394

A informacao - Uma historia, uma teoria, uma enxurrada - James Gleick.pdf

Embed Size (px)

Citation preview

  • Para Cynthia

  • Seja como for, aquelas passagens, as antigas, no informavam o destino, e muito menos o ponto departida. Ele no conseguia se lembrar de ter visto nelas nenhum tipo de data, e certamente no era feitanenhuma meno ao horrio. Tudo era diferente agora, claro. Todas aquelas informaes. Archie seperguntou qual seria a razo daquilo.

    Zadie Smith

    O que chamamos de passado construdo sobre bits.

    John Archibald Wheeler

  • PrlogoO problema fundamental da comunicao reproduzir num determinado ponto, seja exata, seja

    aproximadamente, uma mensagem selecionada num outro ponto. As mensagens costumam ter um significado.

    Claude Shannon, 1948

    Depois de 1948, que foi o ano crucial, as pessoas imaginaram ser capazes de apontar um

    propsito claro a inspirar a obra de Claude Shannon, mas esse um olhar contaminado pordesdobramentos posteriores. A viso dele era bem outra: Minha mente vaga por a, e penso emcoisas diferentes dia e noite. Como um autor de fico cientfica, ponho-me a pensar: E se ascoisas fossem assim?.1

    Por acaso, 1948 foi o ano em que os Laboratrios Telefnicos da Bell anunciaram ainveno de um pequeno semicondutor eletrnico, um dispositivo de simplicidadeimpressionante, capaz de fazer tudo aquilo que uma vlvula terminica fazia, e de modo maiseficiente. Consistia numa lasca cristalina, to pequena que centenas delas caberiam na palmade uma mo. Em maio, os cientistas formaram uma comisso para batizar o invento, e foramdistribudas cdulas de papel aos principais engenheiros de Murray Hill, Nova Jersey,relacionando algumas opes: triodo semicondutor iotatron transistor (um hbrido devaristor e transcondutncia). Transistor foi o nome vencedor. Isto pode ter um significado degrande alcance na eletrnica e na comunicao eltrica, declararam os Laboratrios Bell numcomunicado imprensa e, fugindo regra, a realidade superou as expectativas. O transistordeu incio a uma revoluo na eletrnica, colocando a tecnologia no rumo da miniaturizao eda onipresena, e logo garantiu para seus trs principais inventores o prmio Nobel. Para olaboratrio, aquela era a joia da coroa. Mas esse foi apenas o segundo avano mais importantedaquele ano. O transistor era apenas um equipamento.

    Uma inveno ainda mais profunda e fundamental surgiu numa monografia publicada em79 pginas da Revista Tcnica dos Sistemas Bell nas edies de julho e outubro. Ningum sepreocupou em fazer um comunicado imprensa. Ela trazia um ttulo ao mesmo tempo simplese grandioso Uma teoria matemtica da comunicao , e a mensagem era difcil de serresumida. Mas ela se tornou o fulcro em torno do qual o mundo passou a girar. Como otransistor, esse avano tambm envolveu um neologismo: a palavra bit, escolhida nesse casono por uma comisso, e sim pelo autor, um homem de 32 anos chamado Claude Shannon.2 Obit ento se juntou polegada, libra, ao quarto de galo e ao minuto e passou a ser vistocomo uma quantidade determinada uma unidade fundamental de medida.

    Mas para medir o qu? Uma unidade de medida da informao, escreveu Shannon, comose algo como a informao fosse mensurvel e quantificvel.

    Shannon supostamente pertencia ao grupo de pesquisas matemticas dos Laboratrios Bell,

  • mas costumava trabalhar sozinho.3 Quando o grupo abandonou a sede da empresa em NovaYork em busca de novos e reluzentes escritrios nos subrbios de Nova Jersey, ele ficou paratrs, ocupando um cubculo no prdio antigo, um edifcio de doze andares construdo comtijolos de barro em West Street, com os fundos industriais voltados para o rio Hudson e afachada de frente para o Greenwich Village. Ele gostava de ir a p para o trabalho, e gostavado bairro, prximo ao centro da cidade, onde podia ouvir clarinetistas de jazz nas casasnoturnas que ficavam abertas at tarde. Flertava timidamente com uma jovem que trabalhavano grupo de pesquisas com micro-ondas dos Laboratrios Bell na antiga fbrica da Nabisco,uma construo de dois andares que ficava do outro lado da rua. As pessoas o consideravamum jovem inteligente. Logo depois de se formar pelo Massachusetts Institute of Technology(mit) ele mergulhou no trabalho realizado pelos laboratrios para a guerra, primeirodesenvolvendo um direcionador automtico de controle de fogo para as baterias antiareas, edepois se concentrando nos fundamentos matemticos da comunicao secreta criptografia e criando uma prova matemtica para demonstrar que o chamado Sistema x, uma linhatelefnica direta entre Winston Churchill e o presidente Roosevelt, era seguro. Por tudo isso, achefia enfim concordou em deix-lo trabalhar em paz, apesar de no saberem exatamente oque ele estava fazendo.

    Em meados do sculo, a American Telephone & Telegraph Company ( at&t) no exigiaresultados imediatos de sua diviso de pesquisas. A empresa permitia desvios para os ramosda matemtica e da astrofsica sem nenhuma motivao comercial aparente. Fosse como fosse,a cincia moderna fazia parte, direta e indiretamente, da misso da empresa, que era vasta,monopolista e de abrangncia quase ilimitada. Ainda assim, por mais ampla que fosse, oassunto principal tratado pela empresa de telefonia permaneceu um pouco fora de foco. Em1948 mais de 125 milhes de conversas passavam diariamente pelos 222 milhes dequilmetros de cabos da Bell System e por 31 milhes de aparelhos telefnicos.4 O BureauCensitrio relatou esses fatos sob a rubrica Comunicaes nos Estados Unidos, mas tudoisso no passava de medidas primitivas para mensurar o volume de comunicao no pas. Ocenso contou tambm vrios milhares de estaes emissoras de rdio e algumas dzias deemissoras de televiso, alm de jornais, livros, panfletos e correspondncia em geral. Ocorreio contava as cartas e os pacotes que passavam por suas agncias, mas o que, exatamente,transportava o sistema da Bell, e qual unidade deveramos usar para quantificar essetransporte? Certamente no seriam as conversas; nem as palavras e, sem dvida, nem oscaracteres. Talvez fosse apenas eletricidade. Os engenheiros da empresa eram engenheiroseltricos. Todos compreendiam que a eletricidade servia como substituta do som, o som davoz humana, ondulaes no ar que entravam no microfone do telefone e eram convertidas emformas de onda eltrica. Essa converso era a essncia do avano do telefone em relao aotelgrafo a tecnologia anterior, que j parecia to obsoleta. A telegrafia dependia de um

  • tipo diferente de converso: um cdigo de pontos e traos, sem relao com o som e tendocomo base o alfabeto escrito, que era, por sua vez, um cdigo em si. De fato, ao analisaratentamente a questo hoje, podemos ver uma cadeia de abstrao e converso: os pontos etraos representando letras do alfabeto; as letras representando sons e, combinadas, formandopalavras; as palavras representando em ltima anlise algum substrato de significado, umaquesto que talvez pertencesse ao campo dos filsofos.

    O sistema Bell no contava com nenhum desses pensadores, mas a empresa contratara seuprimeiro matemtico em 1897: George Campbell, um morador de Minnesota que tinhaestudado em Gttingen e Viena. Ele confrontou logo de cara um problema srio das primeirastransmisses telefnicas. Os sinais eram distorcidos conforme passavam pelos circuitos;quanto maior a distncia, pior a distoro. A soluo de Campbell era em parte matemtica eem parte engenharia eltrica.5 Seus empregadores aprenderam a no se preocupar muito comessa distino. O prprio Shannon, quando estudante, nunca conseguiu decidir se optaria pelacarreira de engenheiro ou pela de matemtico. Para os Laboratrios Bell ele era ambas ascoisas, quer desejasse ou no, encarando com pragmatismo os circuitos e rels, masdemonstrando mais intimidade com o domnio da abstrao simblica. A maioria dosengenheiros da comunicao concentrava suas atenes em problemas fsicos, comoamplificao e modulao, distoro de fase e degradao na proporo entre sinal e rudo.Shannon gostava de jogos e charadas. Cdigos secretos o fascinavam desde quando ele eraapenas um menino que lia Edgar Allan Poe. Era capaz de relacionar diferentes assuntos comuma capacidade espantosa. Na poca de assistente de pesquisas em seu primeiro ano no mit,trabalhou num protocomputador de cem toneladas, o Analisador Diferencial de VannevarBush, capaz de solucionar equaes com grandes engrenagens mveis, dutos e rodas. Aos 22anos, escreveu uma dissertao que aplicava uma ideia do sculo xix, a lgebra da lgica deGeorge Boole, ao projeto de circuitos eltricos. (Lgica e eletricidade uma combinaopeculiar.) Mais tarde, trabalhou com o matemtico e lgico Hermann Weyl, que ensinou a eleo que era a teoria: As teorias permitem que a conscincia salte por cima da prpria sombra,deixando para trs aquilo que dado, representando aquilo que transcende, ainda que, como autoevidente, apenas em smbolos.6

    Em 1943, o matemtico britnico e decifrador de cdigos Alan Turing visitou osLaboratrios Bell numa misso criptogrfica e se encontrou com Shannon algumas vezes nahora do almoo, quando trocaram especulaes sobre o futuro das mquinas pensantesartificiais. (Shannon no quer alimentar um Crebro apenas com dados, mas tambm comelementos culturais!,7 exclamou Turing. Ele quer tocar msica para o aparelho!) Ocaminho de Shannon tambm se cruzou com o de Norbert Wiener, que tinha sido seu professorn o mit e, em 1948, j propunha a criao de uma nova disciplina, que seria batizada deciberntica, o estudo da comunicao e do controle. Enquanto isso, Shannon comeou a

  • dedicar uma ateno especial aos sinais da televiso, e com um ponto de vista peculiar:imaginando se o contedo deles poderia ser compactado ou comprimido de maneira a permitiruma transmisso mais rpida. Lgica e circuitos se combinaram para criar algo novo ehbrido, assim como os cdigos e os genes. sua maneira solitria, na busca por umaestrutura capaz de combinar tantas meadas, Shannon comeou a elaborar uma teoria para ainformao.

    A matria-prima estava por toda parte, reluzindo e zumbindo na paisagem do incio dosculo xx, letras e mensagens, sons e imagens, notcias e instrues, abstraes e fatos, sinaise signos: uma mistura de espcies relacionadas. E estavam em movimento, fosse pelo correio,por fio ou via onda eletromagntica. No entanto, no havia uma palavra que denotasse tudoaquilo. Intermitentemente, escreveu Shannon a Vannevar Bush no mit em 1939, tenhotrabalhado numa anlise de algumas das propriedades fundamentais dos sistemas gerais para atransmisso da inteligncia.8 Inteligncia: esse era um termo flexvel, muito antigo.Agora usado como palavra elegante, escreveu Sir Thomas Elyot no sculo xvi, nassituaes de tratados mtuos ou compromissos, seja por carta, seja por mensagem.9 Mas essetermo tambm tinha outros significados. Alguns engenheiros, especialmente nos laboratriostelefnicos, comearam a falar em informao. Eles usavam a palavra de maneira a sugeriralgo tcnico: quantidade de informao, ou medida de informao. Shannon adotou esse uso.

    Para os propsitos da cincia, informao tinha de significar algo especial. Trs sculosantes, a nova disciplina da fsica s pde tomar forma depois que Isaac Newton se aproprioude palavras que eram antigas e vagas fora, massa, movimento e at tempo econferiu a elas novos significados. Newton transformou esses termos em quantidades, medidasadequadas para serem usadas em frmulas matemticas. At ento, movimento (porexemplo) era um termo to flexvel e abrangente quanto informao. Para os aristotlicos, omovimento dava conta de uma vasta famlia de fenmenos: o amadurecimento de um pssego,a queda de uma pedra, o crescimento de uma criana, a decadncia de um corpo. Tudo isso eravasto demais. A maioria das variedades de movimento teve de ser descartada antes que as leisde Newton pudessem se aplicar realidade e a Revoluo Cientfica pudesse triunfar. Nosculo xix, o termo energia comeou a sofrer uma transformao parecida: uma palavra quepara os filsofos naturais significava vigor ou intensidade foi transferida para o mbito damatemtica, conferindo energia seu lugar fundamental na viso que os fsicos tm danatureza.

    O mesmo ocorreu com a informao. Um ritual de purificao se tornou necessrio.

    E ento, depois de ter sido transformada em algo mais simples, destilada, contabilizada em

  • bits, a informao passou a ser encontrada por toda parte. A teoria de Shannon construiu umaponte entre a informao e a incerteza; entre a informao e a entropia; e entre a informao eo caos. Levou aos cds e aos aparelhos de fax, aos computadores e ao ciberespao, lei deMoore e a todas as empresas pontocom do mundo. Assim nasceu o processamento deinformaes, junto com o armazenamento de informaes e o acesso informao. As pessoascomearam a nomear uma sucessora para a Era do Ferro e a Era do Vapor. O homem, coletorde comida, reaparece de maneira incongruente como coletor de informao,10 comentouMarshall McLuhan em 1967.a Ao escrever isso, ele se antecipou em alguns segundos aurorados computadores e do ciberespao.

    Podemos agora ver que a informao aquilo que alimenta o funcionamento do nossomundo: o sangue e o combustvel, o princpio vital. Ela permeia a cincia de cima a baixo,transformando todos os ramos do conhecimento. A teoria da informao comeou como umaponte da matemtica para a engenharia eltrica e da para a computao. No toa, a cinciada computao tambm conhecida pelo nome de informtica. Hoje at a biologia se tornouuma cincia da informao, sujeita a mensagens, instrues e cdigos. Os genes encapsulaminformaes e permitem procedimentos para que estas sejam lidas a partir deles e inscritasneles. A vida se expande por meio do estabelecimento de redes. O prprio corpo umprocessador de informaes. A memria reside no apenas no crebro, mas em cada clula.No surpreende que a gentica tenha florescido junto com a teoria da informao. O dna amolcula de informao quintessencial, o mais avanado processador de mensagens no nvelcelular um alfabeto e um cdigo, bilhes de bits para formar um ser humano. Aquilo quejaz no corao de todas as coisas vivas no uma chama, nem um hlito quente, nem umafasca de vida,11 declarou o terico da evoluo Richard Dawkins. a informao,palavras, instrues. [] Se quiser compreender a vida, no pense nas gosmas e melecaspulsantes e fluidas, e sim na tecnologia da informao. As clulas de um organismo sondulos de uma rede de comunicaes ricamente entrelaada, transmitindo e recebendo,codificando e decodificando. A prpria evoluo o resultado de uma troca contnua deinformaes entre organismo e meio ambiente.

    O ciclo da informao se torna a unidade da vida,12 diz Werner Loewenstein depois detrinta anos estudando a comunicao intercelular. Ele nos lembra que informao hojesignifica algo mais profundo: O termo traz a conotao de um princpio csmico deorganizao e ordem, e nos proporciona uma medida exata disso. O gene tambm conta comum equivalente cultural: o meme. Na evoluo cultural, um meme um replicador e umpropagador uma ideia, uma moda, uma corrente de correspondncia. Num dia ruim, ummeme um vrus.

    A economia est se reorganizando nos moldes de uma cincia da informao, agora que oprprio dinheiro est concluindo um arco de desenvolvimento da matria para os bits,

  • armazenado na memria de computadores e em fitas magnticas, e que as finanas mundiaiscorrem pelo sistema nervoso global. Mesmo quando o dinheiro parecia ser um tesouromaterial, ocupando espao nos bolsos, nos compartimentos de carga dos navios e nos cofresdos bancos, ele sempre foi informao. Moedas e notas, siclos e bzios foram todastecnologias de vida igualmente curta para o registro da informao que determina quem dono do qu.

    E quanto aos tomos? A matria tem sua prpria moeda, e a cincia mais exata dentre asnaturais, a fsica, parece ter chegado maturidade. Mas at a fsica hoje se v varrida por umnovo modelo intelectual. Nos anos posteriores Segunda Guerra Mundial, momento de glriados fsicos, as grandes notcias cientficas pareciam ser a diviso do tomo e o controle sobrea energia nuclear. Os tericos concentraram seu prestgio e seus recursos na busca porpartculas fundamentais e pelas leis que regem a interao entre elas, a construo degigantescos aceleradores e a descoberta de quarks e glons. O ramo da pesquisa emcomunicao no poderia parecer mais distante desse to festejado empreendimento. NosLaboratrios Bell, Claude Shannon no estava pensando na fsica. Os fsicos que estudavam aspartculas no precisavam de bits.

    E ento, de uma hora para a outra, esses cientistas passaram a precisar deles. Cada vezmais, os fsicos e os tericos da informao so iguais uns aos outros, tornam-se uma mesmacoisa. O bit uma partcula fundamental de outro tipo: no apenas minsculo, mas tambmabstrato um dgito binrio, um circuito flip-flop, um sim-ou-no. Trata-se de algo semsubstncia, mas, medida que os cientistas enfim comeam a compreender a informao, elesse perguntam se esta no seria a questo principal: mais fundamental do que a prpria matria.Eles sugeriram que o bit seria o ncleo irredutvel e que a informao compe o prprio cerneda existncia. Estabelecendo uma ponte entre a fsica do sculo xx e a do xxi, John ArchibaldWheeler, colaborador de Einstein e tambm de Bohr, apresentou este manifesto monossilbicoe oracular: Do bit ao ser. A informao possibilita a existncia de cada ser cadapartcula, cada campo de fora, at o prprio continuum espao-tempo.13 Essa outramaneira de considerar o paradoxo do observador: o fato de o resultado de um experimento serafetado, ou at determinado, quando este observado. Alm de estar observando, o observadortambm faz perguntas e afirmaes que por fim precisam ser expressas em bits distintos.Aquilo que chamamos de realidade, escreveu Wheeler, timidamente, surge em ltimaanlise das perguntas no formato sim-ou-no que fazemos a ns mesmos. Ele acrescentou:Tudo aquilo que fsico tem uma origem informacional-terica, e estamos num universoparticipativo. Todo o universo passa assim a ser visto como um computador uma mquinacsmica de processamento de informaes.

    Uma chave para esse enigma um tipo de relacionamento que no tinha lugar na fsicaclssica: o fenmeno conhecido como entrelaamento quntico. Quando partculas ou sistemas

  • qunticos esto entrelaados, suas propriedades se mantm correlacionadas por vastasdistncias e longos perodos. Separados por anos-luz, eles partilham algo que fsico, mas noapenas fsico. Surgem espantosos paradoxos, que permanecem insolveis at que algumcompreenda como o entrelaamento quntico codifica a informao, medida em bits ou no seuequivalente quntico de nome cmico, os qubits. Quando ftons e eltrons e outras partculasinteragem entre si, o que esto fazendo, afinal? Trocando bits, transmitindo estados qunticos,processando informao. As leis da fsica so os algoritmos. Cada estrela incandescente, cadasilenciosa nebulosa, cada partcula que deixa seu rastro fantasmagrico numa cmara denuvens um processador de informaes. O universo computa seu prprio destino.

    O quanto ele computa? A que velocidade? Qual o tamanho de sua capacidade total deprocessar informaes, quanto espao h em sua memria? Qual o elo entre energia einformao: qual o custo energtico de manipular um bit? So perguntas difceis, mas noto msticas ou metafricas quanto podem parecer. Fsicos e tericos qunticos da informao,uma nova raa, enfrentam-nas juntos. Eles fazem as contas e produzem respostasexperimentais. (A contagem total de bits do cosmos, independentemente de como sejacalculada, igual a dez elevado a uma potncia altssima,14 de acordo com Wheeler. SegundoSeth Lloyd: No mais que 10120 opsb em 1090 bits.15) Eles contemplam com um novo olharos mistrios da entropia termodinmica e aqueles famosos devoradores de informao, osburacos negros. Amanh, declarou Wheeler, teremos aprendido a compreender e expressartoda a fsica nos termos da informao.16

    medida que o papel desempenhado pela informao se expande para alm dos limites dacapacidade humana, ela se torna excessiva. informao demais, dizem as pessoas hoje emdia. Temos fadiga informacional, ansiedade informacional, saturao informacional. Jconhecemos o Demnio da Sobrecarga de Informaes e seus malficos filhotes, o vrus decomputador, o sinal de ocupado, o link desativado e a apresentao em formato PowerPoint.Tudo isso remonta a Shannon. Foram muitas mudanas em muito pouco tempo.Posteriormente, John Robinson Pierce (engenheiro dos Laboratrios Bell que cunhou o termotransistor) brincou: difcil imaginar como era o mundo antes de Shannon mesmo paraaqueles que o habitavam. difcil recuperar a inocncia, a ignorncia e a falta decompreenso.17

    Mas o passado tambm reexaminado sob essa luz. No princpio era o verbo, de acordocom Joo. Somos a espcie que batizou a si mesma de Homo sapiens, aquele que sabe eento, depois de refletir a respeito, corrigimos para Homo sapiens sapiens. A maior ddiva dePrometeu humanidade no foi o fogo, no fim das contas: Tambm os nmeros, a principalentre as cincias, fui eu que inventei para eles, e a combinao das letras, me criadora das

  • artes das Musas, com a qual se torna possvel reter tudo na memria.18 O alfabeto foi umatecnologia fundadora da informao. O telefone, o aparelho de fax, a calculadora e, por fim, ocomputador so apenas as mais recentes inovaes projetadas para armazenar, manipular etransmitir conhecimento. Nossa cultura absorveu um vocabulrio funcional dessas teisinvenes. Falamos em comprimir dados, cientes de que isso bem diferente de comprimirum gs. Nossa parafernlia inclui iPods e telas de plasma, nossas habilidades incluem o enviode mensagens de texto e a capacidade de fazer buscas no Google, temos autonomia, somosespecialistas, e por isso vemos a informao em primeiro plano. Mas ela sempre esteve l. Elatambm permeava o mundo de nossos ancestrais, assumindo formas slidas ou etreas,gravadas no granito e registradas nos sussurros dos cortesos. O carto de ponto, a caixaregistradora, a Mquina Diferencial do sculo xix, os fios do telgrafo, todos desempenharamum papel na teia de aranha de informaes qual nos agarramos. sua poca, cada novatecnologia da informao levou a avanos em seu armazenamento e sua transmisso. Daprensa de tipos mveis surgiram novos modelos de organizadores da informao: dicionrios,enciclopdias, almanaques compndios de palavras, classificadores de fatos, rvores doconhecimento. As tecnologias da informao dificilmente se tornam obsoletas. Cada novatecnologia traz para suas antecessoras um alento. Assim, Thomas Hobbes, no sculo xvii,resistiu empolgao de sua era com o novo meio de comunicao que surgia: Ainda quegenial, a inveno da imprensa insignificante se comparada inveno das letras.19 Atcerto ponto, ele tinha razo. Cada novo suporte transforma a natureza do pensamento humano.No longo prazo, a Histria a histria da informao adquirindo conscincia de si mesma.

    Algumas tecnologias da informao tiveram seu valor reconhecido na prpria poca, masoutras no. Entre as que foram muito pouco compreendidas estavam os tambores falantes dafrica.

    a E acrescentou, secamente: Nesse sentido, o homem eletrnico no menos nmade do que seus ancestraispaleolticos.

    b Ops: operaes por segundo.

  • 1. Tambores que falam(Quando um cdigo no um cdigo)

    Por todo o continente negro soam os tambores que nunca se calam:

    a base de toda a msica, o foco de cada dana;

    os tambores falantes, a comunicao sem fios da selva desconhecida.

    Irma Wassall, 19431

    Ningum falava de maneira simples e direta atravs dos tambores. Os percussionistas nodiziam Volte para casa, e sim:

    Faa seus ps voltarem pelo caminho que vieram,

    faa suas pernas voltarem pelo caminho que vieram,

    plante seus ps e suas pernas logo abaixo

    na vila que nos pertence.2

    Eles no diziam apenas cadver, preferiam elaborar: que jaz de costas sobre montes deterra. Em vez de No tenha medo, diziam: Faa o corao descer da boca, tire o coraoda boca, obrigue-o a descer da. Os tambores geravam jorros de oratria. Isso no parecia sermuito eficiente. Seria um caso de grandiloquncia descontrolada? Ou outra coisa?

    Durante muito tempo os europeus presentes na frica subsaariana no souberam aresposta. Na verdade, eles nem sequer sabiam que os tambores transmitiam informaes. Emsuas prprias culturas, em certos casos um tambor podia ser um instrumento de sinalizao,bem como o clarim e o sino, usados para transmitir um pequeno conjunto de mensagens:atacar; recuar; ir igreja. Mas eles jamais poderiam imaginar que os tambores falassem. Em1730, Francis Moore navegou rumo ao leste pelo rio Gmbia, encontrando-o navegvel atquase mil quilmetros acima, admirando pelo caminho as belezas do pas e curiosasmaravilhas como ostras que cresciam nas rvores (mangues).3 Ele no era um grandenaturalista. Estava fazendo um reconhecimento de terreno para traficantes de escravosingleses em reinos habitados por, aos olhos dele, diferentes raas de povos de cor escura,como mundingoes, jolloiffs, pholeys, floops e portugueses. Quando se deparou com homense mulheres que carregavam tambores, feitos de madeira entalhada e chegando a quase ummetro de comprimento, cuja largura se estreitava de cima para baixo, ele destacou que asmulheres danavam agitadas ao som de sua msica, e s vezes os tambores eram tocados aoser detectada a aproximao de um inimigo, e por fim que, em certas ocasies muitoextraordinrias, os tambores invocavam a ajuda de cidades prximas. Mas isso foi tudo queele foi capaz de perceber.

  • Um sculo mais tarde, o capito William Allen, numa expedio ao rio Nger, a fez maisuma descoberta, depois de prestar ateno ao comportamento de seu piloto camarons, a quemchamava de Glasgow. Eles estavam na cabine do barco a vapor quando, de acordo com alembrana de Allen:

    De repente, ele se mostrou completamente alheio, e assim permaneceu, concentrado no que estava ouvindo. Quando

    foi chamada sua ateno, ele disse: Voc no ouve meu filho falar?. Como no estvamos escutando nenhuma voz,perguntamos a Glasgow como ele sabia daquilo. Ele respondeu: Tambor me falou, me diz subir no convs. Issopareceu ser bastante singular.4

    O ceticismo do capito deu lugar ao assombro, medida que Glasgow o convencia de quecada pequena vila tinha essa capacidade de correspondncia musical. Por mais que custassea acreditar, o capito finalmente aceitou que mensagens detalhadas de muitas frases podiamser transmitidas distncia de quilmetros. Muitas vezes ficamos surpresos, escreveu ele,ao perceber o quanto o som do trompete bem compreendido em nossas evolues militares;mas isso fica muito aqum do resultado obtido por aqueles selvagens incultos. Aqueleresultado era uma tecnologia muito desejada na Europa: comunicao de longa distncia maisrpida do que qualquer mensageiro, fosse a p, fosse a cavalo. Cortando o ar parado da noitesobre um rio, o bater do tambor podia chegar a uma distncia de aproximadamente dezquilmetros. Transmitidas de vilarejo em vilarejo, as mensagens podiam percorrer mais de150 quilmetros em questo de uma hora.

    O anncio de um nascimento em Bolenge, vilarejo do Congo Belga, dizia mais ou menos oseguinte:

    Batoko fala fala, tokema bolo bolo, boseka woliana imaki tonkilingonda, ale nda bobila wa fole fole, asokoka lisika

    koke koke.

    As esteiras esto enroladas, sentimo-nos fortes, uma mulher veio da floresta, ela est na vila aberta, e basta por

    enquanto.

    Um missionrio, Roger T. Clarke, transcreveu o seguinte chamado para o funeral de umpescador:5

    La nkesa laa mpombolo, tofolange benteke biesala, tolanga bonteke bolokolo bole nda elinga lenjale baenga,

    basaki lokala bopele pele. Bojende bosalaki lifeta Bolenge wa kala kala, tekendake tonkilingonda, tekendake beningola nkaka elinga lenjale. Tolanga bonteke bolokolo bole nda elinga lenjale, la nkesa la mpombolo.

  • Ao raiar do dia, no queremos nos reunir para trabalhar, queremos nos reunir para brincar no rio. Homens que

    moram em Bolenge, no vo floresta, no vo pescar. Queremos uma reunio para brincar no rio, ao raiar do dia.

    Clarke destacou vrios fatos. Apesar de apenas poucas pessoas aprenderem a se comunicarpor meio dos tambores, quase todos eram capazes de compreender as mensagens contidas nosbatuques. Alguns batucavam mais rpido, e outros, mais devagar. Certas expresses eramrecorrentes, quase sempre inalteradas, mas diferentes percussionistas enviavam uma mesmamensagem usando diferentes termos. Clarke concluiu que a linguagem dos tambores era a ums tempo convencional e fluida. Os sinais representam a tnica das slabas de frasesconvencionais de uma natureza tradicional e altamente potica, sentenciou ele, e nisso estavacorreto, apesar de no ter sido capaz de dar o passo final no sentido de compreender o motivodaquilo.

    Esses europeus falavam em conscincia nativa e descreviam os africanos comoprimitivos e animistas, mas, independentemente disso, perceberam que eles tinhamalcanado o antigo sonho de toda cultura humana. Existia ali um sistema de transmisso demensagens mais rpido do que os melhores mensageiros montados nos melhores cavaloscruzando as estradas de melhor qualidade, contando com entrepostos e parceiros derevezamento. Os sistemas de transmisso de mensagens transportadas a p por via terrestresempre produziram resultados decepcionantes. Seus exrcitos os ultrapassavam. Jlio Csar,por exemplo, com frequncia chegava antes do mensageiro enviado para anunciar a suavinda,6 como relatou Suetnio no sculo i. Mas os antigos no eram desprovidos de recursos.Os gregos usaram faris de fogo na poca da Guerra de Troia, no sculo xii a.C., de acordocom todos os relatos ou seja, os de Homero, Virglio e squilo. Uma fogueira armada nocume de uma montanha podia ser vista por postos de sentinelas a uma distncia de mais detrinta quilmetros, ou at mais longe em casos especficos. Na verso de squilo, Clitemnestrarecebe a notcia da queda de Troia naquela mesma noite, em Micenas, a seiscentosquilmetros de distncia. Que mensageiro chegaria to depressa?,7 indaga o ctico Coro.

    Ela credita o feito a Hefesto, deus do fogo, que mandou dos pncaros do Ida a sua chamalcida. No se trata de um feito qualquer, o ouvinte precisa ser convencido; assim, squilofaz Clitemnestra prosseguir por vrios minutos relatando os detalhes do percurso: a chamamensageira originada no monte Ida foi carregada por sobre o norte do mar Egeu at a ilha deLemnos; dali, seguiu para o monte Atos, na Macednia; ento rumou para o sul, cruzandoplancies e lagos at chegar ao Macisto; depois ao Messpio, de onde foi vista por gentealerta que depressa transmitiu a ntida mensagem vinda de to longe; ao Citron; aoEgiplancto; e ao alto monte Aracne, penltima etapa, posto avanado atento de Argos. []finalmente daqui pudemos ver a luz alvissareira, vinda diretamente da primeira chama. No

  • foi em vo que transmiti as minhas ordens aos homens postos no percurso da mensagem,orgulha-se ela. Um historiador alemo, Richard Hennig, traou a rota, mediu o percurso damensagem em 1908 e confirmou a plausibilidade de uma cadeia de fogueiras.8 claro que osignificado da mensagem tinha que ser predefinido, efetivamente condensado num nico bit.Uma escolha binria, alguma coisa ou coisa nenhuma: o sinal de fogo significava algumacoisa, a qual, apenas daquela vez, correspondia a Troia caiu. A transmisso desse nico bitexigiu imenso planejamento, muito trabalho, vigilncia atenta e lenha. Muitos anos maistarde, lanternas na igreja de Old North enviaram da mesma maneira um nico e precioso bit aPaul Revere, uma escolha binria que ele repassou adiante: por terra ou pelo mar.

    Ocasies menos extraordinrias exigiam ainda mais capacidade. As pessoas tentarambandeiras, cornetas, sinais de fumaa e trocas de reflexos entre espelhos. Elas conjuraramespritos e anjos para atender aos propsitos da comunicao e os anjos so, por definio,mensageiros divinos. A descoberta do magnetismo parecia ser especialmente promissora.Num mundo j repleto de magia, os ms encarnavam poderes ocultos. A magnetita atrai oferro. Esse poder de atrao se estende, invisvel, pelo ar. E tal poder no limitado pela guae nem mesmo por corpos slidos. Um pedao de magnetita segurado de um lado de umaparede pode movimentar um pedao de ferro do outro lado. O mais intrigante que o podermagntico parece capaz de coordenar objetos separados por imensas distncias, em todo oplaneta Terra: mais especificamente, as agulhas das bssolas. E se uma agulha fosse capaz decontrolar outra? Essa ideia se disseminou um conceito, escreveu Thomas Browne nadcada de 1640,

    sussurrado em todo o mundo com certa ateno, os ouvintes mais crdulos e vulgares acreditavam prontamente

    nele, e as conscincias mais ajuizadas e distintas no o rejeitavam por completo. O conceito excelente e, se o efeitoesperado de fato ocorresse, isso teria algo de divino; assim poderamos nos comunicar como espritos, e nos reunir naTerra com Menipo na Lua.9

    A ideia das agulhas sintonizadas aparecia sempre que se reuniam filsofos naturais eartistas ilusionistas. Na Itlia um homem tentou vender a Galileu um mtodo secreto para secomunicar com outra pessoa a 2 mil ou 3 mil quilmetros de distncia, por meio de uma certapropriedade das agulhas magnticas.10

    Disse a ele que tinha interesse na compra, mas queria ver aquilo funcionando num experimento e que a mim bastariaque ele ficasse num cmodo enquanto eu ficaria em outro. Ele respondeu que a operao no poderia ser detectada auma distncia to curta. Eu o dispensei, comentando que no tinha a inteno naquele momento de ir at o Cairo ou aMoscou para realizar o experimento, mas que, se ele se dispusesse a ir to longe, eu ficaria em Veneza para cuidar dooutro extremo.

    A ideia era a de que, se um par de agulhas fosse magnetizado em conjunto agulhas

  • tocadas pela mesma magnetita, nas palavras de Browne , elas permaneceriam sintonizadasna mesma frequncia dali para a frente, mesmo quando separadas pela distncia. Algumpoderia chamar isso de entrelaamento. Um emissor e um receptor ficariam com as agulhase combinariam um momento para se comunicar. Eles colocariam suas agulhas sobre discoscom as letras do alfabeto dispostas ao longo de seu permetro. O emissor soletraria umamensagem ao girar a agulha. A partir de ento, de acordo com a tradio, explicou Browne,independentemente do local ou da distncia, quando uma agulha fosse apontada para umaletra, a outra agulha, por uma fenomenal e maravilhosa empatia, passaria a apontar para amesma letra. No entanto, ao contrrio da maioria das pessoas que pensaram na ideia dasagulhas sintonizadas, Browne chegou de fato a realizar o experimento, que no funcionou.Quando ele girou uma das agulhas, a outra permaneceu imvel.

    Browne no foi to longe a ponto de excluir a possibilidade de que essa fora misteriosapudesse um dia ser usada para a comunicao, mas acrescentou mais uma ressalva. Mesmoque a comunicao magntica distncia fosse possvel, sugeriu ele, um problema poderiasurgir quando o emissor e o receptor tentassem sincronizar seus atos. Como poderiam elessaber o momento certo de faz-lo,

    uma questo nada simples ou tpica dos almanaques, mas sim um problema matemtico, descobrir a diferena de

    horrio entre os diferentes lugares; nem mesmo os mais sbios parecem minimamente satisfeitos com as respostasencontradas. Pois os horrios de vrios lugares antecipam um ao outro, de acordo com suas longitudes; que no sofceis de serem descobertas para todos os lugares.

    Tratava-se de um pensamento presciente, e absolutamente terico, um produto do novoconhecimento da astronomia e da geografia do sculo xvii. Essa foi a primeira tentativa deestabelecer a ento j mais slida ideia da simultaneidade. Fosse como fosse, como destacouBrowne, os especialistas discordavam. Mais dois sculos transcorreriam antes que algumconseguisse de fato viajar com velocidade suficiente, ou se comunicar com rapidez suficiente,para vivenciar as diferenas de horrio entre os diferentes pontos do globo. Na verdade,naquela poca, ningum no mundo conseguia se comunicar tanto, nem to rpido nem tolivremente, quanto os africanos e seus tambores.

    Na poca em que o capito Allen descobriu os tambores falantes, em 1841, Samuel F. B.Morse estava trabalhando em seu prprio cdigo percussivo, o batuque eletromagnticoprojetado para pulsar percorrendo o fio do telgrafo. Inventar um cdigo era um problemacomplexo e delicado. Inicialmente, ele nem mesmo pensava em termos de um cdigo, e sim

  • de um sistema de sinais para letras que pudessem ser indicados e marcados por uma rpidasucesso de golpes ou choques da corrente galvnica.11 Os anais da inveno ofereciampouqussimos precedentes. A tarefa de converter a informao de um formato a linguagemcotidiana para outro, mais adequado transmisso pelo fio, exigiu da engenhosidade delemais do que qualquer problema mecnico do telgrafo. muito apropriado que a histriatenha associado o nome de Morse a seu cdigo, mais do que a seu aparelho.

    Ele tinha nas mos uma tecnologia que parecia permitir apenas pulsos rudimentares,rajadas de uma corrente eltrica ligada e desligada, um circuito eltrico abrindo e fechando.Como eles poderiam transmitir uma linguagem por meio dos cliques de um eletrom? Aprimeira ideia de Morse foi enviar nmeros, um dgito por vez, com pontos e pausas. Asequncia significaria 325. Cada palavra da lngua inglesa seria associada a umnmero, e os telegrafistas em cada extremo da linha consultariam esses nmeros numdicionrio especial. Morse se dedicou ele mesmo criao desse dicionrio, desperdiandomuitas horas inscrevendo-o em grandes flios.b Ele reivindicava a ideia em sua primeirapatente do telgrafo, em 1840:

    O dicionrio ou vocabulrio consiste em palavras organizadas alfabeticamente e numeradas com regularidade,comeando com as letras do alfabeto, de modo que cada palavra do idioma tem seu nmero telegrfico correspondente,sendo designada a gosto, por meio dos sinais dos numerais.12

    Buscando eficincia, ele pesou os custos e as possibilidades em muitos planosentrecruzados. Havia o custo da prpria transmisso: os fios eram caros e s eram capazes detransmitir um determinado nmero de pulsos por minuto. Os nmeros seriam relativamentefceis de ser transmitidos. Mas havia ento o custo adicional representado pelo tempo gasto epela dificuldade enfrentada pelos telegrafistas. A ideia de livros de cdigos tabelas dereferncia ainda oferecia possibilidades, e produziu ecos no futuro, ressurgindo em outrastecnologias. A tcnica acabou funcionando para a telegrafia chinesa. Mas Morse percebeu queobrigar os operadores a folhear o dicionrio em busca de cada palavra seria uma soluo nemum pouco prtica.

    Enquanto isso, seu protegido, Alfred Vail, estava desenvolvendo uma simples tecla emforma de alavanca por meio da qual um operador pudesse fechar e abrir o circuito eltricorapidamente. Vail e Morse se voltaram para a ideia de um alfabeto codificado, usando sinaiscomo substitutos das letras para soletrar cada palavra. De alguma maneira, aqueleselementares sinais teriam de dar conta de todas as palavras da linguagem falada ou escrita.Eles tinham de mapear toda a linguagem numa nica dimenso de pulsos. Inicialmente,conceberam um sistema erguido em torno de dois elementos: os cliques (agora chamados depontos) e os espaos entre eles. Ento, enquanto testavam o prottipo do teclado, eles bolaramum terceiro sinal: a linha, ou trao, quando o circuito era mantido fechado por mais tempo do

  • que aquele que seria necessrio para produzir um ponto.13 (O cdigo se tornou conhecidocomo alfabeto do ponto-e-trao, mas o espao no mencionado permaneceu igualmenteimportante; o cdigo Morse no era uma linguagem binria.c) O fato de os humanos seremcapazes de aprender essa nova linguagem, de incio, provocou assombro. Era preciso dominaro sistema de codificao e ento desempenhar um contnuo ato de dupla traduo: linguagemconvertida em sinais; pensamentos convertidos em gestos dos dedos. Uma testemunha ficouimpressionada com a maneira como os telegrafistas internalizavam essas habilidades:

    Os funcionrios que cuidam do instrumento de gravao se tornam to especializados em seus curiosos hierglifos

    que no precisam mais olhar para o registro impresso para descobrir o significado da mensagem que transmitida; oinstrumento de gravao tem para eles uma linguagem articulada inteligvel. Eles compreendem a fala do aparelho .Podem fechar os olhos e escutar os estranhos cliques que soam perto de seus ouvidos enquanto a impresso est emandamento, e anunciam seu significado ao mesmo tempo que fica pronto o registro da mquina.14

    Em nome da velocidade, Morse e Vail tinham percebido que podiam poupar cliques aoreservar as sequncias mais curtas de pontos e traos para as letras mais comuns. Mas quaisseriam as letras usadas com maior frequncia? Pouco se sabia a respeito das estatsticas doalfabeto. Em busca de dados sobre a frequncia relativa do uso de cada letra, Vail se inspirounuma visita redao do jornal local em Morristown, Nova Jersey, ao olhar para as caixas detipos mveis.15 Ele descobriu um estoque de 12 mil Es, 9 mil Ts e apenas 2 mil Zs. Vail eMorse rearranjaram o alfabeto de acordo com essa informao. Eles haviam designadooriginalmente trao-trao-ponto para representar o T, a segunda letra mais usada; decidiramento promover o T a um nico trao, poupando assim aos operadores telegrficos incontveisbilhes de cliques no mundo que viria a seguir. Muito depois, tericos da informaocalcularam que os dois chegaram muito perto de uma configurao ideal para a transposiodos textos de lngua inglesa em linguagem telegrfica, errando por uma margem de apenas15%.16

    A linguagem dos batuques no era orientada por esse tipo de cincia e pragmatismo. Mashavia um problema a ser solucionado, assim como no caso do desenvolvimento do cdigo paraos operadores telegrficos mapear toda uma linguagem num fluxo unidimensional formadopelos sons mais simples. Esse problema de projeto foi solucionado coletivamente por geraesde percussionistas num processo de sculos de evoluo social. No incio do sculo xx aanalogia entre o telgrafo e os batuques era a mais bvia para os europeus que estudavam africa. Faz poucos dias que li no Times, contou o capito Robert Sutherland Rattray Sociedade Real Africana em Londres, a respeito de como um residente de certa parte da

  • frica tomou conhecimento da morte de um beb europeu em outra parte do continente, muitomais remota, e de como essa notcia foi transmitida por meio da percusso, que foi usada,segundo o que afirmava a reportagem, de acordo com o princpio de Morse sempre oprincpio de Morse.17

    No entanto, a analogia mais bvia parecia indicar para as pessoas o rumo errado. Elas noconseguiram decifrar o cdigo dos batuques porque, na verdade, no havia cdigo nenhum.Morse tinha adaptado seu sistema a uma camada simblica mdia, o alfabeto escrito, umaintermediao entre a fala e seu cdigo final. Seus pontos e traos no tinham relao diretacom o som eles representavam letras, que formavam palavras escritas, as quais por sua vezrepresentavam as palavras ditas. Os percussionistas no tinham um cdigo intermedirio apartir do qual desenvolver sua linguagem no podiam recorrer abstrao de uma camadade smbolos porque os idiomas africanos, assim como quase todos os 6 mil idiomas faladosno mundo moderno, com algumas poucas dezenas de excees, no contavam com umalfabeto. O batuque era uma metamorfose da fala.

    Essa explicao coube a John F. Carrington. Missionrio britnico nascido em 1914 emNorthamptonshire, Carrington partiu para a frica aos 24 anos, e o continente se tornou seu larpelo resto da vida. Os batuques logo chamaram sua ateno, quando viajava da estao daSociedade Missionria Batista em Yakusu, no alto do rio Congo, passando pelos vilarejos dafloresta Bambole. Certo dia, ele fez uma viagem no planejada cidadezinha de Yaongama eficou surpreso ao encontrar um professor, um assistente de enfermagem e membros da igrejaj reunidos para receb-lo. Eles explicaram que tinham ouvido o chamado dos tambores.Carrington acabou percebendo que os batuques transmitiam no apenas informes e alertas,mas tambm preces, poesias e at piadas. Os percussionistas no estavam sinalizando, e simfalando: eles falavam num idioma especialmente adaptado para os tambores.

    No fim, o prprio Carrington aprendeu a batucar. Ele batucava principalmente em Kele,idioma da famlia Bantu falado em um local que corresponde ao leste da atual RepblicaDemocrtica do Congo. Ele no realmente europeu, apesar da cor de sua pele,18 disse umviajante lokele a respeito de Carrington. Ele era da nossa vila, um de ns. Depois que morreu,os espritos cometeram um erro e o enviaram para longe, para uma vila de brancos, onde eleentraria no corpo de um bebezinho nascido de uma mulher branca, e no de uma das nossas.Mas, como pertencia a ns, ele no pde esquecer de onde veio, e por isso voltou. O aldeoacrescentou, generoso: Se ele se mostrar um pouco desajeitado nos tambores, por causa dam educao que os brancos lhe deram. A vida de Carrington na frica durou quatro dcadas.Ele se tornou um grande botnico, antroplogo e, acima de tudo, linguista, um profundoconhecedor da estrutura das famlias de idiomas da frica: milhares de dialetos e centenas deidiomas distintos. Carrington percebeu o quo loquaz um bom percussionista tinha de ser.Publicou suas descobertas a respeito dos tambores em 1949, num magro volume intitulado The

  • Talking Drums of Africa.

    Para solucionar o enigma dos tambores, Carrington encontrou a chave num fato central arespeito dos idiomas africanos mais relevantes. Eles so idiomas tonais, nos quais osignificado determinado tanto pelas variaes mais agudas ou graves da entonao comopelas distines entre as consoantes ou as vogais. Essa caracterstica est ausente na maioriadas lnguas indo-europeias, que limitam a tonalidade a usos sintticos: para distinguir, porexemplo, entre perguntas (voc est feliz ) e declaraes (voc est feliz ). Para outrosidiomas, porm, dentre os quais os mais conhecidos so o mandarim e o cantons, a tonalidadetem um significado primrio na distino entre as palavras. O mesmo ocorre na maioria dosidiomas africanos. Mesmo quando aprendiam a se comunicar nesses idiomas, os europeus emgeral negligenciavam a importncia da tonalidade, pois no tinham experincia com esse tipode caracterstica. Quando traduziam as palavras que ouviam para o alfabeto latino,descartavam totalmente a questo dos sons mais graves ou agudos. Na verdade, era como sefossem cegos para esse detalhe.

    Trs palavras diferentes do idioma kele so transliteradas pelos europeus como lisaka. Aspalavras se distinguem somente pela tonalidade de seus fonemas. Assim sendo, lisaka com trsslabas graves uma poa dgua; lisaka com a ltima slaba mais aguda (mas nonecessariamente destacada) uma promessa; e lisaka com as duas ltimas slabas agudas umveneno. Liala, com a segunda slaba aguda, significa noiva e liala, com as trs slabas graves,uma fossa de lixo. Na transliterao, as palavras parecem ser homnimas, mas no so.Quando finalmente se deu conta disso, Carrington recordou: Devo muitas vezes ter sidoculpado de pedir a um menino que remasse para um livro ou que pescasse que o amigo deleestava chegando.19 Aos europeus simplesmente faltava o apuro auditivo para captar asdistines. Carrington percebeu o quanto a confuso poderia se tornar cmica:

    alambaka boili [ _ _ _ _ ] = ele vigiou a margem

    alambaka boili [ _ _ ] = ele ferveu a sogra

    Desde o final do sculo xix os linguistas identificaram o fonema como a menor unidadeacstica capaz de fazer diferena no significado. A palavra inglesa chuck compreende trsfonemas: diferentes significados podem ser criados ao trocar ch por d, ou u por e, ou ck por m.Trata-se de um conceito til, mas imperfeito: os linguistas se surpreenderam com adificuldade enfrentada para se chegar a um acordo quanto ao inventrio preciso dos fonemaspresentes no ingls ou em qualquer outro idioma (para o ingls, a maioria das estimativas falaem 45 fonemas). O problema que um fluxo de fala representa uma continuidade; umlinguista pode separ-lo, abstrata e arbitrariamente, em unidades distintas, mas o significado

  • dessas unidades varia de falante para falante e depende do contexto. A compreenso instintivada maioria dos falantes em relao aos fonemas tambm parcial, afetada pelo conhecimentodo alfabeto escrito, que codifica a linguagem sua prpria maneira, s vezes arbitrria. Sejacomo for, os idiomas tonais, com sua varivel adicional, contm muito mais fonemas do quepareceu inicialmente aos linguistas inexperientes.

    Como os idiomas falados na frica elevaram a tonalidade a um papel crucial, a linguagemdos tambores foi obrigada a dar um difcil passo adiante. Ela empregava a tonalidade, apenas atonalidade. Tratava-se de uma linguagem que continha um nico par de fonemas, umalinguagem composta inteiramente por contornos entoacionais. Os tambores variavam quantoao material e tcnica de construo. Alguns eram de fenda, tubos de padauk, ocos, com umainciso longa e estreita que produz uma extremidade de som agudo e uma extremidade de sommais grave; outros eram cobertos por pelica, e eram usados aos pares. O nico detalheimportante era que os tambores precisavam produzir duas notas distintas, com um intervaloentre elas aproximadamente equivalente a uma tera maior.

    Dessa forma, ao fazer a correspondncia da linguagem falada com a linguagem dostambores, a informao se perdia. A fala dos tambores se tornava uma forma deficitria deconversa. Para cada vilarejo e cada tribo, a linguagem dos tambores comeava com a palavrafalada, que se desfazia das consoantes e vogais. Tratava-se de uma perda substancial. O fluxoda informao restante se via repleto de ambiguidade. Um golpe duplo na extremidade agudado tambor [_ _] era equivalente ao padro tonal da palavra da lngua kele para pai, sango, mas,naturalmente, podia tambm corresponder a songe, a Lua; koko, a ave domstica; fele, umaespcie de peixe; ou qualquer outra palavra formada por dois tons agudos. At o limitadodicionrio dos missionrios em Yakusu continha 130 palavras desse tipo. 20 Ao reduzir aspalavras faladas, com toda a sua riqueza snica, a um cdigo to minimalista, como ostambores poderiam distingui-las umas das outras? A resposta estava em parte na nfase e noritmo, mas essas caractersticas no podiam compensar a falta de consoantes e vogais. Sendoassim, como descobriu Carrington, um percussionista invariavelmente acrescentava umapequena frase a cada palavra curta. Songe, a Lua, referida como songe li tange la manga a Lua v a Terra de cima. Koko, a ave domstica, referida como koko olongo la bokiokio a ave domstica, a pequenina que diz kiokio. Longe de serem suprfluas, as batucadasexcedentes proporcionam o contexto. Cada palavra ambgua comea numa nuvem de possveisinterpretaes alternativas, mas ento as possibilidades indesejadas evaporam. Isso ocorreabaixo do nvel da conscincia. Os ouvintes esto escutando apenas um staccato de batucadasnos tambores, em tons mais graves e agudos, mas, na verdade, escutam tambm as vogais econsoantes ausentes. por isso que ouvem frases inteiras, e no palavras individuais. Entreos povos que nada sabem da escrita e da gramtica, uma palavra em si mesma, recortada deseu grupo sonoro, parece quase deixar de ser uma articulao inteligvel,21 relatou o capito

  • Rattray.

    As expresses recorrentes tambm fazem sua parte, usando sua redundncia para vencer aambiguidade. A linguagem dos tambores criativa, produzindo livremente neologismos paraas inovaes vindas do norte: barcos a vapor, cigarros e o Deus cristo so trs dos exemplosdestacados por Carrington. Mas os percussionistas comeam pelo aprendizado das frmulastradicionais fixas. Na verdade, as frmulas dos percussionistas africanos s vezes preservampalavras arcaicas que foram esquecidas na linguagem falada do cotidiano. Para os Yaunde, oelefante sempre o ser grande e desajeitado.22 A semelhana com as formas homricas no apenas Zeus, mas Zeus, aquele que rene as nuvens; no apenas o mar, mas o mar escurocomo o vinho no acidental. Numa cultura oral, a inspirao precisa atender primeiro clareza e memria. As Musas so as filhas de Mnemsine.

    Nem o idioma kele nem o ingls tinham na poca palavras para dizer: disponibilize bitsadicionais para eliminar ambiguidades e corrigir erros. No entanto, era isso que a linguagemdos tambores fazia. A redundncia ineficiente por definio serve como antdoto para aconfuso. Ela proporciona segundas chances. Toda linguagem natural contm algum tipo deredundncia. por isso que as pessoas so capazes de compreender textos repletos de erros etambm entender conversas num ambiente barulhento. A redundncia natural do ingls foi ainspirao do famoso pster visto no metr de Nova York nos anos 1970 (e do poema deJames Merrill):

    if u cn rd ths

    u cn gt a gd jb w hi pa!d

    (Este contraencanto pode salvar-lhe a alma,23 acrescenta Merrill.) Na maior parte dotempo, a redundncia na linguagem apenas parte do segundo plano. Para um telegrafista,trata-se de um dispendioso desperdcio. Para um percussionista africano, a redundncia essencial. Uma outra linguagem especializada nos proporciona uma analogia perfeita: alinguagem das comunicaes de rdio da aviao. Nmeros e letras compem boa parte dasinformaes trocadas entre pilotos e controladores do trfego areo: altitudes, vetores,nmeros de identificao das aeronaves, identificadores de pistas de trnsito e decolagem,frequncias de rdio. Trata-se de uma comunicao de importncia fundamental, transmitidapor meio de um canal notoriamente ruidoso, e por isso um alfabeto especial empregado paraminimizar a ambiguidade. Quando ditas, as letras B e V so fceis de confundir; bravo e victorso uma opo mais segura. M e N se tornam mike e november. No caso dos nmeros, five e

  • nine, especialmente dados a confuses, so falados como fife e niner. As slabas adicionaisdesempenham a mesma funo que a verborragia adicional dos tambores falantes.

    Depois de publicar seu livro, John Carrington chegou a uma forma matemtica decompreender esse aspecto. Um estudo preparado por um engenheiro telefnico dosLaboratrios Bell, Ralph Hartley, continha at uma frmula que parecia relevante: H = n log s,sendo H a quantidade de informao, n o nmero de smbolos na mensagem, e s o nmero desmbolos disponveis nessa linguagem.24 O colega mais jovem de Hartley, Claude Shannon,seguiu a deixa, e um de seus principais projetos passou a ser uma medio precisa daredundncia na lngua inglesa. Os smbolos poderiam ser palavras, fonemas, ou pontos etraos. As possibilidades de escolha dentro de um conjunto de smbolos variavam milpalavras ou 45 fonemas ou 26 letras ou trs tipos de interrupo num circuito eltrico. Afrmula quantificava um fenmeno relativamente simples (na verdade, considerado simplesapenas depois de ter sido percebido): quanto menor a quantidade de smbolos disponveis,maior o nmero de smbolos que precisa ser transmitido para comunicar uma quantidadedeterminada de informao. Para os percussionistas africanos, as mensagens tinham de tercerca de oito vezes o comprimento de suas equivalentes faladas.

    Hartley se esforou bastante para justificar o uso que fez da palavra informao. Em seuemprego mais comum, informao um termo muito elstico, escreveu ele, e primeiro sernecessrio prepar-lo para um significado mais especfico. Ele props que pensssemos nainformao em termos fsicos palavra empregada por ele , e no em termospsicolgicos. Acabou percebendo que as complicaes se multiplicavam. De maneira umpouco paradoxal, a complexidade emanava das camadas intermedirias de smbolos: letras doalfabeto, ou pontos e traos, que eram distintos e, portanto, fceis de contabilizar por simesmos. Era mais difcil medir as conexes entre esses substitutos e a camada inferior: aprpria voz humana. Era esse fluxo de sons repletos de significados que ainda parecia ser,tanto para os engenheiros telefnicos como para os percussionistas africanos, a verdadeiraforma da comunicao, por mais que o som, por sua vez, servisse como um cdigo para oconhecimento ou o significado subjacente. Fosse como fosse, Hartley imaginou que umengenheiro deveria ser capaz de fazer generalizaes a partir de todos os casos decomunicao: a escrita e os cdigos telegrficos, bem como a transmisso fsica do som pormeio de ondas eletromagnticas percorrendo fios telefnicos ou atravessando o ter.

    Ele nada sabia a respeito dos tambores, claro. E, to logo John Carrington comeou acompreend-los, eles comearam a desaparecer da cena africana. Carrington notou que osjovens Lokele praticavam cada vez menos a percusso, havia meninos em idade escolar queno sabiam nem mesmo seus prprios nomes na linguagem dos tambores.25 Isso o entristeceu.Ele tinha tornado os tambores falantes parte de sua prpria vida. Em 1954, um visitante dosEstados Unidos o encontrou administrando uma escola missionria no posto avanado

  • congols de Yalemba.26 Carrington ainda caminhava diariamente pela selva e, quando chegavaa hora do almoo, sua mulher o convocava com um recado rpido. Ela batucava: Espritohomem branco na floresta venha venha para casa de tbuas bem alta sobre esprito homembranco na floresta. Mulher com inhames espera. Venha venha.

    Em pouco tempo, surgiu uma gerao de pessoas para quem o rumo da tecnologia dacomunicao saltou diretamente do tambor falante para o celular, pulando os estgiosintermedirios.

    a A viagem foi financiada pela Sociedade Defensora da Extino do Comrcio de Escravos e da Civilizao da frica,com o objetivo de interferir na atividade dos traficantes de escravos.

    b*Uma experincia muito breve, no entanto, mostrou a superioridade do modo alfabtico, escreveu eleposteriormente, e as grandes folhas do dicionrio numerado, que me custaram tanto trabalho, [] foram descartadas esubstitudas pelo alfabtico. The superiority of the alphabetic mode. Samuel F. B. Morse, carta a Leonard D. Gale, emSamuel F. B. Morse: His Letters and Journals, v. 2, p. 65.

    c Os operadores logo aprenderam a distinguir entre os espaos de diferentes duraes entre as letras e entre aspalavras , de modo que o cdigo Morse empregava na verdade quatro sinais.

    d Uma traduo possvel seria: s vc csg lr sto/ pd enct um bm empg de slr lt!.

  • 2. A persistncia da palavra(No existe dicionrio na mente)

    Odisseu chorou quando ouviu o poeta cantar seus grandes feitos no exterior porque, uma vez cantados,estes deixavam de ser apenas seus. Passavam a pertencer a quem quer que ouvisse a cano.

    Ward Just, 20041

    Tente imaginar, props Walter J. Ong, padre jesuta, filsofo e historiador cultural, umacultura na qual ningum nunca deu uma olhada em nada.2 Para subtrair as tecnologias dainformao internalizadas no decorrer de dois milnios, necessrio um salto da imaginaode volta a um passado esquecido. A tecnologia que mais temos dificuldade em apagar damente a primeira de todas elas: a escrita. Esta surge na prpria aurora da histria, como deveser, pois a histria tem incio com a escrita. A anterioridade do passado depende disso.3

    So necessrios alguns milhares de anos para que o mapeamento da linguagem numsistema de smbolos se torne natural e, depois disso, no h como voltar a um estado deingenuidade. Foi esquecida a poca em que a nossa prpria conscincia das palavras vinha dev-las. Numa cultura fundamentalmente oral, como destacou Ong,

    a expresso dar uma olhada numa informao uma expresso vazia: ela no teria nenhum significadoconcebvel. Sem a escrita, as palavras em si no tm presena visual, mesmo quando os objetos que representam sovisuais. Elas so sons. Pode-se cham-las de volta memria rememor-las. Mas no existe nenhum lugar ondese possa dar uma olhada nelas. As palavras no tm foco nem deixam vestgio.

    Nos anos 1960 e 1970, Ong declarou que a era eletrnica seria uma nova era da oralidade mas de uma oralidade secundria, com a palavra dita ampliada e difundida como nuncaantes, mas sempre no contexto da alfabetizao: vozes ouvidas contra um fundo decomunicao impressa onipresente. A primeira era da oralidade tinha durado mais tempo.Correspondeu a quase toda a existncia da espcie humana, tendo sido a escrita umdesenvolvimento muito posterior, e a alfabetizao universalizada, um ponto nfimo nessatrajetria. Como Marshall McLuhan, com quem foi muitas vezes comparado (o outroeminente profeta catlico-eletrnico,4 afirmou um desdenhoso Frank Kermode), Ong teve ainfelicidade de expor suas interpretaes visionrias de uma nova era pouco antes de ela terincio. As novas mdias pareciam ser o rdio, o telefone e a televiso. Mas estes eram apenasfracos raios de luz que despontavam no cu noturno, uma indicao da fonte de luminosidadeque ainda estava alm do horizonte. Qualquer que fosse a interpretao de Ong a respeito dociberespao se seria fundamentalmente oral ou alfabtico , ele sem dvida reconheceriasua qualidade transformadora: no apenas uma revitalizao de formas mais antigas, mas algointeiramente novo. Ele pode ter pressentido a descontinuidade que viria a seguir, algo

  • semelhante ao surgimento da prpria alfabetizao. Poucos compreendiam melhor do que Onga profundidade daquela descontinuidade.

    Quando ele comeou seus estudos, literatura oral era uma expresso muito usada. Trata-se de um oximoro envolto no anacronismo as palavras implicam uma abordagemdemasiadamente inconsciente do passado por meio do presente. A literatura oral era, em geral,tratada como uma variao da escrita. Isso, de acordo com Ong, era um pouco como pensarnos cavalos como automveis sem rodas.5

    Pode-se, claro, tentar faz-lo. Imagine escrever um tratado sobre cavalos (para pessoas que nunca viram tal

    animal) que comece no com o conceito de cavalo, e sim com o de automvel, valendo-se da vivncia direta dosleitores com os automveis. O texto se dedicaria ento a discursar a respeito dos cavalos por meio de constantesreferncias a eles como automveis sem rodas, explicando a leitores fortemente automobilizados todos os pontos queos diferenciam. [] Em vez de rodas, os automveis sem rodas tm unhas do p maiores, chamadas cascos; em vez defaris, olhos; em vez de um revestimento de cera, algo chamado crina; em vez de usar a gasolina como combustvel,usam o feno, e assim por diante. No fim, os cavalos seriam apenas aquilo que no so.

    No que diz respeito compreenso do passado pr-alfabetizao, ns, indivduoscontemporneos, somos irreversivelmente automobilizados. A palavra escrita o mecanismopor meio do qual sabemos aquilo que sabemos. Ela organiza nosso pensamento. Podemos ter odesejo de compreender a ascenso da escrita tanto histrica como logicamente, mas histria elgica so elas mesmas produtos do pensamento alfabetizado.

    Por ser uma tecnologia, a escrita exige premeditao e o domnio de uma certa arte. J alinguagem no uma tecnologia, independentemente de seu grau de desenvolvimento e de suaeficcia. No d para enxerg-la como algo distinto da conscincia ela aquilo que aconscincia produz. A linguagem guarda em relao ao conceito da conscincia a mesmarelao que a legislao guarda com o conceito do parlamento, afirma Jonathan Miller:trata-se de uma competncia perpetuamente encarnada numa srie de atos concretos.6 Maisou menos o mesmo pode ser dito a respeito da escrita trata-se de um ato concreto mas,quando a palavra representada no papel ou na pedra, assume uma existncia separada comoartifcio. Ela o produto de ferramentas, e ela prpria uma ferramenta. E, como muitastecnologias que se seguiram, imediatamente encontrou detratores.

    Um improvvel luddista foi tambm um dos primeiros beneficiados a longo prazo. Plato(ecoando Scrates, que no escrevia) alertou que tal tecnologia significava empobrecimento:

    Pois esta inveno vai produzir esquecimento na conscincia daqueles que aprenderem a us-la, porque estes

    deixaro de treinar a memria. Sua confiana na escrita, produzida por caracteres externos que no fazem parte deles,vai desencorajar o uso de sua prpria memria, contida dentro deles. Vocs inventaram um elixir no da memria, masda lembrana; e oferecem a seus pupilos a aparncia da sabedoria, e no a sabedoria verdadeira.7

  • Caracteres externos que no fazem parte deles era esse o problema. A palavra escritaparecia insincera. Marcas artificiais no papiro ou na argila eram abstraes demasiadamentedistantes do real, o fluido e livre som da linguagem, to intimamente ligado ao pensamento aponto de parecer coincidir com ele. A escrita pareceu deslocar o conhecimento para longe dapessoa, guardar suas memrias num espao de armazenamento. Tambm separou o orador doouvinte, em muitos quilmetros ou anos. As mais profundas consequncias da escrita, para oindivduo e para a cultura, dificilmente poderiam ter sido previstas, mas at Plato foi capazde enxergar parte do poder dessa dissociao. O indivduo fala multido. Os mortos falamaos vivos, os vivos, aos ainda no nascidos. Como constatou McLuhan: Dois mil anos decultura manuscrita estavam por vir no Ocidente quando Plato fez essa observao.8 O poderdessa primeira memria artificial era incalculvel: o de reestruturar o pensamento, deengendrar a histria. Continua sendo incalculvel, embora uma estatstica nos d uma pista:apesar de o vocabulrio total de toda linguagem oral compreender alguns milhares depalavras, a linguagem que mais foi escrita, o ingls, conta com um vocabulrio documentadode bem mais de 1 milho de palavras, um corpo que ganha milhares de palavras todos os anos.Essas palavras no existem apenas no presente. Cada uma tem uma provenincia e umahistria que se mistura sua existncia atual.

    Com as palavras comeamos a deixar rastros, como migalhas de po: memrias na formade smbolos para ser seguidas pelos outros. As formigas se valem de seus feromnios, trilhasde informao qumica; Teseu desenrolou o fio de Ariadne. Agora as pessoas deixam trilhasde papel. A escrita passa a existir para possibilitar a reteno da informao ao longo dotempo e do espao. Antes da escrita, a comunicao temporria e local os sons sotransmitidos por alguns metros e ento se perdem para sempre. O carter temporrio dapalavra dita era um dado que dispensava reflexo. A fala era to transitria que o rarofenmeno do eco, um som ouvido uma vez e ento de novo, parecia ser um tipo de mgica.Esse milagroso rebote da voz recebeu um belo nome dos gregos, que o chamam de Eco,9escreveu Plnio. O smbolo falado, como observou Samuel Butler, perece instantaneamentesem deixar rastro material, e sua prpria existncia viva s se d na conscincia daqueles queo ouviram. Butler foi capaz de formular tal verdade justamente quando ela era falsificadapela primeira vez, pela chegada das tecnologias eletrnicas de captura da fala. Foiprecisamente por no ser mais cem por cento verdadeira que ela pde ser vista com clareza.Butler completou a distino: O smbolo escrito se estende infinitamente quando se trata dotempo e do espao, que representam os limites do alcance da comunicao de uma conscincia outra; ele confere conscincia do escritor uma vida limitada pela durao da tinta, do papele dos leitores, em contrapartida longevidade de seu prprio corpo de carne e osso.10

    Mas o novo canal faz mais do que estender o canal anterior. Ele permite a reutilizao e a

  • anamnese novos modos. Permite arquiteturas de informao inteiramente novas. Entreelas esto a histria, o direito, o comrcio, a matemtica e a lgica. Alm de seu contedo,essas categorias representam novas tcnicas. O poder no est apenas no conhecimento,preservado e passado adiante, por mais valioso que seja, e sim na metodologia: indicaesvisuais codificadas, o ato da transferncia, substituindo signos por coisas. E ento, mais tarde,signos por signos.

    H pelo menos 30 mil anos os humanos do paleoltico comearam a rabiscar e pintarformas que invocavam ao olhar imagens de cavalos, peixes e caadores. Esses signos inscritosna argila e nas paredes de cavernas serviam a propsitos artsticos ou mgicos, e oshistoriadores repudiam quem os chama de escrita, mas eles inauguraram o registro de estadosmentais numa mdia externa. Assim como os ns em cordas e em gravetos serviram comorecursos para auxiliar a memria eles podiam ser transportados como mensagens. Marcasem peas de cermica e argamassa poderiam indicar de quem seriam propriedade. Marcas,imagens, pictografias, petroglifos conforme essas novas formas foram se tornando cada vezmais estilizadas, convencionais e, portanto, cada vez mais abstratas, elas se aproximaramdaquilo que entendemos como escrita, mas faltava ainda uma transio crucial, a darepresentao das coisas para a representao da linguagem falada: ou seja, uma representaode segundo grau. Existe uma progresso do pictogrfico, escrever a figura; para o ideogrfico,escrever a ideia; e ento para o logogrfico, escrever a palavra.

    A escrita chinesa comeou a fazer essa transio entre 4500 e 8 mil anos atrs: signos quesurgiram como imagens passaram a representar unidades de som dotadas de significado.Como a unidade bsica era a palavra, milhares de smbolos distintos eram necessrios. Issotem um lado eficiente e um lado ineficiente. O chins unifica uma gama de linguagens faladasdistintas: pessoas que no conseguem falar umas com as outras podem escrever umas soutras. Emprega ao menos 50 mil smbolos, dos quais 6 mil so comumente usados econhecidos pela maioria dos chineses alfabetizados. Em geis traos diagramticos, elescodificam relacionamentos semnticos multidimensionais. Um recurso a simples repetio:rvore + rvore + rvore = floresta; abstraindo mais, sol + lua = brilho, e leste + leste = todaparte. O processo de composio cria surpresas: gro + faca = lucro; mo + olho = olhar. Oscaracteres podem ter seu significado alterado por meio de uma reorientao de seuselementos: de criana para nascimento, e de homem para cadver. Alguns elementos sofonticos, outros so at trocadilhos. Sua totalidade representa o mais rico e complexo sistemade escrita que a humanidade j desenvolveu. Considerando a escrita em termos do nmeronecessrio de smbolos e da quantidade de significado transmitida por um smbolo individual,o chins se tornou um caso extremo: o maior conjunto de smbolos, que so tambm

  • individualmente os mais ricos de significado. Os sistemas de escrita podiam tomar rumosalternativos: uma menor quantidade de smbolos, cada um deles carregando menosinformao. Um estgio intermedirio o silabrio, um sistema de escrita fontica usandocaracteres individuais para representar slabas, que podem ter significado ou no. Algumascentenas de caracteres podem transmitir uma linguagem.

    O sistema de escrita no extremo oposto foi aquele que mais demorou para emergir: oalfabeto, um smbolo para um som mnimo. O alfabeto a mais redutiva e subversiva dasformas de escrita.

    Em todas as linguagens da Terra existe apenas uma palavra para o alfabeto (alfabet,alphabet, , ). O alfabeto s foi inventado uma vez. Todos os alfabetosconhecidos, tanto os usados hoje como aqueles encontrados enterrados em tabuletas e pedras,descenderam do mesmo ancestral original, que surgiu perto do litoral oriental do marMediterrneo, em algum momento no muito antes de 1500 a.C., numa regio que mais tardese tornou uma encruzilhada politicamente instvel, correspondendo Palestina, Fencia e Assria. Ao leste jazia a grande civilizao da Mesopotmia, cuja escrita cuneiforme j existiahavia um milnio; descendo pela costa, ao sudoeste, havia o Egito, onde os hierglifos sedesenvolveram simultnea e independentemente. Os comerciantes tambm viajavam doChipre e de Creta, trazendo seus prprios sistemas incompatveis. Com glifos minoicos,hititos e anatlicos, o que existia era uma salada de smbolos. As classes sacerdotaisgovernantes eram investidas de seus sistemas de escrita. Quem quer que fosse dono da escritacontrolava tambm as leis e os ritos. Mas a autopreservao tinha de concorrer com o desejopela comunicao rpida. A escrita era conservadora; a nova tecnologia era pragmtica. Umsistema simblico reduzido, de apenas 22 signos, foi a inovao dos povos semitas quehabitavam a Palestina e seus arredores. Os estudiosos naturalmente apontam para Kiriath-sepher, que pode ser traduzido como cidade do livro, e Byblos, cidade de papiro, masningum sabe nem pode saber ao certo onde isso ocorreu. O palegrafo se depara comum problema bem peculiar. a prpria escrita que possibilita a existncia de sua histria. Aprincipal autoridade em alfabeto no sculo xx, David Diringer, citou um estudioso anterior:Nunca houve um homem que pudesse se sentar e dizer: Serei agora o primeiro humano aescrever.11

    O alfabeto foi difundido por meio do contgio. A nova tecnologia foi ao mesmo tempo ovrus e o vetor de transmisso. No poderia ser monopolizada nem suprimida. At as crianaseram capazes de aprender essas poucas letras, leves e semanticamente vazias. Rotasdivergentes levaram aos alfabetos do mundo rabe e do norte da frica; aos alfabetos hebreu efencio; passando pela sia Central, surgiu o brahmi e as demais formas indianas de escrita; echegaram Grcia. A nova civilizao que ali surgia elevou o alfabeto a um alto grau deperfeio. Entre outros, os alfabetos latino e cirlico seguiram seus moldes.

  • A Grcia no precisou do alfabeto para criar a literatura fato que os estudiososreconheceram, no sem certo rancor, a partir dos anos 1930. Foi ento que Milman Parry,linguista estrutural que se debruou sobre a tradio viva da poesia pica oral na Bsnia-Herzegovina, props que a Ilada e a Odisseia no apenas podem como devem ter sidocompostas e cantadas sem o benefcio da escrita. A mtrica, a redundncia formular, naverdade a prpria poesia das grandes obras servia principalmente para auxiliar a memria. Seupoder de encantamento fez do verso uma cpsula do tempo, capaz de transmitir umaverdadeira enciclopdia de cultura atravs das geraes. Sua argumentao, inicialmentecontrovertida, passou a ser considerada irresistivelmente persuasiva mas somente porqueos poemas foram de fato escritos, em algum ponto do sculo vi ou vii a.C. Esse ato atranscrio dos picos homricos ecoa pelas eras. Tratou-se de algo como uma trovoadana histria da humanidade, que o vis da familiaridade converteu no som das folhas de papelsobre uma escrivaninha,12 disse Eric Havelock, estudioso clssico britnico que seguiu ospassos de Parry. Aquilo se constituiu em uma intruso na cultura, com resultados que semostraram irreversveis. Foram estabelecidos os alicerces para a destruio do modo de vidaoral e dos modos orais de pensamento.

    A transcrio de Homero converteu essa grande poesia num novo suporte e fez dele algoque no tinha sido planejado: um fio momentneo de palavras recriado toda vez pelo rapsodo,desvanecendo-se enquanto ecoava no ouvido do ouvinte, tornou-se uma linha fixa e porttilnuma folha de papiro. Restava saber se esse modo estranho e impessoal se adequaria criaode poesias e canes. Enquanto isso, a palavra escrita ajudou formas mais mundanas dediscurso: peties aos deuses, enunciaes de leis e acordos econmicos. A escrita tambmpossibilitou o surgimento do discurso sobre o discurso. Os textos escritos se tornaram objetode um novo tipo de interesse.

    Mas como as pessoas poderiam falar a respeito deles? As palavras que descrevem oselementos desse discurso no existiam no lxico de Homero. A linguagem de uma cultura oralteve de ser adaptada a novas formas; assim, um novo vocabulrio emergiu. Os poemaspassaram a ser vistos como parte de um tpico palavra que antes significava lugar. Elestinham estrutura, pela analogia com os edifcios. Eram feitos de trama e dico. Aristtelespodia agora ver o trabalho dos bardos como representaes da vida, nascidas do impulsonatural no sentido da imitao que tem incio na infncia. Mas ele tambm precisou considerara escrita que serve a outros propsitos os dilogos socrticos, por exemplo, e os tratadosmdicos ou cientficos , e esse tipo geral de trabalho, que inclua previsivelmente o deleprprio, parece no ter, at o momento atual, nenhum nome.13 Ainda estava em construotodo um reino de abstrao, forosamente divorciado do concreto. Havelock descreveu issocomo uma guerra cultural, uma nova conscincia e uma nova linguagem em confronto com aantiga conscincia e a antiga linguagem:

  • Seu conflito produziu contribuies essenciais e permanentes ao vocabulrio de todo o pensamento abstrato. Corpo

    e espao, matria e movimento, permanncia e mudana, qualidade e quantidade, combinao e separao, esto entreos balces de moeda comum agora disponveis.14

    O prprio Aristteles, filho do mdico do rei da Macednia e um vido e organizadopensador, estava tentando sistematizar o conhecimento. A persistncia da escrita tornoupossvel a imposio de uma estrutura quilo que se sabia na poca a respeito do mundo e,ento, quilo que se sabia a respeito do conhecimento. Assim que se tornou possvel registraras palavras, examin-las, olh-las com outros olhos no dia seguinte e meditar a respeito de seusignificado, surgiu o filsofo, e o filsofo partia de uma tbula rasa e um vasto projeto dedefinio a ser empreendido. O conhecimento pde comear a puxar a si mesmo peloscadaros das botas. Para Aristteles, mesmo as noes mais bsicas eram merecedoras deregistro, e era necessrio registr-las:

    U m comeo aquilo que, em si, no se segue necessariamente a nenhuma outra coisa, mas uma segunda coisa

    existe ou ocorre naturalmente depois dele. Da mesma maneira, um fim aquilo que em si segue naturalmente algumaoutra coisa, seja necessariamente ou em geral, mas no h nada depois dele. Um meio aquilo que em si vem depois dealguma coisa, e alguma outra coisa se segue a ele.15

    Essas so afirmaes no da experincia, mas dos usos da linguagem para estruturar aexperincia. Da mesma forma, os gregos criaram categorias (palavra cujo significado originalera o de acusaes ou previses) para classificar as espcies de animais, insetos e peixes.Depois disso, eles puderam ento classificar as ideias. Esse foi um modo de pensar estranho eradical. Plato alertou que isso afastaria a maioria das pessoas:

    A multido no pode aceitar a ideia da beleza em lugar de muitas coisas belas, nem nada que tenha sido concebido

    em sua essncia em vez de muitas coisas especficas. Assim, a multido no pode ser filosfica.16

    Por multido podemos entender os pr-letrados. Eles se perdem e vagam em meio multiplicidade de coisas variadas,17 declarou Plato, pensando na cultura oral que ainda oenvolvia. Eles no tm um padro vvido em suas almas.

    E que padro vvido seria esse? Havelock se concentrou no processo de converso, namente, de uma prosa da narrativa numa prosa de ideias; na organizao da experincia emtermos de categorias, e no de eventos; na adoo da disciplina da abstrao. Ele tinha umapalavra em mente para se referir a esse processo, e a palavra era pensamento. Essa foi adescoberta no apenas do ser, mas do ser pensante de fato, o verdadeiro comeo da

  • conscincia.

    Em nosso mundo de alfabetizao consolidada, pensar e escrever parecem ser atividadesque guardam pouca relao entre si. Podemos imaginar que a segunda depende da primeira,mas o contrrio certamente no seria vlido todos pensam, sejam capazes de escrever ouno. Mas Havelock estava certo. A palavra escrita a palavra perene foi um pr-requisitopara o pensamento consciente como o concebemos. Ela foi o gatilho de uma mudanaabrangente e irreversvel na psique humana e psique foi a palavra preferida porScrates/Plato enquanto lutavam para entend-la. Plato, como diz Havelock,

    est tentando pela primeira vez na histria identificar esse grupo de qualidades mentais gerais, e buscando um termo

    com o qual rotul-las satisfatoriamente dentro de um mesmo tipo. [] Foi ele que anunciou a profecia e a identificoucorretamente. Ao faz-lo, ele por assim dizer confirmou e se apoderou dos palpites de uma gerao anterior, que estavatateando no rumo da ideia de que era possvel pensar, e que o pensamento era um tipo muito especial de atividadepsquica, muito desconfortvel, mas tambm muito excitante, e tambm um tipo que exigia um emprego bastanteinovador do grego.18

    Ao dar o passo seguinte no caminho da abstrao, Aristteles empregou categorias erelaes numa ordem sistemtica para desenvolver um simbolismo do raciocnio: a lgica de , logos, a palavra quase impossvel de traduzir a partir da qual tantos significadosfluem, como fala ou razo ou discurso ou, enfim, apenas palavra.

    A lgica pode ser imaginada como algo que existe independentemente da escrita silogismos podem ser ditos tanto quanto escritos , mas isso no verdadeiro. A fala passageira demais para se prestar a uma anlise. A lgica descendeu da palavra escrita, tantona Grcia como na ndia e na China, onde ela se desenvolveu de forma independente.19 Algica transforma o ato da abstrao numa ferramenta para determinar aquilo que verdadeiroe aquilo que falso: a verdade pode ser descoberta simplesmente nas palavras, afastada daexperincia concreta. A lgica assume sua forma em sucessivas cadeias: sequncias cujosmembros se conectam uns aos outros. As concluses so tiradas a partir de premissas. Estasexigem certo grau de constncia. No tm fora a no ser que possam ser examinadas eavaliadas. Em comparao, uma narrativa oral se d por meio do acrscimo, com as palavrasdesfilando em coluna diante da bancada da plateia, brevemente presentes e ento passadas,interagindo umas com as outras por meio da memria e da associao. No h silogismo emHomero. A experincia disposta em termos de eventos, e no categorias. Somente com aescrita a estrutura narrativa passa a encarnar um argumento racional sustentado. Aristtelesatingiu outro nvel ao enxergar o estudo de tal argumentao no apenas seu emprego, masseu estudo como uma ferramenta. A lgica aristotlica expressa uma contnuaautoconscincia em relao s palavras com as quais as argumentaes so compostas.

  • Quando Aristteles desvenda premissas e concluses Se no possvel que homem nenhumseja um cavalo, ento tambm admissvel que nenhum cavalo seja um homem; e se no admissvel que nenhuma pea de roupa seja branca, ento tambm inadmissvel que algobranco seja uma pea de roupa. Pois, se algo branco for uma pea de roupa, ento algumapea de roupa ser necessariamente branca ,20 ele no exige nem pressupe nenhumaexperincia pessoal com cavalos, peas de roupa ou cores. Ele j deixou esse domnio. Mas,ainda assim, busca criar conhecimento por meio da manipulao das palavras, talvez at umaforma superior de conhecimento.

    Sabemos que a lgica formal a inveno da cultura grega depois que esta interiorizou atecnologia da escrita alfabtica, afirma Walter J. Ong o que tambm vale para ndia eChina , e, assim, tornou o tipo de pensamento possibilitado pela escrita alfabtica umaparte permanente de seus recursos mentais.21 Em busca de provas, Ong se volta para otrabalho de campo do psiclogo russo Aleksandr Romanovich Luria entre os povos iletradosdas remotas regies do Uzbequisto e do Quirguisto na sia Central dos anos 1930.22 Luriadescobriu notveis diferenas entre os sujeitos iletrados e os letrados, mesmo quelimitadamente letrados, mas no naquilo que sabiam, e sim em sua maneira de pensar. Lgicaimplica simbolismo: coisas fazem parte de classes, possuem qualidades que so abstradas egeneralizadas. Os povos orais no contavam sequer com as categorias que se tornam naturaisat para indivduos iletrados que vivem em culturas letradas: as formas geomtricas, porexemplo. Quando mostraram a eles desenhos de crculos e quadrados, eles os identificaramcomo prato, coador, balde, relgio ou lua e espelho, porta, casa, tbua de secagem dedamascos. No eram capazes de aceitar silogismos lgicos, ou se recusavam a faz-lo. Umapergunta tpica:

    No Extremo Norte, onde h neve, todos os ursos so brancos.

    Nova Zembla fica no Extremo Norte e sempre h neve por l.

    De que cor so os ursos?

    Resposta tpica: No sei. J vi um urso preto. Nunca vi de outro tipo. [] Cada localidadetem seus prprios animais.

    Em comparao, um homem que tenha acabado de aprender a ler e escrever responderia:A julgar por suas palavras, eles devem ser todos brancos. A julgar por suas palavras nessa frase, um nvel ultrapassado. A informao foi dissociada de um indivduo, dissociadada vivncia do falante. Ela passa a residir nas palavras, pequenos mdulos de suporte vital. Aspalavras ditas tambm transportam informao, mas no com a autoconscincia que a escritatraz. Os povos letrados consideram sua prpria conscincia das palavras como um dado, juntocom o conjunto de mquinas relacionadas palavra: classificao, referncia, definio. Antes

  • da alfabetizao, no havia nada de bvio em tcnicas como essas. Tente me explicar o que uma rvore, diz Luria, e um campons responde: Por que eu deveria faz-lo? Todo mundosabe o que uma rvore, e ningum precisa que eu explique isso.

    Na prtica, o campons tinha razo,23 comenta Ong. No h maneira de refutar o mundoda oralidade primria. S podemos nos afastar dela em direo alfabetizao.

    tortuosa a jornada das coisas s palavras, das categorias s metforas e lgica. Por maisantinatural que parecesse a tarefa de definir rvore, era ainda mais difcil definir palavra, epalavras auxiliares teis como definir no estavam disponveis no comeo, pois nunca existiraa necessidade delas. Na infncia da lgica, uma forma de pensamento precisava ser inventadaantes que seu contedo pudesse ser preenchido,24 afirma Benjamin Jowett, tradutor deAristteles do sculo xix. As lnguas faladas precisavam evoluir mais.

    Linguagem e raciocnio se encaixaram to bem que seus usurios nem sempre conseguiamver seus defeitos e lacunas. Ainda assim, to logo alguma cultura inventou a lgica, osparadoxos surgiram. Na China, o filsofo Gongsun Long, quase contemporneo a Aristteles,capturou alguns desses paradoxos sob a forma de um dilogo, conhecido como Quando umcavalo branco no um cavalo.25 Foi escrito em tiras de bambu amarradas por fios, antes dainveno do papel. O dilogo tem incio:

    Ser possvel que um cavalo branco no seja um cavalo?

    Sim, possvel.

    Como?

    Cavalo aquilo por meio do qual damos nome forma. Branco aquilo por meio do qual damos nome cor.Aquilo que d nome cor no aquilo que d nome forma. Assim, digo que um cavalo branco no um cavalo.

    primeira vista, trata-se de algo insondvel. Comea a fazer sentido ao ser consideradouma afirmao a respeito da linguagem e da lgica. Gongsun Long era membro da Mingjia, aEscola dos Nomes, e seu mergulho nesses paradoxos deu origem em parte quilo que oshistoriadores chineses chamam de crise da linguagem, um debate contnuo a respeito danatureza da linguagem. Os nomes no so os objetos que nomeiam. Classes no coincidemcom subclasses. Assim, inferncias de aparncia inocente so postas em xeque: Um homemno gosta de cavalos brancos no implica que um homem no gosta de cavalos.

    Voc acha que cavalos que tm cor no so cavalos. No mundo, no se pode dizer que h cavalos sem cor. Ser

    possvel que no haja cavalos no mundo?

    O filsofo esclarece o processo de abstrao em classes com base em propriedades:

  • brancura, equinidade. Ser que essas classes fazem parte da realidade, ou ser que existemapenas na linguagem?

    Os cavalos sem dvida tm cor. Assim, h cavalos brancos. Se fosse possvel que os cavalos no tivessem cor, entohaveria apenas cavalos, e ento como seria possvel escolher um cavalo branco? Um cavalo branco um cavalo e branco. Um cavalo e um cavalo branco so diferentes. Assim, digo que um cavalo branco no um cavalo.

    * * *

    Dois milnios mais tarde, os filsofos continuam tentando entender esses textos. Os rumosda lgica que conduzem ao pensamento moderno so indiretos, entrecortados e complexos.Como os paradoxos parecem fazer parte da linguagem, ou envolver a linguagem, uma formade bani-los era purificar o suporte: eliminar as palavras ambguas e a sintaxe vaga, empregarsmbolos que fossem rigorosos e puros. Ou seja, voltar-se para a matemtica. No incio dosculo xx, parecia que somente um sistema de smbolos construdos para atender a umpropsito especfico poderia fazer a lgica funcionar como deveria livre de erros eparadoxos. Esse sonho se revelaria nada mais do que uma iluso os paradoxos encontrariamuma maneira de voltar, mas ningum podia esperar compreend-los at que os rumos da lgicae da matemtica convergiram.

    A matemtica tambm se seguiu inveno da escrita. A Grcia costuma ser considerada afonte do rio que se torna a matemtica moderna, com todos os seus muitos afluentes nodecorrer dos sculos. Mas os prprios gregos aludiram a outra tradio antiga, para eles ,que chamavam de caldeia, e que acreditamos ser babilnica. Essa tradio desapareceu emmeio s dunas, e s voltou superfcie no fim do sculo xix, quando tabuletas de argila foramdesenterradas das runas de cidades perdidas.

    As primeiras dezenas logo se tornaram milhares de tabuletas, em sua maioria do tamanhoda mo de um humano, gravadas numa escrita distinta e angular conhecida como cuneiforme,em forma de cunha. A escrita cuneiforme plenamente desenvolvida no era pictogrfica (ossmbolos eram redundantes e abstratos) nem alfabtica (eram numerosos demais). Em 3000a.C. um sistema com cerca de setecentos smbolos floresceu em Uruk, a cidade murada,provavelmente a maior do mundo, lar do rei-heri Gilgamesh, nos pntanos aluviais perto dorio Eufrates. Arquelogos alemes investigaram Uruk numa srie de escavaes ao longo dosculo xx. O material desta que era a mais antiga das tecnologias da informao estava sempredisponvel. Segurando argila mida numa das mos e um instrumento pontiagudo de junco naoutra, um escriba gravava pequenos caracteres dispostos em linhas e colunas.

    O resultado: mensagens crpticas de uma cultura aliengena. Foi preciso geraes para

  • Uma tabuleta cuneiforme.

    decifr-las. A escrita, como a cortina de um teatro se abrindo pararevelar essas impressionantes civilizaes, permitiu que olhssemosdiretam