Discriminao na Admisso: Direito Integrao

Otavio Amaral Calvet1

Instado pelo amigo e mestre Jos Affonso Dallegrave Neto, mediante convite para participar de obra coletiva, lanamo-nos na tarefa de produzir artigo indito que, esperamos, esteja altura da confiana depositada.

Apenas a ttulo de registro, a idia ora explanada decorreu de pergunta realizada por

aluno em sala de aula h alguns anos, salvo engano o colega Maurcio da Procuradoria do Municpio do Rio de Janeiro, que com muita propriedade indagou se era possvel a condenao do empregador na concesso do emprego em caso de discriminao na admisso, o que na poca entendemos ser vivel mas necessitando de maior reflexo.

O presente artigo, portanto, constitui o aprofundamento sobre a questo da

discriminao na admisso e a reparao devida, demonstrando o nosso entendimento acerca da necessidade de concesso de tutela especfica para o caso: o Direito Integrao.

Agradecemos, portanto, instigante pergunta formulada em sala de aula e, ainda, a

todos os alunos que sempre permitiram nosso crescimento atravs da sincera troca de conhecimentos.

1. Introduo

A discriminao nas relaes de trabalho constitui, ainda, tema a ser bastante explorado pela doutrina e jurisprudncia, haja vista que os casos prticos revelam algumas facetas ainda deficientes para uma efetiva proteo aos trabalhadores.

Como exemplos marcantes pode-se citar a questo do nus da prova em dispensas

imotivadas que, sob o manto da indenizao de 40% do FGTS, embutem prticas discriminatrias, a dificuldade da insero das mulheres no mercado de trabalho cujos salrios ainda so menores do que os dos homens , as dificuldades para criao de postos de trabalho e sua manuteno para pessoas com deficincia (em que pese o sistema legal de cotas) e, ainda, a conquista do primeiro emprego por jovens sem experincia, entre outros.

Muito embora j exista uma preocupao na inibio dessas prticas por diversos

meios de tutela, especificamente no campo da discriminao ressalta em importncia no meio jurdico a criao de um sistema normativo protetivo, que a partir da base constitucional concretiza-se principalmente no texto da Lei 9.029/95 em nosso ordenamento.

1 Juiz do Trabalho/RJ; Mestre em Direito PUC/SP; Professor do Curso Prima-NTC; Professor Convidado da FGV/RJ.

Referido diploma legal curto em tamanho mas profundo em alcance , cuida da questo nos aspectos da proibio de condutas discriminatrias na admisso e manuteno da relao de emprego e, ainda, sob o ponto de vista administrativo e criminal, estabelecendo multas administrativas e tipificando como crimes as prticas neste sentido, conforme seus arts. 2o e 3o.

No campo especfico do Direito do Trabalho, a Lei 9.029/95 proibiu a adoo de

qualquer prtica discriminatria e limitativa para efeito de acesso a relao de emprego, ou sua manuteno, por motivo de sexo, origem, raa, cor, estado civil, situao familiar ou idade, ressalvadas, neste caso, as hipteses de proteo ao menor previstas no inciso XXXIII do art. 7 da Constituio Federal, conforme seu art. 1o e, ainda, o rompimento da relao de trabalho por ato discriminatrio facultando ao empregado, neste caso, a possibilidade de reintegrao ou indenizao dobrada, nos termos do art. 4o.

Olvidou-se o legislador, entretanto, em disciplinar um regramento especfico para o

caso da discriminao ocorrer na admisso do trabalhador, pois apesar de vedar a conduta em questo no h, no dispositivo legal, qualquer tipo de previso de indenizao ou compensao em caso desse ato ilcito patronal, o que constitui a preocupao do presente artigo.

Restringe-se o objeto do presente texto, portanto, no exame da reparao devida ao

trabalhador em caso de leso ao direito fundamental ao trabalho j na admisso, pela prtica de ato discriminatrio do tomador dos servios, propondo, sob o ponto de vista do princpio da reparao integral e in natura, luz da dignidade da pessoa humana, o que ora convenciona-se chamar de direito integrao, concernente na possibilidade de condenao do agressor realizao compulsria do contrato de trabalho frustrado pelo abuso do direito na seleo do trabalhador.

Para se chegar a tal escopo, inicialmente abordar-se- de forma breve a vinculao

dos particulares ao direito fundamental ao trabalho, sua eficcia imediata nas relaes de trabalho, a eficcia do direito fundamental ao trabalho, a aplicao da proteo contra discriminao em todas as relaes de trabalho e no apenas na de emprego , o princpio da reparao integral, a preferncia pela tutela in natura, a possibilidade da realizao de contrato de trabalho por deciso judicial e, finalmente, a alternativa indenizatria diante de eventual impossibilidade ftica dessa pretenso, passando por aspectos processuais para uma efetiva tutela ao discriminado.

2. A Eficcia Horizontal Imediata dos Direitos Fundamentais

Embora seja possvel a realizao de relao de trabalho em sentido lato sem onerosidade, o que acontece no conhecido trabalho voluntrio, regra geral o trabalhador gasta sua energia de trabalho com o intuito de perceber uma contraprestao do tomador dos seus servios, o que constitui o salrio na relao de emprego ou os honorrios em relaes autnomas, por exemplo.

Nota-se, dessa forma, que nas relaes de trabalho onerosas o trabalhador vincula-se

juridicamente ao tomador visando o recebimento do objeto dessa prestao de energia: o pagamento. Pode-se dizer, portanto, que o principal objeto das relaes de trabalho onerosas so, pelo lado do trabalhador, o gasto da energia e, pelo lado do tomador, o pagamento.

A contraprestao dos servios prestados, por sua vez, viabiliza em nossa sociedade

que o trabalhador obtenha os rendimentos necessrios manuteno de uma vida digna, pois atravs dele que o cidado consegue acesso a prestaes bsicas que, embora dever do Estado, geralmente apenas atravs do setor privado chega-se a um nvel de qualidade desejado, como educao, sade, habitao etc.

Por outro lado, regra geral o trabalhador possui apenas a energia de trabalho como

moeda de troca no mercado para obteno dos valores suficientes para sua dignidade, lanando-se nas relaes de trabalho com esse escopo.

O que se pode constatar, portanto, que a regra nas relaes de trabalho a prestao

de servios por ser humano que necessita da contraprestao (pagamento) para sobreviver com dignidade, o que caracteriza esse vnculo jurdico pela essencialidade de seu objeto, como bem formulado na teoria proposta por Teresa Negreiros, conforme citado em nossa obra Direito ao Lazer nas Relaes de Trabalho2 onde, de forma resumida, ocorre a reduo da autonomia da vontade nos contratos em que o objeto essencial para a vida humana, aumentando-se essa autonomia nas relaes onde o objeto meramente suprfluo.

Ora, sendo a remunerao decorrente de uma relao de trabalho essencial para a

sobrevivncia digna, no resta dvida que deve haver o estabelecimento de um contedo mnimo para que se assegure, quele que busca esse objeto na relao (o trabalhador), a garantia da realizao e observncia dos direitos fundamentais, como freio natural fora que a parte hipersuficiente exerce sobre a contrria, o que hoje j amplamente admitido na doutrina civilista pelo instituto da funo social do contrato.

Observe-se que tal fenmeno no novidade na rea trabalhista, pois na clssica

relao de emprego de h muito existe a disposio contida no art. 444 da CLT, que nada mais significa que a imposio de um contedo mnimo ao contrato de emprego, ou seja, a revelao positiva da funo social do contrato de trabalho.

A funo social de todo contrato incluindo-se o de emprego e demais relaes de

trabalho , viabiliza, portanto, o reconhecimento de que deve imperar, tambm nas relaes privadas, a observncia dos direitos fundamentais, pois no difcil perceber que em relaes formadas por pessoas com diferentes foras sempre haver a virtual possibilidade do mais forte impor sua vontade sobre o mais fraco que, proporcionalmente

2 CALVET, Otavio Amaral. O Direito ao Lazer nas Relaes de Trabalho. So Paulo: LTR, 2006, p. 48-49.

essencialidade do objeto desse contrato, estar propenso a simplesmente sucumbir perante essa fora.

Assenta-se, assim, que os direitos fundamentais, em todas as suas dimenses, devem

ser aplicados e respeitados nas relaes privadas de trabalho, obviamente sem abandono da liberdade contratual que fica, apenas, mitigada conforme o caso concreto, observando-se a eficcia dos direitos fundamentais nas dimenses objetiva e subjetiva, segundo sua densidade normativa como abaixo abordado.

3. A Eficcia dos Direitos Fundamentais: o direito ao trabalho

Novamente com a brevidade que a presente proposta exige, passa-se a analisar a eficcia do direito social ao trabalho previsto no art. 6o da Constituio da Repblica, como pressuposto lgico ao direito integrao que se pretende defender neste artigo.

As normas constitucionais possuem eficcia jurdica imediata, denotando a fora

normativa da Constituio Federal, sendo que a aplicao concreta dos princpios constitucionais se faz pelo mtodo da ponderao de interesses, ressaltando em importncia axiolgica no ordenamento jurdico brasileiro o princpio da dignidade da pessoa humana e, para a rea trabalhista, tambm o valor social do trabalho e a ordem econmica fundada na valorizao do trabalho humano com o objetivo de assegurar uma existncia digna.

Os direitos fundamentais expressam valores superiores, onde se encontram inseridos os direitos sociais, classificados como de segunda dimenso segundo sua afirmao histrica cronolgica, tendo surgido pela percepo da sociedade que no bastaria ao Poder Pblico respeitar direitos mnimos dos cidados como a liberdade, a segurana e a propriedade (direitos fundamentais de primeira dimenso), mas tambm promover certos valores para que os seres humanos pudessem efetivamente gozar de um mnimo existencial, sendo patente que, por exemplo, quem passa fome no consegue usufruir do direito liberdade em sua plenitude.

Os direitos fundamentais possuem eficcia imediata de acordo com sua densidade normativa, gozando todos de presuno dessa eficcia. Assim, quanto maior a densidade pela qual foi enunciado um direito fundamental, sua aplicao em concreto se torna mais palpvel, como ocorre com o direito das pessoas se associarem livremente. Por outro lado, direitos enunciados com baixa normatividade, como o direito ao trabalho, demonstram uma dificuldade aos intrpretes, j que seu contedo no se demonstra de plano, havendo necessidade de busca a conceitos sociolgicos e de outras reas para que se apreenda a conduta a ser observada em consonncia com referido valor.

Todos os direitos fundamentais possuem uma dimenso objetiva e outra subjetiva.

Aquela determina a reinterpretao do ordenamento jurdico, atua no controle de constitucionalidade, atribui a eficcia revogatria de normas anteriores

infraconstitucionais e pauta a conduta do Estado e de entes privados, com uma eficcia irradiante tambm nas relaes privadas. Esta, reconhece uma posio jurdica subjetiva negativa (impedindo leses) e outra positiva, concernente promoo desses direitos, observada a reserva do possvel.

Interessa para o presente estudo a anlise da eficcia do direito ao trabalho que,

por ter sido construdo com baixa normatividade, constitui verdadeira dificuldade ao intrprete.

Sem esgotar o tema, lembre-se, pode-se indicar que na dimenso objetiva o direito

ao trabalho j possui a eficcia imediata de determinar uma interpretao do ordenamento jurdico segundo esse valor, o que fatalmente contribuir para a fixao do direito integrao em caso de recusa na admisso por ato discriminatrio, j que por se constituir um valor que garante a dignidade da pessoa humana, no se pode por princpio permitir a conduta de um particular que, abusando do direito de seleo de candidatos, impede a obteno da relao de trabalho a um ser humano.

No que concerne dimenso subjetiva, no se pode negar ao titular desse direito

fundamental a busca de uma tutela estatal preventiva ou reparatria para o caso do particular adotar conduta contrria a esse valor, o que permitir a concluso desse artigo acerca do direito integrao na relao de trabalho por fora de deciso judicial.

Finalmente, apenas por cautela, embora possa soar excessivo, h que se defender

que o presente direito fundamental ao trabalho encontra aplicao a todos os cidados em qualquer tipo de relao de trabalho em que se lancem, e no apenas nas relaes de emprego, pois no pode existir dvidas de que os direitos sociais preconizados no art. 6o da Constituio da Repblica tm por destinatrios todos os cidados, o que determina uma interpretao do vocbulo trabalho de forma a no se restringir ao tradicional conceito de emprego.

Assim, o direito fundamental ao trabalho possui o alcance de garantir qualquer

tipo de ocupao que resguarde a dignidade do ser humano, j que no se pode esquecer desse ncleo fundamental e princpio da nossa Repblica, o que numa interpretao condizente com a realidade social em que se encontra o Brasil justifica outras formas de trabalho atpicas como alternativa para a crise do emprego.

No se quer com isso, frise-se, o abandono do modelo clssico que mais assegura

proteo ao trabalhador a relao de emprego mas apenas expandir-se o campo das garantias ao ser humano para toda manifestao social de explorao de energia de trabalho, pois no se pode esquecer da realidade na construo do Direito, o que no caso das relaes trabalhistas determina que o intrprete reconhea e traga para o campo da proteo jurdica as novas formas de contratao do trabalho, homogeneizando-se o princpio maior da dignidade do ser humano.

Dessa forma, pode-se afirmar que as concluses do presente artigo possuem

aplicao no apenas nas relaes de emprego, mas em toda e qualquer relao de

trabalho onde o ser humano trabalhador no tenha obtido sua ocupao por ato discriminatrio do tomador dos servios.

4. O princpio da reparao integral e a preferncia pela tutela in natura

O Cdigo de Civil de 2002 preconiza no art. 402 que salvo as excees expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, alm do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar. Tambm no Cdigo Civil percebe-se no art. 944 que a indenizao mede-se pela extenso do dano.

Em outra palavras, estabeleceu-se em nosso ordenamento jurdico que a

responsabilidade decorrente de atos ilcitos gera uma obrigao secundria de indenizao que deve corresponder reparao integral, a fim de que o dano injusto causado seja efetivamente compensado.

Dessa forma, pode-se observar que a leso de cunho material e a de contorno moral

constituem modalidades de danos que exigem a devida reparao, no mais havendo dvidas quanto possibilidade de indenizao de cunho imaterial ante a previso do art. 5o, V da Constituio da Repblica e, expressamente, a do art. 186 do Cdigo Civil que taxa tambm como ato ilcito aquele que provoca apenas dano moral, objeto de compensao como se nota do art. 953 e pargrafo nico do mesmo diploma legal com fixao por arbitramento do juiz.

A reparao integral, portanto, deve abranger o dano emergente e os lucros cessantes.

Aquele se configura como a reduo imediata do patrimnio da vitima, ou seja, aquilo que efetivamente perdeu3, enquanto este traduz o que a vtima razoavelmente deixou de lucrar. Trata-se de uma projeo contbil nem sempre muito fcil de ser avaliada. Nessa hiptese, deve ser considerado o que a vtima teria recebido se no tivesse ocorrido o dano.4

Ao lado dessa duas modalidades, surge discusso muito interessante acerca da

indenizao pela perda de uma chance, que constituiria uma terceira modalidade para viabilizar a reparao de tudo aquilo que a vtima deixou de conseguir em razo do dano, como por exemplo no caso trabalhista a interrupo da possibilidade de uma carreira de futuro por uma dispensa arbitrria. Entretanto, como ainda no h consenso acerca dessa possibilidade de indenizao, apenas registra-se a questo como forma de instigar o leitor produo doutrinria, fixando-se o presente estudo na reparao tradicional concernente ao dano material emergente, lucro cessante e dano moral decorrente do ato discriminatrio na admisso.

3 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil. Responsabilidade Civil. So Paulo: Editora Atlas, 2003, 3a ed, p. 30. 4 Idem, p. 30.

Assentada a doutrina da reparao integral, cabe investigar qual a modalidade de reparao prefervel para a vtima, a concesso do mesmo bem que foi suprimido pelo ato ilcito ou apenas a indenizao equivalente.

Do prprio significado do vocbulo pode-se extrair a idia central do presente

instituto, pois indenizar quer dizer tornar indene o prejuzo, ou seja, tornar ntegro, sem dano. A justia ideal, portanto, repousa em se reparar o dano para que a exata situao anterior, antes do fato lesivo, seja restabelecida. Pretende-se que a vtima tenha aquilo que lhe foi subtrado, ou, no caso em que analisamos, exatamente o que lhe foi recusado.

Pode-se observar tal preocupao do direito material a exata reparao integral

nos diplomas adjetivos, citando-se como exemplo o art. 461 do CPC que nas obrigaes de fazer e no fazer atribuem ao juiz poderes amplos para a concesso da tutela especfica da obrigao ou para que determine as providncias que assegurem o resultado prtico equivalente ao do adimplemento, deixando a converso da tutela in natura para as perdas e danos apenas se o autor o requerer ou se impossvel a tutela especfica ou a obteno do resultado prtico correspondente, conforme o pargrafo primeiro do mesmo artigo.

Assim, no se pode afastar que cabe ao Poder Judicirio, sempre que instado, adotar

posio firme para assegurar a efetividade de sua tutela que, preferencialmente, ser a especfica, ou seja, aquela que mais se aproxima do ideal de justia acima mencionado, onde a vtima consegue extirpar o dano sofrido atravs do recebimento exatamente daquilo que deixou de auferir em razo do ato ilcito praticado pelo agressor.

5. Reparao integral do ato discriminatrio na admisso: Direito Integrao

Seguindo-se o raciocnio at aqui esposado, a defesa do Direito Integrao passa a ser quase que mera decorrncia lgica da leso concernente perda do trabalho por ato discriminatrio, pois constitui a reparao especfica contra esse ato ilcito.

Sabendo-se, entretanto, que cuida essa reparao de idia nova, ao menos que esse

autor tenha conhecimento, no se pode finalizar o artigo apenas pela noo decorrente do senso comum de que o ideal de justia requer a presente interpretao, cabendo uma detida fundamentao de sua possibilidade jurdica.

Em primeiro lugar, h que se assentar ser a discriminao a conduta pela qual se

nega a algum, em funo de fator injustamente desqualificante, tratamento compatvel com o padro jurdico assentado para a situao concreta vivenciada.5 No caso analisado, nega-se ao trabalhador a relao de trabalho por algum tipo de fator desqualificante.

Referidos fatores so arrolados no art. 1o da Lei 9.029/95: sexo, origem, raa, cor,

estado civil, situao familiar ou idade. Entretanto, a vedao a tratamento 5 DELGADO, Maurcio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. So Paulo: LTr, 4a ed., p. 774.

discriminatrio, que em ltima anlise resguarda a dignidade da pessoa humana que constitui princpio fundamental da Repblica, revela no ser possvel que lei ordinria limite as hipteses de ocorrncia dessa prtica, donde se conclui ser meramente exemplificativo, e no taxativo, o mencionado rol.

Logo, toda e qualquer conduta que se apresente discriminatria, por qualquer fator

injustamente desqualificante, tida por ilcita e, causando dano, estar sujeita devida reparao integral. Pode-se citar como exemplo de fator desqualificante no previsto no rol legal, mas que da mesma forma constitui ato discriminatrio, recusar trabalho a ex-empregados, a pessoas que esto sem baixa na Carteira de Trabalho, a pessoas que encontram-se em litgio com seus ex-empregadores na Justia do Trabalho entre outros.

A segunda constatao importante para justificar o direito integrao, repousa no

fato de que a perda de trabalho por ato discriminatrio gera danos materiais e imateriais, no havendo, na Lei 9.029/95, qualquer tipo de previso de reparao especfica para tal conduta ilcita.

Ora, no h que se argumentar que a ausncia de previso na lei mencionada

impossibilita a reparao pela conduta ilcita da discriminao, pois a omisso do legislador em seara trabalhista facilmente resolvida pelo uso do art. 8o e pargrafo nico da CLT, que permite a busca de outras fontes do direito para suprir a lacuna legal, o que viabiliza o uso das regras gerais de responsabilidade civil preconizadas no Cdigo Civil, tudo luz dos princpios constitucionais que, na verdade, precedem com fora normativa a aplicao da legislao ordinria.

E como antes mencionado, a legislao civil determina que seja efetivada a reparao

integral pelo dano sofrido, o que alcana no apenas a compensao por dano moral (imaterial), mas tambm a reparao do dano material compreendendo o dano emergente e os lucros cessantes.

No que concerne ao dano moral, configurada a prtica discriminatria pelo propenso

tomador dos servios, no h dvida de que valores inerentes personalidade humana foram afetados, pois a prpria circunstncia de se recusar a algum as possibilidades da vida por fator injusto macula, se no elimina, a essncia da alma humana.

A perda do trabalho por ato preconceituoso atinge a honra e a imagem do trabalhador

e, pior, representa uma espiral de excluso que viola a evoluo da sociedade que se pretende justa e solidria. No h humilhao maior e vergonha pior para a sociedade do que notar, com a passagem dos anos, que idias de outras geraes amalgamadas por uma cultura excludente e medrosa, continuam a repercutir no mercado de trabalho afetando, por exemplo, os salrios das mulheres, o nmero de negros em cargos de chefia, a dificuldade de homossexuais em assumirem suas preferncias sexuais durante entrevistas de emprego, enfim, males que ainda teimam em conviver com um mundo que se diz moderno.

Caracterizado o dano moral pelo prprio fato da discriminao, ou seja, no h necessidade de prova especfica desse dano o que de qualquer sorte seria impossvel , cabe dentro da doutrina da reparao integral a fixao de indenizao compensatria, em valor a ser arbitrado pelo juiz sempre com vistas a no gerar enriquecimento sem causa da vtima.

Ao lado do dano moral, entretanto, ocorre o dano material no apenas pela perda do

trabalho, mas tambm quanto a todos os gastos efetuados pelo trabalhador injustamente desqualificado na seleo, o que revela a necessidade de fixao de indenizao pelos danos emergentes e dos lucros cessantes.

Dentro da proposta deste artigo, analisar-se- a reparao do dano emergente pela

concesso do trabalho perdido, bem como dos lucros cessantes do tempo de inatividade forada pelo ato discriminatrio. Entretanto, no se pode esquecer que caso a vtima no mais possua interesse na obteno do trabalho, faculdade que lhe cabe, dentro dos danos emergentes devero ser considerados os gastos efetuados pelo trabalhador para a participao no processo de seleo que resultou na leso, como compra de vesturio, dias de servios perdidos, despesas de transporte, enfim, tudo que tenha envolvido diretamente a presena da vtima nesse evento.

A reparao do dano emergente ideal para a discriminao na admisso de

trabalhador revela ser, por bvio, a concesso exatamente daquilo que deixou de ser auferido pela atitude discriminatria: a relao de trabalho. A expresso da tutela especfica para o caso em anlise, portanto, fixa-se na declarao de existncia do contrato e em uma obrigao de fazer concernente concesso do trabalho de forma impositiva pelo Poder Judicirio, como forma de pacificao social e para que seja assegurado o interesse pblico de se extirpar referido tipo de conduta de nossa sociedade.

Muito embora possa parecer que a obteno do trabalho possua contorno apenas

individual, j que o ser humano afetado pela discriminao que perde essa relao jurdica, possui a reparao desse dano individual verdadeiro escopo pedaggico para toda a sociedade, transformando a realidade do mercado de trabalho quando os primeiros discriminados corajosos levantarem a bandeira da revolta, no mais aceitando esse tipo de prtica.

Logo, a tutela especfica da discriminao na admisso pela concesso da relao de

trabalho revela ser medida eficaz para transformao social, papel e objetivo do poder jurisdicional, j que mera reparao econmica pode permanecer apenas na esfera do prejuzo financeiro que, dependendo do valor fixado, sequer alcana seu escopo e, mais, impede a convivncia daqueles que agiram de forma discriminatria com a vtima, nico modo de se reverterem posies pessoais preconceituosas: o relacionamento humano tolerante.

Em reforo argumentao supra, no se pode esquecer que a perda do trabalho por

ato discriminatrio constitui verdadeira leso ao direito fundamental ao trabalho que, como visto acima, possui eficcia imediata nas relaes privadas de forma a vincular o

tomador dos servios sua efetivao, o que acarreta a impossibilidade de se impedir a obteno dessa relao jurdica por fator injustamente desqualificante de um ser humano.

E tambm como j analisado, a dimenso subjetiva do direito ao trabalho previsto no

art. 6o da Carta Magna, mesmo diante da baixa normatividade em que redigido, possibilita o reconhecimento de uma posio jurdica subjetiva do ofendido para buscar a tutela do Poder Judicirio a fim de obter a reparao pela leso a esse direito. E nada mais justo do que permitir que a vtima obtenha exatamente aquilo que lhe foi suprimido por ato odioso de discriminao, no caso, o trabalho.

A obteno da relao de trabalho, portanto, constitui o Direito Integrao

defendido neste estudo, podendo ser definido como o direito que todo cidado possui de obter trabalho, somente sendo vivel ao tomador dos servios recusar a realizao dessa relao jurdica por motivo justificvel.

Pode-se objetar a presente idia pela argumentao de que o contrato de trabalho

consensual, formando-se apenas pela livre manifestao de vontade das partes, o que inviabilizaria seu reconhecimento forado pelo Estado.

Muito bem, nesse ponto no se pode deixar de citar os inmeros casos de reintegrao

amplamente difundidos e praticados no Direito do Trabalho, alguns deles com expressa previso no texto da CLT, como se observa do art. 659, IX e X e, mais, de acordo com a prpria Lei 9.029/95 em seu art. 4o. Ora, na reintegrao h uma manuteno forada da relao de emprego contra a vontade do empregador, revelando que pode existir uma sobreposio da vontade do Estado que extirpa o ato nulo praticado pelo tomador dos servios, justamente porque a extino da relao de emprego se demonstrou abusiva.

Se ainda se reconhece como direito do empregador dispensar seus empregados de

forma imotivada, j no existe dvidas de que tal direito deve ser exercido dentro de seus limites, sendo o ato abusivo da dispensa considerado ato ilcito nos termos do art. 186 do Cdigo Civil. E referido ato ilcito enseja, prioritariamente, a reparao especfica do retorno ao emprego com o pagamento de todo o tempo de inatividade, o que conhece-se pela nomenclatura da reintegrao.

H de se perguntar, dessa forma, em que a integrao seria diferente da

reintegrao. Na recusa discriminatria da admisso o tomador dos servios age em flagrante abuso de direito, pois se certo que possui ele a discricionariedade de eleger os colaboradores que possuam melhor perfil para trabalharem em seu empreendimento, no se pode permitir que entre os critrios adotados estejam estabelecidos atos discriminatrios, pois como visto a dignidade da pessoa humana repele prontamente qualquer ilao neste sentido.

Constatada a discriminao na admisso, cabe ao Poder Judicirio, quando chamado a

intervir, extirpar o ato ilcito constante na discriminao e restabelecer a manifestao de vontade vlida subjacente atravs da declarao de existncia do vnculo jurdico de trabalho desde a data em que deveria a relao ter sido pactuada.

Pode-se observar, portanto, que no h determinao de criao de uma relao

jurdica contra a vontade de uma das partes, mas apenas a declarao de que o bice criado pelo tomador no encontra respaldo em nosso ordenamento jurdico e, portanto, no poderia ter inviabilizado o incio da prestao de servios pelo trabalhador, declarando o Judicirio, finalmente, que desde a ocorrncia da discriminao considera-se como existente a relao de trabalho maculada por tal atitude.

Na seqncia da reparao dos danos emergentes, cabe ao trabalhador-vtima a

concesso de todos os pagamentos que deixou de receber at sua efetiva integrao, ou seja, da data que seria do incio da relao de trabalho ao efetivo labor aps extirpado o ato discriminatrio, quando ento restabelece-se a relao de trato sucessivo onde o tomador obtm a energia de trabalho mediante contraprestao pecuniria.

Embora possa parecer excessiva a medida em questo, o deferimento dos pagamentos

referentes ao perodo de inatividade representam apenas a exata expresso material dos prejuzos sofridos pelo trabalhador discriminado, que provavelmente foi mantido em desemprego de forma injusta. Obviamente, entretanto, menciona-se tal reparao como regra geral, o que deve ser sopesado no caso concreto a fim de no se transformar a reparao em enriquecimento sem causa do trabalhador, o que alis deve estar sempre na mente do intrprete.

Como segunda objeo poder-se-ia imaginar a impossibilidade da integrao porque

j ocupada a vaga de trabalho por outra pessoa, pois a dinmica de uma empresa muitas vezes determina a contratao imediata para repor eventual perda de trabalhadores, mormente num mercado que utiliza a rotatividade de mo-de-obra como prtica usual.

Mais uma vez, o problema apresentado no impede o reconhecimento do direito

integrao, seja porque igualmente nos casos de reintegrao o fato tambm pode acontecer, no havendo pela doutrina objeo de retorno de um empregado ainda que j tenha sido contratado outro para seu lugar, seja porque o nosso ordenamento jurdico possui soluo para os casos de efetiva impossibilidade de deferimento da tutela especfica: a converso em perdas e danos.

O que no se pode aceitar, e o intrprete dever estar atento a essa situao, que a

contratao de outro trabalhador sirva de escudo protetor ao direito integrao, pois referida prtica pode ser, novamente, um artifcio do tomador discriminatrio para evitar a insero no trabalho da vtima.

H de se ponderar, no caso concreto, que a integrao do discriminado a critrio da

vtima , serve no apenas para a reparao do dano pessoal, mas tambm como medida pedaggica para toda a sociedade. Dessa forma, a preponderncia de interesse pblico existente neste caso revela ser possvel que, mesmo j existindo outro trabalhador na vaga que estava destinada vtima ocorra a integrao forada com aumento de custo para a empresa, como forma de se impedir eventual artifcio fraudulento que, em ltima anlise, constitui novamente abuso de direito do tomador dos servios.

Importante salientar que, tal como o ato discriminatrio do empregador previsto na

Lei 9.029/95 que importa a perda do emprego viabiliza uma opo ao empregado entre o retorno ou a indenizao dobrada, tambm na discriminao no momento da admisso deve ser reconhecida ao trabalhador a mencionada faculdade, o que pode ser facilmente explicado.

Ocorre que a integrao forada constitui verdadeira bandeira contra atos

discriminatrios que somente poucos trabalhadores conseguem erguer, pois a vida cotidiana em contato com tais pessoas pode levar a uma srie de transtornos que apenas os mais corajosos e vocacionados sentem ser possvel suportar, motivo pelo qual, ao contrrio das estabilidades no emprego onde cabe ao Juiz a converso de ofcio da reintegrao em indenizao, nos casos de discriminao essa faculdade somente pode ser reconhecida vtima.

Ademais, o prprio Cdigo de Processo Civil estipula ser do credor, como regra

geral, a faculdade de optar entre as perdas e danos e a tutela especfica no que concerne s obrigaes de fazer (art. 461, 1), motivo pelo qual no pode haver interpretao diversa em seara trabalhista que, principiologicamente, procura ser protetiva ao trabalhador.

Assim, em caso de discriminao na admisso cabe, a critrio da vtima, o direito

integrao, com percepo dos pagamentos do perodo de inatividade forada at o efetivo incio do labor, ou indenizao por perdas e danos. Haver apenas a indenizao, ainda, quando o caso concreto revelar a impossibilidade da concesso da tutela especfica.

Em caso da indenizao por perdas e danos, uma vez afastada a integrao, deve-se

englobar no valor a ser fixado no apenas os danos emergentes, j acima analisados, como tambm os lucros cessantes.

A perda da relao de trabalho por discriminao importa, sem qualquer dvida, um

prejuzo direto (danos emergentes) e um indireto (lucros cessantes), j que o trabalhador deixa de auferir o pagamento que seria devido em caso da obteno do posto de trabalho, o que somente no aconteceu pelo ato ilcito do tomador dos servios.

A doutrina da reparao integral determina, portanto, que dentro do valor

indenizatrio haja a incluso dos lucros cessantes referentes aos pagamentos do perodo de inatividade o que, de qualquer sorte, encontra respaldo na prpria Lei 9.029/95 que, em seu art. 4o, determina para o caso semelhante da perda do emprego, a indenizao de todo o perodo de inatividade e, pior, em dobro.

Logo, no poder haver dvidas de que a indenizao dos lucros cessantes igualmente

encontra amparo na perda do trabalho por ato discriminatrio, restando apenas a fixao do perodo de inatividade decorrente desse fato.

Embora no seja possvel o estabelecimento de uma regra universal, pois em cada caso concreto existiro contornos especficos para estabelecimento do valor justo indenizatrio, pode-se imaginar como perodo de inatividade todo o tempo em que o trabalhador no obteve nova colocao no mercado de trabalho aps o ato discriminatrio, obviamente desde que tenha esse trabalhador mantido uma conduta de boa-f referente continuidade de busca de uma ocupao. Na impossibilidade de se mensurar referidos parmetros, pode-se imaginar, apenas a ttulo de sugesto, a fixao da indenizao por lucros cessantes com base no tempo mdio de desemprego obtido em pesquisas oficiais para cada regio do pas.

Finalmente, para se adequar vontade do legislador, o direito integrao, mera

expresso da reintegrao preconizada no art. 4o da Lei 9.029/95, pois trata do mesmo fenmeno apenas em momento diferente da relao jurdica maculada, deve obter a dobra dos valores em caso de sua converso em indenizao por perdas e danos, seja para desincentivar o tomador dos servios a essa prtica, seja para no se criar a prtica da discriminao j na admisso por ser mais econmico ao tomador abusivo do que quando praticada durante a relao de trabalho.

6. Reflexes acerca de outras possibilidade de tutelas Ao lado da integrao forada e da indenizao por danos emergentes e lucros

cessantes, bem como da compensao por dano moral, pode-se imaginar outros tipos de tutela que tenha por escopo a obteno do resultado prtico esperado pela vtima.

A primeira delas refere-se obrigao da empresa conseguir novo posto de trabalho

para a vtima, com obrigao de manuteno dos pagamentos da relao de trabalho lesionada at que se consiga a mudana da situao ftica em que se encontra o trabalhador.

Com tal medida conjuga-se o interesse da obteno de tutela especfica (obrigao de

fazer) com a eventual impossibilidade de convivncia humana entre a vtima e o agressor, a fim de se evitarem danos futuros caso no ocorra a sonhada pacificao com a deciso judicial.

Em segundo lugar, a concesso de tutela antecipada para reserva da vaga recusada

vtima da discriminao, que permite o resultado til da ao em que se pretenda a integrao forada e, ainda, compele o tomador dos servios a buscar rpida soluo do litgio ante a necessidade de reposio de mo-de-obra, impedindo qualquer argumentao no sentido de impossibilidade da integrao por preenchida a vaga originria.

Ainda, constatando-se que a prtica discriminatria do tomador dos servios no se

resume a caso isolado, mas atinge um grupo especfico de pessoas, as chamadas minorias objeto de preconceito em nossa sociedade, cabe a atuao de entes legitimados na esfera

dos direitos coletivos, como associaes, Ministrio Pblico do Trabalho etc. para proposio de ao civil pblica que tutele a integrao dessas pessoas e, mais, estabelea judicialmente um verdadeiro sistema de cotas para o caso concreto como forma de garantir a no ocorrncia de discriminaes, independente da indenizao por danos individuais e coletivos, inclusive de ordem moral.

Enfim, tratando-se de leso que possui diversas facetas, com evidente interesse

pblico, no se pode pretender resumir em um artigo doutrinrio todas as possibilidade de tutelas possveis para que nossa sociedade extirpe, paulatinamente, esse tipo de conduta odiosa, mencionando-se apenas aquelas que, num primeiro momento, foram lembradas como forma de demonstrao do uso efetivo que poder ser feito do Poder Judicirio.

7. nus da prova e necessidade de motivao da recusa do candidato ao

trabalho

Embora a questo tenha contornos de direito processual, entende-se ser necessria a presente abordagem sob pena de se perder, nos meandros do processo, a tutela efetiva que o caso requer.

Conforme ensinamento de Estvo Mallet, que em artigo publicado no ano de 2.000

j abordava a questo da discriminao no processo do trabalho,

A idia de dever o processo permanecer neutro, indiferente condio peculiar dos litigantes, no se sustenta e contrasta com o reconhecimento, hoje pacfico, da insuficincia da igualdade meramente formal. A legislao processual do trabalho brasileira, porm, acha-se ainda presa a tal concepo. Disso resulta o agravamento, no plano processual, das desigualdades j existentes no plano material, com sensvel discriminao do litigante dotado de menor capacidade econmica. H que reformar, pois, o processo do trabalho, de modo a combater essa discriminao, indesejvel sob qualquer prisma que se queira adotar. Trata-se, no fundo, no de mera faculdade, mas de autntico dever imposto ao legislador, como resulta do j mencionado art. 3o, inciso III, da Constituio.6

Embora seja desejvel a reforma do processo trabalhista, a fim de que seja facilitada a

aplicao de tcnicas que preservem a igualdade na relao processual, a fora normativa dos princpios constitucionais revela ser possvel, de imediato, a adoo de algumas condutas que resguardem, na prtica, a possibilidade de se impedir a discriminao no momento da admisso do trabalhador.

No se trata, aqui, de mero capricho da rea trabalhista, mas de verdadeira

necessidade para que os atos discriminatrios, geralmente velados, no venham a se 6 MALLET, Estvo. Discriminao e Processo do Trabalho. In: Discriminao. So Paulo: Ltr, 2000.

concretizar justamente pela dificuldade de sua demonstrao em juzo, o que revela estar o agressor em flagrante posio de vantagem no campo material, determinando, no plano processual, uma atitude que viabilize novamente a posio de igualdade das partes, o que se consegue pela aplicao do princpio do devido processo legal.

Como leciona a doutrina, dos princpios constitucionais do Direito Processual o mais

importante, sem sombra de dvida, o do devido processo legal. Consagrado no art. 5o, LIV, da Constituio da Repblica, este princpio , em verdade, causa de todos os demais.7

Constitui o devido processo legal, em seu aspecto processual, a garantia de acesso

ordem jurdica justa8, ou seja, um processo em que seja assegurado um tratamento isonmico, num contraditrio equilibrado, em que se busque um resultado efetivo, adaptado aos princpios e postulados da instrumentalidade do processo.9

Para o caso ora analisado, nota-se que a grande problemtica prtica ser no apenas

o uso do direito integrao como forma efetiva de reparao para as discriminaes na admisso, mas tambm a dificuldade da prova do ato discriminatrio, pois ao trabalhador vitimado no haver, regra geral, a possibilidade de nenhum tipo de documento ou material capaz de comprovar o motivo de sua recusa.

Como se sabe, nos processos seletivos atualmente em voga o trabalhador

simplesmente coloca-se numa posio de submisso a todo e qualquer tipo de teste ou investigao, dinmicas de grupo e, at, de modelo de comportamento dentro e fora do ambiente de trabalho, geralmente sequer tendo notcia dos critrios relevantes para sua contratao e, pior, sem qualquer tipo de informao acerca do motivo de eventual reprovao (o que entendemos equivocado como abaixo ser abordado).

Assim, luz do princpio do devido processo legal, o processo do trabalho para

efetivamente ser justo e equilibrado necessita, nesses casos de alegao de discriminao, do uso de uma tcnica j conhecida na rea comum e que comea a se ensaiar em alguns entendimentos do Tribunal Superior do Trabalho: a inverso do nus da prova.

Tal qual nas relaes de consumo, h ntida impossibilidade do trabalhador obter

meios de provar que o motivo de sua no admisso discriminatrio, pois geralmente no h uma manifestao externa pelo tomador dos servios desse ato abusivo. Escora-se o agressor, portanto, na supremacia da posio que mantm frente outra parte, amparado pelo conservadorismo que muitas vezes reina no julgamento de uma lide dessa magnitute.

Cabe ao magistrado, portanto, a adoo de uma posio imparcial mas condizente

com a busca do ideal de justia, determinando que a prova seja realizada por quem tem

7 CMARA, Alexandre Freitas. Lies de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Jris, 2003, 9a ed., Vol. I, p. 31. 8 Idem, p. 32. 9 Idem, ibidem.

aptido de faz-la em juzo. Ao tomador dos servios, portanto, recair o nus de demonstrar por qual motivo a pessoa que se diz discriminada no obteve o posto de trabalho, motivando o fracasso no processo de seleo.

Justificada, portanto, a reprovao do candidato, ser possvel um real exame dos

motivos sustentados pelo tomador, para que se verifique a ocorrncia ou no de abuso do direito e das prticas discriminatrias.

Note-se que a inverso do nus da prova revela-se necessria dentro de um

entendimento que ainda permite aos tomadores dos servios praticarem atos em relao aos trabalhadores sem qualquer tipo de fundamentao, como a dispensa sem justa causa, o trmino do contrato de experincia sem motivao, a recusa na admisso sem justificativa etc.

A bem da verdade, sequer haveria necessidade do uso dessa tcnica caso a doutrina e

a jurisprudncia j adotassem, de forma efetiva na rea trabalhista, o princpio da boa-f objetiva consagrado no art. 422 do CC, que se espraia tanto para o perodo pr-contratual quanto para o ps-contratual.

luz desse princpio, a informao acerca dos critrios de seleo e, ainda, a

justificativa para eventual fracasso de um candidato constituem deveres do tomador, pois os chamados deveres anexos de conduta determinam que haja de lado a lado a adoo de prticas inerentes conduta mdia que se espera de um cidado, como a solidariedade, a informao etc.

Logo, sendo direito do trabalhador a informao acerca do motivo de seu fracasso no

processo de seleo, caso entenda ser abusiva a justificava oferecida caber o pleito de integrao no Poder Judicirio, que poder analisar a questo com o devido contraditrio para, ento, concluir acerca da abusividade ou no da conduta do tomador.

Apenas para exemplificar a questo, um caso concreto: um empregado, negro,

homossexual e portador do vrus HIV, ajuizou ao alegando o trmino do contrato de experincia por motivo discriminatrio; em audincia declarou o autor que no tinha como provar a discriminao, pois no recebeu qualquer justificativa para o fim de seu contrato, dizendo-se discriminado porque sempre laborou de forma proveitosa para a empresa e sem qualquer reclamao; a empresa, em contestao, simplesmente sustentou que o contrato de experincia teve fim pelo advento do termo, sem qualquer justificava sob a fundamentao de que nossa legislao no determina qualquer tipo de informao outra parte sobre a aprovao ou reprovao na experincia.

Diante do quadro apresentado, o magistrado poderia ter adotado uma posio neutra e

imparcial, e tambm conservadora, de aplicao da clssica distribuio do nus da prova pelo art. 818 da CLT c/c art. 333, I do CPC, o que resultaria na improcedncia do pedido por falta de provas pela parte autora. Entretanto, o dever de conscincia determinou que outra atitude fosse adotada, uma que ajudasse na busca da verdade dos fatos, algo que viabilizasse o trmino daquela audincia sem a sombra da soluo meramente formal.

Aplicando-se as idias aqui expostas, foi determinada a inverso do nus da prova em

razo do devido processo legal, j que apenas o empregador teria aptido para demonstrar qual o verdadeiro motivo do fim do contrato de experincia, obviamente adiando-se a instruo para outra oportunidade a fim de no se surpreender a parte reclamada.

Na audincia de seguimento compareceram as partes e, colhidos os depoimentos

pessoais e testemunhais, restou mais do que evidenciado que realmente o empregado teve seu contrato de experincia findado por no ser um bom trabalhador, tendo o empregador inclusive provado que havia outros empregados no mesmo local tambm dessas minorias, convencendo-se o juzo de que no houve qualquer fato discriminatrio para o trmino do contrato de experincia, restando proferida sentena de improcedncia.

O curioso, entretanto, foi constatar a gratido do empregador que, posteriormente,

agradeceu pela conduo do processo com a inverso do nus da prova, pois interessava no caso no apenas sair vitorioso da demanda, mas demonstrar que a empresa sempre primou pela tolerncia e solidariedade entre os empregados, tendo a alegao daquele empregado-reclamante no apenas gerado o risco de um dano patrimonial para o empregador, mas antes de tudo uma mgoa pelas inverdades lanadas por um aventureiro que pretendia se aproveitar da condio frgil em que se apresentava.

No caso narrado, pode-se notar que o empregador pode demonstrar publicamente a

inveracidade das alegaes que o taxaram de discriminatrio, o que autoriza a concluso no sentido de que as boas prticas do mercado de trabalho requerem a transparncia no apenas na realizao e conduo dos contratos, mas tambm nas solues das controvrsias que naturalmente surgem entre trabalhadores e tomadores do servio, o que reafirma o reconhecimento do direito informao que no caso se concretiza com a fundamentao para a recusa da vaga e pelo uso da inverso do nus da prova.

8. Concluso

Diante do exposto, acredita-se ter demonstrado que o combate discriminao nas relaes de trabalho somente pode ser efetivo com a adoo de uma atitude enrgica que busque, dentro dos limites de nosso ordenamento jurdico, meios para dificultar condutas arraigadas em nossa sociedade, partindo-se da premissa de que constitui leso dignidade da pessoa humana a perda de oportunidades por motivos injustamente desqualificantes.

Detectada, portanto, a recusa do trabalho por motivo discriminatrio, caber em

princpio o direito integrao, como tutela especfica, com base nos seguintes fundamentos:

a) os direitos fundamentais possuem eficcia imediata nas relaes de trabalho;

b) o direito ao trabalho previsto no art. 6o da Constituio da Repblica constitui direito fundamental, com eficcia segundo sua densidade normativa e nas dimenses objetiva e subjetiva;

c) na dimenso objetiva o direito ao trabalho determina a vinculao da conduta do tomador dos servios e a interpretao do ordenamento jurdico segundo referido valor;

d) na dimenso subjetiva o direito ao trabalho reconhece uma posio jurdica subjetiva ao titular do direito para busca de tutela judicial preventiva e reparatria em caso de ameaa ou efetiva leso;

e) o direito ao trabalho direito de todos os cidados, aplicvel portanto em todas as relaes de trabalho, e no apenas na relao de emprego;

f) constitui a discriminao a recusa de um direito por motivo injustamente desqualificante;

g) a discriminao na admisso em qualquer relao de trabalho lesiona o direito fundamental ao trabalho, maculando a dignidade da pessoa humana, causando dano moral e material;

h) a reparao dos danos segue o princpio da reparao integral, bem como a preferncia pela tutela especfica como ideal de justia, somente admitindo-se a converso em perdas e danos a requerimento da vtima ou em caso de impossibilidade;

i) a vtima de discriminao na admisso possui como tutela especfica o direito integrao, declarando-se a realizao do contrato desde o momento em que deveria ter acontecido, condenando-se o tomador no pagamento do perodo de inatividade e, ainda, com a obrigao de fazer de se efetivar o labor forado do trabalhador, integrando-o na empresa, alm das indenizaes necessrias, inclusive por dano moral;

j) em caso de impossibilidade ou de preferncia da vtima, caber a indenizao equivalente dobrada, alm da indenizao por outros danos emergentes, lucros cessantes e compensao por dano moral;

k) a fim de ser possvel a demonstrao efetiva do ato discriminatrio e dentro dos deveres anexos de conduta decorrente do princpio da boa-f objetiva, cabe ao tomador dos servios informar o motivo do fracasso no processo de seleo, invertendo-se o nus da prova em juzo de acordo com o princpio do devido processo legal.

Discriminao na Admisso: Direito Integrao