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Os trabalhadores e a relação com a natureza de São Paulo no final do século XIX e início do XX. EDUARDO LUIZ FORTTI * I. Introdução: Difícil não se deparar, atualmente, com notícias, campanhas e debates sobre a disputa política travada entre os defensores do meio ambiente e a alta burguesia industrial, agropecuária e o Estado, para os quais, a preservação do meio ambiente muitas vezes é um entrave para o desenvolvimento econômico. A exemplo disso, podemos citar, em âmbito nacional, o caso da construção da Usina de Belo Monte e da Transposição do Rio São Francisco, e em âmbito estadual, a construção do Rodoanel no Estado de São Paulo. No entanto, este embate não está presente apenas nas grandes obras, mas também nos pequenos detalhes do cotidiano, que passam muitas vezes despercebidas, como por exemplo, a discussão enfrentada recentemente na cidade de São Paulo sobre a utilização de sacolas plásticas no comércio. No âmbito internacional, a decisão do presidente estadunidense, Donald Trump, de sair do Acordo de Paris, com o argumento de que este ofereceria injustas vantagens econômicas para outros países em detrimento dos Estados Unidos e seria uma das causas da destruição dos empregos norte-americanos, é mais um exemplo do embate existente entre desenvolvimentismo e a defesa do meio ambiente. Neste sentido, torna-se a cada dia mais evidente as desastrosas consequências que as opções políticas e econômicas e o descaso social com a natureza têm gerado, como a catástrofe ambiental na cidade mineira de Mariana, a poluição da Lagoa Rodrigo de Freitas no Rio de Janeiro, a recente crise hídrica, que aparentemente está voltando em 2018, enfrentada no Estado de São Paulo, apenas para citar alguns exemplos. * Mestrando em História, com a orientação do Dr. Prof. Janes Jorge, pela Universidade Federal de São Paulo (EFLCH/UNIFESP).

Os trabalhadores e a relação com a natureza de São Paulo ......Lagoa Rodrigo de Freitas no Rio de Janeiro, a recente crise hídrica, que aparentemente está voltando em 2018, enfrentada

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Os trabalhadores e a relação com a natureza de São Paulo no final do século XIX e

início do XX.

EDUARDO LUIZ FORTTI*

I. Introdução:

Difícil não se deparar, atualmente, com notícias, campanhas e debates

sobre a disputa política travada entre os defensores do meio ambiente e a alta burguesia

industrial, agropecuária e o Estado, para os quais, a preservação do meio ambiente

muitas vezes é um entrave para o desenvolvimento econômico. A exemplo disso,

podemos citar, em âmbito nacional, o caso da construção da Usina de Belo Monte e da

Transposição do Rio São Francisco, e em âmbito estadual, a construção do Rodoanel no

Estado de São Paulo.

No entanto, este embate não está presente apenas nas grandes obras, mas

também nos pequenos detalhes do cotidiano, que passam muitas vezes despercebidas,

como por exemplo, a discussão enfrentada recentemente na cidade de São Paulo sobre a

utilização de sacolas plásticas no comércio.

No âmbito internacional, a decisão do presidente estadunidense, Donald

Trump, de sair do Acordo de Paris, com o argumento de que este ofereceria injustas

vantagens econômicas para outros países em detrimento dos Estados Unidos e seria uma

das causas da destruição dos empregos norte-americanos, é mais um exemplo do embate

existente entre desenvolvimentismo e a defesa do meio ambiente.

Neste sentido, torna-se a cada dia mais evidente as desastrosas

consequências que as opções políticas e econômicas e o descaso social com a natureza

têm gerado, como a catástrofe ambiental na cidade mineira de Mariana, a poluição da

Lagoa Rodrigo de Freitas no Rio de Janeiro, a recente crise hídrica, que aparentemente

está voltando em 2018, enfrentada no Estado de São Paulo, apenas para citar alguns

exemplos.

*Mestrando em História, com a orientação do Dr. Prof. Janes Jorge, pela Universidade Federal

de São Paulo (EFLCH/UNIFESP).

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Dessa forma, é possível vislumbrar que o embate entre desenvolvimento

econômico e preservação do meio ambiente é um embate cotidiano e histórico, e cada

vez mais, a sua discussão tem se mostrado fundamental e urgente.

Segundo a doutora em História da América e professora associada e

coordenadora da linha de História Ambiental do Departamento de História da

Universidade Nacional da Colômbia, Stefanie Gallini, o debate em torno desta linha na

América Latina começa em 1980, e vem crescendo com desenvolvimento de

departamentos, revistas acadêmicas e publicações. Além de descobrir a sua riqueza para

as pesquisas e sua interdisciplinaridade (GALLINI. 2009: 93-96).

É um grande desafio pensar essas questões para quem vive em uma cidade

como São Paulo, tão afastada da natureza, mas ao mesmo tempo essa tarefa, analisada

historicamente pode ser um estímulo devido as grandes transformações econômicas,

urbanísticas e demográficas, em que ela passou por volta de um século atrás. Isso ao

acrescentar a questão: como era a relação da população da cidade com a sua natureza

outrora?

Para termos algum resultado, partimos do pressuposto de que a natureza,

historicamente, foi alvo de ações humanas, e que é preciso entender os motivos dessas

intervenções, de onde elas partem, quais são seus objetivos intrínsecos, quais são as

consequências que essas mudanças podem causar na formação e desenvolvimento da

sociedade. Segundo o debate sobre história ambiental:

“violência contra a natureza esteve acompanhada, e de perto, pela violência

contra os seres humanos. No caso brasileiro, as fontes e documentação para

uma História Ambiental podem ser, inicialmente, aquelas já utilizadas e

conhecidas pela historiografia, examinadas, agora, sob novas lentes do

historiador.” (MARTINEZ, 2006: 28)

Com isso, um caminho possível é pensar nas formas de alimentação,

lazer, comércio e trabalho, existentes na cidade de São Paulo. Para isso utilizaremos o

mesmo preceito empregado por Norberto Osvaldo Ferreras (FERRERAS, 2006) em seu

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trabalho sobre o cotidiano dos trabalhadores de Buenos Aires (1880-1920), segundo o

qual “a classe é um processo histórico, não um conceito a ser demonstrado. As classes,

como apresenta Thompson no debate com os estruturalistas, não são categorias

abstratas, podendo ser analisadas pelos papéis que os homens representam, à medida

que se sentem pertencentes à classe. A classe é uma relação entre pessoas, não uma

coisa, e ela se constrói a si própria, tanto quanto é construída pelas condições objetivas e

pelos seus adversários”(IDEM,:20).

Além disso, para acrescentar ainda mais nesta discussão, observando

algumas passagens de Emília Viotti da Costa, ao lembrar-se do debate entre

estruturalistas e os que defendem a experiência para entender a formação dos grupos de

trabalhadores, no texto sobre Estrutura Versus Experiência, citando Erickson, Pappe e

Spalding, que afirmam não ser possível entender as ações dos trabalhadores sem

incorporar às análises dos conflitos de elites e o papel do capitalismo internacional que

limita o campo de possibilidades abertas aos trabalhadores latino-americanos(COSTA,

1990: 4).

Continuando, Viotti, coloca questões importantes para pensar essa formação

de classe, ela cita o trabalho de Florencia Mallon (1980) para exemplificar como é

possível fazer uma história da classe trabalhadora pensando nas suas múltiplas

identidades. Como religião, etnia, partido político, classe, de que maneira a identidade

de classe vem a prevalecer sobre outros tipos de identidade?(IDEM: 7)

Por fim, buscamos demonstrar que os historiadores tem o dever de sempre

manter um diálogo entre passado e presente e que isso nos faz transformar os modos de

olhar a história e pensar o passado de novas perspectivas. E que podemos fazer sínteses

evitando formas de reducionismo e, principalmente, que não perderá de vista a

articulação entre o micro e a macrofisica do poder. E também estender o debate para

formação dessa nova história, ligando visões mais tradicionais com o novo (COSTA,

1998: 20).

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Visto isso, este trabalho se divide em três momentos para pensar a utilização

da natureza pela população da cidade de São Paulo: 1º uma breve apresentação da

cidade de São Paulo na virada do século XIX para o XX; 2º de trabalho e alimentação;

3º esporte e lazer.

II. A cidade:

Com o final do Império brasileiro, a liderança política e econômica ficou

concentrada com um grupo pequeno, porém poderoso, que detinha, principalmente, a

produção de café em suas mãos. Essa nova liderança nacional tinham a intenção de

montar no Brasil, superando o que era considerado atrasado dentro do seu ponto de

vista.

Essa elite do café, inspirada pela, muitas vezes, cultura europeia,

promovendo reformas e construções de cidades. Desta forma a engenharia e a

arquitetura deveriam se alinhar as ideias higienistas, médicas e de nova educação, para

se parecer com as que eles visitavam no velho continente (SANT’ANNA, 2011:303).

Além dessas propostas que desembarcava em São Paulo, chegava também

um grande contingente de trabalhadores vindos da Europa. Por inúmeros motivos, entre

eles, falta de trabalho e questões políticas (BIONDI, 2006:161).

Quando olhamos para cidade de São Paulo da virada do século XIX para o

XX, temos que perceber que ela viva uma verdadeira revolução demográfica, provocada

pelo aumento considerável de seus habitantes em um curte espaço de tempo e num

ritmo acelerado e com isso transformando seus habitantes, contribuindo na formação de

uma população proletária de imigrantes (PINTO, 1994: 33 e 35).

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Um turbilhão de mudanças, rápidas e numerosas acontecia na cidade, nas

palavras de Sevcenko:

“[...] São Paulo não era de negros, nem de brancos, e nem de mestiços; nem

de estrangeiros e nem de brasileiros; nem americana, nem europeia, nem

nativa; nem industrial, apesar do volume crescente das fabricas, nem

entreposto agrícola, apesar da importância crucial do café, não era tropical,

nem subtropical; não era ainda moderna, mas já tinha mais passado. Essa

cidade que brotou súbita e inexplicavelmente, como um colossal cogumelo

depois da chuva, era um enigma para seus próprios habitantes, perplexos,

tentando entende-lo como podiam, enquanto, lutavam para não serem

devorados.” (SEVCENKO, 2009:31).

Então essa grande transformação que a cidade passou na virada para o

século XX, desenvolvimento da economia do café, a industrialização e as políticas

migratórias transformaram a cidade em no grande centro demográfico e econômico do

Brasil. Em 1890 a população era de 64.934 pessoas, em 1920 chegava a ter 579.033

(IDEM). O cotidiano dessa população era diversificado, entre a elite cafeeira, que se

inspirava na cultura Europeia para construir seu local de convívio e uma grande massa

de pessoas pobres que sobreviviam com o conhecimento da terra natal e com o que a

cidade poderia oferecer.

A classe mais abastada que sonhava com uma cidade europeizada, como o

que produzia incomodo deveria ficar afastada do seu campo de visão, vai enfrentar um

cotidiano um tanto quanto diferente do que ela imaginava. O Código de Posturas

Municipal de São Paulo de 18861, editado no final do Império brasileiro, demonstra que

a elite política já se preocupava com as questões de higiene, disciplina e padronização

para desenvolvimento da cidade.

Porém, as questões econômicas e políticas poderiam até estar nas mãos da

elite do café, mas existia um grande grupo excluído das decisões, que viviam de formas

informais, sobreviviam do jeito que conseguiam, produzindo assim uma economia

1 O Código de Posturas da Cidade de São Paulo 1886. Encontra-se na biblioteca do Arquivo Municipal

de São Paulo Washington Luís. Ele está dividido em 22 títulos ditando novas regras para o município de

São Paulo em diversas áreas que faziam parte do cotidiano da população.

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invisível (PINTO, 1994:109-182) e frequentando, muitas vezes, os mesmos espaços

abertos que a elite circulava.

III. Trabalho e alimentação:

“Salvador peixeiro traz sôbre os ombros um pau roliço de cujas pontas

pendem dois cêstos, a modo dos peixeiros da China: tainha (peixe

ordinário), badejo, garoupa, robalo, camarões. Um robalo grande (para o

casal e 4 filhos e mais três empregadas) por 1,500, com camarões de graça,

para contrapeso.

Vem outro peixeiro. É um caipira que andou pescando uma dúzia de bagres

no Tietê. Está descalço, e traz os peixes enfiados pela guelra num cipó.”

(AMERICANO, 1954: 113-114)

Num tempo não tão distante, parte do comércio na cidade de São

Paulo foi realizado da forma como é retratado por Jorge Americano no seu livro de

memórias.

A incapacidade estrutural da economia paulistana em acomodar amplos

contingentes da classe trabalhadora disponível no processo produtivo, além de

contribuir para o desemprego permanente de largas parcelas do proletariado urbano,

influiu decisivamente no crescimento do mercado casual de trabalho e no aparecimento

dos mais variados tipos de profissões autônomas. O aumento populacional súbito da

cidade em decorrência do grande influxo imigratório, não foi proporcional ao seu

desenvolvimento econômico, as possibilidades de gerar empregos, o que ocasionou a

ampla persistência do casualismo e do semi-emprego (PINTO, 1994: 111). Era comum

encontrar uma diversidade de trabalhadores pobres, perambulando pela cidade,

vendendo uma diversidade de produtos, aqui ficaremos com o foco dos que trabalhavam

com ligação com a natureza, mas era comum, além dos vendedores de peixe

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encontramos amoladores de facas, baleiro, sorveteiro, entre outros (AMERICANO,

1954: 111 – 122).

A cidade de São Paulo, como foi citada anteriormente, cresce de forma

assustadora e tem um surto na expansão econômica, acentuada na década de 1880. Esse

crescimento da cidade deveu-se não só a sua consolidação como grande centro

capitalista agenciador das atividades agrícolas, integrador regional, a sua afirmação

como mercado distribuidor e receptador de produtos e serviços, mas também ao influxo

de imigrantes ou não, que ali permaneciam (PINTO, 1994: 33).

A imensa corrente imigratória favoreceu mais, nos seus primeiros tempos, a

pobreza do que a propriamente prosperidade dos imigrantes. Essa miséria do

trabalhador pobre em São Paulo deve ser vista como um problema estrutural, cujas

raízes devem ser remetidas, além dos problemas inerentes a uma sociedade capitalista

do Novo Oeste Paulista, empenhada em gerar a grande abundância de braços para a

lavoura e, em decorrência disso, o barateamento dos preços dos salários agrícolas

(IDEM: 37).

Observando com mais cuidado, podemos perceber que a incapacidade

estrutural da economia paulistana em acomodar amplos contingentes de classe

trabalhadora disponível no processo produtivo, além de contribuir decisivamente no

crescimento do mercado casual de trabalho e o aparecimento dos mais variados tipos de

profissões autônomas, criou setores que foram incluídos na chamada economia invisível

(IDEM: 109 - 111), ou seja, no trabalho informal.

O comércio ambulante, sobretudo de alimentos e produtos fundamentais à

rotina doméstica, representava a alternativa de trabalho para muitos que procuravam

alguma forma de ocupação, e para muitas donas-de-casa representava uma opção para

complementar seus suprimentos, comprando os alimentos que eram oferecidos

diariamente nas ruas (IDEM: 123).

Muitos desses trabalhadores se aproveitavam das áreas verdes, matas e rios

para produzir, através da caça e da pesca, os gêneros alimentícios comprados pelas

donas-de-casa. Como relata o historiador Janes Jorge, “para a multidão de imigrantes

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que se instalou em São Paulo a partir de fins do século XIX, e, sobretudo, no caso dos

pobres, conhecer o Rio Tietê e seus afluentes, mais especificamente os recursos naturais

que estes ofereciam, podia significar escapar da fome ou do desemprego” (JORGE,

2006: 88). E acrescenta, “quem tivesse sorte nas pescarias podia vender o excedente

conseguido no movimentado comércio de São Paulo (IDEM: 96)”.

Este meio de sobrevivência junto à natureza não é exclusividade do período

de mudança para o século XX, sendo, em verdade, uma continuidade de períodos

anteriores, como mostra o trabalho da historiadora Maria Odila Leite da Silva Dias, que

foi buscar documentação para incluir as mulheres na história, entre os oficio relatados

temos a trajetória das lavadeiras na cidade de São Paulo. E com o que ela encontrou

demonstra que a sobrevivência junto por meio da natureza que a cidade apresentada não

é exclusividade do período da lembrança de Americano.

Escreve:

“na beira dos rios, com os filhos às costas, desmanchavam as trouxas,

lavavam dentro d’água e às vezes estendiam roupas para secar nas guardas

das pontes. Estas eram pontos de encontro concorridos, onde se cobrava

pedágio e se reuniam comerciantes e caixeiros para bater papo e olhar as

lavadeiras.” (DIAS, 1995: 25)

Além do trabalho como lavadeiras encontramos “o movimento das roceiras

que passavam vendendo ovos, hortaliças e peixes fresco ‘por tutaméia’”(IDEM) e um

grande vaievém marcava a dura luta de sobrevivência de uma maioria de mulheres sós

chefes de família”(IDEM).

Apesar da vontade dos mais abastados de não ver mais o que incomodava os

seus olhos, ainda era muito comum a circulação vendedores ambulantes que

apresentavam-se longe desta vontade. Utilizando novamente a memória de Americano,

contando como era, um tipo, de venda de frango na cidade de São Paulo:

“Um homem traz às costas uma jacá de taquara prêso a tira colo. Pelos vãos

largos do tecido passam cabeças de frango.

- Quanto custa o frango?

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- Mil e quinhentos.

- Dou mil e duzentos.

Discute-se, e o vendedor deixa por mil e trezentos, afasta as malhas do jaca

com as mãos e tira um frango preto. A compradora sopra-lhe o pescoço:

“Êsse não quero, porque tem pele preta”

O homem tira outro, o mais magro de todos: “Não serve, pode ir-se

embora”.

O homem não quer ir. Discutem, discutem, e afinal fica um mais gordo pelos

mil e trezentos [...]” (AMERICANO, 1954: 121 e 122)

Apesar do sonho que a elite buscava pelo que acreditava ser a

modernidade através da higiene e novos padrões sociais, ela estava longe de alcançar,

porem conseguia viver e respirar aliviada, por dois motivos: os trabalhadores pobres

engajados no pequeno comércio ambulante aliviavam o mal-estar causado pelo grande

número de desocupados, sem recursos de sobrevivência (PINTO, 1994: 121). O outro

ponto faz parte do discurso da imprensa que ressaltava uma possível associação entre

sujeira e pobreza (SANT’ANNA,2001: 300). Criando assim uma sensação melhor nas

classes mais abastadas, enxergando uma relação natural entre esses pontos.

IV. Esporte e lazer:

“O nosso velho e querido Tietê, teatro de tantas brincadeiras e horas

felizes desaparecera.

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[...]O coração me constrangeu, ao lembrar-me quando nós nos divertíamos,

eu e meus companheiros de infância e, mais tarde, meus filhos. Que ali

também aprenderam a nadar e pescar.” (PENTEADO, 1962: 165).

Os rios e as suas matas auxiliares demonstravam uma grande importância

no cotidiano da cidade, na opção de trabalho informal e melhora na dieta da população.

Além disso, também vai ser um refugio para brincadeiras e prática de esportes.

O historiador Janes Jorge em seu trabalho, nos apresenta os rios de São

Paulo, principalmente o Tietê, e nos lembra que eles se faziam sentir na vida dos

moradores da cidade, mesmo aqueles que não se relacionavam diretamente com os rios,

usufruíram seus benefícios [...] afinal, o Tietê se tornara lugar de trabalho para muitos,

de lazer para outros, e em sua vizinhança crescia o número de moradias, fábricas e

estabelecimentos diversos, o mesmo ocorrendo no Tamanduateí e, em menor escala, no

Pinheiro (JORGE, 2006: 87).

Dentro desse usufruto do rio, os moradores da cidade de São Paulo

praticavam a natação, além de prazerosa era uma atividade muito útil na medida em que

os rios, córregos, lagoas faziam parte do cotidiano de todos (IDEM: 210).

Com a cidade crescendo e as classes populares utilizando os mesmo

espaços, isso vira um incomodo para os mais ricos. Esse mal-estar era nítido quando,

nas competições, equipes que possuíam atletas de classes populares ou negros

superassem aquelas exclusivamente formadas por elementos das classes privilegiadas,

um grande constrangimento para os ricos e um perigoso exemplo de igualitarismo social

(IDEM: 127-128).

As saídas para separar as classes nas competições foi à criação dos clubes,

que geralmente ficavam ao lado do rio. Além, das criações da União Paulista dos

Clubes de Remo em 1903 e da Federação Paulista Das Sociedades de Remo.

Os dirigentes das federações adotam uma regulamentação inglesa e

sintonizam com os valores da república oligárquica, criando um regulamento

extremamente elitista, afastando os trabalhadores dos esportes náuticos.

A Federação Brasileira de Esportes Aquáticos, como lembra Henrique

Nicolini, em 1933:

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“... não reconhecia como amadores, condições indispensáveis

para participar das competições oficiais, entre outros,

‘analfabetos’, os que exerciam profissões ‘ou emprego que lhes

empreste o caráter serviçais, tais como: criados de servir, de

hotéis, cafés, bares, e botequins, armazém de secos e molhados,

‘tendas’, confeitaria, bilhares e casas de sorvete, barbeiro,

cabeleireiro. ‘chauffeeurs’, empregados de agência de loterias,

contínuos, e serventes em geral, vendedores de bilhetes de loteria

e exploradores de jogos proibidos, condutores ou recebedores de

veículos e, bem assim, os que receberem gorjetas no exercício da

profissão.”(NICOLINI, 2001: 208-209).

Essa forma de exclusão, não era exclusividade nos esportes náuticos em

São Paulo. O discurso e essa prática também aconteciam no Futebol (PEREIRA, 2000).

E, como muitos assuntos, ainda pouco explorado por estudiosos (IDEM: 3) podem

esconder ainda diversas contribuições para o entendimento da sociedade, da política e

da economia do Brasil.

Pereira apresenta no trecho do seu trabalho “a febre do foot-ball" como o

esporte bretão se desenvolveu, focando seu estudo na cidade do Rio de Janeiro, e como

os times de elite buscavam excluir os mais pobres2.

Porém, buscando uma diferença entre os esportes citados, o futebol, que

se espalhou rapidamente por todas as classes, resistiu devido à facilidade de sua prática,

qualquer espaço pode se tornar um cancha para pratica do esporte e qualquer objeto,

redondo ou não pode servir como bola. Mas os esportes aquáticos, principalmente em

2 PEREIRA, Leonardo A. M. Footballmania. Uma história social do futebol no Rio de Janeiro. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 2000. Descreve a preocupação do Fluminense na perigosa mistura social caso

times da primeira divisão, os verdadeiros sportmen caísse dando lugar para um time de operários da

segunda divisão. p. 103; Também podemos observar a ideia de quem não poderia praticar o futebol

amador: “que tirarem os seus meios de subsistência de quaisquer profissão braçal, considerando como tais

todas aquelas em que o individuo depende inteiramente de seus poderes físicos, e não dos recursos de sua

inteligência, aqueles, cuja a profissão lhes permita o recebimento de gorjetas; os criados de servir, aos

empregados (denominados caixeiros) de armazém de secos e molhados, vendas ou mercearias; os

contínuos, estafetas e serventes em geral; os guardas civis e praças de pret; e para completar, evitando

qualquer esquecimento, os que exercerem qualquer posição, profissão ou emprego que, a juizo do

Conselho Superior, esteja abaixo do nível moral e social exigido pelo sport do amadorismo.” p. 109.

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São Paulo passam por uma clara limitação para sua continuidade, “com sua degradação

[dos rios] o nado deixou de pertencer ao repertorio de praticas costumeiras da maioria

dos moradores dessas localidades e tornou-se privilégio daqueles que podiam frequentar

um clube – o que não era o caso da maior parte dos paulistanos, em geral, pobres.”

(JORGE, 2006: 210).

V. Conclusão:

Ao buscar referencias na História Ambiental para entender o cotidiano na

cidade de São Paulo, em boa parte do século XIX e início do XX, nos deparamos com

um cotidiano turbulento, efervescente e com muitas disputas.

As transformações urbanísticas e demográficas atingem diretamente o

meio ambiente da cidade, que é uma opção de sobrevivência de muitos trabalhadores e

trabalhadoras de São Paulo. Além de oferecer uma opção de subsistência, essas áreas

também são aproveitadas para o lazer e a pratica de esportes.

Com um olhar mais crítico, não romantizando a relação população-

natureza, e tendo cuidado com as impressões dos memorialistas, podemos perceber que

para os mais podres da cidade ou os que acabavam de chegar, enxergavam nos rios e

áreas verdes uma forma de sobrevivência dentro do capitalismo financiado pela

produção de café, principalmente do Oeste paulista.

Podemos perceber as disputas de classe nas áreas citadas ao longo do texto.

Um ataque feroz da Elite contra os trabalhadores, que não deveriam ocupar os mesmos

espaços.

Esse levantamento demonstra que a classe trabalhadora em São Paulo

também foi crescendo pelo número cada vez maior de pessoas que praticavam

atividades dentro de uma economia invisível e também é formando pela negação dos

abastados. Afinal, até mesmo a formação de ideia da classe trabalhadora, como citado

no início: a classe é uma relação entre pessoas, não uma coisa, e ela se constrói a si

própria, tanto quanto é construída pelas condições objetivas e pelos seus adversários.

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Acrescento que, neste caso, ao determinarem quem poderia ser reconhecido, aceito e

bem visto, em determinadas atividades ou não.

VI. Documentos Oficiais:

Código de Posturas da Cidade de São Paulo de 1886.

VII. Bibliografia.

AMERICANO, Jorge. São Paulo Naquele Tempo 1895 – 1915. São Paulo: Edição

Saraiva, 1954.

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operário e das classes trabalhadoras na América Latina: o que se perde e o que se ganha.

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