, no Capítulo 1, com os paradigmas

científicos de compreensão do fenômeno criminal. Nesse capítulo será analisado o

paradigma etiológico de estudo do fenômeno criminal, com os seus posteriores

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desenvolvimentos, chegando ao seu rompimento, devido aos estudos sociológicos

do fenômeno criminal, resultando assim no surgimento de um novo paradigma,

paradigma da reação social. Tal paradigma deu um novo enfoque no estudo do

fenômeno criminal, pois em vez de buscar as causas da criminalidade – como fazia

o paradigma etiológico – estudou as reações sociais ao desvio, o que mudou o

conceito corrente de criminalidade, de comportamento de uma minoria, para o de

uma maioria. Terminar-se-á com a análise do nascimento da criminologia crítica,

resultado dos posteriores desenvolvimentos das teorias do paradigma da reação

social, que busca estudar o fenômeno criminal em seu contexto histórico-sócio-

econômico.

No Capítulo 2, tratar-se-á das formas de controle social e sua

função instrumental de limitação de comportamentos e espaços. Primeiro pelo

controle social difuso, em algumas de suas formas (religião e mídia), e depois o

controle social institucionalizado (sistema escolar e sistema penal). Buscar-se-á,

neste contexto, compreender as formas como os interesses das classes dominantes

são impostos às classes subalternas, e como tal fenômeno busca manter a

estratificação social.

No Capítulo 3, analisar-se-á operacionalidade seletiva do

sistema penal. Primeiramente pela avaliação da criminalização primária (plano

legislativo), ou seja, a seleção de bens jurídicos a serem protegidos, as formas de

violação a esses bens e as correspondentes sanções ao agente violador. A partir

disso, procurar-se-á desconstruir a crença de universalidade de bens jurídicos

penalmente tutelados, da igualdade de tratamento de tais bens e dos indivíduos pela

lei penal, a fim de demonstrar que, na verdade, opera-se a falsa universalidade

desses bens. Depois, a análise do processo de criminalização secundária pela

atuação das instâncias oficiais (polícia, MP, justiça). A operatividade se dá conforme

estereótipos de criminalidade. Selecionam-se condutas e pessoas (pobres e

marginalizados) a serem criminalizadas pelo sistema penal ao passo que, por outro

lado, criam-se zonas de imunização à criminalidade elitizada. Como resultado

desses dois processos de criminalização, surge à concepção falsa da criminalidade

como fenômeno pertencente às classes inferiores e raro nas superiores, causado

por fatores patológicos, de ordem individual ou social.

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Por fim, analisar-se-á a prisão como instrumento central de

controle social, através dos reais efeitos que produz na sociedade como resultado

de suas características estruturais, e como cumpre o papel de última instância no

processo de marginalização social na estrutura da sociedade capitalista, quando

resta claro que essa instituição não cumpre os seus objetivos declarados de

ressocialização e reeducação, e sim objetivos contrários a eles: exclusão social,

carreiras criminosas, reprodução da violência etc.7

Os problemas que de início se apresentaram no desenvolver

dos trabalhos consubstanciaram-se nas seguintes indagações:

a) A proteção dos bens jurídicos por meio da norma penal se

dá de forma proporcional?

b) O sistema penal opera de forma igualitária de maneira a

atingir indistintamente quem pratica comportamentos penalmente relevantes?

Para os problemas formulados, levantaram-se as seguintes

hipóteses:

a) O sistema penal não defende todos e somente os bens

essenciais, nos quais estão igualmente interessados todos os cidadãos, e quando

pune as ofensas aos bens essenciais o faz com intensidade desigual e de modo

fragmentário.

b) A lei penal não é igual para todos, pois o status de

criminoso é distribuído de modo desigual entre os indivíduos.

Quanto à Metodologia empregada, registra-se que, na Fase de

Investigação8 foi utilizado o Método Indutivo9, na Fase de Tratamento de Dados o

7 Diante da delimitação do objeto de pesquisa deste trabalho, não se apresentará as possíveis

soluções aos problemas do sistema penal, em particular do sistema prisional, apenas serão apresentadas as críticas a eles. 8 “[...] momento no qual o Pesquisador busca e recolhe os dados, sob a moldura do Referente estabelecido [...]. PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. 11 ed.

Florianópolis: Conceito Editorial; Millennium Editora, 2008. p. 83.

9 “[...] pesquisar e identificar as partes de um fenômeno e colecioná-las de modo a ter uma percepção ou conclusão geral [...]”. PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática.

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14

Método Cartesiano10, e, o Relatório dos Resultados expresso na presente

Monografia é composto na base lógica Indutiva.

Nas diversas fases da Pesquisa, foram acionadas as Técnicas

do Referente11, da Categoria12, do Conceito Operacional13 e da Pesquisa

Bibliográfica14.

p. 86.

10 Sobre as quatro regras do Método Cartesiano (evidência, dividir, ordenar e avaliar) veja LEITE, Eduardo de oliveira. A monografia jurídica. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 22-

26.

11 “[...] explicitação prévia do(s) motivo(s), do(s) objetivo(s) e do produto desejado, delimitando o alcance temático e de abordagem para a atividade intelectual, especialmente para uma pesquisa.” PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. p. 54.

12 “[...] palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou à expressão de uma idéia.” PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. p. 25.

13 “[...] uma definição para uma palavra ou expressão, com o desejo de que tal definição seja aceita para os efeitos das idéias que expomos [...]”. PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. p. 37.

14 “Técnica de investigação em livros, repertórios jurisprudenciais e coletâneas legais. PASOLD, Cesar Luiz. Metodologia da pesquisa jurídica: teoria e prática. p. 209.

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CAPÍTULO 1

OS PARADIGMAS CIENTÍFICOS DE COMPREENSÃO DO

FENÔMENO CRIMINAL

1.1 PARADIGMA ETIOLÓGICO

A criminologia positivista no final do século XIX era baseada

em teorias patológicas da criminalidade, em teorias que diferenciavam os sujeitos

criminosos dos indivíduos normais, com base em características biológicas e

psicológicas dos mesmos, em que se negava a possibilidade da existência de livre

arbítrio por parte daqueles sujeitos que praticavam algum fato criminoso, ou seja,

que estavam submetidos a causas determinantes dos seus comportamentos, em

analogia ao que ocorre nas ciências naturais.

Sobre a base do paradigma etiológico a criminologia se

converteu em sinônimo de ciência das causas da criminalidade. Este paradigma,

com o qual nasce a criminologia positivista perto do final do século passado,

constitui a base de toda a criminologia tradicional, mesmo das correntes mais

modernas, em que as respostas as causas da criminalidade são diferentes das

respostas de cunho antropológico ou patológico do primeiro positivismo, e que

nasceram em parte da polêmica com este (teorias funcionalistas, teorias ecológicas,

teorias multifatoriais etc.)

Conforme Baratta15:

A novidade de sua maneira de enfrentar o problema da criminalidade e da resposta penal a esta era constituída pela

pretensa possibilidade de individualizar “sinais” antropológicos da criminalidade e de observar os indivíduos assim “assinalados” em zonas rigidamente circunscritas dentro do

15

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 29.

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16

âmbito do universo social (as instituições totais, ou seja, o

cárcere e o manicômio judiciário).

A este novo método de enfrentar o problema da criminalidade,

relaciona-se o surgimento de uma nova ciência, que tem por objeto o homem

delinqüente, considerado como um indivíduo diferente, passível de ser observado,

mediante formas científicas, como fato natural. Assim, é comum atribuir-se às

escolas positivistas o surgimento da criminologia como uma nova ciência.

Explica Baratta16 que:

Em sua origem, pois, a criminologia tem como específica função cognoscitiva e prática, individualizar as causas desta diversidade, os fatores que determinam o comportamento

criminoso, para combatê-los com uma série de práticas que tendem, sobretudo, a modificar o delinqüente. A concepção positivista da ciência como estudo das causas batizou a

criminologia.

Assim, a criminologia positivista, com seu estudo das causas

ou dos fatores da criminalidade conforme métodos considerados científicos por seus

representantes (paradigma etiológico), buscou soluções para individualizar as

medidas adequadas para removê-los, intervindo, sobretudo no sujeito criminoso

(correcionalismo).

Conforme lição de Andrade17:

Na base deste paradigma a Criminologia (e por isto positivista)

é definida como uma Ciência causal-explicativa da criminalidade; ou seja, que tendo a criminalidade concebida como um fenômeno natural, casualmente determinado, assume

a tarefa de explicar as suas causas segundo método científico ou experimental e o auxílio das estatísticas criminais oficiais e de prever os remédios para combatê-la. Ela indaga,

fundamentalmente, o que o homem (criminoso) faz e porque faz. O pressuposto, pois, de que parte a criminologia positivista é que a criminalidade é um meio natural de comportamentos e

indivíduos que os distinguem de todos os outros comportamentos e de todos os outros indivíduos. Sendo a

16

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 29-30. 17

ANDRADE, Vera Regina de. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: mudança

e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum. Sequencia.Florianópolis: UFSC. jun. 1995. n. 30. p. 24-36.

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17

criminalidade esta realidade ontológica, preconstituída ao

Direito Penal (crimes “naturais”) que, com exceção dos chamados crimes “artificiais”, não faz mais do que reconhecê-la e positivá-la, seria possível descobrir as suas causas e colocar

a ciência destas ao serviço do seu combate em defesa da sociedade.

Diferentemente da Escola Clássica, que com sua filosofia

racionalista, liberal e humanista, concebia o crime como ente jurídico, ou seja,

abstraído de qualquer referência às características pessoais do autor (mero sujeito

ativo do fato) ou ao meio social em que está inserido para compreendê-lo, a Escola

Positivista levava uma nova maneira de considerar o delito. Conforme Baratta18:

A reação ao conceito abstrato de indivíduo leva a Escola positiva a afirmar a exigência de uma compreensão do delito

que não se prenda à tese indemonstrável de uma causação espontânea mediante um ato de livre vontade, mas procure encontrar todo o complexo das causas no totalidade biológica e

psicológica do indivíduo, e na totalidade social que determina a vida do indivíduo .

Conforme Antonio García-Pablos de Molina19:

Os postulados da Escola Positiva, em contraposição aos da

Escola Clássica, podem ser sintetizados desta maneira: o delito é concebido como fato real e histórico, natural, não como uma fictícia abstração jurídica; sua nocividade deriva não da mera contradição com a lei que ele significa, senão das exigências

da vida social, que é incompatível com certas agressões que põem em perigo suas bases; seu estudo e compreensão são inseparáveis do exame do delinqüente e da sua realidade

social; interessa ao positivismo a etiologia do crime, isto é, a identificação das suas causas como fenômeno, e não simplesmente a sua gênese, pois o decisivo será combatê-lo

em sua própria raiz, com eficácia e, sendo possível, com programas de prevenção realistas e científicos; a finalidade da lei penal não é restabelecer a ordem jurídica, senão combater o

fenômeno social do crime, defender a sociedade; o positivismo concede prioridade ao estudo do delinqüente, que está acima do exame do próprio fato, razão pela qual ganha particular

significação os estudos tipológicos e a própria concepção do criminoso como subtipo humano, diferente dos demais

18

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 38. 19

MOLINA, Antonio García-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia. 4 ed. rev., atual. e ampl.

São Paulo: RT, 2002. p. 190.

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18

cidadãos honestos, constituindo esta diversidade a própria

explicação da conduta delitiva.

A criminologia positivista está fundada em base determinista,

como as ciências naturais, qualificando de ficção o livre arbítrio e fundamentando a

pena com base na idéia de contrato social a que estão submetidos todos os

indivíduos que vivem em sociedade. Assim, o positivismo criminológico, ao contrário

da Criminologia Clássica, não possui idéias liberais, ou seja, defende a ordem social

em detrimento dos direitos do indivíduo e atribui ao indivíduo “doente” (fatores

patológicos) a causa da criminalidade e não à sociedade.

Conforme Andrade20:

A primeira e célebre resposta sobre as causas do crime foi dada pelo médico italiano LOMBROSO que sustenta, inicialmente, a tese do criminoso nato: a causa do crime é

identificada no próprio criminoso. Partindo do determinismo biológico (anatômico-fisiológico) e psíquico do crime e valendo-se do método de investigação e análise próprio das ciências

naturais (observação e experimentação) procurou comprovar sua hipótese através da confrontação de grupos não criminosos com criminosos dos hospitais psiquiátricos e prisões

sobretudo do sul da Itália, pesquisa na qual contou com o auxílio de Ferri, quem sugeriu, inclusive, a denominação “criminoso nato”. Procurou desta forma individualizar nos criminosos e doentes anomalias sobretudo anatômicas

fisiológicas vistas como constantes naturalísticas que denunciavam, a seu ver, o tipo antropológico delinqüente, uma espécie à parte do gênero humano, predestinada, por seu tipo,

a cometer crimes.

Lombroso com sua obra Tratado Antropológico Experimental

do Homem Delinqüente, publicada em 1876, marca as origens da Criminologia

Científica, representando a vertente antropológica, e é considerado o seu fundador.

Nas palavras de Baratta21, “Lombroso considerava o delito como ente natural, „um

fenômeno necessário, como o nascimento, a morte, a concepção, determinado por

causas biológicas de natureza, sobretudo hereditária”. Em contraposição à teoria do

livre arbítrio embasada pela Escola Clássica para a responsabilidade penal do

20

ANDRADE, Vera Regina de. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: mudança

e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum. Sequencia.Florianópolis: UFSC. jun. 1995. n. 30. p. 24-36. 21

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 39.

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19

indivíduo, Lombroso adotava um rígido determinismo da conduta do homem

delinqüente.

Por sua vez, Ferri aparece com seus trabalhos e teorias

representando a vertente sociológica da Escola Positivista. Para ele a criminalidade

possui como causa três ordens de fatores: antropológicos, físicos e sociais.

Conforme explica Antonio García-Pablos de Molina22:

O delito, para Ferri, não é produto exclusivo de nenhuma patologia individual (o que contraria a tese antropológica de

Lombroso), senão – como qualquer outro acontecimento natural ou social – resultado da contribuição de diversos fatores: individuais, físicos e sociais. Distinguiu, assim, fatores

antropológicos ou individuais (constituição orgânica do indivíduo, sua constituição psíquica, características pessoais como raça, idade, sexo, estado civil etc.), fatores físicos ou

telúricos (clima, estações, temperatura etc.), fatores sociais (densidade da população, opinião pública, família, moral, religião, educação, alcoolismo etc.).

Entende, pois, que a criminalidade é um fenômeno social como

outros, que se rege por sua própria dinâmica, de modo que o cientista poderia

antecipar o número exato de delitos, e a classe deles, em uma determinada

sociedade e em um momento concreto, se contasse com todos os fatores

individuais, físicos e sociais antes citados e fosse capaz de quantificar a incidência

cada um deles.

Por sua teoria acerca da criminalidade englobar três ordens de

fatores, foi considerada equilibrada, e ampliativa da teoria antropológica de

Lombroso. Assim Ferri, conforme Andrade23:

Sustentava que o crime não é decorrência do livre arbítrio, mas o resultado previsível determinado por esta tríplice ordem de fatores que conformam a personalidade de uma minoria de

indivíduos como “socialmente perigosa”. Seria fundamental, pois, “ver no criminoso” porque é ele, sobretudo, sintoma revelador da personalidade mais ou menos perigosa (anti-

social) de seu autor, para a qual se deve dirigir uma adequada

22

MOLINA, Antonio García-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia. 4 ed. rev., atual. e ampl.

São Paulo: RT, 2002. p. 195. 23

ANDRADE, Vera Regina de. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: mudança

e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum. Sequencia.Florianópolis: UFSC. jun. 1995. n. 30. p. 24-36.

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“defesa social”. Daí a tese fundamental de que ser criminoso

constitui uma propriedade da pessoa que a distingue por completo dos indivíduos normais. Ele apresenta estigmas determinantes da criminalidade.

Ferri coloca ao lado da pena, como meio de defesa social

(funções repressiva, segregadora, dissuasiva, curativa e reeducativa), também todo

um sistema de medidas preventivas de defesa social contra o crime, que denominou

substitutivos penais. Antonio García-Pablos de Molina24 explica que com a teoria dos

substitutivos penais, Ferri sugere:

Um ambicioso programa político-criminal de luta e prevenção

ao delito, menosprezando e dispensando o Direito Penal. Sua tese é a seguinte: o delito é um fenômeno social, com uma dinâmica própria e etiologia específica, na qual predominam os

fatores “sociais”.

Em sua classificação tipológica de delinqüente, Ferri adotou

cinco tipos básicos, o nato, o louco, o habitual, o ocasional, passional e involuntário,

e admitia a possibilidade da presença das características de mais de um tipo no

mesmo indivíduo. Fica clara a adoção por Ferri em suas teorias das idéias de

Lombroso, pois, para ele, segundo as conclusões das análises antropológicas, ficou

demonstrado que o homem deliquente é um ser diverso do homem normal, são,

adulto e civilizado, possuindo características orgânicas e psíquicas do homem

primitivo.

Ferri era defensor da ordem social e da necessidade de sua

defesa a todo custo, o que incluía a violação dos direitos e garantias fundamentais,

da segurança jurídica e da humanidade das penas. Tanto que, como Lombroso, era

adepto do uso pelo Estado da pena de morte, pois considerava que ela possuía

função dissuasória (mesmo que fraca, que segundo ele era devido a sua pouca

aplicação), como também função de seleção ao eliminar a raça criminal.

Já Garófalo representou a vertente psicológica da Escola

Positiva, pois na sua teoria da criminalidade fundamentou o comportamento e o tipo

criminoso em uma suposta anomalia psíquica ou moral, que consistiria, segundo ele,

24

MOLINA, Antonio García-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia. 4 ed. rev., atual. e ampl.

São Paulo: RT, 2002. p. 196.

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21

em um déficit de um adequado desenvolvimento da sensibilidade moral, de

vivências altruístas, defeito organicamente condicionado e não mero produto de

fatores ambientais. Mas não seria uma enfermidade mental, senão uma “variação

psíquica”, transmissível por via hereditária, que se detecta mais frequentemente em

membros de “certas raças inferiores nas modernas sociedades civilizadas”.

Conforme Antonio García-Pablos de Molina25:

Para Garófalo os positivistas, até então, haviam se esforçado para descrever as características do delinqüente, do criminoso,

em lugar de definir o próprio conceito de “crime” como objeto específico da nova disciplina (Criminologia). Por isso, ele pretendeu criar uma categoria, exclusiva da Criminologia, que

permitisse, segundo seu juízo, delimitar autonomamente o seu objeto, mais além da exclusiva referência ao sujeito ou às definições legais. Referida categoria consiste no “delito

natural”, com o qual se distingue uma série de condutas nocivas per se, em qualquer sociedade e em qualquer

momento, com independência inclusive das próprias

valorações legais mutantes.

Para ele, em analogia ao que ocorre na natureza que elimina a

espécie que não se adapta ao meio, o Estado deve eliminar o indivíduo que pratica

determinados crimes (criminosos violentos, ladrões profissionais, e criminosos

habituais, em geral), por não ter se adaptado à sociedade civilizada e às suas

exigências de convivência, por isso era um adepto da pena de morte por considerá-

la um mecanismo inteligente de seleção artificial semelhante ao que ocorre na

natureza.

Para Garófalo, a pena deve ser estruturada e aplicada

conforme as características pessoais de cada delinqüente, não sendo adepto das

penas com fins preventivos (por não permitir determinar sua quantidade), retributivos

ou correcionais (por considerar que a constituição física e psíquica do delinqüente

impede que tais finalidades da pena sejam alcançadas).

Conforme Baratta26 pode-se sintetizar que:

25

MOLINA, Antonio García-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia. 4 ed. rev., atual. e ampl.

São Paulo: RT, 2002. p. 198. 26

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 40.

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22

De qualquer modo, os autores da Escola positiva, seja

privilegiando um enfoque bioantropológico, seja acentuando a importância dos fatores sociológicos, partiam de uma concepção do fenômeno criminal segundo a qual este se

colocava como um dado ontológico preconstituído à reação social e ao direito penal; a criminalidade, portanto, podia tornar-se objeto de estudo nas suas “causas”, independentemente do

estudo das reações sociais e do direito penal.

Assim, em decorrência dos trabalhos dos teóricos da

Criminologia Positivista, estabelece-se e difunde-se a tese, com status científico, de

que a criminalidade é uma qualidade inata de uma determinada minoria da

sociedade (minoria patológica), a qual pertencem os sujeitos considerados anormais

e perigosos, devendo assim o Estado através do sistema penal buscar eliminá-los

ou neutralizá-los para que a parte normal e saudável da sociedade (grande maioria)

possa ficar protegida e em ordem.

Nas palavras de Andrade27:

É este potencial de periculosidade social, que os positivistas identificaram com anormalidade e situaram no coração do Direito Penal que justifica a pena como meio de defesa social e

seus fins socialmente úteis: a prevenção especial positiva (recuperação do criminoso mediante a execução penal) assentada na ideologia do tratamento que impõe, por sua vez, o princípio da individualização da pena como meio hábil para a

elaboração dos juízos de prognose no ato de sentenciar. Logo, trata-se de defender a sociedade desses seres perigosos que se apartam ou que apresentam a potencialidade de se apartar

do normal (prognóstico científico de periculosidade) havendo que ressocializá-los ou neutralizá-los.

Dessa forma, a possibilidade de explicar a etiologia da

criminalidade com um pretenso caráter científico, acarreta por conseqüência uma

política criminal de fundamentos científicos direcionada para o indivíduo delinqüente,

buscando, também com método científico resolver o problema da criminalidade.

Conclui assim Andrade28 que:

27

ANDRADE, Vera Regina de. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: mudança

e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum. Sequencia.Florianópolis: UFSC. jun. 1995. n. 30. p. 24-36.

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23

As representações do determinismo/ criminalidade ontológica/

periculosidade/ anormalidade/ tratamento/ ressocialização se complementam num círculo extraordinariamente fechado conformando uma percepção da criminalidade que se encontra,

há um século, profundamente enraizada nas agências do sistema penal e no senso comum.

Conforme Baratta29, tanto a Escola Clássica quanto as Escolas

Positivas:

Realizam um modelo de ciência penal integrada, ou seja, um modelo no qual ciência jurídica e concepção geral do homem e da sociedade estão estreitamente ligadas. Ainda que suas

respectivas concepções do homem e da sociedade sejam profundamente diferentes, em ambos os casos nos encontramos, salvo exceções, em presença da afirmação de

uma ideologia da defesa social, como nó teórico e político fundamental do sistema científico. A ideologia da defesa social (ou do “fim”) nasceu contemporaneamente à revolução

burguesa, e, enquanto a ciência e a codificação penal se impunham como elemento essencial do sistema jurídico burguês, aquela assumia o predomínio ideológico dentro do

específico setor penal.

Tal ideologia da defesa social foi herdada pelas Escolas

Positivas da Escola Clássica, que só modificaram alguns de seus fundamentos

básicos conforme as necessidades políticas da sociedade burguesa durante a

transição do estado liberal clássico ao estado social. Assim, Baratta30 explica que:

O conteúdo dessa ideologia, assim como passou a fazer parte – embora filtrado através do debate entre as duas escolas – da

filosofia dominante na ciência jurídica e das opiniões comuns, não só dos representantes do aparato penal penitenciário, mas também do homem de rua (ou seja, das every day theories), é

sumariamente reconstruível na seguinte série de princípios.

Princípio de legitimidade. O Estado, como expressão da

sociedade, está legitimado para reprimir a criminalidade, da

qual são responsáveis determinados indivíduos, por meio de instâncias oficiais de controle social (legislação, polícia,

28

ANDRADE, Vera Regina de. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: mudança e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum. Sequencia.Florianópolis: UFSC. jun. 1995. n. 30. p. 24-36. 29

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 41. 30

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 42.

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24

magistratura, instituições penitenciárias). Estas interpretam a

legítima reação da sociedade, ou da grande maioria dela, dirigida à reprovação e condenação do comportamento desviante individual e à reafirmação dos valores e das normas

sociais.

Principio do bem e do mal. O delito é um dano para a

sociedade. O delinqüente é um elemento negativo e

disfuncional do sistema social. O desvio criminal, é pois, o mal; a sociedade constituída, o bem.

Principio de culpabilidade. O delito é expressão de uma atitude

interior reprovável, porque contrária aos valores e às normas, presentes na sociedade mesmo antes de serem sancionadas pelo legislador.

Principio da finalidade ou da prevenção. A pena não tem, ou

não tem somente, a função de retribuir, mas a de prevenir o crime. Como sanção abstratamente prevista pela lei, tem uma

função de criar uma justa e adequada contramotivação ao comportamento criminoso. Como sanção concreta, exerce a função de ressocializar o delinqüente.

Principio de igualdade. A criminalidade é violação da lei penal

e, como tal, é o comportamento de uma minoria desviante. A lei penal é igual para todos. A reação penal se aplica de modo

igual aos autores de delitos.

Principio do interesse social e do delito natural. O núcleo

central dos delitos definidos nos códigos penais das nações

civilizadas representa ofensa de interesses fundamentais, de condições essenciais à existência de toda sociedade. Os interesses protegidos pelo direito penal são interesses comuns a todos os cidadãos. Apenas uma pequena parte dos delitos

representa violação de determinados arranjos políticos e econômicos, e é punida em função da consolidação destes (delitos artificiais).

Conforme obra de Baratta31, a seguir serão expostas as teorias

sociológicas, que progressivamente foram, refutando os princípios acima expostos

da ideologia da defesa social, até atingir, utilizando um novo enfoque (enfoque do

etiquetamento ou da reação social “labeling approach”, a completa inversão da

perspectiva da investigação criminológica. A análise destas teorias será feita

31

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 47-49.

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25

levando-se em conta os argumentos críticos que contenham contra cada um dos

princípios da ideologia penal da defesa social. Mas, conforme ainda o citado autor32:

Antes mesmo de examinar estas diversas etapas de reflexão propriamente sociológica, deve-se levar em consideração uma orientação de pesquisa sobre crime e pena que, já em torno

dos anos 20 e 30, e sob um ângulo visual inteiramente diferente, incluía a sociedade (mesmo considerada aistoricamente) no interior do objeto de esforço explicativo.

Referimo-nos às teorias psicanalíticas da criminalidade, no âmbito das quais pode-se distinguir pelo menos dois grandes filões de pensamento, embora estreitamente interligados entre

si.

O primeiro deles, e considerado o mais importante, é

relacionado à explicação do comportamento criminoso. As teorias desse primeiro

filão são baseadas nas teorias de Freud sobre a neurose e na sua aplicação para

explicar determinados comportamentos criminosos. Conforme explica Baratta33:

Segundo Freud, a repressão de instintos delituosos pela ação

do superego, não destrói estes instintos, mas deixa que estes se sedimentem no inconsciente. Esses instintos são acompanhados, no inconsciente, por um sentimento de culpa,

uma tendência a confessar. Precisamente com o comportamento delituoso, o indivíduo supera o sentimento de culpa e realiza a tendência a confessar. Deste ponto de vista, a teoria psicanalítica do comportamento criminoso representa

uma radical negação do tradicional conceito de culpabilidade e, portanto, também de todo o direito penal baseado no princípio de culpabilidade.

Já as teorias do segundo dos filões acima identificado por

Baratta (teorias psicanalíticas da sociedade punitiva), questionam também o

princípio de legitimidade da ideologia da defesa social, e por conseqüência a própria

legitimação do Direito Penal. Segundo Baratta34:

A função psicossocial que atribuem à reação punitiva permite interpretar como mistificação racionalizante as pretensas

funções preventivas, defensivas e éticas sobre as quais se

32

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 49. 33

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 50. 34

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 50.

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26

baseia a ideologia da defesa social (princípio de legitimidade) e

em geral toda ideologia penal. Segundo as teorias psicanalíticas da sociedade punitiva, a reação penal ao comportamento delituoso não tem a função de eliminar ou

circunscrever a criminalidade, mas corresponde a mecanismos psicológicos em face dos quais o desvio criminalizado aparece como necessário e ineliminável da sociedade.

Posteriormente Franz Alexander e Hugo Staub adicionaram

mais dois motivos a teoria psicanalítica da sociedade punitiva. Baratta35 registra que

O primeiro destes motivos é uma variante do fundamental princípio freudiano da identidade dos impulsos que movem o

delinqüente e a sociedade na sua reação punitiva. Este princípio é transportado, agora, para as características psicológicas gerais do mundo dos delinqüentes e das pessoas

que incorporam os órgãos do sistema penal. Existe entre essas pessoas uma afinidade que, em geral, se explica com a presença de fortes tendências anti-sociais não suficientemente

reprimidas, as quais impelem as pessoas pertencentes ao segundo grupo a um zeloso exercício da função punitiva.

Com base neste motivo, o foco de aplicação da teoria

psicanalítica da sociedade punitiva se desloca da sociedade em geral (reação

informal, não-institucional) para determinados grupos de indivíduos que representam

a reação formal, institucional, por exemplo: membros do Poder Judiciário, da polícia

e do sistema penitenciário.

Alexander e Staub, assim como Reik, nas palavras de Baratta36

Aprofundam esta análise psicológica da função punitiva, para realizar uma crítica de fundo da justiça penal, sobre a qual pesa e pesará ainda por muito tempo o sedimento irracional

das fontes afetivas da função punitiva, que a análise psicanalítica põe a nu. Eles partem da representação ideal de uma justiça racional, que atua sem os conceitos de expiação,

de retribuição e que não serve, como ocorre na realidade, à satisfação dissimulada de agressões das massas.

35

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 53. 36

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 54.

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27

Neste caminho aberto por Reik, Alexander e Staub e, pouco

mais tarde por Erich Fromm, a teoria psicanalítica da sociedade punitiva é levada a

desenvolvimentos posteriores por Paul Reiwald37:

Na obra de Reiwald, como em outras representativas expressões da teoria psicanalítica da sociedade punitiva, um

momento central de análise do mecanismo psicológico inconsciente, que é subentendido na reação punitiva, aparece nos conceitos de projeção e bode expiatório. Momento central

da interpretação psicanalítica da reação punitiva é, portanto, a teoria do delinqüente como bode expiatório: também esta teoria encontra sua raiz textual na análise freudiana do mecanismo

de projeção.

É o mesmo mecanismo de alarme social suscitado pelas

representações dos crimes, através dos mass media, que por meio da fantasia, leva

os membros da sociedade a projetar as próprias tendências anti-sociais em figuras

de delinquentes particularmente temíveis, ou em tipos de sujeitos desviantes. O

fenômeno da projeção da agressividade e do correspondente sentimento de culpa

sobre o delinquente é analisado, na literatura psicanalítica, através da mítica figura

do bode expiatório, carregado dos sentimentos de culpa dos membros da sociedade

e enviado ao deserto.

No modelo de explicação psicanalítica de reação punitiva,

estão contidos alguns dos elementos teóricos mais geradores de inquietação na

consciência, geralmente muito tranquila, dos juristas, pois atacam a ideologia da

defesa social precisamente no seu fundamental momento de legitimação da pena.

Apesar da reconhecida função crítica desempenhada pelas

teorias psicanalíticas da criminalidade e da sociedade punitiva em face da ideologia

da defesa, elas não conseguiram superar os limites fundamentais da criminologia

tradicional, pois, tais teorias, regra geral, se apresentam de forma semelhante às

teorias positivistas - tanto sociológicas como biológicas - como explicação etiológica

de um comportamento, em que a qualidade criminosa é aceita sem análise das

relações sociais que explicam as leis e os mecanismos de criminalização, e também

37

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 55.

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28

sem analisar o comportamento desviante dentro do contexto histórico das relações

sócio-econômicas em seus efeitos determinantes.

Conforme conclui Baratta38:

Comportamento criminoso e reação punitiva são expressões da

mesma realidade psicológica, aistoricamente centradas em um fundamental, natural e ineliminável antagonismo entre indivíduo e sociedade. À dimensão histórica da questão criminal, a teoria

psicanalítica substitui uma aistórica dimensão antropológica, na qual se insere logicamente a tese da universalidade do delito e

da reação punitiva. Esta visão universalizante do delito e da

reação punitiva é um elemento constante de toda a criminologia liberal contemporânea. Os fenômenos,

historicamente condicionados, do desvio e do controle penal

deste, antes de serem interpretados, no seu real conteúdo, à luz de determinadas relações sócio-econômicas em que se inscrevem, são hispostatizados como elementos de uma

concepção genérica e formal da sociedade.

No âmbito das teorias de cunho mais sociológico, o princípio do

bem e do mal da ideologia da defesa social foi questionado pela teoria estrutural-

funcionalista do desvio e da anomia. Conforme Baratta39:

Esta teoria, introduzida pelas obras clássicas de Emile Durkheim e desenvolvida por Robert Merton, representa a

virada em direção sociológica efetuada pela criminologia contemporânea. Constitui a primeira alternativa clássica à concepção dos caracteres diferenciais biopsicológicos do delinqüente e, por conseqüência, à variante positivista do

princípio do bem e do mal.

Assim, a teoria funcionalista da anomia se localiza na origem

de uma profunda revisão crítica da criminologia de orientação biológica e

caracterológica, na origem de uma direção alternativa, característica de todas as

teorias sociológicas da criminalidade, mesmo a maioria delas compartilhando com a

38

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 58. 39

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 59.

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criminologia positivista a ideia da criminologia como etiologia da criminalidade.

Conforme cita Baratta40:

A teoria estrutural-funcionalista da anomia e da criminalidade afirma:

1) As causas do desvio não devem ser pesquisadas nem em

fatores bioantropológicos e naturais (clima, raça), nem em

uma situação patológica da estrutura social.

2) O desvio é um fenômeno normal de toda estrutura social.

Ou seja, somente quando são ultrapassados determinados

limites, seguindo-se um estado de desorganização, no qual todo o sistema de regras

de conduta perde valor, enquanto um novo sistema ainda não se afirmou o

fenômeno do desvio é negativo para a existência e o desenvolvimento da estrutural

social (esta é a situação de “anomia”), pois do contrário, dentro de seus limites

funcionais, o comportamento desviante é um fator necessário e útil para o equilíbrio

e o desenvolvimento sócio-cultural.

Dessa forma, o delito dentro de seus limites para desempenho

de sua função psicossocial é um fenômeno inevitável – mesmo assim não deixa de

ser reprovável – e também um elemento integrante de toda sociedade normal.

Contrariamente à concepção patológica do desvio e da revolta

individual ser repelida e sancionada pela sociedade como patológica, perigosa e

criminal, Merton em sua teoria sociológica funcionalista aplicada ao estudo da

anomia, possibilita a interpretação do desvio como um comportamento normal

conforme as regras, resultado da estrutura social. Conforme explica Baratta41:

O modelo de explicação funcionalista proposto por Merton, portanto, consiste em reportar o desvio a uma possível contradição entre estrutura social e cultura: a cultura, em

determinado momento do desenvolvimento de uma sociedade, propõe ao indivíduo determinadas metas, as quais constituem motivações fundamentais do seu comportamento (por exemplo,

um certo nível de bem-estar e de sucesso econômico). Proporciona, também, modelos de comportamentos institucionalizados, que resguardam as modalidades e os

40

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 59. 41

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 63.

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30

meios legítimos para alcançar aquelas metas. Por outro lado,

todavia, a estrutura econômico-social oferece aos indivíduos, em graus diversos, especialmente com base em sua posição nos diversos estratos sociais, a possibilidade de acesso às

modalidades e aos meios legítimos para alcançar as metas.

Assim, a desproporção que pode existir entre os fins

culturalmente reconhecidos como válidos e os meios legítimos à disposição do

indivíduo para alcançá-los, está na origem dos comportamentos desviantes. Mas

esta desproporção não é um fenômeno anormal ou patológico, pois quando está

dentro de certos limites quantitativos – em que não atinge o nível crítico de anomia –

é um elemento funcional fundamental da sociedade.

O que ocorre desta forma, é que a estrutura social não permite

na mesma medida a todos os membros da sociedade um comportamento ao mesmo

tempo conforme aos valores e às normas. Essa possibilidade de comportamento

varia, de fato, conforme a posição que os indivíduos ocupam na sociedade. E isso

dá origem a um conflito entre a estrutura social e os valores culturais, e por

conseqüência a variadas formas de respostas individuais, conformistas ou

desviantes, às solicitações resultantes da combinação dos valores e das normas

sociais, ou seja, dos fins culturais e dos meios institucionais.

Conforme a teoria sobre fins culturais e meios institucionais de

Merton, o comportamento criminoso corresponde à adesão aos fins culturais, sem o

respeito aos meios institucionais, ou seja, o comportamento desviante é

impulsionado pela discrepância entre fins culturais perseguidos e os meios legítimos

à disposição do indivíduo. Assim, não são decisivas as características

biopsicológicas dos indivíduos para tornar-se criminoso, e sim a pertinência a um ou

outro setor da sociedade.

Baratta42 expõe duas observações críticas à teoria estrutural

funcionalista de Merton, nos seguintes termos:

Limitando sua análise, como é característica da criminologia tradicional, ao fenômeno da distribuição de recursos, Merton não vê o nexo funcional objetivo, que reconduz a criminalidade

42

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 66-67.

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31

de colarinho branco (e também a grande criminalidade

organizada) à estrutura do processo de produção e do processo de circulação do capital: ou seja, o fato posto em evidência por não poucos estudos sobre a grande

criminalidade organizada, que entre circulação legal e circulação ilegal, entre processos legais e processos ilegais de acumulação, existe, na sociedade capitalista, uma relação

funcional objetiva. Assim, por exemplo, uma parte do sistema produtivo legal se alimenta de lucros de atividades delituosas em grande estilo. E, por isto, é fruto de uma visão superficial

fazer da criminalidade das camadas privilegiadas um mero problema de socialização e de interiorização de normas. Por isso – e esta é a segunda consideração -, a criminalidade de

colarinho branco permanece, substancialmente, um corpo estranho na construção original de Merton. Esta é adequada somente para explicar, naquele nível superficial de análise ao

qual chega, a criminalidade das camadas mais baixas.

Assim, esta teoria sociológica da criminalidade tem uma função

ideológica estabilizadora, pois possuem o efeito de legitimar cientificamente, e por

consequência, de consolidar a concepção tradicional da criminalidade como

pertencente de forma típica as classes baixas da sociedade e dessa forma o

correspondente recrutamento efetivo da população criminosa destas classes.

Explica Baratta43 que Sutherland:

Desenvolveu uma crítica radical daquelas teorias gerais do

comportamento criminoso, baseadas sobre condições econômicas (a pobreza), psicopatológicas ou sociopatológicas. Estas generalizações, afirma Sutherland, são errôneas por três

razões. Em primeiro lugar, porque se baseiam sobre uma falsa amostra de criminalidade, a criminalidade oficial e tradicional, onde a criminalidade de colarinho branco é quase que

inteiramente descuidada (embora Sutherland demonstre, por meio de dados empíricos, a enorme proporção deste fenômeno na sociedade americana). Em segundo lugar, as teorias gerais

do comportamento criminoso não explicam corretamente a criminalidade de colarinho branco, cujos autores, salvo raras exceções, não são pobres, não crescem em slums, não

provêm de famílias desunidas, e não são débeis mentais ou psicopatas. Enfim, aquelas teorias não explicam nem mesmo a criminalidade dos estratos inferiores.

43

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 71.

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32

Ou seja, estas generalizações não podem ser consideradas

como elementos idôneos que possam servir de base a uma teoria geral, a uma

explicação da criminalidade de forma unitária, pois uma teoria geral deve possuir um

elemento que está presente em todas as formas de crimes, ao contrário das teorias

convencionais.

Sobre o quadro teórico das teorias das subculturas criminais,

Baratta44 resume da seguinte forma:

Contudo, interessa sublinhar o núcleo teórico contido nessas

teorias, que se opõe ao princípio da ideologia da defesa social acima denominado princípio da culpabilidade. Sob este ponto

de vista, a teoria das subculturas criminais nega que o delito

possa ser considerado como expressão de uma atitude contrária aos valores e às normas sociais gerais, e afirma que existem valores e normas específicos dos diversos grupos

sociais (subcultura). Estes, através e mecanismos de interação e de aprendizagem no interior dos grupos, são interiorizados pelos indivíduos pertencentes aos mesmos e determinam,

portanto, o comportamento, em concurso com os valores e as normas institucionalizadas pelo direito ou pela moral “oficial”.

Não existe, pois, um sistema de valores, ou o sistema de

valores, em face dos quais o indivíduo é livre de determinar-se, sendo culpável a

atitude daqueles que, podendo, não se deixam “determinar pelo valor”, como quer

uma concepção antropológica da culpabilidade. Ao contrário, não só a estratificação

e o pluralismo dos grupos sociais, mas também as reações típicas de grupos

socialmente impedidos do pleno acesso aos meios legítimos para a consecução dos

fins institucionais, dão lugar a um pluralismo de subgrupos culturais, alguns dos

quais rigidamente fechados em face do sistema institucional de valores e de normas,

e caracterizados por valores, normas e modelos de comportamento alternativos

àquele.

Conforme Baratta45:

A visão relativizante da sociologia coloca em crise, assim, a

linha artificial de discriminação que o direito assinala entre

44

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 73. 45

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 74-75.

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33

atitude interior conformista (positiva) e atitude desviante

(reprovável), sobre a base da assunção acrítica de uma responsabilidade do indivíduo, localizada em um ato espontâneo de determinação pelo ou contra o sistema

institucional e valores. Esta distinção entre atitude interior positiva e atitude interior reprovável, que remete ainda ao fundamental princípio do bem e do mal que caracteriza a

ideologia penal, é feita também sobre a base de uma assunção acrítica do conjunto de valores e dos modelos de comportamento protegidos pelo sistema penal, como o

conjunto dos critérios positivos de conduta social compartilhados pela comunidade ou pela grande maioria dos consócios.

Assim, uma minoria desviante representaria, ao contrário, a

culpável e reprovável rebelião a respeito destes valores, orientando o próprio

comportamento, mesmo podendo fazer diversamente, por critérios e modelos que

não teriam natureza ética, mas ao invés, seriam a negação culpável do domínio

ético protegido pelo sistema penal (ideologia da maioria conformista e da minoria

desviante, ideologia da culpabilidade, ideologia do sistema de valores dominante).

Sobre os problemas da relatividade do sistema de normas e de

valores recebidos pelo sistema penal, da sua relação com a consciência social, das

suas prerrogativas positivas (o bem) em face dos sistemas alternativos de valores e

regras, presentes e aplicados no âmbito de grupos restritos (subculturas criminais)

gerados pela perspectiva sociológica, Baratta cita que46:

Eles são, em geral, enfrentados pelos juristas partindo de uma

série de pressupostos não refletidos criticamente e não

confirmados por análises empíricas. Estes pressupostos são os

seguintes: a) o sistema de valores e de modelos de

comportamento recebido pelo sistema penal corresponde aos

valores e normas sociais que o legislador encontra

preconstituídos, e que são aceitos pela maioria dos consócios;

b) o sistema penal varia em conformidade ao sistema de

valores e de regras sociais.

A investigação sociológica mostra, ao contrário, que: a) no

interior de uma sociedade moderna existem, em correspondência à sua estrutura

pluralista e conflitual, em conjunto com valores e regras sociais comuns, também

46

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 75-76.

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valores e regras específicas de grupos diversos ou antagônicos; b) o direito penal

não exprime, pois, somente regras e valores e modelos alternativos, de acordo com

grupos sociais que, na sua construção (legislador) e na sua aplicação (magistratura,

polícia, instituições penitenciárias), têm um peso prevalente; c) o sistema penal

conhece não só valorações e normas conformes às vigentes na sociedade, mas

também defasamentos em relação a elas; freqüentemente acolhe valores presentes

somente em certos grupos e em outras áreas e negados por outros grupos e em

outras áreas; d) enfim, uma sociologia historicista e crítica mostra a relatividade de

todo sistema de valores e de regras sociais, em uma dada fase do desenvolvimento

da estrutura social, das relações sociais de produção e do antagonismo entre grupos

sociais, e por isso, também a relatividade do sistema de valores que são tutelados

pelas normas do direito penal.

Essa relativização do sistema de valores e de regras

sancionadas pelo Direito Penal teve uma contribuição muito importante da teoria

funcionalista da anomia e das subculturas criminais, pois respectivamente, de forma

contrária à ideologia jurídico-penal tradicional foi demonstrado o caráter normal e

não patológico do desvio e sua função em face da estrutura social;

Desenvolvendo uma crítica sobre a teoria das subculturas

criminais por ela ter médio alcance em sua análise do fenômeno da criminalidade,

Baratta expõe que47:

Em tempos recentes e em uma perspectiva cultural e política inteiramente diversa, as teorias das subculturas criminais

tornam-se objeto de uma outra crítica, de fundamental importância para nós, que ataca diretamente o paradigma etiológico que as teorias “subculturais” herdaram das teorias

estrutural-funcionalistas. Ambos os grupos de teorias, de fato, permanecem no interior de tal modelo explicativo e, aceitando acriticamente a qualidade criminosa dos comportamentos

examinados, não se destacam das teorias positivistas, exceto pelos instrumentos explicativos adotados; certamente não se diferenciam delas pela estrutura metodológica. A teoria

funcionalista e a teoria das subculturas, realmente, não se colocam o problema das relações sociais e econômicas sobre as quais se fundam a lei e os mecanismos de criminalização e

47

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 81.

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35

de estigmatização, que definem a qualidade criminal dos

comportamentos e dos sujeitos criminalizados.

Mas mesmo diante dessas limitações da sua parte teórica, não

se pode deixar de considerar que a teoria das subculturas criminais teve o

importante mérito de ter indicado uma linha de análise e sugerido uma posterior

reflexão sobre as condições econômicas da criminalidade, pois esta teoria

individualizou, nos mecanismos de socialização e de reação de grupo, os veículos

de transmissão entre fatores econômicos-estruturais - distribuição da riqueza e das

chances sociais - e comportamento subjetivo individual.

1.2 PARADIGMA DA REAÇÃO SOCIAL

As teorias sociológicas expostas anteriormente apresentam,

apesar das diferenças que as dividem, quatro elementos comuns que devem ser

destacados como alternativa crítica à concepção da relação entre delinqüência e

valores, própria da ideologia da defesa social. Conforme Baratta48:

Em primeiro lugar, elas colocam a ênfase sobre as

características particulares que distinguem a socialização e os defeitos de socialização, às quais estão expostos muitos dos indivíduos que se tornam delinqüentes. Em segundo lugar, elas

mostram como esta exposição não depende tanto da disponibilidade dos indivíduos, quanto das diferenciações dos contatos sociais e da participação na subcultura. Em terceiro lugar, estas dependem, por sua vez, em sua incidência sobre a

socialização do indivíduo segundo o conteúdo específico dos valores (positivo e negativo), das normas e técnicas que as caracterizam, dos fenômenos de estratificação, desorganização

e conflitualidade ligados à estrutura social. Enfim, estas teorias mostram também que, pelo menos dentro de certos limites, a adesão a valores, normas, definições e o uso de técnicas que

motivam e tornam possível um comportamento “criminoso”, são um fenômeno não diferente do que se encontra no caso do comportamento conforme à lei.

O que distingue o comportamento criminoso do não-criminoso,

não é uma atitude interior de natureza boa ou má, social ou anti-social, valorável

positivamente ou negativamente pelos indivíduos, mas sim, a definição legal, que

48

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 85.

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em uma determinada sociedade e um dado momento, diferencia comportamento

lícito do criminoso. Assim, como explica Baratta49

Por debaixo do problema da legitimidade do sistema de valores

recebido pelo sistema penal como critério de orientação para o comportamento socialmente adequado e, portanto, de

discriminação entre conformidade e desvio, aparece como determinante o problema da definição do delito, com as implicações político-sociais que revela, quando este problema

não seja tomado por dado, mas venha tematizado como centro de uma teoria da criminalidade. Foi isto o que aconteceu com as teorias da “reação social”, ou labeling approach, hoje no

centro da discussão no âmbito da sociologia criminal.

Esta forma de pesquisa parte da consideração de que não se

pode compreender a criminalidade se não se analisa a ação do sistema penal, que a

define e reage contra ela, através das normas abstratas até a ação das instâncias

oficiais (polícia, juízes, instituições penitenciárias que as aplicam), e que, dessa

forma, a qualidade social de criminoso atribuída a uma pessoa pressupõe,

necessariamente, o efeito das atividades das instâncias oficiais de controle social da

criminalidade. Já não adquire essa qualidade de criminoso aquele que, mesmo

tendo realizado uma mesma conduta punível, não é alcançado pela ação de tais

instâncias oficiais, e assim não é considerado e tratado pela sociedade como

criminoso.

Neste sentido, as teorias da reação social têm direcionado

seus trabalhos principalmente sobre as reações das instâncias oficiais do controle

oficial, sobre sua função constitutiva em face da criminalidade, assim, tem estudado

o efeito estigmatizante da atividade da polícia, do ministério público e dos juízes.

Conforme explica Baratta50:

O que distingue a criminologia tradicional da nova sociologia criminal é visto, pelos representantes do labeling approach,

principalmente, na consciência crítica que a nova concepção traz consigo, em face da definição do próprio objeto da investigação criminológica e em face do problema gnosiológico

e de sociologia do conhecimento que está ligado a este objeto

49

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 86. 50

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 86.

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37

(a “criminalidade”, o “criminoso”), quando não o consideramos

como um simples ponto de partida, uma entidade natural para explicar, mas como uma realidade social que não se coloca como préconstituída à experiência cognoscitiva e prática, mas

é construída dentro desta experiência, mediante os processos de interação que a caracterizam. Portanto esta realidade deve, antes de tudo, ser compreendida criticamente em sua

construção.

O labeling approach está situado em uma orientação

sociológica que é dominada por duas correntes, de origem americana, que são

estreitamente ligadas entre si, que concorrem para modelar o seu paradigma

epistemológico. Em primeiro lugar, pela direção da psicologia social e da

sociolingüística inspirada em George H. Mead, e que é denominada de

interacionismo simbólico51, e em segundo lugar, a etnometodologia52, inspirada pela

sociologia fenomenológica de Alfred Schutz.

Para essas duas teorias, analisar a realidade social (ex. desvio)

significa, necessariamente, analisar os processos de tipificação e definição operados

pelos indivíduos e grupos sociais, desde os que são aplicados a simples

comportamentos até as construções mais complexas, como a própria ordem social.

Ao contrário a criminologia positivista, e também boa parte da criminologia liberal

contemporânea, utiliza de forma acrítica os conceitos e definições do

comportamento criminoso criados pelo Direito Penal e dogmática penal, e assim

analisa esse comportamento como se sua qualidade criminal existisse

objetivamente, como também, que as normas e valores sociais que os indivíduos

violam ou desviam, são universalmente compartilhados, legítimos, racionais,

imutáveis e interiorizados por todos os membros da sociedade etc.

51

Segundo o interacionismo simbólico, a sociedade – ou seja, a realidade social – é constituída por uma infinidade de interações concretas entre indivíduos, aos quais um processo de tipificação confere um significado que se afasta das situações concretas e continua a estender-se através da linguagem. In BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 87. 52

Segundo a etnometodologia, a sociedade não é uma realidade que se possa conhecer sobre o pleno objetivo, mas o produto de uma “construção social”, obtida graças a um processo de definição e de tipificação por parte de indivíduos e de grupos diversos. In BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 87.

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38

Conforme Baratta53:

É útil sublinhar, a partir de agora, a importância de duas distinções conceituais, fundamentais para o modo em que a

teoria do desvio tem sido desenvolvida, no quadro do interacionismo simbólico (como também no quadro da fenomenologia e da etonometodologia). A primeira distinção é a que se opera entre comportamento e ação. O comportamento

encontra na estrutura material da ação o próprio referente necessário: a ação é o comportamento ao qual se atribui um

sentido ou um significado social, dentro da interação. Esta atribuição de significado que “transforma” o comportamento em ação se produz segundo algumas normas. Aqui intervém a

segunda distinção. Existem normas sociais gerais, como por exemplo, as normas éticas ou as normas jurídicas. Mas existem, também, normas ou práticas interpretativas

(“interpretatives procedures”), que determinam a interpretação e a aplicação das normas gerais a situações particulares. Estas normas ou práticas interpretativas e aplicativas estão na base

de qualquer interação social e determinam o “sentido da estrutura social”.

Ou seja, o autor defende a existência de um secundo código,

não escrito, que funciona, ao lado do código oficial e outros, no processo de

imputação de responsabilidade e de atribuição de etiquetas de criminalidade.

Assim, os criminólogos tradicionais estudando sobre as causas

da criminalidade, examinam problemas do tipo “quem é criminoso?”, “como se torna

desviante?”, “em quais condições um condenado se torna reincidente?”, “com que

meios se pode exercer controle sobre o criminoso?”, ao contrário, os interacionistas,

como em geral os autores que se inspiram no labeling approach, se perguntam:

“quem é definido como desviante?”, “que efeito decorre desta definição sobre o

indivíduo pode se tornar objeto de uma definição?” e, enfim, “quem define quem?”.

53

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 88.

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39

Segundo explica Baratta54:

A pergunta relativa à natureza do sujeito e do objeto, na definição do comportamento desviante, orientou a pesquisa dos teóricos do labeling approach em duas direções: uma

direção conduziu ao estudo da formação da “identidade” desviante, e do que se define como “desvio secundário”, ou

seja, o efeito da aplicação da etiqueta de “criminoso” (ou também de “doente mental”) sobre a pessoa em quem se aplica a etiqueta; a outra direção conduz ao problema da

definição, da constituição do desvio como qualidade atribuída a comportamentos e a indivíduos, no curso da interação e, por isto, conduz também para o problema da distribuição do poder

de definição, para o estudo dos que detêm, em maior medida, na sociedade, o poder de definição, ou seja, para o estudo das agências de controle social.

O problema fundamental do paradigma etiológico, ao qual a

maior parte da ciência, como também do senso comum, permanece fiel, pode ser

assim identificado: quais as são as condições que podem ser atribuídas a um fato

precedentemente existente, ou seja, o comportamento desviante? Assim os

resultados desse paradigma são: a) um sistema objetivo e objetivamente

reconhecível de normas pré-constituídas; b) a existência de duas classes distintas

de comportamentos e de sujeitos: os comportamentos e os sujeitos normais e os

desviantes; c) a destinação técnico-intervencionista da teoria, ou seja, aquela típica

da criminologia positivista, de utilizar a concorrência dos fatores do desvio para

intervir sobre eles, modificando-os (correcionalismo).

Ao contrário, o paradigma da reação social parte de uma

problematização da suposta validade dos juízos sobre o desvio, que se articula em

duas ordens de questões: 1) Quais são as condições da intersubjetividade da

atribuição de significados, em geral, e particularmente do desvio (como significado

atribuído a comportamentos e a indivíduos) e 2) Qual é o poder que confere a certas

definições uma validade real (no caso em que, a certas definições, sejam ligadas

aquelas consequencias práticas que são as sanções). Dessa forma, a primeira

pergunta fornece a dimensão da definição, e a segunda a dimensão do poder.

54

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 89.

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40

Assim, não é o comportamento por si mesmo, que gera uma

reação segundo a qual um sujeito opera a distinção entre normal e anormal, mas

somente a sua interpretação, que decide o que é qualificado como desviante e o que

não é. Conforme explica Baratta55:

E se não é possível estabelecer, de modo arbitrário, que um comportamento qualquer é um comportamento de tipo criminoso, isto se explica pelo papel decisivo que, a tal

respeito, desempenham as condições que acompanham a reação ao próprio comportamento. Por consequencia, todas as questões sobre as condições e as causas da criminalidade se

transformam em interrogações sobre as condições e as causas da criminalização, seja na perspectiva da elaboração das regras (penalização e despenalização, ou seja, criminalização

primária), seja na perspectiva da aplicação das regras (criminalização secundária: processo de aplicação das regras gerais). A maneira segundo a qual os membros da sociedade

definem um certo comportamento como comportamento de tipo criminoso faz parte, por isso, do quadro de definição sociológico do comportamento desviante, e o seu estudo deve,

precisamente por esta razão, preceder o exame da reação social diante do comportamento desviante.

Além dos problemas teóricos e metodológicos relativos à

definição de criminalidade e ao conceito de “realidade social”, que influenciaram o

surgimento do labeling approach na sociologia criminal, as aquisições da sociologia

criminal dos últimos decênios, relativas a dois novos campos de investigação: 1º) a

criminalidade de colarinho branco; e 2º) a cifra negra da criminalidade e a crítica das

estatísticas criminais oficiais, influenciaram muito sobre o deslocamento do ponto de

partida, do comportamento desviante para os mecanismos de reação e de seleção

da população criminosa.

Sobre a criminalidade de colarinho, presente em todas as

sociedades de capitalismo avançado, constatou-se que, apesar da enorme

quantidade de violações das normas de Direito Penal Econômico e Financeiro pelas

pessoas pertencentes às classes altas, a sua perseguição pelos órgãos

competentes das instâncias oficiais é muito escassa, e ainda, que influíram sobre as

causas desse fenômeno criminal, além da escassez de sua perseguição, a

colaboração e a cumplicidade entre classe política e agentes econômicos privados.

55

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 95.

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41

Sobre os fatores que explicam porque a criminalidade colarinho

branco é muito pouco perseguida, ou escapa completamente, nas suas formas mais

refinadas, das malhas sempre muito largas da lei, Baratta explica56:

Trata-se, como se sabe, de fatores que são ou de natureza social (o prestígio dos autores das infrações, o escasso efeito

estigmatizante das sanções aplicadas, a ausência de um estereótipo que oriente as agências oficiais na perseguição das infrações, como existe ao contrário, para as infrações típicas

dos estratos mais favorecidos), ou de natureza jurídico-formal (a competência de comissões especiais, ao lado da competência de órgãos ordinários, para certas infrações, em

certas sociedades), ou, ainda, de natureza econômica (a possibilidade de recorrer a advogados de renomado prestígio, ou de exercer pressões sobre os denunciantes etc.).

Sobre a cifra negra da criminalidade, com as pesquisas

desenvolvidas sobre ela, possibilitou-se, a sociologia criminal, desenvolver uma

crítica ao valor dos dados das estatísticas criminais oficiais e as interpretações

teóricas desenvolvidas a partir delas, pois, constatou-se que, sendo elas baseadas

sobre a criminalidade identificada e perseguida pelas instâncias oficiais (onde a

criminalidade de colarinho branco é representada de forma muitíssimo inferior a sua

real ocorrência), sugeriram uma concepção falsa da distribuição da criminalidade

nos grupos sociais. Disso, derivaram-se as definições, comumente conhecidas, da

criminalidade como um fenômeno característico, principalmente nos estratos

inferiores, e muito pouco representada nos superiores, ou seja, relacionada a fatores

pessoais e sociais ligados a pobreza.

E que, essas definições da criminalidade incidem não só sobre

os estereótipos que influenciam e orientam a ação dos órgãos oficiais, tornando-a

seletiva, mas também sobre a imagem que o homem comum tem da criminalidade.

Como resultado também da análise crítica do método e do

valor das estatísticas criminais oficiais, essas pesquisas desenvolveram outra

correção ao conceito ordinário de criminalidade, no sentido de que, a criminalidade

não é um comportamento de uma parcela minoritária da sociedade, mas sim, da

grande maioria dela, inclusive em seus vários estratos.

56

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 102.

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42

Conforme Baratta57:

Neste sentido, as regras sobre a aplicação (basic rules, meta-

regras) seguidas, conscientemente ou não, pelas instâncias

oficiais do direito, e correspondentes às regras que determinam a definição de desvio e de criminalidade no sentido comum, estão ligadas a leis, mecanismos e estruturas objetivas da

sociedade, baseadas sobre relações de poder (e de propriedade) entre grupos e sobre as relações sociais de produção.

Assim, de um ponto de vista mais geral, observa-se a seleção

da população criminosa através da análise macrossociológica da interação e das

relações de poder entre os grupos sociais, encontra-se, os mesmos mecanismos de

interação, de antagonismo e de poder que explicam a desigual distribuição de bens

e oportunidades entres os indivíduos em uma determinada sociedade, e assim

também o porquê da constatação, nos países de capitalismo avançado, da

população carcerária ser, em sua grande maioria, recrutada entre a classe operária

e as classes economicamente mais frágeis. Através desta perspectiva, podem-se

refutar as teorias que são baseadas sobre as interpretações patológicas da

criminalidade.

Sobre a revolução científica que o labeling approach originou

na criminologia explica Baratta58que:

O problema da definição se coloca sobre três planos diferentes,

que não devem ser confundidos nem reduzidos a um só, se se

quer apreciar em todo o seu alcance a alternativa crítica do

labeling approach em relação à ideologia da defesa social (mas

é necessário destacar que esta distinção de planos não é

sempre observada por representantes do labeling approach).

1) O problema da definição da criminalidade é, em primeiro

lugar, um problema metalingüístico, concernente:

a) À validade das definições que a ciência jurídica ou as

ciências sociais nos proporcionam de “crime” e de

“criminoso”, quanto à competência da ciência jurídica ou

57

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p.105-106. 58

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p.109-110.

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43

da ciência social para dar uma definição que possa

servir de eventual suporte para uma teoria crítica do

sistema penal;

b) à validade da definição de criminalidade, ou seja, a

atribuição da qualidade de “criminoso” a determinados

comportamentos e a determinados sujeitos, dentro do

senso comum e por parte das instâncias oficiais do

sistema penal.

2) Em segundo lugar, representa um problema teórico que

concerne à interpretação sócio-política do fenômeno pelo qual,

em uma dada sociedade, certos indivíduos, pertencentes a

certos grupos sociais e representantes de certas instituições,

são dotados do poder de definição, ou seja, do poder:

a) De estabelecer quais crimes devem ser perseguidos

(poder de estabelecer as normas penais);

b) De estabelecer quais pessoas devem ser perseguidas

(poder de aplicar as normas).

Este problema conduz às leis, aos mecanismos e às estruturas

sociais objetivas que regulam o poder de definição, a sua distribuição, as

modalidades de seu exercício em um dado contexto social, enquanto outros

indivíduos e grupos sociais estão submetidos a este poder de definição.

Enfim, é um problema fenomenológico (no sentido da

criminologia empírica tradicional), concernente aos efeitos que a aplicação de uma

definição de criminoso a certos indivíduos – isto é, a atribuição a estes da

qualificação de criminoso, e de um status social correspondente – tem sobre o

comportamento sucessivo do indivíduo (eventual consolidação do papel de

criminoso; desenvolvimento de uma carreira criminosa).

O que as pesquisas sobre a criminalidade latente demonstram

é que, a definição do indivíduo como criminoso depende da condição social a que

pertence ou da situação familiar de que provém, pois uma pessoa que provém

destas situações sociais tem uma maior chance de ser definido como criminoso por

parte dos outros indivíduos ou dos detentores do controle social institucional, do que

outro indivíduo que se comporta do mesmo modo, mas que pertence a outro estrato

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44

social ou situação familiar. Ou seja, as pesquisas acerca da questão das condições

da criminalidade se desloca, das condições que determinam o comportamento

criminoso de certos indivíduos, para as condições que determinam o grau de

probabilidade de que certos indivíduos sejam definidos como criminosos.

Consolidou-se assim, um paradigma alternativo com relação ao

paradigma etiológico, e que é chamado, dessa forma, de paradigma da reação

social ou da definição. Sobre o efeito de irreversibilidade proporcionado pelas teorias

do labeling approach na teoria e método da sociologia criminal, Baratta59 aponta

que:

De fato, em certos aspectos, estas teorias sacudiram os

fundamentos da ideologia penal tradicional. Desta ideologia, colocaram em discussão, principalmente, o elemento que, no capitulo II, denominamos princípio de igualdade, posto que

demonstraram que a criminalidade, segundo a sua definição legal, não é o comportamento de uma minoria, mas da maioria dos cidadãos e que, além disso, segundo a sua definição sociológica, é um status atribuído a determinados indivíduos

por parte daqueles que detêm o poder de criar e de aplicar a lei penal, mediante mecanismos seletivos, sobre cuja estrutura e

funcionamento a estratificação e o antagonismo dos grupos sociais têm um influência fundamental.

Além da função crítica em relação ao princípio de igualdade

pertencente à ideologia da defesa social, as teorias do labeling approach

desempenharam o mesmo a respeito dos princípios de legitimidade, do interesse

social e do delito natural, pois como continua explicando Baratta60:

Realmente, colocando o acento sobre os mecanismos institucionais da reação social ao desvio, as teorias da criminalidade baseadas no labeling approach afastam nossa

atenção do desvio como fato social, preconstituído em face de sua criminalização, e a dirigem para a criminalização mesma. Além disso, o labeling approach lançou luz sobre o fato de que

o poder de criminalização, e o exercício deste poder, estão estreitamente ligados à estratificação e à estrutura antagônica da sociedade. A legitimação tradicional do sistema penal como

sistema necessário a tutela das condições essenciais de vida

59

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p.112-113. 60

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 113.

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45

de toda a sociedade civil, além da proteção de bens jurídicos e

de valores igualmente relevantes para todos os consócios, é fortemente problematizada no momento em que se passa – como é lógico em uma perspectiva baseada na reação social –

da pesquisa sobre a aplicação seletiva das leis penais à pesquisa sobre a formação mesma das leis penais e das instituições penitenciárias.

Sobre a pesquisa crítica ao sistema de bens jurídicos na mais

recente literatura penal e sociológica, Baratta expõe que61:

Uma característica desta literatura é a atenção dirigida sobre a especificidade dos interesses tutelados, sobre a intensidade

variável desta proteção, sobre as áreas de comportamentos socialmente negativos ou de situações de qualquer modo problemáticas, que o direito penal toma em consideração de

maneira extremamente fragmentária. A função seletiva do sistema penal em face dos interesses específicos dos grupos sociais, a função de sustentação que tal sistema exerce em

face dos outros mecanismos de repressão e de marginalização dos grupos sociais subalternos, em benefício dos grupos dominantes – hipóteses sobre as quais o labeling approach já

havia chamado nossa atenção –, parece, portanto, colocar-se como motivo central para uma crítica da ideologia penal, também no interior desta recente reflexão.

E finalizando acerca da função crítica desenvolvida pelas

teorias do labeling approcah em face dos princípios que fundamentam a ideologia da

defesa social, Baratta62 comentando sobre a crítica ao princípio da prevenção ou do

fim em sua relação com a ideologia oficial do sistema penitenciário, explica que:

De fato, ao recorrer à diferença entre desvio primário e desvio secundário, as teorias da criminalidade baseadas no labeling approach contribuíram para a crítica dos sistemas de

tratamento, com um princípio teórico fundamental para esta crítica, que lança luz sobre os efeitos criminógenos do tratamento penal e sobre o problema não resolvido da

reincidência. Estas teorias se relacionam, assim, a todo o vasto movimento do pensamento criminológico e penalógico que, das escolas liberais contemporâneas até as mais recentes

contribuições da criminologia crítica, mostrou a grande distância entre a idéia da ressocialização e a função real do

tratamento.

61

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 114. 62

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 114.

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46

As teorias integrantes da criminologia liberal contemporânea

inverteram a relação da criminologia com a ideologia e a dogmática penal, pois

substituíram a dimensão biopsicológica do fenômeno criminal pela sociológica. Elas

defenderam natureza normal e funcional da criminalidade (teoria funcionalista), a

sua dependência de mecanismos de socialização a que os indivíduos estão

expostos, não como resultado de pretensos caracteres biopsicológicos, mas da

estratificação social (teoria das subculturas criminais).

Deslocaram também, o foco de análise do comportamento

criminoso para a função punitiva e para o Direito Penal (teoria psicanalítica da

sociedade punitiva), para os mecanismos seletivos que orientam a criminalização e

a estigmatização de determinados indivíduos (teoria da reação social ou labeling

approach). Elas mostraram como esta função e estes mecanismos, mais que em

defesa de interesses sociais superiores, tinham a ver com o conflito, que se

desenvolve no inconsciente, entre impulsos indivíduos e inibições sociais (teoria

psicanalítica) ou com as relações de hegemonia entre classes (poder de definição,

por um lado, submissão à criminalização, por outro: teorias conflituais).

Também, as teorias liberais contemporâneas não mais se

apropriavam do que prescrevia a lei ou a dogmática penal para definir seu objeto de

pesquisa, sua linha de investigação, não mais dependia do conceito legal de

criminalidade, ou seja, ela é substituída por um conceito sociológico de desvio, em

que o comportamento criminalizado constitui uma espécie dentro de um gênero

complexo, somente visível no âmbito de uma concepção global do sistema social.

Conforme Baratta63:

O ponto mais avançado desta consciência da autonomia do próprio objeto em face das definições legais é alcançado, na criminologia liberal contemporânea, pela teoria do labeling. Negando qualquer consistência ontológica à criminalidade,

enquanto qualidade atribuída a comportamentos e a pessoas

por instâncias detentoras de um comportamento poder de definição e de estigmatização, a teoria do labeling deslocou o

foco da investigação criminológica para tal poder. O direito

penal torna-se, assim (como, por um outro lado, ocorrera na teoria psicanalítica da sociedade punitiva), de ponto de partida

63

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 148-149.

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47

para a definição do objeto da investigação criminológica, no

objeto mesmo da investigação.

Enquanto as teorias liberais, por um lado, representam uma

importante função crítica em face das teses particulares que fazem parte da

ideologia da defesa social, por outro, através da tese da universalidade do delito,

elas oferecem a nova ideologia legitimante do sistema penal moderno, dentro dos

princípios do sistema político tecnocrático próprio das sociedades de capitalismo

avançado, e a nova ideologia dos juristas adequada a este sistema. As teorias

liberais são, portanto, portadoras de uma ideologia negativa substitutiva da ideologia

tradicional da defesa social, sobre a qual o pensamento dos juristas aparece ainda

fortemente arraigado.

A tese da universalidade do delito e do direito penal, que estão

implícitas nas teorias liberais contemporâneas da sociologia, está no centro da

crítica por parte dos autores que atuam dentro da nova criminologia ou criminologia

crítica.

Com as teorias da criminalidade e da reação penal baseadas

sobre o labeling approach e com as teorias conflituais tem lugar, no âmbito da

sociologia criminal contemporânea, a passagem da criminologia liberal à

criminologia crítica, mas uma passagem que ocorre lentamente e sem uma

verdadeira e própria solução de continuidade, sendo a recepção alemã do labeling

approach um momento importante dessa passagem.

Conforme explica Baratta64:

A plataforma teórica alcançada pela criminologia crítica, preparada pelas correntes mais avançadas da sociologia criminal liberal, pode ser sintetizada em uma dupla

contraposição à velha criminologia positivista, que usava o enfoque biopsicológico. Como se recordará, esta buscava a

explicação dos comportamentos criminalizados partindo da criminalidade como um dado ontológico preconstituído à reação social e ao direito penal. Recordar-se-á, também, como

tal criminologia – que conta ainda com não poucos epígonos – pretendia estudar nas suas “causas” tal dado,

64

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 149.

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48

independentemente do estudo da reação social e do direito

penal.

No percurso que conduziu, através do desenvolvimento de

diversas escolas de sociologia criminal, dos anos trinta em diante, ao começo da

criminologia crítica, pode-se destacar duas etapas principais deste caminho: a) a

primeira foi o deslocamento do enfoque teórico do autor para as condições objetivas,

estruturais e funcionais, que estão na origem dos fenômenos do desvio; b) a

segunda foi o deslocamento da análise das causas da criminalidade para os

mecanismos sociais e institucionais através dos quais é construída a realidade social

do desvio, ou seja, para os mecanismos através dos quais são criadas e aplicadas

as definições de desvio e de criminalidade e realizados os processos de

criminalização.

Opondo ao enfoque biopsicológico o enfoque

macrossociológico, a criminologia crítica historiciza a realidade comportamental do

desvio e ilumina a relação funcional ou disfuncional com as estruturas sociais, com o

desenvolvimento das relações de produção e de distribuição. Assim, a grande

mudança qualitativa que separa a velha da nova criminologia é a superação do

paradigma etiológico, que era o paradigma fundamental de uma ciência entendida,

naturalisticamente, como teoria das causas da criminalidade. E a superação deste

paradigma resulta também na superação de suas implicações ideológicas.

Conforme explica Baratta65:

Na perspectiva da criminologia crítica a criminalidade não é

mais uma qualidade ontológica de determinados comportamentos e de determinados indivíduos, mas se revela, principalmente, como um status atribuído a determinados

indivíduos, mediante uma dupla seleção: em primeiro lugar, a seleção dos bens protegidos penalmente, e dos comportamentos ofensivos destes bens, descritos nos tipos

penais; em segundo lugar, a seleção dos indivíduos estigmatizados entre todos os indivíduos que realizam infrações a normas penalmente sancionadas. A criminalidade é

um “bem negativo”, distribuído desigualmente conforme a

65

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 161.

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hierarquia dos interesses fixada no sistema sócio-econômico e

conforme a desigualdade social entre os indivíduos.

Assim, o momento crítico atinge seu auge na criminologia

quando o enfoque macrossociológico se desloca do comportamento desviante para

os mecanismos de controle social dele e, em particular, para o processo de

criminalização. Nesta crítica, o Direito Penal não é visto somente como um sistema

estático de normas, mas como sistema dinâmico de funções, no qual se podem

distinguir três mecanismos analisáveis separadamente: o mecanismo de produção

das normas (criminalização primária), o mecanismo da aplicação das normas, isto é,

o processo penal, compreendendo a ação dos órgãos de investigação e culminando

com o juízo (criminalização secundária) e, enfim, o mecanismo da execução da pena

ou das medidas de segurança.

Conforme Baratta66:

Estas constituem a negação radical do mito do direito penal como direito igual, ou seja, do mito que está na base da

ideologia penal da defesa social – hoje dominante. O mito da igualdade pode ser resumido nas seguintes proposições: a) o direito penal protege igualmente todos os cidadãos contra

ofensas aos bens essenciais, nos quais estão igualmente interessados todos os cidadãos (princípio do interesse social e do delito natural);

b) a lei penal é igual para todos, ou seja, todos os autores de comportamentos anti-sociais e violadores de normas penalmente sancionadas têm iguais chances de tornar-se

sujeitos, e com as mesmas conseqüências, do processo de criminalização (princípio da igualdade).

Exatamente opostas são as proposições em que se resumem

os resultados da crítica: o direito penal não defende todos e somente os bens

essenciais, nos quais estão igualmente interessados todos os cidadãos, e quando

pune as ofensas aos bens essenciais o faz com intensidade desigual e de modo

fragmentário; a lei penal não é igual para todos, o status de criminoso é distribuído

de modo desigual entre os indivíduos; o grau efetivo de tutela e a distribuição do

status é independente da danosidade social das ações e da gravidade das infrações

66

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 162.

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à lei, no sentido de que estas não constituem a variável principal da reação

criminalizante e da sua intensidade.

A crítica se dirige, portanto, ao mito do direito penal como um

direito igual por excelência, ela mostra que o direito penal não é menos desigual do

que os outros ramos do direito burguês, e que é, de forma diferente do que

aparenta, desigual por excelência.

A atenção da nova criminologia ou criminologia crítica se

orientou, de forma preponderante, para o processo de criminalização, constatando

nele um dos maiores problemas teóricos e práticos das relações sociais de

desigualdade próprias das sociedades capitalistas, e também, buscando como um

de seus objetivos principais, levar ao âmbito do Direito Penal, de modo rigoroso, a

crítica do direito desigual.

Concluindo, de acordo com Baratta67:

Construir uma teoria materialista (econômico-política) do desvio, dos comportamentos socialmente negativos e da

criminalização, e elaborar as linhas de uma política criminal alternativa, de uma política das classes subalternas no setor do desvio: estas são as principais tarefas que incumbem aos

representantes da criminologia crítica, que partem de um enfoque materialista e estão convencidos de que só uma análise radical dos mecanismos e das funções reais do sistema

penal, na sociedade tardo-capitalista, pode permitir uma estratégia autônoma e alternativa no setor do controle social do desvio, ou seja, uma “política criminal” das classes atualmente

subordinadas. Somente partindo do ponto de vista dos interesses destas últimas consideramos ser possível perseguir as finalidades aqui indicadas.

No interior da criminologia crítica estão se produzindo, desde

algum tempo, tentativas para desenvolver uma teoria materialista das situações e

dos comportamentos socialmente negativos, assim como da criminalização. Uma

teoria materialista deste tipo se caracteriza pelo fato de relacionar os dois pontos da

questão criminal, as situações socialmente negativas e o processo de

67

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 197.

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criminalização, com as relações sociais de produção e, no que respeita à nossa

sociedade, com a estrutura do processo de valorização do capital.

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CAPÍTULO 2

O CONTROLE SOCIAL: INSTRUMENTOS DE LIMITAÇÃO DE

COMPORTAMENTOS E ESPAÇOS (DE QUEM?)

2.1 INTERPRETAÇÃO ESTRUTURAL

O homem no convívio em sociedade, de forma inevitável,

sempre aparece interagindo de maneira muito estreita com outros homens. Essa

interação ocorre com a formação de grupos dentro da sociedade, grupos esses que

podem ser permanentes, e possuírem interesses e expectativas, alternativa ou

ocasionalmente, coincidentes ou antagônicos. Dessa forma, existiram os conflitos

entre grupos na sociedade, que se resolveram – de maneira dinâmica – no sentido

de se obter uma certa estabilização que, por conseguinte, vai dando origem à

estrutura de poder de determinada sociedade, que se apresenta de forma

institucionalizada e difusa ou não institucionalizada. Nas palavras de Zaffaroni e

Pierangeli68:

O certo é que toda sociedade apresenta uma estrutura de poder, com grupos que dominam e grupos que são dominados,

com setores mais próximos ou mais afastados dos centros de decisão. De acordo com essa estrutura, se “controla” socialmente a conduta dos homens, controle que não só se

exerce sobre grupos mais distantes do centro de poder, como também sobre os grupos mais próximos a ele, aos quais se impõe controlar sua própria conduta para não debilitar-se

(mesmo na sociedade de castas, os membros das mais privilegiadas não podem casar-se com aqueles pertencentes a castas inferiores).

Toda sociedade tem uma estrutura de poder - político e

econômico –, onde existem grupos mais próximos e outros mais afastados desse

poder, e na qual, consequentemente, pode-se constatar o grau de centralização e

marginalização dos grupos em relação à estrutura de poder de uma sociedade.

68

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. 6

ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. v. I. p. 56.

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53

Existem, assim, sociedades em que a centralização e a marginalização se

apresentam de forma muito extremas, e outras em que esse fenômeno aparece

mais atenuado, mas em toda sociedade está presente a marginalização e

centralização do poder.

Dessa marginalização/centralização resultam inúmeras e

complicadas formas de controle social, ou seja, formas de delimitar o

comportamento individual determinada por uma parte da sociedade, que possui esse

poder delimitador.

Analisando-se a estrutura de poder, entende-se e explica-se o

controle social, e de forma inversa (analisando o controle social), compreende-se e

explica-se a natureza da estrutura de poder. Como explicam Zaffaroni e Pierangeli69:

O âmbito do controle social é amplíssimo e, dada sua protéica configuração e a imersão do investigador no mesmo, ele nem sempre é evidente. Este fenômeno de ocultamento do controle

social é mais pronunciado nos países centrais do que nos periféricos, onde os conflitos são mais manifestos. De qualquer modo, inclusive nos periféricos, o controle social tende a ser

mais anestésico entre as camadas sócias mais privilegiadas e que adotam os padrões de consumo dos países centrais.

Dessa forma, conforme Alessandro de Giorgi citado por Karina

nogueira Vasconcelos70, pode-se entender por controle social:

(...) um conjunto de saberes, poderes, estratégias, práticas e instituições que servem à preservação da ordem social, ou seja, conjunto de recursos, possibilidades e desejos

manipulados pelas elites econômicas. Afirma ainda o autor que o controle social nada mais é do que um processo histórico de construção do elo poder e desvio, ou seja, uso das normas

pelo poder para determinar quem desvia, o que é desvio, o que é normal e o patológico.

Ou seja, inúmeros são meios em que se exerce o controle

social, pois ele é exercido tanto por formas difusas e não institucionais (que assim,

69

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. 6

ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. v. I. p. 56. 70

VASCONCELOS, Karina Nogueira. O modelo punitivo carcerário: entre a crise teórico-ideológica e o reafirmar-se político. Revista de ciências criminais. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2009. ano 17. nº 78. mai.-jun. p. 358.

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devido a essas características são poucos percebidos) como por meios específicos

e declarados como tais (controle por meios institucionais). Isto é, o controle social se

apresenta como um fenômeno pluridimensional, que impossibilita que se tente

explicar a estrutura de poder de determinada sociedade de forma simplista.

Conforme explica Andrade71:

Existe um macrossistema penal formal, composto pelas instituições oficiais de controle (Leis-Polícia-Ministério Público-

Justiça-Prisão) circundado pelas instituições informais de controle (Mídia-Mercado de Trabalho-Escola-Família etc.) e nós interagimos cotidianamente no processo, seja como operadores formais do controle ou equivalentes, seja como senso comum ou opinião pública, que desde o cenário de

nossas vidas, sobretudo em frente à televisão (cenário em que

a construção assume a dimensão de espetáculo massivo justamente para radicalizar o medo da criminalidade e a indignação contra o Outro) julga, seleciona, aprisiona e mata.

Assim, com o intuito de regrar, limitar as relações interpessoais

existem os denominados instrumentos de controle social. O Direito (Lei) é, sem

dúvida, um deles, mas não o único, a moral, a religião, a família, a mídia, os partidos

políticos, as ideologias etc. são também processos normativos que acabam por

atingir esse fim. Eles – com exceção do Direito que é institucional – são definidos

como pertencentes ao controle social difuso.

Já o controle social institucionalizado é formado por instituições

do Estado, como são, por exemplo, a polícia, poder judiciário, manicômios, asilos,

instituições de ensino etc. Os meios institucionalizados se dividem em não punitivos

(direito privado, por exemplo), em formalmente punitivos (com discurso punitivo) e

formalmente não punitivos (com discurso não punitivo), mas que operam na prática

como os formalmente punitivos. Acerca dessas definições e das diferenças dos

meios punitivos, Zaffaroni e Pierangeli explicam que72:

Dentro do controle social institucionalizado há uma forma punitiva que não se reduz ao formalmente punitivo (sistema

penal), mas que abarca qualquer outro controle social que, na

prática, opera punitivamente, em que pese o discurso não

71

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema Penal Máximo X Cidadania Mínima: códigos de

violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 23. 72

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. 6

ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. v. I. p. 62-63.

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punitivo. Tal é o que frequentemente sucede com a psiquiatria

ou com a institucionalização de velhos; entre instrumentos elétricos de tortura e eletrochoques não costuma haver muita diferença; a institucionalização de velhos pode ser uma

ameaça punitiva contra a sua falta de produtividade. Ainda que sejam as possíveis formas de controle social punitivo (realmente punitivo) com discurso não punitivo (formalmente

não punitivo), cabe ter presente que sempre que o controle social opera por meio de institucionalização de pessoas (manicômios, asilos, orfanatos), se revela uma série

possibilidade de punição real que é necessário investigar.

Nesse sentido Bruna Angotti73, citando Hulsman, explica que:

(...) a punição, na opinião do autor, está enraizada na sociedade ocidental em diferentes instâncias, oficiais ou não. Assim, o castigo verticalmente imposto se manifesta na relação

entre pais e filhos, entre professores e alunos, entre Estado e sociedade, entre chefe e subalterno.

Assim, a enorme extensão e complexidade do fenômeno do

controle social demonstram que uma sociedade é mais ou menos autoritária ou mais

ou menos democrática, conforme a totalidade do controle social, e não somente sua

parte institucionalizada, se oriente em um sentido mais autoritário ou democrático.

2.1.1 Controle social difuso74

2.1.1.1 Religião

A religião faz parte do controle social difuso, pois sempre

exerceu o controle dos comportamentos dos indivíduos, seja através de coerção

moral ou física, ou seja, por meio de códigos morais de conduta que usam como

sanção para o caso de sua violação a ideia de pecado e penas sobrenaturais ou

penas físicas aflitivas aplicadas, nesse caso, pelos próprios membros da

organização religiosa. Assim, para as pessoas que são adeptas de alguma religião -

que possua código moral de condutas e suas respectivas sanções -, ela exerce forte

controle social de suas condutas e ideias, impondo determinados interesses (dos

grupos dominantes), e dessa forma, legitimando-os e reproduzindo-os.

73

ANGOTTI, Bruna. Breves notas sobre o abolicionismo penal. Revista brasileira de ciências

criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. ano 17. nº 80. set.- out. p. 257. 74

Neste subtítulo serão expostas apenas algumas formas de controle social difuso e não todas as possíveis que existem na sociedade contemporânea.

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Assim, para as pessoas que são adeptas de alguma religião -

que possua código moral de condutas e suas respectivas sanções -, ela exerce forte

controle social de suas condutas e ideias, impondo determinados interesses (dos

grupos dominantes), e dessa forma, legitimando-os e reproduzindo-os. Para

Bourdieu, citado por Camila Caldeira Nunes75:

(...) a função política cumprida pelos sistemas religiosos consiste exatamente em conservar a ordem social – isto é,

poder dos dominantes e a domesticação dos dominados – a partir de uma alquimia ideológica pela qual se opera a transfiguração das relações sociais em relações sobrenaturais,

inscritas na natureza das coisas e portanto justificadas.

Os interesses das classes dominantes sempre foram

protegidos, de qualquer ameaça provinda do restante da população, pela religião

através dos seus poderes coercitivos, que, além disso, conseguia que tais interesses

fossem seguidos e defendidos pelos dominados de forma inconsciente ou

despercebida.

A função da religião no controle social tem se modificado com o

tempo. Com o processo de secularização, onde o estado assume uma série de

papéis que antes eram pertencentes à religião. Ele passa agora a ser fator de

agregação social e a religião deixa de ser a responsável pela melhoria das

condições de vida, mas sim o Estado. Do mesmo modo, muitos serviços antes

prestados pela religião, agora são prestados pelo Estado. A sociedade ocidental

partiu de um modelo de cristandade, onde todas as instituições sociais eram cristãs,

para um modelo laical, onde o estado se professa laico e a religião deixa de ser um

fundamento das instituições sociais. Nesse sentido José Jesus Filho76:

Até o final do século XIX o uso da religião teve forte influência punitiva. No mundo anglo-saxônico, apostava-se na tese de que o tempo despendido no exercício laboral e na meditação

religiosa equiparia o infrator com a armadura espiritual, capaz de refletir a mais virulenta das doenças morais. Na virada do século XX, o conhecimento científico deslocou a religião da

condição de paradigma explicador do fenômeno criminoso bem

75

NUNES, Camila Caldeira. Religião e castigo na prisão. Revista de ciências criminais. São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, 2008. ano 16. nº 73. jul.- ago. p. 282. 76

JESUS FILHO, José. Liberdade religiosa e prisão. Revista brasileira de ciências criminais. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. ano 18, nº 82. jan.- fev. p. 365-366.

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57

como fundamento de seu controle. Conseqüente, durante o

século XX, a religião foi vista principalmente como um direito constitucional a ser protegido em vez de uma estratégia formal de controle punitivo.

A religião no mundo ocidental, após o Iluminismo, deixou de

exercer o controle social por meio da ameaça por coerção física, exercendo-a por

coerção moral até o presente. No mundo ocidental ficou reservada ao Estado, por

meio do sistema penal, a ameaça de coerção física no controle social.

2.1.1.2 Mídia

A utilização dos meios de comunicação para a formação da

opinião pública não é uma prática recente. Bem pelo contrário, desde a

institucionalização da imprensa moderna no século XVII, os seus proprietários

perceberam que esta poderia ter um importante papel social como formadora de

opinião pública. Ao longo da segunda metade do século XX, houve um aumento do

número de países que adotaram o regime de democracia formal. Este fato veio

ratificar a importância do papel da mídia e da indústria de entretenimento como

instrumentos de formação de opinião pública e de controle social.

Conforme Zaffaroni e Pierangeli77:

(...) os meios de comunicação social de massa induzem padrões de conduta sem que a população, em geral, perceba

isso como “controle social”, e sim como formas de recreação.

Ao contrário do que ocorre em regimes autoritários, onde a

classe dominante exerce o controle social através da força, em regimes de

democracia formal, este controle é exercido de forma sutil. Hoje, mais que nunca, a

mídia possui um vigoroso impacto sobre o grande público.

Niklas Luhmann78 comentando sobre a seleção que orienta o

sistema dos meios de comunicação, em específico sobre os seletores que atuam

nas notícias, explica que:

77

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. 6

ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. v. I. p. 57.

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58

Também transgressões à norma justificam uma atenção

especial. Isso vale tanto para transgressões do direito, mas acima de tudo para transgressões morais e, ultimamente, transgressões contra o “politicamente correto”. Nas exposições

mediáticas delas, as transgressões das normas assumem com freqüência o caráter de escândalos. Isso reforça a ressonância,

reaviva acena política e evita as manifestações de

compreensão e de desculpa que podem ocorrer em transgressões das normas. No caso de escândalos, a maneira como o próprio escândalo é comentado pode-se tornar ainda

um outro escândalo.

Assim, a mídia, ao transmitir transgressões à norma e

escândalos, produz – mais do que qualquer outro meio – um sentimento geral de

que todos foram atingidos e estão indignados. Isso ocorre devido ao fato de que a

população em geral não possuí conhecimento acerca da normalidade do desvio,

assim quando se noticiam transgressões (transgressões selecionadas como casos

isolados), reforça-se a indignação e por consequencia a própria norma. Conforme

explica Niklas Luhmann79:

(...) isso não ocorre nas formas ostensivas de sermões ou das tentativas de doutrinamento, que hoje despertam antes tendências contrárias à socialização, mas nas inofensivas do

puro noticiário que dá a todos a oportunidade de chegar à conclusão: “Isso não!”

Ainda, as transgressões são selecionadas para o noticiário se

nelas puderem ser misturados julgamentos morais, ou seja, se elas propiciarem que

pessoas sejam valorizadas ou desvalorizadas. Assim, os meios de comunicação têm

importante função na manutenção e reprodução da moral, mas isso não significa

que eles criam bases éticas ou direcionam a moral social no sentido de uma boa

ação, ou seja, apenas o código moral é reproduzido, isto é, a distinção entre a boa e

a má ação. Nesse sentido Niklas Luhmann80:

Os meios de comunicação realizam apenas uma contínua auto-irritação da sociedade, uma reprodução da sensibilidade moral,

tanto no plano individual como no comunicativo. Isso leva, contudo, a um tipo de disembedding da moral, a uma conversa

moralizante que não é preenchida por nenhuma obrigação

78

LUHMANN, Niklas. A realidade dos meios de comunicação. São Paulo: Paulus, 2005. p. 60. 79

LUHMANN, Niklas. A realidade dos meios de comunicação. São Paulo: Paulus, 2005. p. 61. 80

LUHMANN, Niklas. A realidade dos meios de comunicação. São Paulo: Paulus, 2005. p. 63.

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59

controlável. A ideia da moral e de sua renovação contínua

ocorre com o apoio de casos espetaculares – na apresentação dos patifes, vítimas e heróis que realizaram aquilo que estava além do exigível. O receptor não irá se enquadrar tipicamente

em nenhum desses grupos. Ele permanece... observador.

Ao contrário do que ocorre em regimes autoritários, onde a

classe dominante exerce o controle social através da força, em regimes de

democracia formal, este controle é exercido de forma sutil. Hoje, mais que nunca, a

mídia possui um vigoroso impacto sobre o grande público. Nos regimes

democráticos, é fundamental que as pessoas “pensem corretamente” e escolham os

líderes que foram pré-selecionados pelas elites. E para que as pessoas pensem o

que as elites querem, é necessário um sistema de doutrinação sofisticado, que inclui

a mídia e a indústria de entretenimento.

2.1.2 Controle social institucionalizado

2.1.2.1 Sistema escolar81

O sistema escolar é considerado parte integrante do controle

social na forma institucionalizada, pois se considera que ele exerce o primeiro

estágio no aparato de seleção e marginalização na sociedade, cumprindo assim a

mesma função que era atribuída ao sistema penal.

A complementaridade das funções exercidas pelo sistema

escolar e pelo penal responde à exigência de reproduzir e de assegurar as relações

sociais existentes, isto é, de conservar a realidade social. Realidade esta, que se

manifesta com uma desigual distribuição dos recursos e dos benefícios,

correspondente a uma estratificação em cujo fundo a sociedade capitalista

desenvolve zonas consistentes de subdesenvolvimento e de marginalização.

Nesse sentido explica Baratta82 que

O sistema escolar, no conjunto que vai da instrução elementar

à média e à superior, reflete a estrutura vertical da sociedade e contribui para criá-la e para conservá-la, através de

81

Pela sua homogeneidade e nexo funcional com sistema penal, vai-se fazer referência ao sistema escolar nesse subtítulo do controle social institucionalizado. 82

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 172.

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60

mecanismos de seleção, discriminação e marginalização. As

pesquisas na matéria mostram que, nas sociedades capitalistas, mesmo nas mais avançadas, a distribuição das sanções positivas (acesso aos níveis relativamente mais

elevados de instrução) é inversamente proporcional à consistência numérica dos estratos sociais, e que, correspondentemente, as sanções negativas (repetição de

anos, desclassificação, inserção em escolas especiais), aumentam de modo desproporcional quando se desce aos níveis inferiores da escala social, com elevadíssimos

percentuais no caso de jovens de zonas de marginalização social (slums, negros, trabalhadores estrangeiros).

A escola reage, geralmente, às dificuldades de aprendizado por

parte dos alunos provenientes dos estratos inferiores da classe trabalhadora e dos

grupos marginalizados, com sanções negativas e com exclusão em vez de com

particular compreensão e cuidado, como demonstra o fato de que as escolas

especiais tendem a ser as normais instituições escolares para os meninos

provenientes de grupos marginais. Constata-se que, em relação a eles, a escola é

um instrumento de socialização da cultura dominante das camadas médias, que ela

os pune como expressão do sistema de comportamento desviante.

Como explica Baratta83:

(...) a ação discriminante da escola, através dos próprios

órgãos institucionais, é integrada e reforçada pela relação que se estabelece, no seio da comunidade da classe, entre os “maus” escolares e os outros. Intervém, assim, no microcosmo

escolar, aquele mecanismo de ampliação dos efeitos estigmatizantes das sanções institucionais, que se realiza nos outros grupos e na sociedade em geral, com a distância social

e outras reações não-institucionais.

À reação de distância social se agrega, na comunidade escolar

assim como na sociedade em geral, o caráter simbólico da punição. Este produz a

transferência do mal e da culpa sobre uma minoria estigmatizada, e age como fator

de integração da maioria, recompensando os não-estigmatizados e convalidando os

seus modelos de comportamento.

83

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 172.

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61

Interpretam-se aquelas atitudes negativas como mecanismos

de autodefesa, mediante os quais o insucesso dos outros reprime o medo do próprio

insucesso e cria, portanto, um sentimento de satisfação em quem não é atingido

pela sanção negativa. Assim como, na sociedade, a estigmatização do outro com a

pena reprime o medo pela própria diminuição de status, e determina o que se pode

definir uma proibição de coalizão, que tende a romper a solidariedade entre a

sociedade e os punidos, e aquela entre os próprios punidos, os efeitos

discriminatórios e marginalizantes do sistema escolar institucional são consolidados

e ampliados através de mecanismos de interação entre os escolares.

2.1.2.2 Sistema penal

O sistema penal é a parte do controle social institucionalizado

com natureza punitiva e discurso punitivo. Sua atuação ocorre desde o momento em

que se investiga um delito ou um suposto delito até quando se impõe e executa uma

pena, pressupondo a edição da norma penal, que define os crimes, e processual

penal, que define o procedimento, a atuação dos funcionários e as hipóteses e

condições para essa atuação.

Também Andrade afirma que o conceito de sistema penal é

bidimensional, pois inclui normas e saberes (programas de ação ou decisórios), e

por outro lado, ações e decisões, organizado também bidimensionalmente. Isto quer

dizer que ele conterá uma dimensão programadora e uma dimensão operacional. A

primeira define o objeto do controle, ou seja, a conduta delitiva (o que é tido como

crime, na visão tradicional), as regras do jogo para as suas ações e decisões e os

próprios fins perseguidos. A segunda tem por fim realizar o controle do delito com

base naquela programação.

Essa é a definição comum ou geral de sistema penal em um

sentido limitado, onde se insere a atividade do legislador, do público, da polícia, dos

juízes, promotores e agentes da execução penal. Em sentido amplo, no sistema

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penal se incluem ações controladoras e repressoras que aparentemente nada têm a

ver com o sistema penal. Conforme explicam Zaffaroni e Pierangeli84:

Não se pode ignorar que fazem parte do sistema penal – inclusive em sentido limitado – os procedimentos contravencionais de controle de setores marginalizados da

população, as faculdades sancionatórias policiais arbitrárias, as penas sem processo, as execuções sem processos etc. Já em um sentido mais amplo, podem ter conteúdo sancionatório

ações que se encobrem em discursos de tipo terapêutico ou assistencial, como os que se encobrem sob a ideologia psiquiátrica ou a institucionalização de velhos. A

institucionalização do paciente psiquiátrico pode responder ao fato de que reage contra normas de maneira que subverte a lógica de produtividade e consumo dominantes; a

institucionalização de velhos pode ser a sanção por sua falta de produtividade e de docilidade aos padrões aos padrões de consumo veiculados em meios de comunicação em massa.

O sistema penal é composto pelo aparato total de normas,

instituições, saberes, ações e decisões, direta ou indiretamente, relacionadas ao

fenômeno criminal, ou seja, o legislativo (que se ocupa da edição das normas), o

executivo (polícia e sistema penitenciário que executam as normas e decisões

judiciais), o Poder Judiciário e o Ministério Público, além do público que com a

delação põe em funcionamento o sistema penal. Conforme Zaffaroni e Pierangeli85:

Os segmentos básicos dos sistemas penais atuais são o policial, o judicial e o executivo. Trata-se de três grupos humanos que convergem na atividade institucionalizada do

sistema e que não atuam estritamente por etapas, posto que têm um predomínio determinado em cada uma das etapas cronológicas do sistema, podendo seguir atuando ou

interferindo nas restantes. Assim, o judicial pode controlar a execução, o executivo ter a seu cargo a custódia do preso durante o processo, o policial ocupar-se das transferências de

presos condenados ou de informar acerca da conduta do liberado condicional.

Os segmentos básicos ou estáveis do sistema penal (policial,

judicial e executivo), são compostos por grupos humanos estratificados, em que se

podem distinguir subgrupos que são provenientes de classes sociais diferentes e às

84

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. 6

ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. v. I. p. 64. 85

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. 6

ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. v. I. p. 64-65.

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63

vezes com estratificações sociais instransponíveis. Vários desses subgrupos são

formados por pessoas provenientes dos setores sociais sobre quem recai, de

maneira amplamente dominante, a criminalização, enquanto outros se nutrem de

setores médios e médios altos. Este é um dos aspectos mais importantes para

compreender o mecanismo operacional geral do sistema.

O sistema penal possuí discursos tradicionais (jurídicos,

criminológico, policial, penitenciário, judicial e político) legitimadores que proclamam

o fim e a função preventiva do sistema penal, ou seja, o sistema penal teria uma

função preventiva especial e geral, isto é, de ressocialização do condenado e

dissuasão aos demais indivíduos na prática de alguma conduta criminosa. Essas

seriam as funções declaradas do sistema penal.

Quanto à função ressocializadora, ficou demonstrado que o

sistema penal acaba exercendo função inversa, pois em vez de prevenir futuras

condutas criminosas, acaba sendo fator condicionante a prática de tais condutas, ou

seja, promove condições para a criação de carreiras criminosas.

Demonstrou-se que o sistema penal, em grande parte,

seleciona pessoas ou ações, e que criminaliza certas pessoas conforme sua classe

e posição social. Nesse sentido Zaffaroni e Pierangeli86:

Há uma clara demonstração de que não somos todos

igualmente “vulneráveis” ao sistema penal, que costuma orientar-se por “estereótipos” que recolhem os caracteres dos setores marginalizados e humildes, que a criminalização gera

fenômeno de rejeição do etiquetado como também daquele que se solidariza ou contata com ele, de forma que a segregação se mantém na sociedade livre. A posterior

perseguição por parte das autoridades com rol de suspeitos permanentes, incrementa a estigmatização social do

criminalizado.

O sistema penal realiza, essencialmente, a função de

reprodução das relações sociais e de manutenção da estrutura vertical da

sociedade, criando assim, eficazes contra-estímulos à integração dos setores mais

86

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. 6

ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. v. I. p. 67.

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64

baixos e marginalizados do proletariado ou colocando diretamente em ação

processos marginalizadores.

Dessa forma, o sistema penal cumpre a função social de

selecionar, de maneira mais ou menos arbitrária, pessoas dos setores mais

humildes, criminalizando-as, para indicar aos demais os limites do espaço social; e

também a função de sustentar a hegemonia de um setor social sobre outro. Para

Zaffaroni e Pierangeli87:

É indiscutível que em toda sociedade existe uma estrutura de

poder e segmentos ou setores mais próximos – ou hegemônicos – e outros mais alijados – marginalizados – do poder. Obviamente, esta natureza tende a sustentar-se através

do controle social e de sua parte punitiva, denominada sistema penal. Uma das formas mais violentas de sustentação é o sistema penal, na conformidade da comprovação dos

resultados que este produz sobre as pessoas que sofrem os seus efeitos e sobre aquelas que participam nos seus segmentos estáveis. Em parte, o sistema penal cumpre esta função, fazendo-o mediante a criminalização seletiva dos marginalizados, para conter os demais. E também em parte,

quando os outros meios de controle social fracassam, o sistema não tem dúvida em criminalizar pessoas dos próprios setores hegemônicos, para que estes sejam mantidos e

reafirmados no seu rol, e não desenvolvam condutas

prejudiciais à hegemonia dos grupos a que pertencem (...)

Também, em parte, a criminalização de marginalizados ou

contestadores não tem por objetivo nenhuma função em relação aos grupos a que

pertencem, mas apenas como forma de proporcionar uma sensação de tranqüilidade

aos setores hegemônicos, que podem sentir-se inseguros por qualquer motivo (regra

geral, por causa da manipulação da mídia). Ou seja, o sistema penal acha-se

intimamente vinculado a estrutura de poder.

Como se vê, todo o sistema penal tende a intervir como

subsistema específico no universo dos processos de socialização e educação, que o

Estado e outros aparelhos ideológicos institucionalizam em uma rede cada vez mais

fina, que tem a função de atribuir a cada uma dos modelos de comportamento e os

87

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. 6

ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. v. I. p. 70.

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65

conhecimentos relativos aos diversos status sociais, e com isso, de distribuir os

status mesmos. Como explica Baratta88:

Este fenômeno é complementar àquele pelo qual o sistema de controle social, nas sociedades pós-industriais, tende a deslocar o seu campo de gravitação, das técnicas repressivas

para as não-repressivas da socialização, da propaganda, da assistência social. O direito penal tende, assim, a ser reabsorvido neste processo difuso de controle social, que

poupa o corpo para agir diretamente sobre a alma, melhor, que “cria” a alma, como mostrou recentemente Foucault, descrevendo uma evolução que começou a 200 anos, com o

início do sistema carcerário.

Em outras palavras, na estratégia de controle social, o

momento penal, sobretudo a prisão, tende a cada vez mais a ser secundário, mas

isso não significa uma diminuição absoluta do peso do controle penal em relação à

situações precedentes, pois na maior parte dos casos, o peso absoluto do sistema

penal aumenta. É uma diminuição de forma relativa em relação a outras formas

jurídicas não-penais (administrativas: ex. a assistência social, considerada na sua

função de controle) ou não-jurídicas de controle social (ex. organização científica do

trabalho, na propaganda, na mídia, enfim, em todos os mecanismos que têm a

função de regulamentar e de condicionar não só os comportamentos e as atitudes,

mas também, as idéias nas sociedades industriais avançadas).

Outras formas de controle, ligadas, mais às técnicas de

assistência, de socialização, de intervenção sobre matrizes comportamentais, ao

uso dos meios de informação etc., do que as instituições penais, integram esta

estratégia global.

88

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 170.

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66

CAPÍTULO 3

A OPERACIONALIDADE SELETIVA DO SISTEMA PENAL

3.1 A DUPLA SELEÇÃO DO SISTEMA PENAL

Conforme estudo dos capítulos anteriores, o sistema penal

como forma de controle social opera de modo desigual. Esse instrumento revela

uma contradição fundamental entre igualdade formal dos sujeitos de direito e

desigualdade substancial dos indivíduos, que, nesse caso, se manifesta em relação

às chances de serem definidos e controlados como desviantes. Isso ocorre mediante

uma dupla seleção.

Primeiramente, na seleção dos bens jurídicos penalmente

protegidos e dos comportamentos ofensivos a esses bens, descritos nos tipos

penais (denominada criminalização primária). Depois, na seleção dos indivíduos

criminalizados entre todos aqueles que praticaram tais comportamentos

(denominada criminalização secundária). Essas duas formas de criminalização serão

a seguir aprofundadas.

Com a análise profunda do sistema penal, como sistema de

direito desigual, revela-se o nexo funcional entre os mecanismos seletivos do

processo de criminalização com a lei de desenvolvimento da formação econômica e

com as condições estruturais presentes em nossa sociedade.

3.1.1 A criminalização primária

A criminalização primária ocorre através do processo de edição

de leis penais (atividade normativa, atuação do legislador) que define bens jurídicos

protegidos, as condutas tipificadas como crimes e a qualidade e quantidade da

pena, obedecendo a uma primeira lógica da desigualdade, estabelece uma prévia

seleção dos indivíduos criminalizáveis. Essa lógica opera com a determinação dos

conteúdos e dos não-conteúdos da lei penal.

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67

Como explica Andrade89:

Quanto aos “conteúdos” do Direito Penal abstrato, esta lógica se revela no direcionamento predominante da criminalização

primária para atingir as formas de desvio típicas das classes e grupos socialmente mais débeis e marginalizados. Enquanto é dada a máxima ênfase à criminalização das condutas

contrárias às relações de produção (crimes contra o patrimônio individual) e políticas (crime contra o Estado) dominantes e a elas dirigida mais intensamente à ameaça penal; a

criminalização de condutas contrárias a bens e valores gerais como a vida, a saúde, a liberdade pessoal e outros tantos não guarda a mesma ênfase e intensidade da ameaça penal

dirigida à criminalidade patrimonial e política.

Quanto aos não-conteúdos, que a dogmática penal tradicional

justifica com natureza fragmentária do Direito Penal (proteção apenas de bens

considerados relevantes por natureza ou pela idoneidade técnica de certas matérias

em relação a outras), ocorre a preservação desse processo de criminalização

primária – seja pela omissão do legislador, seja pela tipificação simbólica – as

condutas desviantes típicas das classes sociais hegemônicas (detentoras do poder

econômico e político) ou que são funcionais às exigências do processo de

acumulação de capital, mesmo elas possuindo gravidade superior aos chamados

delitos tradicionais. Assim, zonas de imunização são criadas em relação essas

condutas que geram efeitos danosos às classes subalternas.

Mas, além das matérias que são ou não objeto de

normatização pelo Direito Penal, os conteúdo e não-conteúdos da lei penal, Baratta

explica que90:

(...) a seleção criminalizadora ocorre já mediante a diversa formulação técnica dos tipos penais e a espécie de conexão

que eles determinam com o mecanismo das agravantes e das atenuantes (é difícil, como se sabe, que se realize um furto não “agravado”). As malhas dos tipos são, em geral, mais sutis do

que no caso dos delitos próprios das classes sociais mais baixas do que no caso dos delitos de “colarinho branco”. Estes delitos, também do ponto de vista da previsão abstrata, têm

uma maior possibilidade de permanecerem imunes.

89

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à

violência do controle penal. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 279. 90

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 176.

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68

Ou seja, essa seleção criminalizadora não ocorre somente com

a escolha dos comportamentos descritos na lei penal e com a diversidade da

intensidade da pena, mas já no momento da formulação técnica dos tipos penais,

que quando se dirigem a comportamentos típicos dos indivíduos pertencentes das

classes inferiores e que são confrontantes com as relações de produção e

distribuição capitalistas, eles formam uma rede muita fina. Enquanto a rede é

ordinariamente muito larga quando os tipos penais têm por objeto a criminalidade

econômica e outras formas de criminalidade típicas dos indivíduos pertencentes às

classes no poder.

Nesse sentido, Baratta91 comentando a atual política criminal,

explica que existem:

(...) importantes zonas de nocividade social ainda amplamente

deixadas imunes do processo de criminalização e de efetiva penalização (pense-se na criminalidade econômica, na poluição ambiental, na criminalidade política dos detentores do

poder, na máfia etc.), mas socialmente muito mais danosas, em muitos casos, do que o desvio criminalizado e perseguido92. Realmente, as classes subalternas são aquelas selecionadas

negativamente pelos mecanismos de criminalização.

O sistema das imunidades e da criminalização seletiva incide

em medida correspondente sobre o estado das relações de poder entre as classes,

de modo a oferecer um salvo-conduto mais ou menos amplo para as práticas ilícitas

das classes dominantes no ataque aos interesses e aos direitos das classes

subalternas.

91

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 198. 92

Vale lembrar que o custo econômico da criminalidade de colarinho branco ou de empresa é consideravelmente mais elevado do que o da delinquência comum e dos crimes violentos. Em 1996, o valor monetário das falsificações foi estimado em 25 bilhões de francos franceses, ao passo que a fraude nas contribuições sociais chegava a 17 bilhões, contra 250 milhões para os furtos em lojas, 4 bilhões para os furtos de veículos e 11 bilhões para os homicídios. Naquele ano, a fraude fiscal e aduaneira montou a 100 bilhões de francos e o custo dos acidentes de tráfego ultrapassou os 39 bilhões. Desse ponto de vista, a prioridade do Estado deveria antes recair no respeito aos códigos tributários e de trânsito. Mas atacar esses dois desvios de massa implicaria reconhecer que a delinqüência diz respeito ao cidadão comum e impediria que a ação repressiva fosse dirigida contra as categorias “bodes-expiatórios”. In WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria

nos Estados Unidos (A onda punitiva). 3 ed., rev. e ampl. Rio de Janeiro: Revan: 2007. p. 465.

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69

3.1.2 A Criminalização secundária

A criminalização secundária opera no sentido de que a lei não

pode assegurar por completo e com toda clareza sua própria aplicação, dando

margem à incidência de regras, princípios e atitudes subjetivas do intérprete quando

então, e somente então, adquire seus precisos contornos. Ou seja, a definição de

conduta desviada não se resolve definitivamente no momento normativo e nem a

aplicação das definições ao caso concreto é um problema de subsunção. Nesse

sentido Andrade93:

(...) a lei penal configura tão-só um marco abstrato de decisão, no qual os agentes do controle social formal desfrutam ampla

margem de discricionariedade na seleção que efetuam, desenvolvendo uma atividade criadora proporcionada pelo caráter “definitorial” da criminalidade. Nada mais errôneo que

supor (como faz a Dogmática Penal) que, detectando um comportamento delitivo, seu autor resultará automática e inevitavelmente etiquetado. Pois, entre a seleção abstrata,

potencial e provisória operada pela lei penal e a seleção efetiva e definitiva operada pelas instâncias de criminalização secundária, medeia um complexo e dinâmico processo de

refração.

Assim, a polícia, o ministério público e o juízes (operadores da

criminalização secundária), que devem agir conforme determina a lei nas suas

respectivas tarefas (investigação, acusação e sentenciamento), operam com ela de

um modo dispositivo, pois não observam (e nem podem observar) as definições

legais de crime independentemente deles, mas desde suas particulares concepções

acerca da fronteira entre a conduta criminosa e não-criminosa.

Como cita Baratta94:

Os processos de criminalização secundária acentuam o caráter seletivo do sistema penal abstrato. Têm sido estudados os

preconceitos e os estereótipos que guiam a ação tanto dos órgãos investigadores como dos órgãos judicantes, e que os levam, portanto, assim ocorre no caso do professor dos erros

nas tarefas escolares, a procurar a verdadeira criminalidade

93

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à

violência do controle penal. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 260. 94

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 176-177.

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70

principalmente naqueles estratos sociais dos quais é normal

esperá-la.

Os estudos acerca dos fenômenos da criminalidade de

colarinho branco e da cifra negra da criminalidade trouxeram a lume a defasagem

que existe entre a criminalidade real (as condutas criminalizáveis efetivamente

praticadas) e a criminalidade estatística (oficialmente). Com essas revelações, estes

estudos desqualificaram as estatísticas oficiais na quantificação da criminalidade

real, mas foram usadas nos estudos acerca do fenômeno da criminalização efetuado

pelas agências penais do controle social. Como explica Andrade95:

Reapropriadas doravante como informativas dos resultados da criminalização, as estatísticas criminais possibilitaram também a conclusão de que a cifra negra varia em razão da classe de

estatística (policial, judicial ou penitenciária): nem todo delito cometido é perseguido; nem todo delito perseguido é registrado; nem todo delito registrado é averiguado pela polícia;

nem todo delito averiguado é denunciado; nem toda denúncia é recebida; nem todo recebimento termina em condenação.

Os delitos não perseguidos, que não chegando ao

conhecimento da polícia (pois não são praticados nos locais por onde ela realiza

suas operações rotineiras, ou seja, não tem visibilidade), nem chegam a nascer

como fato estatístico, constituem a denominada criminalidade oculta, latente ou não-

oficial.

Mesmo no caso dos delitos que chegam ao conhecimento da

polícia, eles não são objetos de denúncia, julgamento e condenação, pois a

passagem do crime de instância em instância (polícia, MP, judiciário, execução

penal), resultada em cifras negras, isto é, o processo de criminalização em todas as

suas fases é criador de cifra negras. Nesse sentido Andrade96:

Visível se torna, nesta perspectiva, como a criminalidade estatística não é, em absoluto, um retrato da criminalidade real,

mas o resultado de um complexo processo de refração existindo entre ambas um profundo defasamento não apenas quantitativo, mas também aqui qualitativo. Pois o “efeito-de-

95

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à

violência do controle penal. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 262. 96

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à

violência do controle penal. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 263.

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71

funil ou a “mortalidade de casos criminais” operada ao longo do

corredor da delinqüência, isto é, no interior do sistema penal, resulta da ampla margem de discricionariedade seletiva dos agentes do controle.

Como resultado dessa desqualificação das estatísticas

criminais, operou-se a correção do conceito comum de criminalidade, como conduta

de uma minoria da população socialmente perigosa, pouco representada nos

estratos superiores e concentradas nos inferiores, para um fenômeno que ocorre em

todas as classes sociais, praticado pela maioria dos indivíduos e não resulta de

fatores patológicos. E assim, o que opera como fator determinante é o processo de

criminalização.

Assim Andrade97:

A correção fundamental desta estatística e explicação

etiológica da criminalidade é a de que a criminalidade, além de ser uma conduta majoritária, é ubíqua, ou seja, presente em todos os estratos sociais. O que ocorre é que a criminalização

é, com regularidade, desigual ou seletivamente distribuída pelo sistema penal. Desta forma, os pobres não têm uma maior tendência a delinqüir, mas sim a serem criminalizadas. De

modo que à minoria criminal da Criminologia positivista opõe-se a equação maioria criminal x minoria pobre regularmente criminalizada.

Assim, se a conduta criminal é majoritária e ubíqua, e a

clientela do sistema penal é composta regularmente em todos os lugares do mundo

por pessoas pertencentes aos baixos estratos sociais, isto indica que há um

processo de seleção de pessoas às quais se qualifica como delinqüentes e não,

como se pretende, um mero processo de seleção de condutas qualificadas como

tais.

Desta forma, a minoria criminal a que se refere à explicação

etiológica da criminalidade e a ideologia da defesa social, é o resultado de um

processo de criminalização altamente seletivo e desigual de indivíduos dentro total

dos que praticam condutas delitivas, não sendo a conduta criminal, por si só,

condição suficiente deste processo.

97

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à

violência do controle penal. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 265.

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Isso demonstra que as variáveis (status social, etnia, cor,

condição familiar, etc.) relativas à pessoa do autor e da vítima condicionam e

influenciam a seletividade das atividades das agências do sistema penal. Ou seja, os

estereótipos de criminosos, associados geralmente a atributos pertencentes a

pessoas dos baixos estratos sociais, torna-os extremamente vulneráveis, além de

outros fatores concorrentes, a uma maior criminalização.

Conforme Baratta98:

As maiores chances de ser selecionado para fazer parte da

“população criminosa” aparecem, de fato, concentradas nos níveis mais baixos da escala social (subproletariado e grupos marginais). A posição precária no mercado de trabalho

(desocupados, subocupação, falta de qualificação profissional) e defeitos de socialização familiar e escolar, que são características dos indivíduos pertencentes aos níveis mais

baixos, e que na criminologia positivista e em boa parte da criminologia liberal contemporânea são indicados como as

causas da criminalidade, revelam ser, antes, conotações sobre a base das quais o status de criminoso é atribuído.

Tal distribuição desigual, em desvantagem dos indivíduos

socialmente mais vulneráveis, isto é, que têm uma relação subprivilegiada ou

precária com o mundo do trabalho e da população, ocorre segundo leis de um

código social (second code ou basic rules) que regula a aplicação das normas

abstratas por parte das instâncias oficiais do sistema penal. A hipótese da existência

deste second code significa a refutação do caráter fortuito da desigual distribuição

das definições criminais.

Como explica Andrade99:

Foi assim que a descoberta deste código social extralegal conduziu a uma explicação da regularidade da seleção (e das cifras negras) superadora da etiológica: da tendência a

delinquir às maiores “chances” (tendência) de ser criminalizado.

98

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 165. 99

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à

violência do controle penal. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 270.

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Ou seja, a clientela do sistema penal é constituída de pobres,

não porque tenham uma tendência para delinqüir, mas precisamente porque têm

maiores chances de serem criminalizados e etiquetados como delinquentes, sendo

essas chances desigualmente distribuídas.

3.2 A PRISÃO: INSTRUMENTO CENTRAL DE CONTROLE SOCIAL

Há décadas, uma amplíssima literatura100 baseada sobre a

observação empírica tem analisado a realidade carcerária nos seus aspectos

psicológicos, sociológicos e organizacionais. Estas investigações revelaram como a

população carcerária dos modernos estabelecimentos penitenciários, dominadas por

variados fatores, têm tornado inútil toda tentativa de realizar os objetivos de

ressocialização e de reinserção através destas instituições de privação da liberdade

dos condenados.

Mesmo as introduções de modernas técnicas psicoterapêuticas

de tratamento, educativas e algumas mudanças na estrutura organizacional da

prisão, não alteraram, de forma profunda, a natureza e as reais funções que a prisão

exerce na nossa sociedade. Essas funções constituem o momento final e decisivo

daqueles mecanismos de marginalização que produz a população criminosa, e a

administra em nível institucional, a fim de torna – lá e adapta - lá a funções próprias

que qualificam esta zona de marginalização.

Sobre os resultados contraditórios do modelo penitenciário na

sociedade capitalista contemporânea, Baratta explica101:

As características deste modelo, do ponto de vista que mais nos interessa, podem ser resumidas no fato de que os institutos de detenção produzem efeitos contrários à

reeducação e à reinserção do condenado, e favoráveis à sua estável inserção na população criminosa. O cárcere é contrário a todo moderno ideal educativo, porque este promove a

individualidade, o auto-respeito do indivíduo, alimentado pelo respeito que o educador tem dele. As cerimônias de

100

Por exemplo: WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos (A onda punitiva). 3 ed., rev. e ampl. Rio de Janeiro: Revan: 2007. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história de violência nas prisões. Petrópolis/RJ: Vozes, 1989. 101

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 183-184.

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degradação no início de detenção, com as quais o encarcerado

é despojado até dos símbolos exteriores da própria autonomia (vestuários e objetos pessoais), são o oposto de tudo isso. A educação promove o sentimento de liberdade e de

espontaneidade do indivíduo: a vida no cárcere, como universo disciplinar, tem um caráter repressivo e uniformizante.

Vários estudos102 têm demonstrado que o regime de privação

da liberdade produz efeitos negativos sobre a personalidade do condenado,

principalmente os de longa duração, o que anula qualquer possibilidade de

transformar um condenado anti-social violento em um indivíduo adaptável e da pena

realizar seus fins educativos. Efeitos negativos e contrários aos fins da pena,

também são produzidos pelos regimes de privações das necessidades,

principalmente heterossexuais, em razão da forma como são distribuídos os meios

de satisfação dessas necessidades: de acordo com as relações informais de poder e

de prepotência que a caracterizam.

Ainda ao ser submetido ao regime carcerário, o preso também

sofre um processo de socialização negativa, em que: há desadaptação às condições

necessárias para a vida em liberdade (diminuição da força de vontade, perda do

senso de auto-responsabilidade do ponto de vista econômico e social), redução do

senso de realidade do senso do mundo externo e a formação de uma imagem

ilusória deste, o distanciamento progressivo dos valores e dos comportamentos

próprios da sociedade externa; e ao mesmo tempo, uma interiorização das atitudes,

dos modelos de comportamentos e dos valores característicos comunidade

carcerária. Enfim, essa dupla ordem de fatores, resultantes do efeito negativo do

aprisionamento, impede qualquer tipo de reinserção do condenado.

Além desses limites e dos processos contrários à

ressocialização e reeducação, que são singulares à prisão, devem ser destacados

duas ordens de fatores que mostram a natureza extremamente contraditória da

ideologia penal da reinserção. Conforme explica Baratta103:

102

Por exemplo: WOLFF, Maria Palma. Antologia de vidas e histórias na prisão: emergência e

injunção de controle social. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005. 103

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 186.

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Estas considerações se referem à relação é uma relação entre

cárcere e sociedade. Antes de tudo, esta relação é uma relação entre quem exclui (sociedade) e quem é excluído (preso). Toda técnica pedagógica de reinserção do detido

choca contra a natureza mesma desta relação de exclusão. Não se pode, ao mesmo tempo, excluir e incluir. Em segundo lugar, o cárcere reflete, sobretudo nas características

negativas, a sociedade. As relações sociais e de poder da subcultura carcerária têm uma série de características que a distinguem da sociedade externa, e que dependem da

particular função do universo carcerário, mas na sua estrutura mais elementar elas não são mais do que a ampliação, em forma menos mistificada e mais “pura”, das características

típicas da sociedade capitalista: são relações sociais baseadas no egoísmo e na violência ilegal, no interior das quais os indivíduos socialmente mais débeis são constrangidos a papéis

de submissão e de exploração.

Ou seja, existe uma contradição fundamental em querer

reinserir o indivíduo excluído, através da sua modificação, em uma sociedade

excludente, sem modifica – lá, atingindo o mecanismo de exclusão. Ainda o cuidado

que a sociedade punitiva efetua sobre o condenado depois do término da reclusão,

continuando a segui – lo de inúmeras formas visíveis e invisíveis, demonstra o

interesse de perpetuar, com a assistência, aquele estigma que a pena tornou

definitivo no indivíduo.

Nas palavras de Baratta104:

A hipótese de Foucault, da ampliação do universo carcerário à

assistência antes e depois da detenção, de modo que este universo esteja constantemente sob foco de uma sempre mais científica observação, que se torna, por seu turno, um

instrumento de controle e de observação de toda a sociedade, parece, na realidade, muito próxima da linha de desenvolvimento que o sistema penal tomou na sociedade

contemporânea. Este novo “panoption” tem sempre menos necessidade do sinal visível (os muros) da separação para assegurar-se o perfeito controle e a perfeita gestão desta zona

particular de marginalização, que é a população criminosa.

Para Focault105, o sistema punitivo tem uma função direita e

indireta. A função indireta é a de golpear uma ilegalidade visível para encobrir uma

104

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 187.

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oculta; a função direta é a de alimentar uma zona de marginalizados criminais,

inseridos em um verdadeiro e próprio mecanismo econômico (“indústria” do crime) e

político (utilização de criminosos com fins subversivos e repressivos).

Se analisarmos como a repressão, concentrada principalmente

sobre determinados tipos de delitos, cobre uma mais ampla área de ilegalidade na

nossa sociedade, e no papel econômico e político de grandes organizações

criminosas (ciclo econômico da droga, jogos ilegais, máfias econômicas), toma-se

consciência do valor daquele discurso106.

Dessa forma, constata-se a função da prisão na produção de

indivíduos desiguais, pois atualmente, ela produz, através da seleção das zonas

mais miseráveis da sociedade, um setor de marginalizados sociais destinados para

intervenção estigmatizante do sistema punitivo estatal e para a realização daqueles

processos que, ao nível da interação social e da opinião pública, são ativados pela

pena, e contribuem para realizar o seu efeito marginalizador e atomizante. Nesse

sentido Baratta107:

Esse setor qualificado do “exército industrial de reserva” cumpre não só funções específicas dentro da dinâmica do mercado de trabalho (pense-se na superexploração dos ex-

condenados e no correspondente efeito de concorrência em relação aos outros trabalhadores), mas também fora daquela dinâmica: pense-se no emprego da população criminal nos

mecanismos de circulação ilegal do capital (...)

A prisão vem a fazer parte de um processo que compreende

família, escola, assistência social, cultura, trabalho, universidade, pois o tratamento

penitenciário e assistência pós-penitenciária se dirigem a recuperar atrasos de

socialização que prejudicam indivíduos marginalizados, ou seja, são espec ializadas

105

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: história de violência nas prisões. Petrópolis/RJ: Vozes, 1989.

3ª parte, Cap. III. 106

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 190. 107

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2002. p. 167.

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para a integração de uma minoria de sujeitos desviantes. No mesmo sentido

Baratta108:

O cárcere representa, em suma, a ponta do iceberg que é o sistema penal burguês, o momento culminante de um processo de seleção que começa ainda antes da intervenção do sistema

penal, com a discriminação social e escolar, com a intervenção dos institutos de controle do desvio de menores, da assistência social etc. O cárcere representa, geralmente, a consolidação

definitiva de uma carreira criminosa.

Com isto, a pena antes de ser vista exclusivamente como um

fato jurídico, deve ser entendida como uma relação de poder e como um fato

político, pois recuperar, reeducar, são fins da pena que foram inventados pela

necessidade de legitimar o exercício de poder verticalmente estruturado da

sociedade.

Nas palavras de Andrade109:

Enquanto a função de proteção de bens jurídicos universais atribuída ao Direito Penal revela-se como proteção seletiva da bens jurídicos; a pretensão de que a pena possa cumprir uma

função instrumental de efetivo controle (e redução) da criminalidade e de defesa social na qual se baseiam as teorias da pena deve, através de pesquisas empíricas nas quais a

reincidência é uma constante, considerar-se como promessas falsificadas ou, na melhor das hipóteses, não verificadas nem verificáveis empiricamente.

Nesse sentido, está demonstrado que a intervenção penal

estigmatizante, como a prisão, ao invés de reduzir a criminalidade ressocializando o

condenado produz efeitos contrários a ela, ou seja, produz a consolidação de

verdadeiras carreiras criminosas (desvio secundário). A prisão não pode reduzir a

criminalidade porque sua função real é fabricar a criminalidade e condicionar a

reincidência110.

108

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 167. 109

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à

violência do controle penal. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 291. 110

Uma recente pesquisa constatou que 52% dos presos na França cometem um (ou mais) infrações nos cinco anos que se seguem à sua soltura, e que a probabilidade de recaída varia muito fortemente na razão inversa da gravidade do delito inicial: ela varia de 23% para os delitos sexuais contra

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Em suma, como explica Andrade111:

Se as funções declaradas da pena se resumem numa dupla meta, a repressão da criminalidade e o controle (e redução do

crime); as funções reais da prisão aparecem em uma dupla reprodução: reprodução da criminalidade (recortando formas de criminalidade das classes dominadas e excluindo a

criminalidade das classes dominantes) e reprodução das relações sociais.

Assim, o fracasso das funções declaradas da pena, abriga a

história de um sucesso correlato, correspondente ao fato de que as funções reais da

prisão, opostas às declaradas, explicam sua sobrevivência e permitem compreender

o insucesso que acompanha todas as tentativas reformistas de fazer do cárcere uma

instituição da reinserção social.

crianças e 28% para os homicídios dolosos, a 56% para a venda de drogas, 59% para a sua simples posse e 75% para os furtos. E, no entanto nada de concreto é feito para interromper efetivamente o circuito crime-prisão-crime, a não ser o agravamento das penas para os reincidentes, muito embora se saiba que o efeito exemplar do encarceramento é praticamente nulo para os delitos menores. In WACQUANT, Loïc. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos (A onda

punitiva). 3 ed., rev. e ampl. Rio de Janeiro: Revan: 2007. p. 462. 111

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à

violência do controle penal. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 291.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mesmo que um dos princípios que orienta a ideologia penal

dominante seja a igualdade das pessoas e bens jurídicos protegidos, é manifesta a

desigualdade que ocorre no processo de criminalização, onde a definição de

condutas e pessoas e a imposição da pena se operam seletivamente em

conformidade com a classe e aos grupos sociais que pertencem os indivíduos.

Tal seletividade operacional do sistema penal reflete a

estrutura estratificada da sociedade, baseada na divisão de classes, em que os

interesses dominantes direcionam a atuação do Estado, nesse caso, suas agências

oficiais (legislativo, executivo e judiciário). Disso resulta um processo de

criminalização marginalizador, que produz e reproduz as desigualdades sociais,

principalmente por meio dos efeitos criminógenos da prisão. O que ocorre assim, é

uma atuação do sistema penal direcionada para as classes pobres, sua clientela,

condicionada por estereótipos, gerando a concepção, amplamente difundida, de que

a criminalidade pertence a tais classes. Dessa forma, se mantêm tudo no seu lugar,

ricos imunizados do processo de criminalização e pobres na cadeia.

Quanto à primeira hipótese, restou confirmada, pois o sistema

penal, na atuação legislativa, não defende todos os bens considerados essenciais,

mas também vários bens que são de interesse de apenas uma parte da sociedade

(classe dominante), ou seja, há uma seleção dos bens que vão ser protegidos

conforme os interesses das classes no poder, que logicamente não vão direcionar a

atuação do sistema penal contra eles e, sim, contra as classes vulneráveis. Neste

contexto, operacionaliza-se a criminalização de condutas prejudiciais aos interesses

das pessoas detém o poder econômico e político, e uma imunização das condutas,

que mesmo ilegais, são essenciais para manutenção desses poderes.

Além, dessa seleção dos bens a ser protegidos, essa seleção

criminalizadora não ocorre somente com a escolha dos comportamentos descritos

na lei penal e com a diversidade da intensidade da pena, mas já no momento da

formulação técnica dos tipos penais, que quando se dirigem a comportamentos

típicos dos indivíduos pertencentes das classes inferiores e que são confrontantes

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com as relações de produção e distribuição capitalistas, eles formam uma rede

muita fina. Enquanto a rede é ordinariamente muito larga quando os tipos penais

têm por objeto a criminalidade econômica e outras formas de criminalidade típicas

dos indivíduos pertencentes às classes no poder. Ou seja, estabelece-se uma prévia

seleção dos indivíduos criminalizáveis (criminalização primária).

Quanto à segunda hipótese, também restou confirmada,

sobretudo em virtude do processo de criminalização secundária a que são

submetidos os indivíduos que são selecionados pelas agências oficiais responsáveis

pela investigação, acusação e julgamento. Elas não observam (e nem poderiam

observar) as definições legais de crime independentemente deles, mas desde suas

particulares concepções acerca da fronteira entre a conduta criminosa e não-

criminosa. São os preconceitos e os estereótipos que guiam a ação, tanto dos

órgãos investigadores como dos órgãos judicantes, e que os levam, portanto, a

procurar a verdadeira criminalidade, principalmente naqueles estratos sociais dos

quais é normal esperá-la: nas classes marginalizadas.

O que faz assim, o indivíduo sofrer o processo de

criminalização, não é a sua conduta criminosa, mas sim a classe social a que

pertence, ou seja, a clientela do sistema penal é constituída de pobres, não porque

tenham uma tendência para delinquir, mas precisamente porque têm maiores

chances de serem criminalizados e etiquetados como delinquentes, sendo essas

chances desigualmente distribuídas.

Isso demonstra que as variáveis (status social, etnia, cor,

condição familiar, etc.) relativas à pessoa do autor e da vítima condicionam e

influênciam a seletividade das atividades das agências do sistema penal. Assim, os

estereótipos de criminosos, associados geralmente a atributos pertencentes a

pessoas dos baixos estratos sociais, torna-os extremamente vulneráveis, além de

outros fatores concorrentes, a uma maior criminalização.

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REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS

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