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INTELIGÊNCIAI N S I G H T
66 Rua LaRga66
INTELIGÊNCIAI N S I G H T
67abril•maio•junho 2014
E m interpretação original sobre o processo de for-
mação nacional do Brasil, o sociólogo baiano Alber-
to Guerreiro Ramos elaborou, em meados dos anos
1960, algumas hipóteses para explicar o nosso histórico
pendor para o formalismo.1 Uma delas, em específico, ajuda
a jogar luz sobre o atual momento vivido pelo Itamaraty, o
Ministério das Relações Exteriores (MRE) brasileiro.
Guerreiro Ramos argumentava, fundamentalmente,
que o formalismo podia funcionar como uma estratégia de
inserção de sociedades periféricas no mundo. O caso do
Brasil, no século 19, seria exemplar de tal modalidade de
ação governamental.
O surgimento do País, sua colonização e sua eman-
cipação de Portugal compreenderam diferentes estágios
de sua integração à sociedade dos Estados. Essa última
etapa, a independência nacional, impôs pesados ônus ao
Brasil, tanto políticos quanto econômicos. Havia uma ex-
pectativa, por parte da comunidade internacional, de que
o recém-emancipado Estado sul-americano se adequasse
ao rol das formalidades praticadas internacionalmente –
no âmbito de um sistema internacional que, sempre é bom
lembrar, fora talhado à silhueta de nações europeias.
O tratamento concedido pela Inglaterra à instituição
do escravismo no Brasil dava mostra dessa submissão na-
cional aos ditames das potências coloniais. Para ser aceito
no condomínio dos países livres, o País foi uma coisa no
tocante às suas condições internas, e outra, bem distinta,
quanto às suas relações externas. Logo, a mundialização
do Brasil teve de absorver uma dualidade essencial: a for-
ma discrepante do conteúdo.
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Na missão de apresentar ao mundo essas qualidades
que ainda não tínhamos, a diplomacia brasileira foi ins-
trumental. Membros do serviço exterior eram preparados
para desempenhar as suas funções de representação em
alto nível: tinham ampla cultura jurídica, conheciam as
modas intelectuais, emulavam a etiqueta mais refinada e
falavam com desembaraço as línguas do Velho Mundo.
Eram, para recorrer à expressão de Oliveira Vianna, ho-
mens que valiam por mil.2
O formalismo do Itama-
raty foi responsável, dentre
outras coisas, pela manuten-
ção de notável estabilidade de
princípios na política externa
brasileira, em quase dois sé-
culos. Além disso, vários cra-
ques da política, da estratégia,
da cultura e das artes têm sido
gestados no interior de tal elite
burocrática. Ao longo dos anos,
mais de uma dezena de juízes e
secretários-gerais – com passa-
gem pelas fileiras da academia
diplomática nacional – foram
cedidos a prestigiosas institui-
ções internacionais. Como sal-
do, nossa chancelaria goza de boa reputação no exterior e
de um sólido patrimônio institucional.
Não obstante todo o acumulado histórico, a pasta ora
chefiada por Luiz Alberto Figueiredo encontra-se pressio-
nada pela sociedade, ciosa de que a diplomacia possa, en-
fim, compatibilizar-se com as práticas políticas do século
21. A seguinte formulação crítica – cuja autoria é atribuída
à presidente Dilma Rousseff – vai direto ao ponto: “O Ita-
maraty faz muita diplomacia e pouca política externa”.3
Em bom português, o modelo formalista de inserção
do Brasil no mundo, de enorme importância para a pró-
pria edificação da identidade nacional, está em xeque,
prestes a caducar. O rápido adensamento do debate públi-
co sobre os caminhos da política externa brasileira, hoje,
dita o tom dos tempos. São sinais eloquentes da mudança
experimentada no País os ataques sofridos pelo Itamaraty,
na grande imprensa, sob os mais variados pretextos – dos
crimes de improbidade administrativa à suposta ideologi-
zação partidária.
EsquElEtos no armário
A rigor, esta não é a primei-
ra crise de imagem experimen-
tada pelos filhos de Rio Branco
e, talvez, nem seja a mais grave
da sua história. Logo na alvo-
rada da Nova República brasi-
leira, repercutiu bastante um
caso de corrupção – conhecido
como “a conexão Cabo Frio” –
em que diplomatas de alta pa-
tente haviam sido flagrados em
transações ilegais. Gilberto Di-
menstein, então jovem repórter
da Folha de S. Paulo, trouxe ao
conhecimento do público um
complexo esquema de desvio de verbas e lavagem interna-
cional de dinheiro, por intermédio da Fundação Visconde
de Cabo Frio, estrutura vinculada ao Ministério das Rela-
ções Exteriores.4
Naquela época, o céu desabou sobre o Itamaraty, que
veio a ser retratado por redações dos grandes jornais como
corporação opaca e propensa a burlas.5 O episódio enre-
dou até o poderoso secretário-geral da Casa, embaixador
Paulo Tarso Flecha de Lima. Tragado para o olho do fura-
cão, foi fustigado e politicamente exposto pela investiga-
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Waspismo nos trópicos?
Os anos Rousseff, contudo, têm rendido dores de ca-
beça redobradas para o pessoal do Itamaraty. Há pano
para muitas mangas.
Comecemos pela seriíssima acusação, feita pelo mi-
nistro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, de
existência de racismo no Ministério do Exterior brasilei-
ro. Em entrevista concedida à jornalista Míriam Leitão (O
Globo, 28/07/2013), o magistrado mencionou a experiên-
cia como aspirante à carreira diplomática. Em trecho po-
lêmico, chegou a afirmar que, embora reunisse condições
objetivas para ser admitido no Instituto Rio Branco, havia
sido barrado na prova oral do certame, por conta da cor de
sua pele. Ao que Barbosa aduziu: “[o Itamaraty é] uma das
instituições mais discriminatórias do Brasil”.
A documentação relativa ao exame – datada de 7 de ju-
lho de 1980 – trazia, de fato, referência à cor do ministro.
No relatório de avaliação do candidato reprovado, lia-se
textualmente: “[Joaquim Barbosa] tem uma autoimagem
negativa, que pode parcialmente ter origem na sua condi-
ção de colored”.10 O emprego da expressão “colored”, além
de mostrar o raci(ali)smo latente do examinador, evocava
tristes reminiscências dos regimes de apartheid estaduni-
dense e sul-africano. A reação do ministro Antonio Patrio-
ta à estocada do presidente do STF foi protocolar.11 Disse
que o episódio remetia a uma “outra era” do MRE. Deu
a entender, ainda, que a questão racial estava superada,
dado o esforço institucional para enfrentar a discrimina-
ção, visível a partir da implantação do programa de bolsas
para afrodescendentes no Itamaraty.12
Entretanto, ainda que liminarmente descartada, a de-
núncia de Barbosa descortinou o déficit de representação
da população negra entre os nossos diplomatas. Bem co-
nhecida era a técnica utilizada pelo Barão do Rio Branco
para recrutar jovens para a carreira: seus favoritos eram os
moços altos, bem nutridos e, sobretudo, brancos de pele.13
ção da Polícia Federal. Embora o seu envolvimento com
a trama não tenha sido comprovado, jamais recuperaria o
status de “ministeriável” em Brasília.6
Outra torrente de críticas ao MRE houve no início do
segundo mandato presidencial de Lula da Silva. Na oca-
sião, o jornalista Claudio Dantas Sequeira, do Correio
Braziliense, bombardeou a corporação com acusações
duras, relativas à atuação de quadros diplomáticos na cri-
minosa Operação Condor e em espionagem de exilados e
estrangeiros. Conforme os relatos publicados, os “facilita-
dores” do Itamaraty (também chamados, no dialeto inter-
na corporis, de “lixeiros”) teriam sido responsáveis, por
exemplo, pela vigilância de João Goulart e Leonel Brizola
no Uruguai, bem como pela criação de um serviço de inte-
ligência informal – o Centro de Informações do Exterior
(CIEX), que se constituiu, eventualmente, em engrenagem
da máquina de repressão do regime militar.7
O conjunto de reportagens, que fartamente documenta
as mazelas do Itamaraty sob a ditadura, foi contemplado com
o Prêmio Esso – a maior honraria do jornalismo nacional –
no ano de 2007. Questionado sobre o teor das denúncias de
Sequeira, o chanceler Celso Amorim limitou-se a expressar
satisfação com a superação daquele estado de coisas.8
Numa dessas ironias que a vida promove, o mesmo
Amorim – que enfrentou dificuldades com os militares em
sua passagem pela presidência da Embrafilme e cogitou
abandonar a carreira de Estado – é hoje o chefe do Minis-
tério da Defesa, institucionalmente incumbido de super-
visionar os trabalhos de Comissão Nacional da Verdade
(CNV), instância constituída pela Presidência da Repúbli-
ca para passar a limpo os crimes cometidos pelo Estado
brasileiro durante o período de 1946 a 1988. Dentre os
grupos de trabalho da CNV, existe um voltado justamente
para o estudo das “violações de direitos de brasileiros no
exterior e de estrangeiros no Brasil”, do qual Claudio Dan-
tas Sequeira é membropesquisador.9
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Surpreende e choca, porém, que somente um século após a
morte do patrono da diplomacia pátria se tenha registrado
o primeiro caso de embaixador negro forjado no interior
do Itamaraty – Benedicto Fonseca Filho, promovido ao
posto em dezembro de 2010.14
Outro problema crônico está relacionado com o esta-
tuto de mulheres e de homossexuais dentro da corporação.
Mulheres são flagrantemente sub-representadas na
Casa de Rio Branco. Malgrado os avanços reportados – e
é bem verdade que hoje existem muito mais mulheres a
ocupar o posto de Ministra de Primeira Classe (e a chefiar
missões diplomáticas) do que havia duas décadas atrás –,
elas raramente assumem posições na cúpula do MRE, em
Brasília. Ora: não tivemos até o momento uma Madeleine
Albright, uma Condoleezza Rice ou uma Hillary Clinton
à testa do Ministério do Exterior, tampouco uma Susan
Rice, uma Anne-Marie Slaughter ou uma Samantha Po-
wer a cargo da sua secretaria-geral. Comparado aos Esta-
dos Unidos (ou a países europeus), nosso serviço exterior
segue patriarcal e machista. Seja na base, seja no topo da
pirâmide organizacional.15
Para mais, o experiente embaixador Marcos de Azam-
buja lembra que, desde a década de 1950, os exames
psicológicos conduzidos pelo Itamaraty para selecionar
diplomatas brasileiros “tinham um objetivo acessório ve-
ladamente homofóbico”.16 Durante a vigência do regime
militar, a situação agravou-se: avaliações chegaram ao
cúmulo de associar homossexualidade a “atitude subversi-
va”. Obviamente, a criminalização da sexualidade do pos-
tulante reproduzia a homofobia/misoginia emanada dos
quartéis. Mas não era só isso. A estereotipagem do diplo-
mata ideal (homem, branco, bem-nascido e heterossexual)
também atendia diretamente aos critérios do formalismo
como estratégia de inserção do Brasil no mundo.
Para a perplexidade geral, até bem pouco tempo atrás
ainda se podia encontrar nos manuais para aspirantes à
carreira diplomática referência a critérios de operaciona-
lização duvidosa, a serem avaliados pelas bancas por meio
de entrevista, tais como o “currículo oculto” e a “captação
de benevolência” do candidato.17 As regras do certame se-
guiam reféns de preconceitos arraigados e de subjetivida-
des não republicanas.
malEs dE origEm
O drama não se resume à inclusão de minorias políti-
cas, bem entendido. Mesmo em face da aprovação da Lei
de Acesso à Informação – celebrada como marco do incre-
mento da transparência pública no Brasil – e da pressão
exercida pelo Tribunal de Contas da União, o MRE deu de
ombros. Evitou revelar vencimentos de seus funcionários
no estrangeiro. Não satisfeito, conservou pontos cegos em
seu orçamento, descaracterizando, da perspectiva contá-
bil, as despesas com aluguéis e recepções.
Essa opacidade nos métodos tem, no entanto, se vol-
tado contra a própria corporação. A desforra da opinião
pública é comandada pelos órgãos da imprensa. Jornais
e revistas, nacionais e estrangeiros, vêm noticiando siste-
maticamente as extravagâncias do serviço exterior brasi-
leiro – com denúncias de fazer corar até aqueles saudosos
do ancien régime de Versalhes. O alvo das investidas é o
persistente rasgo de aristocratismo que embala a Casa de
Rio Branco. Porque, afinal, entre a vizinhança VIP do ex-
-chanceler em Manhattan,18 o soldo mensal de R$ 59 mil
pago ao embaixador no Congo19 e os castelos nababescos
que acolhem nossas representações diplomáticas na Euro-
pa,20 existe algo em comum: o financiamento público.
Já se disse mais de uma vez que o Itamaraty foi o
último refúgio da nobreza imperial brasileira. A asserti-
va tem lá as suas razões de ser. O cientista social Pierre
Bourdieu lembra que a gênese do “campo burocrático”,
na Europa dos séculos 16 e 17, deixou os antigos corte-
sãos sem lugar na estrutura social emergente.21 Com o
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advento da modernidade, prerrogativas antes validadas
pelo critério do “sangue real” eram gradualmente subs-
tituídas pela perícia. Frente às constantes ameaças de
destronamento, a técnica deveria ser posta a serviço da
manutenção dos reinos. Foi só então que a diplomacia
começou a se profissionalizar, deixando de ser praticada
por indivíduos leais ao monarca para compor, em base
permanente e impessoal, os quadros funcionais do Esta-
do nacional.22 No caso do Brasil oitocentista, essa trans-
fusão da nobiliarquia parece
ter sido direta e imediata: do
antigo Conselho de Estado de
Dom Pedro II para o nascente
Ministério de Relações Exte-
riores da República Velha.23
No que toca aos privilé-
gios conservados desde os idos
do “Império do Brazil”, com-
para-se com alguma frequên-
cia o estamento diplomático
brasileiro ao Poder Judiciário.
A aproximação é cabível,
sobretudo porque ilumina o ce-
nário mais amplamente. O Ita-
maraty não é – e nem deve ser
tratado como – teratologia no
seio da República. Ele está in-
serido em um caldo de cultura que, por séculos e séculos,
manteve a sociedade brasileira apartada do seu Estado.
Nesse sentido, é mais a regra do que a exceção. No entan-
to, pondere-se, até os bacharéis do Judiciário souberam
desenvolver, ao longo do tempo, instâncias de monitora-
mento e controle democrático – tais como o combativo
Conselho Nacional de Justiça24 – que indiciam alguma
evolução institucional. No organograma do MRE, não se
encontrará nada parecido.
Historicamente, os gestores do Itamaraty foram pouco
premidos pela população. A bem da verdade, nunca houve
demanda de prestação de contas. Isso, presumivelmente,
porque não se percebia relação significativa entre diplo-
macia e eleições. Assim, fez-se da Casa de Rio Branco uma
caixa-preta. Durante o regime militar no Brasil, a corpora-
ção diplomática conviveu bem com o modelo da “delegação
presidencial” de competências em política externa. Tanto
que, indicativamente, o período compreendido entre 1964
e 1985 correspondeu àquele de
maior expansão e concentra-
ção de poderes nas mãos dos
diplomatas de carreira – que
ocuparam por diversas vezes e
por bastante tempo a chefia do
MRE (ver Gráficos 1 e 2). Em
interessante contraponto, nos
dois últimos regimes demo-
cráticos brasileiros (1946-1964
e 1985 até os dias correntes)
os políticos de carreira foram
mais frequentes (embora, na
Nova República, menos longe-
vos) como titulares da pasta do
exterior.
O professor Zairo Cheibub
alega que, a partir da década de
1960, os diplomatas brasileiros do Itamaraty pararam de
se preocupar com aspectos meramente organizacionais ou
estilísticos para centrar o foco de sua atuação profissional
na formulação da política externa. Isso teria colaborado
para o fechamento da corporação em torno de si, bem
como para a emergência de um senso comum entre os di-
plomatas de carreira de pertencimento à elite burocrática
da nação. Muito esclarecedora é a opinião de Vasco Leitão
da Cunha, o primeiro chanceler dos militares. Em depoi-
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mento ao CPDOC da Fundação Getulio Vargas, já aposen-
tado, dizia preferir o Ministério das Relações Exteriores
nas mãos de políticos profissionais a ter de vê-lo coman-
dado por um integrante da carreira, pois “o ministro de
carreira tende a ser um supersecretário-geral, e não um
ministro verdadeiro”.25
A propósito das relações entre política externa e regi-
me político, Leitão da Cunha – que comandou o Itamaraty
entre 1964 e 1966 – posicionou-se de forma provocadora,
mas não insincera: “[O Itamaraty] sempre esteve ao lar-
go das coisas da política interna (...) sempre achei que as
relações diplomáticas não têm nada a ver com a política
interna”.26 O equacionamento proposto pelo chanceler não
soou como uma novidade. Com o intuito de se “preserva-
rem”, diplomatas abstêm-se, em regra, de fazer interven-
ções na cena política doméstica. Toda exposição (excessi-
va) é desencorajada. Em textos publicados por membros
da corporação na grande imprensa, é recorrente o uso do
Dados extraídos do sítio do Ministério de Relações Exteriores do Brasil (http://www.itamaraty.gov.br/o-ministerio/
galeria-de-autoridades/ministros). Acesso em 24/02/2014.
Dados extraídos do sítio do Ministério de Relações Exteriores do Brasil (http://www.itamaraty.gov.br/o-ministerio/galeria-de-
autoridades/ministros). Acesso em 24/02/2014.
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disclaimer – de que “o texto não expressa a posição oficial
do Brasil, mas as opiniões pessoais do seu autor”. Na con-
tramão dessa tendência, é comum encontrar diplomatas
que se dedicam a escrever romances, crítica de arte, cine-
ma, fotografia e quejandos. Trata-se, provavelmente, do
mais puro escapismo. Afinal, a carreira é longa e a vigilân-
cia pode ser implacável entre os colegas. Em todo caso, é
forçoso reconhecer que as táticas escapistas acarretaram,
como desdobramento perverso, uma despolitização (da
política externa) pela forma. Mesmo que nos tenham le-
gado, em contrapartida, um belo repertório de títulos e até
algumas obras-primas (sobretudo na literatura).27
A promulgação da Constituição Federal de 1988, em
cujo artigo 4º se arrolaram os princípios norteadores da
política externa brasileira, não constituiu um efetivo me-
canismo de controle democrático. As normas programáti-
cas, porquanto amplíssimas no escopo e não hierarquiza-
das entre si, continuaram a permitir todo tipo de licença
hermenêutica por parte dos seus aplicadores. A alternân-
cia entre os partidos políticos no poder federal também
deu ensejo a ressignificações e interpretações “criativas”
para respaldar as diversas estratégias de inserção interna-
cional do País.
As fichas dos entusiastas da democratização da polí-
tica externa estão, hoje, empilhadas sobre o famigerado
“Livro Branco da Política Externa” – documento que tra-
ria, de modo mais refletido e circunstanciado, as diretrizes
diplomáticas do Brasil, num contexto de plena vigência
das instituições democráticas e de aprofundamento da in-
terdependência entre os países. O “Livro Branco” simboli-
zaria, para mais, um esforço da administração federal pelo
aggiornamento das condutas da nossa chancelaria – tal
como ocorreu com os militares, que divulgaram, em 2012,
a primeira versão do seu “Livro Branco de Defesa Nacio-
nal”. Porém, até o presente instante, pouco se sabe sobre o
andamento desse projeto.28
pra não dizEr quE não falEi das florEs
Em autores clássicos da literatura nacional, o métier
diplomático esteve atrelado a determinadas marcas. O con-
selheiro Aires, de Machado de Assis, representava a fleuma
aristocrática e o peso das memórias. O secretário d’el Rei,
de Oliveira Lima, reproduzia o sentido do dever e o nacio-
nalismo ingênuo de certos homens de Estado. Já Castelo,
personagem de Lima Barreto,29 era malandro e superficial
– tendo sido promovido a cônsul do Brasil em Havana por
dominar, supostamente, a exótica arte de falar javanês.
Se a vida imita a arte ou vice-versa, é difícil saber. O
curioso é que, não raramente, os cacoetes e frivolidades
dos personagens acima mencionados teimam em encarnar
nos domínios da Casa de Rio Branco. A última ocorrência
digna de registro deu-se há bem pouco: segundo reporta-
gem de capa da Folha de S. Paulo (edição de 12/02/2014),
o Ministério das Relações Exteriores, no afã de recepcio-
nar calorosamente os plenipotenciários estrangeiros que
virão ao Brasil em 2014, publicou edital para a aquisição
de 660 arranjos florais.
Até aí, business as usual. É natural imaginar que uma
agência governamental – que tem no cerimonial um de
seus trunfos históricos – necessite, em algum momento,
licitar adornos. Mas havia pontos no edital que geravam
estranhamento. O primeiro era o valor do empenho: mais
de R$ 461 mil de previsão orçamentária para a compra das
flores. De acordo com a reportagem do jornal, os tais ar-
ranjos orçados pelo MRE podiam ser encontrados, na ci-
dade de São Paulo, por valores até 40% mais baixos.
O elemento mais peculiar do edital, porém, era a jus-
tificativa para a aquisição dos arranjos. Num evidente
simulacro de linguajar burocrático, podia-se ler: “as flo-
res contribuem para que seja transmitida às autoridades
estrangeiras uma melhor impressão do país anfitrião, o
que se traduz por ganhos institucionais para o governo
brasileiro”. Adiante, o redator do documento desdobrava-
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O autor é professor do programa de pós-graduação em ciência política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)[email protected]
-se para concluir logicamente o argumento: “como não se
conhecem, de antemão, as sutilezas da percepção dos visi-
tantes, deve-se, preferencialmente, pecar pelo excesso de
zelo”. O texto ainda informava que, para a confirmação do
negócio, as encomendas – devidamente certificadas pela
Academia Brasileira de Artistas Florais – teriam de passar
pelo crivo de um diplomata, que poderia rejeitar o arranjo
“que não fo[sse] confeccionado
com espécies viçosas (...) e que
est[ivesse] fora de padrão esté-
tico compatível com o evento
realizado”. Em parágrafo final,
a matéria trazia ao conheci-
mento do leitor que, em adição
às flores, medalhas de conde-
coração, no valor estimado de
R$ 847,5 mil, também seriam
licitadas em 2014.
Por razões que nos esca-
pam, um dia após a divulgação
do conteúdo, a mesma Folha de
S. Paulo noticiou o cancelamen-
to do edital das flores. É razoá-
vel supor, diante de tudo o que
se vem expondo neste texto, que
a repercussão negativa junto à opinião pública tenha pre-
cipitado a revisão da medida.
O ofício diplomático passa por questionamentos exis-
tenciais – não só aqui, mas em todo o mundo. Numa era de
comunicação instantânea e massiva, na qual indivíduos,
munidos de seus dispositivos portáteis, trocam informa-
ções em qualquer ponto do planeta, ao passo que sofistica-
das redes de espionagem e contraespionagem são estrutu-
radas pelos Estados – trazendo para o conhecimento geral
aquele conteúdo antes classificado como confidencial –,
passa a fazer menos sentido para o contribuinte o finan-
ciamento de funcionários públicos para a execução de ta-
refas aparentemente singelas como o envio de telegramas
oficiais ou a promoção de cortesias entre países.
À luz desse novíssimo quadro, os elementos listados
no decorrer do ensaio podem ser sugestivos de uma ina-
dequação estrutural entre os velhos hábitos da Casa de
Rio Branco e o regime político instaurado neste País desde
1985. Afinal, nem o republica-
nismo imperturbável dos aris-
tocratas de antanho tem re-
sistido à sede por democracia
dos manifestantes do tempo
presente.
O recado que veio das
ruas em junho de 2013 foi es-
tridente e não poupou sequer
as esculturas modernistas do
Palácio do Itamaraty. A ponto
de um dos mais importantes
guardiães da arca de tradições
riobranquenses, o embaixador
Rubens Barbosa, ter sentencia-
do de modo categórico: “Para
voltar a desempenhar o papel
de relevo que sempre teve, o
Itamaraty terá de adequar a política externa aos novos
desafios internos e externos com dinamismo e inovação.
Ao renovar-se e atualizar-se, atendendo às demandas dos
novos tempos, terá de deixar para trás formalismos”.30
Chegou a hora de mostrar que – como dizia o chanceler
Azeredo da Silveira – a melhor tradição da diplomacia
brasileira é saber reinventar-se.
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1. RAMOS, A.G. Administração e Estratégia do Desenvolvimento. Elementos de uma Sociologia Especial da Administração. Rio de Ja-neiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1966.
2. A rigor, “homens de mil”. Cf. VIANNA, F.J.O. Instituições Políticas Brasileiras (2 v.). Belo Horizonte: Edições Itatiaia, 1987.
3.LEO, S. “Dilma intervém no Itamaraty”, Valor Econômico, 02.09.2013.
4. DIMENSTEIN, G. Conexão Cabo Frio: escândalo no Itamaraty. São Paulo: Brasiliense, 1989.
5. A página A4 da edição de 30.12.1989 da Folha de S. Paulo serve para ilustrar o momento crítico por que passava o MRE. No topo da página, já se avistava: “Na ONU, diplomatas brasileiros ganham mais que americanos”. Ao centro, “Ulysses [Guimarães] apadrinhou no-meação de adido militar [para a missão do Brasil em Nova York]”. Logo abaixo, “Itamaraty evita informações sobre o assunto”. Por fim, à direita, mais uma notinha: “Artigo nos EUA pede privatização de [suas] embaixadas”.
6.É bem verdade que, tão logo baixou a poeira, Paulo Tarso voltou a transitar por posições prestigiosas, ora como negociador especial nomeado por Collor de Mello (no sequestro dos brasileiros no Iraque, em 1990), ora na chefia de embaixadas (em Londres, Washington e Roma, sucessivamente). A saída honrosa arquitetada para o embaixador ilustra a tendência de o Ministério proteger os “seus”, independentemente do que se tenha passado.
7. Cf. BATISTA, D.O. Habitus diplomático: um estudo do Itamaraty em tempos de regime militar, 1964-1985. Recife: Editora Universitá-ria da UFPE, 2010.
8. Ibidem.
9. Para relação de pesquisadores do Grupo de Trabalho “Violações de Direitos Humanos de brasileiros no exterior e de estrangeiros no Brasil”, ver: http://www.cnv.gov.br/index.php/2012-05-22-18-30-05/exilados-e-estrangeiros.
10. JARDIM, L. “Prova oral”, Radar On-line, VEJA, 03.08.2013. Dis-
notas dE rodapÉ
ponível em: http://veja.abril.com.br/blog/radar-on-line/judiciario/o--dia-em-que-joaquim-barbosa-foi-reprovado-no-itamaraty/.
11. ALCÂNTARA, D. “Patriota nega racismo em concurso para car-reira diplomática”, 30.07.2013. Disponível em: http://noticias.terra.com.br/brasil/politica/patriota-nega-racismo-em-concurso-para--carreira-diplomatica,79768c28d9130410VgnVCM5000009ccceb0aRCRD.html.
12. Programa de ação afirmativa, criado em 2002, consistente na con-cessão de bolsas de preparação para o concurso de admissão à carrei-ra diplomática (CACD) a candidatos afrodescendentes.
13. Tome-se, por exemplo, este trecho de autoria de Gilberto Freyre, publicado em 17.07.1938 no Diário de Pernambuco: “Porque a esco-lha de jogadores brasileiros para os encontros internacionais andou por algum tempo obedecendo ao mesmo critério do Barão de Rio Branco quando senhor-todo-poderoso do Itamaraty: nada de pretos nem de mulatos chapados; só brancos ou então mulatos tão claros que parecessem brancos ou, quando muito caboclos, deviam ser en-viados ao estrangeiro. Mulatos do tipo do ilustre Domício da Gama a quem o Eça de Queiroz costumava chamar, na intimidade, de ‘mulato cor-de-rosa’. Morto Rio Branco, desaparecia o critério anti-brasileiro do Brasil se fingir de República de arianos perante os estrangeiros distantes que só nos conhecessem através de ministros ruivos ou de secretários de legação de olhos azuis. E de tal modo desaparecia o falso e injusto critério da seleção de louros que o próprio Barão seria substituído por mulatos ilustres – um deles o grande brasileiro que foi Nilo Peçanha.” Disponível em: http://oglobo.globo.com/pais/no-blat/posts/2010/07/03/football-mulato-305261.asp.
14. Ainda na República Velha – e, portanto, bem antes de Fonseca Filho –, o negro Luís Martins de Souza Dantas chegou a chefiar a representação do Brasil na França (entre 1922 e 1943). Não obstan-te, tratou-se de uma nomeação política, e não de um diplomata de carreira.
15. Alega-se que, numa ação informal para promoção de maior igual-dade entre os gêneros, Celso Amorim e Antonio Patriota nomearam mulheres para a chefia de seus respectivos gabinetes. No entanto, a política compensatória teria sido revertida por Luiz Alberto Figuei-redo. Cf. JARDIM, L. “Mudança de gênero”, Radar On-line, VEJA,
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30.08.2013. Disponível em: http://veja.abril.com.br/blog/radar-on--line/governo/mudanca-de-genero/. Para rico estudo sobre a “revo-lução feminista” no serviço exterior estadunidense, ver GARNER, K. Gender and Foreign Policy in the Clinton Administration. Boulder: Lynne Rienner, 2013.
16. AZAMBUJA, M. “Casa bem-assombrada: o Itamaraty antes da sua ida para Goiás”. Piauí, n. 54, março de 2011. Disponível em: http://revistapiaui.estadao.com.br/edicao-54/memorias-pouco-diplomati-cas/casa-bem-assombrada.
17. MINISTÉRIO DE RELAÇÕES EXTERIORES DO BRASIL. Guia de Estudos para o Concurso de Admissão à Carreira Diplomática 2002. Disponível em: http://www.cursoclio.com.br/downloads/Edi-tais/Guia%202002.pdf. Para reflexão crítica sobre o modelo aristo-crático de concurso público, recomenda-se enfaticamente a leitura de FONTAINHA, F.C. “Dialética sem síntese – meritocracia e concursos públicos”, Insight Inteligência, nº 63, outubro/novembro/dezembro de 2013, pp. 52-63.
18. Cf. CANTANHÊDE, E. “Bolsa Manhattan”, Folha de S. Paulo, 20.01.2014. Para matéria de teor assemelhado, veiculada na impren-sa internacional, ver: COHEN, J. “Midtown West: Suitable for the Diplomatic Life”, The New York Times, 11.09.2013.
19. Cf. LEALI, F.; SOUZA, A. “Salários do Itamaraty chegam a R$ 58 mil”, O Globo, 02.03.2013.
20. “Para que servem nossos consulados e embaixadas?” Isto É, edi-ção 2303, 10.01.2014. A referida reportagem provocou uma nota de esclarecimento do Itamaraty, a qual pode ser lida em: http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/nota-de-es-clarecimento-no-1.
21. O historiador Peter Burke, a propósito, relaciona ao cortesão ita-liano do século 16 elementos tais como a civilidade, a urbanidade, o cavalheirismo e o apreço pela alta cultura – os quais são ainda encon-tradiços entre os membros da nossa chancelaria. Cf. BURKE, P. As fortunas d’O Cortesão. São Paulo: Ed. Unesp, 1997.
22. BOURDIEU, P. “De la maison du roi à la raison d’état”, Actes de la Recherche en Sciences Sociales (ARSS). Volume 118, número 1, pp. 55-68.
23. Segundo o historiador Pandiá Calógeras, “A continuidade e ele-
vação progressiva da política internacional do Brasil ali [no Conselho de Estado] encontravam seus grandes elementos de ação. Pensamen-to e prática reunidos. Execução assegurada. A República havia des-truído, impensadamente, esse instrumento de valor inapreciável [o Conselho de Estado]. Ainda hoje, suas Consultas nos guiam. Quão melhor, entretanto, fora sua ação, mais viva e enérgica, se se hou-vera conservado a instituição. Todas as suas funções desaparecidas foram concentrar-se nas mãos do Diretor Geral do Ministério [das Relações Exteriores]. Por maior valia a sua, era sempre uma opinião única, individual, com o coeficiente de erro pessoal, pelo consenso de pareceres de homens como D. Pedro II, Uruguai, o Visconde do Rio Branco, Cotegipe, Saraiva e tantos outros.” Cf. CALÓGERAS, P. Estudos históricos e políticos: (Res nostra...). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1936, p. 210.
24. Para boa descrição e análise do funcionamento desse órgão, cf. FRAGALE FILHO, R. “Conselho Nacional de Justiça: desenho insti-tucional, construção de agenda e processo decisório”, Dados, vol.56, n. 4, 2013, pp. 975-1007.
25. CUNHA, V.T.L. Diplomacia em alto-mar: depoimento ao CPDOC. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 2004, p. 221.
26. Ibidem, p. 124.
27. Para ficar apenas nos exemplos óbvios, João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa e Vinícius de Morais foram diplomatas de carreira. Na atualidade, literatos como Affonso Arinos de Melo Franco, Alberto da Costa e Silva, Alexandre Vidal Porto, Edgard Telles Ribeiro, Geraldo Holanda Cavalcanti, Mauricio Lyrio e Ser-gio Paulo Rouanet têm as suas trajetórias profissionais associadas à Casa de Rio Branco.
28. Sobre o assunto, o ministro Luiz Alberto Figueiredo publicou, em 26.02.2014, artigo na Folha de S. Paulo (“Diálogos sobre política ex-terna”, pág. A3). Apesar de não avançar muito sobre o conteúdo, rei-terou publicamente o compromisso de promover diálogos substanti-vos e consultas com diferentes segmentos sociais antes da redação do “Livro Branco”.
29. Lima Barreto que, não por acaso, também era crítico mordaz do formalismo parnasiano do Olavo Bilac e sua turma.
30. BARBOSA, R.A. “Instituição em perigo”, O Estado de S. Paulo, 10.09.2013.
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