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Outras modernidades V.1 Nuestra América e EUA

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Copyright © 2009 Daniel Aarão Reis

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Os conceitos emitidos neste livro são de inteira responsabilidade do autor.

Este livro foi editado segundo as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, aprovado pelo Decreto Legislativo no 54, de 18 de abril de 1995, e promulgado pelo Decreto no 6.583, de 29 de setembro de 2008.

1a edição — 2009

PreParação de originais: Paulo Telles

revisão: Adriana Alves Ferreira e Catalina Arica

Projeto gráfico miolo: Santa Fé ag.

Projeto gráfico caPa: André Castro

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique Simonsen/FGV

Nuestra América e EUA [CD-ROM] / Coordenação Cecília Azevedo... [et al.]. – Rio de Janeiro : Editora FGV, 2009.

1 CD-ROM (Outras modernidades-textos e propostas; v.1)

Inclui encarte. Inclui bibliografia.ISBN: 978-85-225-0770-2

1. Modernidade – Coletânea. 2. Evolução social - Coletânea. 3. Civilização – Coletânea.

I. Azevedo, Cecília. II. Fundação Getulio Vargas.CDD – 900

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Sumário

ApRESEnTAçãO gERAL 6

Os processos de modernização e as modernidades alternativasDaniel Aarão Reis

pARTE 1 | EUA 12

Modernidades alternativas: o confronto de culturas políticas e a tradição de dissenso nos EUACecília Azevedo, Rodrigo Farias e Gabriel Neiva

1. William Lloyd Garrison | Declaração de sentimentos | 1838 24

2. General William Tecumseh Sherman | 40 acres e uma mula — Ordem 27 Especial Militar no 15 | 1865

3. Lysander Spooner | A Lei Natural | 1882 29

4. Plataforma política do Partido Populista | 1896 33

5. William Edward Burghardt Du Bois | Sobre o sr. Booker T. Washington e outros | 1903 36

6. Jack London | Revolução | 1905 44

7. Emma Goldman | Patriotismo: o que significa | 1910 54

8. William Haywood e Frank Bohn | O socialismo industrial | 1911 61

9. Mother Jones | (autobiografia) | 1925 63

10. Eugene Debs | Discurso em prol da criação do Partido Americano do Trabalho | 1925 70

11. Partido Socialista do Trabalho da América | Declaração dos princípios fundamentais | 1940 73

12. Henry Wallace | Meus compromissos: a traição dos velhos partidos — discurso de aceitação 75 da candidatura à presidência dos EUA pelo Partido Progressista | 1948

13. William Edward Burghardt Du Bois | Solicitação de filiação ao Partido Comunista 83 dos Estados Unidos da América | 1961

14. Malcolm X | O voto ou a bala | 1964 85

15. Huey Newton | Programa dos 10 pontos do Partido dos Panteras Negras | 1966 97

16. Guy Strait | O que é um hippie? | 1967 99

17. Tom Hayden | Duas, três, muitas Columbias | 1968 101

18. Dos índios de todas as tribos | Proclamação | 1969 103

19. Manifesto dos Meias Vermelhas | 1969 105

20. Liberação Gay no Terceiro Mundo | O que queremos, no que acreditamos | 1971 107

21. César Cháves | Ao Commonwealth Club of California | 1984 111

22. Abaixo-assinado das organizações não governamentais | Manifesto de Seattle | 1999 117

23. Partido Verde dos EUA | Plataforma política | 2000 121

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pARTE 2 | nUESTRA AMÉRICA 133

América Latina — modernidades alternativasNorberto Ferreras e Mariana Bruce

1. Toussaint L´Ouverture | Constituição de São Domingos | 1801 142

2. Miguel Hidalgo | Manifesto | 1810 150

3. Simón Bolívar | Mensagem ao Congresso Constituinte da Bolívia (Projeto de Constituição) | 1826 152

4. Giovanni Rossi | Canção da Colônia Cecília | 1890 158

5. José Martí | Nossa América | 1891 159

6. Emiliano Zapata | Programa de Ayala | 1911 164

7. Francisco José de Oliveira Vianna | Evolução do povo brasileiro | 1923 168

8. Augusto César Sandino | Manifesto político | 1927 174

9. José Carlos Mariátegui | Programa do Partido Socialista Peruano | 1927 176

10. Lindolfo Leopoldo Boekel Collor | Discurso de posse no Ministério do Trabalho | 1931 179

11. Victor Raúl Haya de la Torre | Programa mínimo do Partido Aprista Peruano | 1931 183

12. Farabundo Martí | Manifesto do Partido Comunista de El Salvador 188 aos soldados do Exército | 1932

13. Aliança Nacional Libertadora (ANL) | Programa do Governo Popular 190 Nacional-Revolucionário | 1935

14. Lázaro Cárdenas | Discurso do presidente da República no XV Congresso 194 da Confederação dos Trabalhadores do México | 1940

15. Juan Domingo Perón | Lançamento de candidatura | 1946 198

16. Alberto Pasqualini | Conferência de Caxias | 1950 207

17. Congresso Nacional dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas Brasileiros | Declaração 214 de Belo Horizonte | 1961

18. Ernesto Che Guevara | O socialismo e o homem novo em Cuba | 1965 218

19. Unidade Popular (Chile) | Programa | 1969 227

20. Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) | O programa histórico da FSLN | 1969 233

21. Partido Comunista do Brasil (PC do B) | Programa dos 27 Pontos da União pela Liberdade 238 e pelos Direitos do Povo (ULDP) — Guerrilha do Araguaia | 1970

22. Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) | Hino do MST | 1990 241

23. Celso Monteiro Furtado | Brasil: opções futuras | 1999 242

24. Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) | Sexta Declaração 246 da Selva de Lancadona | 2005

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ApreSentAção gerAl

Os processos de modernização e as modernidades alternativas Daniel Aarão Reis*

I.

Desde o século XIX, a modernidade e os processos de modernização foram percebidos com acuidade, mesmo que nem sempre se empregassem esses termos. Da esfera da literatura à vida cultural em sentido mais amplo, da economia à política ou à sociedade, o termo modernidade gerou sempre muitas controvérsias conceituais e, sobretudo, valorativas. Em relação ao assunto, nunca houve algo próximo a um consenso, nem jamais haverá provavelmente.

Assim, as reflexões que se seguem não poderiam pretender senão expor, numa rápida síntese, o que penso sobre estas questões que oferecem o quadro geral do presente livro.

Os tempos modernos teriam se originado no interior dos Antigos Regimes, deliberadamente pluralizados aqui para especificar as diferenciações internas de sociedades que os modernos, em muitos momentos, quiserem ver, ou desqualificar, como um todo monolítico, atrasado, historicamente irrelevante, quando não denominado como tempo das trevas, em oposição às luzes, modernas.

Considero aceitável a ideia de que se pode conceber a história dos processos de modernização, também sempre no plural, a partir dos séculos XIV-XV.1 Desde então, houve um itinerário marcado por trocas, adaptações, conflitos e intercâmbios com as diferentes sociedades do Antigo Regime. As condições de tem-po e lugar, as escolhas conscientes e inconscientes, sem contar o inevitável acaso, modelaram os processos de modernização, fazendo-os diferentes conforme as distintas sociedades. Sempre mutantes, segundo a la-pidar fórmula de Karl Marx, evidenciariam a capacidade de desmanchar no ar tudo o que era aparentemente sólido.2

Ao longo do tempo, no tempo longo, certos aspectos e valores iriam se associar de forma indelével aos pro-cessos de modernização, conferindo-lhes, na sua essencial diversidade, uma certa unidade, o que não implica uniformidade:

a valorização, não raro excessiva, do pensamento científico e as incessantes aplicações tecnológicas decorrentes, o surgimento do maquinismo e seus ritmos cada vez mais frenéticos, condicionando e sendo condicionados por sucessivas mutações econômicas, parecendo incontroláveis, como se a humanidade, na conhecida metáfora, houvesse permitido a libertação de um gênio, ou de um demônio, em todo o caso de uma força desconhecida e constantemente inovadora;

a liberdade de pensar, de criticar e de conhecer. Na esteira, o questionamento da ambição das grandes religiões de tudo integrarem e de tudo dominarem, a laicização das instituições, reservando-se à intimidade da consci-ência pessoal as escolhas religiosas;

a prevalência gradativa na organização da vida social de uma civilização urbana, as cidades não mais apenas como centros administrativos e políticos das sociedades existentes, mas como polos dinâmicos, civilizacionais (valores próprios) em oposição à dominação dos mundos agrários, tradicionais, bem amarrados em redes de sociabili-dade figuradas como permanentes e autorreproduzidas.

O que impressiona, numa visão panorâmica, ao lado da força da tradição, que se mantém e resiste, e se re-produz, redefinida,3 é a plasticidade dos processos de modernização, como conseguem se adaptar, assimilar, trocar, incorporar, evidenciando notável capacidade de fagocitar tendências diversas, alimentando-se de sua seiva, entranhando-se nela, transformando as pessoas, as condições de vida, a natureza e as relações sociais,

1 Berman, 1998; Falcón, 2003; Arrighi, 1996.2 Marx apud Aarão Reis et al., 1998; Bauman, 2000 e 2006.3 Mayer, 1987.

* Daniel Aarão Reis é professor titular de história contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF). A presente introdução, em sua parte substantiva, retoma as referências formuladas por mim na introdução do livro Modernidades alternativas (FGV, 2008).

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transformando-se no contexto de caminhos complexos, tortuosos, gerando-se, em consequência, manifesta-ções e feições, aspectos e características extremamente diversos.

Em certas sociedades, no entanto, rupturas localizadas e mutações moleculares deram lugar a grandes revolu-ções, explosivas, inaugurais, saltos para o futuro, modificando inclusive a própria acepção do termo revolução: não mais, como na astronomia, a volta para o lugar de origem, para o antes, imaginado pelos movimentos utópicos como uma idade de ouro, de paz e harmonia, mas o salto para o desconhecido, um depois a ser construído, o novo.4

Desenvolvendo-se de forma também singular, marcaram a imaginação dos contemporâneos. No século XVII, a revolução inglesa, convulsões que se desdobraram em décadas. Em fins do século XVIII, num tempo mais curto, mas igualmente se estendendo por anos, a revolução americana e a revolução francesa.5

Formularam-se aí um quadro conceitual e um programa político, uma escala de valores — os chamados direitos do homem, o genérico masculino evidenciando a dominação então incontestável dos machos. Um eixo norteador ambicioso, se querendo válido para todos os tempos e para todos os espaços, universal.

A rigor, entretanto, eram apenas os programas liberais de modernidade que se apresentavam: na economia, o triunfo do mercado e de sua mão invisível; na política, a representação censitária, excludente, o triunfo dos proprietários; na cultura, o indivíduo livre, ou seja, as pessoas individualizadas, atomizadas, desamarradas agora de laços tradicionais, comunitários, societários, de antigos estatutos, que as situavam num lugar onde, quase sempre, nasciam, cresciam e morriam.6 Uma vertigem: amarras que se desprendiam, as pessoas livres de tudo, inclusive dos instrumentos de trabalho e/ou dos pedaços de terra que lhes garantiam tradicionalmente a sobrevivência e o bem-estar, livres para se entregar à livre exploração e depredação do Capital, um espectro que se erguia, jorrando sangue por todos os poros.7

Legitimado pelas revoluções que o consolidaram, o programa liberal aparecia com notável petulância, como se fosse a única hipótese de modernidade. Segundo os liberais, sem eles, não haveria modernidade. Esta ambi-ção totalizante e tentacular, messiânica, caracterizaria, aliás, propostas modernizantes de diversa natureza, de múltiplas tendências, impregnadas pelo viés universalista, atemporal, religiões laicas, como se desejassem se subs-tituir às religiões tradicionais, ocupando seu lugar, sem dispor, contudo, de suas credenciais.

Entretanto, no interior mesmo dos grandes processos revolucionários dos séculos XVII e XVIII, e sem ne-gar os aspectos básicos da modernidade, apareceram projetos e programas alternativos.

Entre eles, o principal desafio e a questão maior, desde sempre, foi assegurar a liberdade, arrancada aos ab-solutismos dos antigos regimes, mas cultivando-a em condições de igualdade.

Na revolução inglesa, a saga de levellers e diggers, entre muitas outras propostas inusitadas e surpreendentes.8 Na revolução americana, as ideias de estender as liberdades aos comuns, às mulheres, aos negros, aos povos originários daquelas terras. Na revolução francesa, os enragés de todas as raivas, a aventura de Gracchus Babeuf, o desespero dos que viam se reconstituírem os privilégios: não mais os do sangue azul, mas os do dinheiro, metal implacável, capaz de abrir e de fechar as portas e os horizontes.

Assim, começaram as disputas. De um lado, as modernidades liberais. De outro, as modernidades alternativas. Mais tarde, e ao longo do século XIX, também em oposição às propostas liberais, desenvolver-se-iam pro-

jetos alternativos em sociedades diferenciadas: Alemanha, Rússia, Japão, China.9 Múltiplas tendências, um denominador comum: evitar, como possível, os horrores e as tragédias provocados pelos programas liberais de modernidade. No próprio interior das sociedades liberais, sempre nas brechas, as propostas democráticas, anar-

4 Arendt, 1982.5 Para as revoluções inglesa, americana e francesa, respectivamente: Hill (1987) e Hobsbawn (1972 e 1978); Sellers et al. (1990) e Tocque-ville (1998); Tocqueville (1967), Furet (1989), Furet e Ozuf (1989), Lefebvre (1989); Hobsbawn (1972) e B. Cavalcante (1991). Para um ensaio de conjunto, Rodrigues (2003).6 Para o estudo das diversas propostas liberais (Inglaterra, EUA e França), ver Berstein, 1998.7 A conhecida expressão é de K. Marx (O capital).8 Hill, 1987.9 Para os pensadores russos como formuladores de paradigmas de modernidades alternativas, ver Berlin (1988), Aarão Reis (2006) e Walick (1979); para a Alemanha, Droz (1970-1975); para a China, Chesneaux (1975 e 1982), Fairbank e Goldman (2006), Spence (1990), Pomar (1987), Teng e Fairbank (1982); para o Japão, Ortiz (2000).

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quistas, socialistas, comunistas, derrotadas, mas não vencidas, contribuindo decisivamente, através de reformas sociais e políticas, para a remodelagem das sociedades liberais.10

No século XX, os embates desdobraram-se: catástrofes sociais, guerras e revoluções. Assumiriam relevân-cia, invocando os interesses das grandes maiorias, pela esquerda,11 a social-democracia,12 o socialismo soviético,13 as diferentes propostas nacional-estatistas.14 Por outro lado, pela direita, em nome de desigualdades que deve-riam permanecer, consideradas naturais e inevitáveis, os corporativismos, os fascismos, o nazismo.15

Na crítica radical à dinâmica excludente e liberticida que as propostas liberais assumiram em muitos mo-mentos e circunstâncias, os programas de modernidades alternativas, não poucas vezes, assumiram, pela direita (corporativismos e fascismos) e pela esquerda (socialismos realmente existentes), tendências ditatoriais. Em nome da raça e/ou das hierarquias (corporativismos e fascismos) ou da classe e/ou da igualdade (socialismos), incorporaram-se da modernidade a perspectiva e o sopro forte do progresso econômico, a modernidade numa perspectiva instrumental, matando o que ela tinha de mais estimulante em termos de abertura para a constru-ção de novos horizontes: a liberdade. Considerada inquietante por tantos, fator de insegurança, a liberdade foi rejeitada, em nome do progresso, do combate aos inimigos, das necessidades impostas por circunstâncias que, a rigor, não eram mais do que o exercício de uma lógica de poder, devoradora, insaciável, que hipertrofiou os Estados em detrimento da autonomia dos cidadãos. Abriam-se aí conexões e alianças com as tradições dos Antigos Regimes que reapareciam, através de símbolos, novas hierarquias e promessas de conforto espiritual e segurança material.

Compreender os fundamentos destes processos é o programa que nos interessa: o inventário e o debate sobre as modernidades alternativas, os projetos alternativos de modernidade — em suas configurações, tortuosos itinerários, tragédias, contradições, impasses.

II.

As pesquisas que originaram o presente livro/CD-Rom são resultado de um projeto conjunto desenvolvido no âmbito do Núcleo de Estudos Contemporâneos da Universidade Federal Fluminense (NEC/UFF), reu-nindo professores, pós-graduandos e graduandos.

Trata-se de elaborar, em quatro volumes, uma antologia de fontes sobre projetos/programas de modernida-des alternativas aos programas liberais de modernidade, elaborados nos séculos XIX e XX. As fontes referen-tes a cada região são introduzidas por estudos formulados por especialistas, importando sublinhar que os do-cumentos relacionados também recebem notas breves esclarecendo o contexto em que foram produzidos, as-sim como os autores (pensadores ou partidos) que os produziram.

O volume 1 refere-se às Américas (Nuestra América e EUA). Participaram da pesquisa e seleção das fontes, e assinam os textos introdutórios e as notas explicativas, os professores Cecília Azevedo (C.A.) e Norberto

10 Ao longo do século XIX, nas sociedades liberais, especialmente na França, mas não apenas aí, toda uma saga de resistências e lutas por alternativas se desdobraram em oposição à dominação dos liberalismos. Estes últimos tiveram que se adaptar, e em fins do sécu-lo XIX poder-se-ia já falar de um liberalismo realmente existente, acompanhando a démarche de R. Bahro em relação ao socialismo do século XX. Para as lutas populares dos trabalhadores e das plebes urbanas nos séculos XIX e XX, ver Aarão Reis (1997) e Martinho (2003); para as ideias anarquistas, Kropotkin (1987) e Woodcock (2002); para o marxismo e a social-democracia, Przeworski (1989) e Hobsbawn (1981, 1982, 1987); para a luta dos trabalhadores ingleses, Thompson (1987). 11 Para a vigência da díade esquerda-direita, ver Bobbio, 1995.12 Cf. Przeworski, 1987.13 Cf. Lewin, 1985 e 1995.14 As propostas nacional-estatistas, formuladas a partir do entreguerras, tiveram seu momento mais forte no século XX entre o fim da II Guerra Mundial e o fim da III Guerra do Vietnã (1960-1975). Para a saga revolucionária terceiro-mundista, ver Chaliand (1977). Na América, ao sul do Rio Grande, cf. Castro Gomes (1994) e James (1990). Para o mundo muçulmano, Espósito e Voll (2001), Hourani (2005) e Said (1988 e 1996); para a Índia, Gandhi (1999). Para a África, ao sul do Sahara, Lebeau, Niane, Piriou e St. Martin (2003). Lutas sociais, revoltas e revoluções tentariam, às vezes, combinar tradição e modernidade em uma proposta român-tica revolucionária. Sobre o conceito, ver Lowy e Sayre (1995).15 Para os corporativismos, Manoilesco (1938) e Martinho (2002); para os fascismos e nazismo, Felice (1988), Silva (2003) e Sternhell (1995).

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Ferreras (N.F.), ambos do Departamento de História da UFF; o professor Rodrigo Farias (R.F.), da Univer-sidade Candido Mendes (Ucam) e doutorando na UFF; a mestranda Mariana Bruce (M.B.), do PPGH/UFF; o mestrando em antropologia Gabriel Neiva (G.N.), do PPGAS/UFRJ; e o professor Luiz Alberto Grijó (L. A.G.) da UFRGS (notas sobre Oliveira Vianna).

Na tradução e revisão dos textos relativos à Nuestra América contribuíram Daniel Aarão Reis, Norberto Ferreras e Mariana Bruce; nos textos relativos aos Estados Unidos colaboraram Daniel Aarão Reis, Cecília Azevedo, Gabriel Chavarry, Gaio Goulart Doria e Rodrigo Farias.

Nos próximos anos, serão lançados os volumes 2 (mundo muçulmano e África subsaariana), 3 (Europa e Rússia/URSS) e 4 (Índia e China).

O projeto em seu conjunto — apoiado pela Faperj por meio do Prêmio Cientistas de Nosso Estado — ar-ticula-se igualmente com um acordo que recebeu apoio da Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal da Edu-cação Superior (Capes) e da Commission Française de Coopération avec les Universités Brésiliennes (Cofe-cub), coordenado por Daniel Aarão Reis (parte brasileira) e Denis Rolland (parte francesa) desde 2006, com a finalidade de estudar projetos/programas de modernidades alternativas.

No contexto de múltiplos intercâmbios (missões científicas, bolsas de pós-doutorado e de doutorado), reali-zou-se em agosto de 2007 um seminário internacional no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ), que gerou outro livro, de artigos e ensaios, editado em 2008 pela Editora FGV sob o título Modernidades alter-nativas.

Mencione-se com particular ênfase o fato de que foi possível também, nesta publicação, reunir professores doutores, pós-graduandos (doutorandos e mestrandos) e graduandos (bolsistas de iniciação científica), em um intercâmbio de ideias livre, crítico e construtivo.

III

O presente volume apresenta-se como um lugar de encontro e de desencontro: diverso e plural nas aborda-gens, nos pontos de vista defendidos sobre as concepções em disputa, aberto ao debate e ao contraditório, em uma palavra, moderno, no que a palavra tem de melhor e de mais estimulante, no sentido de abertura para as mudanças e para a pluralidade.

A concepção geral foi, e é, a de estimular e suscitar o debate, explorando-o em dimensões múltiplas — cul-tura, artes, política, sociedade, economia —, e não fechar questões.

Em uma época de hegemonia liberal, um questionamento, uma proposta de contratendência, alternativa.E uma aposta. Num processo de construção de um determinado tipo de modernidade alternativa, em que

a liberdade, a autonomia e a igualdade16 — valores modernos por excelência, insuscetíveis de serem concreti-zados pelos liberalismos realmente existentes — possam, enfim, ganhar vida e se tornarem patrimônio da huma-nidade inteira.

16 Valores, como se viu, nem sempre simultaneamente valorizados por muitos programas alternativos de modernidade, como, por exemplo, os corporativismos, os fascismos e os socialismos realmente existentes.

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Modernidades alternativas: o confronto de culturas políticas e a tradição de dissenso nos EUA

Cecília Azevedo, Rodrigo Farias e Gabriel Neiva*

Difícil tarefa a de apresentar uma face alternativa da modernidade em uma sociedade que figura, em termos tanto objetivos quanto imaginários, como o paradigma da modernidade capitalista triunfante: os EUA.

Embora sejam diversas as visões sobre a modernidade, em geral mais celebrativas do que sombrias, seus traços mais destacados, segundo David Bell,1 seriam o avanço do pensamento científico, da razão instrumental que separa o objetivo e o simbólico, da secularização e da doutrina do progresso; a primazia do individualis-mo; a afirmação da economia de mercado e do aparelho estatal; a expansão dos meios de comunicação; a crescente urbanização.

Mesmo os menos entusiastas reconhecem que a modernidade produziu conquistas extraordinárias do ponto de vista tecnológico e das condições materiais, além de possibilidades de emancipação política. Por outro lado, apontam que houve um preço a pagar: a massificação, a desigualdade, a alienação e o desencantamento avan-çariam na mesma proporção dos benefícios extraídos do moderno sistema burguês capitalista. Embora reco-nheçamos que modernidade, capitalismo e liberalismo não se encontram necessariamente associados, no caso em questão — os EUA — a articulação desses elementos configura-se como dominante.

É interessante cotejar tais avaliações da modernidade, algumas antecipadas há séculos, quase simultanea-mente ao processo de sua configuração, com o que hoje se discute a respeito da chamada pós-modernidade. A maior parte das análises observa que o mundo globalizado em que vivemos encontra-se marcado pelo fim das utopias, pelo conformismo, pela incerteza, pela anomia social e a perda de referências identitárias. O ho-mem público e a autonomia simbólica teriam dado lugar à heteronomia e ao recolhimento ao mundo privado, dificultando ou mesmo inviabilizando projetos coletivos de emancipação social.

Mas se hoje esse processo parece se disseminar e se apresentar como um fenômeno global, chamando a aten-ção de filósofos, cientistas sociais e políticos e, paradoxalmente, mobilizando segmentos da sociedade civil em fóruns internacionais, há que se reconhecer que, nos EUA, tanto o fenômeno como a discussão em torno dele já vêm de longe. Talvez possamos argumentar que os EUA, justamente por terem as estruturas da modernidade burguesa e capitalista implantadas mais cedo, também tenham sido igualmente o palco de movimentos de re-sistência que podem ser vistos como pioneiros em termos de conceitos e proposições. Assim, embora a princípio se possa enfatizar a busca de modernidades alternativas fora do Ocidente, é possível seguir propostas como a de Boaventura de Sousa Santos em sua escavação arqueológica da modernidade ocidental acreditando que

as tradições e as dimensões da modernidade ocidental excedem em muito o que acabou por ser

consagrado no cânone moderno. A constituição do cânone foi, em parte, um processo de margina-

lização, supressão e subversão de epistemologias, tradições culturais e opções sociais e políticas al-

ternativas em relação às que nele foram incluídas.2

Na década de 1950, intelectuais de diferentes áreas, como Herbert Marcuse, C. Wright Mills, Hannah Arendt, Erich Fromm, David Riesman e J. K. Galbraith, já reconheciam na sociedade norte-americana a compulsão econômica e o controle burocrático, identificados por Weber como elementos basilares da “jaula de ferro” da modernidade,3 como também a massificação e a alienação que os filósofos da atualidade apontam

1 Apud Gaonkar, 2001. 2 Santos, 2009:18. 3 Apud Gaonkar, 2001; Weber, 1997.

* Cecília Azevedo é professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), Rodrigo Farias é professor da Universidade Candido Mendes (Ucam) e Gabriel Neiva é bacharel em história pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

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como traços da pós-modernidade. Discerniam a face de um poder que evitava se dar a conhecer, mas que se tornava cada vez mais poderoso, em vias de se tornar totalitário: o complexo industrial-militar, correntemen-te designado simplesmente como “sistema”. A abolição do trabalho criativo, a inibição do pensamento crítico, a repressão da libido, a destruição da natureza e dos laços sociais eram apontados como subprodutos da socie-dade moderna e industrial. Antídotos ou alternativas foram então concebidos, valendo-se, entre outros ele-mentos, do cruzamento do marxismo e da psicanálise.4

Antes dessa geração de pensadores, seria possível recuperar as premonições de Tocqueville, que, já na pri-meira metade do século XIX, escreveu sobre o que parecia um delírio de aristocrata europeu subitamente transportado para o “Novo Mundo”: o futuro advento na “América” do que chamou de despotismo demo-crático — termos até então mutuamente excludentes”.5 Democracia delegativa e não participativa, interesses privados sobrepujando preocupações de natureza pública, nesse território onde o discurso público celebrava o homem comum e a virtude cívica.6

Recuando ainda mais, ao momento mesmo do nascimento da nação, o debate sobre o sentido de Repúbli-ca expressava os temores em relação aos seus possíveis desdobramentos. De um lado, Madison, repudiando a ideia de democracia, e mesmo Jefferson, defendendo o governo de uma minoria, cujo talento intelectual e político permitiria a criação de leis e instituições capazes de evitar o desregramento das multidões. A “Améri-ca” se traduziria em uma teoria, em um corpo jurídico-político perfeito em torno do qual se construiria o consenso e a harmonia social. De outro, o radical Thomas Paine e sua visão de que a República não valeria a pena se significasse apenas uma forma de governo. República teria que ser sinônimo de democracia ou de nada valeria.7 A América deveria ser não uma teoria, mas uma experiência aberta ao futuro, na qual o sujeito, como queria Rousseau, se constituiria na e pela política, cujo objetivo seria o bem comum.8

Dessa forma, pode-se considerar que a disputa entre diferentes projetos de modernidade acompanha a for-mação da nação desde o século XVIII, expressando não apenas um confronto de ideias políticas, mas lutas sociais concretas.9 É verdade que a corrente do consenso dominou por muito tempo a historiografia dos EUA,10 contribuindo para a solidificação de mitos nacionais, entre eles o da excepcionalidade da experiência norte-americana, capaz de instituir a liberdade sobre a base de uma sociedade indivisa e livre de conflitos so-ciais, já que, desde a origem, dispôs de recursos abundantes.11

Desde os anos 1960, no entanto, inúmeros pesquisadores têm se dedicado a revelar a face do dissenso que a narrativa oficial procurou ocultar, recuperando movimentos de resistência e protesto, experiências sociais que deram origem a culturas políticas diferenciadas, que disputam o sentido a ser atribuído ao passado e à identi-dade nacional.12

Nessa ótica, Martinot aponta que movimentos sociais de natureza diversa — sindical, em defesa dos direitos civis, pacifista, feminista, ambientalista etc. — forjaram nos EUA sentidos alternativos de cidadania com base na democracia participativa.13 Valendo-se de tradições e práticas intelectuais passadas, mas reinventando-as, identificaram novos problemas e desenvolveram novos conceitos, lutaram pela preservação dos espaços públi-cos e também pela ampliação das possibilidades de reflexão e participação, modelos alternativos de expressão política. Partidos, movimentos, comunidades, formas de comunicação e de relação interpessoal, papéis sexuais e identidades alternativas foram criados e difundidos.

4 Jamison e Eyerman, 1994. 5 Tocqueville, 1977; Jasmin, 1991. 6 Diggins, 1986. 7 Florenzano, 2005. 8 Berlowitz, Donoghue e Menand, 1993. 9 Lemish, 1976; Wilentz, 1984; Kerber, 1990; Hodges, 1995; Pamplona, 2003.10 Sternsher, 1975. 11 Robertson, 1994; Zelinsky, 1988. 12 O conceito de cultura política tem sido retomado, enfatizando-se a existência de culturas políticas plurais no interior das sociedades na-cionais. Ver Bernstein (1998); Bicalho (2005); Almeida, Azevedo, Gontijo e Soihet (2008). 13 Martinot e James, 1998.

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Como então qualificar ou diferenciar as expressões de dissenso na sociedade e na história norte-americanas? Como designá-las? Protesto, resistência, rebeldia? Alguns autores propõem distinções. Martinot, por exemplo, defende diferenciar resistência e protesto. O protesto traria implícito que o diálogo com o poder é ainda pos-sível, assumindo-se que existe disposição por parte deste em considerar as demandas apresentadas. A ideia de resistência implicaria uma crise de maior proporção, uma vez que exigiria construir um espaço inexistente, criar uma nova ordem na qual seria possível vivenciar o que é demandado. Nesse processo, novas linguagens e novos sentidos de identidade e de comunidade são produzidos, o que equivaleria à emergência de uma cul-tura política alternativa.14

No vocabulário político, mas também no acadêmico, a designação “radical” é muito frequentemente utili-zada para qualificar projetos e movimentos que desafiem os limites da ordem liberal e capitalista, demandando mudanças pautadas nas ideias de igualdade e liberdade, compreendidas como algo além da virtual igualdade de oportunidades e dos padrões de comportamento, estratégias e formas de expressão políticas usualmente aceitas. Os radicais nos anos 1960, por exemplo, recusaram tanto os projetos de reforma que os liberais do Partido Democrata no poder pretenderam implementar, quanto o gradualismo da então designada esquerda tradicional. Assim, é evidente que o atributo “radical” depende do contexto. Lutas e projetos considerados radicais no momento de sua eclosão, uma vez vencedores, tornam-se componentes da nova ordem, já que faz parte do próprio processo de construção da hegemonia a incorporação de elementos políticos e sociais ante-riormente excluídos.15 Portanto, em relação à incorporação dos projetos considerados radicais, devemos recu-sar tanto a leitura conservadora muito corrente que enfatiza a ideia de que a sociedade norte-americana, per-seguindo sempre o equilíbrio, rejeita extremismos, quanto a perspectiva pessimista e apocalíptica que acaba por adotar a tese do fim da história, por enxergar apenas a potência do sistema dominante que tudo devora e esteriliza.

Muito sintomática dessa postura defensiva é a tentativa de configurar como antiamericanas as manifestações políticas de cunho radical. Na verdade, vale repetir, atores individuais e coletivos assim considerados, em maior ou menor grau, apropriaram-se e mesmo reivindicaram tradições políticas norte-americanas originais. Stokely Carmichael, por exemplo, defendendo o “black power”, declarou que sua origem é a ideia de que, se as insti-tuições políticas não estavam cumprindo a função primordial de proteger os cidadãos, então estes tomariam para si a tarefa de se protegerem, direito consagrado pela Constituição. Do mesmo modo, os ideólogos e ativis-tas que recorreram à desobediência civil reivindicaram que ela teria por motivação a liberação do indivíduo como cidadão político — alguém que compartilha o ônus e os benefícios da política, numa democracia efetiva. Como argumentava Thoreau, a consciência individual deveria ter precedência em relação à obediência política. Por conta disso, a desobediência civil teria um efeito pedagógico, já que demandaria da sociedade uma avaliação a respeito da moralidade de suas ações e de suas leis — enfim, a incansável busca da virtude.16

A história americana é rica em projetos de comunidades alternativas, onde a ênfase residiu muitas vezes na igualdade e no compartilhamento dos meios de produção. Tais comunidades, geralmente rurais, podiam ter inspiração religiosa, como no caso de menonitas, quacres e shakers; ou, se laicas, procuravam de algum modo resguardar uma tradição igualitária e republicana que remontaria à Independência. Fosse qual fosse o seu ca-ráter, elas tinham em comum a rejeição ao individualismo e ao apego à propriedade privada que vigoravam na sociedade mais ampla, e procuravam dar àqueles que as procuravam a oportunidade de uma vida mais confor-me seus próprios valores. Embora tenham tido, em sua maioria, uma vida curta, comunidades como Hopeda-le, New Harmony, Brook Farm e Oneida17 deram, cada uma à sua maneira, testemunho da presença desse ideal de construção de uma sociedade mais justa e da crítica àquela existente.

14 Martinot e James (1998). Sem pretender estabelecer qualquer tipologia, James Jasper (1997:xii e xiii) defende que movimentos de protes-to são especialmente ricos por permitirem a elaboração de novos sentidos e perspectivas políticas, morais, cognitivas, emocionais. 15 Pope, 2001.16 Smith e Deutsch, 1972. 17 Noyes, 1966. A edição original é de 1870.

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Entretanto, esse não foi o único tipo de projeto de reforma social produzido nos Estados Unidos. A partir do século XIX, e sobretudo no XX, surgiram contestadores que desejavam ver seus valores adotados pela so-ciedade como um todo, e não apenas em comunidades isoladas. Essa cepa de contestadores não se detinha no combate a problemas circunstanciais — uma lei específica ou uma medida de governo, por exemplo —, mas procurava oferecer um modelo concreto de organização política, econômica e social capaz de ampla aplicação. Ao contrário de alguns outros reformadores e críticos, eles não queriam o retorno a uma “era dourada” tradi-cional ou a rejeição completa das transformações que a industrialização disseminava pelo globo. Não eram arcaizantes. Sua preocupação, porém, era sanar as contradições entre uma sociedade que apregoava a igualda-de, a liberdade e a democracia, por um lado, e praticava a escravidão, o militarismo, a exploração dos traba-lhadores e a concentração do poder nas mãos de uns poucos privilegiados. Esse choque entre teoria e prática, entre valores e ações, mostrava como o modelo de uma república capitalista liberal, por si só, não seria capaz de melhorar a vida de todos, nem garantir os direitos consagrados na Constituição do país. Estes só poderiam ser consolidados e protegidos se o povo dos EUA atentasse para as distorções do sistema e se preocupasse não apenas com o aperfeiçoamento das leis, mas também com as práticas sociais efetivas que passavam ao largo delas. Indo mais além, seria necessário reconstruir o seu modo de vida em outras bases.

Deste modo, a radicalidade em relação ao contexto da época norteou a escolha dos textos aqui apresentados. Embora a avaliação desse item exija a explicitação de critérios, estamos conscientes de que a subjetividade es-teve inevitavelmente presente no processo de seleção. Poder-se-ia considerar que esses radicais queriam mais do que concessões do sistema estabelecido — queriam mudá-lo além do que a maior parte de seus (e talvez, leitor, dos nossos) contemporâneos estavam dispostos a aceitar. Minoritários, atuando nas bordas do sistema, quase sempre vistos com desconfiança ou desdém, quando não perseguidos, suas propostas e táticas eram as mais variadas. Para uns, a redenção social estava na abolição do Estado e de seu potencial inerente de violência; para outros, no fim da escravidão, complementado por uma reforma agrária em favor dos escravos libertos; para um terceiro grupo, tratava-se de conciliar as leis vigentes com as grandes leis naturais. Mais tarde, a agen-da abrangeria também a inclusão da parcela não branca da população na disputa pelo poder, a denúncia da opressão feminina sob o patriarcado, a luta dos operários contra condições de trabalho desumanas e a repressão patronal, ou ainda a proposta da abolição do capitalismo em favor do socialismo. Enfim, fosse aceitando o ideário americano do “indivíduo livre” ou adotando referências coletivistas, fosse procurando a transformação das condições de vida de um único grupo ou defendendo a reforma da sociedade de alto a baixo, seus projetos iam muito além das medidas políticas ordinárias e exigiam mudanças profundas nas instituições americanas de seu tempo.

Dada a diversidade de movimentos e perspectivas, realizamos a seleção de documentos em função de eixos temáticos recorrentes em obras que são referência na historiografia do dissenso, como é o caso de Howard Zinn e sua célebre People’s History of the United States, e antologias de documentos dedicadas ao radicalismo nos EUA.

O primeiro eixo corresponde ao pacifismo/abolicionismo. Defensores do fim da escravidão (embora não ne-cessariamente da igualdade racial), os abolicionistas ocupam lugar de destaque em qualquer obra que trate do radicalismo do século XIX. Seu ideário muitas vezes ia além do mero combate a um regime de trabalho que depunha contra os chamados valores americanos, da liberdade e da democracia, e se tornava cada vez mais difícil de justificar à luz da religião e das ideologias políticas e filosóficas da época; incluía, como no texto de William Garrison, que os representa nesta obra, a defesa da não agressão e da paz como princípios absolutos, inegociáveis, pondo em xeque não só a exploração da mão de obra cativa como também a própria legitimida-de do Estado. Imbuídos de um humanismo carregado de religiosidade, muitos abolicionistas iriam levar sua repulsa pela violência ao ponto de se oporem à própria noção de patriotismo e de direito à legítima defesa individual ou nacional, excluindo-se, portanto, do corpo político do país. Essa recusa radical de alguns dos pressupostos básicos do Estado-nação, e que incluía ainda, em certos casos, o reconhecimento da igualdade entre os sexos, já punha em cena questões que, no século XX, Mohandas Gandhi iria popularizar mundo afora com sua campanha pela independência da Índia.

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A luta pelos direitos civis dos negros vem em seguida. Se, em plena época iluminista, os pais fundadores dos EUA resolveram calar a respeito da escravidão, aqueles que suportaram direta ou indiretamente o seu jugo não sofreram em silêncio. Desde antes da independência do país, em 1776, esse regime de trabalho já encontrava resistências, embora apenas no século XIX estas viriam a ganhar maior repercussão. Entre os que lutavam pela abolição, contavam-se não apenas idealistas brancos, mas também muitos negros, ex-escravos ou descendentes de escravos, que não se cansaram de acusar o flagrante despautério de, numa nação que se pretendia um exem-plo de liberdade para o mundo, milhões de indivíduos viverem sem ter reconhecida a sua dignidade como seres humanos. Nos textos aqui selecionados, procuramos apontar as diferentes perspectivas da luta pelos di-reitos dos negros americanos em suas diversas fases: logo após a Emancipação proclamada por Lincoln, na fase da Reconstrução, quando a União esboçou um ousado projeto de reforma agrária que acabaria sendo frustra-do; no início do século XX, quando um intelectual do quilate de W.E.B. Du Bois procurou soluções para o problema das péssimas condições de vida em que a maior parte dos homens e mulheres de cor ainda viviam, décadas após a extinção formal (mas nem sempre efetiva) da escravidão; e nos anos 1960, quando esse mesmo pensador se desiludira da possibilidade de uma sociedade americana racialmente integrada, e o mesmo senti-mento levava uma nova geração de líderes como Malcolm X e os Panteras Negras a procurar no nacionalismo negro a solução definitiva para as tensões raciais no país.

Já o populismo,18 que emergiu como uma alternativa política aos democratas e republicanos nas duas últimas décadas do século XIX, foi eleito por representar um sintoma das transformações por que os EUA estavam passando na segunda metade do Oitocentos. Numa economia que já abandonara o ideal jeffersoniano de uma república de pequenos fazendeiros e rumava rapidamente para um capitalismo em que o poder estava com as grandes corporações industriais, o Partido Populista procurou uma retomada dos valores igualitários que, se já não encontravam muito eco na vida prática do país, ainda tinham forte apelo no imaginário coletivo. Apesar da brevidade da experiência, esse partido, formado principalmente por pequenos produtores, marcou época na história americana e exerceu influência, nas duas décadas seguintes, sobre a onda de reformas que ficou conhe-cida como era progressista.19

Se a industrialização instou os populistas a uma reação contra o crescimento da desigualdade no seio da nação, também trouxe à baila um novo e crescente ator social: os operários urbanos, cuja importância fez do movimento sindical o nosso quarto eixo temático. Essas multidões de deserdados, muitos deles vindos de outros países, acorreram à “terra das oportunidades” em busca de melhores condições de vida. O que efetivamente encontraram não era muito diferente do que grassava pelo mundo desenvolvido ou em desenvolvimento da época — longas jornadas de trabalho, ambientes insalubres, patrões dispostos até a matar para reprimir mani-festações de descontentamento. Ao lado da repressão, a racionalização, a pretendida gerência científica do processo de produção — contidos no taylorismo e no fordismo — ampliaram a espoliação física e simbólica dos trabalhadores. A reação dos operários não poderia ser outra que não a de se organizar e fazer valer as suas reivindicações por meio de greves, protestos e, eventualmente, até mesmo o martírio. Sua inclusão nesta an-tologia justifica-se pela usual desqualificação do movimento sindical norte-americano, advogando-se que a ética protestante e o ideário do self-made man teriam sido a tal ponto assimilados, que quaisquer projetos alter-nativos, críticos da ordem capitalista, não teriam chegado a mobilizar os trabalhadores norte-americanos.

Embora as primeiras organizações de trabalhadores — a Noble Order of the Knights of Labor, a AFL (Ame-rican Federation of Labor) e o CIO (Congress of Industrial Organizations) tenham assumido a princípio uma perspectiva meramente corporativista, progressivamente o socialismo e o anarquismo catalisaram os ideais e esperanças de parte expressiva dos operários. Se é verdade, como diziam seus detratores, que ambos eram ideo-logias importadas, oriundas de um contexto diferente daquele da América, não é menos verdade que ambas

18 Adotamos o termo “populismo” como designação deste movimento norte-americano específico, e não fazendo referência ao conceito já tão amplamente debatido e questionado no que diz respeito aos regimes latino-americanos. 19 O progressivismo abrigou perspectivas muito diferenciadas. No entanto, abriu possibilidades para se repensarem as bases do liberalismo e do capitalismo norte-americano. Sobre uma vertente mais crítica do movimento, ver a análise de Limoncic (2000).

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souberam se adaptar de diferentes maneiras à realidade do país e assim conquistaram grande penetração tanto no movimento sindical como em diversos movimentos de contestação da ordem vigente. Os já citados expe-rimentos comunitários dos EUA bem mostram que havia espaço para as ideias coletivistas na suposta pátria dos self-made men, e que o testemunho moral de figuras como Garrison e Thoreau contra a violência do Estado oferecia pontos de diálogo com uma visão de mundo anarquista. Não obstante, talvez tenha sido o socialismo a maior opção de modernidade alternativa atuante nos EUA, pelo menos a partir do século XX. O socialismo alimentou e informou muitas análises e propostas de transformação social, deixando seu rastro em vários dos documentos aqui reunidos. Seja na versão democrática representada por um Eugene Debs, nos sonhos de re-volução de um Bill Haywood ou nos dos que impulsionaram tantos movimentos nos anos 1960, seja no ataque à legitimidade da propriedade privada em uma sociedade marcada pela desigualdade e ao poder dos capitães da indústria numa república que se pretendia a maior democracia da terra. O Partido Socialista e a organização anarcossindicalista International Workers of the World protagonizaram greves e lutas políticas importantes, como a campanha contra o alistamento na I Guerra Mundial, forçando o governo norte-americano a criar leis que restringiram a livre expressão de ações e ideias, como a Lei de Espionagem de 1917, que levou à prisão líderes como o já citado Eugene Debs e a intelectual e a anarquista Emma Goldman. Além de textos desses dois militantes, incluímos nesta coletânea escritos de Mother Jones, a famosa líder sindical do setor de mine-ração, também associada ao IWW, e de Lysander Spooner, teórico do que se poderia denominar “anarquismo-individualista”, que viveu no século XIX e que por sua oposição à escravidão poderia também ser incluído no primeiro grupo de ativistas e movimentos que arrolamos.20

A profunda crise que se abateu sobre os EUA a partir de 1929 contribuiu para pôr em causa o discurso triunfante da modernidade capitalista. No seu rastro, floresceu o que alguns autores chamam de contracultura,21 que, entre outros efeitos, questionou mais uma vez os mitos da excepcionalidade e do Destino Manifesto, ajudando também a disseminar a crítica às teorias econômicas do liberalismo clássico. A heterodoxia econô-mica do keynesianismo e a concepção do welfare state estabeleceram um marco alternativo à ética puritana do trabalho e das relações entre Estado e sociedade. O New Deal, objeto de longa controvérsia historiográfica,22 abriu brechas para questionamentos mais profundos do sistema econômico e político e para a crítica da políti-ca externa norte-americana e da ordem internacional. O discurso de um dos mais ardorosos new-dealers — Henry Wallace — foi incluído como representante dessa corrente de pensamento.

Os movimentos levados a cabo pelas chamadas, com certeza indevidamente, minorias sexuais — mulheres e homossexuais — constituem outra vertente do dissenso que destacamos, mesmo que se saiba que eles não deixaram de se articular a outros atores e processos contemporâneos. A influência socialista pode ser vista como um indicador dessa articulação, já que as vozes que se levantaram para defender a causa dessas ditas mi-norias diagnosticaram um leque amplo dos problemas sociais intimamente associados às questões específicas que as afetavam. As feministas, que já tinham no século XIX uma trajetória de lutas pelo reconhecimento dos direitos das mulheres — centrada, à época, na participação nas eleições, o que lhes valeu o título de “sufragis-tas” —, começaram, principalmente a partir da década de 1960, a desenvolver uma análise da condição femi-nina na sociedade patriarcal nitidamente informada pela teoria marxista. Embora a perspectiva classista fosse indispensável, elas perceberam que esta não dava conta da especificidade de sua condição subalterna, exigindo uma abordagem particular. Sendo um grupo social universalmente oprimido, fossem proletárias ou burguesas (e mesmo entre os próprios socialistas), as mulheres não poderiam esperar que a revolução socialista automa-ticamente lhes desse a dignidade e a paridade que reivindicavam. Se antes a luta era por concessões dentro de uma ordem que não era questionada — direitos políticos, autonomia civil —, agora tratava-se de elevar a condição feminina a um referencial de transformação da ordem vigente, mudando não apenas tabus que per-

20 Spooner valia-se de referências tão diversas quanto Jefferson e Bakunin. Ver Barnett, 1997.21 Ver Pike, 1992. Esse autor adota o termo num sentido mais amplo do que o usual, associado ao movimento artístico e intelectual da dé-cada de 1950.22 Para uma interessante avaliação, ver Frazer e Gerstle, 1989.

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tenciam à esfera da vida privada, mas também ajudando a remodelar a política, a economia e, naturalmente, os padrões morais. Nenhuma revolução autêntica teria sucesso sem que a célula básica da sociedade, instru-mental para a reprodução da ordem capitalista — a família —, fosse repensada.

Nessa ótica, os homossexuais também tiveram a sua vez. Historicamente reprimidos na cultura americana e politicamente ativos até então apenas em discretas sociedades “homófilas” que enfatizavam a respeitabilidade e não o confronto com os valores vigentes, foi também nos anos 1960 que os gays começaram a se manifestar de forma mais organizada contra uma sociedade que se recusava a reconhecê-los como cidadãos plenos e che-gava mesmo a criminalizar as suas orientações sexuais. Tal como as feministas, eles identificariam no sistema patriarcal a raiz da discriminação e opressão que sofriam e, no caso de algumas de suas vertentes, fizeram isso sem abrir mão de uma análise político-econômica da qual derivaram propostas que subverteriam completa-mente as instituições em voga, tanto no âmbito pessoal quanto no público. Aliás, agora o pessoal também era político: da reflexão sobre questões aparentemente apenas privadas, como a sexualidade, podia-se desenvolver toda uma desconstrução das hierarquias de poder estabelecidas e pensar, então, em mudanças estruturais.

Enquanto feministas e homossexuais americanos se davam conta de até onde suas reivindicações podiam chegar, outro movimento já havia se tornado um reduto de radicais em prol das mais variadas causas: os estu-dantes universitários. Eles nunca haviam sido tantos como na década de 1960: o aumento demográfico conhe-cido como baby boom e o prolongado período de prosperidade econômica que se seguiram à II Guerra Mun-dial, bem como os estímulos governamentais ao ensino superior — entre os quais uma lei que franqueava o acesso de veteranos de guerra às faculdades —, levaram a um notável crescimento da população universitária. Ali, afastados da casa dos pais, mas sem maiores preocupações quanto à subsistência por conta da boa fase eco-nômica, esses jovens, oriundos principalmente das classes médias, tiveram a oportunidade de entrar em con-tato com movimentos políticos e sociais — dos quais os mais importantes foram justamente as várias campa-nhas pelos direitos civis dos negros e a luta contra o racismo, que então haviam adotado a estratégia da ação direta não violenta, principalmente nos estados onde a segregação racial era institucionalizada. Voluntariando-se em protestos e campanhas de conscientização, enfrentando a perseguição e a brutalidade dos defensores do status quo racial, esses jovens eventualmente pagaram seu idealismo com a própria vida — como no caso de James Chaney, Andrew Goodman e Michael Schwerner, os três estudantes cujo assassinato inspirou o filme Mississipi em chamas. Movidos por um acentuado ímpeto moral numa sociedade que, diziam, despersonalizava o jovem, tratando-o, desde a universidade, como apenas mais um numa massa de futuros especialistas desti-nados à “corrida de ratos” no mercado corporativo, esses novos ativistas reivindicavam de seu país que vivesse à altura dos valores que supostamente professava. Valores esses que incluíam o senso de comunidade, o respei-to à livre-expressão (sem as caças às bruxas típicas da Guerra Fria), o direito de cada cidadão a ter voz nas decisões que viessem a influenciar sua vida (a chamada “democracia participativa”). Em suma, um clamor por coerência política e ética.23

O novo ativismo estudantil expressou-se nas mais variadas causas: integração racial, fim da Guerra do Vietnã, liberdade de expressão nos campi, denúncia das ligações das universidades com o aparato militar, organização de comunidades pobres, entre outras. Com novas ideias, entusiasmo e sem compromisso com partidos, eles formaram o que ficou conhecido como uma Nova Esquerda — uma alternativa política que, em tese, deixaria de lado os dogmatismos e lutas sectárias que haviam consumido a Velha Esquerda dos comunistas e socialistas, substituindo-a por uma retomada das possibilidades de reforma a partir dos próprios valores americanos, como a igualdade embutida no ideal de democracia. É nesse contexto que movimentos como a SDS (Students for a Democratic Society), a maior organização estudantil de esquerda da década, e o Free Speech Movement de Berkeley, além do SNCC (Student Nonviolent Coordinating Committee) — este, pioneiro nas ações diretas pelo registro de eleitores negros no Sul — apresentaram uma opção para os estudantes que pretendiam fazer

23 A esse respeito, são muito interessantes as observações feitas por Hannah Arendt. Na avaliação da autora (Arendt, 1973), os movimentos dos anos 1960 (estudantil, pacifista, em favor dos direitos civis, feminista etc.) recuperaram um elemento central da cultura republicana e democrática: o direito de expressar a divergência através de associações voluntárias, base da democracia norte-americana.

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de sua experiência universitária mais do que a mera preparação para o mercado de trabalho. E eles viveram mudanças rápidas ao longo desse processo: essencialmente afinados com a ala mais à esquerda do Partido De-mocrata — os liberals — no início da década, tenderam para uma retórica mais ousada e francamente revolu-cionária a partir do seu fim. Não por acaso é de 1968 o texto que selecionamos para representar esse eixo.

Os anos 1960 assistiram também, segundo Wallerstein (2004), ao surgimento do que ele qualifica como movimentos antissistêmicos de um novo tipo, cuja característica principal era se oporem à hegemonia dos EUA. A partir das décadas de 1960 e 1970, segundo o autor, entram em pauta os movimentos ambientalista e pelos direitos humanos, que instituem com mais firmeza identidades transnacionais e redes de solidariedade internacionais.

O movimento ambientalista cresceu nas décadas posteriores, levando à constituição do Partido Verde, cuja plataforma mais recente, em vigor desde 2000, encontra-se entre os documentos aqui reunidos. Como o leitor poderá verificar nesse documento, o movimento verde norte-americano apresenta um leque bastante amplo de bandeiras, associando processos econômicos e sociais aos danos ambientais. No tocante a movimentos an-tiglobalização, é inegável a importância das manifestações pioneiras ocorridas em Seattle em 1999, por ocasião da 3a reunião ministerial da Organização Mundial do Comércio. O documento lançado pela organização Public Citizen’s World Trade Watch é muito eloquente no sentido da dimensão que o movimento antigloba-lização tem alcançado nos EUA na última década. Vale sublinhar que organizações de minorias étnicas, imi-grantes de várias partes do mundo e seus descendentes tenham tido presença marcante nas manifestações an-tiglobalização tanto em Seattle, em 1999, quanto nas posteriores, como no protesto contra as ações do FMI e do Banco Mundial em Washington, no ano seguinte. Recorrendo a Appadurai,24 talvez seja possível pensar que o fenômeno imigratório contemporâneo, que faz crescer o número de residentes não cidadãos, reconfigu-rando o sentido de território, desafie as narrativas de pureza e integridade de Estados-nação como os EUA. A “tradição americana” de associação voluntária, apropriada por estrangeiros, subalternos ou excluídos da cida-dania, assume inesperadamente a perigosa e, para os conservadores, certamente “antiamericana” face do dis-senso.25

Para representar os movimentos étnicos que, desde a década de 1970, têm contribuído para desestabilizar a narrativa dominante sobre o passado nacional e apontar para a necessidade de corrigir a violência e a exclusão social e simbólica que a civilização WASP (White Anglo-Saxon Protestant — branca, anglo-saxã protestante) lhes infligiu, incluímos dois documentos: um associado ao movimento dos nativo-americanos e outro ao dos chicano-americanos, de autoria de seu líder maior, César Chávez.

Poder-se-á apontar que boa parte dos autores apresentados, especialmente os que se situam no século XX, se identificam com a chamada esquerda do espectro político. Não se pode negar que a assim chamada direita tenha igualmente se organizado e construído projetos alternativos, de cunho antiliberal, racista, xenófobo, misógino, messiânico, expresso tanto em campanhas moralizadoras internas — contra o direito ao aborto, ao casamento gay, a ações afirmativas, à imigração etc., quanto em cruzadas belicistas no plano internacional. A emergência da Maioria Moral e da New Right, que alcançaram grande proeminência durante a era Reagan,

24 Ver Appadurai (2000). Vale destacar que os hispânicos têm, desde a década de 1930, multiplicado as organizações de caráter filantrópico e social, conseguindo em 1968 pressionar em favor da aprovação da Lei de Educação Bilíngue. O recente contexto conservador tem favore-cido o questionamento dessa conquista. Em seu último livro, Who are we? The challenge of America’s national identity, Samuel Huntington (2004) preocupa-se com o impacto da imigração, especialmente a oriunda do México, no “núcleo angloprotestante da cultura dos EUA”. O aumento do fluxo de imigrantes e a postura ativa de alguns grupos de afirmar sua identidade étnica, demandar reconhecimento e inclu-sive, no caso dos mexicanos, o bilinguismo nas escolas, desagrada Huntington. No caso dos mexicanos, o problema seria mais grave, segun-do o autor, por se concentrarem em áreas como a Califórnia, o Texas, o Novo México, Arizona, Nevada e Utah, que já pertenceram ao México, o que poderia levá-los a sentir que estariam em seu território e não em um país estrangeiro. Huntington chega a considerar que os mexicanos seriam supostamente menos inclinados a aceitar a democracia, teriam menos iniciativa, seriam mais fatalistas por considerarem a pobreza uma virtude por conta de sua fé católica. Huntington chegou a declarar que só existiria um sonho americano criado por uma so-ciedade angloprotestante e que os mexicano-americanos só poderiam partilhar desse sonho se sonhassem em inglês. 25 Em 2006, quando iniciou-se no Congresso a discussão de uma nova legislação sobre a imigração que, em uma de suas versões, penaliza-va duramente a imigração ilegal, protestos reunindo contingentes de até 500.000 pessoas, na sua maioria latinos imigrados, ocorreram em diversas cidades nos EUA, incluindo Los Angeles e Washington D.C.

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e a onda nacionalista que varreu os EUA depois do 11 de Setembro, deram maior visibilidade a disposições de extrema-direita, tanto liberais como também antiliberais. Decidiu-se, no entanto, excluí-las, por entendermos que se encontram mais bem definidas no âmbito dos fascismos e corporativismos, considerados em outro vo-lume desta coleção (A Europa e as modernidades alternativas).

No que diz respeito a autores, procuramos ilustrar a riqueza do pensamento radical americano nos dois úl-timos séculos equilibrando autores mais conhecidos e aqueles que, sem deixarem de ser representativos, ainda não tiveram a oportunidade de serem trazidos à apreciação do público brasileiro.

Numa coletânea desta natureza, algumas ausências serão notadas. Henry David Thoreau, autor de A desobe-diência civil, não está presente, nem tampouco clássicos mais recentes como a supracitada Betty Friedan, expo-ente do feminismo. A razão é que a limitação do espaço e a necessidade de apresentar aos leitores o maior número possível de textos integrais impuseram certas escolhas. Assim, optamos por dar prioridade a textos inéditos ou menos conhecidos no Brasil, uma vez que esses autores clássicos já foram traduzidos e estão à dis-posição do público interessado. Embora a historiografia venha apontando a radicalidade que o evangelismo profético emprestava à liderança de Martin Luther King, desafiando a usual caracterização desse líder como um liberal moderado (a ponto de ter sido elevado à categoria de herói nacional dos EUA),26 decidimos incluir textos de Malcolm X, cuja imagem continua associada à pregação da violência, e de W.E.B. Du Bois, que de certa forma encarna as múltiplas faces e fases do movimento pelos direitos civis.

Por último, para representar o universo da literatura, incluímos um trecho do livro Revolution, de Jack London. Como inúmeros outros escritores que denunciaram a face perversa da sociedade norte-americana e que pode-riam ser aqui lembrados — Walt Whitman, Upton Sinclair, Ernest Hemingway, Paul Goodman, Norman Mailer, Jack Kerouac, Jerome David Salinger, Allen Ginsberg, Ken Kesey —, London foi escolhido pela sua pregação explícita em favor de uma revolução socialista nos EUA.

Apesar das lacunas inevitáveis em todas as antologias, dar-nos-emos por satisfeitos se os documentos aqui reunidos servirem de estímulo ao leitor para uma reflexão sobre a história do dissenso norte-americano. Se isso acontecer, saberemos então que esta modesta investigação de um lado menos conhecido do país mais influen-te do mundo terá valido a pena.

26 A incorporação de King ao panteão de heróis nacionais norte-americanos é comentada em Walker (2000). No entanto, já surgem ques-tionamentos sobre essa perspectiva. A tese de que o evangelismo profético de King tinha um sentido radical e absoluto oposto à perspectiva dos liberais pode ser encontrada em Chappell (2008).

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1838 | WilliAm lloyd gArriSon

Declaração de sentimentos*

em 1838, o abolicionista William lloyd garrison (1805-1879), então membro da American peace society (Aps), rompeu com o que

considerava o excesso de moderação dessa organização pacifista e criou uma dissidência, a new england non-resistance society. enquanto a Aps adotava uma linha conservadora, cada vez mais

orientada para a condenação apenas das guerras de agressão, a organização de garrison defendia um pacifismo absoluto, a

inviolabilidade da vida humana e a renúncia a qualquer tipo de violência, mesmo aquela em defesa própria. por conta disso, seus

membros recusavam a participação no governo, enquanto expandiam a opção pacifista para além da mera condenação a ações militares,

chegando à defesa do abolicionismo, do fim da pena de morte e, como no caso do próprio garrison, à preocupação com questões

como o sufrágio feminino. (r.F.)

Reunidos em convenção, a partir de várias seções da União Americana, para a promoção da paz na terra e boa vontade entre os homens, nós, os abaixo assinados, tendo isto como devido a nós próprios, para a causa que nós amamos, para o país no qual vivemos, e para o mundo, publicamos uma Declaração, expressiva dos prin-cípios que tanto prezamos, do objetivo que pretendemos atingir, e das medidas que devemos adotar para levar-nos adiante no trabalho de paz e reforma universal.

Nós não devemos fidelidade a qualquer governo humano, nem podemos nos opor a qualquer governo pelo recurso à força física.

Nós reconhecemos apenas um Rei e Legislador, um Juiz e Governante da humanidade. Nós somos ligados às leis de um reino que não é deste mundo; súditos de um reino no qual é proibido lutar; nos quais Misericór-dia e Verdade não estão juntas, e Justiça e Paz beijaram-se uma a outra; que não tem linhas de estado, nem divisões nacionais, nem limites geográficos; em que não há distinção de categoria, ou divisão de casta, ou desigualdade sexual; os agentes deste reino são Paz, seus executores, Justiça, seus muros, Salvação, e seus por-tões, Louvação; e cujo destino é quebrar em pedaços e consumir todos os outros reinos.

Nosso país é o mundo, os nossos compatriotas são toda a humanidade. Nós amamos a terra em que nasce-mos, somente como amamos todas as outras terras. Os interesses, os direitos e liberdades dos cidadãos ameri-canos não são mais caros para nós do que são os de toda a raça humana. Assim, não podemos permitir nenhum apelo ao patriotismo, para vingar qualquer insulto nacional ou injúria. O Príncipe da Paz, sob cuja bandeira inexorável nos curvamos, não veio para destruir, mas para salvar, mesmo o pior dos inimigos. Ele deixou-nos um exemplo, e devemos continuar seus passos. Deus distribuiu seu amor a nós, enquanto nós ainda éramos pecadores. Cristo morreu por nós.

Nós pensamos que, se uma nação não tem o direito de se defender contra inimigos externos, ou punir os seus invasores, do mesmo modo nenhum indivíduo tem esse direito, mesmo se seu interesse pessoal estiver em jogo. A unidade não pode ser mais importante do que a coletividade. Se um homem pode tirar uma vida, para obter ou defender os seus direitos, a mesma licença deve necessariamente ser concedida para as comunidades, Estados e nações. Se ele pode usar uma adaga ou uma pistola, eles podem empregar canhões, bombas, forças terrestres e navais. Os meios de autopreservação devem ser proporcionais à magnitude dos interesses em jogo e do número de vidas expostas à destruição. Mas se uma ávida e sedenta de sangue soldadesca desembarca em massa nestas costas vinda do estrangeiro com a intenção de cometer rapinagem e destruir a vida, não pode ser combatida pelo povo da magistratura, e nenhuma resistência deve ser oferecida aos baderneiros internos da paz pública, ou da segurança privada. Nenhuma obrigação pode caber aos americanos de olhar os estrangeiros como pessoas mais sagradas do que eles mesmos, ou dar-lhes o monopólio de cometer erros com impunidade.

* No original, Declaration of sentiments.

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O dogma de que todos os governos do mundo estão ordenados com a aprovação de Deus, e que o poder nos Estados Unidos, na Rússia, na Turquia, estão em conformidade com a vontade Dele, não é menos absurdo do que depravado. Isso torna o Autor imparcial da liberdade humana e da igualdade desigual e tirânico. Não se pode afirmar que os poderes constituídos, em qualquer nação, são comandados pelo espírito, ou guiados pelo exemplo de Cristo, no tratamento dos inimigos. Em consequência, eles não podem ser aceitos pela von-tade de Deus; e, portanto, a sua derrubada, por uma regeneração espiritual dos seus súditos, é inevitável.

Nós registramos o nosso testemunho, não só contra todas as guerras, sejam ofensivas ou defensivas, mas contra todos os preparativos para a guerra; contra todos os navios de guerra, cada arsenal, cada fortificação; contra o sistema de milícia e o do exército permanente; contra todos os chefes militares e soldados; contra todos os monumentos comemorativos da vitória sobre um inimigo externo, todos os troféus ganhos em bata-lha, todas as celebrações em honra dos feitos militares ou navais; contra todas as dotações para a defesa de uma nação pela força e pelas armas, por parte de qualquer órgão legislativo; contra cada decreto do governo exi-gindo de seus súditos o serviço militar. Assim, pensamos que é ilegal portar armas, ou manter uma adminis-tração militar.

Como todos os governos humanos são confirmados pela força física, e as suas leis são garantidas praticamen-te na ponta da baioneta, não podemos assumir nenhum cargo que imponha ao seu ocupante a obrigação de compelir os homens a fazer as coisas direito, sob pena de prisão ou morte. Por isso, voluntariamente nos ex-cluímos de todos os órgãos legislativo e judiciário e repudiamos toda a política humana, honras mundanas e níveis de autoridade. Se nós não podemos ocupar um lugar na legislatura, ou na justiça, também não podemos eleger outros a agir como nossos substitutos, em qualquer dessas capacidades.

Daí resulta que não podemos processar qualquer homem segundo a lei, para obrigá-lo pela força a reparar qualquer coisa que ele possa ter erradamente tomado de nós ou de outros; se ele tomou nosso casaco, vamos entregar a nossa capa, em vez de sujeitá-lo à punição.

Nós acreditamos que o código penal do antigo pacto, olho por olho e dente por dente, foi revogado por Jesus Cristo, e que, no novo pacto, o perdão, em vez da punição dos inimigos, foi ensinado a todos os seus discípulos, em todos os casos, sejam quais forem. Extorquir dinheiro dos inimigos, ou colocá-los num pelou-rinho, ou jogá-los na prisão, ou pendurá-los numa forca, não é, obviamente, perdoar, mas se vingar. A Vin-gança é minha, eu retribuirei, disse o Senhor.

A história da humanidade está cheia de evidências provando que a coação física não é adequada à regenera-ção moral; que a disposição pecaminosa do homem só pode ser subjugada pelo amor; que o mal apenas pode ser exterminado da terra pela bondade; que não é seguro confiar num braço de carne, num homem cuja res-piração está no nariz, para nos preservar de danos; que existe uma grande segurança em ser gentil, inofensivo, resignado e pleno em misericórdia. Apenas os mansos herdarão a terra, porque os que recorrem à violência da espada estão destinados a perecer pela espada. Assim, como uma medida de boa política — de segurança à propriedade, à vida e à liberdade — de paz pública e usufruto privado — assim como em razão de fidelidade a Ele, que é o Rei dos Reis e o Senhor dos Senhores —, nós, cordialmente, adotamos a não resistência como princípio; e estamos confiantes de que este princípio nos defenderá de todas as consequências possíveis, e ga-rantirá todas as coisas de que necessitamos, porque está armado com poder onipotente, e deve, em última instância, triunfar sobre todas as forças hostis.

Nós não defendemos doutrinas jacobinas. O espírito do jacobinismo é o espírito da retaliação, da violência e do assassinato. Ele não teme a Deus, nem respeita o homem. Nós gostaríamos de estar impregnados com o Espírito de Cristo. Se seguirmos os nossos princípios, é impossível para nós sermos desordeiros, ou tramar traição, ou participar em qualquer ação do mal: nós nos submeteremos à lei do homem em nome do Senhor; obedeceremos todas as exigências do governo, exceto aquelas que julgamos serem contrárias às determinações do evangelho; e em nenhum caso resistiremos à força da lei, salvo quando mansamente nos submetermos à pena de desobediência.

Mas ao mesmo tempo em que devemos aderir à doutrina da não resistência e passiva submissão aos inimigos, nós almejamos, num sentido moral e espiritual, falar e agir corajosamente pela causa de Deus; criticar a ini-

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quidade em altos e baixos níveis; aplicar nossos princípios a todas as instituições existentes, civis, políticas, legais e eclesiásticas; e acelerar a chegada do tempo quando os reinos deste mundo se tornarão os reinos de nosso Senhor e do seu Cristo, e ele deve reinar para sempre.

Parece-nos uma verdade evidente por si mesma que, qualquer que seja o evangelho que se destine a destruir, em qualquer período da história do mundo, sendo contrário à verdade, deve agora ser abandonado. Se, então, é previsível a chegada do tempo quando espadas serão superadas por arados compartilhados, e lanças por poda-deiras, e os homens nunca mais aprenderão a arte da guerra, segue-se que todos aqueles que fabricam, vendem ou empunham estas armas mortais combatem eles próprios contra o domínio do Filho de Deus na terra.

Tendo assim resumidamente, mas francamente, afirmado nossos princípios e propósitos, continuaremos a especificar as medidas que propomos adotar, no intuito de efetivar nosso objetivo.

Esperamos prevalecer por meio da loucura da pregação, esforçando-nos por nos apresentar à consciência de todos os homens, à vista de Deus. Por meio da imprensa divulgaremos tão amplamente quanto possível nossos sentimentos. Devemos nos esforçar para garantir a cooperação de todas as pessoas, independentemente de sua denominação ou seita. O triunfante progresso da causa da Temperança e da Abolição na nossa terra, por meio do trabalho de associações benevolentes e de voluntários, encoraja-nos a conjugar os nossos próprios meios e esforços para a promoção de uma causa ainda maior. Assim, vamos empregar professores, distribuiremos pan-fletos e publicações, formaremos sociedades e elaboraremos petições ao nosso estado e aos governos nacionais, com relação ao tema da paz universal. Será nosso objetivo principal conceber formas e meios para efetuar uma mudança radical nas opiniões, sentimentos e práticas da sociedade, em relação ao pecado da guerra e ao trata-mento concedido aos inimigos.

Começando o grande trabalho que aparece diante de nós, estamos conscientes de que, em sua realização, podemos ser testados em nossa sinceridade, até mesmo em tremendas provas. Poderemos estar sujeitos a insul-tos, ultrajes, sofrimentos, sim, mesmo à morte. Antecipamos não pequenas incompreensões, falsidades, calú-nias. Tumultos podem levantar-se contra nós. Os sem Deus e violentos, os orgulhosos e fariseus, os ambiciosos e tirânicos, privilegiados e poderosos, e a maldade espiritual dos poderosos, podem se combinar para esmagar-nos. Assim eles trataram o Messias, cujo exemplo estamos humildemente decididos a imitar. Se sofrermos com ele, sabemos que deveremos reinar com ele. Não devemos temer o terror deles, nem ficar perturbados. Nossa confiança está no Senhor Todo Poderoso, não no homem. Tendo largado a proteção humana, o que poderia nos sustentar senão a fé que supera o mundo? Não devemos pensar que é estranha a terrível prova que teremos de enfrentar, como não deveremos pensar serem estranhas as coisas que aconteçam conosco; o que importa é a alegria, na medida mesma em que compartilharmos os sofrimentos do Cristo. Seja onde for, nós prometemos guardar nossas almas para Deus, fazendo o bem, cheios de fé no Criador. Que todos os que abandonem casas, irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou mulher, ou filhos, ou terras pela causa de Deus possam receber cem ve-zes mais e possam herdar a vida eterna.

Firmemente apoiados no triunfo certo e universal dos sentimentos contidos nesta Declaração, apesar da for-midável oposição que possa ser mobilizada contra eles — em solene testemunho de nossa fé em sua origem di-vina —, nós, em virtude disso, apomos aqui nossa assinatura; e apresentamos esta Declaração à razão e à cons-ciência da humanidade, não sentindo, quanto a nós, nenhuma ansiedade em relação ao que possa nos acontecer, e resolvendo, na força do Senhor Deus, calma e serenamente, assumir as questões em jogo daí decorrentes.

Fonte | LYND, Staughton (Ed.). Nonviolence in America: a documentary history. Indiana, EUA: The Bobbs-Merrill Company, 1966. 542 p. (The American Heritage Series).

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1865 | generAl WilliAm tecumSeh ShermAn

40 acres e uma mula — Ordem Especial Militar no 15*

em 1865, a guerra civil que opusera o norte e o sul dos estados unidos chegara ao fim. Com um saldo de mais de 600 mil mortos e a destruição

de boa parte da economia dos confederados, a guerra havia, contudo, deixado também um legado positivo: a libertação formal dos escravos.

essa medida, tomada pela união no calor da conflagração, minou o esforço de guerra do sul, cuja economia era baseada na mão de obra

escrava. porém, uma vez declarada a vitória do norte, e iniciada a reconstrução dos estados do sul, havia ainda um problema maior: o que fazer com os cerca de 4 milhões de ex-cativos. o status de homens livres, por si só, não significava muito para uma multidão privada de educação e de posses próprias, ainda mais em regiões econômica e politicamente

desorganizadas pela guerra. Assim, após um encontro com 20 líderes da comunidade negra de savannah, geórgia, em 12 de janeiro de 1865,

o general sherman emitiu a ordem especial Militar nº 15, que garantia a cada família de ex-escravos o direito a 40 acres de terra nos arredores

da cidade de Charleston. também foi ordenado que animais — cavalos e mulas — fossem distribuídos aos antigos escravos.

A medida de sherman beneficiou cerca de 40 mil libertos, dando origem à expressão “40 acres e uma mula” — mais tarde uma referência

para movimentos reformistas preocupados com a condição do negro. essas tentativas de redistribuição de terras, porém, tiveram vida curta:

no mesmo ano de 1865, o presidente Andrew Johnson perdoou oficialmente vários latifundiários que haviam lutado pela Confederação,

restituindo-lhes as terras até então destinadas aos libertos. (r.F. e C.A.)

As ilhas de Charleston sul, os campos de arroz abandonados ao longo dos rios numa distância de trinta milhas das costas do mar, e a região limítrofe ao rio St. John, na Flórida, são reservados e separados para o assenta-mento dos negros agora libertados pelas leis da guerra e pela proclamação (da Emancipação) do presidente dos Estados Unidos.

Em Beaufort, Hilton Head, Savannah, Fernandina, Santo Agostinho e Jacksonville, os negros podem per-manecer em seus afazeres escolhidos ou costumeiros; mas nas ilhas, e nos assentamentos a seguir definidos, nenhuma pessoa branca, seja qual for, a menos que sejam oficiais militares e soldados a serviço, serão autoriza-dos a residir, e a gestão dos assuntos públicos será deixada, única e exclusivamente, para o próprio povo liber-tado, sujeito apenas à autoridade militar dos Estados Unidos e às leis do Congresso. Pelas leis da guerra e ordens do presidente dos Estados Unidos, o negro está livre e deve ser tratado como tal. Ele não pode ser submetido à conscrição, ou serviço militar compulsório, salvo por ordens escritas da mais alta autoridade militar do De-partamento de [Guerra], nos termos dos regulamentos que o presidente ou o Congresso podem prescrever. Trabalhadores domésticos, ferreiros, carpinteiros e outros trabalhadores manuais estarão livres para escolher o próprio trabalho e residência, mas os negros jovens e capazes devem ser encorajados a se alistar como soldados a serviço dos Estados Unidos, para contribuir com a sua parte para a manutenção da própria liberdade e garan-tir os seus direitos como cidadãos.

Negros assim alistados irão ser organizados em companhias, batalhões e regimentos, sob as ordens das au-toridades militares dos Estados Unidos, e serão pagos, alimentados e vestidos, de acordo com a lei. As gratifi-cações pagas no alistamento podem ser destinadas, com o consentimento do recruta, a ajudar a sua família e assentamento e à aquisição de implementos agrícolas, sementes, ferramentas, botas, vestuário e outros artigos necessários para a sua subsistência.

Quando três respeitáveis negros chefes de família demonstrarem desejo de se estabelecer em um terreno, e escolherem para tal uma ilha ou uma localidade claramente definidas dentro dos limites acima designados, o Inspetor de Assentamentos e Plantações irá, ele próprio, ou por oficial subalterno por ele mesmo nomeado,

* No original, Forty acres and a mule — Special Field Order n. 15.

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dar-lhes uma licença para se estabelecerem nessa ilha ou distrito e prestar-lhes assistência de modo que possam estabelecer um assentamento agrícola pacífico. As três partes referidas irão subdividir o terreno, sob a supervi-são do inspetor, entre si, e entre outros que possam optar por se assentarem perto deles, de modo que cada família tenha uma parcela de não mais de 40 hectares de terra cultivável, e, quando esta for limítrofe a canais de água, com não mais de oitocentos pés de frente. A posse dessas terras será protegida pelas autoridades mi-litares, até que eles próprios possam proteger-se, ou até que o Congresso legalize os seus títulos. O quarteleiro1 pode, sob requisição do Inspetor de Assentamentos e Plantações, colocar à disposição do inspetor um ou mais dos vapores capturados para circular entre os assentamentos e um ou mais dos pontos comerciais doravante denominados, a fim de permitir aos assentados condições de se abastecerem segundo suas demandas, e vende-rem os produtos da sua terra e trabalho.

Quando um negro se alistar no serviço militar dos Estados Unidos, ele poderá instalar livremente a sua fa-mília em qualquer um dos assentamentos e adquirir uma propriedade e todos os demais direitos e privilégios de um colono, como se estivesse presente em pessoa. Do mesmo modo, negros podem assentar suas famílias e engajar-se se em navios de guerra, ou na pesca, ou na navegação de águas interiores, sem perder nenhum di-reito de reivindicação de terras ou outros benefícios derivados deste sistema. Mas ninguém, a não ser um efetivo colono como acima definido, ou a menos que esteja ausente num serviço de Governo, terá direito a reclamar qualquer direito à terra ou à propriedade, em qualquer assentamento, em virtude dessas ordens.

Para fazer cumprir este sistema de assentamentos, um agente geral será designado como Inspetor de Assen-tamentos e Plantações, com o dever de visitar os assentamentos e regulamentar a sua política e regime geral. Ele irá conceder pessoalmente a cada chefe de família um título de posse, por escrito, sujeito à aprovação do presidente dos Estados Unidos, indicando o melhor possível a descrição dos limites; e também deverá resolver todas as reivindicações ou os conflitos que possam surgir na sua jurisdição, sujeito à mesma aprovação, tratan-do o conjunto desses títulos como posses. O mesmo funcionário também será responsável pelo alistamento e organização dos recrutas negros e por proteger os seus interesses quando ausentes de seus assentamentos; e serão regidos pelas normas e regulamentos prescritos pelo Departamento de Guerra para tais propósitos.

O brigadeiro-general R. Saxton é aqui nomeado Inspetor de Assentamentos e Plantações e entrará imedia-tamente em função. Nenhuma mudança é cogitada ou desejada no assentamento de Beaufort Island, nem quaisquer direitos de propriedade, de agora em diante adquiridos, serão afetados por essa decisão.

Por ordem do major-general W.T. Sherman, L.M. Dayton, assistente adjunto-geral16 de Janeiro de 1865.

Fonte | BIRNBAUM, Jonathan; TAYLOR, Clarence. Civil Rights since 1787: a reader on the Black Struggle. New York & London: New York Universitary Press, 2000. 932 p.

1 Militar encarregado da guarda dos armamentos e uniformes (N. do T.).

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1882 | lySAnder Spooner

A Lei natural*

Considerado um dos criadores do anarquismo individualista, lysander spooner (1808-1889) questionava práticas estatais como o

recrutamento militar, a existência de monopólios e o regime escravista. Ativo abolicionista durante as décadas de 1850 e 1860, denunciou a

guerra Civil e a reconstrução como processos submetidos a interesses políticos, dissociados das reais necessidades da população. no texto a seguir, spooner apresenta o que chama de ciência da justiça, que

deveria reger o mundo dos seres humanos e garantir a paz. A coerção estatal, segundo o autor, expressa na força das armas ou nas leis que garantem as desigualdades econômicas, é que produz o desequilíbrio

e a ruptura desta ordem natural idealizada. (g.n.)

A Lei natural: a ciência da justiça

Seção I

A minha e a sua ciência — a ciência da justiça — é a ciência de todos os direitos humanos: de todos os direitos do homem, os concernentes à pessoa e à propriedade; de todos os direitos à vida, à liberdade e à busca da feli-cidade.

É somente a ciência que pode dizer o que cada homem pode ou não realizar; o que pode ou não ter; o que ele pode ou não dizer, sem desrespeitar os direitos de outra pessoa.

É a ciência da paz; e somente a ciência da paz: uma vez que somente a ciência pode nos dizer em que con-dições a humanidade pode ou deve viver em paz, uns com os outros.

As condições são simplesmente essas: primeiro, que cada homem deve fazer, a cada um, o que a justiça re-quer que ele faça; por exemplo, que ele deve pagar suas dívidas, que ele deve devolver a propriedade empres-tada ou furtada para o seu dono e que ele deve reparos por qualquer dano que possa ter causado a alguma pessoa ou à propriedade de alguém.

A segunda condição é que cada homem deve evitar fazer algo a outro que a justiça o proíba de fazer. Por exemplo, ele deve evitar cometer furtos, roubos, incêndios premeditados, assassinatos ou qualquer outro crime contra outro ou contra a propriedade de alguém.

No momento em que essas condições forem observadas, os homens ficarão em paz, e é assim que devem permanecer, uns com os outros. Mas quando alguma dessas condições é violada, os homens entram em guer-ra. E assim devem necessariamente permanecer, até que a justiça seja restabelecida.

Através dos tempos, como a história nos informa, em que a humanidade tentou viver em paz entre si, tanto os instintos naturais quanto a sabedoria coletiva da raça humana têm reconhecido e prescrito, como uma con-dição indispensável, obediência em relação a esta única obrigação universal: que cada um deve viver honestamente em relação aos demais.

O antigo ditado sintetiza o dever legal de um homem para com seus companheiros de uma forma simples: “Para viver honestamente, deve-se não ferir ninguém e dar a cada um o que merece”. [Honeste vivere, neminem laedere, suum cuique tribuere — Ulpianus, Regularum in Digesto, lib. I, 10, 1].

A máxima, em sua íntegra, é expressa realmente nas simples palavras “viver honestamente”: desde que viver honestamente signifique não ferir ninguém e dar a cada um o que merece.

* No original, Natural Law.

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CApítulo III

A Lei natural contrastada com a Legislação

Seção I

A Lei Natural, a justiça natural, sendo um princípio aplicável e adequado naturalmente para resolver, de forma correta, qualquer controvérsia possível que possa surgir entre os homens; sendo, também, o único parâmetro pelo qual qualquer controvérsia, seja qual for, entre homem e homem, possa ser resolvida; sendo um princípio cuja proteção cada homem pede para si mesmo, independentemente de estar de acordo com outros ou não; sendo também um princípio imutável, que é sempre e em qualquer lugar, qualquer época e em qualquer nação, o mesmo; sendo evidentemente necessário em todos os tempos e lugares; sendo inteiramente imparcial e igual para todos; tão indispensável para a paz da humanidade em toda a parte; tão vital para o bem-estar e a segu-rança de todos os seres humanos; sendo também tão facilmente aprendido, tão amplamente conhecido e tão facilmente mantido pelas associações voluntárias que todos os homens honestos podem pronta e rapidamente formar para esse propósito — sendo tal este princípio, algumas questões podem ser suscitadas: por que a lei natural não prevalece de forma universal, ou quase universal? Por que não foi, há muito tempo, estabelecida em todo o mundo como única lei que qualquer pessoa, ou todos os homens, fosse, de forma justa, obrigada a cumprir? Por que algum ser humano concebeu que algo tão evidentemente supérfluo, falso, absurdo e ofensi-vo, como todas as legislações necessariamente devem ser, pudesse ser de algum uso para a humanidade ou ter algum lugar nos assuntos humanos?

Seção II

A resposta é que, através dos tempos históricos, ali onde um povo qualquer avançou além do estado selvagem e aprendeu a incrementar suas formas de subsistência pelo cultivo do solo, uma maior ou menor parte dele se associou ou se organizou como ladrões, para explorar e escravizar outros, que tinham acumulado alguma propriedade que poderia ser apreendida, ou que tinham demonstrado, através de seu trabalho, que poderiam contribuir para apoiar ou satisfazer aqueles que deveriam escravizá-los.

Esses bandos de ladrões, a princípio em pequeno número, aumentaram seu poder ao ser unirem uns aos ou-tros, criando armas de guerra, disciplinando a si mesmos, e aperfeiçoando suas organizações como forças mili-tares e dividindo seus despojos (incluindo os cativos) entre si, seja através de rateios previamente acordados ou através de acordos a que chegassem seus líderes (sempre desejosos de aumentar o número de fiéis seguidores).

O sucesso desses bandos de ladrões foi fácil, pelo fato de que aqueles que foram escravizados ou tiveram tomadas suas coisas estavam comparativamente indefesos; dispersos pelo país; dedicados, com técnicas rudi-mentares e pesado trabalho, a extraírem subsistência da terra, sem armas de guerras, além de pedaços de pau e pedras; não tinham nenhuma disciplina ou organização militar e não tinham formas de concentrar forças ou agir em conjunto, quando subitamente atacados. Nestas circunstâncias, a única alternativa que lhes restou para salvar as próprias vidas, ou as vidas das famílias, foi entregar, não apenas as colheitas que conseguiram juntar, e as terras que cultivaram, mas também a si mesmos e as suas famílias como escravos.

A partir daí, seu destino foi, como escravos, cultivar para os outros as terras que antes tinham sido cultivadas para si próprios. Sendo constantemente explorados no seu trabalho, a riqueza lentamente aumentou; mas tudo foi parar nas mãos de seus tiranos.

Esses tiranos, vivendo unicamente da pilhagem, e do trabalho de seus escravos, e aplicando todas as energias para acumular mais e mais saques, e para a escravização de ainda outras pessoas indefesas; aumentando, tam-bém, seu número, aperfeiçoando suas organizações e multiplicando suas armas de guerra, estendendo suas conquistas até, com o intuito de manter o que eles já tinham conquistado, que se tornou necessário agir de forma sistemática, cooperando uns com os outros para manter a sujeição de seus cativos.

Mas tudo isso só pode ser feito com o estabelecimento daquilo que eles chamam de governo e fazendo o que eles chamam de leis.

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Todos os grandiosos governos do mundo — os que existem agora e os que já deixaram de existir — tiveram este caráter. Eles têm se comportado como meros bandos de ladrões, que se associaram com o intuito de sa-quear, conquistar e escravizar seus companheiros. E suas leis, como assim as chamam, têm sido apenas acordos que eles fazem quando consideram necessário para manterem suas organizações e agirem em conjunto para saquear e escravizar outros, garantindo a cada um a parte combinada dos despojos.

Todas essas leis não tiveram mais validade do que os acordos que fazem entre si bandidos, ladrões e piratas, quando acham necessário para ter mais sucesso na realização de seus crimes, e dividir pacificamente seus des-pojos.

Assim substancialmente toda legislação do mundo teve origem nos desejos de uma classe de pessoas de acu-mular e escravizar outros, e possuí-los como propriedade.

Seção III

Com o passar do tempo, o ladrão ou a classe proprietária de escravos — que tomara todas as terras e se apro-priou de todos os meios de criar riqueza — começou a descobrir que a forma mais fácil de administrar seus escravos e fazê-los mais lucrativos, não era para cada senhor de escravos ter uma quantidade específica de es-cravos, como tinha sido feito antes, e como era feito com o gado, mas que ele poderia conceder-lhes tanta li-berdade que jogasse nas costas deles mesmos (dos escravos) a responsabilidade de sua própria subsistência, e ainda os compeliu a vender seu trabalho para a classe proprietária de terra — seus antigos donos — por exata-mente aquilo que estes últimos decidissem oferecer-lhes.

Claro que estes escravos libertos, como alguns erroneamente os chamaram, não tendo nenhuma terra ou outra propriedade ou outras formas de subsistência independente, não tinham alternativas — para salvar a si mesmos de morrer de fome — senão vender seu trabalho para os proprietários de terra, em troca apenas das condições de vida mais precárias; nem sempre por muito mais do que isso.

Estes escravos libertos, como foram chamados, mal eram agora menos escravos do que antes. Seus meios de subsistência eram talvez ainda mais precários do que quando cada um tinha seu próprio dono, que tinha inte-resse em preservar suas vidas. Eles eram sujeitos, pelos caprichos ou interesses dos proprietários a terras, a serem expulsos de seus lares, empregos e perderem a oportunidade de mesmo ganhar a subsistência com seu trabalho. Eles estavam, assim, em larga escala, obrigados à necessidade de esmolar, de roubar ou de morrer de fome; e ficou claro que eram perigosos para a propriedade e para a paz de seus antigos senhores.

A consequência foi que estes ex-donos acharam necessário, para a própria segurança e para a segurança de suas propriedades, se organizarem a si mesmos de modo mais perfeito, como um governo, e fazerem leis para manter sob sujeição essas pessoas perigosas; isto é, leis determinando os preços pelos quais estas pessoas deveriam ser compelidas a trabalhar, e também prescrevendo punições assustadoras, como a própria morte, por violações de propriedade e roubos que elas seriam levadas a fazer, como única forma de escaparem de morrer de fome.

Estas leis mantiveram-se em vigor por centenas e, em alguns países, por milhares de anos; e ainda estão em vigor hoje, em escala menor ou maior de severidade, em quase todos os países do mundo.

O intuito e o efeito dessas leis têm sido manter nas mãos dos ladrões ou da classe proprietária dos escra-vos um monopólio de todas as terras, e, tanto quanto fosse possível, de todos os meios de criar riqueza; e assim manter a grande massa de trabalhadores em tal estado de pobreza e dependência, que os forçaria a vender seu trabalho para seus tiranos pelos preços mais baixos pelo quais fosse possível garantir a sobrevi-vência.

O resultado de tudo isso é que a pouca riqueza deste mundo está nas mãos de poucos — isto é, nas mãos da classe que faz as leis e que é proprietária dos escravos; aqueles que são agora tão senhores de escravos em espí-rito como antes, mas que alcançam seus objetivos através das leis que fazem para manter os trabalhadores em sujeição e dependência, em vez de cada um ter os próprios escravos como se fossem gado.

Assim, todo o segredo da legislação, que agora cresceu em proporções gigantescas, tem sua origem em conspirações, que sempre existiram entre os poucos, com o intuito de manter as maiorias em sujeição, extor-quindo delas seu trabalho, e todos os lucros do seu trabalho.

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E os reais motivos e o espírito que existem nos fundamentos de toda legislação — apesar de todas as men-tiras e disfarces com os quais tentam esconder-se a si mesmos — são hoje os mesmos de sempre. Todo o pro-pósito desta legislação é simplesmente manter uma classe de homens servindo e sujeita à outra.

Seção IV

O que é, então, legislação? É a suposição, por um homem, ou um grupo de homens, de domínio absoluto e irresponsável sobre todos os outros homens que eles podem sujeitar ao seu poder. É a suposição, por um homem, ou um grupo de homens, do direito de abolir inteiramente todos os direitos naturais, todas as liber-dades naturais de todos os outros homens; de tornar todos os outros homens seus escravos; de ditar arbitra-mente o que outros homens podem, ou não, fazer; o que podem, ou não, ter; o que podem, ou não, ser. Re-sumindo, é a suposição de que há um direito de abolir o princípio de direitos humanos, o próprio princípio de justiça, suprimi-lo deste mundo e substituir estes preceitos pela própria vontade pessoal, prazer e interesse. Tudo isso, e não menos que isso, está envolvido na precisa ideia de que pode existir algo como uma legislação humana, obrigatória para aqueles que sofrem sua imposição.

Março, 1882

Fonte | SPOONER, Lysander. Natural Law. Connecticut: AK Press, 1990. Disponível em: <www.panarchy.org/spooner/law.1882.html>.

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1896 | plAtAformA políticA do pArtido populiStA*

Fundado bem depois dos partidos republicano e Democrata, já na década de 1870, o partido do povo, ou partido populista, foi uma

expressão dos interesses dos pequenos fazendeiros estadonidenses após o Pânico de 1873 — uma crise econômica que levou a uma baixa

catastrófica dos preços dos produtos agrícolas de que dependiam muitos estados do sul e do oeste do país. o problema foi agravado, já na década de 1880, por secas nas regiões de plantio do trigo, levando

muitos pequenos proprietários a níveis perigosos de endividamento. para organizar uma ação coletiva, foi criada então a Aliança dos Fazendeiros (Farmers’ Alliance), em 1876, que se tornou muito

popular nas áreas mais afetadas. porém, diante do agravamento dos problemas e também da recusa dos dois grandes partidos nacionais

de incorporar as reivindicações dos fazendeiros, a Aliança deu origem a um partido próprio, o partido populista, que assumiu as

reivindicações dos proprietários agrícolas contra os donos de ferrovias, os atravessadores, os financistas e certas políticas econômicas

adotadas pela união, como o padrão-ouro. em algumas regiões, os populistas incorporaram a reivindicação do sufrágio feminino.

elegendo o primeiro senador em 1890, o partido atingiu o ápice da popularidade em 1892, quando seu candidato à presidência, James B.

Weaver, recebeu mais de um milhão de votos, ganhando em quatro estados. Contudo, em seguida, o partido Democrata começou a minar

os populistas, pela incorporação de algumas de suas causas ou pela simples intimidação. Além disso, divisões internas e uma desastrada

ênfase em assuntos financeiros na campanha eleitoral levaram à derrota do candidato do partido à presidência, William Jennings

Bryan, na eleição de 1896. Foi o canto de cisne dos populistas, muitos dos quais acabaram sendo absorvidos pelos democratas. suas ideias, no entanto, ainda teriam muita influência nas reformas adotadas na

Era Progressista das duas primeiras décadas do século XX. (r.F.)

O Partido Populista, reunido em convenção nacional, reafirma sua lealdade aos princípios declarados pelos fundadores da República e também aos princípios fundamentais de um governo justo como enunciado na plataforma do partido em 1892.

Nós reconhecemos que, com a conivência das administrações passada e presente do país, alcançamos uma crise na vida nacional, como prevista em nossa declaração quatro anos atrás, e que uma ação imediata e patrió-tica é o dever supremo do momento.

Nós entendemos que, embora tenhamos independência política, nossa independência financeira e industrial ainda está para ser alcançada através da restauração no nosso país do controle constitucional e do exercício de funções necessárias para um governo do povo, cujas funções foram basicamente entregues por nossos servido-res públicos aos monopólios corporativos. A influência dos mercadores de dinheiro europeus tem sido mais poderosa na formulação da legislação do que a voz do povo americano. O poder executivo e o patronato têm sido usados para corromper nossos legisladores e derrotar a vontade do povo, e a plutocracia tem assim sido entronizada sobre as ruínas da democracia. Para restaurar o governo que foi idealizado pelos nossos Pais e para o bem-estar e prosperidade desta e das futuras gerações, nós reivindicamos o estabelecimento de um sistema financeiro e econômico que faça de nós senhores dos nossos próprios assuntos e independentes do controle europeu, pela adoção da seguinte declaração de princípios:

AS FInAnçAS

1. Nós exigimos uma moeda nacional, sólida e segura, emitida apenas pelo governo geral, sem a intervenção de bancos de emissão, que seja uma única moeda corrente, apta para quitar todas as dívidas, públicas ou privadas; um justo, equâ-nime e eficiente sistema de distribuição, direto para o povo, através de desembolsos do governo, previstos em lei.

* Também conhecido como Partido do Povo. No original, People’s Party Platform.

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2. Nós exigimos a cunhagem gratuita e irrestrita da prata e do ouro na base da razão atual e legal de 16 para 1, sem esperar o consentimento de nações estrangeiras.

3. Nós exigimos que o volume do meio circulante seja rapidamente aumentado para um montante suficiente para atender às necessidades do empresariado e da população e para restaurar um nível justo de preços do tra-balho e da produção.

4. Nós denunciamos a venda de títulos e o aumento dos juros da dívida pública feitos pela atual administração do governo americano como desnecessários e sem o consentimento da lei e exigimos que nenhum título adicional seja emitido, exceto por lei específica do congresso.

5. Nós exigimos uma legislação que impeça a desmonetarização da moeda legal dos Estados Unidos por contra-to privado.

6. Nós exigimos que o governo, ao pagar seus títulos, use como opção a moeda legal e pague assim pelos seus títulos e denunciamos o atual e anterior governos por não adotar tal opção para os proprietários dos títulos governamentais.

7. Nós exigimos um imposto de renda equilibrado, para que a riqueza acumulada possa ter uma proporção justa de impostos, e nós acreditamos que a decisão recente da corte suprema sobre o imposto de renda seja uma interpretação equivocada da constituição e uma invasão nos poderes legais do congresso acerca dos impostos.

8. Nós exigimos que bancos de poupança sejam criados pelo governo para a segurança das poupanças do povo e para facilitar o comércio.

FerroVIAS e teléGrAFoS

1. Sendo o transporte uma necessidade pública e um meio de comércio, o governo deve ser proprietário e operar as ferrovias no interesse do povo, de forma imparcial, para que todos possam ter o mesmo tratamento no transporte, e para que a tirania e o poder político agora exercidos pelas grandes corporações ferroviárias possam ser destruídos, pois que resultam na diminuição, quando não na destruição, dos direitos políticos e das liberdades individuais dos cidadãos. Tal propriedade deve ser adquirida de forma gradual na base de consistentes e sólidas políticas públicas.

2. O interesse dos Estados Unidos nas estradas de rodagem públicas, construídas com o dinheiro público, e as con-cessões de terras para as ferrovias do Pacífico nunca devem ser alienados, hipotecados ou vendidos, mas protegidos e preservados para o bem-estar geral, como prescritos pelas leis que organizam tais ferrovias. A execução de hipo-tecas dos Estados Unidos nessas estradas devem ser imediatamente liquidadas se os pagamentos não forem feitos pelas companhias endividadas; e no leilão das hipotecas dessas estradas, o governo deve comprá-las, caso se torne necessário, para a proteção dos interesses envolvidos, ou, se possível, elas devem ser adquiridas por um preço ra-zoável; e o governo deve operar tais ferrovias assim como as estradas para o benefício de todo o povo, e não no interesse de poucos, sob adequadas disposições que protejam a vida e a propriedade, garantindo que todas as taxas sejam cobradas com iguais direitos e iguais preços para o transporte de pessoas e de cargas.

3. Nós denunciamos os esquemas infames atuais para renegociar tais dívidas e exigimos que as leis ora aplicáveis no caso devam ser executadas e administradas de acordo com o seu espírito e objetivo.

4. Os telégrafos, assim como o sistema de correios, sendo necessários para a transmissão de notícias, devem ser de propriedade do governo e operados por ele, no interesse do povo.

AS terrAS púBlICAS

1. Políticas autênticas exigem que as legislações nacional e estaduais devam ser tais que qualquer cidadão pruden-te e trabalhador possa ter um lar, e assim a terra não poderá ser monopolizada com propósitos especulativos. Todas as terras agora ocupadas por ferrovias e outras corporações, para além das próprias necessidades, devem ser retomadas pelo governo por meios legais e repassadas unicamente para os ocupantes de fato, e o monopó-lio privado da terra, assim como a propriedade estrangeira, devem ser proibidos.

2. Nós condenamos as concessões fraudulentas de terra pelas quais as companhias ferroviárias do Pacífico, com a conivência do departamento do interior, roubaram terras de multidões de posseiros autênticos e de mineiros,

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e exigimos uma legislação do congresso que obrigue que sejam isentas de tais concessões as terras de minas, tanto as de depois e quanto as de antes da formalização das mesmas.

3. Nós exigimos que os ocupantes autênticos de terras públicas sejam agraciados com lares gratuitos, como pres-crito pela Lei Nacional do Lar, e que nenhuma exceção seja feita no caso de reservas indígenas, quando aber-tas à colonização, e que todas as terras ainda não juridicamente registradas sejam incluídas sob esta exigência.

o reFerenDo

Nós somos a favor da legislação direta através de iniciativas e referendos, sob a proteção de salvaguardas cons-titucionais.

eleIção DIretA Do preSIDente e DoS SenADoreS pelo poVo

Nós exigimos que as eleições do presidente, do vice-presidente e dos senadores dos Estados Unidos sejam fei-tas pelo voto direto do povo...

oS terrItórIoS

Nós somos a favor de leis locais para os territórios e o Distrito de Columbia e a conversão rápida dos territórios em estados.

SAlárIoS púBlICoS

Todos os salários públicos devem corresponder ao preço do trabalho e seus produtos.

eMpreGoS GerADoS pelo GoVerno

Em tempos de grande depressão industrial, o trabalho ocioso deve ser empregado, tanto quanto possível, em frentes de trabalho públicas.

Ação JuDICIAl ArBItrárIA

A ação arbitrária das cortes judiciais que decida prender cidadãos por contumácia e expedir mandados arbitrá-rios deve também ser evitada por legislação apropriada.

penSõeS

Nós somos a favor de pensões para os soldados incapacitados da União.

uMA eleIção JuStA

Acreditando que o direito de voto e uma eleição sem restrições são essenciais para um governo do, para e pelo povo, o Partido Populista condena todo o sistema censitário adotado por alguns estados como não republicano e não democrático e declaramos que decidir ações contra isso é dever da legislação, e que só assim será possível assegurar uma ampla, livre e justa eleição e uma apuração honesta.

A queStão FInAnCeIrA “A queStão urGente”

Enquanto as acima referidas proposições constituem a plataforma em torno da qual atua nosso partido, e para a realização da qual sua organização será mantida, nós reconhecemos que a questão urgente da atual campa-nha, que norteia a atual eleição, é a questão financeira. E em torno deste assunto específico e importante para todos os partidos, nós cordialmente apelamos à ajuda e à cooperação de todos os cidadãos e organizações que compartilhem da nossa opinião acerca desta questão vital.

Fonte | The United States State Department. Disponível em: <http://usinfo.state.gov/usa/infousa/facts/democrac/29.htm> Acesso em: 10 jan. 2006.

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1903 | WilliAm edWArd BurghArdt du BoiS

Sobre o sr. Booker T. Washington e outros*

sociólogo, historiador, ativista e cofundador do pan-Africanismo e da Associação nacional para o progresso das pessoas de Cor (national

Association for the Advancement of Colored people — nAACp), William edward Burghardt Du Bois (1868-1963) foi um dos maiores intelectuais negros da história dos estados unidos. um dos pontos mais altos de sua carreira foi o debate com Booker t. Washington (1856-1915). nascido ainda escravo, mas tendo obtido instrução

formal após a libertação, Washington advogava a cooperação dos negros com a sociedade branca para a obtenção, a longo prazo, da

igualdade social. sendo a América a terra das oportunidades, os negros deveriam provar seu valor pela via econômica, evitando confrontar o

sistema de segregação racial institucionalizado nos estados sulistas, e deixando para depois a etapa dos direitos políticos e civis. tal discurso deu a Washington uma considerável projeção nacional, mas indignou

ativistas como Du Bois. para este, a conquista de uma parcela do poder político pelos negros — então, quase sempre, impedidos de exercer os direitos políticos nos estados em que predominava a segregação

— era essencial para acabar com a discriminação racial. Mais do que oportunidades de ascensão econômica, a América de Du Bois era uma utopia política e que não poderia se realizar enquanto a parcela negra da população estivesse alijada dos direitos básicos que eram o próprio

cerne da cidadania estadunidense.

o presente documento é um dos capítulos de um dos livros mais conhecidos de Du Bois, As almas da gente negra (The souls of

black folk), publicado originalmente em 1903. nele, o autor critica a acomodação representada por Washington e demonstra como a conquista da dignidade do negro como cidadão não será possível

através da conciliação com a injustiça. (r.F. e C.A.)

From birth till death enslaved; in word, in deed, unmanned! Hereditary bondsmen! Know ye not

Who would be free themselves must strike the blow? Byron1

Pode-se dizer facilmente que o acontecimento mais notável da história do negro norte-americano, desde 1876, é a ascendência do sr. Booker T. Washington. Ela começou na época em que as memórias da guerra e seus ideais estavam rapidamente passando; quando raiava um dia de desenvolvimento comercial impressionante; e um sentimento de dúvida e hesitação tomava conta dos filhos dos escravos libertos — foi então que sua lide-rança começou. O sr. Washington surgiu, com um programa definido e singular, no momento psicológico em que a nação se sentia um pouco envergonhada por ter dedicado tanto sentimento aos negros e estava agora concentrando suas energias nos dólares. Seu programa de educação técnica, conciliação com o Sul e submissão e silêncio em relação aos direitos civis e políticos não eram inteiramente originais. Os negros libertos desde 1830 até o começo da Guerra Civil tinham se esforçado para construir escolas técnicas e a Associação Missio-nária Americana tinha ensinado diversas especialidades desde o começo, enquanto Price e outros buscavam caminhos para consolidar uma aliança honrada com os melhores sulistas. Mas o sr. Washington foi o primeiro a juntar indissoluvelmente todas essas coisas. Ele depositou entusiasmo, energia ilimitada e uma fé perfeita neste programa e transformou-o de uma trilha secundária em um verdadeiro modo de viver. E a história dos métodos com os quais ele fez isso é um estudo fascinante da vida humana.

A nação ficou chocada ao ouvir um negro defendendo tal programa após muitas décadas de reclamações amargas. Ele chocou e ganhou a aprovação do Sul, conquistou também o interesse e a admiração do Norte, e,

1 Tradução livre de Lorde Byron (poeta inglês, do século XIX, partidário radical das liberdades): Do nascimento à morte escravizados;/numa palavra, de fato, desumanizados!/Homens atados, hereditariamente!/Você não sabe/Quem se libertaria a si mesmo precisa usar a violência? (N. do T.).

* No original, Of Mr. Booker T. Washington and others.

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depois de um murmúrio confuso de protesto, os próprios negros silenciaram, isso quando não se converte-ram.

Ganhar a simpatia e a cooperação dos vários elementos que fazem parte do Sul branco foi a primeira tarefa do sr. Washington. E isso, naquele momento em que Tuskegee2 foi inaugurada, parecia impossível para um negro. E mesmo assim, dez anos depois, o objetivo foi alcançado, conforme mostra discurso proferido em Atlanta: “Em todas as coisas puramente sociais, podemos estar separados como os cinco dedos, e mesmo assim estarmos juntos como a mão que, em todas as coisas, é essencial para o progresso mútuo”. Esse “Compromis-so de Atlanta” é, sob todos os ângulos possíveis, a coisa mais notável da carreira de sr. Washington. O Sul o interpretou de diversas formas: os radicais receberam tal proposta como uma completa capitulação das deman-das por igualdade civil e política; os conservadores, como uma base de trabalho generosamente construída para a compreensão mútua. Então, ambos os lados aprovaram o programa, e hoje o seu autor é certamente o sulis-ta mais respeitado desde Jefferson Davis e o que tem o público pessoal mais numeroso.

Depois desse feito, veio o trabalho que o sr. Washington realizou para conseguir espaço e consideração no Norte. Outras pessoas menos sagazes e diplomáticas tentaram outrora pôr-se em equilíbrio entre esses dois polos e falharam. Mas, assim como o sr. Washington conhecia o coração do Sul de berço e por formação, também, num lampejo singular, ele intuitivamente entendeu o espírito da época que então predominava no Norte. E ele aprendeu tão bem o discurso e o pensamento do comercialismo triunfante e os ideais de prospe-ridade material que a figura de um menino negro solitário arranhando uma gramática francesa entre o mato e a sujeira de uma pobre casa rapidamente se tornou aos seus olhos o máximo dos absurdos. Fico a perguntar-me o que Sócrates e São Francisco diriam disto.

Apesar disso, essa especial singularidade de visão e a completa integração com a época constituem a marca do homem bem-sucedido. É como se a natureza precisasse tornar os homens limitados para lhes dar força. E assim o culto ao sr. Washington ganhou discípulos devotados, seu trabalho prosperou de forma maravilhosa, seus amigos formaram uma legião e seus inimigos ficaram confusos. Hoje ele se apresenta como o porta-voz reconhecido de seus dez milhões de companheiros e um dos mais notáveis indivíduos de uma nação de seten-ta milhões. Assim, há hesitação em criticar um homem cuja vida começou com tão pouco e alcançou tanto. Apesar disso, chegou a hora em que alguém deve se pronunciar com toda a sinceridade e a devida cortesia sobre os erros e os defeitos da carreira do sr. Washington, bem como sobre seus triunfos, sem soar capcioso ou invejoso, e sem esquecer que é mais fácil cometer o mal do que fazer o bem neste mundo.

A crítica que até agora atingiu o sr. Washington nem sempre tem sido desse gênero. No Sul, especialmente, ele teve de ser cauteloso para evitar os mais duros julgamentos — e com razão, por lidar com um assunto ex-tremamente delicado para a região. Em duas ocasiões — primeiro, na celebração da Guerra Hispano-Ameri-cana em Chicago, onde aludiu ao preconceito de cor que está “corroendo as entranhas do Sul”, e também ao jantar com o presidente Roosevelt — as críticas sulistas resultantes foram violentas o suficiente para ameaçar seriamente a sua popularidade. No Norte, várias vezes foi expressa a sensação de que os conselhos de submis-são do sr. Washington ignoraram alguns princípios de humanidade e que seu programa educacional era des-necessariamente limitado. Normalmente, porém, tais críticas não acharam expressão aberta, apesar de os filhos espirituais do abolicionismo não estarem prontos para reconhecer que as escolas inauguradas antes de Tuske-gee, por homens de grandes ideais e espírito de autossacríficio, eram fracassos completos ou dignas de ridícu-lo. Ou seja, embora a crítica não deixe de acompanhar o sr. Washington, mesmo assim a opinião pública predominante no país tem estado demasiadamente desejosa de pôr a solução desse problema cansativo nas mãos dele, e dizer: “Se isso é tudo o que você e sua raça querem, tomem, é de vocês”.

Entre sua própria gente, porém, o sr. Washington encontrou a mais forte e duradoura oposição, chegando às vezes até a amargura. Esta crítica até hoje continua forte e insistente apesar de estar largamente silenciada em suas manifestações pela opinião pública da nação. Parte dessa oposição é, naturalmente, apenas inveja: o

2 Uma iniciativa de fins do século XIX, a Escola Normal de Tuskegee para professores negros, situada no condado de Macon, Alabama, tornou-se uma espécie de escola-modelo (N. do T.).

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descontentamento de demagogos frustrados e a raiva de mentes estreitas. Mas, apesar disso, há entre os homens de cor mais bem-educados e reflexivos em todo o país um sentimento de profundo desgosto, pesar e apreensão devido à ampla difusão e ascendência de algumas teorias do sr. Washington. Esses mesmos homens admiram seu propósito sincero e estão dispostos a perdoar muita coisa por atribuí-la ao esforço verdadeiro de fazer algo que valha a pena. Eles cooperam com o sr. Washington da forma mais conscienciosa possível, e, de fato, não é um tributo banal ao poder e ao tato desse homem, manobrando como pode entre interesses e opiniões tão diversos, que ele conserve em grande medida o respeito de todos.

Mas abafar críticas de oponentes honestos é algo perigoso. Isso acaba condenando alguns dos melhores crí-ticos a um infeliz silêncio e à paralisia na ação, e outros a se perderem em um discurso tão intempestivo e passional que afastará ouvintes. A crítica honesta e vigorosa daqueles cujos interesses são diretamente afetados — críticas de escritores pelos leitores, do governo pelos governados, dos que lideram pelos liderados — é a alma da democracia e a salvaguarda da sociedade moderna. Se os melhores negros americanos recebem por pressão externa um líder que não tinham reconhecido antes, tem-se aqui algum ganho palpável. Contudo, há também uma perda irreparável — a perda daquela educação peculiarmente preciosa que um grupo obtém quando, por meio de buscas e críticas, encontra e nomeia seus próprios líderes. A maneira como isso é feito é ao mesmo tempo o mais simples e o mais interessante problema do crescimento social. A história não é senão o registro dessa relação liderança-grupo; e, mesmo assim, o quão infinitamente cambiantes são o seu tipo e caráter! E de todas as formas e tipos, o que pode ser mais educativo do que a liderança de um grupo dentro de um grupo — esse curioso movimento duplo em que o progresso real pode ser negativo e o avanço de fato pode ser relativamente retrógrado. Tudo isso inspira e desespera o estudioso da sociedade.

Acontece que, no passado, o negro americano teve uma experiência educativa ao escolher os líderes de seu grupo, fundando assim uma dinastia peculiar que vale a pena estudar à luz das presentes condições. Quando paus, pedras e bestas formam o único ambiente de um povo, sua atitude é basicamente a de firme oposição e conquista das forças naturais. Mas quando à terra e ao bruto é adicionado um ambiente de homens e ideias, então a atitude do grupo cativo pode tomar três formas principais: um sentimento de revolta e vingança; uma tentativa de ajustar todo pensamento e ação à vontade da maioria; ou, finalmente, um esforço determinado para a autorrealização e o autodesenvolvimento apesar da opinião envolvente. A influência de todas essas atitudes em várias épocas pode ser vista na história do negro americano, e na evolução dos seus sucessivos líderes.

Antes de 1750, enquanto o fogo da liberdade africana ainda queimava nas veias dos escravos, havia na lide-rança ou nas tentativas de liderança apenas o móvel da revolta e da vingança — exemplificado pelos terríveis maroons,3 pelos negros dinamarqueses4 e por Stono de Cato,5 cobrindo as Américas com o medo da insurreição. As tendências liberalizantes da última metade do século XVIII trouxeram, junto com relações mais amistosas entre brancos e negros, ideias de ajuste e assimilação definitiva. [...].

A dura tensão financeira e social após a guerra esfriou boa parte do ardor humanitário anterior. A impaci-ência e a decepção dos negros com a continuação da escravidão e da servidão exprimiram-se em dois movi-mentos. Os escravos do Sul, incitados sem dúvida por vagos rumores da revolta haitiana, realizaram três fero-zes tentativas de rebelião — em 1800, sob a liderança de Gabriel na Virgínia; em 1823, com Vesey, na Caro-lina; e em 1831, novamente na Virgínia, sob o terrível Nat Turner.6 Nos estados livres, por outro lado, houve uma nova e curiosa tentativa de autodesenvolvimento. Na Filadélfia e em Nova Iorque, a exigência da cor

3 Maroons era o nome que se dava aos escravos fugitivos nas Índias Ocidentais, durante os séculos XVII e XVIII, ou a seus descendentes (N. do T.).4 Nome atribuído a uma tentativa insurrecional que teve lugar em Charleston, Carolina do Sul, no começo dos anos 1820, liderada por Vesey, o dinamarquês, assim conhecido por ser originário da ilha caribenha de St. Thomas, então colônia da Dinamarca. A tentativa foi abortada: 35 homens foram enforcados, inclusive Vesey (N. do T.).5 A Rebelião de Stono, ou de Cato, foi uma insurreição de negros, ocorrida em 9 de setembro de 1739, na Carolina do Sul. Considerada uma das mais importantes rebeliões de escravos antes da Revolução Americana (N. do T.).6 Nathaniel Turner foi o líder de uma rebelião de negros americanos ocorrida em 2 de outubro de 1800, no condado de Southampton, Virgínia (N. do T.).

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acabou ocasionando a saída dos participantes negros das igrejas brancas e a formação de uma instituição so-ciorreligiosa peculiar para os negros, conhecida como a Igreja Africana — uma organização que ainda está ativa e controla, em suas várias ramificações, mais de um milhão de homens.

O dramático discurso de Walker7 contra as tendências da época mostrou o quanto o mundo estava mudan-do depois da chegada do algodão. Por volta de 1830, a escravidão parecia irremediavelmente entranhada no Sul, e os escravos estavam totalmente humilhados na submissão. Os negros livres do Norte, inspirados pelos imigrantes mulatos das Índias Ocidentais, começaram a mudar suas demandas: eles reconheceram a escravidão dos escravos, mas insistiram em que eram homens livres e buscaram a assimilação e o amálgama com a nação nos mesmos termos que os outros homens. Dessa forma, Forten e Purvis da Filadéfia, Shad de Wilmington, Du Bois de New Haven, Barbados de Boston e outros lutaram de forma singular e unida como homens, se-gundo disseram, e não como escravos; como “pessoas de cor” e não como “negros”. A tendência dominante da época, entretanto, negou a eles o reconhecimento, a não ser em casos individuais e excepcionais, conside-rando-os como pertencentes aos desprezados negros, e eles logo se viram tendo de lutar para manter até mes-mo os direitos que anteriormente possuíram como homens livres: o voto, o trabalho e a liberdade de ir e vir. Esquemas de migração e colonização surgiram em seu meio, mas foram recusados por eles, que enfim se vol-taram para o movimento abolicionista como um último refúgio.

Agora, liderados por Remond, Nell, Wells-Brown e Douglass, começava uma nova época de autoafirmação e autodesenvolvimento. De fato, a liberdade e a assimilação definitivas eram o ideal dos líderes, mas a afirmação dos direitos humanos do negro por si mesmo era a principal fonte possível de esperança, e a ação de John Brown8 foi o ponto extremo dessa lógica. Depois da guerra e da emancipação, a grande figura de Frederick Douglass, o maior dos líderes negros americanos, ainda era dominante. A autoafirmação, especialmente em linhas políticas, era o programa principal, e depois de Douglass vieram Elliot, Bruce e Langston, e os políticos da Reconstrução, e, menos notórios, mas de maior importância social, Alexander Crummell e o bispo Daniel Payne.

Daí veio a Revolução de 1876, a supressão do direito de voto dos negros, a mudança e a flutuação de ideais e a busca por novas luzes na longa noite. Douglass, na sua velhice, ainda se mantinha bravamente alinhado com os seus ideais de juventude — assimilação definitiva através da autoafirmação e ponto final. Por um tempo, Price ascendeu como uma nova liderança, destinado, parecia, não a capitular, mas a reafirmar os velhos ideais sob uma forma menos repugnante ao Sul branco. Mas ele faleceu em seu auge. Então veio o novo líder. Qua-se todos os anteriores tinham se tornado líderes pelo sufrágio silencioso de seus companheiros e tinham pro-curado liderar seu povo sozinhos e, geralmente, com exceção de Douglass, eram pouco conhecidos para além de sua própria raça. Mas Booker T. Washington se tornou essencialmente o líder não de uma, mas de duas raças — um homem de compromisso entre o Sul, o Norte e o negro. Naturalmente os negros ressentiram-se, primeiro de forma amarga, dos sinais de compromissos que abriam mão de seus direitos políticos e civis, mes-mo que fossem trocados por chances maiores de desenvolvimento econômico. O Norte rico e dominador, no entanto, não estava apenas cansado do problema racial, mas também estava investindo pesado nas empresas sulistas e via com bons olhos qualquer método de cooperação pacífica. Assim, pela opinião nacional, os negros começaram a reconhecer a liderança do sr. Washington; e a voz da crítica se calou.

O sr. Washington representa no pensamento negro uma velha atitude de ajustamento e submissão, mas o ajustamento nesta época peculiar torna o seu programa singular. Esta é uma época de desenvolvimento eco-nômico fora do normal, e o programa do sr. Washington naturalmente assume um enfoque econômico, cons-tituindo um evangelho do trabalho e do dinheiro a tal ponto que, aparentemente, acaba eclipsando os objeti-vos maiores da vida. Além disso, esta é uma época em que as raças mais avançadas estão entrando em contato mais próximo com as raças menos desenvolvidas e o sentimento racial portanto intensificou-se; e o programa do sr. Washington praticamente aceita a suposta inferioridade das raças negras. Mais uma vez, na nossa própria terra, a reação ao sentimento do tempo da guerra deu impulso ao preconceito de raça contra os negros, e o sr.

7 David Walker, líder religioso, que evidenciou as contradições entre a religião cristã e o regime escravista (N. do T.).8 John Brown, abolicionista americano, defendia a insurreição armada como forma de luta contra o regime escravista (N. do T.).

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Washington renuncia a muitas das altas demandas dos negros como homens e cidadãos americanos. Em outras épocas de preconceito intenso, toda a tendência de autoafirmação dos negros foi mobilizada. Agora é uma política de submissão que é defendida. Na história de quase todas as outras raças e povos, a doutrina pregada em tais crises tem sido a de que o autorrespeito humano vale mais que terras e casas, e que um povo que de-siste voluntariamente de tal respeito, ou deixa de lutar por ele, não é digno de civilizar.

Em resposta a isso, tem sido dito que o negro só pode sobreviver através da submissão. O sr. Washington claramente pede que as pessoas negras renunciem, ao menos por agora, a três coisas:

Em primeiro lugar, ao poder político.Em segundo, a insistir nos direitos civis.Em terceiro, à educação superior da juventude negra: que os negros concentrem todas suas energias na edu-

cação industrial, no acúmulo de riqueza e na conciliação com o Sul. Essa política foi insistentemente e cora-josamente advogada por mais de quinze anos e foi triunfante por talvez dez anos. Como resultado dessa pro-posta de paz, o que veio em troca? Nesses anos essas foram as consequências:

1. A privação do direito de voto do negro.2. A criação legal de uma condição distinta de inferioridade civil para o negro.3. O firme recuo da ajuda de instituições para a educação superior do negro.

Esses movimentos não são, é claro, resultados diretos dos ensinamentos do sr. Washington, mas a sua pro-paganda tem, sem sombra de dúvidas, contribuído para que se concretizem mais rapidamente. A questão, então, surge: será possível, e provável, que nove milhões de homens possam ter progresso efetivo nas pautas econômicas se estão privados de direitos políticos, reduzidos a uma casta servil, e tendo apenas uma pequena chance para desenvolver seus homens mais brilhantes? Se a história e a razão fornecem alguma resposta clara para essas perguntas, trata-se de um enfático NÃO. E o sr. Washington assim enfrenta o triplo paradoxo de sua carreira:

1. Ele está nobremente se esforçando para fazer com que os negros se tornem artesãos, empresários e donos de propriedades, mas é praticamente impossível, sob os métodos modernos de competição, que trabalhadores e proprietários possam defender seus direitos e viver sem o direito de sufrágio.

2. Ele insiste no autorrespeito e na parcimônia, mas ao mesmo tempo aconselha uma submissão silenciosa à in-ferioridade cívica, o que certamente irá minar a humanidade de qualquer raça no longo prazo.

3. Ele advoga a escola primária pública9 e o treinamento técnico, e deprecia as instituições de educação superior, mas nem as escolas primárias para os negros nem a própria Tuskegee poderiam funcionar por um único dia se não fosse pelos professores formados nas universidades negras, ou formados por seus graduados.

Esse triplo paradoxo da posição do sr. Washington é objeto de críticas por dois tipos de americanos de cor. Um é descendente espiritual de Toussaint, o Salvador,10 através de Gabriel, Vesey e Turner, e eles representam a atitude da revolta e da vingança. Eles odeiam cegamente o Sul branco e desconfiam da raça branca em geral e, até onde conseguem concordar quanto a uma ação definida, acreditam que a única esperança do negro está na emigração para além das fronteiras dos Estados Unidos. E mesmo assim, por ironia do destino, nada efeti-vamente tornou esse programa mais inviável do que a trajetória recente dos Estados Unidos em relação aos povos mais fracos e escuros das Índias Ocidentais, do Havaí e das Filipinas — pois para qual parte do mundo poderíamos ir para ficarmos livres das mentiras e da força excessiva?

Outros negros que não concordam com o sr. Washington têm até agora falado pouco em voz alta. Eles desa-provam orientações dispersas e discordâncias internas, e não gostam, especialmente, que sua crítica justa de um

9 No original, common school: uma escola primária pública (N. do T.).10 Referência a Toussaint Louverture (1743-1803), líder da rebelião de escravos que conquistou a independência do Haiti (N. do T.).

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homem honesto e útil se torne uma desculpa para uma descarga geral de veneno por parte de oponentes de mente rasa. Mesmo assim, as questões envolvidas são tão fundamentais e sérias que é difícil saber como homens como Grimkes, Kelly Miller, J.W.E. Bowen e outros representantes desse grupo podem permanecer silenciosos por muito mais tempo. Tais homens se sentem, em consciência, obrigados a pedir três coisas a esta nação:

1. O direito de votar. 2. A igualdade civil.3. A educação da juventude conforme suas capacidades.

Eles reconhecem o serviço inestimável que o sr. Washington prestou ao aconselhar paciência e cortesia ao se fazer tais exigências. Eles não pedem que homens negros ignorantes votem enquanto homens brancos igno-rantes são impedidos de fazê-lo, ou que não se aplique alguma restrição razoável ao sufrágio. Eles sabem que o baixo nível social da maioria da raça é responsável por boa parte do preconceito que ela sofre, mas também sabem, como a nação sabe, que o implacável preconceito de cor é mais frequentemente a causa do que o resul-tado da degradação do negro. Eles buscam a extinção dessa relíquia do barbarismo, e não o seu encorajamen-to e adulação sistemáticos por parte de todas as agências do poder social, da Associated Press à Igreja de Cris-to. Eles advogam, com o sr. Washington, um sistema amplo de escolas primárias negras suplementado por uma completa formação técnica, mas eles estão surpresos que um homem com a visão do sr. Washington não con-siga ver que nenhum sistema educacional jamais deixou de basear-se, ou pode deixar de basear-se, em qual-quer outro fundamento que não o de faculdades e de universidade bem-equipadas. Eles insistem ainda que há uma demanda por algumas instituições desse tipo em todo o Sul para formar os melhores da juventude negra como professores, profissionais liberais e líderes.

Esse grupo de homens celebra o sr. Washington pela atitude conciliadora com o Sul branco. Eles aceitam o “Compromisso de Atlanta” em sua interpretação mais ampla; reconhecem, como ele, que há muitos sinais promissores e muitos homens de visão justa e altos propósitos nessa seção do país. Eles sabem da dificuldade das tarefas a serem realizadas nessa região já tão sofrida. Mesmo assim, eles insistem em que o caminho da verdade e do direito está na reta honestidade, e não na bajulação indiscriminada; em elogiar aqueles do Sul que fazem o bem e criticar sem concessões aqueles que fazem o mal; em tirar partido das oportunidades à mão e pedir que os seus companheiros façam o mesmo, mas, ao mesmo tempo, lembrando que apenas uma adesão firme aos seus ideais e aspirações superiores irá manter esses mesmos ideais no quadro das possibilidades. Eles não esperam que o livre direito de voto, de gozar direitos civis e de ter uma educação formal chegarão de uma hora para outra. Eles não esperam ver a tendenciosidade e os preconceitos sumindo com o soar de uma trombeta, mas estão absolutamente certos de que o caminho para um povo ganhar seus direitos não é jogá-los voluntariamente no lixo e insistir que não os quer; de que o caminho para um povo ganhar respeito não é o da diminuição e ridi-cularização de si mesmo, mas, pelo contrário, que os negros devem continuar insistindo, nos períodos eleitorais ou não, em que votar é necessário para a humanidade moderna, que a discriminação de cor é um barbarismo e que os meninos negros precisam da educação da mesma forma que os meninos brancos.

Ao não declarar abertamente e sem equívocos as demandas legítimas do seu povo, mesmo à custa de se opor a um líder honrado, as classes pensantes dos negros americanos estariam abdicando de uma grande responsa-bilidade — responsabilidade com eles mesmos, responsabilidade com as massas em luta, responsabilidade com as raças mais escuras de homens cujo futuro depende muito deste experimento americano, mas especialmente a responsabilidade com a nação, esta pátria comum. É errado encorajar um homem ou um povo a fazer o mal. É errado ajudar e encorajar um crime nacional pelo simples fato de que é impopular não agir de tal forma. O espírito crescente de reconciliação e benevolência entre o Norte e o Sul após a diferença horripilante que ocorreu há uma geração deveria ser uma fonte de grande felicidade para todos, e especialmente para aqueles cujo sofrimento causou a guerra, mas se essa reconciliação for marcada pela escravidão industrial e pela morte cívica destes mesmos homens negros, com uma legislação impondo-lhes permanentemente uma posição de inferioridade, então esses mesmos negros, se são mesmo homens, estão obrigados, por todas as considerações

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de patriotismo e lealdade, a se opor a isso por todos os métodos civilizados, mesmo que tal oposição envolva desacordos com o sr. Booker T. Washington. Nós não temos o direito de ficar calados enquanto as inevitáveis sementes são semeadas para uma colheita de desastres para nossas crianças, negras e brancas.

Primeiro, é dever do homem negro julgar o Sul de forma precisa. A atual geração de sulistas não é respon-sável pelo passado e não deve ser cegamente odiada ou culpada por isso. Além disso, para nenhuma outra classe o apoio indiscriminado à recente atitude do Sul em relação aos negros é mais repulsiva que para as me-lhores mentes do Sul. O Sul não é “sólido”, é uma terra em processo de mudanças sociais, em que forças de todos os tipos estão lutando pela supremacia. E louvar o mal que o Sul comete hoje é tão errado quanto con-denar o bem. A crítica precisa e com amplitude de visão é o que o Sul precisa — em nome dos seus próprios filhos e filhas brancos, e para garantir um desenvolvimento mental e moral saudável e sólido.

Hoje a atitude dos brancos sulistas não é, como muitos acreditam, igual em todos os casos. O Sulista igno-rante odeia o negro, os trabalhadores receiam sua competição, os fazedores de dinheiro desejam usar sua mão de obra, alguns entre os educados percebem uma ameaça à sua ascensão, enquanto outros — geralmente os filhos dos senhores de escravos — desejam ajudá-los a crescer. A opinião nacional tem fortalecido esta última classe ao manter as escolas primárias dos negros e ao proteger parcialmente a propriedade, a vida e o corpo do negro. Pela pressão dos fazedores de dinheiro, o negro corre o risco de ser reduzido à semiescravidão, espe-cialmente nos distritos rurais. Os trabalhadores, e alguns entre os educados que têm medo do negro, se junta-ram para acabar com o seu direito de voto, e alguns encorajaram a sua deportação. Enquanto isso, as paixões dos ignorantes são abertamente estimuladas para linchar e abusar do homem negro em geral. Louvar esse in-tricado turbilhão de pensamentos e preconceitos não faz sentido; atacar indiscriminadamente “o Sul” é injus-to; mas usar o mesmo fôlego elogiando o governador Aycock,11 expondo o senador Morgan, discutindo com o sr. Thomas Nelson Page12 e denunciando o senador Ben Tillman13 não é apenas saudável, mas o dever im-perativo dos homens negros pensantes.

Seria injusto com o sr. Washington não reconhecer as várias oportunidades em que ele se opôs a movimen-tos no Sul que trataram os negros de forma injusta. Ele enviou memoriais para as convenções constitucionais da Lousiana e do Alabama. Ele se pronunciou contra o linchamento e em outras vezes usou sua influência aberta ou silenciosamente contra esses esquemas e acontecimentos infelizes e sinistros. Apesar disso, é também igualmente verdade que, no geral, a clara impressão deixada pela propaganda do sr. Washington é de que, primeiro, se justifica a atitude atual que o Sul tem em relação ao negro por causa da degradação deste; segun-do, de que a causa principal do fracasso do negro em ascender mais rápido é a sua educação errônea no passa-do; e, terceiro, de que sua futura ascensão depende principalmente dos seus próprios esforços. Cada uma dessas proposições é uma perigosa meia-verdade. As verdades suplementares nunca devem ser perdidas de vis-ta: primeiro, a escravidão e o preconceito de raça são poderosas, se não suficientes, causas para a posição do negro na sociedade; segundo, escolas técnicas e escolas primárias foram implantadas muito lentamente, porque tiveram que esperar pela formação de professores negros em instituições superiores — sendo assim extrema-mente duvidoso que algum desenvolvimento essencialmente diferente fosse possível antes de 1880 (e certa-mente uma Tuskegee era inimaginável antes de 1880); e terceiro, se é uma grande verdade que o negro deve se esforçar, e muito, para se ajudar, é igualmente verdade que, a menos que seu esforço seja não apenas apoia-do, mas instigado e encorajado, pela iniciativa do grupo circundante mais rico e mais sábio, ele não pode es-perar por um grande sucesso.

O sr. Washington deve ser especialmente criticado pela sua falha em perceber e enfatizar este último ponto. Sua doutrina tende a levar os brancos, do Norte e do Sul, a passar o fardo do problema do negro para os om-

11 Charles Brantley Aycock, governador democrata da Carolina do Norte entre 1901 e 1905. Conhecido como o governador da educação pela orientação favorável ao sistema público de ensino (N. do T.).12 Thomas Nelson Page, originário da Virgínia, contribuiu, como escritor, para a idealização da vida do Sul antes da Guerra Civil (N. do T.).13 O líder político Benjamin Ryan Tillman, governador da Carolina do Sul entre 1890 e 1894, defendia posições abertamente racistas (N. do T.).

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bros do negro e a se colocarem à parte, como espectadores críticos e especialmente pessimistas, quando na verdade esse fardo é responsabilidade da nação e as mãos de nenhum de nós estarão limpas se nós não direcio-narmos nossa energia para a correção desses grandes males.

O Sul deve ser levado, por meio de uma crítica franca e honesta, a afirmar o que tem de melhor em si e cumprir plenamente o seu dever para com a raça em relação à qual errou e ainda está errando cruelmente. O Norte — coparceiro na culpa — não pode eximir sua consciência cobrindo-a com ouro. Não podemos resol-ver o problema apenas com diplomacia e amabilidade, ou pela simples “política”. Quando o pior tornar-se o péssimo, poderá a fibra moral desse país sobreviver à lenta asfixia e ao assassinato de nove milhões de ho-mens?

Os homens negros da América têm um dever a cumprir, um dever difícil e delicado — um movimento adiante que deve se opor a uma parte do trabalho de seu maior líder. Quando o sr. Washington prega parci-mônia, paciência e formação técnica para as massas, nós devemos segurar sua mão e lutar com ele, regozijando-nos na sua honra e glorificando-nos na força desse Josué chamado por Deus e pelo homem à liderança da multidão acéfala. Mas se o sr. Washington legitimar a injustiça, seja no Norte ou no Sul, não der o devido valor ao privilégio e ao dever do voto, minimizar os efeitos castradores das distinções de casta e se opuser à ambição e à formação superior para nossas mentes mais brilhantes — enquanto ele, o Sul ou o Norte agirem de tal forma —, nós devemos nos opor a ele com firmeza e sem cessar. Devemos lutar com todos os métodos pacíficos e civilizados pelos direitos que o mundo concede aos homens, agarrando-nos com firmeza às grandes palavras que os filhos dos Pais voluntariamente esqueceram: “Nós acreditamos que essas verdades são eviden-tes: que todos os homens são criados iguais; que são dotados por seu Criador de certos direitos inalienáveis; entre eles estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade.

Fonte | The souls of black folk, edição online disponível em: <www.bartleby.com/114/index.html>

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1905 | JAck london

Revolução*

Jack london (1876-1916) foi um dos mais famosos escritores estadunidenses na virada dos séculos XIX-XX, tendo publicado mais

de 50 livros. obrigado a trabalhar desde muito cedo, percorreu várias regiões dos euA, chegando ao Alaska, que o inspirou a escrever um

de seus mais célebres romances: Caninos brancos. sempre com base em suas aventuras e experiências, rompeu com formas literárias convencionais, adotando, inclusive, o que se poderia chamar de

jornalismo participativo no livro O povo no abismo, no qual london fez uma denúncia das mazelas que assolavam a vida dos moradores

de rua de londres, então um dos principais centros do capitalismo mundial. Aos 20 anos, filiou-se ao partido socialista Americano,

militando igualmente na organização anarcossindicalista Industrial Workers of the World. entre seus escritos sobre o socialismo, destaca-

se a coleção de ensaios Revolution, na qual se evidencia a confiança do autor na derrocada do sistema baseado na exploração capitalista

da força de trabalho e na vitória da revolução socialista. (g.n.)

Outro dia, recebi uma carta. Era de um homem do Arizona. Começava com um: “Caro camarada” e termi-nava: “Seu, até a Revolução”. Respondi, e minha carta começava: “Caro camarada”, e terminava: “Seu, até a Revolução”. “Nos Estados Unidos existem 400.000 homens, quase 1.000.000 de homens e mulheres que co-meçam suas cartas com um: “Caro camarada” e as terminam com: “Seu, até a Revolução”. Na Alemanha existem 3.000.000 de homens que começam suas cartas com um: “Caro camarada” e as terminam com: “Seu, até a Revolução”; na França, 1.000.000 de homens; na Áustria, 800.000 homens; na Bélgica, 300.000; na Itália, 250.000; na Inglaterra, 100.000; na Suíça, 100.000; na Dinamarca, 55.000; na Suécia, 50.000; na Ho-landa, 40.000; na Espanha, 30.000 homens — todos camaradas e revolucionários.

Esses são números que eclipsariam os grandes exércitos de Napoleão e Xerxes. Mas não são números de con-quista ou manutenção da ordem estabelecida, mas de conquista e revolução. Eles compõem, quando se faz um cômputo geral, um exército de 7.000.000 de homens que, de acordo com as condições de hoje, estão lutando com todas as forças pela conquista das riquezas do mundo e pela derrubada completa da sociedade existente.

Nunca houve nada na história do mundo como este tipo de revolução. Não existe nada análogo a isso na Revolução Americana ou na Revolução Francesa. É colossal, único. Outras revoluções, comparada com esta, são asteroides comparados com o sol. Sozinha em sua classe, a primeira revolução mundial num mundo que está cheio de revoluções. Mas não é só isso. É ainda o primeiro movimento organizado de homens a se tornar um movimento mundial, limitado apenas pelos confins do planeta.

Em muitos aspectos, essa revolução não é como nenhuma revolução vista anteriormente. Não é esporádica. Não é uma labareda de descontentamento popular, que se levanta num dia e morre no mesmo dia. É mais antiga do que a geração atual. Tem história e tradições e um rol de mártires que só perde para o Cristianismo. Tem também, no tempo, uma miríade de expressões literárias, mais imponente, científica e acadêmica do que qualquer literatura de quaisquer revoluções anteriores.

Esses homens chamam-se de “camaradas”, uns aos outros, camaradas na Revolução Socialista. Essa não é uma palavra vazia ou sem sentido, ou uma mera expressão de efeito. Ela junta os homens como irmãos, que é como os homens devem estar juntos.

Quem está junto, ombro a ombro, sob a bandeira vermelha da revolta? Aliás, essa bandeira vermelha repre-senta a fraternidade dos homens e não representa a força incendiária que instantaneamente se conecta ao ima-ginário assustado da burguesia. A fraternidade dos revolucionários é viva e quente. Ultrapassa as fronteiras geográficas, transcende os preconceitos de raça e tem mesmo dado provas de ser mais forte do que o Quatro

* Extrato do texto, no original, Revolution and other essays.

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de Julho, a águia expansionista do americanismo dos nossos Pais Fundadores. Os trabalhadores socialistas franceses e os trabalhadores socialistas alemães esquecem a Alsácia e a Lorena, e quando a guerra ameaça, aprovam resoluções declarando que, como trabalhadores e camaradas, não têm conflitos uns com os outros. No outro dia mesmo, quando o Japão e a Rússia se jogaram um contra o outro, os revolucionários japoneses redigiram a seguinte mensagem para os revolucionários da Rússia: “Caros camaradas — o seu governo e o nosso recentemente se meteram numa guerra para satisfazer suas tendências imperialistas, mas, para nós, socia-listas, não há fronteiras, raças, países ou nacionalidades. Nós somos camaradas, irmãos e irmãs, e não há razão para travar este combate. Os seus inimigos não são o povo japonês, mas o nosso militarismo e o chamado patriotismo. O patriotismo e o militarismo são nossos inimigos comuns”.

Em janeiro de 1905, por todos os Estados Unidos, os socialistas fizeram grandes comícios para expressar simpatia aos camaradas em luta, os revolucionários da Rússia, e mais especificamente, para oferecer o que é essencial numa guerra: coletar dinheiro e enviá-lo aos líderes russos.

Este apelo por dinheiro e a resposta imediata encontrada, e a própria existência de tal apelo, dão uma de-monstração marcante e prática da solidariedade internacional dessa revolução mundial: “Sejam quais forem os resultados imediatos da atual revolta na Rússia, a propaganda socialista neste país recebeu um impulso sem precedentes na história das guerras modernas de classes”. A batalha heroica por liberdade está sendo travada quase exclusivamente pela classe trabalhadora russa sob a liderança intelectual dos socialistas russos, mais uma vez demonstrando assim o fato de que trabalhadores com consciência de classe se tornaram a vanguarda de todos os movimentos libertadores dos tempos modernos.

Aqui há 7 milhões de camaradas envolvidos num movimento internacional organizado, revolucionário e mundial. Aqui há uma tremenda força humana. Ela deve ser avaliada. E aqui há romance — um romance tão gigantesco que parece estar acima do alcance dos meros mortais. Esses revolucionários são marcados por gran-de paixão. Eles têm um senso apurado dos direitos pessoais, muita reverência pela humanidade, mas pouca reverência, se é que têm alguma, pelo governo dos mortos. Recusam-se a serem governados pelos mortos. Para a mente burguesa, sua descrença nas convenções dominantes da ordem estabelecida é chocante. Eles riem com desprezo pelos doces ideais e pelos queridos valores morais da sociedade burguesa. E têm a intenção de destruir a sociedade burguesa e a maior parte de seus doces ideais e queridos valores morais, e entre eles, principalmen-te, os relativos à propriedade privada, à sobrevivência dos mais fortes e ao patriotismo — até mesmo ao patrio-tismo.

Tal exército revolucionário, com a força de 7 milhões de membros, é algo para fazer com que os governan-tes e as classes dominantes parem e pensem. O grito desse exército é: “Sem tréguas! Queremos tudo o que vocês têm. Não ficaremos contentes com nada menos do que tudo o que vocês possuem. Queremos em nossas mãos as rédeas do poder e o destino da humanidade. Aqui estão nossas mãos. São mãos fortes. Nós vamos tomar seus governos, seus palácios e toda essa purpúrea vida ociosa de vocês, e nesse dia vocês deverão traba-lhar para ganhar o seu pão como os camponeses no campo ou os famintos e pequenos funcionários de suas metrópoles. Aqui estão nossas mãos. São mãos fortes”.

Possam os governantes e as classes dominantes parar e pensar. Isto é a revolução. E, além disso, estes 7 mi-lhões de homens não são um exército no papel. Sua força de luta no campo de batalha é de 7 milhões. Hoje são 7 milhões de votos nos países civilizados do mundo todo.

Ontem não eram tão fortes. Amanhã serão mais fortes ainda. E eles são combatentes. Amam a paz. Não têm medo da guerra. Eles não querem menos do que destruir a sociedade capitalista existente e tomar posse do mundo todo. Se a lei existente permitir, eles lutam por isto de forma pacífica, no voto. Mas se a lei existente não permitir, e se precisarem usar a força, recorrerão à força. Eles enfrentam a violência com a violência. Suas mãos são fortes e eles não têm medo. Na Rússia, por exemplo, não há sufrágio. O governo executa os revolu-cionários. Os revolucionários matam os funcionários do governo. Os revolucionários respondem à matança legal com o assassinato.

Agora aqui surge uma fase particularmente significativa que seria interessante para a consideração dos go-vernantes. Deixem que eu seja claro. Sou um revolucionário. Mesmo assim sou um indivíduo normal e rela-

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tivamente são. Falo desses e penso nesses assassinos na Rússia como “meus camaradas”. Então, se eles não são discípulos de Tolstoi, nós também não somos. Somos camaradas dos revolucionários. De que vale um movi-mento revolucionário organizado se nossos camaradas não são apoiados em todo o mundo? A evidência de que vale a pena é que nós apoiamos os assassinatos feitos por nossos camaradas na Rússia.

Nossos camaradas na Rússia formaram o que chamam de “Organização de Combate”. Esta Organização de Combate acusou, julgou, considerou culpado e condenou à morte um tal de Sipiaguin, que era ministro do interior. Em 2 de abril, ele foi baleado e morto no Palácio Maryinsky. Dois anos depois, a Organização de Combate condenou à morte e executou outro ministro do interior, Von Plehve. Tendo feito isso, publicou um documento, datado de 29 de julho de 1904, explicitando os porquês da condenação de Von Plehve e sua res-ponsabilidade pelo assassinato. Agora, e indo ao ponto, esse documento foi enviado para todos os socialistas do mundo, e foi publicado por eles em revistas e jornais em todas as partes do mundo. O que importa não é que os socialistas do mundo não tivessem medo de fazer isso, ou que eles tivessem a coragem de fazer isso, mas que eles fizeram isso como uma questão de rotina, publicando o que poderia ser chamado de um documento oficial do movimento internacional revolucionário.

Estes são destaques da revolução esperada, mas também são fatos. E são fatos oferecidos aos governantes e às classes dominantes, não como uma bravata, não para assustá-los, mas para que eles considerem mais seriamen-te a natureza e o espírito dessa revolução mundial. Chegou a hora da revolução exigir consideração. Ela tem se acelerado em cada país civilizado do mundo. O quão mais rápido um país se civilize, mais rápido a revolu-ção nele se acelera. Com a introdução das máquinas no Japão, o socialismo também foi ali introduzido. O socialismo marchou nas Filipinas ombro a ombro com os soldados americanos. Mal haviam ecoado os últimos tiros e já as sedes socialistas estão se formando em Cuba e Porto (sic) Rico. Muito mais significativo é o fato de que nos países aonde a revolução chegou, em nenhum deles o movimento perdeu força. Pelo contrário, o movimento se torna mais forte a cada ano que passa. Como um movimento ativo, a revolução começou obs-curamente há uma geração atrás. Em 1867, sua força eleitoral no mundo era de 30 mil. Em 1871, os votos haviam crescido para atingir 100 mil. Só em 1884 passou para meio milhão. Em 1889, ultrapassou a marca de um milhão. E então ganhou fôlego. Em 1892, o voto socialista passou a 1.798.391; em 1893, para 2.585.898; em 1895, 3.033.718; em 1898, 4.515.591; em 1902, 5.253.054; em 1903, 6.285.374; e no ano da Graça de 1905, ultrapassou a marca de 7 milhões.

Essa labareda da revolução não deixou nem os Estados Unidos ileso. Em 1888, havia apenas 2.068 votos so-cialistas. Em 1902, houve 127.713 votos socialistas. Em 1904, 435.040 votos socialistas. O que atiçou essa cha-ma? Não foram os tempos difíceis. Os primeiros quatro anos do século vinte foram considerados tempos prós-peros, mas naquele período 300 mil homens se juntaram aos revolucionários, mostrando sua desconfiança em relação aos dentes da sociedade burguesa e tomando lugar sob a bandeira vermelha de sangue. No estado em que o escritor escreve, na Califórnia, um em cada doze homens é um revolucionário declarado e registrado.

Uma coisa deve ser claramente compreendida. Este não é um levante espontâneo e vago de uma grande massa de pessoas descontentes e miseráveis — uma resposta cega e instintiva à dor. Pelo contrário, a propagan-da é intelectual; o movimento é baseado na necessidade econômica e está em sintonia com evolução social; enquanto isso as pessoas miseráveis ainda não se revoltaram. O revolucionário não é um escravo miserável e doente vivendo na sarjeta no fundo da fossa social, mas é, principalmente, um trabalhador enérgico, bem ali-mentado, que vê as sarjetas esperando por ele e suas crianças e tenta evitar a queda. As pessoas muito miseráveis são muito desamparadas para ajudarem a si mesmas. Mas elas estão sendo ajudadas, e o dia não está distante quando seus membros irão aumentar as fileiras dos revolucionários.

Outra coisa deve ser claramente entendida. Apesar de homens de classe média e profissionais liberais estarem interessados no movimento, este é, entretanto, uma revolta clara da classe trabalhadora. No mundo todo, é uma revolta da classe trabalhadora. Os trabalhadores do mundo, como uma classe, estão lutando contra os capitalistas do mundo, como uma classe. A chamada grande classe média é uma crescente anomalia na luta social. É uma classe que está desaparecendo (ao contrário do que dizem os estatísticos capciosos) e a sua missão histórica de tampão entre os capitalistas e as classes trabalhadoras acabou de se encerrar. Muito pouco dela

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permanece, senão o lamento de que está sendo esquecida, como os lamentos em tom populista e democrático-jeffersoniano. A luta está em curso. A revolução está aqui e agora, é o mundo dos trabalhadores que está em revolta.

Naturalmente a questão se coloca: por que isto acontece assim? Nenhum mero capricho do espírito pode levar a uma revolução mundial. Capricho não leva à unanimidade. Deve haver uma causa profunda para levar 7 milhões a pensar como se fossem uma cabeça, para fazê-los retirar a confiança nos deuses burgueses e perder a fé em algo tão nobre como o patriotismo. Há uma soma relevante de acusações que os revolucionários for-mulam contra a classe capitalista, mas no momento apenas uma deve ser feita, e é uma acusação à qual o capi-tal nunca respondeu e nunca poderá responder.

A classe capitalista administrou a sociedade e essa administração fracassou. Não só fracassou a adminis-tração, mas fracassou horrivelmente, deploravelmente, de forma ignóbil. A classe capitalista teve uma opor-tunidade que nunca foi proporcionada a qualquer outra classe dominante na história mundial. Ela quebrou a dominação da velha aristocracia feudal e criou a sociedade moderna. Dominou a matéria, organizou a maquinaria da vida e tornou possível uma era fantástica para a humanidade, na qual nenhuma criatura po-dia reclamar que faltava comida e em que todas as crianças teriam oportunidade para a educação e para a ascensão espiritual e intelectual. Dominar a matéria e organizar a maquinaria da vida, tudo isso era possível. Aqui estava a chance, dada por Deus, e a classe capitalista fracassou. Era cega e gananciosa. Fez prosa de doces ideais e de caros valores morais, esfregou os olhos não apenas uma vez, e não diminuiu minimamen-te sua ganância, escangalhando-se num fracasso tão tremendo como tremenda foi a oportunidade que ig-norou.

Mas essa é apenas uma das muitas teias de aranha que envolvem a mente burguesa. Se era cega no passado, é cega hoje e não consegue ver nem entender. Bem, então deixem que a acusação se torne mais definitiva, em termos mais claros e sem erros. Primeiro, reflitam sobre os homens das cavernas. Eles eram criaturas muito simples. Suas cabeças eram inclinadas como a do orangotango e tinham pouca inteligência. Viviam num am-biente hostil, caçado por todo o tipo de vida feroz. Não tinham nenhuma invenção, nem artifícios. Sua efici-ência natural para a coleta de comida era, bem, eles não sabiam nem arar o solo. Com a sua eficiência natural, lutou contra os inimigos carnívoros e conseguiram comida e abrigo. Precisavam fazer tudo isso, senão não teriam se multiplicado e se espalhado pela terra e garantido a sobrevivência de sua prole, de geração em gera-ção, até que se tornassem eu e você.

Os homens das cavernas, com sua eficiência natural, conseguiram o suficiente para comer na maioria das vezes, e nenhum homem das cavernas ficou sem comer sempre. Além disso, viviam uma vida saudável, de portas abertas, vadiando e descansando, e descobriram bastante tempo para exercitar sua imaginação e inven-tar deuses. Isto é, eles não tinham que trabalhar todos os seus momentos acordados para conseguir o que co-mer. As crianças dos homens da caverna (e isso é uma verdade para todas as crianças dos povos selvagens) ti-nham uma infância, e isso quer dizer uma infância feliz de desenvolvimento e brincadeiras.

E agora, como se situa o homem moderno? Considerem os Estados Unidos, o país mais próspero e ilumi-nado do mundo. Nos Estados Unidos há 10 milhões de pessoas vivendo na pobreza. Pobreza é uma condição de vida em que falta comida e abrigo adequados. Nesta condição, um mero padrão de eficiência do trabalho não pode ser assegurado. Nos Estados Unidos há 10 milhões de pessoas que não têm o suficiente para comer. Nos Estados Unidos, porque não têm o que comer, 10 milhões de pessoas não conseguem manter uma medi-da normal de força em seus corpos. Isso significa que 10 milhões de pessoas estão desaparecendo, morrendo, de corpo e alma, devagar, porque não têm o que comer. Por toda essa terra grande, próspera, iluminada, exis-tem mulheres, homens e crianças que vivem na miséria. Em todas as grandes cidades, centenas de milhares, milhões de pessoas, estão segregadas nos guetos, e sua miséria se tornou bestial. Nenhum homem das cavernas passou fome tão crônica quanto eles, nem dormiu de forma tão vil como eles, nem se estragou na podridão e na fome, nem trabalhou tão duramente, nem tantas horas quanto eles trabalharam.

Em Chicago havia uma mulher que trabalhava sessenta horas por semana. Ela era trabalhadora têxtil. Cos-turava botões em roupas. Entre os trabalhadores têxteis de Chicago, o salário médio das tecelãs era de centa-

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vos, mas elas trabalham todas as semanas no ano. O salário médio semanal dos que trabalham no acabamento das roupas era de 1,31 dólares e o número médio de semanas em que estavam empregados era de 27,85 sema-nas por ano. Os ganhos médios anuais das tecelãs eram de 37 dólares e os do pessoal do acabamento, de 42,41. Tais salários significam que não existe infância para as crianças, que as condições de vida são bestiais e que há inanição para todos.

Porém, ao contrário dos homens das cavernas, o homem moderno não consegue comida e abrigo com o trabalho que ele faz por isso. Primeiro, o homem moderno tem de achar um emprego, e muitas vezes ele não tem sucesso. Então, a miséria torna-se aguda. Essa miséria aguda é descrita diariamente nos jornais. Deixem-me citar algumas destas incontáveis histórias.

Na cidade de Nova Iorque, vivia uma mulher chamada Mary Mead. Ela tinha três crianças: Mary, de um ano; Johanna, de dois anos; Alice, de quatro anos. Seu esposo não conseguia achar trabalho. Eles passavam fome. Foram, então, despejados de onde moravam, na rua Steuben, 160. Mary Mead estrangulou seu bebê de um ano; estrangulou Alice, de quatro; e tentou, mas não conseguiu, estrangular Johanna e então tomou ve-neno. O pai disse à polícia: “Uma pobreza infindável levou minha mulher à loucura. Nós vivíamos na rua Steuben, 160, até a semana passada, quando fomos despejados. Eu não conseguia trabalho. Não conseguia sequer ganhar o suficiente para que pudéssemos comer. Os bebês estavam doentes e fracos. Minha mulher chorava constantemente”.

“O Departamento de Assistência está tão sobrecarregado com dezenas de milhares de solicitações de ho-mens desempregados que não consegue lidar com a situação” — New York Commercial, 11 de janeiro de 1905.

Num jornal diário, o homem moderno, porque não consegue trabalhar para comer, anuncia assim: “Ho-mem jovem, boa educação, incapaz de conseguir emprego, disposto a vender, com intuitos experimentais, para médicos e bacteriologista, todos os direitos e títulos ao seu corpo. Endereço para venda é caixa postal 3466” — San Francisco Examiner.

“Frank A. Mallin foi para a estação central de transporte na quarta à noite e pediu para ser preso sob o cri-me de vagabundagem. Disse que estava tentando conseguir trabalho sem sucesso por tanto tempo que estava certo de que era um vagabundo. De qualquer forma, estava tão faminto que precisava ser alimentado. O Juiz policial Graham o sentenciou à prisão por noventa dias” — San Francisco Examiner. Numa sala na Casa Soto em São Francisco, na rua Quatro, número 32, foi encontrado o corpo de W.G. Robbins. Ele ligou o gás. Além disso, encontraram o seu diário, do qual as seguintes passagens foram retiradas: “3 de março — Sem chance de conseguir qualquer coisa aqui. O que farei?”; 7 de março — “Não consegui nada ainda”; 8 de março — “Estou vivendo de bolinhos a cinco centavos por dia”; 9 de março — “Meus últimos vinte e cinco centavos foram gastos com o aluguel do quarto”; 10 de março — “Deus me ajude. Tenho apenas cinco centavos. Não consigo nada para fazer. O que acontecerá? Morrer de fome ou...? Gastei os últimos centavos esta noite. O que farei? Devo roubar, mendigar ou morrer? Em cinquenta anos de vida, nunca roubei, nunca pedi esmola ou passei fome, mas agora estou à beira do abismo e a morte parece ser a última alternativa”; 11 de março — “Fi-quei doente o dia todo — febre alta nesta tarde. Não comi nada hoje ou desde ontem ao meio dia. Minha cabeça, minha cabeça. Adeus para todos”.

Como ficam as crianças do homem moderno nesta mais próspera terra? Na cidade da Nova Iorque, 50 mil crianças vão com fome para a escola todos os dias. Nesta mesma cidade, em 12 de janeiro, um telegrama para todo o país foi mandado a respeito de um caso relatado pelo dr. A.E. Daniel, da Enfermaria para Crianças e Mulheres de Nova Iorque. O caso foi sobre uma criancinha de dezoito meses, que, num bairro pobre, ganha-va por seu trabalho quinze centavos por semana num local altamente insalubre.

“Numa pilha de farrapos num quarto onde mal havia móveis e num frio congelante, foi encontrada hoje, pelo policial McConnon, do posto da avenida Flushing, na avenida Myrtle, número 513, no Brooklyn, mrs. Mary Gallin, morta de fome, com um bebê esquelético de quatro meses chorando no seu peito. Espremidos uns contra os outros, em busca de calor, na outra parte do quarto, estavam o pai, James Gallin, e três crianças, de dois a oito anos de idade. As crianças olhavam para os policiais como animais famintos fariam. Eles estavam famintos e não havia vestígio de comida nesse lar sem conforto” (New York Journal, 2 de Janeiro de 1902).

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Nos Estados Unidos, 80 mil crianças estão dando duro e desperdiçando suas vidas apenas nas indústrias têxteis. No Sul, elas trabalham turnos de doze horas. Nunca veem a luz do dia. Os do turno da noite estão acordados quando o sol aparece jorrando vida e calor sobre o mundo, enquanto os do turno do dia estão nas máquinas antes da aurora e retornam para os seus refúgios miseráveis, chamados de “casas”, depois do escure-cer. Muitos recebem não mais de dez centavos por dia. Há crianças que trabalham por cinco ou seis centavos por dia. Os que trabalham no turno da noite são geralmente mantidos acordados com água fria jogada em seus rostos. Há crianças de seis anos de idade que já tem nas suas costas onze meses no turno da noite. Quando fi-cam doentes, e não podem se levantar das camas para ir ao trabalho, há homens empregados que vão a cavalo, de casa em casa, para induzi-las e ameaçá-las para que se levantem e vão trabalhar. Dez por cento delas con-traem tuberculose. Todas são débeis ruínas, deformadas, atrofiadas mental e fisicamente. Elbert Hubbard diz das crianças-trabalhadoras nas fábricas sulistas de algodão:

“Eu pensei em levantar um dos pequenos trabalhadores para avaliar o seu peso. Em todas as suas trinta e cinco libras de pele e osso passou um tremor de medo, e ele lançou-se à frente para atar um fio quebrado. Eu atraí sua atenção com um toque e lhe ofereci uma moeda de prata de dez centavos. Ele me olhou estupidamen-te com um rosto que poderia ser o de um homem de sessenta anos, tão enrugado, esticado e cheio de dores que seu rosto era. Ele não fazia a menor ideia do que aquele dinheiro significava. Havia dúzias de crianças assim nesta fábrica. Um médico que estava comigo disse que elas estariam provavelmente mortas em dois anos, e seus lugares seriam ocupados por outras — havia muitas delas ainda. A pneumonia leva a maioria delas. Seus sistemas estavam maduros para a doença e quando ela vem, não há resistência, nem resposta. Os remédios simplesmente não atuam — a natureza está mal tratada, batida, desencorajada e a criança afunda num torpor e morre”.

Assim encontramos o homem moderno e a criança do homem moderno nos Estados Unidos, o país mais próspero e iluminado entre todos na Terra. Deve ser lembrado que os exemplos citados são somente exemplos, poderiam ser multiplicados incontáveis vezes. Deve ser também lembrado que o que é verdadeiro para os Es-tados Unidos, vale também para todo o mundo civilizado. Tal miséria não existia para o homem das cavernas. Então, o que aconteceu? O ambiente hostil do homem das cavernas se tornou mais hostil para os seus descen-dentes? A natureza eficiente do homem das cavernas, no sentido de conseguir alimento e moradia, diminuiu no homem moderno para a metade ou para um quarto?

Pelo contrário, o ambiente hostil do homem das cavernas foi destruído. Para o homem moderno isso não mais existe. Todos os inimigos carnívoros, as ameaças diárias de um mundo mais antigo, foram assassinados. Muitas das espécies predadoras extinguiram-se. Aqui e ali, em remotas regiões do mundo, ainda existem os inimigos ferozes do homem. Mas estão longe de ser uma ameaça para a humanidade. O homem moderno, quando quer divertir-se e quebrar a rotina, vai para estas remotas regiões do mundo caçar. Também, em mo-mentos ociosos, lamenta com amargura o passar do “grande jogo”, porque sabe que irá desaparecer da terra num futuro não muito distante.

Também, em relação ao homem das cavernas, não diminuiu a eficiência do homem em conseguir ali-mento e moradia. Na verdade, aumentou cerca de mil vezes. Desde o tempo do homem das cavernas, a matéria foi dominada. Os segredos da matéria foram descobertos. Suas leis foram formuladas. Instrumentos maravilhosos foram feitos e invenções fantásticas, tudo tendendo a aumentar tremendamente a eficiência natural em conseguir alimento e moradia, na agricultura, na mineração, na manufatura, no transporte e nas comunicações.

Do homem das cavernas aos trabalhadores manuais de três gerações atrás, o aumento na eficiência em con-seguir alimentos e moradia foi gigantesco. Nos dias de hoje, em virtude das máquinas, a eficiência dos traba-lhadores manuais de três gerações atrás aumentou muitas vezes. Antigamente, eram necessárias 200 horas de mão de obra humana para colocar 100 toneladas de minério num vagão ferroviário. Hoje, com a ajudada de máquinas, não mais do que duas horas são requeridas para realizar a mesma tarefa. O Departamento de Tra-balho dos Estados Unidos é responsável pela seguinte estatística, mostrando, comparativamente, o recente aumento da eficiência do homem em conseguir alimento e moradia:

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HorAs /MáquInAs HorAs/trABAlHo MAnuAl

Cevada (100 bushels) 09 211

Milho (50 bushels descascados, hastes, 34 228 cascas e folhas cortadas em forragem)

Aveia (100 bushels) 28 265

trigo (50 bushels) 07 160

Carregamento de minério (100 toneladas em vagões) 02 200

Descarregamento de carvão (transporte de 200 toneladas 20 240 de barcos em canais para armazéns a 400 pés de distância)

Ancinhos (50 ancinhos, 12 polegadas) 12 200

Arado (com lâminas, cabos e vigas de carvalho) 03 118

Bushel — medida equivalente a um alqueire.

De acordo com a mesma autoridade, nas melhores condições agrícolas de organização, o trabalho pode produzir 20 bushels de trigo por 66 centavos, ou 1 bushel por 3 centavos e 1/3. Isso foi realizado numa fazenda de boas condições de 10 mil acres na Califórnia e era o custo médio para toda a produção da fazenda. O sr. Carroll D. Wright diz que hoje 4,5 milhões de homens, ajudados por máquinas, são responsáveis por um pro-duto que necessitaria o trabalho de 40 milhões de homens, se produzido manualmente. O professor Herzog, da Áustria, diz que 5 milhões de pessoas, com as máquinas de hoje, empregadas num trabalho socialmente útil, poderiam ser capazes de abastecer uma população de 20 milhões de pessoas em tudo o que fosse indispensável e mais os pequenos luxos da vida, trabalhando uma hora e meia por dia.

Tendo sido a matéria dominada, e aumentada em quase mil vezes a eficiência do homem para conseguir comida e moradia, mesmo assim, a classe capitalista não consegue responder a esta questão. A classe capitalista não pode responder a esta questão. A eficiência do homem das cavernas era menor, então por que milhões de homens modernos vivem mais miseravelmente do que os homens das cavernas? Essa é a pergunta que o revo-lucionário faz, e ele a faz à classe dirigente, à classe capitalista.

Se a capacidade do homem moderno de conseguir comida e moradia é mil vezes maior do que a dos homens das cavernas, então por que existem 10 milhões de pessoas nos Estados Unidos que não comem nem moram de forma apropriada? Se as crianças dos homens das cavernas não tinham que trabalhar, por que nos Estados Unidos 80 mil crianças trabalham hoje só nas indústrias têxteis? Se as crianças dos homens das cavernas não tinham que trabalhar, por que hoje, nos Estados Unidos, existem 1.752.187 crianças trabalhando? Esta é a verdadeira conta nas acusações. A classe capitalista fracassou na administração, está hoje fracassando na admi-nistração. Na cidade de Nova Iorque, existem 50 mil crianças que vão para a escola com fome e existem 1.320 milionários. A questão, porém, não é que a massa de pessoas é miserável porque a classe capitalista apropriou-se da riqueza para si mesma. Longe disso. Na verdade, a questão é que a massa de pessoas é miserável, não porque quer a riqueza apropriada pela classe capitalista, mas porque quer a riqueza que nunca foi criada. Esta rique-za nunca foi criada porque a classe capitalista administra as coisas também de forma irracional e esbanjadora. A classe capitalista, cega e gananciosa, agarrando tudo loucamente, não apenas deixou de fazer a melhor ad-ministração, como fez a pior das administrações. É uma administração extremamente esbanjadora. Esse ponto nunca poderá ser demasiadamente enfatizado.

Tendo em vista o fato de que o homem moderno vive mais miseravelmente do que os homens das cavernas, e que a capacidade de conseguir alimentos e moradia é mil vezes maior, não há outra conclusão possível: a atual administração é extremamente esbanjadora.

Com os recursos naturais do mundo, com as máquinas já inventadas, com uma organização racional da produção e da distribuição e uma eliminação igualmente racional do desperdício, os trabalhadores ativos não teriam que trabalhar mais do que duas ou três horas por dia para alimentar todo o mundo, vestir todo o mun-

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do, dar moradia a todo o mundo, educar todo o mundo e prover pequenos luxos para todo o mundo. Não haveria mais carências materiais e misérias, não mais crianças desperdiçando suas vidas no trabalho, não mais homens, mulheres e bebês vivendo como animais e morrendo como animais. Não só a matéria seria domina-da, mas as máquinas seriam dominadas. Em uma época assim, haveria estímulos melhores e mais nobres do que hoje, quando existe apenas o incentivo do estômago. Nenhum homem, mulher ou criança seria impelido por um estômago vazio. Pelo contrário, eles seriam impelidos a agir como as crianças quando aprendem a soletrar, como meninos e meninas quando estão jogando, como cientistas formulando leis científicas, como inventores aplicando tais e tais leis, como artistas e escultores pintando quadros e modelando argila, como poetas e homens de Estado servindo à humanidade por meio de seus versos e da política. O melhoramento espiritual, intelectual e artístico consequente de tal condição social seria fantástico. Toda a sociedade humana iria para frente como numa onda poderosa.

Essa era a oportunidade da classe capitalista assegurar seu lugar. Menos cegueira, menos ganância e uma administração racional, era tudo o que ela precisava. Uma era maravilhosa seria possível para a raça huma-na. Mas a classe capitalista fracassou. Fez uma civilização de ruínas. Mas a classe capitalista não pode se isentar da culpa. Ela soube da oportunidade que tinha. Seus homens lúcidos falaram-lhe da oportunidade. Acadêmicos e cientistas também o fizeram. Tudo o que disseram está hoje nos livros. Há muitas e terríveis evidências contra ela. Mas ela não escutou. Era muito gananciosa. Levantou-se (como se levanta cotidia-namente), de maneira sem vergonha, nas nossas casas legislativas, e declarou que os lucros eram das classes capitalistas e aí fracassou em aproveitar a oportunidade. Em resumo, impossível sem o trabalho dos bebês e das crianças. E embalou sua consciência no sono de seus doces ideais e queridos valores morais, e permi-tiu que o sofrimento e miséria da humanidade continuassem e aumentassem. Mas a oportunidade ainda está aqui. A classe capitalista foi julgada e está sendo procurada. Sobra para a classe trabalhadora ver o que pode fazer com a oportunidade. “Mas a classe trabalhadora é incapaz”, diz a classe capitalista. “E o que você sabe disso?”, replica a classe trabalhadora. “Porque você fracassou não quer dizer que fracassaremos. Além disso, de qualquer forma, nós vamos tentar. Sete milhões dentre nós dizem isto. E o que você pode dizer disso?”

E o que a classe capitalista pode dizer? Admita-se a incapacidade da classe trabalhadora. Admita-se que a acusação e o argumento dos revolucionários estão errados. Mas os 7 milhões de revolucionários continuam. Sua existência é um fato. A crença em sua capacidade, suas acusações e argumentos, isto é um fato. Seu cons-tante crescimento é um fato. Sua intenção de destruir a sociedade atual é um fato, como também é a sua in-tenção de possuir o mundo com todas as suas riquezas e máquinas de governo. Além disso, é um fato que a classe trabalhadora é muito maior do que a classe capitalista.

A revolução é uma revolução da classe trabalhadora. Como pode a classe capitalista, em minoria, parar esta onda de revolução? O que tem para oferecer? O que oferece? Associações de empregados, injunções, processos civis para saquear a tesouraria dos sindicatos, clamores e tramoias para manter abertas as fábricas, feroz e desa-vergonhada oposição à jornada de trabalho de oito horas, grandes esforços para derrotar as reformas das leis sobre o trabalho infantil, fraudes nos conselhos municípios, fortes lobbies e subornos em cada legislação para a compra de legislação capitalista, baionetas, armas automáticas, cassetetes de policiais, furadores profissionais de greves e detetives armados — essas são as coisas que a classe capitalista está despejando na frente da onda da revolução, tentando, na verdade, fazê-la recuar.

Nas circunstâncias atuais, a classe capitalista hoje é tão cega para a ameaça da revolução como era cega no passado em relação ao seu próprio Deus. Não pode entender o quão precária é sua posição, não pode compre-ender o poder e o presságio da revolução. Continua indo tranquilamente, cultivando doces ideais e queridos valores morais e rastejando sordidamente por benefícios materiais.

Nenhuma classe ou governante derrubados no passado consideraram a revolução que os derrubou, e o mes-mo pode ser dito sobre a classe capitalista de hoje. Em vez de compromissos, em vez de prolongar a duração de sua vida através da conciliação e da retirada de algumas medidas opressivas mais duras sobre a classe traba-lhadora, ela antagoniza a classe trabalhadora, levando-a à revolução.

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Toda greve derrotada nos anos recentes, todo saque legal nas caixas sindicais e toda indústria fechada, força-da a ser aberta,1 levaram os membros da classe trabalhadora que foram diretamente afetados a se virarem para o socialismo às centenas e aos milhares. Mostre ao trabalhador que o seu sindicato fracassou e ele se tornará um revolucionário. Derrote uma greve com uma injunção ou leve um sindicato à falência com um processo civil e os trabalhadores feridos passarão a ouvir a canção dos socialistas e serão para sempre perdidos pelos partidos políticos capitalistas.

O antagonismo nunca embalou a revolução, e o antagonismo é quase tudo o que a classe capitalista oferece. É verdade, oferece algumas poucas antiquadas noções que já foram muito eficientes no passado, mas que não funcionam mais. A liberdade do Quatro de Julho nos termos da Declaração de Independência e dos Enciclo-pedistas Franceses mal se apresenta como oposição nos dias de hoje. Não atrai o trabalhador que teve sua ca-beça rachada pelo cassetete de um policial, que teve a tesouraria do seu sindicato falida por uma decisão judi-cial, ou teve o emprego tomado por alguma invenção economizadora de mão de obra. E a Constituição dos Estados Unidos não parece ser tão gloriosa e constitucional para o trabalhador que vivenciou a prisão ou foi deportado inconstitucionalmente do Colorado. E nem os sentimentos feridos desse trabalhador são ameniza-dos pela leitura dos jornais que declaram que a prisão e a deportação eram fundamentalmente justas, legais e constitucionais. “Que a constituição vá para o inferno”, diz ele, e outro revolucionário foi criado — pela clas-se capitalista.

Em resumo, a classe capitalista é tão cega que não faz nada para aumentar sua vida, enquanto faz tudo para encurtá-la. A classe capitalista não oferece nada que seja limpo, nobre e vivo. Os revolucionários oferecem tudo o que é limpo, nobre e vivo. Eles oferecem serviço, altruísmo, sacrifício, martírio — coisas que mexem com a imaginação das pessoas, tocando seus corações com o fervor que advém do impulso para o bem e é essencial-mente religioso em sua natureza. Mas os revolucionários mordem e sopram. Eles oferecem fatos, estatísticas e argumentos científicos e econômicos. Se os trabalhadores forem meramente egoístas, os revolucionários mos-tram-lhes, matematicamente demonstram para eles que sua condição de vida irá melhorar a partir da revolução. Se o trabalhador for de um tipo mais nobre, movido por impulsos no sentido de um comportamento direito, se tiver coração e espírito, os revolucionários oferecem a ele coisas do espírito e da alma, coisas fantásticas que não podem ser medidas por dólares e centavos, nem poderão ser controladas pelo dinheiro. O revolucionário grita FORA para o erro e a injustiça e advoga a justiça. E, o que é mais importante, canta a eterna canção da liber-dade humana — uma canção de todas as terras, de todas as línguas e de todos os tempos.

Poucos membros da classe capitalista enxergam a revolução. Muitos deles são muito ignorantes e muitos têm muito medo de enxergá-la. É aquela mesma velha história de toda classe dominante decadente na história do mundo. Inchada de poder e posses, embriagada com o sucesso, e amolecida pelo sucesso e pela falta de luta, parecem zangões agarrados no tonel de mel enquanto as abelhas-operárias estão se organizando para acabar com a sua gorda existência. O presidente Roosevelt enxerga vagamente a revolução, está assustado e recua quando a avista. Como ele diz: “Acima de tudo, nós precisamos lembrar que qualquer animosidade de classe no mundo da politica é, se possível, ainda mais malsã, mais destrutiva para o bem-estar nacional do que qual-quer animosidade faccional, religiosa ou de raça”.

Animosidade de classe no mundo político é malsã, segundo o presidente Roosevelt. Mas a animosidade de classe no mundo político é a pregação dos revolucionários. “Deixem que a luta de classes no mundo industrial continue”, eles dizem, “mas estendam a luta de classes ao mundo político”. Como o seu líder, Eugene V. Debs, diz: “Pelo que se sabe da luta de classes, não há bom capitalista e mau trabalhador. Todo capitalista é seu ini-migo e todo trabalhador é seu amigo”.

Aqui a animosidade de classe no mundo político é como uma vingança. Aqui há revolução. Em 1888 havia apenas 2.000 revolucionários deste tipo nos Estados Unidos; em 1900, havia 127 mil revolucionários e em 1904, 435 mil revolucionários. O caráter malsão descrito pela definição do Presidente Roosevelt evidentemen-

1 No jargão das lutas sindicais, indústria fechada (closed shop) é quando os empregados são filiados necessariamente ao sindicato. Indústria aber-ta (open shop), quando este arranjo não existe, conferindo maior margem de manobra aos patrões (N. do T.).

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te floresce e aumenta nos Estados Unidos. Assim é, porque é a revolução que desabrocha e cresce. Aqui e ali, um membro da classe capitalista enxerga num relance claro a revolução e levanta um brado de alerta. Mas sua classe não se levanta. O presidente Eliot de Harvard levantou o grito de alerta: “Sou obrigado a acreditar que existe um claro perigo de socialismo, nunca antes tão iminente na América, em uma forma tão perigosa, porque nunca antes tão iminente numa forma tão bem organizada. O perigo está na obtenção do controle dos sindica-tos pelos socialistas”. E os patrões capitalistas, em vez de dar atenção a esses alertas, estão aperfeiçoando suas organizações para acabar com as greves e tramando mais fortemente do que nunca um ataque geral contra o que é mais caro para os sindicatos — a filiação sindical obrigatória dos trabalhadores. Se o ataque for bem-sucedido, em que medida irá encurtar a expectativa de vida dos capitalistas? É aquela velha, velha história, ainda uma vez e uma vez mais. Os zangões embriagados ainda agarram-se gananciosamente nos tonéis de mel. Hoje possivelmente um dos espetáculos mais divertidos é a posição da imprensa americana diante da revolução. É também um espetáculo patético. E força o espectador a estar atento a uma específica perda de orgulho em sua espécie. Discursos dogmáticos em bocas ignorantes podem fazer deuses rirem, mas deveriam fazer chorarem os homens. E os editores americanos (de uma forma geral) são tão impressionantes a propósito disto! A velha “divisão” e as proposições de que “os homens não são criados livres e iguais” são enunciados grave e sabiamen-te, como coisas recentes e novas provenientes da forja da sabedoria humana. Suas fracas ebulições mostram apenas uma compreensão escolar da natureza da revolução. Parasitas eles mesmos da classe capitalista, servindo à classe capitalista através da modelagem da opinião pública, eles também se agarram, embriagados, aos tonéis de mel.

É claro que isso se aplica apenas à grande maioria dos editores norte-americanos. Se eu disser que todos agem assim, eu iria cometer uma grande ofensa contra a raça humana. Também não seria verdade, porque aqui e ali um editor ocasional enxerga claramente — e, neste caso, governado pelo incentivo do seu estômago, terá medo de dizer o que pensa sobre o assunto. No que concerne à ciência e à sociologia da revolução, o típico editor está há mais ou menos uma geração atrás dos fatos. Ele é intelectualmente preguiçoso, não admite os fatos a menos que sejam aceitos pela maioria, e tem orgulho de seu conservadorismo. É um otimista por ins-tinto, pronto a acreditar que o que deve ser, é. E que não pode acontecer o que não deve de forma alguma acontecer.

De vez em quando, um editor, ao esfregar fortemente os olhos, enxerga, num relance súbito, a revolução e se despe de sua volubilidade inocente, como, por exemplo, o que escreveu no Chicago Chronicle: “Socialistas americanos são revolucionários. Eles sabem que são revolucionários. Já é tempo que outras pessoas devam avaliar o fato”. Uma grande descoberta, e ele se põe a gritar do telhado da casa que nós, de fato, somos revo-lucionários. Ora, é exatamente o que temos feito todos estes anos — gritar dos telhados que somos revolucio-nários, e tentem deter-nos quem puder.

Os tempos deveriam acabar para a seguinte atitude mental: “A revolução é uma atrocidade. Senhor, não há revolução”. Da mesma forma, os tempos deveriam também acabar para esta outra atitude familiar: “O socialis-mo é escravidão. Senhor, nunca deve acontecer”. Não é mais uma questão de dialética, teorias e sonhos. Não há questões sobre isso. A revolução é um fato. Está aqui, agora. Sete milhões de revolucionários, organizados, trabalhando de dia e de noite, estão pregando a revolução — esse evangelho apaixonado, a Fraternidade do Homem. Não é apenas uma propaganda econômica a sangue frio, mas é essencialmente uma propaganda reli-giosa com o fervor de Paulo e de Cristo. A classe capitalista foi acusada. Fracassou no gerenciamento e deverá ser retirada da gerência. Sete milhões de trabalhadores dizem que irão convencer o resto dos trabalhadores a se juntarem a eles e tirarão a classe capitalista da gerência. A revolução está aqui, agora. Parem-na quem puder.

Fonte | LONDON, Jack. Revolution and other essays. Londres: Journeymen Press, 1969. 565 p.

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1910 | emmA goldmAn

patriotismo: o que significa*

emma goldman (1869-1940) nasceu na lituânia. Aos 17 anos, emigrou para os euA, onde estabeleceu relações com o líder anarquista

Alexander Berkman. A partir de então, envolveu-se com as lutas dos trabalhadores, transformando-se em grande oradora. Defendia

também direitos iguais para as mulheres, a homossexualidade e o amor livre num contexto em que as esquerdas no âmbito sindical e

partidário não contemplavam tais questões. emma foi presa em 1901, acusada de incitar o assassinato do presidente McKinley, promotor da

guerra hispano-americana e da incorporação posterior das Filipinas, baleado por um anarquista desempregado que assumiu o crime, mas informou ter ouvido meses antes um discurso de goldman. libertada,

emma fundaria em 1903 a liga pela liberdade de expressão. entre 1906 e 1918 publicou o jornal anarquista Mother Earth, por meio

do qual discutia questões políticas variadas, que iam do controle da natalidade à resistência ao alistamento militar. e é exatamente essa

última questão que vai levá-la, junto com outros líderes da esquerda, novamente à prisão em 1917, quando a lei de espionagem entrou em

vigor, criminalizando a propaganda contra o alistamento. no artigo que se segue, a autora critica o crescimento dos gastos militares, num

momento em que os euA não estavam em guerra. Mais importante ainda, procura demonstrar como o patriotismo é utilizado para justificar o uso da força militar, denunciando um elemento do imaginário político que nos euA e em outros países continua a justificar o recurso à guerra.

goldman argumenta que o discurso cívico aliado ao aparato estatal-militar cumpre a função de submeter o indivíduo e impede a realização

de uma sociedade igualitária. A partir de 1919, quando foi deportada dos euA para a urss, goldman, em seus escritos, manteve-se fiel à

perspectiva anarquista, criticando os regimes que, parecia-lhe, tinham traído sua origem libertária, como foi o caso do regime soviético. nos anos 1960, nos euA, emma goldman foi recuperada por feministas e pacifistas e, recentemente, por militantes contra a guerra do Iraque,

através especialmente de uma das frases que constam deste discurso: “o patriotismo exige lealdade à bandeira, o que significa obediência e

prontidão para matar pai, mãe, irmão e irmã”. (g.n. e C.A.)

O que é o patriotismo? É o amor pelo lugar em que se nasceu, o lugar das lembranças e esperanças, sonhos e aspirações da infância? É o lugar onde, na nossa inocência infantil, observávamos as nuvens fugidias e nos perguntávamos por que não podíamos também correr tão rápido? O lugar onde enumerávamos o bilhão de estrelas brilhantes, aterrorizados pelo medo de que cada uma “fosse um olho” penetrando as profundezas de nossas pequenas almas? É o lugar em que ouvíamos as canções dos pássaros, desejando ter asas para voar, como eles, para terras distantes? Ou o lugar em que sentávamos nos joelhos da mãe, encantados por contos maravi-lhosos de grandes feitos e conquistas? Resumindo, é o amor pelo lugar, cada polegada representando caras e preciosas lembranças de uma infância feliz, alegre e cheia de brincadeiras?

Se isso for patriotismo, poucos americanos de hoje poderiam ser chamados de patriotas, já que o seu lugar de brincadeiras foi transformado em fábricas, moinhos e minas, enquanto sons ensurdecedores de máquinas substituíram a melodia dos pássaros. Nem podemos ouvir mais histórias de grandes feitos, pois as histórias que as mães contam hoje são de tristeza, lágrimas e pesar.

O que é, então, patriotismo? “Senhor, patriotismo é o último reduto dos canalhas”, disse o dr. Johnson. O maior antipatriota de nossos tempos, Leo Tolstoi, define patriotismo como um princípio que irá justificar o treinamento de assassinos em série; uma habilidade que requer melhor equipamento para o exercício do assas-sinato do que a criação de itens necessários à vida como sapatos, roupas e casas; uma habilidade que assegura melhor retorno e maiores glórias do que é capaz o trabalhador médio.

* No original, Patriotism: what it really stands for.

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Outro grande antipatriota, Gustave Hervé, define de forma correta o patriotismo como uma superstição — muito mais nociva, brutal e desumana do que a religião. A superstição da religião surgiu em virtude da incapa-cidade do homem em explicar fenômenos naturais. Isto é, quando o homem primitivo ouvia trovões ou via re-lâmpagos, ele não podia entendê-los e assim concluiu que, por trás deles, haveria forças maiores do que ele pró-prio. Similarmente, ele via uma força sobrenatural na chuva e em várias outras mudanças da natureza. Por outro lado, o patriotismo é uma superstição criada artificialmente e mantida por uma rede de mentiras e falsidades; uma superstição que rouba do homem seu autorrespeito e dignidade e aumenta sua arrogância e presunção.

De fato, presunção, arrogância e egoísmo são as essências do patriotismo. Deixem-me exemplificar. O pa-triotismo acredita que nosso globo está dividido em pequenos lugares, cada qual cercado por portões de ferro. Aqueles que têm a sorte de terem nascido em um lugar em particular, consideram-se melhores, maiores, mais nobres e mais inteligentes do que outros seres humanos que habitam quaisquer outros lugares. Assim, é o de-ver de cada um que vive em tal lugar eleito, lutar, matar e morrer na tentativa de impor sua superioridade sobre os outros.

Os habitantes de outros lugares raciocinam de igual maneira, claro, e o resultado é que, desde a primeira infância, as mentes das crianças são envenenadas com histórias sangrentas sobre os alemães, os franceses, os italianos, os russos etc. Quando a criança alcança a idade adulta, está inteiramente saturada com a crença de que ela é a escolhida pelo próprio Deus para defender seu país contra ataques ou invasões de qualquer estran-geiro. É com esse propósito que estamos exigindo um exército e uma marinha maiores, mais navios de guer-ra e mais munição. É para esse propósito que a América, num curto período de tempo, gastou 400 milhões de dólares. Pense um pouco sobre isso — 400 milhões de dólares tomados do produto do povo. Por certo não são os ricos que contribuem para o patriotismo. Eles são cosmopolitas, perfeitamente adaptados em qualquer lugar. Nós na América sabemos bem que isso é verdade. Os nossos americanos ricos não são franceses na França, alemães na Alemanha ou ingleses na Inglaterra? E esses homens não esbanjam com requintes cosmopolitas fortunas criadas pelo trabalho infantil nas fábricas americanas e por escravos do campo de algodão? Sim, o patriotismo deles é o que tornará possível mandar mensagens de condolências a déspotas como o Tsar russo, quando qualquer contratempo aparece no seu caminho, como o presidente Roosevelt fez em nome do seu povo, quando Sergio foi punido pelos revolucionários russos.1

É o patriotismo que irá ajudar o arquiassassino, Diaz, a destruir milhares de vidas no México, ou que irá ajudar a capturar em solo americano e manter encarcerados em prisões americanas revolucionários mexicanos, sem a menor causa ou razão.

Mas, então, patriotismo não é para aqueles que representam o poder e a riqueza. É bom apenas para o povo. Isso faz lembrar uma das históricas tiradas sábias de Frederico, o Grande, amigo íntimo de Voltaire: “A religião é uma fraude, mas deve ser mantida para as massas”.

Esse patriotismo é de fato uma instituição cara, ninguém irá duvidar depois de considerar as seguintes esta-tísticas. O aumento progressivo de gastos para os principais exércitos e marinhas do mundo durante o último quarto de século é fato grave, que chama a atenção de qualquer atento estudante dos problemas econômicos. Pode ser resumidamente indicado, dividindo-se o intervalo de 1881 a 1905 em períodos de cinco anos, e ob-servando os gastos de várias grandes nações com seus exército e marinha durante o primeiro e o último desses períodos. Desse primeiro período até o último, observamos que os gastos da Grã-Bretanha aumentaram de $2.101.848.936 para $4.143.226.885, os da França, de $3.324.500.000 para $3.455.109.900, os da Alemanha passaram de $725.000.200 para $2.700.375.600, os dos Estados Unidos, de $1.275.500.750 para $2.650.900.450, os da Rússia, de $1.900.975.500 para $5.250.445.100, os da Itália, de $1.600.975.750 para $1.755.500.100 e os do Japão, de $182.900.500 para $700.925.475.

Os gastos militares de cada uma das nações mencionadas aumentaram em cada um dos períodos de cinco anos que foram observados. Durante todo o intervalo entre 1881 e 1905, o dispêndio da Grã-Bretanha com

1 Menção ao atentado, perpetrado pelos revolucionários russos, que tirou a vida do arquiduque Sergio, tio do czar russo (N. do T.).

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seu exército aumentou quatro vezes, o dos Estados Unidos triplicou, o da Rússia dobrou, o da Alemanha au-mentou 35%, o da França aumentou 15%, e o do Japão aumentou quase 500%. Se compararmos os gastos dessas nações com seus exércitos e seus gastos totais durante o período de 25 anos que acaba em 1905, a pro-porção aumentou da seguinte forma: na Grã-Bretanha, os gastos aumentaram de 20% para 37%; nos Estados Unidos, de 15% para 23%; na França, de 16% para 18%; na Itália, de 12% para 15%; no Japão, de 12% para 14%. Por outro lado, é interessante observar que a proporção da Alemanha diminuiu de cerca de 58% para 25%, declínio esse devido ao enorme aumento em despesas imperiais para outros propósitos, posto que o gas-to com o exército no período de 1901 até 1905 foi maior do que em qualquer outro período de cinco anos. As estatísticas mostram que os países cujos gastos com os exércitos foram maiores, em relação ao total das rendas nacionais, são Grã-Bretanha, Estados Unidos, Japão, França e Itália, nessa ordem.

Também podemos observar que os custos de grandes marinhas de guerra são impressionantes. Durante os 25 anos que terminam em 1905, os gastos com marinhas de guerra aumentam da seguinte forma: Grã-Breta-nha, 300%; França, 60%; Alemanha, 600%; Estados Unidos, 525%; Rússia, 300%; Itália, 250% e Japão, 700%. Com a exceção da Grã-Bretanha, os Estados Unidos gastam mais com sua marinha de guerra do que qualquer outra nação, e esses gastos representam uma proporção também maior em relação ao total de gastos nacionais de qualquer outro Estado. No período 1881-1885, o gasto com a marinha de guerra americana era de 6,20 dólares para cada 100 dólares do orçamento do Estado; essa quantia aumentou para 6,60 dólares no período seguinte de cinco anos, para 8,10 dólares nos outros cinco anos, para 11,70 dólares no outro período e 16,40 dólares entre 1901 e 1905. É moralmente certo admitir que os gastos para o atual período de cinco anos irão apresentar um aumento ainda maior.

O custo crescente do militarismo ainda pode ser mais bem demonstrado se o tomarmos sob o ângulo de uma taxa per capita, considerado o conjunto da população. Do primeiro ao último período de cinco anos tomados como base para as comparações aqui feitas, ele tem crescido da seguinte maneira: na Grã Bretanha, de $18,47 para $52,50; na França, de $19,66 para $23,62; na Alemanha, de $10,17 para $15,51; nos Estados Unidos, de $5,62 para 1$3,64; na Rússia, de $6,14 para $8,37; na Itália, de $9,59 para $11,24; e no Japão, de 85 centavos de dólar para $3,11.

É em conexão com esta aproximada estimativa de custo per capita que o peso econômico do militarismo pode ser mais bem avaliado. A conclusão inevitável dos dados disponíveis é a de que o aumento dos gastos com a marinha de guerra e o exército está rapidamente ultrapassando o crescimento da população em cada um dos países considerados no presente cálculo. Em outras palavras, a continuação das demandas crescentes do mili-tarismo ameaça cada uma dessas nações com uma exaustão progressiva de seus homens e recursos.

O terrível desperdício do qual o patriotismo se alimenta deveria ser suficiente para curar homens de inteli-gência mediana dessa doença. Mas o patriotismo exige ainda mais. Do povo é exigido que seja patriota e por esse luxo o povo paga, não apenas apoiando seus “defensores”, mas até mesmo sacrificando seus filhos. O pa-triotismo exige lealdade à bandeira, o que significa obediência e disposição para matar pai, mãe, irmão e irmã.

O argumento usual é que precisamos de um exército ativo para proteger o país de invasões estrangeiras. Qualquer homem e mulher inteligente, porém, sabe que isso é um mito alimentado para assustar e coagir os tolos. Os governos do mundo, conhecendo os interesses uns dos outros, não invadem uns aos outros. Eles aprenderam que podem ganhar mais com a arbitragem internacional de disputas do que com guerras e con-quistas. Na verdade, como disse Carlyle: “A guerra é uma disputa entre dois ladrões que são muito covardes para entrar em suas próprias brigas; assim, eles tiram os rapazes das aldeias, colocam neles uniformes, equipam-nos com armas e os soltam como bestas selvagens uns contra os outros”.

Não é necessário muita sabedoria para recuperar a origem comum de todas as guerras. Tomemos como exemplo a nossa Guerra Hispano-Americana, supostamente um grande acontecimento patriótico na História dos Estados Unidos. Como nossos corações arderam de indignação com os atrozes espanhóis! A verdade é que nossa indignação não irrompeu de forma espontânea. Foi nutrida por meses de agitação nos jornais e surgiu bem depois de Butcher Weyler ter matado muitos nobres cubanos e ultrajado muitas mulheres cubanas. Mes-mo assim, sendo justo com a nação Americana, esta ficou indignada, estava disposta a lutar e o fez bravamen-

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te. Mas, quando a fumaça se dissipou, os mortos foram enterrados e custo da guerra recaiu sobre o povo através do aumento do preço das mercadorias e dos aluguéis — ou seja, quando nos recuperamos da nossa extravagância patriótica — repentinamente despertamos para o fato de que a causa da Guerra Hispano-Ame-ricana era o preço do açúcar; ou, para ser mais claro, que o sangue, o dinheiro e as vidas do povo americano foram usados para proteger o interesse dos capitalistas americanos, que estavam sendo ameaçados pelo governo espanhol. Isso não é um exagero, mas baseia-se em fatos e cálculos efetivos, que podem ser comprovados pela atitude do governo americano em relação à mão de obra cubana. Quando Cuba estava sob firme domínio dos Estados Unidos, os mesmos soldados que foram enviados para libertar Cuba receberam ordens de atirar em trabalhadores cubanos durante a grande greve dos charuteiros, que ocorreu um pouco depois da guerra.

Mas nós não estamos sozinhos em criar guerras por tais motivos. A cortina está começando a ser levantada no que diz respeito aos motivos da terrível Guerra Russo-Japonesa, que custou tantas lágrimas e sangue. E mais uma vez observamos que atrás do feroz Moloch da guerra, está o ainda mais feroz Deus do Comercialis-mo. O ministro russo da guerra, Kuropatkin, durante a Guerra Russo-Japonesa, revelou a natureza secreta desta. Tendo o Tsar e os Grandes Duques investido dinheiro em concessões coreanas, a guerra foi imposta pelo único objetivo de acumular rapidamente altas quantias de dinheiro.

O argumento de que um exército e uma marinha de guerra prontos para o combate representam a maior segurança para a paz é tão lógico quanto a ideia de que o cidadão mais pacífico é aquele que anda mais bem armado. A experiência do dia a dia prova que o indivíduo armado se mostra invariavelmente ansioso para testar sua força. O mesmo também vale historicamente para os governos. Países verdadeiramente pacíficos não desperdiçam vida e energia em preparativos de guerra, e o resultado é a preservação da paz.

De qualquer forma, a exigência por exército e marinha de guerra cada vez maiores não se explica por qual-quer perigo estrangeiro. Ela se deve ao medo do descontentamento crescente das massas e do espírito interna-cional entre os trabalhadores. É para enfrentar o inimigo interno que os poderes de vários países estão se preparando; um inimigo que, quando despertar, será mais perigoso do que qualquer invasor estrangeiro.

Os poderes que têm se dedicado por séculos em escravizar as massas fizeram um estudo detalhado de sua psicologia. Eles sabem que as pessoas são na maioria como crianças cujo desespero, tristeza e lágrimas podem ser transformados em alegria com um pequeno brinquedo. E o quão mais bem enfeitado seja esse brinquedo, mais chamativas suas cores, irá chamar mais a atenção de milhões de cabeças infantis.

O exército e a marinha de guerra são os brinquedos do povo. Para fazê-los mais atraentes e aceitáveis, cen-tenas de milhares de dólares estão sendo gastos para a exibição desses brinquedos. Essa era a intenção do go-verno americano em equipar uma frota de guerra e mandá-la navegar na costa do Pacífico, para que todo ci-dadão americano fosse levado a sentir o orgulho e a glória dos Estados Unidos. A cidade de São Francisco gastou 100 mil dólares para hospedar a frota; Los Angeles, 60 mil; Seattle e Tacoma, em torno de 100 mil dólares. Para hospedar a frota?, disse eu. Para alimentar e embebedar alguns oficiais superiores, enquanto nos-sos “corajosos rapazes” tinham que se amotinar para conseguir comida suficiente. Sim, 260 mil dólares foram gastos em fogos de artifício, teatro e festas, num momento em que homens, mulheres e crianças estavam pas-sando fome nas ruas de todo o país; quando milhares de desempregados estavam dispostos a vender sua força de trabalho por qualquer preço.

Duzentos e sessenta mil dólares! O que não poderia ter sido feito com tamanha quantia? Mas, no lugar de pão e abrigo, as crianças dessas cidades foram levadas para ver a frota de guerra, de modo que ficasse, como um jornal declarou, “uma memória duradoura para a criança”.

Algo maravilhoso para lembrar, não? Os instrumentos da matança civilizada. Se a mente da criança é en-venenada por essas memórias, existe esperança para a realização da verdadeira fraternidade humana?

Nós, americanos, reivindicamos ser um povo amante da paz. Nós odiamos derramamento de sangue; nós nos opomos à violência. Mesmo assim, temos ataques de alegria com a possibilidade de jogar bombas de dina-mite de máquinas voadoras sobre cidadãos indefesos. Nós estamos dispostos a enforcar, eletrocutar ou linchar qualquer um que, por necessidade econômica, arrisque sua própria vida ao atentar contra a vida de algum magnata da indústria. De qualquer forma, nosso coração se enche de orgulho ao pensarmos que a América está

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se tornando a nação mais poderosa da terra e que, finalmente, irá firmar sua bota de ferro no pescoço de outras nações.

Essa é a lógica do patriotismo.Considerando as consequências maléficas que o patriotismo gera para o homem comum, ele não se compa-

ra com o prejuízo e danos que impõe ao próprio soldado — essa pobre vítima, iludida pela superstição e igno-rância. Ele, que é o salvador do país, o protetor da nação, o que o patriotismo lhe reserva? Uma vida de sub-missão servil, vício e perversão durante a paz; uma vida de perigo, riscos e morte, durante a guerra.

Durante uma recente viagem para proferir palestras em São Francisco, eu visitei o Presídio, o lugar mais bonito com vista para a Baía e para o Parque de Golden Gate. Deveria ser destinado a parques infantis, jardins e músicas para os idosos. Em vez disso, virou um lugar feio, tedioso e cinza por conta dos alojamentos milita-res — alojamentos que os mais ricos não permitiriam que seus cachorros habitassem. Em cabanas miseráveis, encontramos soldados amontoados como gado; aqui desperdiçam sua juventude, engraxando as botas e os botões metálicos de seus superiores. Aqui também observo a diferença de classes; filhos robustos de uma repú-blica livre, postos em linha como condenados, saudando tenentinhos que passam. Igualdade Americana, hu-manidade degradada e celebração do uniforme!

A vida em alojamentos militares tende a desenvolver perversões sexuais. Gradualmente vem resultando em situação semelhante à dos militares europeus. O famoso especialista de psicologia sexual, Havelock Ellis, rea-lizou um estudo cuidadoso desse assunto. Cito: “Alguns alojamentos militares são grandes centros de prosti-tuição masculina... O número de soldados que se prostitui é maior do que queremos acreditar. Não é exagero dizer que, em certos regimentos, a presunção é no sentido da corrupção da maioria dos homens... Nas noites de verão, o Hyde Park e a vizinhança de Albert Gate estão repletos de guardas e outros exercendo um comér-cio humano ativo, com poucos disfarces, usando ou não uniforme... Na maioria das vezes, os ganhos trazem um bom adicional ao dinheiro de bolso de Tommy Atkins”.2

Em que medida essa perversão avançou no exército e na marinha de guerra pode ser julgado pela existência de casas especiais para essa forma de prostituição. Essa prática não se limita à Inglaterra, é universal. “Soldados não são menos assediados na França do que na Inglaterra ou Alemanha, e casas especiais de prostituição mili-tar existem tanto em Paris quanto em quaisquer cidades onde existem guarnições militares”.

Se o sr. Havelock Ellis tivesse incluído a América na sua pesquisa sobre perversão sexual, teria descoberto que as mesmas condições também prevalecem em nossa marinha de guerra e em nosso exército, da mesma forma como em outros paises. O crescimento de exércitos prontos para o combate contribui para a dissemina-ção da perversão sexual; os alojamentos militares são os incubadores.

Ao lado dos efeitos sexuais que a vida nos alojamentos militares produz, ela também tende a produzir um soldado incapaz para um trabalho útil depois de deixar as forças armadas. Homens formados num ofício rara-mente se alistam no exército ou marinha de guerra, mas mesmo estes, após a experiência militar, se tornam totalmente incapazes para exercer suas antigas ocupações. Tendo se habituado ao ócio e adquirido um gosto por excitação e aventura, não há atividade pacífica que os satisfaça. Liberados do exército, eles não conseguem se voltar para trabalhos úteis. Mas são geralmente os marginais sociais, ex-presidiários e assemelhados que, em função da luta pela vida ou das próprias inclinações, são levados às fileiras militares. Estes, ao fim do serviço militar, voltam às suas antigas vidas de crime, ainda mais brutalizados e degradados do que antes. É fato já bem conhecido que em nossas prisões há um bom número de ex-soldados; enquanto, por outro lado, o exército e a marinha de guerra são, em grande medida, abastecidos por ex-presidiários.

Desses resultados maléficos que eu acabo de descrever, nenhum parece mais nocivo à integridade humana do que o espírito de patriotismo que se produziu no caso do soldado William Buwalda. Porque tolamente acreditou que poderia ser um soldado e exercer, ao mesmo tempo, seus direitos como homem, foi severamen-te punido pelas autoridades militares. A verdade é que ele serviu seu país por quinze anos, período durante o

2 Tommy Atkins, ou simplesmente Tommy, era um termo que designava o soldado comum no Exército inglês (N. do T.).

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qual seus registros eram impecáveis. De acordo com o general Funston, que reduziu a pena de Buwalda para três anos: “O primeiro dever de um oficial ou de um homem alistado é obediência incondicional e lealdade ao governo e não faz diferença se ele aprova ou não o governo”. Assim, Funston firma o verdadeiro caráter da lealdade. De acordo com ele, o ingresso no exército anula os princípios da Declaração de Independência.

Que estranho processo, o do patriotismo, que transforma um ser pensante em uma máquina leal!Ao justificar a sentença ultrajante de Buwalda, o general Funston diz ao povo americano que a ação do

soldado era um “crime sério equivalente à traição”. Agora, em que consistiu esse “crime terrível”? Simples-mente nisto: William Buwalda foi uma das mil e quinhentas pessoas que estiveram presentes num comício em São Francisco; e oh, que horrível, apertou a mão da palestrante, Emma Goldman. De fato, um crime terrível que o general qualifica como “uma grande ofensa militar, infinitamente pior do que a deserção”.

Pode haver acusação pior contra o patriotismo do que a de marcar um homem como criminoso, jogá-lo na prisão e roubá-lo dos frutos de quinze anos de serviço leal?

Buwalda deu ao seu país os melhores anos de sua vida e sua própria humanidade. Mas tudo isso foi como nada. O patriotismo é inexorável e, como todos os monstros insaciáveis, exige tudo ou nada. Não admite que o soldado também seja um ser humano, que tenha direitos a sentimentos e opiniões, suas próprias tendências e ideias. Não, o patriotismo não pode admitir isso. Essa é a lição que Buwalda foi obrigado a aprender; obri-gado a aprender a um custo muito alto, embora não a um preço inútil. Quando voltou à liberdade, ele perdeu sua posição no exército, mas recuperou o respeito por si mesmo. Afinal, isso vale três anos de prisão.

Num recente artigo, um autor especializado no estudo das condições militares nos Estados Unidos comen-tou o poder dos chefes militares sobre os civis na Alemanha. Além de outras coisas, ele disse que se nossa re-pública não tivesse outro sentido além de garantir direitos iguais a todos os cidadãos, ela já justificaria sua existência. Eu estou convencida de que esse escritor não estava no Colorado durante o regime patriótico do general Bell. Ele provavelmente teria mudado de ideia, se tivesse visto como, em nome do patriotismo e da república, os homens foram jogados em currais, arrastados, expulsos para fora das fronteiras e submetidos a todo tipo de humilhações. O incidente no Colorado não é o único exemplo do aumento dos poderes militares nos Estados Unidos. É difícil que haja uma greve em que as milícias e as tropas de soldados não intervenham em defesa dos que estão no poder, e são tão brutais e arrogantes quanto os homens que vestem o uniforme do Kaiser. Além disso, nós temos a Lei Militar de Dick. Será que o escritor esqueceu isso?

Uma grande infelicidade é que a maioria de nossos escritores ignora completamente os fatos do quotidiano, ou, por desonestidade, não tocam nesses assuntos. E assim aconteceu que a Lei Militar de Dick foi aprovada apressada-mente pelo congresso, com pouca discussão e ainda menor publicidade — uma lei que dá ao presidente o poder de transformar um cidadão pacífico em um homem sedento por sangue, supostamente para defender o país, mas na verdade para a proteção dos interesses de um partido em particular, cujo porta-voz o presidente vem a ser.

Nosso escritor diz que o militarismo não pode se tornar tão poderoso na América como em outros países, principalmente porque aqui o serviço é voluntário, enquanto no Velho Mundo é compulsório. Dois fatos im-portantes, porém, o cavalheiro esquece de considerar. Primeiro, o recrutamento criou um ódio muito arrai-gado do militarismo em todas as classes na Europa. Milhares de jovens recrutas se alistam sob protesto e, uma vez no serviço, utilizam todos os meios possíveis para desertar. Segundo, o caráter compulsório do militarismo criou um tremendo movimento antimilitar, temido pelos poderes europeus, mais do que qualquer outra coisa. Afinal, a maior salvaguarda do capitalismo é o militarismo. No momento em que ele for minado, o capitalis-mo vai balançar. É verdade, nós não temos conscrição; ou seja, os homens não são usualmente obrigados a se alistar no exército, mas nós desenvolvemos uma força mais rígida e exigente — a necessidade. Não é verdade que durante as depressões industriais há um grande aumento no número de alistamentos? O ofício do milita-rismo pode não ser lucrativo ou nobre, mas é melhor do que procurar por emprego pelo país afora, ficar na fila do pão ou dormir nos alojamentos municipais. Afinal, ele representa treze dólares por mês, três refeições por dia e um lugar para dormir. Apesar disso, até mesmo a necessidade não é um fator suficientemente forte para levar para as forças armadas elementos com caráter e hombridade. Não espanta que as autoridades militares reclamem do “material de baixa qualidade” que se alista na marinha de guerra e no exército. Essa admissão é

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um sinal encorajador. Ela prova que ainda existe suficiente espírito de independência e amor pela liberdade no americano médio para que prefira o risco da fome a vestir o uniforme militar.

No mundo todo, homens e mulheres estão começando a entender que o patriotismo é uma concepção mui-to estreita e limitada para dar conta das necessidades do nosso tempo. A centralização de poder criou um sentimento internacional de solidariedade entre as nações oprimidas do mundo; uma solidariedade que repre-senta uma harmonia maior de interesses entre os trabalhadores da América e seus irmãos de outros países do que entre o mineiro americano e o compatriota que o explora; uma solidariedade que não teme invasão es-trangeira, pois está fazendo com que os trabalhadores cheguem ao ponto de dizer para seus patrões: “Vá e faça você mesmo a sua matança. Nós já fizemos isso bastante tempo para vocês.”

Essa solidariedade está acordando até mesmo a consciência dos soldados, eles que são também carne da car-ne da grande família humana. Uma solidariedade que já se mostrou infalível em lutas passadas e que foi o es-tímulo que incentivou os soldados parisienses, durante a Comuna de Paris em 1871, quando se recusaram a obedecer a ordem de atirar em seus irmãos. Ela deu coragem, em anos recentes, aos homens que se amotina-ram em navios de guerra na Rússia. E vai, finalmente, produzir um levante de todos os explorados e humi-lhados contra seus exploradores internacionais.

O proletariado europeu compreendeu a grande força dessa solidariedade, e como resultado, começou a guerra contra o patriotismo e seu espectro sangrento, o militarismo. Milhares de homens enchem as prisões da França, da Alemanha, da Rússia e dos países escandinavos porque ousaram desafiar essa superstição antiga. Não é um movimento limitado aos trabalhadores; está abarcando representantes de todos os estratos sociais, seus maiores expoentes sendo homens e mulheres notáveis em artes, letras e ciências.

A América deverá acompanhar tal tendência. O espírito do militarismo já penetrou em todas as veredas da vida. De fato, estou convencida de que o militarismo está se apresentando como um perigo maior aqui do em qualquer outro lugar, por conta das diferentes formas de suborno que o capitalismo oferece àqueles que quer destruir.

O começo já está sendo feito nas escolas. Evidentemente que o governo está seguindo a concepção jesuítica: “Dê-me a mente da criança que eu moldarei o homem”. Crianças estão sendo formadas em táticas militares, as glórias dos militares exaltadas nos currículos e as mentes jovens pervertidas para se adequar ao governo. Mais ainda, a juventude do país está sendo atraída por deslumbrantes cartazes para se alistar no exército e na marinha de guerra. “Uma ótima chance de conhecer o mundo!”, diz o propagandista do governo. Assim, meninos ino-centes são moralmente embriagados pelo patriotismo e o Moloch militar continua conquistando a nação.

O trabalhador americano sofreu tanto nas mãos de soldados, dos governos estadual e federal, que ele tem muita razão no seu desgosto com, e em sua oposição aos, parasitas uniformizados. Mesmo assim, a mera de-núncia não irá resolver esse grande problema. Nós necessitamos de uma propaganda para a educação do solda-do: literatura antipatriótica que irá esclarecê-lo contra os verdadeiros horrores de sua atividade, e isso irá despertar sua consciência para a verdadeira relação com aqueles a cujo trabalho ele deve sua existência.

É precisamente isso que as autoridades mais temem. Participar de um comício radical já é considerado uma grande traição para um soldado. Não há dúvida de que um soldado ler um panfleto radical também será qua-lificado como alta traição. Mas, então, não têm as autoridades, desde tempos imemoriais, considerado todo passo em direção ao progresso como traição? Aqueles, porém, que sinceramente lutam por uma reconstrução social podem enfrentar tudo isso; pois, provavelmente, é mais importante levar a verdade para os alojamentos militares do que para as fábricas. Quando nós conseguirmos minar a mentira patriótica, teremos aberto o ca-minho para uma estrutura grandiosa na qual os povos de todas as nacionalidades estarão unidos numa frater-nidade universal — uma sociedade livre de fato.

Fonte | Disponível em: <http://sunsite.berkeley.edu/Goldman/Writings/Anarchism/patriotism.html> ou GOLDMAN, Emma. Anarchism and other essays. New York: Dover Publications, 1969.

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1911 | WilliAm hAyWood e frAnk Bohn

O socialismo industrial*

no começo do século XX, a esquerda estadunidense começou a ganhar força política e social, aparecendo “Big Bill” Haywood

(1869-1928) como uma das suas mais importantes figuras. Anarcossindicalista com influências socialistas (membro do partido

socialista Americano), foi um dos fundadores do Industrial Workers of the World (IWW), os wobblies, em 1905. ele tinha então a intenção

de criar um sindicato que pudesse aglutinar a classe trabalhadora sob uma só bandeira: pode-se usar como exemplo a sua rejeição

ao racismo nos ambientes de trabalho. A partir de 1910, superadas algumas lutas internas turbulentas, Haywood tornou-se a figura

principal do IWW, tentando combater o capitalismo nos euA.

nesse raro panfleto de 1911, o líder sindical wobbly e Frank Bohn mostram os mecanismos de exploração em ação. É importante

ressaltar, também, a crítica feita ao governo: os autores consideram que o estado é uma ferramenta de controle dos grandes industriais. Além disso, mostram que o socialismo é a opção para a solução dos problemas apontados, como as desigualdades nas relações sociais, e que ele deve surgir a partir do chão das fábricas, do interior das

indústrias. para isso, seria vital a unidade entre o sindicato e o partido socialista, pois haveria, então, força suficiente para instaurar o que os

autores chamam de democracia nas indústrias. (g.n.)

lIBerDADe nAS InDúStrIAS!

O socialismo é a democracia nas indústrias.A democracia nas indústrias é o socialismo.Sob o socialismo o governo da nação será um governo a partir das indústrias, um governo a partir das em-

presas. O governo político de hoje, constituído pelo presidente, pelo congresso e pelos tribunais, com os go-vernos dos vários estados, é meramente um governo de classe. É o governo das classes proprietárias. Sua fina-lidade é proteger a propriedade privada e manter os trabalhadores, que não têm nenhuma propriedade, na sujeição. As suas leis mais importantes são leis de opressão. Seus edifícios mais importantes são os tribunais e as prisões. Os seus servidores mais importantes são policiais, detetives e soldados.

O socialismo, ou governo das empresas pelos trabalhadores, não precisará de exércitos, marinhas de guerra, polícia, detetives e prisões. Os juízes hoje são quase inteiramente envolvidos por dois tipos de tra-balho: um é julgar questões legais que emergem das relações baseadas na propriedade privada. Quando dois proprietários querelam a propósito de um pedaço de propriedade, eles vão ao tribunal com o intuito de ter sua disputa resolvida da maneira mais barata possível. Outra função dos tribunais é reunir-se para julgar e determinar a punição dos pobres que podem ter sido “culpados” de desrespeito à propriedade pri-vada. Claro, todo mundo já sabe que os ricos transgressores compram esta “ justiça”, enquanto pobres transgressores são agraciados com ela. Os pobres famintos pegam comida? São enviados para a prisão. Fa-zem greve por mais salários? São surrados, fuzilados ou presos. Tal é a natureza e o propósito do governo político de hoje.

No socialismo, não haverá ricos ao abrigo da lei mantendo o seu lugar pelo esmagamento dos pobres. Não haverá pobres escravizados que precisem ser mantidos por baixo. Não haverá grandes fortunas privadas pelas quais seja necessário lutar nos tribunais. Daí decorrerá que o governo irá preocupar-se apenas com a gestão da indústria, com a promoção da educação pública e com outras atividades públicas em benefício dos traba-lhadores.

* No original, Industrial socialism.

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o CreSCIMento Do SoCIAlISMo

Unidade do sindicato e do Partido Socialista — o Partido Socialista e o sindicato vão se aproximar cada vez mais. O sindicato se tornará favorável ao socialismo. O Partido Socialista irá, assim, tornar-se uma mera fase do movimento sindical. O sindicato e o partido juntos farão guerra ao inimigo, a classe capitalista. Esta luta é, em primeiro lugar, uma luta dentro da empresa. Toma forma no lugar da produção em que os trabalhadores estão atualmente escravizados. Até que isso seja compreendido, não pode haver verdadeira compreensão do socialismo. Para compreender o mundo e a luta do mundo no presente momento, temos de olhar para ele através das janelas das empresas.

Fonte | Disponível em: <http://dwardmac.pitzer.edu/Anarchist_Archives/bright/haywood/ind_soc.html>.

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1925 | mother JoneS (AutoBiogrAfiA)*

Mary Harry Jones (1837-1930), conhecida como Mother Jones, foi uma das mais importantes figuras do movimento dos trabalhadores nos euA, das últimas décadas do século XIX às primeiras do século

XX. Imigrante irlandesa que se exilou com a família no Canadá e depois se radicou em Chicago, Mother Jones passou a exercer a

função de costureira depois de abandonar a posição de professora, por discordar dos métodos da escola onde ensinava. em 1867 viveu

um terrível drama pessoal: o marido e quatro filhos faleceram em decorrência de um surto de febre amarela. posteriormente, perdeu

tudo o que tinha no grande incêndio em Chicago, em 1871. Decidiu, a partir de então, dedicar-se integralmente à militância que começara

ao lado do marido. na esfera sindical, participou dos Cavaleiros do trabalho, primeira grande organização sindical dos euA e foi a única

mulher signatária da carta conclamando à fundação do Industrial Workers of the World (IWW), organização anarcossindicalista

mais radical, onde conviveu com figuras importantes da esquerda como Bill Haywood e eugene Debs. Como Debs, associou-se ao

partido socialista da América. Como sindicalista, Mother Jones teve intensa atuação no united Mine Workers, especializando-se em

organizar passeatas com mulheres e crianças em protesto contra as condições sub-humanas de trabalho nas minas, notórias pela

impiedosa exploração da mão de obra infantil. Durante a importante greve de 1903 na mineradora Cripple Creek na Virgínia ocidental,

conforme retrata o texto abaixo, Jones participou da elaboração das reivindicações dos mineiros, relacionadas à jornada de trabalho, à

forma de aferição da produção e de pagamento, além do direito de organização e o respeito à liberdade de expressão. As deploráveis condições de vida e de trabalho impostas pelos donos das minas

e a repressão aos trabalhadores insurgentes, especialmente aos imigrantes, são descritas de forma muito vívida por Mother Jones.

Ao organizar um protesto contra a exploração infantil, Jones, então com 83 anos, foi presa e condenada a 20 anos de prisão por um

tribunal militar. sua prisão causou tal furor que levou as autoridades a investigar as condições de trabalho nas minas. Após ser libertada

por intervenção do governador, Jones continuou sua militância junto aos sindicatos do setor de mineração. (g.n. e C.A.)

A GreVe De CrIpple Creek

O estado do Colorado não pertencia à república e sim à Companhia de Combustível e Ferro do Colorado, à Companhia Victor e suas filiais. O governador era seu agente. A milícia sob o governo de Bell cumpriu suas ordens. Sempre que os senhores do estado mandavam o governador latir, ele gania como um cachorro louco. Sempre que eles mandavam os militares morderem, eles mordiam.

O povo de Colorado tinha votado massivamente por uma jornada de trabalho de oito horas. O Legislativo aprovou a lei de oito horas, mas os tribunais a declararam inconstitucional. E quando essa medida foi subme-tida diretamente ao povo, ele votou a favor, por uma maioria de 40 mil votos. Mas o novo legislativo, contro-lado pelos interesses dos mineradores, não aprovou a lei.

Os mineiros viram que não poderiam alcançar suas reivindicações por meios legislativos pacíficos. Eles de-veriam lutar. Deveriam entrar em greve. As minas de metais entraram em greve primeiro. A greve se estendeu pelo Novo México e por Utah. Tornou-se uma guerra feia. Os mineiros metalíferos estavam ansiosos para que os mineiros de carvão se juntassem a eles na luta.

O comitê executivo do Sindicato dos Trabalhadores Mineiros estava reunido em Indianápolis e o governa-dor do Colorado mandou uma delegação a essa reunião para convencer seus integrantes a não iniciar a greve das minas de carvão. Entre os delegados, havia um comissário do trabalho.

Eu estava indo de Monte Olive, no Illinois, onde os mineiros estavam celebrando a memória de seus mor-tos, para a Virgínia Ocidental. Fiz uma parada na sede do sindicato em Indianápolis. O comitê executivo me

* Tradução do capítulo 13 do livro Autobiography of Mother Jones.

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pediu para ir até o Colorado examinar as condições de lá, observar os sentimentos dos mineiros e produzir um relatório para o sindicato.

Fui imediatamente ao Colorado, primeiro para a sede da Federação dos Mineiros do Oeste, onde escutei a história do conflito naquela indústria. Então, consegui um velho vestido de algodão indiano, um chapéu de sol, uns broches e alfinetes, elásticos e fitas, algumas miudezas e fui para os campos de carvão do sul da Com-panhia de Combustível e Ferro de Colorado.

Como uma ambulante, atravessei vários campos de carvão, comendo nas casas de mineiros, dormindo nas casas de suas famílias. Eu vi que suas condições de vida eram deploráveis. Eles viviam quase em estado de es-cravidão em relação à companhia, que era dona de suas casas, possuía toda a terra, de forma que, se um mi-neiro possuía uma casa, ele deveria deixá-la se o dono da terra assim o quisesse. Eles eram pagos com vales, em vez de dinheiro, para que não fossem embora se ficassem insatisfeitos. E eram obrigados a fazer suas com-pras nas lojas da companhia, segundo os preços da companhia. O carvão minerado era pesado por um agente da companhia, e os mineiros não podiam ter alguém que checasse o peso para ver se era correta a remuneração atribuída a eles. As escolas, as estradas, as igrejas eram propriedade da companhia. Eu achei, depois de ouvir suas histórias, ao testemunhar sua imensa paciência, que tinha chegado a hora da revolta contra essas condições brutais.

Fui à Trinidad, à sede da Federação de Mineiros do Oeste. Falei com Gillmore, o secretário, um homem leal e bom trabalhador, e com Howell, o presidente, uma alma boa e honesta. Nós sentamos e falamos sobre o assunto até altas horas da noite. Relatei a eles que as condições que encontrei nos campos de mineração eram de partir o coração, e que eu sentia que era nossa responsabilidade remediar essas condições e ajudar a construir algum futuro para aquelas pessoas, trazer alguma luz pelo menos para as vidas das crianças. Eles me delegaram a responsabilidade de me dirigir imediatamente à sede central em Indianápolis.

Peguei o trem na manhã seguinte. Quando cheguei à sede em Indianápolis, encontrei o presidente, John Mitchell, o vice-presidente, T.L. Lewis, o secretário, W.B. Wilson, de Arnot, Pensilvânia e um membro da executiva chamado de “velho Ream”, de Iowa. Eles me disseram para voltar imediatamente para o Colorado e que eles convocariam uma greve dos trabalhadores das minas de carvão.

A greve foi convocada para o dia 3 de novembro de 1903. As exigências eram por uma jornada de trabalho de oito horas, a checagem da pesagem do carvão minerado por um representante dos mineiros e pagamentos em dinheiro, em vez do vale. Todo o estado do Colorado se revoltou. Nenhum carvão foi extraído. Novembro é um mês frio no Colorado e os cidadãos começaram a sentir a pressão da greve.

Tarde da noite em fins de novembro, voltei ao hotel. Eu tinha trabalhado o dia inteiro e ao longo da noite com os mineiros e suas famílias, ajudando a distribuir comida e roupas, encorajando, fazendo comícios. Quan-do eu estava para me deitar, o funcionário do hotel me chamou para atender a um telefonema interurbano da Louisiana. E a voz disse: “Pelo amor de Deus, Mother, venha para cá, junte-se a nós”.

Perguntei qual era o problema, e a resposta foi mais um choro do que uma resposta: “Ah, não perca tempo perguntando. Não perca o trem”.

Liguei para o sr. Howell, o presidente, e perguntei qual era o problema em Louisville.“Eles estão tendo uma convenção lá”, ele disse. “Uma convenção, mas para quê?” “Para acabar com a greve nos campos do norte do Colorado, pois os operadores cederam às exigências”. Ele

não olhava para mim enquanto falava. Pude perceber que estava arrasado.“Mas eles não podem voltar até que os operadores façam acordo com os mineradores do sul”, eu disse. “Eles

não podem abandonar seus irmãos até que a greve vença! Você vai deixar que eles façam isso?”“Ah, Mother”, ele quase chorou, “não posso fazer nada. Foi a sede nacional que ordenou que eles voltassem

atrás.”“Isso é traição”, eu disse, “rápido, apronte-se e venha comigo”. Nós telefonamos para a estação para que o

maquinista retivesse o trem para Louisville por alguns minutos. E ele assim o fez. Chegamos em Louisville na manhã seguinte. Eu não tinha dormido. O membro do comitê, Ream, e Grant Hamilton, representando

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a Federação do Trabalho, vieram ao hotel onde eu estava e me perguntaram onde o sr. Howell, o presidente, estava.

“Ele acabou de sair”, eu disse. “Já volta.”“Bem, por enquanto, eu quero te avisar”, disse Ream, “que você não deve bloquear o acordo dos minera-

dores do norte, porque John Mitchell, o presidente nacional, assim o deseja, e ele é que paga você.”“Você acabou?”, eu disse.Ele sinalizou que sim. “Então eu quero te avisar que se Deus Todo Poderoso quiser que essa greve acabe em seu benefício, e não

no dos mineiros, eu levantarei minha voz contra isso. Quanto ao presidente John me pagar... ele nunca me deu um tostão na sua vida. São as moedas e os níqueis duramente ganhos pelos mineradores que me pagam e são aos seus interesses que eu sirvo.”

Fui à convenção e ouvi a discussão sobre a volta ao trabalho dos mineiros do norte. Assisti a dois espertos diplomatas lidarem com homens não sofisticados; o presidente das minas de carvão do norte, Sturby, e Bloody, um dos mais sabidos e traiçoeiros advogados do oeste. E por atrás deles, John Mitchell, celebrado com jantares e vinhos, bajulado e lisonjeado pela Aliança de Cidadãos de Denver e pela Federação Cívica, estava manipu-lando os cordéis.

De tarde os mineiros me chamaram para falar na convenção.“Irmãos”, eu disse, “vocês, mineiros dos campos do norte, que falam inglês, prometeram aos seus irmãos

do sul, 70% dos quais não falam inglês, que iriam apoiá-los até o fim. Agora vocês estão sendo chamados a traí-los, a fazer um acordo separado. Vocês têm um inimigo comum e é seu dever lutar até o fim. O inimigo pretende conquistar dividindo suas fileiras, fazendo diferenciações entre o norte e o sul, entre norte-americanos e estrangeiros. Vocês todos são mineiros, lutando por uma causa comum, contra um mesmo patrão. O tacão de ferro produz a mesma dor em toda carne. Fome e sofrimento e o interesse das suas crianças nos unem mais do que uma língua em comum. Estou sendo acusada de ajudar a Federação de Mineiros do Oeste — como se isso fosse um crime — por um dos membros da executiva nacional. Assumo que sou culpada. Quando se trata de lutar por justiça para minha classe, eu não conheço leste ou oeste, norte ou sul. Se eu tiver a sorte de viver para assistir à ruptura dos grilhões da indústria, que pesam sobre os filhos dos trabalhadores da América, e se ainda houver alguma criança negra em cativeiro na África, então eu irei para lá.”

Os delegados se levantaram em massa para aplaudir. Fez-se a votação. A maioria decidiu apoiar os mineiros do sul, recusando-se a obedecer ao presidente nacional.

O Denver Post reproduziu meu discurso e uma cópia foi mandada ao sr. Mitchell em Indianápolis. Ele pe-gou o jornal de sua secretária e disse, apontando para a reportagem: “Olhe o que Mother Jones fez comigo”.

Por três vezes Mitchell tentou fazer com que os mineiros do norte retornassem às minas, mas, a cada vez, foi derrotado. Um responsável sindical disse que “Mitchell tem que retirar Mother Jones do campo”. “Ele não conseguirá derrotar a Federação enquanto ela estiver lá.” Eu soube que Mitchell se reunira com o governador, solicitando que me expulsasse do estado do Colorado.

Finalmente, um ultimato foi dado aos mineiros do norte. Todo apoio à greve foi retirado. Os mineiros do norte aceitaram os termos dos operadores e retornaram ao trabalho. A decisão criou, em termos práticos, um sistema de peonagem no sul, e a greve finalmente foi derrotada, embora a luta no sul tenha durado um ano.

Boa parte da luta ocorreu em Cripple Creek. Os mineiros foram expulsos de suas casas, que eram proprie-dade da companhia. Foram então para as desoladas faldas da montanha, viver em tendas em um terrível inver-no com temperaturas abaixo de zero e com dezoito polegadas de neve no chão. Amarravam os pés em sacos grosseiros e viviam magros, encolhidos e famintos como lobos do mato. Recebiam 63 centavos por semana como benefício de greve, enquanto John Mitchell viajava pela Europa, se hospedando em hotéis chiques, es-tudando o movimento dos trabalhadores. Quando John Mitchell voltou, os mineiros haviam retornado às minas açoitados pela fome, enquanto ele era recebido com um banquete no Hotel Park Avenue e era presen-teado com um relógio de diamantes.

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A partir do dia em que me opus à autoridade de John Mitchell, as armas foram apontadas para mim. Perse-guição e difamação me acompanharam como sombras negras. Mas a luta continuou.

Um dia, quando voltei dos campos onde estava fazendo comícios, eu estava me preparando para dormir quando uma batida — uma forte batida — soou na minha porta. Sempre dormi vestida, porque nunca sabia o que poderia acontecer. Levantei-me, fui à porta, abri, e me deparei com um tipo militar.

“O coronel quer te ver no quartel-general.”Fui imediatamente com ele. Três ou quatro de nós também foram levados, como os responsáveis pela orga-

nização, War John e Joe Pajammy. Todos nós fomos levados para a estação de Santa Fé. Enquanto estava lá, esperando pelo trem que iria nos deportar, alguns mineiros correram para me dar adeus. “Mother, adeus”, eles diziam, esticando suas mãos para pegar as minhas.

O coronel bateu em suas mãos e gritou: “Saiam daí. Vocês não podem apertar as mãos dessa mulher!”A milícia nos levou à La Junta. Eles me deram uma carta do governador, notificando-me que eu não deve-

ria, sob nenhuma circunstância, voltar ao estado do Colorado. Fiquei a noite toda sentada na estação. De manhã, o trem para Denver chegou. Eu não tinha comida, não tinha dinheiro. Eu perguntei ao condutor se ele podia me levar para Denver. Ele disse que levaria.

“Bem”, eu disse, “não quero que você perca seu emprego”. Mostrei para ele a carta do governador. Ele leu.“Mother”, ele disse. “você quer ir para Denver.”“Sim, eu quero”, eu disse.“Então, que o emprego vá para o inferno”, disse ele, “você irá para Denver.”Em Denver, consegui um quarto e descansei um pouco enquanto sentei e escrevi uma carta para o gover-

nador, o obediente menininho das companhias de carvão.“Senhor Governador, você mandou seus cães de guerra para me expulsar do estado. Eles seguiram suas

instruções. Eu tenho em mãos uma carta que me foi dada por um deles que diz ‘não retorne a esse estado sob nenhuma circunstância’. Eu gostaria de notificá-lo, governador, que você não é o dono desse estado. Quando ele foi aceito na fraternidade dos estados, meus pais me deram uma parcela dele; e foi isso que lhe deram tam-bém. Os tribunais civis estão funcionando. Se eu infringir as leis do estado ou da nação, é dever dos tribunais civis lidar comigo. É por isso que os pais ancestrais da nação estabeleceram esses tribunais, para impedir que tiranos e ditadores como você interferissem na vida dos cidadãos. Eu estou exatamente aqui na capital, depois de nove ou dez horas fora daqui, a quatro ou cinco quadras de seu gabinete. Eu quero te perguntar, senhor governador, que diabos você fará a respeito disso?”

Chamei um mensageiro e mandei a carta para o escritório do governador. Ele leu e um repórter que estava presente me disse que seu rosto ficou vermelho.

“O que devo fazer?”, disse ao repórter. Ele estava acostumado a agir sob ordens. “Deixe-a em paz”, acon-selhou o repórter. “Não existe cidadã mais patriota na América.”

De Denver, fui para Western Slope, organizando comícios, animando e encorajando aqueles esforçados e deserdados mineiros que estavam lutando contra aqueles monstros terríveis.

Fui para Helper, Utah, ficando num quarto com uma família Italiana muito agradável. Eu tinha que parti-cipar de um comício domingo de tarde. De cada lugar, homens chegavam, tendo caminhado milhas nas mon-tanhas. Os comerciantes foram advertidos para não vir, mas vieram apesar disso. Quando o comício estava para começar, o prefeito da pequena cidade me disse que eu não poderia realizar o encontro; que eu estava em terras da companhia. Eu perguntei qual era a jurisdição dele. Ele disse que a jurisdição dele se estendia por toda jurisdição da companhia. Ele era prefeito da companhia.

Então eu me virei para o público e pedi para que ele me acompanhasse. O público me acompanhou até uma pequena colônia de tendas em Half Way, que os mineiros tinham levantado quando foram expulsos de suas casas.

Quando o encontro acabou, voltei a Helper. No dia seguinte, embora não houvesse catapora na cidade, um cordão de isolamento foi armado para prender em seu interior os doentes de catapora. Fui avisada de que, tendo estado em contacto com doentes, deveria ficar presa dentro do cordão. Mas por algum motivo naquela noite o cordão de isolamento foi destruído.

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Fui para Half Way porque a família italiana tinha medo de ficar mais tempo comigo. Outra família italiana me cedeu um quarto vazio na sua choupana. Tinha apenas uma grande pedra para fechar a porta. Mal me arrumei na nova casa, já a milícia me notificava que eu estava de quarentena pois havia me exposto à catapora. Mas eu saia e falava com os mineiros, e eles também falavam comigo.

Num sábado de noite, o chefe dos correios me avisou que de manhã cedo a milícia iria invadir a pequena colônia de tendas. Eu chamei os mineiros e perguntei se tinham armas. Claro que tinham armas. Eles eram homens do oeste, homens das montanhas. Eu lhes disse para enterrarem as armas entre as pedras, pois os xe-rifes viriam tomá-las deles. Eu não disse que haveria uma invasão para evitar derramamento de sangue. Acei-tar a prisão seria melhor do que isso.

Entre 4h30 e 5h da manhã, ouvi o barulho das botas na estrada. Olhei pelas brechas da tela isolante de mi-nha janela e vi cerca de quarenta e cinco agentes. Eles caíram sobre a colônia adormecida e arrastaram os mineiros para fora de suas camas. Nem deixaram que se vestissem. Os mineiros imploraram para que pudessem botar suas roupas, pois aquela hora da manhã é a mais fria na área das montanhas. Tremendo de frio, acompa-nhados pelos gritos e pelo choro de suas esposas e crianças, agredidos com armas ao longo da estrada, foram conduzidos a Helper como gado. De noite, foram amontoados num carro fechado e levados para Price, a sede do condado, e colocados na prisão.

Os mineiros não tinham transgredido nenhuma lei. Os gritos pungentes das mulheres e crianças teriam chegado ao paraíso. Suas lágrimas derreteram o coração da Mãe dos Sofrimentos. Seu crime foi o de se levan-tar contra o poder do ouro. As mulheres se agruparam sob a janela da casa em que fui encarcerada por conta da catapora.

“Oh Mother, o que devemos fazer”, elas gemiam, “o que vai acontecer com nossas criancinhas!”“Veja o meu pequeno Johnny”, disse uma mulher, segurando um pequenininho bebê recém-nascido todo rosa.“É um bonito bebê ”, eu disse.“Ele está doente. Daqui a pouco, morre. A companhia tirou a minha casa. A companhia tirou o meu ho-

mem. Daqui a pouco a companhia tira o meu bebê.”Dois dias depois deste ataque, a pedra que segurava minha porta foi subitamente empurrada. Um rapaz in-

vadiu o quarto, pôs uma arma sob o meu maxilar e me disse para falar para ele onde acharia os 3 mil dólares do dinheiro dos mineiros, ou ele estouraria meus miolos.

“Não desperdice sua pólvora”, eu disse. “Escreva para os mineiros em Indianápolis. Escreva a Mitchell. Ele tem o dinheiro agora.”

“Eu não quero ouvir sua maldita conversa”, replicou, e então perguntou: “O presidente não tem o dinhei-ro? Você o pôs na prisão. Você não conseguiu nenhum dinheiro?”

“Claro”. Pus a mão no bolso, tirei cinquenta centavos e virei os bolsos pelo avesso. “Isso é tudo o que você tem?”“Sim, e não darei a você, porque eu quero usá-los para conseguir uma pinça fervida de modo que possa

eliminar a catapora de Helen Gould do meu sistema, para que eu não contamine toda a nação quando sair daqui.”

“Como você vai sair daqui, quando eles te liberarem, se você não tem dinheiro?”“Os ferroviários me levarão para qualquer lugar.”Havia dois outros agentes ali fora. Eles continuavam gritando para ele sair. “Ela não tem nenhum dinheiro”,

eles insistiam. Finalmente ele se convenceu de que eu não tinha nada.Depois eu descobri que esse homem tinha sido um ladrão de bancos, mas que tinha se tornado um agente

policial para esmagar o sindicato dos mineiros. Mais tarde, foi morto quando roubava uma agência dos cor-reios em Prince. Apesar disso, ele era o tipo de homem que era alugado pelos interesses dos ricos, para acabar com as esperanças e aspirações dos pais e das mães e até dos filhos dos trabalhadores.

Estive presa naquele quarto simples por vinte e seis dias e noites, isolada por causa da catapora. Finalmente, sem qualquer compensação, libertada, fui para Salt Lake. Durante todos aqueles dias e noites, não troquei de roupa devido ao perigo iminente.

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Todas as leis civis foram desrespeitadas durante a greve de Cripple Creek. A milícia sob o comando do co-ronel Verdeckberg disse: “Nós recebemos ordens apenas de Deus e do governador Peabody”. Quando o juiz McClelland foi acusado de violar a constituição, disse: “Para os diabos a constituição!” Houve uma quebra total de todas as leis civis. As garantias de habeas-corpus foram suspensas. As liberdades de expressão e de reunião foram cassadas. As pessoas falavam em sussurros como nos tempos da inquisição. Soldados cometeram atrocidades. Grevistas foram presos por vadiagem e trabalharam acorrentados na rua sob as ordens de soldados brutais. Mulheres, homens e criancinhas foram amontoados num curral em Cripple Creek. Mineiros foram assassinados enquanto dormiam. Eles foram expulsos do país, suas famílias ficaram sem saber para onde foram ou se viviam.

Quando a greve começou em Cripple Creek, a lei civil estava em vigor, mas o governador, um banqueiro, em grande sintonia com os interesses de Rockfeller, enviou a milícia. Eles expulsaram os sindicalistas dos es-critórios do sindicato. Jogaram uma corda aos pés do xerife Robinson e ele foi avisado que, se não se demitis-se, a corda seria enrolada no seu pescoço.

Três homens foram trazidos para o tribunal do juiz Seeds — todos mineiros. Não havia acusações contra eles. Ele ordenou que fossem soltos, mas os soldados que assistiam à audiência com baionetas desembainhadas, imediatamente os prenderam de novo e os levaram de volta para a prisão.

Quatrocentos homens foram tirados de suas casas. Sessenta e seis foram postos em um trem, escoltados para o Kansas, jogados numa pradaria e avisados de que não deveriam voltar se não quisessem morrer.

No calor de junho, em Victor, 1.600 homens foram presos e jogados em Armory Hall. Currais foram pre-parados e qualquer um, fosse mineiro, mulher ou criança, que se colocasse contra os grandes interesses da mineração do carvão ou da milícia, eram lançados nessas terríveis paliçadas.

Comerciantes foram proibidos de vender para os mineiros. Padres e pastores foram intimidados e temiam dar-lhes consolo. Mineiros abriram seus próprios estabelecimentos para alimentar mulheres e crianças. Mar-ginais e soldados invadiram e saquearam os estabelecimentos, destruíram cofres, balanças, abriram sacos de açúcar e farinha, jogaram seu conteúdo no chão e botaram óleo de querosene em tudo. A carne foi envenena-da pela milícia. Bens foram roubados. Os mineiros não receberam compensações, pois a milícia era impune.

E por que essas coisas foram feitas? Porque um grupo de homens exigia uma jornada de trabalho de oito horas, um fiscal que checasse o peso do carvão extraído e o fim do sistema de vales que os mantinha como servos dos poderosos barões do carvão. Só isso. Só porque os mineiros tinham se recusado a trabalhar em tais condições. Só porque os mineiros queriam uma oportunidade melhor para suas crianças, mais luz do sol, mais liberdade. E por isso sofreram por um ano inteiro e por isso morreram.

Talvez ninguém do movimento sindical tenha visto mais brutalidade perpetrada contra os trabalhadores do que eu. Eu os vi sendo assassinados na indústria, desgastados e envelhecidos antes do tempo, presos e baleados caso tentassem protestar. Posso contar estórias sem fim de perseguição e coragem sem paralelo em qualquer campo de batalha.

Houve o caso da sra. M.F. Langdon, de Cripple Creek. The Victor Record, um jornal que apresentava a pers-pectiva mineira da greve, foi arbitrariamente suprimido pela milícia, como foram todos os jornais que não apoiavam a causa das companhias de carvão. Seu marido foi preso porque era editor do The Record.

Os militares se surpreenderam quando, na manhã seguinte, após o fechamento do jornal e da prisão do editor e seus ajudantes, o jornal saiu normalmente. Durante a noite, a sra. Langdon, trabalhando à luz de uma pequena vela, preparou os tipos e rodou as folhas numa prensa manual.

Em 19 de novembro de 1903, duas lideranças, de Molli e Price, iam para Scofield quando, a uma pequena distância da cidade, um grupo composto por membros da “aliança de cidadãos” entrou no trem armado de rifles pesados e ordenou que a tripulação do trem levasse de volta os líderes.

Em dezembro, Lucianno Desentos e Joseph Vilano foram mortos de chofre por um subordinado do xerife, em Secundo. Pouco depois desse assassinato, a casa de William G. Isaac, um líder, explodiu. Ele estava em Glenwood Springs quando isso ocorreu. Parte de sua casa foi destruída pela explosão, a parte em que seus pequenos filhos geralmente dormiam. Na noite da explosão, porém, eles dormiram no quarto dos fundos com

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sua mãe. A família foi salva de ser queimada no fogo que se seguiu à explosão porque puderam engatinhar por uma janela quebrada. Isaac foi preso e acusado de tentar matar a mulher e os filhos.

E assim eu poderia continuar e continuar. Homens espancados e largados mortos na estrada. A casa de Sher-man Parker foi revistada sem mandado, sua mulher, em roupas de dormir, obrigada a segurar a luz para os soldados. E nenhuma arma foi encontrada.

Em fevereiro de 1914, em um domingo, eu e Joe Panonia fomos para um acampamento em Berwyn, para realizar um comício, e William Farley e James Mooney, líderes nacionais, foram para Bohnn. Os dois acampa-mentos ficavam na mesma direção, só que Berwyn era um pouco mais longe. Quando passamos por Bohnn, depois do nosso encontro, três mulheres saíram de uma cabana, balançando os longos e ossudos braços em nos-sa direção, gritando e rodando como bruxas. Elas pularam justo em frente ao nosso carro na estreita estrada.

“Venham! Venham! Algo ruim aconteceu.” Elas botavam as mãos nas cabeças e se balançavam para os lados. Eram estrangeiras e sabiam pouco de inglês.

“Joe”, eu disse, “é melhor irmos em frente. Elas podem ter bebido. Pode ser alguma armadilha para entrar-mos na casa.”

“Não! Não!”, gritou a mulher. “Bebida, não! Algo ruim!” Elas subiram no capô e começaram a nos puxar.“Vamos, Mother”, disse Joe, “Vamos entrar, acho que houve algum problema.” Nós acompanhamos as três fracas mulheres no interior da cabana. Numa cama andrajosa coberta por lençóis

sujos e velhas colchas estava Mooney — sangrando muito e inconsciente. Farley estava sentado ao lado dele, muito machucado.

Joe correu para Trindad e conseguiu um médico. Mooney sobreviveu, mas não se recuperou mentalmente. Farley, porém, se recuperou do seu terrível espancamento.

Ele disse que quando estavam voltando para Bohnn, sete homens armados surgiram das matas ao longo da estrada, os espancaram, chutaram e pisaram. Todos os sete estavam armados e não havia como resistir.

Lideranças foram jogadas em prisões sem julgamento por meses. Eram deportados. Em abril, quatorze mi-neiros foram presos em Broadhead e deportados para o Novo México. Eles foram abandonados no deserto, a trinta milhas de qualquer comida ou água. Centenas de outros foram deportados, sem que lhes tenha sido permitido falar com as esposas e os filhos. As mulheres ficavam angustiadas, sem saber quando os homens partiram ou se algum dia iriam voltar. Se os homens deportados voltassem, eram imediatamente presos pela milícia e jogados na prisão. Todos os militantes e líderes corriam o risco de serem mortos em tocaias ou em plena rua. Atiraram em John Lawson, mas, por um milagre, a bala não o atingiu.

As greves nos campos do sul se arrastaram e se arrastaram. Mas no momento em que os mineiros do sul foram abandonados pelos seus irmãos do norte, senti que a greve estava fadada ao fracasso. Esses mineiros lu-taram bravamente antes de voltar ao velho sistema de peonagem. Os militares não tiveram a menor conside-ração pela vida humana. Eles eram canibais santificados. É de se espantar que tenhamos assassinatos e assaltos quando a juventude dessa terra é treinada pelos grandes industriais a acreditar na força? Quando veem que os que têm dinheiro estão acima da lei?

Homens como o presidente Howell e o secretário Simpson entraram para a História. Eu estive constante-mente em contato com eles durante essa greve terrível. Seus descendentes devem se orgulhar de ter o sangue desses homens nas veias.

Não há homens mais corajosos, mais leais do que esses mineiros do sul, mencionados de forma desprezível pelas “alianças de cidadãos” como “estrangeiros”. Italianos e mexicanos resistiram até o fim. Foram derrotados no campo da luta contra as empresas, mas foi sua a vitória espiritual.

Fonte | Disponível em: <www.angelfire.com/nj3/RonMBaseman/mojones1.htm> ou cf. JONES, Mary Harris. Autobiography of Mother Jones. New York: Dover Publications, 2004. 169 p.

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1925| eugene deBS

Discurso em prol da criação do partido Americano do Trabalho*

eugene Debs (1855-1926) envolveu-se com o sindicalismo ao começar a trabalhar como ferroviário, aos 20 anos, na sua cidade

natal, terre Haute, estado de Indiana. em 1893, ajudou a criar o primeiro grande sindicato industrial dos euA — a American railway

union. Filiado ao partido Democrata, cumpriu um mandato como deputado de terre Haute. A decisão de filiar-se ao partido socialista

ocorreu na prisão, resultado de sua participação na greve ferroviária de 1895, em Chicago. entre 1900 e 1920, concorreu cinco vezes à presidência dos euA, tornando-se a figura mais importante do

socialismo estadunidense. Associado aos wobblies — integrantes da organização anarcossindicalista industrial Workers of the World —, liderou campanha pela objeção consciente ao alistamento militar e à participação na I guerra Mundial, o que lhe acarretou uma pena

de 10 anos de prisão. Mesmo preso, levou adiante o que seria a sua última candidatura à presidência, obtendo quase um milhão de

votos, sua maior votação. solto antes de cumprir toda a sentença, Debs continuou politicamente ativo. no texto a seguir, defende a criação de um novo partido — o American labor party, idealizado como expressão política dos sindicatos, cujo princípio de atuação

independente passara a questionar. (g.n.)

As tendências progressistas na política americana apontam para a ultrapassagem dos estágios finais do capitalismo americano e refletem o despertar político da classe trabalhadora americana. Essas tendências, apesar de todas as apostas na cegueira estúpida dos trabalhadores e das maquinações secretas dos seus inimigos para frustrá-los ou di-rigi-los mal, conduzirão inevitavelmente para a, e resultarão na, formação de um partido americano do trabalho.

Quando?Não sabemos. Espero que em breve. Entretanto, mais cedo ou mais tarde ele virá. Isso eu sei, se tiver apren-

dido alguma coisa do funcionamento das forças irresistíveis que estão centralizando o capital, socializando a indústria, organizando e colocando os trabalhadores contra os seus senhores exploradores e obrigando-os cada vez mais a tomar a iniciativa de intensificar a luta que brota de seus interesses econômicos antagônicos, que só pode terminar com a sua completa emancipação industrial.

Tal luta é tanto política quanto econômica e será, porque deve ser, travada de acordo com isto, e só poderá ser feita quando o trabalho tiver um partido político, bem como um sindicato próprio, para expressar seus interesses, declarar seus objetivos e desenvolver o seu poder para lutar suas batalhas e alcançar a vitória.

Isso não significa que um partido do trabalho será constituído exclusivamente de trabalhadores, mas isso significa que todos os que entrarem em suas fileiras o farão com a compreensão de que é um partido do trabalho, e não um partido de classe média, não um partido reformista, nem um partido progressista (dos quais os par-tidos Republicano e Democrático são exemplos brilhantes), mas um amplo partido do trabalho, para além de seus dirigentes, apoiando firmemente uma plataforma do trabalho e mobilizando as suas forças para travar batalhas políticas do trabalho pela liberdade industrial.

Mais sinceramente, espero que tal partido resulte da Conferência para a Ação Política Progressista, que se realizará em Chicago, começando no dia 21 de fevereiro, nos termos do acordo da Conferência para dar con-tinuidade à campanha progressista por uma organização partidária permanente.

Para ser franco devo confessar, não sem relutância, que eu não tenho a fé que gostaria de ter na realização de algo tão devotamente desejado. Mas qualquer que seja o resultado, não vou ficar desapontado. Esperei mui-to por isso e aprendi a esperar.

Não podemos ter um partido do trabalho efetivo sem o apoio e a retaguarda dos sindicatos de trabalhadores. Isso é um fato fora de questão. Os atuais dirigentes dos sindicatos, por mais estranho que isso certamente pos-

* No original, Speech for the American Labor Party.

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sa parecer, são quase como unânimes na oposição a um partido do trabalho. Nisso eles estão totalmente de acordo com os senhores capitalistas e com os exploradores do trabalho.

A esperança de um partido americano do trabalho não reside nos líderes sindicalistas oficiais, mas nas bases sindicais, e até que estas últimas se levantem e imponham uma ação política independente, uma tal embarca-ção não poderá ser lançada com sucesso nas águas sujas e estagnadas da política americana.

Se um autêntico partido do trabalho não puder ser organizado em Chicago, então espero que nenhum ou-tro partido apareça dessa conferência. Melhor nenhum partido do que uma imitação indescritível de um, composto pelos assim chamados progressistas e elementos reformadores, mais ou menos confusos, sem acordo, e totalmente desprovido de objetivo claro, objeto definido e propósitos comuns.

Um “terceiro partido” dessa natureza alinharia no melhor dos casos os apequenados “pequenos interesses” contra os “grandes interesses”, procuraria consertar e preservar o atual sistema capitalista, corrupto e em co-lapso, e falhando absolutamente em atingir qualquer mudança material ou conseguir qualquer beneficio subs-tancial, tornar-se-ia uma espuma, acrescentando mais um para a lista dos fracassados “terceiros partidos”.

Um partido político, para ter êxito, para o bem ou para o mal, deve expressar, no geral, interesses econô-micos idênticos, sem o que não há fundamento para construir ou apoiar algo. Um terceiro partido neste está-gio avançado de nosso desenvolvimento industrial e social, a menos que se coloque expressamente pelo traba-lho, não teria um tal fundamento e, consequentemente, não poderia durar. Somente um partido do trabalho pode agora ser organizado como um terceiro partido, com alguma esperança de permanência e de atingir o seu objetivo.

Um partido político hoje deve apoiar o trabalho e a liberdade de trabalho, ou então ele estará apoiando o capital e a exploração do trabalho. Não há possibilidade de representar os dois, assim como não é possível apoiar ao mesmo tempo a liberdade e a escravidão.

Quero ver os trabalhadores desta nação levantarem-se, exercer o poder da sua inteligência e exigir um par-tido próprio, livre, eternamente livre da paralisante podridão dos partidos de chapéu de seda, da riqueza estu-fada, dos proprietários do emprego e dos senhores exploradores de trabalho — um partido com espinha dorsal e coragem para levantar-se sem pedidos de desculpas e proclamar a si mesmo como Partido do Trabalho, limpo, seguro dos próprios e inerentes poderes, ostentando orgulhosamente a etiqueta sindical como símbolo do seu princípio conquistador fundamental de solidariedade política e industrial, e desafiando o conjunto do mundo do capitalismo, para formular o direito desta nação a possuir as próprias indústrias, controlar a própria vida econômica e social e o direito das massas trabalhadoras e produtoras a serem donas dos próprios empregos, para desfrutar os frutos do seu próprio trabalho e para serem os senhores de suas próprias vidas.

Eu suspeito daqueles que admitem que temos de ter um partido do trabalho, mas se opõem a chamá-lo pelo próprio nome. Deveria ser uma questão de orgulho e certamente não de vergonha para um partido do traba-lho ter seu verdadeiro título pregado ao seu mastro.

Se não, por que não? Devemos ter medo de deixar de fora muitos que talvez fossem aderir se agíssemos de outra forma? Essa é a verdadeira razão pela qual o partido deve ser conhecido pelo que ele de fato é, assim como pelo que ele de fato defende. Nós não temos de ter nenhum falso rótulo, nem carregar falsas bandeiras, nem procurar apoio escondendo nossos objetivos, sejam quais forem.

Nós temos de defender explicitamente, e ficar lado a lado com o trabalho — pelas pessoas que produzem, que prestam serviços relevantes, e que são úteis e necessárias para o mundo.

Nós não precisamos distinguir o trabalho industrial e o trabalho agrícola no nome de nosso partido. Ambos são trabalho, de forma análoga, úteis, produtivos e necessários, sujeitos à mesma opressão e exploração, e desti-nados a estarem unidos em uma única solidariedade política no mesmo partido político.

É um fato surpreendente, tanto quanto humilhante, que os trabalhadores dos Estados Unidos, a nação in-dustrial mais avançada do globo, sejam praticamente os únicos que não têm um partido político próprio, es-tando contentes em dar apoio aos partidos corruptos e escravistas de seus senhores, e docemente abaixar os pescoços ao jugo da injunção imposta. Todas as outras nações, grandes e pequenas, com poucas exceções, têm seu partido do trabalho, com todos os seus atributos, travando batalhas políticas para a sua emancipação. Até

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mesmo o México, tanto tempo desprezado pelos nossos completos idiotas como a terra do “engraxate” e dos criados, tem, para nossa vergonha, o seu movimento militante do trabalho, entrando em sintonia com as co-lunas avançadas do Grande Exército Internacional da Emancipação do Trabalho.

Permitam-me deixar claro que não estou querendo outro partido socialista organizado. Já temos um e isso é suficiente. Nem eu quero outro partido capitalista organizado, já temos dois, é mais do que suficiente.

Um partido da classe média, com qualquer nome, continuaria a ser um partido capitalista, porque, mesmo que fosse o campeão dos “pequenos interesses” contra os “grandes interesses”, dando uma gorjeta para o tra-balho, ele continuaria apoiando o sistema capitalista e a perpetuação da escravidão salarial.

Se um genuíno partido do trabalho for organizado em Chicago, não vou esperar que a plataforma assuma as exigências radicais, mas ficarei satisfeito com uma afirmação razoável dos direitos e dos interesses do traba-lho, bem como de seus deveres e responsabilidades, não duvidando que, com o progresso do partido, a sua plataforma, no devido tempo, iria abranger as características essenciais do programa da classe trabalhadora pela libertação da servidão industrial.

O Partido Socialista pode, deve e não tenho dúvidas de que irá aderir calorosamente a um partido desse tipo, tornando-se parte integrante da sua estrutura, mantendo, contudo, a sua completa autonomia e usando todos os seus poderes e funções para construir, equipar, promover e dirigir o partido geral.

Por esse objetivo, o Partido Socialista tem de se manter ereto e destemido, inflexível e intransigente, com a classe trabalhadora na base da luta de classes, e travar a guerra contra o capitalismo pela libertação do trabalho da sua antiga escravidão.

No caso de fracasso em organizar um partido do trabalho em que pudéssemos consistentemente nos afiliar, vou esperar e lutar pela preservação da Conferência para a Ação Política Progressista, com suas periódicas ses-sões e deliberações, até finalmente culminar, como deve finalmente acontecer, no Partido Americano do Trabalho.

Fonte | Disponível em: <www.marxists.org/archive/debs/works/1925/alp.htm>.

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1940 | pArtido SociAliStA do trABAlho dA AméricA

Declaração dos princípios fundamentais*

o partido socialista do trabalho (socialist labour party — slp), criado em 1877, encontra-se entre as mais tradicionais organizações

das esquerdas estadunidenses. sua importância cresceu a partir de 1890, em torno da liderança do advogado Daniel de leon. embora

enfrentando grande resistência, o slp e de leon apoiaram a fundação da Industrial Workers of the World, que se tornaria um dos mais

eficientes instrumentos das lutas sociais dos trabalhadores nos últimos anos do século XIX e nos primeiros do século XX. na Declaração de princípios, abaixo transcrita, relacionam-se as principais referências

do slp. embora escrita em 1940, retoma a plataforma formulada em 1889, o que explica, em parte, a diminuição de sua força política, que

se tornaria evidente nos anos 1960, com o aparecimento de novas forças políticas, como a new left e o movimento verde. Desde 1976,

o slp não lança candidato à presidência da república, restringindo-se a atividades locais e à edição do jornal the people, fundado em 1891.

(g.n.)

O Partido Socialista do Trabalho da América, reunido em convenção, na cidade de Nova Iorque, 29 de abril de 1940, reafirma o direito inalienável do homem à vida, à liberdade e à busca da felicidade.

Afirmamos que o objetivo do governo é garantir a cada cidadão o exercício deste direito; mas ensinados pela experiência que possuímos, afirmamos, além disso, que tal direito é ilusório para a maioria das pessoas, a saber, a classe trabalhadora, nos termos do presente sistema de desigualdade econômica que é essencialmente destrutivo da SUA vida, da SUA liberdade e da SUA felicidade.

Afirmamos que o homem não pode exercer o seu direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade sem a propriedade da terra e dos instrumentos com os quais trabalha. Despojados dos mesmos, sua vida, sua liberda-de e seu destino caem nas mãos da classe que possui estes elementos essenciais para o trabalho e para a produ-ção. Esta propriedade é hoje detida pela minoria na sociedade, a classe capitalista, que exerce através desta propriedade e controle um despotismo econômico sem paralelo na história.

Estatísticas governamentais1 estabelecem que 92% da riqueza da nação é detida por 13% da população, deixan-do a vasta maioria, a classe trabalhadora, ou 87% da população, proprietária de apenas 8% da riqueza da nação.

Essa propriedade da maior parte da riqueza da nação por poucos é prova conclusiva de que o trabalho é roubado da maior parte do produto que ele sozinho produz. Assim, ao trabalhador são negados os meios de autoemprego e, por ociosidade compulsória no quadro da escravidão salarial, é privado até mesmo dos meios indispensáveis à vida.

Afirmamos que a contradição existente entre a teoria do governo democrático e a existência de fato de um sistema econômico despótico — a propriedade privada dos recursos naturais e oportunidades sociais — divide a nação em duas classes: a não produtora, mas proprietária, a classe capitalista; e a produtora, mas sem proprie-dade, a classe trabalhadora; e joga a sociedade nas convulsões da luta de classes, e invariavelmente perverte o governo para o uso e o benefício da classe capitalista.

A hora é agora chegada, quando, como resultado natural da evolução social, este sistema preparou a sua própria ruína. Tendo concluído o seu desenvolvimento normal, o sistema capitalista, e seu reflexo político, o Estado, estão agora desgastados. Não mais capazes de dispor com rapidez das enormes quantidades de exce-dentes de mercadorias em mercados estrangeiros, cada nação capitalista procura desesperadamente eliminar suas concorrentes, com as consequentes guerras e conflitos que convulsionam o mundo civilizado. Nessa luta louca pela sobrevivência, as classes trabalhadoras de todas as nações são as principais vítimas.

Contra tal sistema, o Partido Socialista do Trabalho levanta a bandeira da revolta e exige a rendição incon-dicional da classe capitalista. Na suprema crise, nenhuma medida reformista se sustentará, e a história ensina

1 Informe da Comissão Federal de Comércio (Federal Trade Comission Report), 1926.* No original, Socialist Labor Party of America. Declaration of Fundamental Principles.

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que, quando uma revolução social é iminente e, por qualquer motivo, não se realiza, reação e ditadura são as alternativas. Tendo sobrevivido à sua utilidade social, o capitalismo deve dar lugar a uma nova ordem social — uma ordem social na qual o governo deve apoiar-se na indústria, com base nas profissões úteis, em vez de basear-se na representação territorial (política). O novo sistema social deve forçosamente ser a forma de Go-verno da União Socialista Industrial, se as necessidades da grande maioria forem observadas, e se o progresso se mantiver como a lei do futuro como foi no passado. Aos trabalhadores espoliados cabe o dever de efetuar a mudança revolucionária de forma pacífica, civilizada, usando o voto e tudo o que daí decorre, a fim de con-cretizá-la.

Nós convocamos, portanto, os trabalhadores assalariados da América para se organizarem sob a bandeira do Partido Socialista do Trabalho num corpo consciente de classe, cientes dos seus direitos e determinados a conquistá-los.

Convocamos, além disso, os trabalhadores assalariados da América a organizarem-se em sindicatos indus-triais socialistas, unidos para fazer valer o seu voto e para atender às necessidades e aos propósitos do Governo do Sindicato Socialista Industrial. O Sindicalismo Industrial é a República Socialista em construção; o obje-tivo alcançado — o Sindicato Industrial — é a República Socialista em funcionamento.

E nós também convocamos todos os outros cidadãos inteligentes e socialmente conscientes a se colocarem claramente no terreno dos interesses da classe trabalhadora e se juntarem a nós neste grande e nobre trabalho pela emancipação humana, de modo que possamos pôr um fim sumário ao atual conflito bárbaro de classe, colocando a terra e todos os meios de produção, transporte e distribuição nas mãos dos produtores úteis como uma entidade coletiva, e substituindo o atual estado de produção não planejada, de guerras industriais e inter-nacionais e desordem social pela Comunidade Cooperativa Socialista Industrial2 — uma comunidade em que cada trabalhador disporá do livre exercício e pleno benefício de suas faculdades, multiplicados por todos os fatores da civilização moderna.

Fonte | Disponível em: <www.slp.org>.

2 Socialist Industrial Cooperative Commonwealth.

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1948 | henry WAllAce

Meus compromissos: a traição dos velhos partidos — discurso de aceitação da candidatura à presidência dos EUA pelo partido progressista*

Henry Wallace teve uma trajetória política muito peculiar. ligado desde cedo à agricultura, Wallace era a princípio um republicano

liberal, mas, com a realização do programa do new Deal, converteu-se ao partido Democrata. Durante o primeiro e o segundo mandatos de F. D. roosevelt, foi secretário de agricultura. no terceiro mandato

(1941-1944), tornou-se vice-presidente. Começou, então, a criticar os democratas conservadores e a defender posições progressistas.

Colocou-se contra a segregação imposta aos negros, a favor de melhores condições para os trabalhadores imigrantes da América latina

e, no tocante à política externa, defendia uma posição moderada em relação à união soviética. tais posições, consideradas demasiadamente

esquerdistas, acabaram por indispô-lo com segmentos do partido Democrata. por conta disso, deixou de ser indicado para a vice-

presidência, sendo substituído por H. truman na disputa do quarto mandato de roosevelt. nos anos subsequentes, Wallace tornou-se

um crítico veemente da chamada Doutrina truman, a política externa agressiva dos euA no início da guerra Fria. Assim, foi levado a deixar

o cargo de secretário de comércio e, em 1948, decidiu concorrer à presidência pelo partido progressista, contra o próprio presidente

truman. sua plataforma previa a defesa dos direitos dos negros, planos de assistência aos trabalhadores, maior liberdade aos sindicatos e,

principalmente, a promessa do fim da guerra Fria com a abertura de negociações com o governo soviético. Wallace usava Jefferson e lincoln

como referências, mas, no contexto de guerra Fria e da trajetória do partido progressista, partido no qual militavam muitos comunistas, foi

acusado de ser partidário do socialismo e do alinhamento com a união soviética. Henry Wallace pode ser visto como a encarnação do espírito

mais liberal e idealista do new Deal. (g.n. e C.A.)

o DISCurSo De ACeItAção

Há quatro anos e quatro dias atrás, como vice-presidente dos Estados Unidos e chefe da delegação de Iowa à Con-venção do Partido Democrata, eu me levantei para apoiar a escolha de Franklin Roosevelt e afirmei: “O futuro pertence àqueles que observam sem condições os princípios liberais tanto da democracia política quanto da demo-cracia econômica, independentemente de raça, cor ou religião. [...] Roosevelt pode e irá liderar os Estados Unidos, em cooperação com o resto do mundo, no sentido deste tipo de paz que irá prevenir a Terceira Guerra Mundial”.

Isso foi há quatro anos. Vocês se lembram daquele verão de listas de mortos e de destruição ainda fumegan-te nas praias da Normandia? Um período de morte e destruição [...] e, mesmo assim, havia algo mais.

Pois naquele tempo, vocês se lembram, todos nós tínhamos um sonho. No torno mecânico, nos campos de manhã cedo, na janela da cozinha, suando na linha de montagem, todos nós sonhávamos com um momento em que o som da paz voltaria à terra, e não haveria mais medo, e os homens iriam começar a construir de novo.

VISão DA pAz

E naquele período sombrio, vocês se lembram, Franklin Roosevelt olhou além do horizonte e nos deu uma visão da paz, uma carta de direitos econômicos; o direito ao trabalho, para todos os homens que o desejassem. O direito de toda família a uma casa decente. O direito à proteção em relação aos temores da velhice e da doença. O direito a uma boa educação. Todos os direitos que significam segurança para todo homem, mulher e criança, do berço ao túmulo.

Era o sonho que todos nós tínhamos, e que Roosevelt traduziu em palavras, e nós o amávamos por isso.Dois anos depois, a guerra tinha acabado e Franklin Roosevelt tinha morrido.

* Extratos de, no original, My commitments: betrayal by old parties (acceptance speech of the Progressive Party).

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E o que sucedeu foi uma grande traição. Em vez do sonho, nós herdamos desilusão. Em vez dos anos pro-metidos de colheita, anos de gafanhotos estão sobre nós.

Em Hyde Park, eles enterraram o nosso presidente e em Washington enterraram nossos sonhos.No dia seguinte à morte de Roosevelt, Harry Truman adentrou a Casa Branca. E quarenta e seis dias mais

tarde Herbert Hoover estava lá. Foi um período de idas e vindas.E no governo entraram os fantasmas da Grande Depressão, os representantes dos banqueiros e diplomatas

do petróleo.Entravam generais e saíam os homens que criaram o TVA1 e a Grand Coulee2 — os homens que tinham

planejado o seguro social e o projeto federal de habitação, os homens que resgataram o fazendeiro dos rigores da seca e o trabalhador das fábricas exploradoras. Um tempo de idas e vindas. [...] as sombras do passado en-trando rapidamente e as luzes se apagando lentamente — o êxodo dos pioneiros do New Deal.

Eu ainda estava no meu gabinete — esperando que ainda pudéssemos retornar, de alguma forma, para o caminho de paz indicado por Franklin Roosevelt para nossa nação. E com esta grande esperança, há dois anos, neste mês, eu escrevi ao presidente.

Eu o alertei para o fato de que tínhamos nos deixado guiar por uma orientação cínica, que os banqueiros, os especuladores e os ricos tinham nos lançado numa política perigosa — a “política do endurecimento”.

ConFIAnçA MútuA

Eu disse então que “nossas ações no pós-guerra ainda não tinham sido ajustadas às lições aprendidas pela ex-periência de cooperação com os aliados durante a guerra e pelos fatos da era atômica”.

Eu afirmei que seria inútil buscar soluções para problemas específicos sem estabelecer uma atmosfera de confiança mútua e amizade e eu alertei que nossa política “dura” iria apenas produzir uma política ainda mais “dura”. Esse aviso foi feito antes das crises na Grécia, na Itália, na Palestina e na Tchecoslováquia. Esse aviso foi feito há dois anos — dois antes de Berlim.

Vocês leram os jornais. Nestes dois anos as pessoas que tinham planos para a vida foram removidas de Wa-shington e os fantasmas que planejam a destruição foram convidados a entrar — nestes dois curtos anos, em que o Departamento de Estado foi sutilmente anexado ao Pentágono e a mão dos militares veio guiar a cane-ta do diplomata — e nós ricocheteamos de crise em crise.

A política “dura” gerou seu inevitável fruto — a política “mais dura”.

oS olHoS Do MunDo eM BerlIM

E o que foi colhido por toda a nossa esperança, quais foram os frutos da nossa árdua vitória? Não foi a paz — mas a espada; não uma carta de direitos econômicos —, mas uma carta cheia de erros.

Não a vida — mas a morte de dezenas de milhares em desnecessários campos de batalhas na Grécia, na Palestina e na China.

Um mundo sim, mas congelado por um mesmo medo.Os olhos do mundo estão hoje voltados para o centro quente da Guerra Fria — Berlim. Berlim poderia não

ter acontecido. Berlim não ocorreu. Berlim foi provocado.Quando nós entramos no caminho da política dura, eu avisei que esse resultado seria inevitável. Berlim está

se transformando no resultado previsto.Não há razão para que a paz do mundo dependa de ações de um punhado de militares em serviço na Alemanha!Honestamente, eu garanto a vocês que se eu fosse presidente, não haveria crise em Berlim hoje. Eu garan-

to a vocês que, sem o sacrifício de nenhum princípio americano ou do interesse público, nós teríamos che-

1 O Tennessee Valley Authority (TVA) foi um importante programa desenvolvimentista adotado nos anos 1930 pelo governo F. D. Roose-velt para atenuar os efeitos da Grande Crise de 1929 (N. do T.).2 Grand Coulee, uma das maiores represas dos EUA localizada em Washington, foi uma das iniciativas do governo F. D. Roosevelt no quadro das políticas antidepressivas adotadas pelo Estado nos anos 1930 (N. do T.).

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gado a um acordo há muito tempo com o Governo Soviético e com nossos outros aliados do tempo da guerra.

Há muito tempo poderíamos ter adotado uma política para a Alemanha, sobre a qual seria possível criar fundamentos sólidos para o estabelecimento da paz em toda a Europa.

AleMAnHA, o CorAção DA CrISe

Não é acidental que a Alemanha tenha se tornado, de novo, o coração da crise.A Alemanha estará no centro de toda crise mundial até que cheguemos a um acordo com a União Soviéti-

ca. Nós fomos levados a uma política cujo propósito específico foi isto e apenas isto: reviver o poder dos in-dustrialistas e dos cartéis que aclamaram Hitler e financiaram o seu fascismo e foram fontes importantes da sua máquina de guerra.

Na zona ocidental da Alemanha hoje, nos dizem que temos “paz com justiça”.Essa chamada justa paz não é justa. É uma paz que reconstrói o potencial bélico da indústria alemã na zona

oeste.Essa justiça tem sido dispensada por juízes locais, dos quais 70% trabalhavam com os nazistas. A indústria

bélica alemã está em ascensão de novo — e seus gerentes são os mesmos homens de Krupp e de I.G. Farben que ajudaram a tornar a Alemanha a terra de Hitler.

Não há paz, não há justiça — tanto para os aliados quanto para os antigos inimigos, na nossa política alemã. É um filho concebido pela sede de poder e de lucro.

Com uma Alemanha preparada e fortalecida como o posto oriental mais avançado de outra guerra, não poderemos alcançar a paz. Nem o mundo que assiste a isso desesperançado.

Eu repito. Se eu fosse presidente, não haveria crise em Berlim. Vocês se lembram quando — apenas há dois meses — nosso embaixador em Moscou enviou uma nota para o Kremlin? Era uma nota que parecia ser um convite para conversar em termos racionais — um convite para tratar dos problemas que haviam criado esse estado de crise contínua. Vocês lembram que os russos responderam de forma que parecia ser verdadeiramente ansiosa? Vocês se lembram daquele dia. Parecia que alguém havia repentinamente declara-do a paz. Sentem-se e conversem — nós dissemos —, este é o caminho. Mas o que aconteceu? Em 24 horas, nosso governo, tendo consultado o partido de oposição papel-carbono,3 bateu a porta que ele próprio tinha entreaberto.

Naquele dia, escrevi uma carta pública ao premier Stalin.4 Detalhei um programa que teria resguardado os interesses de ambas as nações e preservaria a paz. Dez dias depois, quando Stalin respondeu àquela carta pú-blica, os rapazes “durões” bateram a porta de novo. Desde aquela época não houve mais aproximações — ex-ceto no sentido de conflitos. Em toda cortina há dois lados. E assim, a Alemanha ainda dificulta qualquer iniciativa de paz — no entanto, ao fechar as portas das conversações de paz com os líderes russos, nada resta além de discussões inúteis entre oficiais de baixa patente em Berlim.

A CrISe não é neCeSSárIA

Eu afirmo que a paz mundial é frágil demais para ser jogada de um lado para outro num estreito corredor de ar por onde passam aviões de carga.5 Eu digo que a vida de nossas crianças e dos pais de nossas crianças são preciosas demais para serem deixadas à mercê do humor de segundos-tenentes em bloqueios de rua que de-marcam a separação de zonas — ou à mercê de generais que são conhecidos por serem calmos defensores de uma “demonstração de força”.

3 O papel-carbono, nas velhas máquinas de datilografia, garantia uma reprodução fiel da original, como o xérox de hoje (N. do T.).4 Wallace utiliza um termo equivocado — premier — para Stalin, que era o secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética (N. do T.).5 Na crise de Berlim (1948-1949), a parte ocidental da cidade só podia ser alcançada através de “corredores” determinados pelos soviéticos e pelos quais só podiam trafegar os aviões de carga dos EUA que levavam suprimentos à Berlim Ocidental (N. do T.).

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Eu digo que se homens razoáveis, homens sem interesses especiais, amantes da paz — como Franklin Roosevelt — estivessem em Washington hoje — não haveria crise em Berlim. Muito antes disso líderes de ambas as nações teriam eliminado as razões do conflito. Nós ouvimos dizer que precisamos tomar uma decisão em Berlim. Mas qual seria essa decisão? Que interesses públicos americanos seriam atendidos por essa decisão? Deve haver alguns interesses privados envolvidos. [...] alguns interesses de Dillon, de Read e de banqueiros internacionais. Mas não há interesse público. Dillon, destacado ex-aluno de Read, o secretá-rio de Estado, Forrestal, o general Draper e Dewey, o advogado de Wall Street e John F. Dulles, são os mais importantes conselheiros nesta questão; mas eu não conheço nenhum cidadão americano trabalhador na fábrica ou no campo, estudante universitário ou empresário independente que daria sua vida para defender Dillon e Read.

Eu acho que devemos lançar um olhar frio sobre alguns fatos que se afiguram diante de nós se a guerra fria se tornar uma guerra quente: não há uma nação no continente europeu que esteja preparada para armar um exército efetivo para defender os anglo-saxões, ou seja, as políticas dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha.

DeSIStIMoS polItICAMente De BerlIM

Nós podemos comprar generais com dólares, mas não podemos comprar exércitos de guerra. Esses generais não morrerão em batalhas. Soldados, sim. Nós podemos apoiar — e estamos apoiando — exércitos duran-te esse período de guerra fria, mas não podemos comprar o suicídio. Nós podemos comprar governos, mas não podemos comprar povos. Diz-se que precisamos tomar uma decisão ou perderemos prestígio. Truman pode perder prestígio. Dulles pode perder prestígio. Mas o povo americano não perderá prestígio ao exigir discussões fundamentais objetivando a paz. Nosso prestígio na Alemanha foi afundando quando dividimos o país e estabelecemos o setor ocidental como um Porto Rico norte-americano e inglês — como uma colônia. Ao fazermos isso, nós desistimos de Berlim politicamente e não podemos perder nada se desistir-mos disso militarmente visando à paz. Nós, que nos encontramos aqui esta noite — neste momento de crise —, estamos falando ao povo dos Estados Unidos e ao mundo em nome dos princípios eternos dos Pais Fundadores de nosso país. Nós, que estamos reunidos aqui esta noite, recordamos a crise de 150 anos atrás, quando Thomas Jefferson foi atacado aqui, na cidade de Filadélfia — atacado porque falou de forma cora-josa em favor de um acordo pacífico que acabaria com as supostas diferenças entre os Estados Unidos e a França.

JeFFerSon CAlunIADo

Foi um tempo de terror sem precedentes até agora. Thomas Jefferson foi caluniado como se fosse um instru-mento de revolucionários franceses, comprado pelo ouro francês. Há 150 anos Thomas Jefferson liderou a formação de um novo partido — um novo e bem-sucedido partido, que superou as pressões de uma imprensa hostil, dos ricos interesses bem-estabelecidos, que se organizaram contra ele, e de um governo que queria acabar com o novo movimento prendendo seus líderes.

O partido que Jefferson fundou há 150 anos foi enterrado aqui, na Filadélfia, semana passada. Não poderia sobreviver aos Pauleys, aos Hagues, aos Crumps, ao racistas, aos beatos, aos generais, aos almirantes, aos pupi-los de Wall Street. O partido fundado por Jefferson morreu nos braços de Truman. Mas o espírito que animou o partido nos dias de Jefferson foi capturado novamente. Foi capturado por aqueles que se encontram aqui nesse fim de semana com a firme decisão de manter nossa tradição de liberdade, cumprindo a promessa de uma vida pacífica e abundante para todos os homens.

A DeGrADAção Do pArtIDo De lInColn

Há 87 anos, o candidato vitorioso de outro partido novo tomou posse em Washington. Com a Proclamação da Emancipação, Lincoln cumpriu a promessa do novo partido que ele conduziu à vitória. Ele liderou um governo do povo, pelo povo e para o povo. Nas gerações que se sucederam, esse partido se tornou o partido

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das corporações, pelas corporações e para as corporações. O partido de um Lincoln reduziu-se ao partido de um Dewey.

Mas aqui, essa noite, nós, do Partido Progressista, queremos nos dedicar à realização completa da promes-sa de Lincoln; nós queremos nos consagrar a uma segunda emancipação; uma emancipação que irá prover para todos os negros e todos os americanos de todas as raças, credos e origens nacionais, uma cidadania inte-gral, livre e sem restrições, em todas as partes destes Estados Unidos. Nós vamos nos aliar contra aqueles que transformam sonhos de paz e igualdade em pesadelos. Nós vamos nos aliar contra os reis dos privilégios que são donos dos velhos partidos, os partidos corruptos, os partidos cujos líderes se rebelaram em tempos passa-dos, assim como fazemos hoje, contra aqueles cuja ganância privada subverte o bem-estar geral. Nós nos colocamos contra sua guerra fria e sua difamação vermelha, sob cuja cobertura roubam nossos recursos, ins-talam o terror em nossos corações e tentam controlar os pensamentos e dominar a vida dos homens ao redor do mundo.

polítICAS AlIMentAM DeSAStreS

Nós estamos juntos para frear os desastres econômicos, políticos e militares que as suas políticas irão certamen-te alimentar. Apenas os que adotarem o espírito de Jefferson e Lincoln e o aplicarem à situação atual do mun-do podem trazer a paz e a segurança que acabarão com o medo e libertarão um poder de criação que está além do que podemos imaginar. Foi seguindo o espírito de Jefferson e de Lincoln que Roosevelt desafiou os cam-bistas no seu primeiro discurso de posse, quinze anos atrás. Foi no espírito de Jefferson e Lincoln que ele disse a um público de Wall Street, em 1940, que eles tinham encontrado quem os controlaria. No espírito de Jeffer-son e Lincoln, ele enfatizou as Quatro Liberdades e uma carta de direitos econômicos. Foi no espírito de Je-fferson e Lincoln que ele se dirigiu àquele grande senador George Norris e afirmou: “Eu o acompanho, pois acredito honestamente que você segue os passos deles — radical como Jefferson, idealista como Lincoln, de-cidido como Theodore Roosevelt, teórico como Wilson — ousado por ser tudo isso como você tem ousado nestes anos passados”.

Franklin Roosevelt não tinha medo; ele se divertia com os nomes lançados por aqueles que tinham medo da dimensão de seu sonho. Nós, do novo partido — o Partido Progressista —, devemos apreciar os adjetivos e a montanha de ódio lançados sobre nós. Eles são a medida do medo nos templos dos especuladores e nos clubes militares. A base metálica das injúrias não pode resistir ao ataque da verdade.

preCISAMoS De HoMenS DA FronteIrA

Nós, do Partido Progressista, precisamos — e iremos — levar adiante o legado de Roosevelt, Norris e La Guardia. Para nós, eles preservaram o que era mais precioso, o americanismo antigo que foi construído para nós por Jackson, Lincoln, Theodore Roosevelt e Woodrow Wilson. Há alguns que concordam com os nossos objetivos, mas dizem que estamos à frente do nosso tempo. Mas nós somos a terra dos pioneiros e desbravado-res de trilhas. Apesar de termos chegado ao fim das velhas trilhas para o oeste, temos uma nova fronteira6 que se levanta diante de nós. A fronteira da pobreza, da doença e do medo. Mais uma vez, a América precisa de homens da fronteira. Uma nova fronteira nos espera — não mais aquela a oeste, a do Pacífico, mas à frente, através da fronteira da pobreza, da doença e do medo. Nós nos movemos como os barcos dos peregrinos se moveram, como os vagões de Conestoga se moveram, não à frente do nosso tempo, mas na mesma onda. E sempre diante de nós, a estrela brilhante, o sonho da terra prometida, que essa nação pode ser.

Mas o sonho americano não é uma visão de utopia. Nós não planejamos foguetes para viagens de fim de semana a Marte. O sonho é a verdade difícil e simples do que pode ser feito. Em uma frota de bombardeiros

6 Wallace usou o termo wilderness, de difícil tradução para o português, já que o termo encerra um simbolismo muito significativo na com-posição da identidade norte-americana. Os sentidos de wilderness, fronteira e oeste encontram-se muitas vezes imbricados. No discurso de Wallace o termo poderia ser traduzido como fronteira ou desafio, já que fronteira, no imaginário norte-americano, associa-se não a limite, mas ao novo, a utopia (N. do T.).

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pesados existem riqueza e conhecimento que poderiam salvar Vanport das inundações, que poderiam retirar um milhão de veteranos de seus trailers e galinheiros.

Nós podemos construir novas escolas para resgatar nossas crianças das construções, com alto risco de incên-dio, em que se amontoam em duplas numa mesa. Nós podemos acabar com a tirania assassina da doença e do mal. O sonho nada mais é do que um conjunto de fatos. O fato é que gastamos $20.000.000.000 por ano com a guerra fria. O fato é que as autoridades mundiais de saúde, tendo disponível um décimo dessa quantia, po-deriam, em um ano, com $2.000.000.000, extinguir da terra doenças como tuberculose, febre tifoide, malária e cólera!

A Morte De MIlHõeS

A Guerra Fria já trouxe a morte para milhões de americanos. Observem os amigos. Leiam os jornais. Aqui estão as listas de mortos. Milhões — doentes de câncer, tuberculose, pólio, doenças do coração, pelagra. Po-demos prevenir e curar não só essas doenças, mas também várias outras ao investir e dedicar a nossa ciência, de modo igualmente entusiasmado, à paz, como à guerra.

Uma nação que é moldada para a vida, não para morte, pode salvar essas vidas — suas vidas, as vidas dos seus familiares. Juntos precisamos nos levantar e dar um fim às listas de vítimas da Guerra Fria. Este é a ma-neira americana de ser — conquistar as forças da natureza, e não nossos semelhantes.

No ultimo mês outros homens, candidatos dos partidos da morte, apresentaram-se nesta cidade, exibindo seus músculos e declarando sua intenção de continuar a Guerra Fria, guerra cujas perdas mais pesadas têm sido extraídas daqui, de casa. Ambos têm dito que “políticas partidárias devem ser suspensas na linha do litoral”. Eles declararam estar de acordo. Um acordo que poderá representar o fim da nação e do mundo. Acordo sobre políticas que operam para além da linha do litoral; políticas que exigem armas pesadas e a convocação de sol-dados e o desperdício de recursos e conhecimentos para produzir um desastre — são essas políticas que deter-minam o salário efetivo dos trabalhadores americanos, os preços para os consumidores americanos e a expec-tativa de vida de todos os povos do mundo.

CoMproMISSoS

Sim, outros candidatos se colocaram diante do povo americano para declarar que não fizeram compromissos para obter suas indicações. Mas se comprometeram eles mesmos; se comprometeram com as políticas dos ricos, dos que estão cheios de ouro; com as políticas de militarização e do imperialismo; com as políticas que lançam uma mortalha sobre o caminho de doação de vidas, de salvação de vidas que Franklin Roosevelt tinha plane-jado para o mundo do pós-guerra. Digo francamente a vocês que, ao obter a indicação do Partido Progressis-ta — uma indicação que aceito com orgulho —, assumi compromissos. Eu os assumi em cada canto desta terra. Eu os assumi em grandes auditórios e arenas esportivas, em grandes comícios ao ar livre e em pequenas reuniões. Fiz compromissos no porão de uma igreja negra, em auditórios de sindicatos e em piquetes. Assumi compromissos. Eu os assumi livremente. Devo me guiar por eles. E os repito com orgulho: assumi o compro-misso de colocar os direitos humanos à frente dos direitos de propriedade.

Assumi o compromisso de utilizar o poder da democracia para controlar rigorosamente e, quando necessá-rio, remover de mãos privadas para mãos públicas o poder dos grandes monopólios corporativos e das grandes empresas internacionais.

Eu me comprometi com negociações de paz com o governo soviético. Comprometo-me a fazer tudo o que for possível para, através do novo partido, salvar as vidas daqueles que agora estão para ser convocados, pelo estabelecimento da paz sem o sacrifício de nenhum princípio americano ou do interesse público.

pArA AJuDAr oS poVoS Do MunDo

Meu compromisso é designar para as posições no ministério e no governo homens cuja formação e interesses privados não entrem em conflito com suas responsabilidades públicas.

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Comprometo-me a construir e a fortalecer as Nações Unidas como instrumento para resolver pacificamen-te diferenças entre as nações.

Comprometo-me a usar o poder e o prestígio dos Estados Unidos para ajudar os povos do mundo, e não seus exploradores e governantes; para ajudar os povos sofridos e frustrados nas áreas coloniais do mundo, como ajudamos aquelas nações que foram atingidas diretamente pela força destrutiva da guerra.

Comprometo-me a planejar tão cuidadosa e efetivamente a produção da paz como os militaristas e banquei-ros planejam e conspiram pela guerra. Pois hoje muitos dos 60 milhões de empregos são empregos da guerra fria, instáveis e suicidas. Comprometo-me a abrir 60 milhões — e mais — empregos na produção para a paz — na construção de moradias, de escolas, de represas, fábricas, estradas e clínicas.

CApItAlISMo proGreSSIStA

Comprometo-me com um programa de capitalismo progressista — um programa que irá proteger a força produtiva e criativa das iniciativas verdadeiramente independentes dos tentáculos dos monopolistas.

Comprometo-me a lutar, com todas as forças que tenho, contra a feia prática de sufocar, pelas injunções da lei Taft-Hartley e o poder do governo, a livre organização sindical de nossos trabalhadores. Comprometo-me a eliminar as causas do conflito industrial e das práticas antitrabalho; a retornar aos princípios básicos da Lei Nacional das Relações de Trabalho (National Labor Relations Act) e fortalecer as organizações democráticas que dão aos nossos trabalhadores proteção contra a injustiça política e econômica.

Estou prometendo lutar contra os assassinos que bloqueiam, impedem e restringem legislações e medidas apropriadas que poderiam eliminar a segregação e prover estruturas de saúde e educação que permitiriam eliminar a distância de dez anos entre a expectativa de vida de uma criança negra e de uma criança branca que nasçam no dia de hoje.

Estou prometendo conter a inflação através do fim da guerra fria, do lucro impiedoso dos monopólios e do desperdício de recursos que poderiam nos dar uma abundância de bens na paz.

CoMproMISSo CoM A pAz

Comprometo-me a ajudar a retirar a mão pesada do medo dos cidadãos idosos, cujos corpos e mentes servi-ram para construir essa América, e cuja recompensa deve ser a segurança econômica para garantir que a passagem dos seus dias seja com a paz de espírito em recompensa ao trabalho bem feito e reconhecido. E comprometo-me com esses programas — principalmente o programa para a paz, que deve retirar dos jovens o medo da guerra, do alistamento militar e do desemprego, e que deve substituir esses medos pela esperança que nasce da segurança e da igualdade de oportunidade, para desenvolver integralmente seus talentos e car-reiras individuais.

Comprometo-me — como estive comprometido durante toda a minha vida — em avançar os programas para a agricultura que devem aumentar a produtividade da nossa terra e melhorar a vida de nossos fazendeiros e de suas famílias.

Comprometo-me a parar a construção do medo; a usar todos os meus poderes para impedir que os criado-res do medo entravem as mentes das pessoas com a “questão vermelha”. O povo americano quer e merece menos “questões vermelhas” e mais carne vermelha. Milhões sabem e outros milhões devem saber que não foi o Kremlin, que não foram os comunistas que subiram o preço do leite para 24 centavos o galão, e o da carne para $1,30, a libra; que esta é a questão vermelha, e que não foram os vermelhos que fizeram isso conosco.

Sim. Estou comprometido e tenho confiança de que o novo partido irá se comprometer com o princípio de usar nosso processo democrático com o fim de que todos os homens possam gozar dos benefícios disponibili-zados pela ciência moderna.

E comprometo-me e renuncio efetivamente ao apoio daqueles que praticam o ódio e pregam o preconceito; daqueles que limitariam os direitos civis dos outros; daqueles que limitariam o exercício do voto; daqueles que advogam a força e a violência; e comprometo-me a aceitar e efetivamente aceito o apoio daqueles que estão de

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acordo com o programa de paz que explicitei aqui; o apoio de todos aqueles que verdadeiramente acreditam na democracia.

Julho de 1948.

Fonte | Disponível em: <www.trumanlibrary.org/whistlestop/study_collections/1948campaign/large/docs/documents/index.php?document- date=1948-07-24&documentid=88&studycollectionid=Election&pagenumber=1>.

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1961 | WilliAm edWArd BurghArdt du BoiS

Solicitação de filiação ao partido Comunista dos Estados Unidos*

por décadas, a preocupação de W.e.B. Du Bois com o que via como o problema do século — a discriminação racial — passou à margem do

socialismo marxista. Isso mudou com a revolução russa, que começou a chamar a sua atenção para outras possibilidades na luta contra o

racismo. o contato com a experiência soviética deixou-o impressionado, tal como aconteceu a muitos intelectuais do ocidente que visitaram o país na mesma época — anos 1920 —, tornando-o um entusiasta do regime liderado por stalin. Du Bois retornaria aos países comunistas

várias vezes, incluindo não só a urss, mas também a China e a europa oriental. em 1961, filiou-se ao partido Comunista dos estados unidos

da América, o que teria grandes consequências para sua vida: nesse mesmo ano, após partir para gana a convite do governo local para a produção de uma “enciclopédia africana”, teve negada a renovação

de seu passaporte. Desiludido, Du Bois rompeu com a perspectiva original de integração entre a identidade étnica e identidade nacional:

cada vez mais envolvido com o pan-africanismo, renunciou à cidadania americana e tornou-se cidadão ganense. Morreu em 27 de agosto

de 1963, em Acra, capital de gana, aos 95 anos — um dia antes do famoso discurso “eu tenho um sonho”, de Martin luther King. suas

últimas palavras: “sou negro, não norte-americano”. (r.F. e C.A.)

No primeiro dia de outubro de 1961, estou solicitando admissão à filiação no Partido Comunista dos Estados Unidos. Meditei devagar e longamente para chegar a esta conclusão, mas, finalmente, minha vontade está definida.

Na faculdade, eu ouvi o nome Karl Marx, mas não li nenhuma de suas obras, nem as ouvi explicadas. Na Universidade de Berlim, ouvi falar muito dos pensadores que haviam feito comentários definitivos sobre as teorias de Marx, mas, novamente, não estudamos o que Marx havia dito. No entanto, assisti a reuniões do Partido Socialista e eu próprio me considerava um socialista.

No meu retorno para a América, ensinei e estudei durante dezesseis anos. Investiguei a teoria do socialismo e estudei a organização da vida social dos negros americanos, mas ainda assim, nem li, nem ouvi muito sobre o marxismo. Então, vim para Nova Iorque como um quadro da nova NAACP1 e editor da revista Crise. A NAACP era de orientação capitalista e esperava o apoio de ricos filantropos. Mas ela tinha um forte elemento socialista na sua liderança em pessoas como Maria Ovington, William English Walling e Charles Edward Russell. Seguindo o conselho deles, aderi ao Partido Socialista em 1911. Eu não sabia então nada sobre práticas políticas socialistas e, na campanha de 1912, cheguei à conclusão que não queria votar na chapa socialista, mas aconselhei negros a votarem em Wilson. Isto era contrário às regras do Partido Socialista e, consequentemen-te, retirei-me dele.

Durante os vinte anos seguintes, tentei desenvolver um modo de vida político próprio, para mim e meu povo. Ataquei os democratas e os republicanos por monopólio e restrições ao voto dos negros; ataquei os so-cialistas por tentarem segregar membros negros sulistas; e elogiei as atitudes raciais dos comunistas, mas me opus a suas táticas no caso dos rapazes de Scottsboro2 e à sua defesa de um estado negro. Ao mesmo tempo, comecei a estudar Karl Marx e os comunistas; li Das Kapital e outros livros comunistas; saudei a Revolução Russa de 1917, mas fiquei confuso com as notícias contraditórias sobre a Rússia.

Finalmente, em 1926, comecei um novo esforço; visitei terras comunistas. Fui para a União Soviética em 1926, 1936, 1949 e 1959; vi a nação desenvolver-se. Visitei a Alemanha Oriental, a Tchecoslováquia e a Polô-nia. Passei dez semanas na China, viajando por todo o país. Então, neste verão, fiquei um mês na Romênia.

1 National Association for the Advancement of the Colored People (Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor) (N. do T.).2 Julgados no Alabama em 1931, oito jovens negros foram condenados por terem estuprado duas garotas brancas, apesar de uma delas ter admitido tempos depois que a acusação era falsa (N. do T.).

* No original, Communist Party USA — CPUSA.

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Antes, eu estava convencido de que o socialismo era um excelente modo de vida, mas pensava que poderia ser alcançado por vários métodos. Quanto à Rússia, estava convencido de que ela tinha escolhido o único caminho aberto para ela na época. Vi a Escandinávia escolher um método diferente, a meio caminho entre capitalismo e socialismo. Nos Estados Unidos, vi as Cooperativas de Consumidores como um caminho do capitalismo ao socialismo, enquanto a Inglaterra, a França e a Alemanha se desenvolviam no mesmo sentido à sua própria maneira. Após a Depressão e a II Guerra Mundial, fiquei desiludido. O movimento Progressista nos Estados Unidos fracassou. A Guerra Fria começou. O Capitalismo chamava o Comunismo de um crime.

Hoje cheguei a uma firme conclusão: o capitalismo não pode reformar a si próprio, está condenado à auto-destruição. Nenhum egoísmo universal pode trazer bem-estar social para todos.

O comunismo — o esforço de dar a todos os homens o que eles precisam e de pedir, a cada um, o que de melhor eles podem dar — fez e fará erros, mas hoje marcha triunfalmente em educação e em ciência, em casa e comida, com crescente liberdade de pensamento e de emancipação de dogmas. No fim das contas, o comu-nismo triunfará. Eu quero ajudar para que chegue esse dia.

O caminho do Partido Comunista Americano é claro. Ele oferecerá aos Estados Unidos um verdadeiro terceiro partido e irá, portanto, restaurar a democracia nesta terra. Ele defenderá os seguintes pontos:

1. Propriedade pública dos recursos naturais e de todos os capitais.2. Controle público dos transportes e das comunicações.3. Abolição da pobreza e limitação da renda pessoal.4. Não exploração do trabalho.5. Medicina social, com hospitalização e cuidados médicos para os idosos.6. Educação gratuita para todos.7. Formação profissionalizante e empregos para todos.8. Disciplina para o crescimento e reformas.9. Liberdade sob a lei.10. Nenhuma religião dogmática.

Estes objetivos não são crimes. Eles são cada vez mais praticados no mundo inteiro. Nenhuma nação pode chamar a si própria de livre se não permitir que seus cidadãos trabalhem por esses objetivos.

Fonte | Disponível em: The W.E.B. Du Bois Virtual University <http://members.tripod.com/~DuBois/index.htm>.

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1964 | mAlcolm X

O voto ou a bala*

nascido em omaha, nebraska, Malcolm little (1925-1965) teve uma infância marcada pela discriminação racial. o pai, um pastor freelancer

adepto do movimento de Marcus garvey pelo retorno dos negros à áfrica, foi assassinado pela Black legion, uma variante da Ku-Klux-Klan,

quando Malcolm tinha 6 anos. pouco depois, a família little se dispersou quando a guarda dos filhos foi retirada da mãe, acusada de insanidade.

Malcolm foi então morar com uma meia-irmã no bairro negro de roxbury, Boston, tendo, mais tarde, se mudado para o Harlem, em nova

Iorque. Ali, Malcolm envolveu-se com o crime, sendo preso por roubos de residências. na prisão, converteu-se à nação do Islã (nation of Islam - noI), uma vertente muçulmana que apregoava a superioridade negra e a malignidade inerente dos brancos, liderada por elijah Muhammad.

renomeado Malcolm X, o recém-converso tornou-se o principal porta-voz da noI e ganhou celebridade como ardoroso defensor do separatismo

negro e da resistência à violência racial “por todos os meios necessários”. Mais tarde, após romper com Muhammad elijah e fazer uma peregrinação

à cidade sagrada de Meca, em 1964, Malcolm tornou-se mais aberto à ideia da convivência pacífica entre pessoas de raças diferentes. Mas

teve pouco tempo para elaborar as novas posições. em 21 de setembro de 1965, foi assassinado durante uma palestra em nova Iorque. três

membros da noI foram condenados pelo crime, mas apenas um confessou. Ainda há dúvidas quanto à real relação do FBI (polícia federal americana) ou do Departamento de polícia de nova Iorque com o crime.

o discurso a seguir foi proferido em 3 de abril de 1964 na cidade de Cleveland, ohio, pouco depois do rompimento de Malcolm com a

noI. Malcolm denuncia a negação não só dos direitos de cidadania, mas também dos próprios direitos humanos dos negros na sociedade

estadunidense; e traça um paralelo entre a situação deles e a dos diversos povos do terceiro Mundo, propondo a intervenção da onu

para pôr fim à situação de injustiça. (r.F.)

Senhor Moderador, irmão Lomax, irmãos e irmãs, amigos e inimigos: eu não posso acreditar que todo mun-do aqui é um amigo e não quero deixar ninguém de fora. A questão desta noite, como eu a entendo, é: “A revolta negra e para onde vamos” ou “Qual é o próximo passo?”. Na minha modesta forma de entender, ela aponta para o voto ou para a bala.

Antes de explicar o que queremos dizer com o voto ou a bala, gostaria de esclarecer algo a meu respeito. Ainda sou muçulmano; a minha religião ainda é o Islã. É a minha crença pessoal. Assim como Adam Clayton Powell é o pastor cristão que coordena a Igreja Batista Abissínia de Nova Iorque, mas ao mesmo tempo toma parte nas lutas políticas para tentar ganhar direitos para os negros deste país; e o dr. Martin Luther King é um pastor cristão lá em Atlanta, Geórgia, mas lidera outra organização que luta pelos direitos civis dos negros neste país; e o reverendo Galamison — eu acho que vocês já ouviram falar dele — é outro pastor cristão em Nova Iorque que esteve profundamente envolvido nos boicotes para acabar com a segregação nas escolas. Bem, eu também sou um pastor, mas não um pastor cristão e sim um pastor muçulmano, e acredito na ação em todas as frentes por todos os meios necessários.

Apesar de ainda ser um muçulmano, não estou aqui hoje para discutir minha religião. E não estou aqui para tentar mudar a sua religião. Não estou aqui para argumentar ou discutir sobre nossas discordâncias, pois é hora de colocarmos nossas diferenças de lado e percebermos o que é melhor para nós; antes de tudo, entender que temos o mesmo problema, comum a todos, um problema que fará você ir para o inferno, não importando se é um batista, um metodista, um muçulmano ou um nacionalista. Seja você instruído ou analfabeto, resida na avenida ou na sarjeta, irá da mesma forma para o inferno, como eu. Nós estamos no mesmo barco e estamos indo para o inferno por causa do mesmo homem. Por acaso ele é um homem branco. Todos nós já sofremos

* No original, The ballot or the bullet.

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aqui, neste país, a opressão política pelas mãos do homem branco, a exploração econômica pelas mãos do ho-mem branco e a degradação social pelas mãos do homem branco.

Agora, falando assim, não quero dizer que nós somos antibrancos, mas sim que somos antiexploração, anti-degradação e antiopressão. E se o homem branco não quiser que sejamos antiele, que pare de nos oprimir, de nos explorar e de nos degradar. Mesmo se nós formos cristãos, ou muçulmanos, ou nacionalistas, ou agnósti-cos, ou ateus, devemos primeiro aprender a esquecer nossas diferenças. Se tivermos diferenças, que discorde-mos em privado, para que em público não discutamos nada até terminarmos a conversa com o homem. Se o falecido presidente Kennedy podia se reunir com Khruschev e trocar com ele um pouco de trigo, nós com certeza temos mais em comum uns com os outros do que Kennedy tinha com Khrushchev.

Se não fizermos algo logo, eu acho que vocês terão que concordar que seremos obrigados a usar o voto ou a bala. É um ou outro em 1964. Não é que o tempo esteja acabando — ele já acabou!

O ano de 1964 ameaça ser o mais explosivo que a América já viveu. O ano mais explosivo. Por quê? Porque é também um ano eleitoral. É o ano em que todos os políticos brancos estarão de volta à assim chamada co-munidade negra enganando você e eu em troca de alguns votos. O ano em que todos os canalhas políticos brancos estarão de volta à sua e à minha comunidade com as promessas falsas deles, inflando nossas esperanças para depois nos decepcionar, com os seus truques e traições, com as falsas promessas que não pretendem cum-prir. E o fato de eles alimentarem essas insatisfações só pode levar a uma coisa: uma explosão. E agora temos em cena, na América de hoje, um tipo de homem negro — desculpe, irmão Lomax — que simplesmente não tem intenção de oferecer a outra face por mais tempo.

Não deixe ninguém lhe dizer das dificuldades que estão no seu caminho. Se alistarem você, eles o manda-rão para a Coreia para enfrentar 800 milhões de chineses. Se você pode ser corajoso lá, pode ser corajoso aqui também. As condições daqui não são tão adversas quanto as de lá. E se você lutar aqui, você saberá pelo que estará lutando.

Eu não sou um político, nem um estudante de política; na verdade, não sou um estudante de muita coisa. Não sou democrata. Não sou republicano e também nem me considero americano. Se eu e você fôssemos americanos, não haveria problema algum. Esses branquelos que acabam de sair do barco já são americanos; os polacos são americanos; os refugiados italianos são americanos. Tudo o que venha da Europa, qualquer coisa de olhos azuis é imediatamente americana. Já eu e você, com todo o tempo em que estamos aqui, ainda não somos americanos.

Bem, eu não sou dos que gostam de se iludir. Eu não irei me sentar à sua mesa e assistir à sua refeição, com nada no meu prato, e me chamar de comensal. Sentar à mesa não faz de você comensal, a não ser que você coma algo no prato. Estar aqui na América não nos faz americanos. Ter nascido na América não nos faz ame-ricanos. Ora, se o nascimento fizesse de você um americano, não haveria necessidade de nenhuma legislação. Você não precisaria de emendas na Constituição. Você não estaria enfrentando embromadores de direitos civis em Washington, D.C., neste exato momento. Eles não têm de aprovar leis de direitos civis para transformar os polacos em americanos.

Não, eu não sou americano. Sou um dos 22 milhões de negros que são vítimas do americanismo. Um dos 22 milhões de negros que são vítimas da democracia, que não passa de hipocrisia disfarçada. Então, não estou aqui falando como um americano, ou um patriota, ou como alguém que saúda ou agita a bandeira — não, eu não. Estou falando como uma vítima desse sistema americano. E vejo a América pelos olhos da vítima. Não vejo nenhum sonho americano; vejo um pesadelo americano.

Esses 22 milhões de vítimas estão acordando. Seus olhos estão se abrindo. Estão começando a realmente ver o que antes apenas olhavam. Estão se tornando politicamente maduros. Entendem que existem novas tendên-cias políticas de um extremo a outro deste país. Ao avistar essas novas tendências, é possível que eles vejam que em toda eleição há uma corrida tão acirrada a ponto de ser preciso fazer a recontagem dos votos. Tiveram que fazer isso em Massachusetts para descobrir quem era o novo governador, de tão apertada que foi a votação. O mesmo ocorreu em Rhode Island, em Minnesota e em muitas outras partes do país. Foi a mesma coisa com Kennedy e Nixon naquela eleição presidencial. Foi tão acirrada que tiveram que contar tudo de novo. Bem, o

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que isso quer dizer? Quer dizer que quando os brancos estão divididos de forma equilibrada e os negros for-mam um bloco próprio de votos, eles acabam por determinar quem irá assumir a Casa Branca e quem irá para a casa do cachorro.

Foi o voto do homem negro que colocou a administração atual em Washington, D.C. O seu voto, o seu voto idiota, o seu voto ignorante, o seu voto desperdiçado dado a uma administração em Washington que achou por bem aprovar todo tipo de legislação imaginável, deixando você por último e ainda por cima enga-nando você. E os seus e os meus líderes tiveram a audácia de andar por aí aplaudindo e falando que há muito progresso sendo realizado. E que presidente bom nós temos. Se ele não foi bom no Texas, ele com certeza não será bom em Washington, D.C. Porque o Texas é um estado que lincha. E é assim também no Mississipi; só que eles lincham você no Texas com o sotaque do Texas e lincham você no Mississipi com o sotaque do Mis-sissipi. E estes líderes negros tiveram a audácia de ir tomar café na Casa Branca com um texano, um branque-lo sulista — e isso é tudo o que ele é — e depois saíram e disseram para mim e para você que ele será melhor para nós, pois ele é do sul e portanto sabe lidar com os sulistas. Que tipo de lógica é essa? Deixemos Eastland ser presidente, ele é do sul também. Ele deve saber lidar melhor com eles do que o Johnson.

Na atual administração, eles têm na Câmara de Representantes 257 democratas para apenas 177 republica-nos. Controlam dois terços dos votos da Câmara. Por que eles não podem aprovar algo que irá ajudar a você e a mim? No Senado há 67 senadores do Partido Democrata. Só 33 são republicanos. Ora, os democratas têm esse governo na mão e foi você que o pôs na mão deles. E o que eles lhe deram? Quatro anos de mandato e só agora se está chegando a alguma legislação de direitos civis. Só agora, depois que tudo mais acabou, e não há mais nada no horizonte, é que eles vão se sentar para brincar com você por todo o verão — a mesma velha grande vigarice que eles chamam de obstrução parlamentar. Todos eles cúmplices. Nem se atreva a pensar que eles não são cúmplices, pois o homem que está liderando a obstrução parlamentar dos direitos civis é um na-tivo da Geórgia chamado Richard Russell. Quando Johnson se tornou presidente, o primeiro homem que ele pediu que viesse para Washington, D.C. foi “Dicky” — esse é o grau de intimidade dos dois. Esse é seu garo-to, seu amigo, seu parceiro. Mas eles continuam jogando o mesmo velho jogo de vigarices. Um deles finge que está do seu lado e deixa as coisas parecerem assim, enquanto o outro fica de tal maneira contra, que o primei-ro nunca pode manter suas promessas.

Então, em 1964, está na hora de acordar. E quando você os vir tramando esse tipo de armação, deixe que eles saibam que os seus olhos estão abertos. E deixe que eles conheçam você. Outra coisa que deve estar tam-bém muito clara: tem que ser no voto ou na bala. O voto ou a bala. Se você tem receio de usar uma expressão como essa, você deve sair deste país; você deve voltar para os campos de algodão; você deve voltar para o beco. Eles têm todos os votos negros, e depois que os conseguem, o negro não tem nada em troca. Tudo o que eles fizeram ao chegar a Washington foi conceder empregos importantes a um punhado de negros importantes. Mas esses negros importantes não precisavam de empregos importantes, eles já tinham empregos. Isso é camu-flagem, é trapaça, é traição, é um enfeite. Não estou tentando pôr para fora os democratas para ajudar os repu-blicanos. Nós falaremos deles em um minuto. Mas é verdade: você põe os democratas em primeiro lugar e os democratas deixam você em último.

Olhe como as coisas são. Quais álibis eles usam, desde que controlam o Congresso e o Senado? Qual álibi eles usam quando você e eu perguntamos: “Bem, quando vocês irão cumprir sua promessa?” Eles culpam os dixiecratas.1 O que é um dixiecrata? Um democrata. Um dixiecrata não é nada senão um democrata disfarçado. O principal líder dos democratas também é o líder dos dixiecratas, porque os dixiecratas também são parte do Partido Democrata. Os democratas nunca expulsaram os dixiecratas do partido. Os dixiecratas deram o fora uma vez, mas os democratas não os puseram para fora. Imagine esses segregacionistas sulistas de baixo escalão hu-milhando os democratas nortistas. Mas os democratas nortistas nunca humilharam os dixiecratas. Não, olhe como a coisa é. Eles usam de má-fé, uma má-fé política, e eu e você estamos no meio dela. Está na hora de eu

1 Dixiecrata é o apelido dado aos democratas dos estados do Sul, conhecidos coletivamente como Dixie. Os dixiecratas eram notórios adeptos da defesa intransigente da segregação racial que predominava nessa região do país (N. do T.).

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e você acordarmos e começarmos a vê-la como ela é, e tentar entender a forma com que se apresenta, e assim poderemos lidar com ela tal como é.

Os dixiecratas em Washington, D.C. controlam os principais comitês que dirigem o governo. A única razão pela qual os dixiecratas controlam esses comitês é porque têm a senioridade.2 A única razão de terem seniorida-de é porque eles advêm de estados onde os negros não podem votar. Este não é nem mesmo um governo ba-seado na democracia. Esse não é um governo feito por representantes do povo. Metade das pessoas no sul não pode votar. Eastland não deveria sequer estar em Washington. Metade dos senadores e congressistas que ocu-pam posições-chave em Washington, D.C. estão lá de forma ilegal, estão lá inconstitucionalmente.

Eu estava em Washington, D.C. há uma semana, quando eles debateram se deveriam ou não deixar a lei ser levada a plenário. E, nos fundos do salão onde o Senado se reúne, há um mapa enorme dos Estados Unidos, que mostra a distribuição dos negros pelo país todo. E mostra que na seção sul do país, os estados que têm maior concentração de negros são aqueles que têm senadores e congressistas empenhados em obstruir a discus-são da legislação e arquitetando todo tipo de trapaça para impedir o negro de votar. Isso é lamentável. Mas não é mais lamentável para nós; na verdade, é lamentável para o homem branco, pois em breve, quando o negro acordar um pouco mais e enxergar a armadilha em que está preso, o buraco em que está, enxergar o verdadei-ro jogo em que está, o negro irá desenvolver uma nova tática.

Na verdade, esses senadores e congressistas violam as emendas constitucionais que garantem o direito de voto do povo desse estado ou condado particular. E a própria Constituição contém mecanismos para expulsar qualquer representante de um estado onde os direitos de voto do povo são violados. Nem se precisa de uma nova legislação para isso. Agora mesmo, qualquer pessoa no Congresso que seja oriunda de um estado ou dis-trito onde os direitos de voto do povo são violados, essa pessoa específica deve ser expulsa do Congresso. E quando a expulsarem, terá sido removido um dos obstáculos que impedem a criação de uma legislação verda-deiramente significativa para este país. Na verdade, quando você o expulsar, não será necessária uma nova legislação, porque eles serão substituídos por representantes negros nos condados e distritos onde o homem negro é maioria, e não minoria.

Se o negro nesses estados sulistas tivesse seu pleno direito ao voto, os principais dixiecratas em Washington, que são os principais democratas em Washington, perderiam suas cadeiras. O próprio Partido Democrata per-deria seu poder. Ele deixaria de ser tão poderoso como partido. Quando você vê quanto poder o Partido Democrata perderia se ele perdesse a sua seção, ou ala, ou elemento dixiecrata, você pode ver também que é contra os interesses dos democratas conceder os direitos de voto aos negros, em estados nos quais os democra-tas têm mantido poder e autoridade absolutos desde a Guerra Civil. Você simplesmente não pode pertencer a esse partido sem analisar esse aspecto.

Digo mais uma vez, não sou antidemocrata, não sou antirrepublicano, não sou antinada. Estou apenas ques-tionando a sinceridade deles e algumas das estratégias que têm usado com o nosso povo ao prometer coisas que não pretendem cumprir. Quando você mantém um democrata no poder, você também mantém os dixiecratas no poder. Duvido que o meu bom irmão Lomax negue isso. O voto para um democrata é um voto para um dixie-crata. É por isso que, em 1964, chegou a hora de você e eu nos tornarmos mais maduros politicamente e perce-bermos para o que serve o voto; e o que nós temos a ganhar quando depositamos o voto na urna; e também que, se nós não usarmos o voto, acabaremos numa situação em que teremos que usar a bala. É o voto ou a bala.

No norte, eles agem de forma diferente. Eles têm um sistema que é conhecido como gerrymandering, seja lá o que isso queira dizer. Significa dizer que quando os negros estão muito concentrados em uma área e come-çam a ganhar muito poder político, o homem branco aparece e muda as linhas divisórias dos distritos. Você pode dizer: “Por que você fica falando do homem branco?” Porque é o homem branco quem faz isso. Eu nunca vi nenhum negro mudando qualquer linha que seja. Eles não deixam que ele se aproxime da linha. É o

2 Senioridade, nas normas do Congresso americano, significa que quanto mais tempo os congressistas têm na instituição, mais alto sobem na hierarquia dos diferentes comitês e subcomitês legislativos. Esse sistema beneficiava particularmente os dixiecratas, que, com a exclusão do voto negro, largamente praticada no Sul, e a defesa do status quo racial, se perpetuavam em suas cadeiras na Câmara e no Senado (N. do T.).

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homem branco quem faz isso. E, geralmente, é o homem branco quem mais sorri para você, e dá um tapinha nas suas costas, e parece ser seu amigo. Ele pode ser amigável, mas não é seu amigo.

Então, essencialmente, o que estou tentando dizer para você é o seguinte: você e eu, na América, não esta-mos lidando com uma trama segregacionista, mas sim com uma trama governamental. Todos os que estão obstruindo a legislação são senadores — ou seja, é o governo. Todos os que estão trapaceando em Washington são congressistas — ou seja, é o governo. Você não tem ninguém pondo obstáculos no seu caminho, a não ser pessoas que são parte do governo. O mesmo governo pelo qual você luta e morre em terras estrangeiras, é o governo que trama para privá-lo do direito ao voto, privá-lo de oportunidades econômicas, privá-lo de uma moradia decente, privá-lo de uma educação decente. Você não precisa enfrentar somente o seu empregador, é o próprio governo, o governo da América, que é responsável pela opressão, exploração e degradação do povo negro neste país. E você deve jogar isso no colo deles. O governo falhou com o negro. A assim chamada de-mocracia falhou com o negro. E todos esses liberais brancos, definitivamente, falharam com o negro.

Então, para onde vamos? Primeiro, precisamos de alguns amigos. Precisamos de alguns novos aliados. Toda a luta pelos direitos civis necessita de uma nova interpretação, uma interpretação mais ampla. Nós precisamos olhar essa coisa dos direitos civis por outro ângulo — tanto do ângulo interno quando do ângulo externo. Para aqueles de nós que seguem a filosofia do nacionalismo negro, a única forma de se envolver na luta pelos direi-tos civis é ter uma nova interpretação do fenômeno. A antiga interpretação nos excluiu. Deixou-nos de fora. Então, estamos dando uma nova interpretação à luta por direitos civis, uma interpretação que irá nos ajudar a entrar nela, a tomar parte nela. E todos os bonzinhos que vêm adiando, enrolando e fazendo concessões — nós não queremos deixá-los adiar, enrolar e conceder mais.

Como você pode agradecer a um homem por lhe dar algo que já é seu? Como você agradece a ele por lhe dar apenas parte do que já é seu? Você não fez nenhum progresso se você já deveria ter o que estão lhe dando. Isso não é progresso. Eu gosto do meu irmão Lomax, da forma como ele destacou que voltamos para onde estávamos em 1954. E nem sequer estamos no mesmo ponto que em 1954. Nós estamos atrás de 1954. Há mais segregação hoje do que em 1954. Existe mais animosidade racial, mais ódio racial, mais violência racial em 1964 do que em 1954. Onde está o progresso?

E agora você enfrenta uma situação em que os jovens negros estão começando a aparecer. Eles não querem ouvir aquela história de “dar a outra face”, não. Em Jacksonville, eram adolescentes, e estavam jogando coque-téis Molotov. Negros nunca tinham feito isso antes. Mas é o que mostra que há algo novo surgindo. Há um pensamento novo surgindo. Há uma nova estratégia. Serão coquetéis Molotov neste mês, granadas no próxi-mo e outra coisa no mês seguinte. Serão votos ou serão balas. A única diferença sobre esse tipo de morte — agora ela será recíproca. Você sabe o que quer dizer “recíproco”? Essa é uma das palavras do irmão Lomax. Eu roubei dele. Eu geralmente não lido com grandes palavras porque geralmente não lido com pessoas grandes. Eu lido com pessoas comuns. Eu descobri que você pode juntar uma multidão de pessoas comuns e dar uma surra num bando de pessoas grandes. Eles não têm nada a perder e têm tudo a ganhar. E eles te dirão num minuto: “É preciso duas pessoas para dançar um tango; quando eu começo, você começa”.

Os nacionalistas negros, aqueles cuja filosofia é o nacionalismo negro, ao trazerem esta nova interpretação sobre o significado dos direitos civis como um todo, consideram que se trata, como o irmão Lomax apontou, da igualdade de oportunidades. Bem, nós estamos certos ao buscar os direitos civis, se isso quer dizer igualda-de de oportunidades, porque o que estamos fazendo aqui é tentar recolher o nosso investimento. Nossos pais e mães investiram suor e sangue. Por 310 anos trabalhamos nesta terra sem um centavo de retorno — eu falei sem um centavo de retorno. Deixa-se o homem branco andar por aí falando sobre o quanto este país é rico, mas nunca paramos para pensar em como ele se tornou rico tão rápido. Tornou-se rico porque você o fez ser tão rico.

Temos como exemplo as pessoas que estão nessa plateia agora. Elas são pobres. Individualmente nós somos pobres. Nosso salário semanal individual não dá para quase nada. Mas se você pegar os salários de todos aqui coletivamente, isso encherá muitas cestas. É muita riqueza. Se conseguir reunir apenas os ganhos das pessoas que estão aqui por um ano, você se tornará rico — mais rico do que rico. Quando você olhar para isso desse

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ângulo, pense no quanto o Tio Sam se tornou rico, não apenas com essa meia dúzia, mas com milhões de pessoas negras. Seu pai e sua mãe, e os meus, que não trabalhavam por um expediente de oito horas, mas tra-balhavam do “escuro” da manhã até o “escuro” da noite, e trabalhavam por nada, tornaram o homem branco rico, tornaram o Tio Sam rico. Esse é o nosso investimento. Essa é a nossa contribuição: o nosso sangue.

Não apenas cedemos nossa força de trabalho gratuita, nós demos o nosso sangue. Toda vez que o homem branco fazia uma chamada às armas, nós éramos os primeiros a vestir o uniforme. Nós morremos em todos os campos de batalha que o homem branco arranjou. Nós demos uma contribuição maior do que qualquer um na América de hoje. Nós fizemos uma contribuição maior e recebemos menos. Os direitos civis, para aqueles de nós que são adeptos da filosofia do nacionalismo negro, querem dizer: “Dê para nós, agora. Não espere até o ano que vem. Dê para nós ontem, e isso ainda não é rápido o suficiente”.

Eu posso fazer uma pausa aqui para chamar a atenção para uma coisa. Quando você busca algo que lhe pertence, quem quer que impeça o seu direito de consegui-lo é um criminoso. Entenda isso. Quando você busca algo que é seu, você está dentro dos limites legais para reivindicar esse algo. E quando alguém se empe-nha em tirar o que é seu, ele está infringindo a lei e é um criminoso. E isso foi determinado pela decisão da Corte Suprema dos Estados Unidos. Ela determinou o caráter ilegal da segregação.

Isso significa que a segregação é ilegal. O que significa que um segregacionista está infringindo a lei. Um segregacionista é um criminoso. Você não pode rotulá-lo de outra forma. E quando você protesta contra a segregação, a lei está do seu lado. A Corte Suprema está do seu lado.

Agora, quem está se opondo a que você cumpra a lei? Justamente a polícia. Com cães policiais e cassetetes. Toda vez que você protesta contra a segregação, seja a educação segregada, a habitação segregada ou qualquer outra coisa, a lei está do seu lado, e qualquer um que esteja no seu caminho não representa mais a lei. Eles estão infringindo a lei; eles não representam a lei. Toda vez que você protesta contra a segregação e alguém tem a audácia de lançar um cão policial contra você, mate esse cão, mate, estou lhe dizendo, mate esse cão. Eu digo, mesmo que me ponham na prisão amanhã, mate esse cão. Assim você poderá pôr um fim nisso tudo. Agora, se esses brancos aqui não querem ver esse tipo de ação, então, mexam-se e digam ao prefeito para or-denar que a polícia prenda seus cachorros. É tudo o que vocês devem fazer. Se vocês não fizerem isso, outra pessoa fará.

Se você não se mobilizar, suas crianças crescerão e olharão para você, pensando: “que vergonha”. Você deve tomar uma posição firme, e eu não quero incitar você a sair cometendo atos violentos, mas, ao mesmo tempo, você nunca deve ser não violento a não ser que encontre a não violência pela frente. Eu não sou violento com aqueles que não são violentos comigo. Mas quando alguém usa a violência contra mim, então eu fico danado e não sou responsável pelos meus atos. É assim que todo negro deve agir. Toda vez que souber que está dentro da lei, dentro dos seus direitos legais, dentro dos seus direitos morais, de acordo com a justiça, então morra pelo que acredita. Mas não morra sozinho. Deixe que a sua morte seja recíproca. É isso o que igualdade signi-fica. O que é bom para a pata é bom para o pato.

Quando começamos a entrar nessa área, precisamos de novos amigos, de novos aliados. Precisamos expandir a luta dos direitos civis para um nível mais alto — para o nível dos direitos humanos. Sempre que você luta pelos direitos civis, quer saiba disso ou não, está se limitando à jurisdição do Tio Sam. Ninguém do mundo exterior pode falar em seu favor se sua luta é por direitos civis. Os direitos civis situam-se nos assuntos internos deste país. Todos os nossos irmãos africanos, asiáticos e latino-americanos não podem abrir a boca e interferir nos assuntos internos dos Estados Unidos. Enquanto se tratar de direitos civis, tudo fica na jurisdição do Tio Sam.

Mas as Nações Unidas têm o que chamam de declaração dos direitos humanos; e têm um comitê que lida com os direitos humanos. Você pode se perguntar por que todas as atrocidades cometidas na África, na Hun-gria, na Ásia e na América Latina são levadas às Nações Unidas, e o problema do negro, não. Isso é parte da trama. Esse velho liberal trapaceiro de olhos azuis que deveria ser nosso amigo, e que deveria estar do nosso lado, que deveria subsidiar nossa luta, e que deveria atuar como um conselheiro, nunca lhe diz nada sobre os direitos humanos. Eles confinam você aos direitos civis. E você passa muito tempo lutando pelos direitos civis sem saber que existem os direitos humanos no mesmo nível.

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Quando você expande a luta dos direitos civis para o nível dos direitos humanos, então você pode levar o problema do homem negro às nações que formam a ONU. Você pode levá-lo à assembleia geral. Você pode levar o Tio Sam a um tribunal mundial. Mas o único nível em que você pode fazer isso é o dos direitos hu-manos. Os direitos civis confinam você dentro das restrições dele, na jurisdição dele. Os direitos civis põem você no bolso dele. Os direitos civis significam que você está pedindo ao Tio Sam que o trate direito. Os di-reitos humanos são algo que nasce com você. Os direitos humanos são direitos dados por Deus. Os direitos humanos são direitos reconhecidos por todas as nações deste mundo. E toda vez que alguém viola seus direitos humanos, você pode levá-lo ao tribunal mundial.

As mãos do Tio Sam estão pingando sangue, pingando com o sangue do homem negro deste país. Ele é o hipócrita número um da terra. Ele tem a audácia — sim, ele tem — de posar de líder do mundo livre. Do mundo livre! E você aí cantando We shall overcome.3 Expanda a luta dos direitos civis para o nível dos direitos humanos. Leve isso para as Nações Unidas, onde nossos irmãos africanos podem jogar o seu peso do nosso lado, onde nossos irmãos asiáticos podem jogar o seu peso do nosso lado, onde nossos irmãos latino-america-nos podem jogar o seu peso do nosso lado e onde 800 milhões de chineses estão apenas esperando para jogar o seu peso do nosso lado.

Deixe que o mundo saiba como as mãos dele estão manchadas de sangue. Deixe que o mundo saiba da hi-pocrisia que é praticada por aqui. Deixe que seja o voto ou a bala. Deixe que ele saiba que deve ser o voto ou a bala.

Quando você leva o seu caso para Washington, está apresentando-o ao criminoso responsável; é como fugir do lobo para cair nas mãos da raposa. Eles são todos cúmplices. Eles cometem uma trapaça política e fazem com que você pareça um idiota aos olhos do mundo. Assim, você está perambulando pela América, preparan-do-se para ser alistado e mandado para fora do país, como um soldadinho de chumbo, e quando chegar por lá, as pessoas perguntarão por que você está lutando, e você terá que inventar uma resposta mentirosa. Não, leve o Tio Sam para o tribunal, leve-o aos olhos do mundo todo.

Por voto eu apenas quero dizer liberdade. Você não sabe — e eu discordo de Lomax nesse assunto — que o voto é mais importante do que o dólar? Será que eu posso provar isso? Sim. Olhe para as Nações Unidas. Existem nações pobres nas Nações Unidas; mesmo assim, essas nações pobres podem se juntar com o seu poder de voto e impedir que as nações ricas façam um determinado movimento. Lá eles têm uma nação... um voto, todos têm um voto de igual valor. E quando esses irmãos da Ásia, da África e das partes mais escuras deste mundo se juntarem, o seu poder de voto será suficiente para manter o Tio Sam em xeque. Ou manter a Rús-sia em xeque. Ou qualquer outra parte do mundo. Enfim, o voto é o mais importante.

Agora, neste país, se eu e você, 22 milhões de afro-americanos — é isso que somos — africanos que estão na América. Você não é nada além de um africano. Nada além de um africano. Na verdade, você iria mais longe se chamando de africano do que de negro. Os africanos não têm problemas. Você é o único com pro-blemas. Eles não têm que aprovar leis de direitos civis para os africanos. Um africano pode ir a qualquer lugar aonde queira neste exato momento. Tudo o que você tem de fazer é enfaixar sua cabeça. É isso mesmo, vá onde quiser. Deixe apenas de ser um negro. Mude seu nome para Hoogagagooba. Isso irá lhe mostrar o quan-to os homens brancos são tolos. Você está lidando com um tolo. Eu tenho um amigo que é muito escuro. Pois bem, ele pôs um turbante na cabeça e entrou em um restaurante em Atlanta antes que eles se autonomeassem de dessegregados. Ele foi a um restaurante branco, se sentou, foi servido e perguntou: “O que aconteceria se um negro viesse aqui?”. E lá estava ele, escuro como a noite, mas porque tinha enfaixado a cabeça, a garçone-te o olhou e disse: “Ora, nenhum crioulo teria coragem de entrar aqui”.

Então, você está lidando com um homem cujos próprios vieses e preconceitos o estão enlouquecendo, fazen-do-o perder sua inteligência, todos os dias. Ele está aterrorizado. Ele olha em volta e vê o que está acontecendo no mundo, e vê o pêndulo do tempo balançando em direção a você. As pessoas escuras estão despertando. Estão

3 “Nós vamos vencer”. Canção que se tornou um hino do movimento pelos direitos civis (N. do T.).

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perdendo o medo do homem branco. Em nenhum lugar onde o homem branco está lutando agora, está ven-cendo. Em todos os lugares em que está lutando, ele está lutando com alguém com a nossa compleição. E eles o estão vencendo. Ele não pode mais vencer. Ele já venceu a sua última batalha. Ele não conseguiu vencer a Guer-ra da Coreia. Ele não pôde vencê-la. Ele teve que assinar uma trégua. Isso é uma derrota.

Toda vez que o Tio Sam, com toda a sua maquinaria de guerra, é levado a um empate com uns comedores de arroz, perdeu uma batalha. Teve que assinar uma trégua. Não se espera que a América assine tréguas. Es-pera-se que ela seja malvada. Mas ela não é mais tão malvada. Ela é malvada se puder usar sua bomba de hi-drogênio, mas não pode usá-la com medo de que a Rússia use a dela. Já a Rússia não pode usar a sua, com medo que o Sam use a bomba dele. Então, os dois estão sem armas. Eles não podem usar suas armas, pois a arma de um anula a do outro. Então, o único espaço em que a ação pode ocorrer é no solo. Mas o homem branco não pode vencer outra guerra travada no solo. Esses dias se acabaram. O homem negro sabe disso, o homem marrom sabe disso, o homem vermelho sabe disso e o homem amarelo sabe disso. Então eles o levam para a guerra de guerrilha. E esta não faz o seu estilo. Você tem que ter coração para ser um guerrilheiro, e ele não tem mais nenhuma. É o que estou lhe dizendo agora.

Eu só gostaria de fazer para vocês uma breve introdução a respeito da guerra de guerrilha porque, antes de vocês a conhecerem, antes de vocês a conhecerem [sic]. É preciso coragem para ser um guerrilheiro, pois você está sozinho. Na guerra convencional, você tem tanques e muitas outras pessoas para lhe dar proteção — aviões sobre sua cabeça, essas coisas. Mas um guerrilheiro está sozinho. Tudo o que você tem é um rifle, tênis e uma tigela de arroz, e isso é tudo de que você precisa — e muita coragem. Os japoneses, em algumas daquelas ilhas do Pacífico, quando os soldados americanos desembarcavam, às vezes um só japonês podia segurar todo o exército. Ele só esperava o crepúsculo e, quando o sol desaparecia, todos seriam iguais. Ele pegaria sua peque-na faca, se esgueiraria de arbusto em arbusto, e iria de americano em americano. Os soldados brancos não conseguiam lidar com isso. Quando você vê um soldado branco que lutou no Pacífico, ele tem tremores, tem um problema nervoso, pois os japoneses o aterrorizavam.

A mesma coisa aconteceu com os franceses na Indochina Francesa. Pessoas que poucos anos antes eram camponeses que plantavam arroz se juntaram e expulsaram o altamente mecanizado exército francês da Indo-china. Você não precisa desse tipo de coisa — as técnicas modernas de guerra não funcionam hoje em dia. Estes são os dias da guerrilha. Eles fizeram a mesma coisa na Argélia. Os argelinos, que não eram nada além de beduínos, se agruparam e fugiram para as montanhas e de Gaulle e todo o seu aparato bélico não consegui-ram derrotar tais guerrilheiros. Em nenhum lugar do mundo o homem branco consegue derrotar uma guer-rilha. Não é o negócio dele. Como a guerrilha está vencendo na Ásia, em partes da África e da América Lati-na, você tem que ser muito inocente, ou considerar muito pouco homem negro, se pensa que um dia ele não vai acordar e descobrir que o caminho será o voto ou a bala.

Eu gostaria de dizer, para finalizar, algumas coisas sobre a Muslim Mosque Inc.,4 que nós abrimos recente-mente em Nova Iorque. É verdade que somos muçulmanos e que nossa religião é o Islã, mas não misturamos nossa religião com a nossa política e com as nossas atividades econômicas, sociais e civis — não mais. Mante-mos nossa religião na mesquita. Depois que os serviços religiosos terminam, então, como muçulmanos, nos envolvemos em ações políticas, em ações econômicas e em ações sociais e civis. Nós nos envolvemos com qualquer um, em qualquer hora, em qualquer lugar e de qualquer forma que se possa imaginar para eliminar os males, os males políticos, econômicos e sociais que afligem os indivíduos da nossa comunidade.

A filosofia política do nacionalismo negro significa que o homem negro deve controlar as políticas e os políticos de sua comunidade, apenas isso. O homem negro na comunidade negra tem que ser reeducado nas ciências da política para que saiba o que a política deve lhe oferecer em retorno. Não joguem votos no lixo. Um voto é como uma bala. Não usem seus votos a menos que vocês tenham um alvo, e se o seu alvo não es-tiver ao seu alcance, guarde seu voto no bolso.

4 Algo como “Mesquita Muçulmana S.A.” (N. do T.).

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A filosofia política do nacionalismo negro está sendo ensinada nas igrejas cristãs. Está sendo ensinada na NAACP.5 Está sendo ensinada nas reuniões do Core.6 Está sendo ensinada nas reuniões do SNCC.7 Está sendo ensinada em reuniões de muçulmanos. Está sendo ensinada onde não existe ninguém além de ateus e agnósti-cos. Está sendo ensinada em todos os lugares. O povo negro está cansado da abordagem enrolada, arrastada e sem firmeza com a qual tem sido tratada a conquista da nossa liberdade. Nós queremos liberdade agora, mas nós não vamos consegui-la cantando We shall overcome [Nós vamos vencer]. Nós temos que lutar para vencer.

A filosofia econômica do nacionalismo é pura e simples. Só quer dizer que devemos controlar a economia da nossa comunidade. Por que os brancos devem ter o controle de todas as lojas da nossa comunidade? Por que os brancos devem controlar os bancos da nossa comunidade? Por que a economia da nossa comunidade tem de estar nas mãos do homem branco? Por quê? Se um homem negro não pode abrir uma loja numa comuni-dade branca, me diga por que o homem branco deve ter a loja dele na comunidade negra? A filosofia do na-cionalismo negro envolve um programa de reeducação da comunidade negra em relação à economia. Nosso povo deve ser conscientizado de que toda vez que retira seu dinheiro da própria comunidade e o gasta numa comunidade onde ele não reside, ele está ajudando a empobrecer cada vez mais a comunidade em que vive, e consequentemente a comunidade em que o dinheiro é gasto fica cada vez mais rica.

E depois vocês se perguntam por que onde vocês vivem é sempre um gueto ou uma favela. E no que nos diz respeito, não perdemos apenas quando gastamos fora da comunidade, mas o homem branco tem todas as lojas da comunidade sob seu controle; então, apesar de gastarmos na nossa comunidade, no fim do dia o ge-rente da loja tem que levar esse dinheiro para outra parte da cidade. Ele nos pegou numa armadilha.

Então a filosofia econômica do nacionalismo negro diz que em cada igreja, cada organização civil, cada ordem fraternal é chegada a hora de as pessoas se conscientizarem da importância de controlar a economia da própria comunidade. Se formos donos das lojas, se controlarmos os negócios, se estabelecermos indústrias em nossa comunidade, então estaremos chegando à condição de criar empregos para os nossos semelhantes. Uma vez que controlemos a economia da nossa comunidade, não teremos mais que boicotar ou fazer piquetes im-plorando para que algum branquelo do centro da cidade nos dê um emprego em seus negócios.

A filosofia social do nacionalismo negro apenas nos diz que devemos nos juntar para remover os males, os vícios, o alcoolismo, a toxicomania e outras mazelas que estão destruindo a fibra moral da nossa comunidade. Nós mesmos é que temos de elevar o nível da nossa comunidade, o padrão da nossa comunidade, para um patamar mais alto, tornar a nossa sociedade tão bela que fiquemos satisfeitos dentro de nossos próprios círculos sociais e não saiamos por aí tentando nos encaixar em um outro círculo social em que não somos bem-vindos. Assim, ao espalhar um evangelho como o nacionalismo negro, não se pretende que o homem negro reexami-ne o homem branco — você já o conhece —, mas se quer, isso sim, fazer o homem negro reexaminar a si mesmo. Não mude a cabeça do homem branco, você não pode mudá-la; e toda aquela coisa de apelar à cons-ciência moral da América, a consciência da América faliu. Ela perdeu toda a sua consciência há muito tempo. O Tio Sam não tem consciência.

Ele não sabe o que são valores morais. Não tenta eliminar um problema porque é nocivo, ou porque é ilegal, ou porque é imoral: simplesmente o elimina quando ele ameaça a sua existência. Então, vocês estão perdendo tempo ao apelar à consciência moral de um homem falido como o Tio Sam. Se ele tivesse uma consciência, resolveria esse assunto sem que fosse preciso fazer mais pressões. Então, não é necessário mudar a cabeça do homem branco. Nós temos que mudar nossa própria cabeça. Vocês não podem mudar a opinião dele sobre nós. Nós temos que mudar nossas próprias opiniões sobre nós mesmos. Temos que olhar para nós mesmos com novos olhos. Temos que ver uns aos outros como irmãos e irmãs. Temos que nos juntar de forma calorosa para que possamos criar a harmonia e a união necessárias para que sejamos capazes de resolver esse problema nós

5 National Association for the Advancement of the Colored People (Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor), organização ativista pelos direitos dos negros, fundada em 1909 (N. do T.).6 Congress for Racial Equality (Congresso pela Igualdade Racial), fundado em 1942 (N. do T.).7 Student Nonviolent Coordinating Committee (Comitê Estudantil de Coordenação Não Violenta), fundado em 1960 (N. do T.).

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mesmos. Como podemos fazer isso? Como podemos evitar a inveja? Como podemos evitar a suspeita e as divisões que existem na comunidade? Eu direi como.

Eu tenho observado como Billy Graham chega a uma cidade, espalhando o que ele chama de evangelho de Cristo, e que é, na verdade, apenas nacionalismo branco. É isso o que ele é. Billy Graham é um nacionalista branco; eu sou um nacionalista negro. Mas já que é a tendência natural dos líderes sentirem ciúmes e olharem com desconfiança e inveja para uma figura poderosa como Graham, como é possível para ele chegar a uma cidade e ter toda a cooperação de lideranças eclesiásticas? Não achem que por serem lideranças eclesiásticas eles não têm fraquezas que os tornem invejosos e ciumentos — não, todo mundo tem isso. Não é por acaso que, quando eles querem escolher um cardeal, como o papa lá em Roma, eles entram em uma sala fechada para que vocês não os vejam praguejando, brigando e agindo de forma imprópria.

Billy Graham chega para pregar o evangelho de Cristo. Ele prega o evangelho. Ele causa comoção em todo mundo, mas nunca pensou em começar uma nova igreja. Porque se ele tentasse começar uma nova igreja, todas as outras igrejas se posicionariam contra ele. Então, ele apenas vem para falar sobre Cristo e diz a todos que querem Cristo para irem a qualquer igreja onde Cristo esteja; e assim a igreja coopera com ele. Então, vamos aprender com ele.

Nosso evangelho é o nacionalismo negro. Não estamos tentando ameaçar a existência de nenhuma organi-zação, mas estamos divulgando o evangelho do nacionalismo negro. Em qualquer lugar onde haja uma igreja que também esteja pregando e praticando o evangelho do nacionalismo negro, junte-se a essa igreja. Se a NAACP estiver pregando e praticando o evangelho do nacionalismo negro, junte-se à NAACP. Se o Core estiver divulgando e praticando o evangelho do nacionalismo negro, junte-se ao Core. Junte-se a qualquer organização que possua um evangelho para a elevação do homem negro. E quando vocês fizerem isso e obser-varem que ela está procrastinando ou fazendo concessões, vá embora porque isso não é nacionalismo negro. Nós encontraremos outra.

Desta forma, as organizações aumentarão em número de membros e também em quantidade e qualidade, e quando agosto chegar, é nossa intenção realizar uma convenção de nacionalistas negros que consistirá em de-legados de todo o país que estejam interessados na filosofia política, social e econômica do nacionalismo negro. Depois que esses delegados se reunirem, nós faremos um seminário; nós promoveremos discussões, vamos escutar a todos. Queremos ouvir novas ideias, novas soluções e novas respostas. E daí, se acharmos apropriado, formaremos um partido nacionalista negro. E se for necessário formar um exército nacionalista negro, nós iremos formar um exército nacionalista negro. Será o voto ou a bala. Será a liberdade ou a morte.

Está na hora de vocês e eu descruzarmos os braços, não mais deixando que alguns senadores branquelos, branquelos do norte e branquelos do sul, reunidos lá em Washington, cheguem à conclusão de que eu e vocês deveríamos ter direitos civis. Irmãos e irmãs, sempre lembrem que, se não é preciso haver senadores, congres-sistas e proclamações presidenciais para dar a liberdade ao homem branco, não é necessário fazer leis ou pro-clamações ou decisões da Corte Suprema para dar a liberdade ao homem negro. Deixem que o homem bran-co saiba que se aqui é o país da liberdade, que seja o país da liberdade; e que se não é o país da liberdade, mudem-no.

Nós vamos trabalhar com qualquer um, em qualquer lugar, que esteja verdadeiramente interessado em en-frentar o problema, de forma não violenta, caso o inimigo seja não violento, mas de forma violenta, quando o inimigo for violento. Nós iremos cooperar com vocês no movimento pelo registro de eleitores, estaremos junto com vocês nas greves dos aluguéis, trabalharemos com vocês nos boicotes às escolas; eu não acredito em qualquer forma de integração; eu não estou preocupado com isso, pois eu sei que vocês não vão consegui-la; e não vão consegui-la porque têm medo de morrer; vocês devem estar prontos para morrer se tentarem se impor ao homem branco, porque ele será tão violento quanto aqueles branquelos em Mississipi e aqui em Cle-veland. Mas nós ainda trabalharemos com vocês nos boicotes às escolas porque somos contra um sistema edu-cacional segregado. Um sistema escolar segregado produz crianças que, quando se formam, se formam com mentes aleijadas. Mas isso não quer dizer que uma escola é segregada porque é toda negra. Uma escola segre-gada significa uma escola controlada por pessoas que não têm nenhum interesse verdadeiro nela.

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Deixem-me explicar o que eu quero dizer. Um distrito ou comunidade segregada é uma comunidade em que as pessoas vivem, mas cuja política e economia são controladas por gente de fora. Nunca se referem à seção bran-ca da cidade como uma comunidade segregada. Mas é a seção completamente negra que é comunidade segrega-da. Por quê? O homem branco controla a própria escola, o próprio banco, a própria economia, a própria política, controla tudo e qualquer coisa, a própria comunidade; mas ele também controla a de vocês. Quando se está sob o controle de um outro, se está segregado. Eles sempre lhes dão o pior que há para oferecer, mas isso não quer dizer que vocês são segregados se vocês possuem suas próprias coisas. Vocês têm que controlar o que é seu. Da mesma forma que o homem branco controla o que é dele, vocês têm que controlar o que é de vocês.

Sabem qual é a melhor forma de acabar com a segregação? O homem branco tem mais medo da separação do que da integração. A segregação significa que ele se separa de vocês, mas não o suficiente para que vocês saiam da jurisdição dele; já a separação significa que vocês foram embora. E o homem branco irá preferir in-tegrar mais rápido a deixar que vocês se separarem. Então, nós trabalharemos com vocês contra um sistema educacional segregado porque ele é criminoso, porque é totalmente destrutivo, em qualquer forma imaginá-vel, para as mentes das crianças que foram expostas a essa forma de educação deformadora.

Por último, mas não menos importante, gostaria de falar um pouco sobre essa grande controvérsia a respei-to dos fuzis e das armas de fogo. A única coisa que eu disse foi que, em áreas onde o governo se mostrou in-disposto ou incapaz de defender as vidas e as propriedades dos negros, é hora de os negros se defenderem. O segundo artigo das emendas constitucionais concede a vocês e a mim o direito de possuir um fuzil ou uma arma de fogo. É legal pela Constituição ter um fuzil ou uma arma de fogo. Isso não quer dizer que vocês irão comprar um fuzil e formar batalhões à caça de caras brancos, apesar de que vocês estariam no seu direito — eu quero dizer, vocês estariam justificados; mas isso seria ilegal e não fazemos nada ilegal. Se o homem branco não quer que o homem negro compre fuzis e armas de fogo, então que deixe o governo fazer o seu trabalho.

Isso é tudo. E não deixe que o homem branco se aproxime de você e pergunte o que acha do que Malcolm diz — ora, seu velho Pai Tomás8 —; ele nunca perguntaria nada a você se não soubesse que você diria “Amém!”. Não, ele está transformando você em um Pai Tomás. Então, isso não quer dizer que devamos for-mar clubes de rifles e sair caçando pessoas, mas agora é a hora, em 1964, se você é um homem, de fazer o homem branco saber disso.

Se ele não fizer seu trabalho de administrar o governo e nos prover com a proteção que os nossos impostos deveriam cobrir, já que ele gasta todos aqueles bilhões no orçamento de defesa, ele certamente não poderá ficar chateado se nós pagarmos 12 ou 15 dólares por uma arma de um tiro só ou um revólver. Eu espero que vocês tenham entendido. Não saiam atirando nas pessoas, a não ser quando, irmãos e irmãs, e especialmente os homens deste auditório — alguns de vocês portando Medalhas de Honra do Congresso, com ombros dessa largura, peitorais grandes e músculos grandes desse jeito —, quando eu e você nos sentarmos e lermos sobre o bombardeio de uma igreja e o assassinato a sangue-frio não de adultos, mas de quatro menininhas que estavam rezando para o mesmo Deus para quem o homem branco lhes ensinou a rezar, e então eu e vocês virmos o governo ir lá e não conseguir encontrar os culpados.

Ora, esse homem... ele consegue achar Eichmann escondido na Argentina. Se dois ou três soldados ameri-canos, que estão se metendo em negócios alheios no Vietnã do Sul, são mortos, ele mandará navios de guerra, metendo o nariz onde não é chamado. Ele queria mandar tropas para Cuba e impor o que ele chama de elei-ções livres — esse velho branquelo não tem eleições livres no próprio país.

Não, se você nunca me vir de novo na sua vida, se eu morrer pela manhã, eu morrerei dizendo uma única coisa: o voto ou a bala, o voto ou a bala.

Se um negro em 1964 ainda tem que se sentar e esperar algum senador branquelo obstruir a votação da legislação dos direitos de negros, ora, você e eu devemos nos enforcar de vergonha. Se vocês falam de uma marcha para Washington em 1963, vocês ainda não viram nada. Há algo ainda maior em 1964.

8 Pai Tomás (Uncle Tom) é um termo ofensivo que designa um negro que apresenta uma subserviência vil em relação aos brancos (N. do T.).

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E desta vez as coisas não serão como no ano passado. Eles não vão cantar We shall overcome. Eles não irão com os seus amigos brancos. Eles não vão usar faixas já pintadas para eles. Eles não irão com passagens de ida e volta. Eles vão usar a passagem só de ida. E se eles não querem esse exército não violento chegando por lá, então diga a eles para acabar com a obstrução parlamentar.

Os nacionalistas negros não vão esperar. Lyndon B. Johnson é o líder do Partido Democrata. Se ele é a favor dos direitos civis, que ele vá ao Senado semana que vem e declare isso. Que ele vá lá agora e declare isso. Que ele entre lá e denuncie a seção sulista do seu partido. Que ele entre agora e tome uma posição moral — agora, e não mais tarde. Digam isso para ele agora, não esperem o período eleitoral. Se ele esperar muito, irmãos e irmãs, ele será responsável por ter deixado surgir um quadro neste país que criará um clima no qual brotarão as sementes de uma vegetação diferente de tudo o que essa gente jamais sonhou. Em 1964, é o voto ou a bala.

Obrigado.

Fonte | Disponível em: <www.americanrhetoric.com/speeches/malcolmxballot.htm>.

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1966 | huey neWton

programa dos 10 pontos do partido dos panteras negras*

o partido Black panther foi fundado em 1966 por Huey newton e Bobby seale, em oakland, Califórnia. organização revolucionária de

cunho nacionalista, o partido começou criando milícias de autodefesa atuantes em comunidades de minorias raciais, nas quais a intervenção policial era usualmente marcada pelo preconceito e pela brutalidade. logo começou a ganhar notoriedade e a se espalhar pelas principais

cidades dos euA, tornando-se um alvo para as operações de infiltração e vigilância do FBI. De influência marxista-leninista, o

partido, embora comprometido com o chamado nacionalismo negro, não propunha o separatismo; seu objetivo maior era cooperar para uma união entre os trabalhadores de todos os países e raças rumo

à revolução anticapitalista. porém, a perseguição das autoridades e conflitos internos levaram o grupo ao declínio, até a sua dissolução na

década de 1980. (r.F.)

1. Nós queremos a liberdade. Nós queremos o poder para determinar o destino da nossa comunidade negra.Nós acreditamos que os negros não serão livres até que nós sejamos capazes de determinar o nosso destino.

2. Nós queremos o pleno emprego para o nosso povo.Nós acreditamos que o governo federal seja responsável e obrigado a dar a cada homem um emprego ou uma

renda garantida. Nós acreditamos que se os empresários americanos brancos não derem o pleno emprego, os meios de produção devem ser tomados dos empresários e colocados nas mãos da comunidade, para que as pesso-as da comunidade possam organizar e empregar todos os seus cidadãos e proporcionar um alto padrão de vida.

3. Nós queremos o fim do roubo da comunidade negra pelos capitalistas.Nós acreditamos que este governo racista roubou a todos nós, e agora estamos exigindo a dívida em retros-

pecto pelos quarenta acres e duas mulas.1 Quarenta acres e duas mulas foram prometidos 100 anos atrás como indenização pelo trabalho escravo e assassinato em massa do povo negro. Aceitaremos o pagamento em moe-da que será distribuído para as nossas muitas comunidades. Os alemães estão agora ajudando Israel pelo geno-cídio do povo judeu. Os alemães assassinaram 6 milhões de judeus. O americano racista tomou parte no massacre de mais de 50 milhões do povo negro; portanto, achamos que fazemos uma demanda modesta.

4. Nós queremos habitação decente para abrigar seres humanos.Nós acreditamos que se os brancos senhores de terra não derem moradia digna para a comunidade negra,

então a habitação e a terra devem ser transformadas em cooperativas para que a nossa comunidade, com a aju-da do governo, possa construir e fazer moradias decentes para o seu povo.5. Nós queremos uma educação para o nosso povo que exponha a verdadeira natureza da decadência da socie-dade americana. Nós queremos educação que nos ensine a nossa verdadeira história e nosso papel na sociedade atual.

Nós reivindicamos um sistema educacional que venha a dar ao nosso povo um conhecimento sobre si. Se um homem não tem conhecimento de si e da sua posição na sociedade e no mundo, então ele tem poucas chances de se relacionar com qualquer outra coisa.

6. Nós queremos que todos os homens negros fiquem isentos do serviço militar.Nós acreditamos que o povo negro não deve ser obrigado a lutar no serviço militar para defender um go-

verno racista que não o protege. Nós não vamos lutar e matar outras pessoas de cor do mundo que, como o nosso povo, são vítimas do governo branco racista da América. Nós vamos nos proteger da força e da violência racista da polícia e dos militares racistas, por qualquer meio necessário.

1 Referência ao programa “Quarenta acres e uma mula”, iniciativa do general W. Sherman depois da Guerra Civil com o intuito de conce-der a cada família negra emancipada um pequeno lote de terra e animais para que pudessem iniciar a vida livre. Ver, neste volume, o segun-do texto (N. do T.).

* No original, The Black Panther Party ten-point Program. Este é o programa básico do partido, atribuído a Huey Newton.

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7. Nós queremos o fim imediato da brutalidade policial e do assassinato do povo negro.Nós acreditamos que podemos terminar com a brutalidade policial na comunidade negra, organizando

grupos de autodefesa negros, dedicados a defender a nossa comunidade da opressão e da brutalidade da polícia racista. A segunda emenda à Constituição dos Estados Unidos dá o direito ao povo de portar armas. Por isso, de agora em diante, acreditamos que todas as pessoas negras devam armar-se para a sua autodefesa.8. Nós queremos a liberdade para todos os homens negros presos em prisões e cadeias federais, estaduais, dis-tritais e urbanas.

Nós acreditamos que todos os negros devam ser liberados das muitas cadeias e prisões porque eles não rece-beram um julgamento justo e imparcial.9. Nós queremos que todas as pessoas negras, quando levadas a julgamento, sejam julgadas por um júri de pares ou por pessoas das suas comunidades negras, conforme definido pela Constituição dos Estados Unidos. Nós acreditamos que os tribunais devam observar a Constituição dos Estados Unidos para que as pessoas ne-gras recebam julgamentos justos. A décima quarta emenda da Constituição dos EUA dá a um homem o direi-to de ser julgado pelos seus pares. O par é uma pessoa proveniente de semelhante contexto econômico, social, religioso, geográfico, ambiental, histórico e racial. Para fazer isso, o tribunal será obrigado a selecionar um júri a partir da comunidade negra da qual o réu negro provém. Nós temos sido, e ainda estamos sendo, julgados por júris totalmente brancos que não têm nenhuma compreensão do “padrão mediano do homem racional” da comunidade negra.10. Nós queremos terra, pão, habitação, educação, vestuário, justiça e paz. E como grande objetivo político, um plebiscito supervisionado pelas Nações Unidas a ser realizado em toda a colônia negra, em que apenas membros negros dessa comunidade sejam autorizados a participar, com o objetivo de determinar a vontade do povo negro no que se relaciona ao seu destino nacional.

Quando, no curso dos acontecimentos históricos, se faz necessário para um povo dissolver os vínculos po-líticos que o tem ligado a outro, e tomar, entre os Estados da Terra, a posição separada e igual à qual as leis da natureza e de Deus lhe dão direito, um justo respeito à avaliação da humanidade exige que se declarem as causas que o levam à separação.

Sustentamos como evidentes estas verdades: que todos os homens são criados iguais; que são dotados por seu Criador de certos direitos inalienáveis; que, entre estes, estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade. Que, para garantir estes direitos, instituem-se governos entre os homens, derivando seus poderes legítimos do consentimento dos governados; que, sempre que qualquer forma de governo se coloque contra essas finalida-des, o povo tem o direito de reformá-lo ou aboli-lo e instituir um novo governo que se fundamente em tais princípios, e organize seus poderes de uma forma que lhe pareça a mais apropriada para sua segurança e feli-cidade. A prudência, na verdade, aconselhará que não se mudem por motivos leves e temporários governos de há muito estabelecidos. Com efeito, toda experiência tem demonstrado que a humanidade está mais disposta a padecer, desde que os males sejam toleráveis, do que a fazer justiça abolindo os desvios a que está acostuma-da. Porém, quando uma grande série de abusos e usurpações, dirigida invariavelmente ao mesmo objetivo, evidencia o desígnio de submeter o povo a um despotismo absoluto, é o seu direito, e é o seu dever, derrubar este governo e estabelecer novas garantias para a sua futura segurança.

Fonte | BIRNBAUM, Jonathan; TAYLOR, Clarence. Civil Rights since 1787: a reader on the Black Struggle. New York & London: New York University Press, 2000.

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1967 | guy StrAit

O que é um hippie?*

uma das mais conhecidas correntes de contestação da década de 1960, o movimento hippie tornou-se um dos símbolos da rebelião

da juventude da época. Batizados pela imprensa da cidade de são Francisco, onde tinham uma grande concentração no bairro

de Haight-Ashbury, esses jovens jamais chegaram a constituir um movimento coeso, com lideranças e manifestos definidos. porém,

era fácil reconhecê-los, pois se destacavam de longe pelos cabelos compridos, barbas fechadas e roupas coloridas. porém, ser um

hippie ia muito além da aparência: significava a adesão a um estilo de vida comunitário, ao amor-livre, ao pacifismo, à preocupação

com a natureza — daí a expressão Flower Power — e também uma inclinação pronunciada por princípios de religiões orientais. Isso sem

falar no frequente uso das drogas que se tornaram febre na época, a maconha e, em menor escala, o lsD. Influenciados pelos beats dos

anos 1950, os hippies formularam uma rejeição radical aos valores da sociedade de consumo ocidental, vista como materialista e quadrada.

neste artigo de 1967, quando o movimento já começava seu declínio nos euA, guy strait sintetiza a crítica hippie aos valores da sociedade

dominante. (r.F.)

É estranho e preocupante assistir à raiva da comunidade conservadora, e, às vezes, à violenta reação aos hippies. Existem muitas razões para isso. A principal delas é a aparência. Os hippies se vestem estranhamente. Eles se vestem dessa forma porque jogaram pela janela um monte de noções de classe média, e com elas, o mais sen-sível dogma da classe média: a aparência neutra.

O mundo conservador é uma selva de tabus, medos e jogos de personalidade. As pessoas nessa selva destro-em as outras impiedosamente. Por conseguinte, para sobreviver em qualquer selva, requer-se uma boa prote-ção de cores: a camuflagem da aparência respeitável. O anonimato da roupa de classe média é como uma bandeira de trégua. Significa (seja verdade ou não): “Eu não sou um dos predadores”. A natureza da camufla-gem é dar uma garantia de inocuidade. Incomuns ou brilhantes, roupas coloridas, então, tornam-se um alar-me, um sinal de perigo para a temerosa trégua armada com o resto da humanidade. Eles veem isso como um desafio. Ficam temerosos, inseguros de si mesmos, e o medo, por fim, torna-se raiva. Mais um passo apenas, e começam a pensar que a raiva é “boa”. A falácia mais antiga do mundo é que tudo o que te faz zangado deve ser ruim.

O pecado dos hippies é que eles não jogam o jogo conservador da camuflagem. A sua não participação, com efeito, os expõe como outra tribo, cujo desrespeito aos tabus conservadores de vestir faz com que eles pareçam capazes de tudo e, portanto, pareçam um perigo. Esse perigo é claramente sentido, aliás, pela prefeitura, este santuário do conservadorismo quadrado. Por que outro motivo, eu diria, o Departamento de Saúde desta ci-dade tem uma tal preocupação pelas condições de vida dos seres humanos no Haight quando eles ignoram as condições em Hunter’s Point, em Mission e em Fillmore?

Muitas pessoas não conseguem entender a rejeição dos hippies a tudo o que é normalmente esperado do indivíduo em relação ao emprego e aos objetivos de vida: emprego lucrativo e estável e, com o passar dos anos, a acumulação de bens e dinheiro, construindo (sempre construindo) segurança para o futuro. É justamente essa segurança hipocondríaca, essa verificação das contas bancárias e não dos pulsos, esta preocupação com orçamen-tos e não com a saúde, que impulsiona a juventude de hoje para fora, para outro lugar. É esta frenética preo-cupação com o dinheiro que também impulsiona os jovens para o Haight-Ashbury. Eles viram os seus pais serem escravos por anos, desperdiçando a vida para se certificar de que a casa foi paga, e que os filhos estão estudando para conseguir “bons” empregos, para que possam aderir, mais tarde, à frenética corrida. A recom-

* No original, What is a hippie?

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pensa dos pais por essa luta é que eles acabam velhos e cansados, alienados de seus filhos e, como acontece muitas vezes, um em relação ao outro. Eles pensaram tanto tempo em termos de dinheiro e posses que eles esqueceram de pensar em termos de pessoas. Assim, eles pensam a respeito do “meu filho”, e da “minha filha”, e falam com seus filhos de maneira tão distante como fariam em relação a um talão de cheques.

“Mas você tem que construir um futuro para si mesmo. Se você não sustenta a si próprio, ninguém mais o fará!” O cansado e enrugado rosto briga com os jovens. “É um mundo duro”. E conte, por Deus, quem o torna difícil, participando na corrida pela “segurança” material? Quem faz com que seja difícil, insistindo que todos devem participar da corrida ou sofrer a censura social? Escutem o tom de quem discorre sobre as “rea-lidades econômicas” da vida. Eles estão apresentando fatos imparciais? Ou será que parecem com expositores de doutrinas religiosas? A segunda hipótese. O tipo convencional de nossa sociedade, as assim chamadas pes-soas “normais”, acreditam na corrida do rato. A competição é sagrada. Não ficar atrás dos vizinhos é uma ordem de Deus.1 A exigência de manter uma respeitável aparência é o principal artigo da fé.

Já foi repetidamente demonstrado, ao longo da história, pelas melhores mentes, que muito pouco é neces-sário para a felicidade. É a luta pelo dinheiro, posses e prestígio que leva estas pessoas à exasperação, e é isso o que faz o mundo ser duro. Nós somos a nação mais rica do mundo, com o mais alto padrão de vida. Por nos-sas próprias ilusões sobre a prosperidade, nós também deveríamos ser os mais felizes. Somos? Suicídio, violên-cia racial e o êxodo dos jovens de suas casas confortáveis sugerem outra coisa. A terrível verdade é que a nossa prosperidade é a causadora de miséria. Temos sofrido uma lavagem cerebral pela indústria da publicidade que nos transformou nas pessoas mais insatisfeitas em todo o mundo. Dizem-nos que todos devemos ser simpáticos ou bonitos, sexualmente arrasadores e proprietários de uma espantosa quantidade de bugigangas, ou estaremos condenados à frustração. O resultado é que a maioria de nós está frustrada. É exatamente isto que o hippie evita como veneno. Ele não quer tomar parte na busca de objetivos autodestrutivos.

É muito provável que o hippie vá passar fome e se expor ao sofrimento, e talvez enlouqueça. Mas ele con-sidera que estas coisas são muito menos perigosas do que o tipo de desumanização que a sociedade tentou empurrar sobre ele antes de sua rebelião. Ele fugiu de uma cultura em que a máquina é deus, e os homens julgam uns aos outros por princípios mecânicos de eficiência e utilidade. Ele vê loucura na luta constante para vender mais máquinas de lavar, carros, papel higiênico, fitas e bugigangas do que os outros colegas. Ele está igualmente horrorizado com a sinistra crueldade dos homens que participam nessa luta.

Fonte | BLOOM, Alexander; BREINES, Wini. Takin’ it to the streets: a sixties reader. Oxford: Oxford University Press, 1995. 5ª edição online disponível em: <www.questia.com>. Acesso em: 11 jan. 2006.

1 A expressão original usada pelo autor foi keeping up with the Joneses (N. do T.).

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1968 | tom hAyden

Duas, três, muitas Columbias*

em 1968, uma onda de manifestações estudantis agitou universidades em países de todo o mundo, e os estados unidos não foram

exceção. Ao contrário dos anos 1950, uma parcela de universitários americanos passou por um processo crescente de politização que,

ao fim da década seguinte, atingiu o ápice. entre as reivindicações, o fim da intervenção militar dos euA no Vietnã era uma das que mais

eletrizava os jovens, que eram, afinal, ameaçados com o alistamento obrigatório, conforme afirmavam, segundo a classe social, posições

políticas ou desempenho acadêmico.

nesse contexto, a ocupação da universidade de Columbia, em 22 de abril de 1968, tem um lugar de destaque. Incomodados pela

crescente repressão às manifestações políticas no campus, além dos laços estreitos entre a universidade e as instituições militares e outros

problemas internos, os estudantes já se encontravam mobilizados quando a questão do avanço do campus sobre uma área pobre da

vizinhança, habitada principalmente por negros, o Morningside park, veio à tona. Foi o estopim para uma greve estudantil que durou oito

dias e terminou com um violento ataque policial aos prédios ocupados pelos estudantes.

neste artigo publicado na revista Ramparts em 1968, tom Hayden, um dos principais expoentes da nova esquerda estudantil, analisa

o significado da greve de Columbia na luta contra uma ordem social autoritária e militarista, e defende a necessidade de outras

manifestações do mesmo tipo. (r.F.)

O objetivo escrito nas paredes da universidade foi “Criar duas, três, muitas Columbias”, o que significava ampliar a greve para que os EUA mudem também ou enviem as tropas para ocupar os campi americanos.

Neste momento o objetivo parece realista: uma mistura explosiva está presente em dezenas de campi onde as demandas por atenção aos pontos de vista dos estudantes estão sendo ignoradas pelos dirigentes universitários.

O movimento estudantil americano continuou a avolumar-se por quase uma década: durante a semipaz do início dos anos 1960, bem como no curso da Guerra do Vietnã; durante o simbólico liberalismo de John Ken-nedy, assim como ao longo da administração racista e falida de Lyndon Johnson. Os estudantes reagiram mais diretamente ao movimento negro dos anos 1960: a partir do Mississippi Summer (Verão do Mississipi) e do Free Speech Movement (Movimento pela Livre Expressão); do Black Power (Poder Negro) para o Student Power (Poder Estudantil), desde a ocupação da Howard University à ocupação da Hamilton Hall. Como a crise racial, aprofunda-se também a crise nos campi. Mas o protesto estudantil não é apenas uma ramificação do protesto negro — está baseado numa autêntica oposição à manipulação, ao afunilamento e ao carreirismo do mundo da classe média. Os estudantes estão em oposição às instituições fundamentais da sociedade.

Os protestos dos estudantes constantemente aumentam de proporção ao elaborarem suas realizações e mi-tos. As questões que estão sendo consideradas pelos calouros de dezessete anos de idade na Universidade de Columbia não seriam imagináveis pela maioria dos “veteranos” ativistas estudantis cinco anos atrás.

A Columbia abriu uma nova etapa tática no movimento de resistência que começou no outono passado: da ocupação temporária de edifícios à ocupação permanente; de reuniõezinhas para a criação de comitês revolu-cionários; da simbólica desobediência civil às barricadas de resistência. Não apenas essas táticas já estão sendo reproduzidas em outros campi, mas elas com certeza serão ultrapassadas por outras táticas ainda mais militan-tes. No futuro, é concebível que os estudantes ameacem a destruição de edifícios como um último ato para dissuadir os ataques da polícia. Muitas das táticas aprendidas também podem ser aplicadas em pequenas ope-rações bate e corre durante as greves: incursões aos gabinetes de professores que fazem pesquisa para o desenvol-

* No original, Two, three, many Columbias.

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vimento de armas poderiam ganhar um apoio substancial entre os alunos, embora talvez fizessem a universi-dade se tornar mais abertamente repressiva.

Nos edifícios ocupados na Columbia, os alunos criaram o que chamaram de uma “nova sociedade” ou “zona libertada” ou “comuna”, uma sociedade em que valores decentes seriam vividos mesmo que os funcio-nários da universidade possam acabar com as comunas por meio do recurso à polícia. Os alunos divertiram-se, cantaram, dançaram e brincaram, mas havia uma tensão contínua. Não se questiona a consciência permanen-te que tiveram a propósito da seriedade dos seus atos. Embora houvesse algumas violentas discussões sobre táticas, a maior parte dos debates tomou a forma de intermináveis reuniões convocadas para explorar a situação política externa, táticas de defesa, manutenção e problemas morais dentro do grupo. Debater e então determi-nar o que deveriam fazer os líderes foram alternativas para o autoritário e remoto processo de tomada de de-cisões dos curadores da Columbia.

Entretanto, a greve da Columbia representou mais do que um novo movimento tático. Houve uma mensa-gem política também. Os estudantes grevistas não estavam se agarrando a uma estreita concepção de estudan-tes como uma classe privilegiada solicitando inclusão na universidade que agora existe. Este tipo de demanda poderia ser facilmente atendida pelos dirigentes, através da abertura de oportunidades para uma minoria de “estudantes direitos”, enquanto quebrariam os radicais dos campi. Os estudantes da Columbia, em vez disso, estão assumindo uma visão internacionalista e revolucionária de si mesmos em oposição ao imperialismo das instituições nas quais foram preparados e educados. Eles nem sequer querem ser incluídos nos círculos de de-cisão do complexo industrial-militar que dirigem a Columbia: eles querem ser incluídos apenas se a sua inclusão for um passo para transformar a universidade. Eles querem uma universidade nova e independente colocando-se con-tra a corrente dominante da sociedade americana; caso contrário, eles preferem não ter nenhuma universidade. Eles são, nas palavras de Fidel Castro, “guerrilhas no campo da cultura”.

Quantas outras escolas podem ser consideradas maduras para tais confrontos? A pergunta é difícil de res-ponder, mas é claro que as demandas dos estudantes negros por reconhecimento cultural, em vez de tolerância paternalista, e a preocupação dos estudantes brancos radicais com as sinistras atividades paramilitares desenvol-vidas em segredo pelas autoridades em muitos campi, não estão apenas confinadas à Columbia. O problema da Columbia é o problema americano em miniatura — a incapacidade de dar respostas a amplas demandas sociais e a utilização dos militares para proteger as autoridades contra o povo. Este processo só pode conduzir a uma maior unidade no movimento.

O apoio das comunidades de fora da universidade pode ser contabilizado em muitas grandes cidades. A crise é previsível e seria demasiado maciça para ser controlada pela polícia. Pode acontecer; se será ou não necessária é uma pergunta que só o tempo irá responder. O que é certo é que estamos avançando para o poder — o poder de parar a máquina, se ela não puder servir a propósitos humanos.

Educadores americanos gostam de dizer aos seus alunos que barricadas fazem parte de um passado român-tico, que as mudanças sociais hoje só podem acontecer através de processos de negociação. Mas os alunos na Columbia descobriram que as barricadas são apenas o começo daquilo que eles chamam de “trazer a guerra para casa”.

Fonte | Ramparts Magazine, 15 jun. 1968. Disponível em: <http://74.125.113.132/search?q=cache:Y3LRNeMMFJ0J:www.hippy.com/article-98.html+Two,+three,+many+Columbias+ramparts&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br>. Acesso em: 28 set. 2009.

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1969 | doS índioS de todAS AS triBoS

proclamação

em novembro de 1969, 79 pessoas, autoidentificando-se como americanos-nativos, ocuparam o presídio abandonado de Alcatraz, situado numa ilha ao largo da cidade de san Francisco, Califórnia. Divulgaram então um manifesto redigido em tom irônico. entre as

propostas formuladas, ofereceram 24 dólares pela ilha, argumentando que era um preço superior ao oferecido pelos colonizadores para a

compra da ilha de Manhattan no século XVII. reivindicavam também a transformação do presídio desativado em um complexo educacional

dedicado à cultura dos americanos-nativos. A manifestação seria reforçada por um número maior de americanos-nativos e outros simpatizantes da causa, ganhando amplo espaço e projeção na mídia. Apesar disso, as autoridades, além de não atenderem às

reivindicações, pressionaram os ocupantes, cortando a água, a luz e o sistema telefônico da ilha. Finalmente, em 1971, os últimos 19

ocupantes remanescentes foram desalojados de Alcatraz pela polícia. Contudo, o protesto não foi em vão, sendo considerado precursor

de outros movimentos indígenas, como o United of All Tribes, criado em 1970, e o American Indian Movement, instituído em 1973, ambos

inspirados nos movimentos dos anos 1960. estas organizações dedicam-se, desde então, a afirmar a identidade étnica e a promover a cultura e a história indígenas, oferecendo uma narrativa alternativa

para a história oficial sobre o passado dos euA. (g.n. e C.A.)

Nós, os nativos americanos, reivindicamos a terra conhecida como ilha de Alcatraz em nome de todos os ín-dios americanos por direito de descoberta. Queremos ser justos e honrados em nossa negociação com os cau-casianos habitantes desta terra e, assim, oferecemos os seguintes tratados:

Nós compraremos a ilha de Alcatraz por 24 dólares em contas de vidro e tecido vermelho, um preceden-te criado pelo homem branco na compra de uma ilha similar há cerca de 300 anos. Sabemos que 24 dólares em mercadorias pelos 16 acres são mais do que aquilo que foi pago quando Manhattan foi vendida, mas sabemos que os valores da terra subiram nos últimos anos. A nossa oferta de $1,24 por hectare é maior do que os 47 centavos de dólar por acre que o homem branco está agora pagando aos índios da Califórnia por suas terras.

Nós daremos aos habitantes, perpetuamente, a posse de um lote de terra, o que se concretizará sob regência do Departamento das Relações dos Índios Americanos e do Departamento das Relações com os Caucasianos — e isto durará enquanto o sol nascer e os rios descerem para o mar. Além disso, vamos continuar a orientar as pessoas para uma maneira apropriada de viver. Vamos oferecer-lhes a nossa religião, a nossa educação, o nosso modo de vida, a fim de ajudá-las a atingir o nosso nível de civilização e, assim, retirá-los e também todos os seus irmãos brancos de seu estado selvagem e infeliz. Oferecemos este tratado de boa-fé e desejamos ser justos e honrados nas nossas relações com todos os homens brancos.

Nós pensamos que esta ilha chamada de Alcatraz é mais do que adequada para uma reserva indígena, como determinado pelos próprios padrões do homem branco. Queremos dizer com isso que o local assemelha-se à maioria das reservas indígenas, no seguinte sentido:

1. É isolada das modernas infraestruturas e sem meios de transporte adequados.2. Não tem água fresca encanada.3. Não tem infraestrutura sanitária adequada.4. Não há direitos sobre petróleo ou minerais.5. Não há indústria e, portanto, o desemprego é muito alto.6. Não há sequer um posto de saúde.7. O solo é pedregoso e não produtivo e os terrenos não permitem jogos.8. Não existe infraestrutura educacional.

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9. A população sempre excedeu à terra disponível.10. A população sempre esteve presa e mantida em dependência de outros.

Além disso, seria adequado e simbólico que os navios de todas as partes do mundo, ao entrarem na Golden Gate, em primeiro lugar vissem terra indígena, e assim se recordassem da verdadeira história desta nação. Esta pequena ilha seria um símbolo das grandes terras uma vez governadas por livres e nobres índios.

Que usos faremos desta terra?Desde que o Centro Indígena de São Francisco incendiou-se, não há lugar para os índios continuarem a

vida tribal na cidade do homem branco. Portanto, pretendemos desenvolver nesta ilha várias instituições indí-genas. 1. Um centro de estudos dos indígenas americanos; 2. Um centro espiritual dos índios americanos; 3. Um centro indígena de ecologia; 4. Uma grande escola de formação indígena; e 5. Um museu indígena ame-ricano.

Em nome de todos os índios, por isso, reivindicamos essa ilha para todas as nações indígenas, e por essas razões, pensamos que a reivindicação é justa e adequada, e que as terras devem legitimamente ser concedidas a nós, enquanto os rios continuem a fluir e o sol a brilhar.

Dos índios de todas as tribos

Fonte | GOSSE, Van. The movements of the New Left 1950-1975: a brief history with documents. Boston & New York: Bedford/St. Martin’s, 2005.

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1969 | mAnifeSto doS meiAS VermelhAS*

entre os movimentos antissistêmicos que marcaram os anos 1960, merece destaque o movimento feminista. Diferentemente dos

movimentos anteriores, que reivindicaram a inserção igualitária no sistema político estabelecido, como o movimento sufragista, as novas

organizações feministas produziram uma verdadeira mudança de paradigma. A luta política deixou de ser associada unicamente ao

espaço público, desafiando-se inclusive a tradicional separação entre os universos público e privado. A subordinação da mulher e os papéis a ela atribuídos na esfera doméstica passaram a ser percebidos como instrumentais para o sistema capitalista, o que obrigava à reavaliação

das relações de poder e as identidades políticas. A oposição entre capital e trabalho deixava de ser vista como determinante,

subordinando todas as demais contradições sociais.

lançado em 1969, o manifesto redstockings (Meias Vermelhas) expressava a posição de uma vertente anteriormente ligada à new

York radical Women (Mulheres radicais de nova Iorque). no contexto da emergência da new left (nova esquerda), as organizações

feministas multiplicavam-se, lançando novas demandas, através de uma linguagem que pretendia desafiar os padrões de comportamento e os alicerces da ordem e da dominação, qualificada como masculina.

o movimento feminista ainda teria que esperar algum tempo para que o conceito de gênero atribuísse um sentido mais complexo às lutas

sustentadas não apenas por mulheres, mas também por outros atores sociais. (g.n. e C.A.)

I. Após séculos de luta política individual e preliminar, as mulheres estão unidas para alcançar a sua libertação definitiva da supremacia masculina. As Meias Vermelhas dedicam-se à construção desta unidade para ganhar a nossa liberdade.

II. As mulheres são uma classe oprimida. Nossa opressão é total, afetando cada faceta de nossas vidas. Somos exploradas como objetos sexuais, procriadoras, domésticas e como trabalho barato. Somos consideradas seres inferiores, cuja única finalidade é melhorar a vida dos homens. A nossa humanidade é negada. O nosso com-portamento prescrito é garantido pela ameaça da violência física.

Porque temos vivido tão intimamente com os nossos opressores, de forma isolada umas das outras, temos sido privadas de ver o nosso sofrimento pessoal como uma condição política. Isso cria a ilusão de que o relacio-namento entre mulher e homem é um assunto exclusivo da interação entre duas personalidades, e que pode ser trabalhado individualmente. Na realidade, toda essa relação é um relacionamento de classe, e os conflitos individuais entre homens e mulheres são conflitos políticos que só podem ser resolvidos coletivamente.

III. Nós identificamos os agentes de nossa opressão como homens. A supremacia masculina é a mais antiga e a mais básica forma de dominação. Todas as outras formas de exploração e opressão (racismo, capitalismo, im-perialismo etc.) são extensões da supremacia masculina: os homens dominam as mulheres, e poucos homens dominam o resto. Todas as estruturas de poder ao longo da história foram orientadas e dominadas pelos ho-mens. Os homens têm controlado todas as instituições políticas, econômicas e culturais e respaldado esse controle com a força física. Eles usaram o seu poder para manter as mulheres em uma posição inferior. Todos os homens recebem benefícios econômicos, sexuais e psicológicos da supremacia masculina. Todos os ho-mens têm mulheres oprimidas.

* No original, The Redstockings manifesto, 7 jul. 1969.

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IV. Tentativas têm sido feitas para atribuir o ônus da responsabilidade dos homens a instituições ou às próprias mulheres. Nós condenamos tais argumentos como evasivos. Instituições sozinhas não oprimem; elas são ape-nas meras ferramentas do opressor. Colocar a culpa nas instituições implica que os homens e as mulheres são igualmente vítimas, obscurece o fato de que os homens beneficiam-se da subordinação das mulheres e dá aos homens a desculpa de que são obrigados a ser opressores. Num sentido contrário, qualquer homem é livre para renunciar à sua posição superior, desde que esteja disposto a ser tratado como uma mulher por outros homens.

Nós também rejeitamos a ideia de que as mulheres consentem a, ou são as culpadas pela, sua própria opressão. A submissão das mulheres não é o resultado de lavagem cerebral, estupidez ou doença mental, mas de con-tínua e cotidiana pressão dos homens. Nós não precisamos mudar a nós mesmas, mas mudar os homens.

A mais caluniadora evasão de todas é que as mulheres podem oprimir os homens. A base para essa ilusão é o isolamento das relações individuais de seus contextos políticos e a tendência dos homens para enxergar qual-quer desafio legítimo aos seus privilégios como perseguição.

V. Consideramos nossa experiência pessoal, e os nossos sentimentos sobre essa experiência, como a base para uma análise da nossa situação comum. Não podemos depender das ideologias existentes, pois são todas frutos da supremacia cultural masculina. Questionamos todas as generalizações e não aceitamos nada que não este-ja confirmado pela nossa experiência.

Nossa principal tarefa no momento é desenvolver a consciência de classe feminina pelo compartilhamento de experiências e da exposição pública do alicerce sexista de todas as nossas instituições. Elevação da consci-ência não é “terapia”, o que implica a existência de soluções individuais, e falsamente assume que a relação homem-mulher é puramente pessoal, mas é o único método por meio do qual podemos garantir que nosso programa de libertação será baseado nas realidades concretas das nossas vidas. O primeiro requisito para ele-var a consciência de classe é a honestidade, em privado e em público, com nós mesmas e outras mulheres.

VI. Nós nos identificamos com todas as mulheres. Nós definimos o nosso maior interesse como sendo a condi-ção das mulheres mais pobres, que são as mais brutalmente exploradas. Repudiamos todos os privilégios econômicos, raciais, educacionais ou de status que nos dividem de outras mulheres. Estamos determinadas a reconhecer e a eliminar todos os preconceitos de que possamos ser titulares contra outras mulheres.

Estamos empenhadas em conseguir a democracia interna. Nós faremos o que for necessário para assegurar que todas as mulheres do nosso movimento tenham igual oportunidade de participar, assumir responsabili-dades e desenvolver o seu próprio potencial político.

VII. Convocamos todas as nossas irmãs a se unirem a nós na luta. Convocamos todos os homens a renunciar aos seus privilégios masculinos e apoiar a libertação da mulher, no interesse da nossa humanidade e do seu pró-prio interesse. Na luta pela nossa libertação, vamos tomar sempre o lado das mulheres contra os seus opres-sores. Não vamos perguntar o que é “revolucionário” ou “reformista”, apenas o que é bom para as mulheres. O tempo das escaramuças individuais passou. Desta vez, vamos todas pelo mesmo caminho.

Fonte | Disponível em: <http://64.233.163.132/search?q=cache:4bY8M_xpIzAJ:www.redstockings.org/index.php%3Foption%3Dcom_content%26view%3Darticle%26id%3D76%26Itemid%3D59+The+Redstockings+Manifesto&cd=8&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br>. Acesso em: 28 set. 2009.

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1971 | l iBerAção gAy no terceiro mundo

O que queremos, no que acreditamos*

escrito em 1971, este manifesto expressa a multiplicidade de temas que haviam se tornado característica do ativismo de esquerda desde

o fim da década anterior: uma crítica radical ao capitalismo (de notória influência marxista), solidariedade com os povos do terceiro

Mundo (a guerra do Vietnã ainda estava na ordem do dia) e, por fim, mas não menos importante, o ataque às convenções que regiam

a vida pessoal: hegemonia masculina, família nuclear patriarcal, casamento monogâmico, heterossexualidade compulsória. tais

valores foram postos na berlinda à medida que o feminismo ganhava visibilidade e começava a contestar o conservadorismo privado de

tantos revolucionários, isto é, aqueles que pregavam uma nova ordem política, econômica, racial e social, mas reproduziam e mesmo

defendiam os papéis tradicionais de gênero na vida privada.

esse questionamento iniciado pelas feministas não tardou a ganhar eco entre os homossexuais, que, desde o episódio de stonewall, em junho de 1969, deixaram de se manifestar apenas com as discretas associações homófilas, como a Mattachine society, e, aderindo ao

espírito da época, aprenderam a ganhar também as ruas na defesa de seus direitos. (r.F.)

Nossos honestos irmãs e irmãos devem reconhecer e apoiar o fato de que nós, mulheres e homens gays, somos iguais em todos os aspectos, nas fileiras revolucionárias.

Cada um de nós organiza sua gente em torno de diferentes questões, mas nossas lutas são as mesmas contra a opressão, e nós a derrotaremos juntos. Uma vez que compreendamos estas lutas, e ganhemos o amor de nos-sas irmãs e irmãos envolvidos nelas, precisamos aprender a melhor maneira de participar delas.

As lutas dos povos do mundo são também nossas lutas; suas vitórias são nossas vitórias e nossas vitórias são vitórias deles. Nossa liberdade só será alcançada se eles também ganharem a sua liberdade.

Juntos, não sozinhos, precisamos investigar como nos vemos a nós mesmos e analisar os pressupostos de nossa autoidentidade. Podemos então começar a derrubar as barreiras de nossas várias fraquezas, nossa passivi-dade, o chauvinismo sexual — em essência, nossa incapacidade de nos amarmos uns aos outros serenamente, de viver, lutar, e se for necessário, morrer pelo povo da terra.

Quando começarmos a compreender nosso lugar nesta revolução internacional, e nos juntarmos a outros nesta compreensão, precisaremos desenvolver a sabedoria necessária para destruir as forças da repressão e da exploração, para que seja possível para uma nova mulher e para um novo homem evolver numa sociedade baseada no amor comunitário.

Enquanto compreendemos que nos Estados Unidos nosso principal inimigo é o sistema sócio-político-econômico capitalista e as pessoas que lucram à custa de nossos sofrimentos, lutas e divisões, também reconhe-cemos que precisamos lutar contra todos os governos ou máquinas governamentais totalitárias, autoritárias, controladoras do sexo, repressivas, irracionais, reacionárias e fascistas.

o que quereMoS, no que ACreDItAMoS

1. Queremos o direito de autodeterminação para o Terceiro Mundo e para o povo gay, assim como o controle dos destinos de nossas comunidades.

Acreditamos que o Terceiro Mundo e o povo gay não podem ser livres enquanto não formos capazes de determinar nossos próprios destinos.

* No original, Third World Gay Liberation. What we want, what we believe.

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2. Queremos o direito de autodeterminação sobre o uso de nossos corpos: o direito de ser gay, em qualquer tempo e em qualquer lugar; o direito à liberdade de mudança fisiológica e de modificar como queiramos o sexo; o direito à liberdade de se vestir e de se embelezar.

Acreditamos que estes são direitos humanos que precisam ser defendidos com nossos próprios corpos. O sis-tema que ora existe nega estes direitos humanos básicos implementando a heterossexualidade compulsória.

3. Queremos liberdade para todas as mulheres: queremos livre e segura informação sobre a contracepção e livre acesso aos dispositivos de controle. Queremos creches gratuitas 24/24h, controladas por quem necessita delas e usa-as. Queremos uma redefinição da educação e de incentivos (especialmente para as mulheres do Terceiro Mundo) com vistas a mais amplas oportunidades educacionais e sem limitações sexistas. Queremos ensino confiável sobre a história das mulheres. Queremos um fim para as práticas empregatícias que fazem das mu-lheres e das minorias nacionais: 1) uma fonte pronta e disponível para trabalho barato; e 2) confinadas a em-pregos intelectualmente podres e sob as piores condições.

Acreditamos que as lutas de todos os grupos oprimidos sob qualquer forma de governo que não atenda às demandas de seus povos resultarão finalmente na derrubada desses governos. A luta pela libertação da mu-lher é uma luta a ser travada por todos os povos. Precisamos lutar com nós mesmos e no interior de nossos vários movimentos para acabar com a mais antiga forma de opressão e seu fundamento — o chauvinismo machista. Não podemos desenvolver uma forma verdadeiramente libertadora de socialismo a menos que lutemos contra tais tendências.

4. Queremos integral proteção da lei e sanção social para todas as autoexpressões sexuais e prazerosas do ser humano que se realizem entre pessoas que o consintam, inclusive jovens. Acreditamos que as leis atuais são opressivas para os povos do Terceiro Mundo, para o povo gay e para as massas. Tais leis expõem as desigual-dades do capitalismo, que só podem existir num estado no qual existam grupos ou pessoas oprimidos. Isso precisa acabar.

5. Queremos a abolição da instituição da família nuclear burguesa.

Acreditamos que a família nuclear burguesa perpetue as falsas categorias de homossexualidade e heterosse-xualidade, por meio da criação de papéis sexuais, definições sexuais e exploração sexual. A família nuclear burguesa, como unidade básica do capitalismo, cria papéis opressivos de homossexualidade e heterossexu-alidade. Todas as opressões originam-se na estrutura nuclear familiar. A homossexualidade é uma ameaça para esta estrutura e, portanto, para o capitalismo. A mãe é um instrumento de reprodução e ensina, desde a infância, os valores necessários à sociedade capitalista, isto é, racismo, sexismo etc... O pai fisicamente obriga (as mães e os filhos) a terem um comportamento que é necessário para o sistema capitalista: os me-ninos têm de ter inteligência e competitividade e as meninas têm de ter passividade. Além disso, é direito de toda criança desenvolver-se numa atmosfera não sexista, não racista, não possessiva, cuja criação seja de responsabilidade de todo o povo, incluindo os gays.

6. Queremos um sistema educacional livre e não compulsório, que nos ensine nossa verdadeira identidade e história, e apresente todas as nuanças da sexualidade humana sem advogar nenhuma forma ou estilo; que os papéis sexuais e a determinação dos saberes de acordo com o sexo sejam eliminados do sistema escolar; que a linguagem seja modificada sem prioridades de gênero; e que o povo gay possa compartilhar responsabilidades na educação.

Acreditamos que aprendemos a competir desde cedo pelo poder, e é da atitude competitiva que brotam o sexismo, o racismo, o machismo, o chauvinismo nacional e a desconfiança em relação a nossas irmãs e nossos irmãos. Quando começarmos a ver tais coisas no interior de nós mesmos, tentaremos nos libertar delas e mudarmos no sentido de uma consciência revolucionária.

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7. Queremos integral garantia de trabalho igual para os povos do Terceiro Mundo e para o povo gay em todos os níveis da produção.

Acreditamos que todo o sistema de governo é responsável por oferecer a todas as mulheres e a todos os homens uma renda garantida ou um emprego, independentemente do sexo ou da preferência sexual. Ten-do apenas interesse em lucros, o capitalismo não pode atender às necessidades do povo.

8. Queremos moradia decente, gratuita e adequada para todas as pessoas. Acreditamos que a moradia gratuita é uma necessidade básica e um direito que não pode ser negado sob nenhum pretexto a nenhum ser humano. Proprietários de imóveis são capitalistas e, como todos os capitalistas, são motivados apenas pela acumulação de lucros, o que é oposto ao bem-estar do povo.

9. Queremos abolir o atual sistema jurídico. Queremos que os povos do Terceiro Mundo e o povo gay, quando levados a julgamento, sejam julgados por júris constituídos por seus pares. Um par é uma pessoa de semelhan-tes características em termos sociais, econômicos, geográficos, raciais, históricos, ambientais e sexuais. Nós acreditamos que a função do sistema judicial sob o capitalismo seja garantir a dominação de classe e manter sob controle as massas.

10. Queremos reparações e que sejam liberadas das cadeias e dos hospícios todas as pessoas do Terceiro Mundo e do povo gay e todos os prisioneiros políticos.

Acreditamos que estas pessoas devam ser libertadas porque não tiveram julgamentos justos e imparciais.

11. Queremos a abolição da pena capital, de todas as formas de punição institucional e do sistema penal.

Queremos o estabelecimento de instituições psiquiátricas para o tratamento humano e a reabilitação das pessoas criminosas conforme decidido pelos tribunais do povo. Queremos o estabelecimento de um núme-ro suficiente de clínicas gratuitas e não compulsórias para o tratamento de distúrbios sexuais, conforme assim seja definido individualmente pelas pessoas.

12. Queremos um imediato fim da força policial fascista. Acreditamos que o único meio de alcançar este objetivo é colocar a defesa do povo nas mãos do povo.

13. Queremos que todos os homens do Terceiro Mundo e do povo gay sejam isentos do serviço militar compul-sório no exército imperialista. Queremos o fim da opressão militar no país e no mundo.

Acreditamos que o único verdadeiro exército dos povos oprimidos é o exército do povo, e os povos do Ter-ceiro Mundo, o povo gay e as mulheres deveriam participar integralmente no exército revolucionário do povo.

14. Queremos o fim de todas as religiões institucionais, porque elas contribuem para o genocídio, ensinando superstições e o ódio aos povos do Terceiro Mundo, aos homossexuais e às mulheres. Queremos a garantia de livre expressão da espiritualidade natural.

Acreditamos que as religiões institucionais sejam instrumentos do capitalismo, portanto, inimigas do povo.

15. Reivindicamos imediato ingresso, participação livre e não discriminação para os homossexuais radicais em todos os grupos e organizações da esquerda revolucionária, com direito de formar tendências.

Acreditamos que os assim chamados camaradas que se autodenominam “revolucionários” fracassaram em li-dar com suas atitudes sexistas. Em lugar de fazê-lo, agarraram-se à supremacia machista e, portanto, aos papéis

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condicionados de opressores. Homens ainda lutam para alcançar as posições privilegiadas de homem-líder. Mulheres rapidamente adotam uma postura “atrás de seu homem”. Em sua luta contrarrevolucionária para manter e forçar a heterossexualidade e a família nuclear, eles perpetuam os vestígios decadentes do capitalis-mo. Para afirmar sua posição anti-homossexual, empregaram as armas do opressor, e, nesta medida, torna-ram-se agentes do opressor.

Compete aos homens definir realisticamente a masculinidade, porque foram eles que, ao longo de suas vidas, lutaram para afirmar seus papéis irrealistas de “homens”. Homens sempre tentaram alcançar esta posição precária, subindo nas costas das mulheres e dos homossexuais. A “masculinidade” tem sido defini-da pela sociedade capitalista como o conjunto de posses (incluindo mulheres), que um homem acumula, e o conjunto de poder físico ganho em relação a outros homens. Aos homens do Terceiro Mundo até mesmo estes falsos padrões de “masculinidade” têm sido recusados. A anti-homossexualidade fortalece as repres-sões sexuais, a supremacia machista, enfraquece o impulso revolucionário e tem como resultado uma pers-pectiva política incorreta e não objetiva. Portanto, acreditamos que todas as organizações e grupos revolu-cionários devam imediatamente estabelecer políticas abertas e não discriminatórias de ingresso e de parti-cipação.

16. Queremos uma nova sociedade — uma sociedade socialista revolucionária. Queremos a libertação da huma-nidade, comida gratuita, teto gratuito, vestuário gratuito, transporte gratuito, saúde gratuita, abastecimento gratuito, educação gratuita, arte gratuita para todos. Queremos uma sociedade na qual as necessidades do povo venham em primeiro lugar.

Acreditamos que todo o povo deva compartilhar o trabalho e os produtos da sociedade, de acordo com as necessidades e as capacidades de cada um, independentemente de raça, sexo, idade ou preferência sexual. Acreditamos que a terra, a tecnologia e os meios de produção pertençam ao povo, e devam ser comparti-lhados coletivamente pelo povo para a libertação de todos.

Fonte | BLOOM, Alexander; BREINES, Wini. Takin’it to the streets: a sixties reader. Oxford: Oxford University Press, 1995. 5a edição online disponível em <www.questia.com>. Acesso em: 11 jan. 2006.

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1984 | céSAr cháVez

Ao Commonwealth Club of California*

César Chávez (1927-1993) destacou-se em várias lutas sociais nos euA, durante três décadas, como um expoente do movimento chicano-

americano (tendo importância análoga à de Martin luther King no movimento negro). também se tornou a figura maior do sindicalismo

rural durante esse período, liderando a fundação do united Farm Workers (uFW). Chávez, fortemente influenciado por Mahatma

ghandi e Jesus Cristo, pregava a não violência como método para a resolução dos problemas e fez diversas greves de fome em forma de

protesto. Além disso, também liderou boicotes contra as corporações agrícolas, em especial contra os grandes produtores de uva. Durante

os anos 1960, os protestos liderados por Chávez ganharam o apoio de importantes políticos que, mesmo não compartilhando inteiramente

os ideais do uFW, participaram das lutas, como os democratas Walter Mondale e robert F. Kennedy.

no discurso a seguir, Chávez faz uma retrospectiva da história do uFW e deflagra, mais uma vez, um boicote aos produtores de uva. tenta

então reafirmar a importância dos ganhos do movimento trabalhista anterior, adaptando-se, ao mesmo tempo, às novas demandas.

Assim, mantendo o combate ao uso de pesticidas nos alimentos e à exploração do trabalho infantil, propõe novas pautas como a

questão do assédio sexual no meio rural. em outra dimensão, sugere a adoção de novas tecnologias, como o uso dos computadores em

contraposição à simples panfletagem. (g.n.)

Há 21 anos, em setembro, num solitário trecho do trilho da ferrovia paralela à U. S. Highway 101, próximo à Salinas, 32 trabalhadores rurais braceros (braçais) perderam suas vidas em um trágico acidente.

Os braceros tinham sido importados do México para trabalhar em fazendas na Califórnia. Eles morreram quando seu ônibus, adaptado a partir de um caminhão de carga pesada (aberto e sem laterais), colidiu de fren-te com um trem de carga. A transformação do caminhão não tinha sido aprovada por nenhuma agência go-vernamental. O motorista teve uma perda de visão momentânea. A maior parte dos corpos ficou estendida e sem identificação durante dias. Ninguém, nem mesmo o fazendeiro que contratou os trabalhadores, sequer sabia seus nomes.

Hoje, centenas de trabalhadores rurais vivem em condições brutais — debaixo de árvores e em meio ao lixo e ao excremento humano — próximos aos campos de tomate no município de San Diego — campos de to-mate que utilizam o que há de mais moderno em tecnologia de produção. Ratos doentes os mordem enquan-to dormem. Eles caminham quilômetros para comprar comida a preços inflacionados. E a água que conse-guem vem das bombas de irrigação.

O trabalho infantil ainda é comum em muitas fazendas. Até 30% dos trabalhadores que fazem a colheita de alho no norte da Califórnia são menores de idade.

Crianças de até seis anos de idade votaram nas eleições estaduais do sindicato, pois estavam qualificadas como trabalhadores.

Cerca de 800 mil crianças trabalham com suas famílias nas colheitas por toda a América. Bebês nascidos de trabalhadores migrantes sofrem 25% a mais de mortalidade infantil do que o resto da população.

A má nutrição infantil entre os trabalhadores migrantes é dez vezes maior do que o índice nacional.A média da expectativa de vida dos trabalhadores rurais ainda é de 49 anos — comparada aos 73 anos da

média americana.Por toda a minha vida, tenho sido guiado por um sonho, um objetivo, uma visão: transformar o sistema de tra-

balho nas fazendas dessa nação, que trata os trabalhadores rurais como se não fossem seres humanos importantes.

* No original, Address at the Commonwealth Club of California (fundada em 1903, situada na Carolina do Norte e contando hoje com mais de 19.000 membros, é uma entidade de cunho beneficiente, apartidário e educacional).

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Os trabalhadores rurais não são implementos agrícolas. Eles não são burros de carga para serem usados e descartados.

Aquele sonho nasceu na minha juventude. Foi alimentado nos meus primeiros anos de organização. Cres-ceu. Tem sido atacado.

Eu não sou muito diferente de qualquer um que tenha alguma vez tentado realizar algo em sua vida. Minha motivação vem da minha vida pessoal — da observação do que minha mãe e meu pai passaram quando eu estava crescendo; do que nós vivenciamos como trabalhadores rurais migrantes na Califór-nia.

Aquele sonho, aquela visão, cresceu da minha experiência pessoal com o racismo, com a esperança, com o desejo de ser tratado justamente e de ver o meu povo ser tratado como seres humanos e não como gado.

Cresceu da raiva e da fúria — emoções que eu senti há 40 anos, quando às pessoas da minha cor era negado o direito de ver um filme ou de comer em um restaurante em várias partes da Califórnia.

Cresceu com a frustração e a humilhação que senti como um garoto que não conseguia entender como os fazendeiros podiam explorar e abusar dos trabalhadores rurais quando éramos tantos e eles, tão poucos.

Mais tarde, nos anos 1950, experimentei uma forma diferente de exploração. Em San Jose, em Los Angeles e em outras comunidades urbanas, nós — o povo mexicano-americano — éramos dominados por uma maio-ria que era apenas anglo.1

Comecei a perceber o que outro povo minoritário já tinha descoberto: que a única resposta — a única es-perança — era se organizar. Em maior número, tínhamos que nos tornar cidadãos. Tínhamos que nos alistar para votar. E pessoas como eu tinham que desenvolver habilidades que deveríamos ter para nos organizar, nos educar, para ajudar a fortalecer o povo chicano.

Levei muitos anos — antes de fundarmos o sindicato — aprendendo a trabalhar com as pessoas.Tivemos algum sucesso no alistamento de eleitores, na política, na batalha contra a discriminação racial —

sucessos num tempo em que os negros americanos tinham acabado de começar a fazer valer os seus direitos civis e quando a consciência política entre os hispânicos praticamente não existia.

Mas, no fundo do meu coração, eu sabia que jamais poderia ser feliz a não ser que tentasse organizar os trabalhadores rurais. Não sabia se seria bem-sucedido, mas tinha que tentar.

Todos os hispânicos — urbanos e rurais, jovens e velhos — estão conectados à experiência dos trabalhado-res rurais. Todos nós tínhamos vivido no campo — ou nossos pais tinham vivido. Nós compartilhamos a mesma humilhação.

Como poderíamos progredir como povo, mesmo vivendo nas cidades, enquanto os trabalhadores rurais — homens e mulheres da nossa cor — eram condenados a uma vida sem dignidade? Como nós poderíamos progredir como povo enquanto era negado aos trabalhadores rurais — símbolos da nossa história nesta terra — o respeito? Como nosso povo poderia acreditar que seus filhos um dia se tornariam advogados, médicos, juízes e empresários enquanto essa injustiça se perpetuasse?

Aqueles que atacam o nosso sindicato costumam dizer: “Na realidade, não é um sindicato. É outra coisa: um movimento social; um movimento pelos direitos civis. É algo perigoso”. Em parte eles têm razão. O Uni-ted Farm Wokers/UFW (Sindicato dos Trabalhadores Rurais) é, antes e acima de tudo, um sindicato. Um sin-dicato como qualquer outro. Um sindicato que, ou se volta para as questões elementares dos seus membros, ou não sobrevive. Contudo, o UFW tem sempre sido algo a mais que um sindicato — apesar de nunca ter sido perigoso se você acredita na Lei dos Direitos Civis.

O UFW foi o início! Nós atacamos a fonte histórica da vergonha e infâmia com a qual o nosso povo tem vivido nesse país. Nós atacamos esta injustiça, não nos queixando; ou pedindo esmolas; ou nos tornando sol-dados na Guerra à Pobreza.

Nós nos organizamos!

1 O autor refere-se às pessoas de origem anglo-saxônica, também conhecidas por wasp (white, anglo-saxons and protestants), isto é, brancas, anglo-saxônicas e protestantes (N. do T.).

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Os trabalhadores rurais reconheceram que nós tínhamos permitido sermos tornados vítimas em uma socie-dade democrática — uma sociedade em que as deliberações da maioria e a negociação coletiva deveriam ser mais do que teorias acadêmicas ou retórica política. Tratando desse problema histórico, criamos confiança, orgulho e esperança na completa capacidade de todo um povo para construir o futuro.

A sobrevivência do UFW — sua existência — nunca esteve em dúvida na minha mente quando começou a chegar a hora — depois que o sindicato ganhou visibilidade — em que os chicanos começaram a entrar em faculdades em maior número, quando hispânicos começaram a ocupar cargos em instituições públicas em maior número — quando o nosso povo começou a fazer valer os seus direitos em relação a várias questões, em várias comunidades do país.

A sobrevivência do sindicato — sua própria existência — enviou um sinal para todos os hispânicos que estávamos lutando por nossa dignidade, que estávamos desafiando e superando a injustiça, que estávamos for-talecendo os com menos educação entre nós — os mais pobres entre nós.

A mensagem era clara: se isso pudesse acontecer nos campos, poderia acontecer em qualquer lugar — nas cidades, nos tribunais, nos conselhos municipais, nas câmaras legislativas. Na verdade, eu não dei muito valor para isso na época, mas a chegada de nosso sindicato sinalizou o começo de grandes mudanças entre os hispâ-nicos que só agora estão começando a ser percebidas.

Já viajei a todos os cantos desta nação. Conheci e falei com milhares de hispânicos de diferentes tipos — de todas as classes econômicas e sociais. Na maioria das vezes, o que mais escutei dos hispânicos, independente mente de idade ou posição —, e de muitos não hispânicos também — é que os trabalhadores rurais lhes deram a esperança de que poderiam ser bem-sucedidos e a inspiração de trabalhar pela mudança.

De tempos em tempos vocês vão ouvir de nossos oponentes que o sindicato é fraco, que o sindicato não se sustenta, que o sindicato não tem crescido rápido o suficiente. Nosso obituário foi escrito muitas vezes. Como é irônico que as mesmas forças que argumentam tão apaixonadamente que o sindicato não exerce influência sejam as mesmas forças que continuam lutando contra nós com tanta força.

O poder do sindicato na agricultura não tem nada a ver com o número de sindicalizados. Não tem nada a ver com a capacidade dos trabalhadores rurais de contribuir com os políticos democratas. Tampouco tem a ver com a nossa capacidade de conduzir com sucesso os boicotes.

Somente o fato de existirmos força toda uma indústria — estejam ou não sindicalizados os trabalhadores — a gastar milhões de dólares, ano após ano, em melhorar salários, em melhorar as condições de trabalho, em benefícios para os trabalhadores.

Se somos tão fracos e fracassados, por que os fazendeiros continuam a lutar contra nós com tanta paixão? Por-que, enquanto continuarmos a existir, os trabalhadores rurais serão beneficiados — mesmo que eles não sejam sindicalizados. Realmente, não importa se nós temos 100 mil membros ou 500 mil membros. Na verdade, hoje, centenas de milhares de trabalhadores rurais na Califórnia — e em outros Estados — estão em melhores condi-ções por causa do nosso trabalho. Hoje, os hispânicos de toda a Califórnia e da nação, que não trabalham na agricultura, estão em melhores condições por causa dos ensinamentos dados pelos trabalhadores rurais ao seu povo em relação à organização, orgulho e firmeza, acerca de assumir o controle sobre suas próprias vidas.

Dezenas de milhares de filhos e netos de trabalhadores rurais e de filhos e netos de hispânicos pobres estão se mudando dos campos e dos bairros pobres em direção às profissões, aos negócios e à política. E este movi-mento não pode ser revertido!

Nosso sindicato vai existir para sempre como uma fortaleza entre os chicanos no sudoeste, o que significa que o nosso poder e a nossa influência vão crescer e não diminuir.

Duas grandes tendências nos dão esperança e coragem.Em primeiro lugar, nosso sindicato tem se voltado para uma arma já utilizada e testada pelo arsenal de não

violência dos trabalhadores rurais — o boicote! Depois que o Projeto de Lei das Relações Trabalhistas na Agri-cultura se transformou em lei na Califórnia, em 1975, nós suspendemos nosso boicote para trabalhar com a lei.

Nos inícios — e meados — dos anos 1970, milhões de americanos apoiaram nossos boicotes. Depois de 1975, nós redirecionamos nossos esforços de boicote para a organização e para vencer eleições dentro da lei.

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A lei ajudou os trabalhadores rurais a obter progresso na superação da pobreza e da injustiça. Nas companhias nas quais os trabalhadores rurais são protegidos pelos contratos sindicais, temos conseguido progresso em supe-rar o trabalho infantil, em superar salários e condições de trabalho miseráveis, em superar assédios sexuais a trabalhadoras mulheres, em superar perigosos pesticidas que envenenam nosso povo e envenenam a comida que nós todos comemos. Nos lugares onde temos nos organizado, essas injustiças logo passaram para a história.

Entretanto, sob o governo do republicano George Deukmejian, a lei que garantia o direito a nos organizar passou a não mais proteger os trabalhadores rurais. Não funciona mais. Em 1982, empresários fazendeiros deram a Deukmejian um milhão de dólares para concorrer ao governo da Califórnia. Uma vez eleito, Deuk-mejian pagou a dívida com os fazendeiros com o sangue e o suor dos trabalhadores rurais da Califórnia. Em vez de cumprir a lei como estava escrita, Deukmejian convidou os fazendeiros infratores a buscar apoio dos funcionários do seu governo.

O que tudo isso significa para os trabalhadores rurais? Significa que o direito de votar em eleições livres é uma vergonha. Significa que o direito de falar livremente sobre o sindicato com os seus companheiros no trabalho é uma mistificação cruel. Significa que o direito de ser livre de ameaças e intimidações pelos fazen-deiros é uma promessa vazia. Significa que o direito de sentar e negociar com o seu empregador como iguais — e não como peões no campo — é uma fraude. Significa que milhares de trabalhadores rurais — que são credores de milhares de dólares em indenizações porque seus empregadores não cumpriram a lei — estão ainda esperando por seus cheques. Significa que 36 mil trabalhadores rurais — que votaram para serem repre-sentados pelo UTW em eleições livres — estão ainda esperando por contratos com fazendeiros que se recusam a negociar com boa-fé. Significa que para os trabalhadores rurais o trabalho infantil vai continuar. Significa que a mortalidade infantil vai continuar. Significa que a subnutrição entre nossas crianças vai continuar. Sig-nifica que a curta esperança de vida e as condições de vida e de trabalho subumanas vão continuar.

Estas são ameaças verossímeis? São exageros?Perguntem aos trabalhadores rurais que ainda estão esperando pelos fazendeiros para negociar com boa-fé

e assinar contratos. Perguntem aos trabalhadores rurais que vêm sendo despedidos de seus empregos porque falaram abertamente sobre o sindicato. Perguntem aos trabalhadores rurais que têm sido ameaçados com vio-lência física porque eles apoiam o UFW. Perguntem à família de Rene Lopez, o jovem trabalhador rural de Fresno que foi morto a tiros no ano passado porque apoiava o sindicato.

Esses acontecimentos trágicos forçaram os trabalhadores rurais a declararem um novo boicote internacional aos produtores de uva da Califórnia. É por essa razão que estamos convocando os americanos, uma vez mais, a se juntarem aos trabalhadores rurais boicotando as uvas da Califórnia.

A pesquisa de opinião Louis Harris revelou que 17 milhões de americanos adultos boicotaram as uvas. Nós estamos convencidos de que essas pessoas e essa boa-vontade não desapareceram.

Os segmentos da população que apoiaram o nosso trabalho de boicote são os hispânicos, os negros, outras minorias e os nossos aliados nos sindicatos e nas igrejas. Mas também toda uma geração de jovens americanos que amadureceram politicamente e socialmente nos anos 1960 e 1970 — milhões de pessoas para as quais o boicote das uvas e de outros produtos se tornou um modelo de comportamento socialmente aceito.

Se você foi jovem, anglo e esteve em um campus universitário, ou próximo a um, durante os anos 1960 e meados dos anos 1970, há uma chance de ter apoiado os trabalhadores rurais.

Quinze anos depois, os homens e as mulheres daquela geração estão vivos e com saúde. Eles têm cerca de 30 ou 40 anos e estão desenvolvendo suas carreiras profissionais. Dispõem de um rendimento relativamente alto, mas, ainda assim, dispõem-se a atender ao apelo dos trabalhadores rurais. A missão do sindicato ainda tem sentido para eles.

Hoje, porém, é preciso traduzir a importância do sindicato para os trabalhadores rurais numa linguagem dos anos 1980. Em vez de falarmos sobre o direito de nos organizarmos, temos que falar sobre a proteção contra o assédio sexual no campo. Nós temos que falar sobre o direito a uma comida de qualidade — uma comida que seja segura para se comer. Eu posso dizer a vocês que esta nova linguagem está funcionando; os 17 milhões ainda existem. Eles se sensibilizam — não apenas com piquetes e panfletos, mas com a alta tecnologia dos

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boicotes de hoje — um boicote em que são usados computadores, mala direta e técnicas de publicidade que têm revolucionado os negócios e a política nos anos recentes. Nós conseguimos maior sucesso com o boicote nos primeiros onze meses de 1984 do que em 14 anos desde 1970.

A outra tendência que nos dá esperança é o crescimento monumental da influência hispânica no país e o que isso significa em termos de aumento da população, aumento dos índices sociais e econômicos e aumento da nossa influência política.

No sul do rio Sacramento na Califórnia, os hispânicos são agora mais de 25% da população. Esse quadro vai subir para 30% em meados do ano 2000. Existem 1,1 milhão de sobrenomes espanhóis entre os votantes alis-tados na Califórnia; 85% são democratas; e apenas 13% são republicanos.

Em 1975, havia 200 representantes hispânicos eleitos em todos os níveis do governo. Em 1984, existem mais de 400 eleitos: juízes, membros dos conselhos municipais, prefeitos e legisladores.

À luz dessas tendências, é um absurdo acreditar ou sugerir que estamos voltando no tempo — seja como sindicato, seja como povo! Os fazendeiros constantemente tentam culpar o sindicato por seus problemas — atri-buir a nós seus pecados —, pecados pelos quais eles têm somente a si próprios para culpar. Os fazendeiros têm somente a si próprios para culpar quando começam a fazer as colheitas de décadas de prejuízos ambientais que eles deixaram sobre a terra — os pesticidas, os herbicidas, as fumigações do solo, os fertilizantes, a salinização resultante da irrigação — a devastação de anos e irrestrito envenenamento do nosso solo e da nossa água.

Milhares de acres de terra na Califórnia já foram danificados irrevogavelmente pelo abuso desenfreado da natureza. Milhares a mais irão ser perdidos, a não ser que os fazendeiros compreendam que despejar mais ve-nenos em nosso solo não resolverá seus problemas — a curto prazo ou a longo prazo.

Autoridades de saúde em várias cidades do vale San Joaquin já alertaram às crianças pequenas e às mulheres grávidas para não beberem água porque os nitratos dos fertilizantes contaminaram o lençol freático.

Os fazendeiros têm somente a si próprios para culpar pelo aumento da demanda por comida de qualidade dos consumidores — comida que não esteja infectada por tóxicos; comida que não derive de plantas mutantes ou reações químicas que produzem tomates vermelhos e reluzentes — mas que têm sabor de alfafa.

Os fazendeiros estão cometendo o mesmo erro que as montadoras americanas de automóveis cometeram nos anos 1960 e 1970, quando elas se recusaram a produzir carros pequenos e econômicos — e abriram a por-ta para aumentar a competição estrangeira.

Os fazendeiros só têm a si próprios para culpar pelo crescimento dos ataques aos financiamentos públicos que recebem: subsídios para a água, pesquisas tecnológicas e os grandes subsídios por perdas de safra.

Esses privilégios especiais se instauraram antes da decisão da Suprema Corte sobre a questão: uma pessoa, um voto,2 numa época em que os legisladores rurais dominavam o Legislativo e o Congresso. Logo, esses auxílios financeiros começaram a ser questionados, no momento em que o governo precisou procurar por mais receita, e o contribuinte urbano passou a olhar mais de perto os programas rurais — e a quem eles realmente beneficiam.

Os fazendeiros têm somente a si próprios para culpar pela humilhação que eles têm provocado nas sucessivas ondas de imigrantes que, com seu suor e sacrifício, ao longo de 100 anos, fizeram rica essa indústria. Por ge-rações, eles subjugaram raças inteiras de trabalhadores rurais peles-negras.

Esses são os pecados dos fazendeiros, não dos trabalhadores rurais. Nós não envenenamos a terra. Nós não abrimos a porta para a importação de produtos. Nós não cobiçamos bilhões de dólares em ajudas governamen-tais. Nós não exploramos e abusamos das pessoas que trabalham na terra.

Hoje, os fazendeiros são como velhos boxeadores estupidificados que não sabem que o seu auge já passou. Os tempos estão mudando. O ambiente político e econômico mudou. As galinhas estão voltando para seus poleiros no galinheiro3 — e o tempo de acertar as contas com os pecados do passado está se aproximando.

2 A lei One person, one vote (Uma pessoa, um voto), também chamada no malapportionment rule (lei de controle à proporção), determina que cada distrito contenha o mesmo número de pessoas, ou seja, o que importa, em vez do tamanho do distrito, é a população do mesmo (N. do T.).3 No original, “the chickens are coming home to roost” (N. do T.).

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Disseram-me, por esses dias, por que os trabalhadores rurais deveriam estar desanimados e pessimistas: os republicanos controlam o governo do estado e a Casa Branca. Eles dizem que há uma tendência conservadora no país. Contudo, ainda assim, estamos cheios de esperança e coragem. Nós olhamos para o futuro e o futuro é nosso!

A História e a inevitabilidade estão do nosso lado. Os trabalhadores rurais e seus filhos — e os hispânicos e seus filhos — são o futuro na Califórnia, e a corporação dos fazendeiros é o passado!

Estes políticos que se aliaram à corporação dos fazendeiros, contra os trabalhadores rurais e os hispânicos, estão prestes a ter uma grande surpresa. Eles querem fazer suas carreiras na política. Querem se manter no poder por mais 20 ou 30 anos. Contudo, daqui a 20 ou 30 anos — em Modesto, em Salinas, em Fresno, em Bakersfield, no Vale Imperial e em muitas das maiores cidades da Califórnia — essas comunidades serão do-minadas pelos trabalhadores rurais e não pelos fazendeiros, pelos filhos e netos dos trabalhadores rurais e não pelos filhos e netos dos fazendeiros.

Essas tendências são parte das forças da história que não podem ser detidas. Ninguém e nenhuma organiza-ção pode resistir a elas por muito tempo. Elas são inevitáveis. Uma vez iniciadas as mudanças sociais, elas não podem ser revertidas.

Você não pode deseducar as pessoas que aprenderam a ler. Você não pode humilhar as pessoas que têm or-gulho. Você não pode oprimir as pessoas que não têm mais medo.

Nossos oponentes devem entender que não foi apenas um sindicato que construímos. Sindicatos, assim como outras instituições, podem aparecer e desaparecer. Contudo, nós somos mais do que uma instituição. Durante cerca de 20 anos, nosso sindicato foi a vanguarda da causa do povo — e você não pode se livrar de todo um povo; você não pode esmagar a causa de um povo.

Independentemente do que o futuro guarda para o sindicato, independentemente do que o futuro guarda para os trabalhadores rurais, nossas realizações não poderão ser desfeitas. “La Causa” — nossa causa — não precisa ser vivida duas vezes.

A consciência e o orgulho que nós despertamos através do nosso sindicato estão vivos e crescendo no inte-rior de milhares de jovens hispânicos que jamais irão trabalhar numa fazenda!

Assim como aconteceu com outros grupos de imigrantes, há de chegar o dia em que iremos ganhar a re-compensa política e econômica que corresponde ao nosso peso na sociedade. Há de chegar o dia em que os políticos farão as coisas certas pelo nosso povo, considerando as necessidades políticas e não por caridade ou idealismo.

O dia pode não chegar este ano. Pode não chegar durante esta década. Mas chegará, um dia. E quando esse dia chegar, nós veremos a realização da seguinte passagem do Livro de Mateus do Novo Testamento: “que os últimos sejam os primeiros e que os primeiros sejam os últimos”. Nesse dia, nossa nação terá realizado a sua crença — e esta realização enriquecerá todos nós.

Muito obrigado.

Fonte | Disponível em: <www3.niu.edu/~td0raf1/history468/Cesar%20Chavez%201984.htm>. Acesso em: 28 set. 2008.

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1999 | ABAiXo-ASSinAdo dAS orgAnizAçõeS não goVernAmentAiS*

Manifesto de Seattle

nos anos 1990, globalização tornou-se uma palavra corrente. A queda das barreiras alfandegárias e a diminuição do papel do estado na

economia eram apresentadas como o caminho para a prosperidade mundial. porém, esta forma de globalização cedo apresentou problemas: países ricos pregavam a liberalização no exterior e

mantinham práticas protecionistas em casa, conquistando mercados sem oferecer contrapartida proporcional; empresas transnacionais

distribuíam geograficamente as etapas de sua produção para barateá-las, por vezes recorrendo a regimes aviltantes de trabalho no mundo

em desenvolvimento; isso sem falar em questões como degradação ambiental, disputas por patentes (até mesmo de seres vivos)... em

suma, tratava-se da maximização do lucro privado em detrimento dos interesses e aspirações das populações locais.

As manifestações durante a 3ª reunião Ministerial da organização Mundial do Comércio (oMC), em novembro de 1999 em seattle, euA,

representaram um marco no processo de denúncia desse processo.

o presente documento, assinado por mais de 1.400 entidades de todo o mundo e divulgado pela organização americana public Citizen’s World trade Watch, resume algumas das principais reivindicações

contra a oMC e a globalização em geral. entre seus signatários, contam-se anarquistas, ecologistas, socialistas, pacifistas e inúmeros

movimentos e organizações, como o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDeC), o partido Comunista da Austrália, várias

representações do greenpeace, o national Board of Catholic Women (grã-Bretanha), Americans for Democratic Action (ADA/euA), a

Fellowship of reconciliation (For/euA), o partido Verde americano, a International society for gandhian studies (euA) e várias organizações

sindicais — para dar apenas uma ideia da diversidade de um movimento que continua crescendo. (r.F.)

É hora de transformar o comércio. Em novembro de 1999, a Terceira Reunião Ministerial da Organização Mun-dial do Comércio (OMC), em Seattle, desabou de modo espetacular face ao protesto sem precedente de pessoas e governos em todo o mundo. Nós acreditamos que é essencial aproveitar este momento como uma oportunidade para mudar de rumo e desenvolver uma alternativa humana, um sistema de comércio democraticamente contro-lado e sustentável e que beneficie a todos. Este processo implica reverter o poder e a autoridade da OMC.

O acordo do Gatt1 estabelecido no Uruguai (Uruguai Round/Rodada Uruguai) e a instauração da OMC foram proclamados como um meio de fortalecer a criação de riqueza e a prosperidade mundiais e promover o bem-estar de todas as pessoas em todos os Estados-Membros. Na realidade, porém, a OMC tem contribuído para a concentração da riqueza nas mãos de poucos ricos; aumentando a pobreza da maioria dos povos do mundo, especialmente nos países do terceiro mundo; e consolidando padrões insustentáveis de produção e de consumo.

A OMC e a Rodada Uruguai do Gatt têm funcionado principalmente para a invasão de mercados abertos em benefício das corporações transnacionais e em detrimento das economias nacionais e locais, de trabalha-dores, agricultores, povos indígenas, mulheres e outros grupos sociais; da saúde e da segurança, do meio am-biente e da vida animal. Além disso, o sistema da OMC, suas regras e procedimentos são antidemocráticos, sem transparência e não responsáveis e têm funcionado para marginalizar a maioria da população mundial.

Tudo isso tem lugar em um contexto de crescente instabilidade mundial, colapso das economias nacionais, crescente desigualdade entre as, e no interior das nações, aumentando a degradação ambiental e social como o resultado da aceleração do processo de globalização corporativa.

1 General Agreement on Tariffs and Trade (Gatt), organização internacional que antecedeu a OMC (N. do T.).

* No original, The NGO’s sign-on letter.

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Os governos que dominam a OMC, em especial os Estados Unidos, União Europeia, Japão e Canadá, e as empresas transnacionais que têm se beneficiado do sistema da OMC, se recusaram a reconhecer e tratar de tais problemas. Eles ainda querem uma maior liberalização, incluindo a expansão da OMC, promovendo o comércio livre como um objetivo em si mesmo. Na realidade, contudo, o comércio livre é qualquer coisa, menos “livre”.

Chegou a hora de reconhecer a crise do sistema de comércio internacional e de sua principal instituição administradora, a OMC. Precisamos substituir esse velho, injusto e opressivo sistema de troca por um novo sistema comercial, socialmente justo, e por parâmetros sustentáveis de comércio para o século XXI.

Nós precisamos proteger a diversidade cultural, biológica, econômica e social; introduzir políticas progres-sivas para priorizar as economias e o comércio locais; garantir direitos econômicos, culturais, sociais e traba-lhistas reconhecidos internacionalmente; e reivindicar a soberania dos povos e processos de decisão democrá-tica em âmbitos nacional e regional. Para chegar a tanto, precisamos de novas regras baseadas nos princípios de controle democrático dos recursos, sustentabilidade ecológica, equidade, cooperação e prudência.

Em face do exposto, fazemos as seguintes exigências a nossos governos: nenhuma expansão da OMC.Reiteramos a nossa oposição às tentativas de lançar uma nova rodada ou expandir a OMC, trazendo para ela

novas questões, tais como investimento, concorrência, contratos públicos, biotecnologia e acelerada liberaliza-ção tarifária.

tIre AS MãoS, oMC: proteção BáSICA DoS DIreItoS e neCeSSIDADeS SoCIAIS

É inadequado e inaceitável que os direitos sociais e as necessidades básicas sejam condicionados pelas regras da OMC. Assim, acordos da OMC não devem aplicar-se a questões críticas para a saúde humana ou o bem-estar do planeta, tais como alimentos e água, serviços sociais básicos, saúde, segurança e proteção dos animais. A invasão inapropriada de tais áreas por regras comerciais já resultou em campanhas a favor de organismos gene-ticamente modificados, invasão de florestas antigas, proibição do comércio de mercadorias produzidas domes-ticamente e comercialização predatória do tabaco.

ACABAr CoM o GAtS: proteGer SerVIçoS SoCIAIS BáSICoS

Em especial, áreas como saúde, educação, energia e outros serviços humanos básicos não devem estar sujeitos a regras internacionais de livre comércio. No âmbito da OMC, no Acordo Geral sobre Serviços (Gats), o princípio da “liberalização progressiva” e as implicações do investimento estrangeiro nos setores de serviços já causaram graves problemas.

ForA o trIpS: reStAurAr SISteMAS nACIonAIS De proteção De pAtente

Exigimos a revogação do acordo da OMC sobre os direitos de comércio relativos à propriedade intelectual. Não há qualquer base para a reivindicação da inclusão da propriedade intelectual em um acordo comercial. Além disso, o acordo Trips promove o monopólio das corporações transnacionais; impede o acesso a medica-mentos essenciais e outros bens; leva à apropriação privada de conhecimentos e formas de vida; compromete a biodiversidade; e impede os países mais pobres de aumentar os seus níveis de bem-estar social e econômico e de desenvolverem as suas capacidades tecnológicas.

nenHuMA pAtente SoBre A VIDA

Patentear formas de vida deve ser proibido em todos os regimes nacionais e internacionais.

A AlIMentAção é uM DIreIto HuMAno BáSICo

Medidas tomadas para promover e proteger a segurança e a soberania alimentar, para a agricultura de subsis-tência, para a humanização das práticas agrícolas e para a agricultura sustentável devem estar fora do âmbito das regras internacionais de livre comércio. Deve haver uma proibição de subsídios à exportação e a outras formas de dumping de produtos agrícolas, especialmente em países do terceiro mundo. O sistema de comércio

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não deve prejudicar a subsistência dos camponeses, dos pequenos agricultores, dos pescadores artesanais e dos povos indígenas.

não lIBerAlIzAção DoS InVeStIMentoS

O acordo da OMC relativo a investimentos (Trade Related Investment Measures Agreement — Trims) deve ser eliminado. Todos os países e, especialmente, os países do terceiro mundo devem ter o direito de recorrer a opções políticas (como políticas de âmbito local) para aumentar a capacidade dos próprios setores produtivos, especialmente das pequenas e das médias empresas. Obviamente, a revisão do Trims não deve ser usada para ampliar a questão do investimento no âmbito da OMC.

CoMérCIo JuSto: trAtAMento eSpeCIAl e DIFerenCIADo

Direitos especiais e diferenciados para países do terceiro mundo devem ser reconhecidos, ampliados e opera-cionalizados no sistema de comércio mundial. Trata-se de levar em conta a posição fraca dos países do tercei-ro mundo no sistema comercial internacional. Sem reforçar os direitos especiais e diferenciados, não pode haver qualquer possibilidade de países do terceiro mundo se beneficiarem do comércio mundial.

prIorIzAr ACorDoS SoBre oS DIreItoS SoCIAIS e o AMBIente

Medidas tomadas para implementar acordos multilaterais que tratem de meio ambiente, saúde, desenvolvi-mento, direitos humanos, segurança, direitos dos povos indígenas, segurança alimentar, direitos das mulheres, direitos dos trabalhadores e bem-estar animal não podem ser contestadas ou solapadas pela OMC.

DeMoCrAtIzAr A toMADA De DeCISõeS

Os povos devem ter o direito à autodeterminação e o direito de conhecer e decidir sobre compromissos co-merciais internacionais. Entre outras coisas, isso requer que os processos de decisão e de execução nas institui-ções comerciais internacionais sejam democráticos, transparentes e inclusivos. A OMC opera de uma forma secreta, excludente, que desconsidera a maioria dos seus membros países do terceiro mundo e o público. Ela é dominada por uns poucos poderosos governos agindo em nome de suas elites empresariais.

SISteMA De ArBItrAGeM

O sistema de resolução de litígios da OMC é inaceitável. Ele põe em prática um sistema ilegítimo de regras injustas e de procedimentos antidemocráticos. Também usurpa a capacidade de decisão e o papel legislativo das nações soberanas e dos governos locais.

Um sistema de comércio internacional socialmente justo também exigirá mudanças fora do âmbito da OMC. Dados os ataques das corporações multinacionais e dos governos sobre os direitos básicos dos trabalhadores, a reversão dos ganhos das lutas dos trabalhadores, o enfraquecimento da segurança no emprego e o declínio até o fundo do poço dos salários, os direitos dos trabalhadores devem ser reforçados em todo o mundo.

Além disso, o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, e os bancos regionais de desenvolvimen-to devem eliminar 100% das dívidas contraídas pelos países pobres. O emprego da condição de ajustamento estrutural para forçar a liberalização comercial nos países do terceiro mundo e em toda a parte deve ser inter-rompido. Os governos devem negociar, por meio do sistema das Nações Unidas, e com plena participação democrática, um acordo obrigatório para garantir que a conduta empresarial seja socialmente e ambientalmen-te responsável e democraticamente controlada.

ConCluSõeS e ConSequênCIAS

Estamos comprometidos com um sistema de comércio sustentável, socialmente justo e democraticamente res-ponsável. Assim, como um primeiro passo, exigimos que nossos governos implementem as mudanças relacio-nadas neste documento a fim de reverter o poder e a autoridade da OMC e transformar o comércio.

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Comprometemo-nos a mobilizar as pessoas nos nossos países para lutar por estas reivindicações e para desa-fiar as injustas políticas da OMC. Também vamos apoiar outras pessoas e países que façam o mesmo e partici-pem de campanhas de solidariedade internacional.

Nós nos comprometemos a levar o espírito de Seattle a todo o mundo.

Fonte | The WTO History Project, disponível em: <http://depts.washington.edu/wtohist/index.htm>.

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2000 | pArtido Verde doS euA

plataforma política*

o partido Verde, nos dias atuais, é possivelmente a mais importante e a mais estruturada organização de esquerda nos euA. Inspirado pelos

partidos verdes europeus, o Green Party tornou-se o principal porta-voz das denúncias dos abusos contra as minorias e os trabalhadores,

rivalizando, neste papel, com a tradição do partido Comunista, que nunca dispôs de força nos meios de comunicação.

Criado em 1984, o partido Verde defende em sua plataforma bandeiras típicas das lutas da Nova Esquerda: a legalização e a

descriminalização das drogas, o direito à reprodução livre (lema que é forte entre as feministas), o apoio à legalização da união

homossexual, o combate ao assédio sexual, o fim da pena de morte, o tratamento humano e digno aos imigrantes e, como

acusa o nome, políticas e medidas ambientais, como: o controle da utilização de produtos nocivos, o incentivo ao uso da energia

renovável e a defesa cuidadosa do meio ambiente. Ao mesmo tempo, o partido sustenta clássicos pontos das lutas tradicionais de

esquerda: o combate às grandes corporações e aos abusos contra os trabalhadores, a melhoria das condições de ensino e de trabalho,

a luta pela paz e, principalmente, pela justiça social. os princípios acima estão reunidos nos chamados “dez valores-chave verdes”

(green ten key values), os valores básicos do partido Verde, que tem como principal referência a disseminação da chamada democracia

de base (grassroots democracy), ou seja, uma concepção de democracia direta, em que se enfatiza a participação popular

através das chamadas assembleias comunitárias e se reivindica a abolição do Congresso dos estados unidos, expressão de um

sistema político arcaico e aristocrático. (g.n. e C.A.)

Esta plataforma foi adotada pelos delegados dos militantes do Verdes/Partido Verde dos EUA (V/PVEUA) no Congresso Verde anual, reunido em Chicago, de 26 a 28 de maio de 2000. Ela reflete as visões da maioria dos membros do V/PVEUA.

Os funcionários nacionais, porta-vozes e o Comitê Nacional do partido devem agir de forma coeren-te com o quadro político estabelecido por esta plataforma. Ao agir de acordo com a estrutura do “des-centralismo democrático” do V/PVEUA, no qual o controle é de baixo para cima, e não de cima para baixo, esta plataforma não é obrigatória para os afiliados estaduais e locais do Verdes/Partido Verde dos EUA.

Assim, esta plataforma não reflete necessariamente, em todos os aspectos, as visões dos candidatos do Par-tido Verde em qualquer nível, incluindo Ralph Nader e Winona LaDuke, candidatos do Partido Verde à presidência e à vice-presidência em 2000.

O Verdes/Partido Verde dos EUA é a organização original do Partido Verde nos EUA. Ele leva à frente a visão radical dos primeiros Verdes, baseada na democracia política e econômica de base, na não violência, na justiça social e a sustentabilidade ecológica.

Formado como Comitês de Correspondência em 1984, teve seu nome mudado pelo Congresso Verde anu-al, para Comitês Verdes de Correspondência e depois para Verdes/Partido Verde dos EUA em 1991. O V/PVEUA é uma organização de membros individuais que participam de organizações estaduais e locais fi-liadas que apoiam a organização por meio de taxas proporcionais ao que possa pagar cada um.

A política verde é uma abordagem ecológica da política que faz uma ponte entre os problemas sociais e os ecológicos. A ecologia estuda a relação entre os organismos e o seu meio ambiente. A ecologia política junta as instituições e as ideologias humanas em uma perspectiva holística.

* No original, Green Party USA/Plataform of the Greens.

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Nós pensamos que as mesmas instituições e ideias que causam a exploração e a opressão dos seres hu-manos também causam a degradação e destruição do meio ambiente. Elas estão arraigadas em um sistema social hierárquico, explorador e alienado que produz sistematicamente a opressão humana e a destruição ecológica.

Portanto, para os Verdes, as lutas contra o racismo, o sexismo, a exploração de classe, a dominação burocrá-tica, a guerra e outras formas de domínio social e violência são centrais para um movimento a favor de uma sociedade ecologicamente sustentável. Para harmonizar a sociedade com a natureza, devemos harmonizar humanos com humanos.

Os Verdes cultivam os valores tradicionais da esquerda: liberdade, igualdade e solidariedade. Nós queremos criar uma sociedade verdadeiramente democrática sem exploração de classe e dominação social. Mas os Verdes expandem essa noção de sociedade não hierárquica e sem classes que se harmoniza consigo mesma para incluir uma sociedade ecológica que deve harmonizar-se também com a natureza.

Para os movimentos sociais, os Verdes dizem que, para a humanidade progredir no sentido de uma sociedade democrática, devemos resolver a crise ecológica para que as pessoas possam estar por aqui para apreciar a demo-cracia. Para os movimentos ambientais, os Verdes dizem que, para ter uma sociedade ecológica, nós devemos ter uma sociedade democrática para o povo escolher a sustentabilidade ecológica. Para sobreviver, precisamos ter sustentabilidade ecológica. Para escolher a sustentabilidade ecológica, devemos ter o poder da democracia.

Os pontos seguintes da plataforma são os objetivos políticos imediatos que apoiamos para avançarmos em direção a uma democracia ecológica.

uMA CArtA eConôMICA De DIreItoS

Seguro social universal: rendimentos tributáveis básicos para todos, estruturados de acordo com o imposto de renda progressivo, que garantam um rendimento satisfatório para manter um padrão de vida modesto. A partir de US$ 500 por semana (US$ 26.000 por ano) para uma família de quatro pessoas, com ajustes de US$ 62,50 por semana ($3.250 por ano), de acordo com um número maior ou menor de membros da família em 2000. Tais rendimentos serão indexados ao custo de vida.

empregos para todos: garantia do direito ao trabalho. Pleno emprego através de obras públicas de interesse da comunidade e programas de serviço comunitário, com financiamento federal e controle por parte da co-munidade.

Salário mínimo: um salário mínimo que sustente uma família, a partir de US$ 12,50 por hora, indexado ao custo de vida.

Semana de trabalho de 30 horas: jornada de trabalho de 6 horas, sem cortes, para os 80% situados na par-te inferior da escala de pagamentos.

Dividendos sociais: um “segundo contracheque” para trabalhadores permitindo que eles recebam o paga-mento equivalente a 40 horas de trabalho, por uma jornada de 30 horas. O segundo contracheque deverá ser pago pelo governo, através dos impostos progressivos, para que os ganhos da produtividade social sejam divi-didos de forma igualitária.

Seguro de saúde universal: um programa nacional de saúde único que forneça serviços médicos e dentários para todos, financiado pelo governo federal e controlado democraticamente por conselhos lo-cais eleitos.

Creches gratuitas: disponíveis gratuitamente e voluntariamente para todos, segundo o modelo do Head Start,1 com financiamento federal e controle pela comunidade.

1 Programa do Departamento de Saúde do governo dos Estados Unidos que provê serviços de educação, saúde, nutrição para crianças e famílias de baixa renda. Iniciado em 1965, foi consagrado pela Lei Federal Head Start, de 1981 (N. do T.).

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educação pública vitalícia: educação gratuita e de qualidade que vá da pré-escola até a pós-graduação em instituições públicas.

Habitações acessíveis: expandir a assistência para propriedades compradas e alugadas, reforçando a ideia de moradia adequada para todos, habitações públicas e financiamento para construtores sem fins lucrativos, para que todas as pessoas possam obter habitações decentes pagando não mais do que 25% de sua renda. Controle democrático comunitário dos programas com financiamento público.

DeMoCrACIA De BASe

Assembleias comunitárias: representação política de base, fundada numa democracia participativa direta: uma assembleia comunitária em cada bairro, aberta a todos os seus residentes, atuando como um corpo legis-lativo de base, com o seu próprio orçamento para a administração local, e o poder (em sintonia com outras assembleias de cidadãos, cada assembleia com um representante) para fiscalizar, instruir e destituir represen-tantes eleitos para cargos municipais, estaduais e federais.

um congresso unicameral e proporcional para os estados unidos: extinção do Senado dos Estados Unidos, aristocrata e não baseado no voto proporcional. Criar um Congresso dos EUA de uma câmara só, eleito por um sistema misto que combine representantes de distrito eleitos pela preferência do eleitor e repre-sentantes eleitos em proporção ao número de votos de cada partido.

legislação local do meio ambiente: estabelecer o direito de cada estado, região ou município de restringir ou proibir a produção, venda, distribuição, estocagem e o transporte de qualquer substância considerada peri-gosa ou tóxica.

remuneração dos representantes eleitos segundo o salário médio dos trabalhadores: pagar aos representantes eleitos o equivalente à média dos salários dos trabalhadores, para que entendam as necessidades do indivíduo médio e deixem de constituir uma elite de políticos profissionais com interesses de classe dis-tintos.

Autonomia estatal para o Distrito de Columbia: autogoverno integral e representação no Congresso para a população de Washington D.C.

eleIçõeS JuStAS

representação proporcional: corpos legislativos eleitos por representação proporcional em que cada parti-do tenha representação proporcionalmente à sua votação total.

Voto por preferência: cargos públicos singulares eleitos individualmente pela preferência da maioria, de modo que os eleitores hierarquizem seus candidatos por ordem de preferência e os votos sejam distribuídos de acordo com as preferências em eliminatórias instantâneas, até que o vencedor receba a maioria dos votos.

Financiamento público de campanhas públicas: campanha publicamente financiada e períodos iguais e gratuitos nas transmissões de rádio e TV para todos os candidatos que concordarem em não recorrer a dinheiro privado. Tempo igual e gratuito de mídia para os programas dos partidos. Financiamento públi-co dos partidos através de fundos iguais para contribuições partidárias e pequenas doações de até US$ 300 por ano.

livre acesso ao voto: legislação federal requerendo que cada estado permita que qualquer partido novo ou qualquer candidato independente se qualifique para a eleição através de uma petição que não passe de 1/10 de 1% do número total de votos contados no respectivo distrito nas últimas eleições para governador, com teto de assinaturas de, no máximo, 10 mil votos.

eliminar as primárias obrigatórias: permitir aos partidos a nomeação de candidatos por meio de conven-ção realizada por seus membros, em vez de por primárias organizadas pelos estados.

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ConVerSão eColóGICA

produção ecológica: definir metas e um calendário para cessar gradualmente e banir a produção e o lançamento de substâncias químicas sintéticas, e converter toda a produção para materiais biodegradáveis, bioinertes ou confi-nados a ciclos industriais fechados. Empregar investimentos, compras, autorizações e incentivos federais para

gradualmente acabar com a maior parte dos clorados e de outros petroquímicos sintéticos, e introduzir os substitutos naturais e biodegradáveis;

gradualmente eliminar os fertilizantes sintéticos e pesticidas e introduzir a agricultura orgânica;

fechar os incineradores de lixo, acabar em etapas com os aterros sanitários e introduzir a reciclagem integral;

exigir dos industriais que sejam responsáveis por todo o ciclo de vida de seus produtos, recolhendo os pacotes e produtos usados para serem remanufaturados, reutilizados ou reciclados;

legalizar a maconha industrial como uma fonte ecológica de polpa de madeira, papel, tecido, lubrificantes, fi-bras e muitos outros produtos.

energia renovável: investir rendas provenientes das fontes de energia não renovável na criação de sistemas de energia autorreprodutores e renováveis. Usar investimentos federais, compras, autorizações e incentivos para

fechar as usinas nucleares;

gradualmente eliminar os combustíveis fósseis e introduzir fontes de energia limpa e renovável;

reduzir o transporte por automóveis e expandir o transporte pedestre, ciclístico e ferroviário.

Biotecnologia — fim das patentes sobre formas de vida; fim dos organismos transgênicos: banir o patenteamento de formas de vida a fim de preservar a diversidade genética e o acesso de todos à nossa he-rança da natureza, incluindo o acesso de fazendeiros a sementes e filhotes de animais.

Banir os organismos geneticamente modificados que resultem do entrelaçamento de genes de espécies diferen-tes, tanto no que diz respeito à sua introdução no meio ambiente quanto ao seu uso na produção de alimentos.

Defesa e restauração ambientais: financiamento integral para execução de medidas antipoluição e de lim-peza de sítios tóxicos:

preservar os ecossistemas e a biodiversidade ao fortalecer a Lei de Espécies em Extinção e expandir as áreas definidas como refúgios da vida selvagem e áreas de preservação;

banir a extração de lenha de árvores antigas, o desmatamento e a mineração a céu aberto;

acabar com toda exploração comercial de terras públicas por madeireiras, mineradoras e criadores de gado privados;

banir veículos off-road de terras federais;

desinstalar as estradas de exploração de madeira nas florestas nacionais;

restauração de terras públicas degradadas por interesses comerciais;

administrar terras federais prioritariamente para a proteção do ecossistema e sua restauração;

apoiar a restauração ecológica em larga escala com base na biologia de conservação.

Justiça ambiental: fortalecer e pôr em prática leis contra as indústrias tóxicas, os aterros sanitários e a polui-ção do ar em comunidades de minorias étnicas.

uma transição justa: um superfundo para trabalhadores que garanta salários e benefícios integrais para todos os trabalhadores que ficarem desempregados por causa da conversão ecológica, até que encontrem novos em-pregos com salários e benefícios comparáveis.

AGrICulturA SuStentáVel

preços mínimos agrícolas justos: reformar os preços mínimos agrícolas para cobrir os custos da produção e mais uma renda básica para os agricultores familiares e os trabalhadores rurais cooperativados.

Subsidiar a transição para a agricultura orgânica: subsidiar a transição agrícola para a agricultura orgâ-nica enquanto os sistemas naturais de fertilidade do solo e de controle de pragas estão sendo restaurados.

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Apoio aos pequenos fazendeiros: criar fazendas familiares e cooperativas de trabalhadores agrícolas através de um programa familiar estável e de reforma agrária baseada na limitação física dos lotes (em acres) e na exi-gência de residência.

Acabar com o agronegócio corporativo: observação das leis antitruste para acabar com o agronegócio corporativo na área de insumos agrícolas, processamento de alimentos e vendas no atacado e no varejo. A primeira opção é comprar empreendimentos expropriados e passá-los para as cooperativas de trabalhadores rurais e consumidores. Apoiar sistemas de alimentos integrados, autossuficientes e regionais controlados por cooperativas de fazendeiros e consumidores.

DeMoCrACIA eConôMICA

eliminar a personalização das corporações: legislação ou emenda constitucional para acabar com a fic-ção legal de que as corporações têm os mesmos direitos que uma pessoa.

Acabar com a responsabilidade limitada das corporações: fazer com que os acionistas das corporações tenham as mesmas obrigações que os outros proprietários.

AutorIzAção FeDerAl De eMpreSAS IntereStADuAIS

revisão periódica dos alvarás corporativos: um processo público de revisão dos alvarás corporativos para cada empresa com patrimônio de mais de US$ 20 milhões, realizado a cada 20 anos, para avaliar se tal empre-sa está servindo ao interesse público de acordo com critérios sociais, ecológicos e financeiros.

Fortalecer o respeito à lei Antitruste: exigência da dissolução de qualquer firma detentora de mais de 10% do mercado, a menos que ela apresente uma razão muito forte para isso. A cada cinco anos, ela deverá passar por um processo público de controle que avaliará se é do interesse público mantê-la intacta.

produção democrática: estabelecer o direito dos cidadãos de votar pela expansão ou eliminação de produ-tos e indústrias, especialmente em áreas de produção perigosa ou tóxica.

Democracia no ambiente de trabalho: estabelecer o direito dos trabalhadores, em qualquer empresa de mais de 10 empregados, de eleger supervisores e gerentes e determinar como se organizará o trabalho.

Controle dos trabalhadores sobre seu patrimônio — fundos de pensão e planos de opção de ações para empregados: fundos de pensão que representam mais de US$ 5 trilhões em contas de pagamentos fu-turos representam quase um terço do patrimônio financeiro nos Estados Unidos. Onze milhões de trabalha-dores participam dos planos de opção de ações para empregados (Esops — Employee stock-option). Reformar a Lei de Seguridade da Renda de Aposentadoria do Empregado (Erisa), as leis trabalhistas, as determinações fiscais dos planos de opção de ações para empregados a fim de permitir aos trabalhadores o controle democrá-tico dos seus bens financeiros.

transferência democrática das grandes empresas: fim obrigatório das 500 maiores corporações comer-ciais e industriais americanas, que respondem por cerca de 10% dos empregados, 50% dos lucros, 70% das vendas e 90% dos bens manufaturados. Transferência das mesmas para a propriedade democrática dos traba-lhadores, consumidores ou/e pública numa escala humana.

Conversão democrática de pequenas e médias empresas: incentivos financeiros e técnicos e assistência para a conversão voluntária das 22,5 milhões de empresas não agrícolas nos Estados Unidos para empresas cooperativas de trabalhadores ou consumidores, ou para empresas públicas democráticas. É obrigatório que a comunidade e os trabalhadores tenham a primeira opção de compra em termos preferenciais no caso do fecha-mento de fábricas, venda ou fusão de bens significativos ou no caso de revogação de alvarás corporativos.

Bancos democráticos: conversão obrigatória dos 200 maiores bancos, com 80% de todos os bens bancários, em bancos democráticos comunitários de propriedade pública. Incentivos financeiros e técnicos, bem como

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assistência para a conversão voluntária de outros bancos privados em bancos comunitários de propriedade pú-blica ou associações de crédito administradas pelos consumidores.

Democratização da política monetária e do sistema de reserva federal: estabelecer um compulsório equivalente a 100% dos dépósitos à vista a fim de devolver ao governo eleito o controle da política monetária, atualmente exercido pelos bancos privados. Seleção dos funcionários do Federal Reserve (FED)2 por nossos representantes eleitos, e não pelos banqueiros privados. Fortalecer a missão de desenvolvimento regional das agências locais do Federal Reserve ao direcioná-las para investimentos que promovam objetivos políticos fun-damentais, como empreendimentos de salários-intensivos, propriedade comunitária e de trabalhadores, pro-dução ecológica e reconstrução de áreas urbanas centrais.

IMpoStoS proGreSSIVoS e eColóGICoS

Impostos ecológicos: taxar a poluição, a extração de recursos, os produtos perigosos e o uso de nosso capi-tal natural comum (impostos a serem cobrados de acordo com o valor da terra, áreas de madeiramento e pas-tagem, recursos oceânicos e de água doce, petróleo e minerais, espectro eletromagnético e zonas orbitais de satélites).

Imposto de renda simples e progressivo: implementar um imposto de renda sem brechas e graduado, com taxação igual para todos os ganhos, independentemente da fonte. Prover um crédito de imposto de renda para cada dependente a fim de substituir e compensar integralmente as isenções e deduções atuais, que beneficiam o contribuinte médio, como a dedução da hipoteca e a dedução médica.

eliminar os impostos regressivos sobre encargos trabalhistas: custear a seguridade social, seguro de saúde, seguro-desemprego e compensação para trabalhadores utilizando os recursos do imposto de renda pro-gressivo e do imposto sobre grandes fortunas.

Garantia de renda adequada: criar bolsas de renda básica tributáveis dentro da estrutura do imposto de renda progressivo, a fim de implantar um sistema universal de seguridade social que garanta a todos uma ren-da suficiente para manter ao menos um padrão de vida modesto acima da linha da pobreza.

Salário máximo: definir no imposto de renda progressivo uma alíquota de 100% sobre todos os ganhos que ultrapassem o valor de dez salários mínimos.

Acabar com o bem-estar corporativo: dirigir os subsídios para as empresas comunitárias e de trabalhadores, e não para corporações de proprietários absenteístas. Incluir os subsídios em orçamentos públicos anuais em que possam ser examinados, e não escondidos como deduções de impostos em códigos tributários complicados.

IMpoSto proGreSSIVo SoBre A renDA e o pAtrIMônIo DAS CorporAçõeS

Imposto sobre grandes fortunas: decretar um imposto progressivo elevado sobre ganhos líquidos maiores do que 2,5 milhões de dólares (as 5% mais ricas das famílias).Imposto sobre herança: substituir o imposto sobre propriedade atual, cheio de brechas, por um imposto progressivo e sem brechas sobre heranças acima de US$ 1 milhão.

Imposto sobre ações e títulos: encorajar uma mudança dos investimentos especulativos para os produtivos através de um imposto federal de transferência de ações e títulos sobre todas as transações de valores mobiliários.

Imposto sobre a especulação monetária: criação de um imposto internacional uniforme sobre conversões de moeda para desencorajar a especulação. Os ganhos obtidos a partir desse imposto devem ser encaminhados através das agências internacionais para ações de desenvolvimento ecologicamente sustentável e democratica-mente controlado nos países pobres.

2 O equivalente, no Brasil, ao Banco Central (N. do T.).

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Imposto sobre a publicidade: um imposto sobre a publicidade que financie um sistema de meios de comu-nicação descentralizado e plural de transmissões verdadeiramente públicas, um serviço público de transmissão para a mídia comercial, e uma mídia independente, não comercial e sem fins lucrativos.

Democratização da receita Federal: reduzir a dependência estadual e local dos impostos regressivos sobre as vendas e dos impostos sobre a propriedade através de uma democratização da renda federal, que combine a arrecadação centralizada de impostos progressivos e ecológicos com decisões descentralizadas quanto aos gastos.

prestação de contas ecológica e feminista: expandir o Departamento de Estatísticas do Trabalho, tor-nando-o um Departamento das Estatísticas Domésticas, do Trabalho e do Meio Ambiente, com as contas econômicas nacionais revisadas, com estatísticas e indicadores que incluam as reservas existentes e as flutua-ções de recursos naturais, produção doméstica e valores do tempo de trabalho. Os balanços existentes da renda nacional e indicadores como o PIB (Produto Interno Bruto) ignoram as bases ecológicas da economia e o valor da produção familiar. A contabilidade ecológica irá identificar os verdadeiros custos do esgotamen-to de recursos e da poluição, e então cobrar impostos ecológicos para internalizar os custos totais. A conta-bilidade social irá identificar o verdadeiro valor da produção familiar e sua contribuição para a economia e para o bem-estar social. A contabilidade do valor do trabalho irá identificar e publicar os tempos de trabalho atuais e passados para bens e serviços, estabelecendo um tempo de trabalho médio para cada produto. Esses valores de tempo de trabalho servirão como preços de referência para a avaliação da justeza dos preços de mercado.

DIreItoS HuMAnoS e JuStIçA SoCIAl

Fim do racismo institucionalizado, do sexismo e da opressão a pessoas com deficiências: fortalecer os direitos civis, a antidiscriminação e as leis e programas de ação afirmativa, bem como sua execução.

reparações aos afro-americanos: criação de uma comissão nacional sobre as reparações aos afro-ameri-canos.

Direitos dos tratados indígenas: honrar todas as obrigações estabelecidas nos tratados com os nativos ame-ricanos e hispânicos.

Direitos dos imigrantes: apoio aos direitos dos imigrantes à moradia, educação, sistema de saúde, empregos e direitos civis, legais e políticos.

liberdade reprodutiva: as pessoas devem ser livres da interferência governamental em suas escolhas repro-dutivas, incluindo o aborto, que deve ser coberto por todo programa de seguro médico financiado com di-nheiro público.

Valor comparável: criação de legislação para possibilitar que mulheres e minorias possam receber ganhos iguais por trabalhos de valor igual.

Fim da discriminação contra lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros: tornar ilegal a discriminação por orientação sexual na moradia, emprego, benefícios e custódia de crianças.

Casamentos do mesmo sexo: reconhecimento legal do casamento de parceiros do mesmo sexo.

reForMAS DA JuStIçA CrIMInAl e CIVIl

Abolir a pena de morte.

Acabar com a brutalidade policial — A lei Jonny Gammage: requerer investigação federal indepen-dente e o indiciamento de autoridades acusadas de violar os direitos civis ou de causar danos corporais ou a morte de um ser humano.

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Fim da perseguição política e racial pelo sistema Judiciário Criminal: liberdade para todos os presos políticos e prisioneiros vítimas da injustiça racial. Clemência para Leonard Peltier. Novo julgamento para Mumia Abu-Jamal.

Justiça restaurativa: estabelecer um sistema humano de sanções criminais que seja baseado na prevenção, restituição, reabilitação e reconciliação em contraste com a vingança, o trabalho forçado e os lucros para o complexo industrial das prisões. Restaurar financiamento integral para programas que concedam diplomas universitários em prisões estaduais e federais. Empregos e justiça, não mais polícia e prisões.

Apoio legal: expansão do financiamento para a auxílio legal e programas de defensoria pública para que todos possam ter representação legal competente.

luta contra o crime corporativo: melhorar e fazer cumprir as leis contra os crimes corporativos, com penalidades que incluam o encarceramento de executivos e a revogação de alvarás corporativos.

oposição às reformas ilícitas que limitam as ações judiciais de classe e bloqueiam a compensação das vítimas: a ameaça de grandes indenizações às vítimas por júris civis deve ser mantida como um freio importante ao crime corporativo.

liberdades civis: apoio à Carta de Direitos. Nada de concessões quanto às liberdades civis e às normas pro-cessuais, em nome da “segurança nacional”, do “antiterrorismo” ou da “guerra contra as drogas”. Revogar a Lei de Crimes de 1994 e a Lei Antiterrorismo de 1996. Acabar com a espionagem política doméstica feita pela polícia, pelos militares e pelas agências de inteligência.

Fim da “Guerra contra as Drogas”: descriminalizar a posse de drogas. Regulamentar e taxar a distri-buição das drogas. Libertar prisioneiros não violentos da Guerra contra as Drogas. Tratar o vício em dro-gas como um problema de saúde, e não criminal. Assegurar o tratamento, sob demanda, para o vício em drogas.

reForMAS DAS leIS trABAlHIStAS

revogar leis trabalhistas repressivas: revogar a Lei Taft-Hartley, a Lei Landrum-Griffin, a Lei Hatch e as leis estaduais do “direito ao trabalho” que minaram a capacidade dos trabalhadores de se organizarem ao restringir severamente ou tornar ilegais as ferramentas básicas de organização do trabalho: greves, boicotes, piquetes e ação política.

uma Carta de Direitos dos trabalhadores: decretar um conjunto de direitos civis legais compulsórios, independentes de negociações coletivas, que (1) estenderá as garantias da Carta dos Direitos à liberdade de expressão, associação e organização em todos os ambientes de trabalho; (2) estabelecerá os direitos dos traba-lhadores a salários decentes, pensões, informações sobre substâncias químicas usadas, a reportarem sobre vio-lações ambientais e trabalhistas, a recusarem trabalhos perigosos e a participarem na administração de empre-sas; e (3) estabelecerá o direito dos trabalhadores contra a dispensa sem justa causa, busca e apreensão de per-tences por parte dos empregadores no ambiente de trabalho, assédio sexual e pagamento desigual por trabalho de valor comparável.

expandir os Direitos dos trabalhadores relacionados à auto-organização e à disponibilização do tempo livre — revogação das leis trabalhistas repressivas:

Reconhecimento dos sindicatos organizados pelo método de verificação de maioria de inscritos (majority card-check).

Penalidades rápidas e severas para empregadores que infringem as leis trabalhistas.

Fim da substituição de trabalhadores em greve.

Indenização tripla para trabalhadores impedidos de trabalhar pelo lockout dos patrões.

Compensação por desemprego de grevistas e vítimas de lockout.

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Obrigação de constar nos contratos uma cláusula de arbitragem por solicitação dos sindicatos.

Direitos integrais para trabalhadores agrícolas, funcionários públicos e demais trabalhadores sob a Lei dos Pa-drões de Trabalho Justo.

Acabar com a mão de obra escrava na prisão: fim do uso de prisioneiros nos Estados Unidos para a produção de bens e serviços para venda ao público.

Pagamento em dobro para toda hora extra.

Proibição da hora extra obrigatória.

Férias anuais remuneradas de 6 semanas para além dos feriados federais.

1 ano de licença educacional paga por cada período de 7 anos de serviços prestados.

1 ano de licença parental por cada criança nascida sem perda de direitos à aposentadoria.

Direito de trabalhar poucas horas: não discriminação no pagamento e promoção contra trabalhadores que es-colhem trabalhar poucas horas.

reVItAlIzAr A eDuCAção púBlICA

equalizar o orçamento da educação com a democratização da receita Federal: financiamento federal de toda a educação pública (no lugar do financiamento por meio de impostos regressivos locais sobre proprieda-de) para que toda escola tenha os recursos de que necessita para prover uma educação de alta qualidade para toda criança. Usar uma fórmula simples baseada na população estudantil com ajustes baseados na necessidade de cola-borar na melhoria da qualidade escolar e do desempenho estudantil em comunidades carentes.

Administração descentralizada: ultrapassar a administração centralizada e sufocante com planejamento, políticas e gerenciamento locais, com a participação de pais e professores com tempo livre. Manter uma equi-pe central de apoio para as escolas com administração descentralizada.

redução do tamanho das turmas: legislação e financiamento federais para reduzir a proporção entre alu-nos e professor para 15 para 1 em todas as escolas públicas.

programas de pré-escola: legislação e financiamento federais para escolas públicas a fim de tornar disponí-veis programas análogos ao Head Start para crianças que ainda não ingressaram no jardim de infância a partir dos três anos de idade.

programas para Depois da escola: legislação e financiamento federais para tornar disponíveis programas recreativos e educativos, depois do horário escolar, para todas as crianças em idade escolar.

Saúde infantil: clínicas em todas as escolas para avaliar olhos, dentes e a saúde em geral em todas as séries. Alimentação saudável no café da manhã, no almoço e nos programas de depois do horário escolar. Informação sobre controle de natalidade a partir do segundo segmento do Ensino Fundamental e do Ensino Médio.

Melhora do treinamento e do pagamento dos professores: melhorar a qualidade dos professores com o apoio de treinamento ao longo de toda a sua carreira. Estágio no ambiente de trabalho para os professores em treinamento. Escalas de pagamento aos professores comparáveis às de outros profissionais de educação e res-ponsabilidade semelhantes.

equipes de ensino multiculturais: fortalecimento de programas de ação afirmativa para recrutar e apoiar mi-norias étnicas para que ingressem no magistério em qualquer nível: professor, ajudante, assistente e estagiário.

educação superior sem mensalidades: legislação e financiamento federais para uma educação gratuita nas universidades públicas e escolas técnicas para quem quiser cursá-las.

oposição às privatizações das escolas públicas: nós somos contra qualquer esquema que busque lucros privados às custas das escolas públicas e seus alunos.

não aos subsídios para escolas: nada de subsídios escolares destinados a instituições privadas nos orçamen-tos públicos.

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não às escolas com fins lucrativos ou religiosas sob regime de contrato (charter)3: acabar com o desper-dício de fundos públicos para corporações com fins lucrativos ou organizações religiosas no controle de escolas sob contrato (charter) com administrações não controladas, professores sem certificados e corpos discentes segregados.

não à comercialização: parar de usar os alunos como um mercado cativo para a publicidade de interesses comerciais por meio de franquias que minam o financiamento e a prestação de contas democráticos.

não aos testes de alto desempenho: acabar com a dominação do currículo por corporações que fazem ou realizam cursos preparatórios para testes comerciais padronizados. Parar de vincular a remuneração de admi-nistradores e professores, bem como a formatura ou não dos alunos, ao desempenho em tais testes. Parar de reduzir a educação a questões de múltipla escolha. Reatribuir aos professores o controle das avaliações contí-nuas e autênticas na sala de aula.

Currículo para uma democracia participativa multicultural: nós apoiamos um currículo democrático na escola pública que favoreça a curiosidade, o pensamento crítico e a liberdade de expressão; que promova explicitamente valores democráticos e igualitários, antissexistas e multiculturais; que substitua os livros e ma-teriais curriculares eurocêntricos por outros multiculturais; que não divida as crianças em carreiras acadêmicas e não acadêmicas; e que seja academicamente rigoroso com altas expectativas em relação a todas as crianças.

Apoio à educação bilíngue: crianças que pertençam a minorias linguísticas com proficiência limitada do inglês devem ter programas de instrução construídos nas suas línguas e culturas nativas, enquanto adquirem proficiência na língua inglesa.

MíDIA lIVre, DIVerSIFICADA e SeM CenSurA

Infodiversidade: um povo desinformado não é livre. Criar um sistema de mídia vivo, democrático e diversi-ficado que não seja ligado aos objetivos corporativos de lucro e possa apresentar um amplo leque de assuntos e ideias na sua complexidade plena, sem a intrusão da censura governamental ou do poder corporativo privado.

Apoio à mídia sem fins lucrativos e não comercial: um sistema democrático e descentralizado de finan-ciamento público de diversos meios de comunicação sem fins lucrativos e não comerciais que incluam a trans-missão por rádio e TV, impressos, filmes, sítios da internet e outras produções culturais. Financiamento para superar o apoio hoje existente à mídia com fins lucrativos, incluindo menores taxas de correio e deduções de impostos para doadores. Garantir o acesso gratuito e universal à internet.

transmissão pública verdadeira: financiamento público completo para a transmissão autenticamente pú-blica de rádio e televisão, sem comerciais ou recursos de corporações ou fundações privadas. Apoio a um sis-tema plural e descentralizado de redes múltiplas nacionais e estações locais, todas controladas independente-mente por comitês eleitos pelos seus respectivos espectadores/ouvintes e por seus próprios funcionários.

regulamentar o espectro eletromagnético em nome do interesse público: reafirmar o direito do público como proprietário do espectro eletromagnético, a fim de regulamentar sua utilização em prol do interesse público. Reapropriação de 6 horas diárias do horário nobre de cada estação para a transmissão de programas de verdadeiro interesse público: programação sem comerciais para crianças e noticiários e progra-mas de interesse público. O financiamento desse tempo liberado será feito por meio da cobrança de aluguel da faixa de transmissão utilizada por cada canal ou estação comercial, e também por um imposto sobre a venda das estações comerciais e sobre a publicidade. Esse tempo de transmissão sem comerciais estará sob o controle de artistas e educadores, no caso dos programas infantis, e de jornalistas, no caso dos noticiários e

3 Charter schools são escolas criadas pela iniciativa privada, mas financiadas por verbas públicas em troca de um resultado específico — como um desempenho melhor dos alunos em relação às escolas públicas convencionais. A licença, ou charter, é concedida por um período de tem-po limitado e só é renovada se o resultado esperado for obtido. Trata-se, portanto, de um meio-termo entre uma escola privada e uma pú-blica (N. do T.).

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programas de interesse geral. Restauração da Doutrina da Equanimidade. Horário gratuito para todos os candidatos a cargos públicos. Proibição de anúncios políticos pagos e obrigatoriedade de que haja o mesmo tempo de propaganda gratuita para os oponentes. Redistribuição substancial das faixas de transmissão para estações comerciais públicas, sem fins lucrativos e locais, incluindo estações de baixa potência. Aumentar a representação de acionistas na Comissão Federal de Comunicações, bem como sua obrigação de prestar con-tas ao público.

Ações antitrustes para acabar com os conglomerados da mídia: reformar a legislação antitruste para exigir o fim dos gigantes corporativos, porque sua concentração de poder ameaça a democracia, e não só o estabelecimento de preços competitivos, especialmente com respeito à concentração de mídia por meio da qual alguns conglomerados controlam o acesso do público à informação. Obrigar a existência de firmas dife-rentes e independentes para todas as estações, redes e produtoras de TV, estações de rádio, jornais, revistas, editoras, produtoras de cinema, gravadoras, provedores de internet, sistemas de TV a cabo, parques de diver-são, lojas de varejo e assim por diante. Revogação da Lei de Telecomunicações de 1996, que é a favor dos conglomerados. Subsidiar múltiplos jornais e revistas para que expressem uma opinião diversificada em todas as comunidades.

SolIDArIeDADe InternACIonAl

Construir um acordo verde global: construir a paz e a segurança mundiais através de um acordo verde global. Primeiro, os Estados Unidos devem financiar o acesso universal de cada ser humano na Terra à educa-ção primária, alimentação adequada, água potável e saneamento, seguro de saúde preventivo e serviço de planejamento familiar. De acordo com o Relatório de Desenvolvimento das Nações Unidas de 1999, seriam necessários apenas 40 bilhões de dólares adicionais para custear as necessidades humanas básicas em nível global, uma soma que representa apenas 13% do orçamento militar norte-americano do ano 2000. Segundo, os Estados Unidos, que agora respondem sozinhos por metade das despesas militares mundiais, devem desmilitarizar sua economia e reinvestir o Dividendo da Paz, ou seja, o que foi economizado com a desmilitarização, para finan-ciar e dar assistência técnica a uma conversão ecológica da civilização humana para sistemas sustentáveis de produção.

Conversão de paz: corte unilateral de 75% dos gastos militares americanos em dois anos para estabelecer uma postura militar não intervencionista, não ofensiva e estritamente defensiva, economizando cerca de 250 bilhões de dólares por ano.

Dividendo da paz: dedicar o Dividendo da Paz de 250 bilhões por ano ao acordo verde global, à conversão ecológica, à Carta Econômica de Direitos e à provisão de salários integrais e benefícios para todos os trabalha-dores e soldados deslocados pela desmilitarização, até que eles encontrem novos empregos com salários e be-nefícios comparáveis.

Desarmamento nuclear, biológico e químico unilateral: essas armas de destruição em massa não são necessárias para forças armadas não ofensivas. Os Estados Unidos devem dar o exemplo e exigir que outras nações sigam nossa liderança antes que a proliferação de armas em outros países do mundo levem à destruição em massa.

Segurança cooperativa: busca de uma estratégia de “segurança cooperativa” que proponha reduções mútu-as de armas, a eliminação progressiva da capacidade de ataques para além das próprias fronteiras e cortes futu-ros nos gastos militares. O objetivo é fazer uma desmilitarização progressiva no sentido de obter uma defesa não ofensiva do território nacional dos Estados Unidos, usando um sistema de guarda costeira, guarda de fronteira, guarda nacional e defesa aérea leve, que custaria cerca de US$ 3 bilhões, ou menos, ou seja, 1% do atual gasto militar americano.

Democratização das nações unidas: a segurança cooperativa não pode funcionar se as Nações Unidas continuarem a atuar como um fantoche dos Estados Unidos. Apoio às reformas para democratizar a ONU,

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como uma maior proporcionalidade na, e poder à, Assembleia Geral, um Conselho de Segurança eleito e a eliminação do veto das grandes potências no Conselho se Segurança.

uma política externa pró-democracia: nós propomos uma mudança fundamental na política externa norte-americana, passando do apoio a regimes repressivos em nome do interesse global das corporações para o apoio aos movimentos populares de trabalhadores, sociais e ambientais do povo pela democracia.

Apoio a ações de paz internacionais e multilaterais para acabar com a agressão e o genocídio.

Fim da intervenção unilateral dos Estados Unidos em assuntos internos de outros países.

Fechamento de todas as bases militares americanas em outros países.

Fim da Otan e de todas as alianças militares agressivas.

Fim da exportação de armas norte-americanas.

Abolição da CIA, da NSA, da Escola Militar das Américas e de todas as agências americanas de guerras secretas.

Fim dos bloqueios militares a Cuba, Iraque e Iugoslávia.

Fim do apoio militar americano às guerras de contrainsurgência na Colômbia e no México.

Liberdade para Lori Berenson e para todos os presos políticos.

Exigência de um referendo nacional para a declaração de guerra.

Fim da exploração financeira global: cancelar as dívidas dos países pobres com os bancos globais. Fim da exploração dos países pobres pelas políticas de “ajuste estrutural” do FMI. Abolição do FMI e do Banco Mun-dial e sua substituição por uma instituição financeira internacional democrática que equilibre as contas inter-nacionais e financie a curto prazo déficits correntes.

Comércio justo: retirada da Organização Mundial de Comércio, da Nafta e de todos os outros acordos co-merciais liderados por corporações que estão deteriorando as condições globais de trabalho e o meio ambien-te. Estabelecer um sistema tarifário internacionalista que equalize o comércio considerando diferenças entre os países em salários, benefícios sociais, condições ambientais e direitos políticos. O montante assim obtido iria para um fundo democrático internacional para o desenvolvimento democrático e a produção ecológica em países pobres, a fim de melhorar as condições sociais e ambientais até um alto padrão comum a todos.

Fonte | Disponível em: <www.greenparty.org>.

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pArte 2 | nueStrA AméricA

América Latina — modernidades alternativas

Norberto Ferreras e Mariana Bruce*

Até o observador mais desavisado não tem dúvida de que a América Latina é um caleidoscópio multicolor formado por diferentes etnias, povos, nações, culturas e tradições. Muitas delas são consequência da intersec-ção, no tempo e no espaço, de inúmeras variáveis, produzindo uma formação única e especial, conferindo um tom específico a cada período. Por ser um caleidoscópio, a América Latina é também um grande enigma que muitos tentam — ou tentaram — decifrar, nem sempre com resultados satisfatórios.

Começando pela própria ocupação do continente americano pelo homem, uma série de questões apresenta-se ao pesquisador. Algumas ainda sem uma resposta definitiva, como por exemplo: Quantas vias de povoa-mento existiram? Uma única? Duas? Ou mais? E não esqueçamos algumas teorias que, apesar de hoje em desuso, sustentavam a origem americana da humanidade, ou que existira um desenvolvimento autônomo do homem nas Américas. Mas, partindo das teorias atualmente mais aceitas, devemos considerar que tanto a exis-tência de diversos pontos de ingresso no continente, como uma única entrada para vários grupos, nos leva a conclusão que temos um ponto de partida multiforme e diferenciado. Isto nos permite refletir sobre as tradi-ções, origens étnicas, instituições e crenças trazidas por esses primeiros habitantes.

A partir de então, o processo de ocupação do território e a consequente adaptação do homem americano a cada contexto, o desenvolvimento dos grupos e as relações estabelecidas entre eles, nos permitem pensar na enorme diversidade presente nas Américas. Com a chegada dos povos europeus, esse panorama passará por um duplo processo: por um lado, será ampliada a diversidade de povos em contato entre si; por outro, os conquis-tadores tentarão padronizar as culturas e nações americanas por meio da imposição da religião católica e das suas instituições e normas de vida. Cada um desses grupos de invasores possuía características particulares, que fo-ram impostas aos indígenas das regiões a que chegaram.

Esta lembrança do passado colonial americano e da existência de povos originários contribui para pensar que a tentativa de imposição do projeto da modernidade nas Américas não pode ser visto senão como a cons-trução de uma modernidade alternativa. Ou seja, foi necessário atender às particularidades locais ou regionais para que vingasse. Do Canadá ao Chile — os pontos geográficos mais extremos do continente —, o projeto da modernidade teve que se adaptar às condições dos povos originários ou às suas características próprias, ad-vindas do processo de colonização ou de migração da região. Poderíamos dizer que, na América Latina, há tantas modernidades como países, e que cada um deles responde a um processo particular de instauração e de consolidação do processo de modernização.

Pensemos especificamente nos dois países anteriormente mencionados: Canadá e Chile. O primeiro conse-guiu firmar-se como território autônomo no momento em que se equilibrou a balança entre os franceses ca-tólicos, na região da primeira colonização, e os ingleses protestantes, que chegaram posteriormente, e que ocuparam o restante do território atual. Ambos os povos carregavam tradições políticas e jurídicas diferentes e precisaram chegar a acordos com as etnias originárias que lá habitavam.

Já o Chile foi um dos primeiros países da América Hispânica a consolidar um Estado democrático com um bem-sucedido modelo de inserção econômica no mercado mundial. Mas para conseguir essa façanha, os colonizadores entenderam ser necessário exterminar parte da população originária e inventar um território para além da fronteira étnica do rio Bio-Bio e das dificuldades geográficas representadas pelo norte chico. Ou seja, o Chile se fez segundo as normas e as expectativas dos países com os quais teve contato diplomático e comercial.

* Norberto Ferreras é professor adjunto do Departamento de História e do Núcleo de Estudos Contemporâneos (NEC), da Universidade Federal Fluminense (UFF). Mariana Bruce é mestranda no Programa de Pós-Graduação em História da UFF e participa do NEC. Os au-tores agradecem a colaboração do professor Luiz Alberto Grijó, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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Assim, de que outra forma esses dois países podem existir hoje senão reinventando a modernidade europeia? Se nenhum deles contestou as bases dessa modernidade, também não podemos falar que repetiram fielmente as premissas dos pensadores liberais dos séculos XVIII e XIX ou que são o resultado da aplicação dos preceitos estabelecidos na Europa.

Pode-se dizer que, de certo modo, o objetivo das elites americanas era o de construir países europeus, ou pelo menos parecer suficientemente com eles para que as portas do comércio internacional se abrissem. Do-mingo Faustino Sarmiento, antes de ser presidente da Argentina e um dos fundadores das ciências sociais no continente, quando ainda era um escritor provinciano desconhecido, dizia na sua obra-prima, o Facundo:

Com os paradoxos do Contrato Social sublevou-se a França. Buenos Aires fez o mesmo; Montes-

quieu distinguiu três poderes, e prontamente nós tivemos três poderes; Benjamin Constant e Ben-

tham anulavam o executivo, que, nulo de nascimento, foi estabelecido aqui; Say e Smith predica-

vam o comércio livre, o comércio livre se repetiu. Buenos Aires confessava e acreditava no que o

mundo sábio de Europa acreditava e confessava...1

Sarmiento questionava os independentistas e a geração seguinte por não terem sido suficientemente euro-peus, por anteporem a nacionalidade (aqui, sinônimo de barbárie) à europeidade (a civilização). De qualquer forma, Sarmiento viveu o bastante, e teve coragem suficiente para admitir o seu erro de juventude. Seus es-critos da maturidade questionaram o resultado da abertura comercial e da imitação acrítica do modelo euro-peu, que ele próprio havia promovido quando fora presidente da Argentina. Sarmiento compreendeu que não existia um projeto da modernidade pronto para ser aplicado em qualquer circunstância, mas sim um que pre-cisava de adaptações à realidade dos países da América Latina.

É por isso que um livro como o Facundo, ou um pensador como Sarmiento, não estão presentes nesta seleção de escritos sobre as modernidades em Nuestra America. Na realidade, os textos escolhidos sobre a América La-tina tratam menos dos projetos que vingaram ou que melhor se adaptaram às condições existentes, e mais daqueles que ficaram pela metade do caminho, ou dos que jamais conseguiram superar o estatuto de utopia. Gostaríamos de pensar que estamos lidando com um trabalho feito à moda de E. P. Thompson, ou seja, res-gatando os inúmeros projetos e experiências dos homens e mulheres da América Latina “dos imensos ares de condescendência da posteridade”.2

No Brasil, foi somente no começo do século XX, com Alberto Torres, que se começou a questionar con-sistentemente o projeto liberal com uma proposta alternativa. Em seus estudos, a busca por uma resposta bra-sileira aos problemas da modernidade liberal levou-o a acentuar a presença do Estado na formação da nação. Alberto Torres foi apontado como um dos precursores do pensamento autoritário no Brasil, e suas ideias apro-priadas posteriormente, entre outros, por Oliveira Vianna e por pensadores do movimento integralista.

Se refletirmos sobre a forma como o nosso presente condiciona a escolha dos temas de estudo no interior do mundo acadêmico, a maneira pela qual os militantes políticos selecionam os mártires, heróis e processos políticos que devem ser celebrados e lembrados, ou como os funcionários do Estado, em qualquer uma das suas instâncias, determinam os pró-homens e os próceres a serem comemorados, compreenderemos um pouco os desafios da seleção que aqui empreendemos.

Além das escolhas realizadas, há um grande número de ideias, tentativas, experiências e projetos que não foram apresentados. Como dar conta de realidades tão diversas e multiformes?

Quem se interessaria em recuperar os socialistas utópicos? Quem se aventuraria a resgatar o projeto de elimi-nação da propriedade privada? Por que lembrar de camponeses que lutaram por uma fé ou religião que enten-diam ser a verdadeira? A rigor, poderiam ter ficado de fora desta seleção por não serem úteis para a militância ou não atenderem aos objetivos do Estado; mas isso não torna suas atitudes, expectativas e projetos menos no-

1 Sarmiento, 1999:149. 2 Thompson, 1987:13.

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bres do que as tentativas revolucionárias de grupos ou organizações que se consideravam portadores dos verda-deiros valores da revolução, ou de um líder que só a contragosto assinou a abolição da escravidão, ou mesmo de um grupo que é excepcional unicamente porque pensou nos aspectos simbólicos do seu cotidiano.

De fato, todas as experiências são igualmente válidas e dignas de estudo. O que pode ser válido para deter-minados setores da academia pode não o ser para outros, igualmente preocupados em resgatar o passado, sem mencionar o fato de que alguns temas são permanentemente revisitados em função da subjetividade do pes-quisador, que tanto pode ser um militante como estar atento à necessidade do Estado de autocelebrar-se cicli-camente.

Grande parte da história escrita pelos organismos dos Estados tem por objetivo celebrar seus elementos for-mativos ou os indivíduos e fatos que reforçam o grupo que, em um dado momento, está ocupando o poder. Por exemplo, quem poderia ser o herói republicano do Brasil? Algum membro da cabanagem, um farroupilha, uma das lideranças da Confederação do Equador, ou alguém que protestou contra o Estado sem particularizar uma determinada região do país? Entre Neto e Frei Caneca, não era melhor escolher uma figura como Tira-dentes, que se revelou um indivíduo das colônias contra a metrópole, sem apresentar uma reivindicação neces-sariamente regional?3 Mas ao escolher Tiradentes, uma série de outros heróis e mártires da mesma Inconfidên-cia tornaram-se desconhecidos do grande público, o que resumiu em uma só pessoa todo o movimento, sub-traindo seu conteúdo social.

Com acepção oposta, grande parte da história escrita no interior dos movimentos sociais, ou pelos intelec-tuais a eles vinculados, segue na contramão da história oficial. Isto significa que repropõem como heróis os antes vilões da história do Estado, ou conferem um novo sentido às ações dos heróis oficiais. Um exemplo do primeiro tipo pode ser Zumbi e o Quilombo dos Palmares, e do segundo caso, o próprio Tiradentes. Se Zum-bi (lembremos que o Quilombo dos Palmares começou em 1630 e foi destruído em 1695 e, como todo qui-lombo, mantinha relações comerciais ou políticas com a sociedade colonial) é considerado um herói popular, nele poderão se espelhar todos os atuais representantes da luta por esse mesmo povo. Tiradentes lutou pela independência do Brasil (República? Monarquia? Tanto fazia) e para os movimentos sociais que lutam por uma nova independência, Tiradentes pode permanecer no panteão da nova sociedade. O objetivo, consciente ou não, não é o de tentar compreender ou explicar o passado, mas sim conseguir dignificar suas lutas por meio da figura do herói: demonstrar aos militantes que há uma causa justa, que a mesma transcende o tempo, e ain-da encorajá-los no momento da luta.

A mesma história, as mesmas personagens. Tentamos não cair nessa armadilha, mas algumas das figuras consideradas relevantes opositoras a um determinado tipo de modernidade também foram escolhidas, deixan-do outros projetos sem espaço nesta seleção. Tentamos não julgar, mas conhecer e compreender melhor o nosso passado e o nosso presente. De fato, a história oficial, a história dos movimentos sociais e a própria his-tória profissional de cada período nos falam sobre o presente daquele que escreve a partir da seleção dos temas, questões abordadas, enfoques do que e como comemorar. Mas, por ser uma publicação voltada para um públi-co amplo, preferimos incluir também os mais conhecidos pensadores e seus projetos para a América.

Consideremos, em particular, a trajetória do autor de um dos textos selecionados: Simón Bolívar. Bolívar foi elevado à categoria de herói muito antes do atual presidente da Venezuela, Hugo Chávez, o fazer. Já em fins do século XIX, José Martí, por exemplo, em sua leitura da América Latina, alçou Bolívar a esta posição. Mas a transnacionalidade bolivariana não pareceu a todos os países por ele libertados como uma dádiva divina. Para algumas regiões, como atualmente a Colômbia e o Equador, a presença de Bolívar representou uma in-gerência nos seus assuntos internos. Para o Peru foi um exército invasor, assim como a presença anterior de outro libertador da América, José de San Martín. O único país que assume no nome o tributo ao seu libertador — a Bolívia —, preferia contar com o exército da longínqua Venezuela aos mais próximos — Peru ou Rio da Prata —, seus opressores regionais.

3 Para o processo de formação dos vultos e das comemorações republicanas, ver Oliveira (1989).

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Na realidade, a leitura que fazemos de Simón Bolívar é tributária da posterior imposição do Estado-nação. O fato de ter ultrapassado as fronteiras do seu país e lutado em terras estrangeiras foi visto como um símbolo de desprendimento, e não como a imposição de um projeto hegemônico a outras regiões. Se acompanharmos a trajetória de Bolívar veremos que foi uma das lideranças mais pragmáticas do período independentista, e a que melhor se adaptou às novas demandas da sociedade e da luta política e militar que estava sendo travada. Várias vezes mudou de política, embora sempre se mantendo fiel ao objetivo final: a conquista da independên-cia. Inicialmente próximo do anglófilo Francisco de Miranda, lutou contra os llaneros4 para, depois, incorporá-los ao seu exército; aboliu a escravatura só quando foi imprescindível, demorando a honrar o compromisso assumido com os haitianos que lhe deram asilo e financiaram parte das suas campanhas. Não esqueçamos que as lutas pela independência travadas no Cone Sul foram guerras civis e entre regiões do antigo Império que tentavam impor a supremacia umas sobre as outras.

O único território que a Espanha tentou reconquistar foi a Venezuela, e isso só em 1814. No restante dos casos as lutas foram travadas entre americanos e espanhóis americanizados, que optavam por defender a causa independentista ou colonial de acordo com seus interesses econômicos, familiares, sociais ou políticos. Por outro lado, os americanos nativos e os negros lutaram ao lado de quem lhes parecia mais conveniente. Muitas vezes os americanos nativos preferiram lutar por um rei distante mas que lhes garantia certos direitos, do que a favor dos americanos, seus exploradores no dia a dia. E os escravos optaram pela promessa de abolição feita pela Coroa e não pelos seus senhores americanos.

Vejamos alguns exemplos do que poderia ter sido incluído, mas ficou de fora. No mesmo momento em que a América Latina lutava para libertar-se da Espanha, começaram as lutas entre projetos divergentes sobre como organizar o futuro. As propostas foram as mais variadas. Em Buenos Aires, por exemplo, ocorreram consecu-tivamente dois embates. O primeiro se deu entre conservadores e jacobinos, e a vitória dos primeiros gerou um importante debate: como garantir a viabilidade da autonomia política em um território sem riquezas? A pro-posta do primeiro presidente da Argentina, Bernardino Rivadavia — conhecido como doutor Chocolate por ser descendente de africanos —, foi a de impor o liberalismo e a inserção no mercado mundial, no caso, o comércio com a Inglaterra, como se isso fosse possível. Nada de novo se comparado com os objetivos do resto dos novos países independentes. Rivadavia pretendia criar uma reserva de mão de obra disciplinando os gaú-chos e incorporando imigrantes, formar um mercado de terras e um mercado de capitais por meio de um empréstimo que garantiria a criação de bancos. Aqui aparece a peça-chave do modelo rivadaviano: como a garantia do empréstimo eram as terras públicas, e estas não podiam ser vendidas, passou então a arrendá-las. Porém, não era um arrendamento comum, o que ele propôs e aprovou foi a enfiteuse.5 Para garantir que fosse o Estado, e não um senhor que pudesse arrendar as terras, resgatou essa instituição romana e medieval. O aforamento proposto inibia a acumulação de terras e a consequente criação de uma classe latifundiária. Sem contar que, como o Estado continuava dono das terras, podia recuperá-las no caso de existir algum tipo de concentração excessiva ou ameaça à autoridade central.6

Bem, o projeto de Rivadavia não funcionou, porque, apesar de suas disposições, os latifundiários acumula-ram mais terras em arrendamento do que o necessário. Dessa forma, não abriram espaço para os imigrantes e gaúchos, que não tinham como reivindicar terras, nem como pagar os aforamentos e, portanto, não tinham cidadania plena. Os empréstimos requeridos não chegaram, os bancos nunca saíram do papel e todo o sistema começou a ruir. Rivadavia partiu para o exílio, os latifundiários e os caudilhos do interior impuseram um novo chefe e a experiência tornou-se um mito para os jovens das gerações posteriores. Segundo esses jovens, o problema estava na massa ignara e nos caudilhos do interior que pouco entendiam de mercado. Quarenta

4 Vaqueiros das planícies próximas do rio Orinoco (Venezuela).5 A enfiteuse é um conjunto de regras do direito civil e consiste na permissão dada ao proprietário de entregar a outrem todos os direitos sobre determinada coisa, de tal forma que quem recebeu (o enfiteuta) passa a possuir seu domínio mediante pagamento de uma pensão ou foro ao senhorio. Assim, o enfiteuta tem sobre a propriedade alheia o direito de posse e uso, podendo inclusive alienar ou transmiti-la por herança, apesar da irrevogável obrigação de pagar a pensão ao senhorio.6 Silva e Secreto, 1999.

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anos depois, a geração seguinte de liberais, ao chegar ao poder, imporia o seu sistema sem tanta heterodoxia. A terra não mais estaria ou nas mãos do Estado, ou de estados paralelos, ou dos indígenas que mantinham a propriedade comunitária. A terra tinha de estar nas mãos dos grandes proprietários. Mas quem hoje em dia poderia se interessar por um projeto desse tipo? Pensando em uma certa empatia entre pesquisador e tema pesquisado, quem seria o herói desse pesquisador? Talvez por isso sempre tenhamos um especialista em histó-ria econômica estudando o processo.

E se pensarmos nos movimentos que decidiram mudar o mundo não pela ação direta, e sim por meio do comportamento? Não seria possível reconhecermos movimentos contemporâneos que utilizam essa prática? Sim. Mas que movimento quer assumir a marca de “utópico”? Nem os grupos marxistas e nem os anarquistas contemporâneos aceitam essa denominação, embora reivindiquem o direito à utopia. Na história do Brasil e na história da América Latina há uma grande quantidade desses movimentos protagonizados por homens e mulheres que aceitaram o desafio de serem os artífices da sua própria sociedade, embora no contexto de uma sociedade burguesa. O mais importante para eles era o exemplo. No Brasil, só para citar um país, existiram pelo menos três comunidades desse tipo. A mais conhecida e da qual transcrevemos uma canção é a Colônia Cecília, no Paraná, um suposto experimento de “amor livre” e “por ser” anarquista. Mas não foi a única, ou-tras existiram em Santa Catarina7 e no Rio Grande do Sul. Encontramos colônias deste tipo também na Ar-gentina, no Paraguai, no México, no Peru e na Guiana Francesa, com filiações saintsimonianas, fourieristas, owenitas, proudhonianas, terra-livristas e até bonapartistas.8 E poderíamos inclusive mencionar os grupos confessionais ou nacionais que perseguidos fugiram de suas terras de origem e na América tentaram recons-truir os laços comunitários perdidos. Pensemos, por exemplo, nos dias de hoje, nas experiências dos menoni-tas9 que se radicaram no Paraguai e na Argentina.

A quem eles interessam? Podemos considerá-los uma outra experiência de modernidade? Não contesta-ram as suas próprias sociedades, as sociedades receptoras e outros grupos políticos? Não interpelaram o nosso presente ao desafiar os limites da política formal ou institucional? Não dialogaram com os movi-mentos sociais que construíram a utopia da distribuição coletiva da terra e da propriedade? Por que igno-rar estas experiências? Não seriam elas dignas de transformar o nosso presente? Ao recolocarem as suas alternativas, seu fracasso implicaria o fracasso do nosso presente? Ou significam simplesmente uma fuga da realidade?

Alguns projetos alternativos, mesmo os que não eram exclusivamente americanos ou para execução na América, alcançaram transcendência pela trajetória posterior dos seus líderes. Este foi o caso de Giussepe Ga-ribaldi, que chegou ao Sul do Brasil como um mercenário e transformou-se no herói de gaúchos e uruguaios, embora o seu intento final fosse o da unificação da Itália. Ainda vale a pena lembrar a passagem de Buenaven-tura Durruti pela América Latina para arrecadar fundos para a propaganda anarquista e seu empenho na luta para impor outro tipo de modernidade. O interessante neste episódio é que segundo os grandes jornais do período sua turnê foi delituosa, e, segundo a imprensa anarquista, uma turnê expropriadora. O fato de Durruti ter se tornado um das principais lideranças das milícias anarquistas durante a Guerra Civil Espanhola, ao pon-to de uma coluna assumir seu nome depois da sua morte, resgatou seus feitos do esquecimento. Piores sortes tiveram outros anarquistas, como Errico Malatesta, que procurou ouro na Patagônia e só achou fome e frio, ou Severino Di Giovanni e Miguel Angel Rocigna, que para obter fundos para a causa tornaram-se crimino-sos, acabando suas vidas presos e mortos.10 O modelo anarquista foi adaptado com dificuldade à realidade da América Latina. Os que talvez mais conseguiram sucesso foram os irmãos mexicanos Flores Magón. No en-tanto, para alcançar seus objetivos, filiaram-se ao Partido Liberal e criaram a efêmera República da Baixa

7 Uma pesquisa recente revela detalhes desses experimentos sociais: Gallo (2002). 8 Mais dados sobre essas colônias, cf. Abramson (1999). 9 Menno Simons (1496-1561) foi um teólogo e líder reformista frísio que deu origem a uma seita anabatista na Holanda. Esta seita se carac-teriza por não reconhecer as autoridades eclesiásticas nem o Estado. Os menonitas são pacifistas e formam comunidades fechadas, rejeitando a incorporação de tecnologia contemporânea. Chegaram à América do Sul fugindo das ameaças da modernidade nos Estados Unidos.10 Sobre Durruti, Rocigna e Di Giovanni, cf. Bayer (1986).

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Califórnia nos primeiros momentos da Revolução Mexicana. Ou seja, abandonaram a clássica oposição anar-quista à política institucional e ao Estado.

Outros projetos, menos espetaculares, também acabaram ficando de fora desta seleção. Entre eles, aqueles das esquerdas socialistas. O Partido Socialista Argentino, fundado em 1891, fragmentou-se desde suas origens devido ao objetivo-primeiro de favorecer o crescimento das forças produtivas e do capitalismo, para que depois essas riquezas pudessem ser distribuídas entre os trabalhadores em um futuro governo socialista. Para alcançar essa meta estabeleceu-se uma constante política de convencimento do setor sindicalista, que tinha de conviver com a exploração do produto desse mesmo crescimento. Esse frágil equilíbrio nem sempre pôde ser sustenta-do, produzindo fraturas à direita ou à esquerda no partido.

Como dissemos anteriormente, a América Latina tem sido pródiga em projetos que questionam a moderni-dade liberal, mas como ninguém escapa de seu próprio tempo, a maior parte deles foi obrigada a dialogar com a realidade da qual eram produto e resultado. Por mais que teimassem em apresentarem-se como antípodas dos projetos liberais do século XIX, ou do seu grande exemplo de sucesso (os Estados Unidos), todas essas propos-tas caíram na teia da modernidade.

Nossa seleção priorizou os projetos mais conhecidos, ou os que maior impacto tiveram nas suas sociedades ou na história do pensamento latino-americano. Alguém poderia reclamar da ausência de Canudos, do Cal-deirão ou dos cristeros mexicanos.11 Mas em que consistiram exatamente esses projetos: seriam modernidades alternativas ou utopias reativas?12 Mais do que superar o modelo de modernidade existente, esses movimentos buscavam o passado, o resgate da religião no tempo. Porém não podemos esquecer que, na luta pelo que con-sideravam a verdadeira religião, redefiniram os limites do que seria a modernidade aceita pelos camponeses e pelos trabalhadores rurais. Sem o abrigo da religião, outros camponeses manifestaram-se contra os pesos, as medidas e o recrutamento do Estado, como no caso dos quebra-quilos paraibanos.13

Alguns movimentos tentaram superar os limites existentes ampliando a cidadania, os direitos econômicos e incorporando os excluídos da sociedade. Pelo menos dois deles obrigaram os poderosos a tomar uma for-te atitude ante os desafios lançados por suas lideranças ou a esmagar seus integrantes. O primeiro foi a Re-volução Boliviana de 1952, encabeçada por mineiros, camponeses e intelectuais. O movimento tinha por objetivo incorporar os camponeses e trabalhadores à vida política e econômica do país, rompendo o seu isolamento secular. A revolução abriu as portas para uma série de mobilizações e reivindicações que não haviam sido consideradas até aquele momento: reforma agrária, alfabetização, extensão do voto aos analfa-betos (lembremos que uma boa parte dos indígenas não falava espanhol), melhoria das condições de vida dos trabalhadores. A revolução, na realidade um contragolpe de Estado realizado para garantir a posse do presidente eleito, Paz Estenssoro, sustentado por parte do Exército e pelas milícias dos mineiros, teve como organizações principais o Movimento Nacional Revolucionário e a Confederação de Mineiros da Bolívia, liderada pelos trotskistas. Entretanto, se a luta ou a reivindicação pela reforma agrária podia levar o movi-mento à derrota, como ocorreu na Guatemala, na Bolívia não só não despertou a ira dos Estados Unidos, como dele recebeu subsídios. É claro que tempos depois, mais especificamente na década de 1960, esses subsídios permitiram aos interesses estadunidenses condicionar e controlar a Revolução Boliviana, que per-deu o ímpeto e estagnou-se.

11 A Guerra de Canudos (1896-1897) foi o confronto entre o Exército da República e o movimento religioso encabeçado por Antonio Conselheiro no interior do estado da Bahia, no Brasil. O Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, ou Caldeirão dos Jesuítas, era formado por romeiros e imigrantes que criaram uma sociedade autônoma baseada na religião, tendo como líder o paraibano conhecido por beato José Lourenço, no interior do Ceará, durante toda a década de 1920. A Guerra Cristera (1926-1929) foi um levantamento popular contra as medidas anticlericais da Constituição Mexicana de 1917.12 Por “utopia reativa” devemos compreender a tentativa de fuga para um passado idealizado, a busca por uma Idade de Ouro na qual esta-riam as respostas para os problemas do presente, baseada na ideia da reconstrução de uma antiga comunidade em que os homens teriam sido iguais ou na que pelo menos não seriam explorados de forma tão brutal.13 Ao grito de “quebra os quilos!” rebelaram-se inicialmente os camponeses da Paraíba, alastrando-se a revolta para as demais províncias do Nordeste, Minas Gerais e São Paulo. O movimento era contra o sistema métrico decimal, o recrutamento e os impostos e teve lugar em 1874 e 1875.

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Outro caso que merece ser lembrado é o da reforma proposta pelo governo de Jacobo Arbenz na Guatemala. O projeto de Arbenz é hoje visto como uma tímida tentativa de reforma econômica e institucional, com ênfa-se na redistribuição indireta das riquezas por meio do ensino, da saúde pública e, fundamentalmente, da reforma agrária. O único inconveniente do projeto foi que para realizar a reforma agrária era preciso expropriar terras do maior latifundiário da região, a poderosa United Fruit Company (UFCO). Se não fosse pela UFCO, a Ma-mita Yunay, como era chamada pelos seus trabalhadores, encarnação mesma da modernidade, pelo seu esquema produtivo e de distribuição, o projeto poderia ser considerado como uma tentativa de implantação de moder-nidade. O fato é que a Guatemala pagou com sangue a tentativa. O reconhecimento legal do diminuto Partido Guatemalteco del Trabajo (partido dos comunistas guatemaltecos) e a reforma agrária foram os pretextos utili-zados pelos Estados Unidos para, em 1954, apoiar com armas e financiamento, através da CIA, a invasão da Guatemala por exilados, que esmagaram a construção de um modelo econômico e político mais justo.

É interessante lembrarmos que a Guatemala e a Bolívia marcam o principio e o fim, respectivamente, da carreira político-militar de Ernesto Che Guevara, de quem selecionamos um texto. A sua escolha, em detri-mento da de Fidel Castro, a principal liderança da Revolução Cubana, deveu-se ao fato de que Che tornou-se um símbolo maior do internacionalismo humanitário, disseminado nos quatro cantos do mundo.

Neste mesmo contexto da década de 1960, e ao longo dos anos 70 e 80, outro movimento digno de menção ganhou força na América Latina, principalmente no contexto de luta contra as ditaduras militares: a teologia da libertação. São assim conhecidos os setores da Igreja Católica que, revoltados com as condições miseráveis da maioria da população, abandonaram a resignação cristã e assumiram posições de confronto com a hierar-quia e a ordem social vigente. Uma característica notável foi a aproximação à teoria marxista como instrumen-to científico para analisar a sociedade e, em muitos casos, como na Nicarágua sandinista, a adesão à luta arma-da ao lado de outros movimentos, como o comunista.

Projetos, utopias e programas são apresentados nesta coletânea. A intenção foi mapear movimentos, líderes ou pensadores que contribuíram com novos elementos para pensar a modernidade e que, ao forçarem seus próprios limites, muitas vezes se confrontaram com aquilo que entendemos por modernidade.

Comecemos pelos escravos haitianos, que criaram a própria liberdade e reinterpretaram os direitos do homem da Revolução Francesa para neles incluir as colônias e os próprios escravos. Conferiram uma nova dimensão à igualdade, à liberdade e à fraternidade apregoada pela França. Lutaram primeiro pela sua liberdade social, e depois, pela política.

O mesmo podemos dizer dos mexicanos Hidalgo e Zapata, que deixaram a sua condição de indígenas e camponeses para discutir com o resto do país o lugar que corresponderia aos homens da sua condição. Ambos morreram na luta pelos seus ideais, porém deixaram um legado de dignidade e reconhecimento aos direitos dos indígenas.

Apresentamos ainda as ideias de pensadores como José Martí, Mariategui, Pasqualini ou Celso Furtado, pois todos eles estabeleceram novos parâmetros para pensar a realidade. Por meio de uma perspectiva cultural ou econômica, tiveram o mérito de ampliar o horizonte dos seus contemporâneos ajudando-os a compreender novas formas de reivindicar seus direitos, de defender seus interesses ou pensar em uma nova organização para sua própria sociedade.

Escolhemos uma série de homens de ação, como Che Guevara, Augusto Cesár Sandino, Farabundo Martí, Giovanni Rossi e Francisco Julião. Embora não tenham sido grandes pensadores, e em alguns momentos suas ideias apresentam-se mesmo bastante confusas ou difusas, desafiaram as convenções e os limites impostos pela sociedade da sua época e as restrições colocadas por seus próprios camaradas. Todos eles escutaram o chamado à moderação e a integração e todos optaram pela transformação da sociedade no seu conjunto, pagando um alto preço pelas suas atividades. As reflexões destes homens de ação são fundamentais para compreendermos as linhas mestras que nortearam as suas vidas.

Incluímos políticos como Lindolfo Collor e Haya de la Torre; reconhecidos líderes latino-americanos, como Simón Bolívar, Juan Domingo Perón, Lázaro Cárdenas e Salvador Allende; e movimentos e partidos políticos como a Aliança Nacional Libertadora, o Movimento dos Sem Terra, o Exército Zapatista de Libertação Nacio-

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nal, a Frente Sandinista de Libertação Nacional e a Guerrilha do Araguaia. Todos eles deixaram documentos e declarações essenciais para explicar as bases do pensamento e das ações latino-americanos. Perón, Allende, Haya de la Torre são objetos de referência constante em seus respectivos países e suas ideias são utilizadas como ele-mento legitimador, ou de descrédito, de diversos projetos políticos do presente. Bolívar, objeto de culto pelo atual governo da Venezuela, é sempre um dos mais citados quando o assunto é a quebra das barreiras impostas pelas nacionalidades. Esquerda e direita reivindicam a sua figura por caminhos diferentes, mas é uma unanimi-dade incomparável. Lindolfo Collor representa outro tipo de modernidade que não podia ficar ausente deste projeto. E finalmente os movimentos armados ou pacíficos, mas sempre na ofensiva por uma nova sociedade, foram aqui lembrados pela seleção de documentos da ANL, dos Sem Terra, do EZLN, da FSLN e da Guerrilha do Araguaia. Estes não foram, e nem serão, os únicos que apresentaram perspectivas de mudanças sociais, como vanguardas ou como parte do povo, mas justamente por isso é bom conhecer o que eles nos têm a dizer.

O espaço foi inevitavelmente exíguo para tantos e tantos projetos urdidos, desenhados e criados pelos ho-mens e mulheres da América Latina. Que os documentos transcritos sirvam para conhecê-los melhor. Quem sabe, dessa forma, possamos compreender melhor a política latino-americana contemporânea, que hoje nova-mente volta a assombrar os cultores de uma modernidade clássica, segundo os padrões europeus, ou que en-tende que a América Latina deva atender aos interesses dos Estados Unidos, por acreditar serem esses os seus próprios interesses.

As formas de fazer política sempre se adaptam a padrões específicos. Por esta razão, são diferentes no tempo e no espaço. Não faz sentido reduzi-las aos padrões europeus, sejam liberais ou marxistas; o que é preciso é compreendê-las segundo suas próprias características e tradições.

Para concluirmos, convém recordar que, depois de uma década de calma aparente, vive-se novamente um período de grande atividade política e de retorno de projetos alternativos em Nuestra America, como se pode ver no México, com a importância adquirida pelo esquerdista Partido da Revolução Democrática (PRD) e a popularidade do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), no estado de Chiapas; no protagonismo de Hugo Chavez e seu projeto bolivariano na Venezuela; na eleição de Evo Morales, como primeiro presiden-te indígena da Bolívia, na pugna eleitoral que se configura entre o líder nacionalista Ollanta Humalla e o candidato do sempre alternativo APRA no Peru, para citar alguns exemplos.

Apenas um retorno do passado ou a abertura de novos horizontes de futuro?

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1801 | touSSAint l’ouVerture

Constituição de São Domingos*

o Haiti foi o primeiro país independente da América ao sul do rio grande. o documento a seguir, a primeira Constituição de são

Domingos, ainda como colônia (com a independência, em 1804, passaria a se chamar Haiti), evidencia as linhas que determinaram a ruptura com a França. o texto é uma espécie de testamento político

de toussaint l’ouverture (1743/1746?-1803), a principal liderança da luta dos escravos pela liberdade, e que seria encarcerado e enviado à

França por napoleão Bonaparte.

o documento não expressa, em toda a amplitude, a ruptura que significou a revolução de são Domingos — ou Haitiana, como acabou conhecida —, mas pôs fim à servidão, além de formular as bases para

a construção de uma nova sociedade. por isso, poucos movimentos políticos foram tão estigmatizados como a revolução Haitiana, em

grande parte por ser liderada por escravos nascidos nas Américas, por comunicar-se através de uma língua própria, o créole, síntese do francês, espanhol e várias línguas africanas, e também por organizar-se segundo

uma religião sincrética, o vudu. por toda a América, principalmente entre os escravos, disseminou-se a lenda de toussaint, e o Haiti se transformou

numa ameaça. os escravocratas dos estados unidos fugiam para as cidades e no Brasil se falava em “haitianismo”. As lutas independentistas

do resto da América tiveram no Haiti um estímulo, principalmente as correntes que propunham e lutavam pelo fim da servidão. É difícil avaliar

com exatidão o caráter transformador e revolucionário que assumiu em sua época a independência do Haiti, e, talvez, ainda hoje, o país sofra os

efeitos de ter sido a primeira experiência nas Américas a ter colocado a dignidade humana como um objetivo político central. (M.B.)

Os deputados dos departamentos da colônia de São Domingos, reunidos em Assembleia Central, decidiram e estabeleceram as bases constitucionais do regime da colônia francesa de São Domingos da seguinte forma:

título I | Do terrItórIo

Art. 1o São Domingos, em toda a sua extensão, e Samana, La Tortue, a Gonâve, as Cayenitas, a Île-à-Vache, a Saône e outras ilhas vizinhas formam o território de uma colônia única que faz parte do Império francês, mas que se submete a leis particulares.

Art. 2o O território da colônia divide-se em departamentos, bairros e paróquias.

tItulo II | DoS HABItAnteS

Art. 3o Não podem existir escravos neste território, a servidão é abolida para sempre. Todos os homens aqui nascem, vivem e morrem livres e franceses.

Art. 4o Todo homem, seja qual for a cor, é admissível em todos os empregos.

Art. 5o Não existem diferenças, salvo as das virtudes e dos talentos, nenhuma superioridade, salvo a confe-rida pela lei no exercício de uma função pública. A lei é a mesma para todos, seja para punir, seja para pro-teger.

título III | DA relIGIão

Art. 6o A religião católica, apostólica e romana é a única religião publicamente professada.

* No original, The Saint-Domingue Constitution of 1801.

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Art. 7o Cada paróquia provê as condições para o exercício do culto religioso e dos respectivos ministros. Os bens produzidos são especialmente destinados a estas despesas e as casas presbiteriais à moradia dos ministros.

Art. 8o O governador da colônia atribui a cada ministro da religião a extensão de sua administração espiritual; os ministros não podem de modo algum, sob nenhum pretexto, formar uma corporação na colônia.

título IV | DoS CoStuMeS

Art. 9o O casamento, considerando-se que tende, enquanto instituição civil e religiosa, à pureza dos costumes, conferirá aos esposos, que pratiquem as virtudes exigidas por seu estado, distinção e proteção especiais por parte do governo.

Art. 10. O divórcio não será permitido na colônia.

Art. 11. O estado e os direitos das crianças nascidas pelo casamento serão fixados por leis que deverão disse-minar e cultivar as virtudes sociais, assim como encorajar e cimentar os laços de família.

título V | DoS HoMenS eM SoCIeDADe

Art. 12. A Constituição garante a liberdade e a segurança individual. Ninguém pode ser preso senão em vir-tude de ordem formalmente expressa, emanada de um funcionário ao qual a lei atribui direito de prender ou de deter num lugar públicamente definido.

Art. 13. A propriedade é sagrada e inviolável. Toda pessoa, por si mesma, ou por seus representantes, tem a livre disposição e administração do que reconhecidamente lhe pertencer. Quem quer que atente contra este direito se torna criminoso perante a sociedade e responsável perante a pessoa atingida em sua propriedade.

título VI | DAS CulturAS e Do CoMérCIo

Art. 14. Sendo essencialmente agrícola, a colônia não pode tolerar qualquer interrupção nos trabalhos de suas culturas.

Art. 15. Cada moradia é uma manufatura que exige um conjunto de cultivadores e trabalhadores; é o asilo tranquilo de uma ativa e constante família, cujo proprietário do solo ou seu representante é necessariamente o pai.

Art. 16. Cada cultivador e trabalhador é membro da família e participante dos rendimentos. Toda mudança de domicílio da parte dos cultivadores conduz à ruína das culturas. Para reprimir um vício tão funesto à colônia como contrário à ordem pública, o governador determina regulamentos de polícia que as circunstâncias exi-gem e conformes às bases do regulamento de polícia do 20 vendemiário, ano 9, e da proclamação do 19 plu-vioso seguinte do general em chefe Toussaint Louverture.

Art. 17. A introdução dos cultivadores indispensáveis ao restabelecimento e ao crescimento das culturas ocor-rerá em São Domingos; a Constituição encarrega o governador de tomar as medidas convenientes para enco-rajar e favorecer este aumento de braços, estipular e equilibrar os diversos interesses, assegurar e garantir a execução dos compromissos respectivos resultantes desta introdução.

Art. 18. Em consequência do comércio da colônia consistir unicamente na troca dos gêneros e produções de seu território, a introdução de gêneros e produções da mesma natureza que as suas é e permanece proibida.

título VII | DA leGISlAção e DA AutorIDADe leGISlAtIVA

Art. 19. O regime da colônia é determinado pelas leis propostas pelo governador e aprovadas por uma assem-

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bleia de habitantes, que se reúnem em períodos fixos, no centro da colônia, sob o título de Assembleia Central de São Domingos.

Art. 20. Nenhuma lei relativa à administração interna da colônia poderá ser promulgada se não for revestida da seguinte fórmula:

A Assembleia Central de São Domingos, sob proposta do governador, aprova a seguinte lei.

Art. 21. Nenhuma lei será obrigatória para os cidadãos, salvo a partir da sua promulgação nas capitais dos de-partamentos. A promulgação da lei acontecerá da seguinte forma: Em nome da colônia francesa de São Do-mingos, o governador ordena que a lei acima seja selada, promulgada e executada em toda a colônia.

Art. 22. A Assembleia Central de São Domingos é constituída por dois deputados por departamento, os quais, para serem elegíveis, deverão ter no mínimo trinta anos e residir há cinco anos na colônia.

Art. 23. A Assembleia é renovada pela metade a cada dois anos; ninguém pode ser membro da Assembleia por seis anos consecutivos. A eleição ocorre da seguinte forma: as administrações municipais nomeiam, a cada dois anos, no 10 ventoso (1º de março), cada uma, um deputado, os quais se reúnem, dez dias depois, nas capitais dos respectivos departamentos onde formam assembleias eleitorais departamentais, que nomeiam, cada uma, um deputado à Assembleia Central. A próxima eleição ocorrerá no 10 ventoso do décimo primeiro ano da República Francesa (1º de março de 1803). Em caso de morte, demissão, ou impedimento por qualquer outro motivo, de um, ou de vários membros da Assembleia, o governador proverá sua substituição. Ele designa igualmente os membros da Assembleia Central atual, que, quando da primeira renovação, deverão permanecer membros da Assembleia por dois outros anos.

Art. 24. A Assembleia Central vota a adoção ou a rejeição das leis que lhe são propostas pelo governador; ela exprime sua opinião sobre os regulamentos aprovados e sobre a aplicação das leis já em vigor, sobre os abusos a corrigir, sobre as melhorias a empreender, em todas as partes do serviço da colônia.

Art. 25. Sua sessão começa, cada ano, no primeiro de Germinal (22 de março) e não pode exceder a duração de 3 meses. O governador pode convocá-la extraordinariamente; as sessões não são públicas.

Art. 26. Com base nas condições de receitas e de despesas que lhe são apresentadas pelo governador, a Assem-bleia Central determina, se for o caso, a amplitude, o quociente, a duração e o modo da percepção do impos-to, seu aumento ou diminuição; estas condições serão sumariamente publicadas.

título VIII | Do GoVerno

Art. 27. As rédeas administrativas da colônia são confiadas a um governador, que se corresponde diretamente com o governo da Metrópole, em tudo o que diz respeito aos interesses da colônia.

Art. 28. A Constituição nomeia o cidadão Toussaint Louverture, general em chefe do exército de São Domin-gos, e considerando os importantes serviços que este general prestou à colônia, nas circunstâncias mais críticas da revolução, e com base na vontade reconhecida dos habitantes, as rédeas lhe são confiadas pelo resto de sua gloriosa vida.

Art. 29. No futuro, cada governador será nomeado por cinco anos, e poderá ser reconduzido a cada cinco anos, em razão de sua boa administração.

Art. 30. Para garantir a tranquilidade que a colônia deve à firmeza, à atividade, ao zelo incansável e às virtudes raras do general Toussaint Louverture, e como marca da confiança ilimitada dos habitantes de São Domingos, a Constituição atribui exclusivamente a este general o direito de escolher o cidadão que, na infeliz ocasião de sua morte, deverá imediatamente substituí-lo. Esta escolha será secreta; e será consignada num pacote selado

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que não poderá ser aberto salvo pela Assembleia Central, na presença de todos os generais do exército de São Domingos em serviço ativo e dos comandantes em chefe dos departamentos. O general Toussaint tomará todas as medidas de precaução necessárias para informar à Assembleia Central o lugar do depósito deste im-portante pacote.

Art. 31. O cidadão que terá sido escolhido pelo general Toussaint Louverture, para assumir por ocasião de sua morte as rédeas do governo, prestará, perante a Assembleia Central, o juramento de cumprir a Constituição de São Domingos e de permanecer associado ao governo francês, e tomará imediatamente posse de suas funções: tudo isto se passará em presença dos generais do exército em serviço ativo e dos comandantes em chefe dos departamentos, que, todos, prestarão imediatamente, entre as mãos do novo governador, o juramen-to de obediência às suas ordens.

Art. 32. No máximo, um mês antes da expiração dos cinco anos fixados para a administração de cada gover-nador, aquele que estiver em funções convocará a Assembleia Central, e a reunião dos generais do exército em atividade e dos comandantes em chefe dos departamentos, no lugar ordinário das sessões desta Assembleia, com o objetivo de nomear, ao mesmo tempo que os membros desta Assembleia, o novo governador ou conti-nuar o que está em funções.

Art. 33. A falta de convocação da parte do governador em funções é uma infração manifesta à Constituição. Neste caso, o general mais graduado, ou mais antigo, o grau sendo igual, que se encontrar em serviço ativo na colônia, toma, de direito, e provisoriamente, as rédeas do governo. Este general convoca imediatamente os outros generais em atividade, os comandantes em chefe dos departamentos e os membros da Assembleia Central, todos sendo obrigados a obedecer à convocação, com o objetivo de proceder imediatamente à nomeação de um novo governador. Em caso de morte, demissão ou afastamento por qualquer outro motivo, de um governador, antes do término de suas funções, o governo passa da mesma forma provisoriamente para as mãos do general de maior grau, ou do mais antigo, o grau sendo igual, o qual convoca para os mesmos fins acima referidos os membros da Assembleia Central, os generais em serviço ativo e os comandantes em chefe dos departamentos.

Art. 34. O governador sela e promulga as leis; nomeia todos os empregos civis e militares. Ele comanda a força armada e é encarregado de sua organização; os navios do Estado estacionados nos portos da colônia re-cebem suas ordens. Ele determina a divisão do território da maneira mais adequada às relações internas. Ele zela e provê, de acordo com as leis, a segurança interna e externa da colônia, e considerando que o estado de Guerra é um estado de caos, de mal-estar e de inação para a colônia, o governador é encarregado de tomar nesta circunstância as medidas que ele estime necessárias para garantir à colônia as subsistências e os abasteci-mentos de todo o tipo.

Art. 35. Ele exerce o controle geral dos habitantes e das manufaturas e faz cumprir as obrigações dos proprie-tários, dos arrendatários, de seus representantes perante os cultivadores e trabalhadores e os deveres dos culti-vadores e trabalhadores perante os proprietários, os fazendeiros e seus representantes.

Art. 36. Ele envia à Assembleia Central a proposição da lei, assim como de mudanças à Constituição que a experiência puder indicar.

Art. 37. Ele dirige, supervisiona a percepção, o desembolso e o emprego das finanças da colônia, e dá com este objetivo todas as ordens.

Art. 38. Ele apresenta de dois em dois anos, à Assembleia Central, o estado anual das receitas e das despesas de cada departamento.

Art. 39. Ele supervisiona e censura, através de seus comissários, tudo o que se destina à publicação na Ilha; ele ordena a eliminação de todos os que, provenientes do estrangeiro, tenderiam a corromper os costumes ou a

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perturbar de novo a colônia; ordena, segundo a gravidade dos casos, a punição dos autores ou difusores de atos de corrupção.

Art. 40. Se o governador é informado de que se trama alguma conspiração contra a tranquilidade da colônia, ele ordena imediatamente a prisão das pessoas que são presumidas como autoras, responsáveis ou cúmplices; após ter imposto um interrogatório extrajudicial, ele as entrega, se for o caso, ao juízo de um tribunal com-petente.

Art. 41. O ordenado do governador é fixado, no momento, em trezentos mil francos. As despesas de sua Guar-da de Honra correm por conta da colônia.

título IX | DoS trIBunAIS

Art. 42. Não pode ser prejudicado o direito dos cidadãos de serem julgados amigavelmente por juízes de sua escolha.

Art. 43. Nenhuma autoridade pode suspender ou impedir o cumprimento de julgamentos proferidos pelos tribunais.

Art. 44. A justiça é administrada na colônia por tribunais de primeira instância e tribunais de recursos. A lei determina a organização de uns e outros, seu número, sua competência e o território de jurisdição de cada um. Tais tribunais, segundo a respectiva jurisdição, são competentes para julgar os processos civis e criminais.

Art. 45. Há para toda a colônia um tribunal supremo, que se pronuncia sobre os recursos contra os julgamen-tos proferidos pelos tribunais de recursos e sobre os questionamentos contra um tribunal qualquer. Este tribu-nal não se pronuncia sobre o mérito dos processos, mas revoga os julgamentos proferidos por questões proces-suais, quando as formalidades foram violadas, ou que contenham alguma infração expressa da lei, remetendo ao tribunal competente a apreciação do mérito do processo.

Art. 46. Os juízes destes diversos tribunais conservam suas funções por toda a vida, a menos que sejam conde-nados por crimes. Os comissários do governo podem ser destituídos.

Art. 47. Os delitos dos militares são submetidos a tribunais especiais e a formas particulares de julgamento. Estes tribunais especiais são também competentes para julgar quaisquer roubos e sequestros, violação de asilo, assassinatos, mortes violentas, incêndios, estupros, conspirações e revoltas. Sua organização cabe ao governo da colônia.

título X | DAS ADMInIStrAçõeS MunICIpAIS

Art. 48. Em cada paróquia da colônia, há uma administração municipal: naquela onde existe um tribunal de primeira instância, a administração municipal é constituída por um prefeito e quatro administradores. O co-missário do governo junto ao tribunal desempenha gratuitamente as funções de comissário junto à adminis-tração municipal. Nas demais paróquias, as administrações municipais são constituídas por um prefeito e dois administradores, e as funções de comissário junto a elas são desempenhadas gratuitamente pelos substitutos do comissário junto ao tribunal a cuja jurisdição pertençam estas paróquias.

Art. 49. Os membros das administrações municipais são nomeados por dois anos e podem ser sempre recondu-zidos. Sua nomeação é atribuição do governo que, na base de uma lista de no mínimo 16 pessoas, apresentada por cada administração municipal, escolhe as pessoas mais aptas a gerenciar os negócios de cada paróquia.

Art. 50. As funções das administrações municipais consistem no exercício do simples controle das cidades e vilas, na administração dos recursos provenientes dos bens produzidos e dos impostos adicionais das paróquias.

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Elas também são especialmente encarregadas de manter em ordem os registros dos nascimentos, casamentos e óbitos.

Art. 51. Os prefeitos exercem funções particulares que a lei determina.

título XI | DA ForçA ArMADA

Art. 52. A força armada é essencialmente disciplinada, não pode jamais deliberar por conta própria; ela está à disposição do governador, que só pode colocá-la em movimento para a manutenção da ordem pública, da proteção devida a todos os cidadãos e da defesa da colônia.

Art. 53. Ela divide-se em guarda colonial remunerada e em guarda colonial não remunerada.

Art. 54. A guarda colonial não remunerada não sai dos limites da paróquia, salvo no caso de um perigo imi-nente e sob ordem e responsabilidade pessoal do comandante militar ou local. Fora dos limites da paróquia, ela se torna remunerada e submetida, nesse caso, à disciplina militar, e, em quaisquer atividades, não é subme-tida senão à lei.

Art. 55. A polícia colonial faz parte da força armada. Ela divide-se em polícia a cavalo e em polícia a pé. A polícia a cavalo é instituída para a alta polícia e a segurança do campo; ela se encarrega do tesouro da colônia. A polícia a pé é instituída para o controle das cidades e vilas; ela se encarrega das cidades e vilas onde presta serviço.

Art. 56. O exército é recrutado de acordo com proposta que o governo faz à Assembleia Central e segundo o modelo estabelecido pela lei.

título XII | DAS FInAnçAS, DoS BenS pAtrIMonIAIS SequeStrADoS e VACAnteS

Art. 57. As finanças da colônia se compõem: 1o dos direitos de importação, de pesagem e de avaliação; 2o dos direitos sobre o valor de locação das casas das cidades e aldeias, dos direitos sobre o produto das manufaturas, outros que não incidam sobre as culturas e dos direitos sobre o produto das salinas; 3o da renda dos barcos de cabotagem e dos correios; 4o das multas, confiscos e restos de naufrágios; 5o dos direitos sobre o salvamento dos barcos naufragados; 6o das rendas dos domínios coloniais.

Art. 58. O produto dos aluguéis dos bens s equestrados dos proprietários ausentes e não representados integra provisoriamente a renda pública da colônia e é aplicado nas despesas da administração. As circunstâncias de-terminarão as leis que poderão ser aprovadas relativamente à dívida pública passada e aos aluguéis dos bens sequestrados percebidos pela administração num período anterior à promulgação da presente Constituição. Em relação àqueles que terão sido recolhidos num tempo posterior, serão exigíveis e reembolsados no ano seguinte à supensão do sequestro do bem.

Art. 59. Os fundos provenientes da venda de bens móveis e do preço das sucessões em aberto, existentes na colônia sob o governo francês desde 1789, serão depositados numa caixa particular e só se tornarão disponíveis, e também os imóveis agregados aos domínios coloniais, após dois anos da publicação da paz na ilha, entre a França e as potências marítimas. Evidentemente que este prazo é relativo apenas às sucessões cujo prazo de cinco anos, fixado pelo edito de 1781, já tenha expirado; e em relação às sucessões abertas em épocas próximas da paz, não poderão ser disponíveis e reunidas senão depois de sete anos.

Art. 60. Os estrangeiros herdando na França de pais estrangeiros ou franceses serão herdeiros igualmente em São Domingos; eles poderão contratar, adquirir e receber bens situados na colônia, e deles dispor da mesma forma que os franceses por todos os meios autorizados pelas leis.

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Art. 61. O modo de percepção e administração das finanças dos bens dominiais sequestrados e vacantes será determinado pelas leis.

Art. 62. Uma comissão temporária de contabilidade regulamenta e verifica as contas das receitas e despesas da colônia; esta comissão é constituída por três membros, escolhidos e nomeados pelo governador.

título XIII | DISpoSIçõeS GerAIS

Art. 63. A casa de todas as pessoas é um asilo inviolável. Durante a noite, ninguém é autorizado a nela entrar salvo em caso de incêndio, inundação ou reclamação do interior. Durante o dia, pode-se nela en-trar por um objetivo especial determinado ou por uma lei ou por uma ordem emanada de uma autorida-de pública.

Art. 64. Para que um ato que ordene a prisão de uma pessoa possa ser cumprido, é preciso:

1. que ele explicite formalmente o motivo da prisão e a lei vigente na qual se baseia a ordem de prisão;2. que ele emane de um funcionário a quem a lei formalmente conferiu o poder de fazê-lo;3. que seja dada cópia da ordem à pessoa presa.

Art. 65. Todos os que, não tendo recebido da lei o poder de fazer prender, derem, assinarem, executarem ou fizerem executar a prisão de uma pessoa serão culpados do crime de detenção arbitrária.

Art. 66. Toda pessoa tem o direito de encaminhar petições individuais a qualquer autoridade constituída, e especialmente ao governador.

Art. 67. Não podem ser formadas na colônia corporações ou associações contrárias à ordem pública.Nenhuma assembleia de cidadãos pode se qualificar como sociedade popular. Todo ajuntamento sedicioso

deve ser imediatamente dissolvido, primeiro por intermédio de ordem verbal, e se for necesario, pelo emprego da força armada.

Art. 68. Toda pessoa tem a faculdade de organizar estabelecimentos particulares de educação e de instrução da juventude, sob autorização e supervisão das administrações municipais.

Art. 69. A lei controla particularmente as profissões que dizem respeito aos costumes públicos, à segurança, à saúde e à fortuna dos cidadãos.

Art. 70. A lei provê a recompensa dos inventores de máquinas rurais, ou a preservação da propriedade exclu-siva de suas descobertas.

Art. 71. Há em toda a colônia uniformidade de pesos e medidas.

Art. 72. Serão conferidas pelo governador, em nome da colônia, recompensas aos guerreiros que terão presta-do serviços relevantes combatendo pela defesa comum.

Art. 73. Os proprietários ausentes, qualquer que seja a causa, conservam todos os direitos sobre os bens que lhes pertençam e se situem na colônia; para obter a suspensão do sequestro de seus bens, bastará que apresentem seus títulos de propriedade e, na impossibilidade de fazê-lo, cumprir outras formalidades, a serem determina-das pela lei. Estão entretanto isentos desta disposição os que tenham sido inscritos e mantidos na lista geral dos emigrados de França; seus bens, neste caso, continuarão a ser administrados como domínios coloniais até sua eliminação da lista.

Art. 74. A colônia proclama, como garantia da lei pública, que todos os contratos de bens arrendados legal-mente pela administração serão inteiramente respeitados, se os contratantes não preferirem negociar com os proprietários ou seus representantes que tenham obtido a suspensão de seu sequestro.

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Art. 75. Ela proclama que é sobre o respeito das pessoas e das propriedades que se baseiam a cultura das terras, todas as produções, todo meio de trabalho e toda a ordem social.

Art. 76. Ela proclama que todo cidadão deve seus serviços ao solo que o alimenta ou que o viu nascer, à pre-servação da liberdade, da igualdade e da propriedade, todas as vezes que a lei o chamar para defendê-los.

Art. 77. O general em chefe Toussaint Louverture está e permanece encarregado de enviar a presente Consti-tuição à sanção do governo francês; entretanto, considerando a ausência das leis, a urgência de sair deste esta-do de perigo, a necessidade de restabelecer prontamente as culturas e o desejo unânime bem formulado dos habitantes de São Domingos, o general é e permanece convidado, em nome do bem público, a fazê-la respei-tar em toda a extensão do território da colônia.

Feito em Porto-Republicano, em 19 de Floreal, ano 9 da República Francesa una e indivisível.[Assinado]

Borgella (presidente), Raymond, Collet, Gaston Nogérée Lacour, Roxas, Mugnos, Mancebo, E. Viart (se-cretários).

“Após haver tomado conhecimento da Constituição, dou-lhe minha aprovação. O convite da Assembleia Central é uma ordem para mim; em consequência, eu a enviarei ao governo francês para obter sua sanção; quanto ao que se relaciona ao seu cumprimento na colônia, o desejo expresso pela Assembleia Central também será igualmente cumprido e executado.”

“Feito em Cap-Français, em 14 Messidor, ano IX da República.”

O general em chefe Toussaint-Louverture, 1801

Fonte | Disponível em: <http://thelouvertureproject.org/index.php?title=Constitution_of_1801_%28English%29>.

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1810 | miguel hidAlgo

Manifesto

o México foi um dos últimos países da América continental a conseguir a sua independência, e a mesma foi produto de um

acordo entre as classes dominantes. se a independência demorou a chegar, a causa reside, em grande medida, na indefinição dos criollos

(americanos de origem espanhola) em romper com a espanha. De fato, os primeiros movimentos independentistas no México tiveram

origem popular e camponesa. A terra e a espoliação sofrida pelos indígenas, questões que acompanham o México até os dias de hoje, foram os móveis que levaram o cura (padre) Hidalgo (1753-1811) a

fazer uma conclamação à luta pela libertação da espanha, dominada então pelos franceses, e a lutar contra os criollos que hesitavam

quanto à independência do país.

o movimento desencadeado por Hidalgo, conhecido como o “grito de Dolores”, fazendo referência à cidade do estado de guanajuato, começou em 15 de setembro de 1810. o projeto indigenista desse

sacerdote foi derrotado, apesar de contar com amplo apoio popular. um dos seus discípulos, José María Morelos, retomou as ideias

de Hidalgo, tentando conseguir o apoio de alas mais moderadas. Conseguiu declarar a independência em 1813, porém também foi

finalmente derrotado, abrindo-se, a partir daí, condições propícias a um projeto conservador de independência. (n.F. e M.B.)

MAnIFeSto que o Sr. Dr. HIDAlGo y CoStIllA, GenerAlíSSIMo DAS ArMAS AMerICAnAS e

eleIto pelA MAIor pArte DoS poVoS Do reIno pArA DeFenDer SeuS DIreItoS e oS De SeuS

ConCIDADãoS, FAz Ao poVo.

Vejo-me diante da triste necessidade de esclarecer as pessoas sobre um ponto que nunca acreditei que me pu-desse manchar, nem tampouco me fazer suspeito para com meus compatriotas. Falo da coisa mais interessante, mais sagrada e, para mim, mais amável: da religião santa, da fé sobrenatural que recebi no batismo. Juro desde logo, amados cidadãos meus, que jamais me separei nem um pouquinho da crença na Santa Igreja Católica. Jamais duvidei de nenhuma de suas verdades, sempre estive intimamente convencido da infalibilidade de seus dogmas e estou pronto para derramar meu sangue na defesa de todos e de cada um deles.

Testemunhas dessa afirmação são os paroquianos de Dolores e de São Felipe, a quem continuamente expli-cava as terríveis penas que sofrem os condenados ao inferno, a quem procurava inspirar horror aos vícios e amor às virtudes, para que não ficassem envoltos na desgraçada sorte dos que morrem em pecado. Testemu-nhas são todas as pessoas que me acompanharam nos povoados onde vivi e todo o exército que comando.

Entretanto, para que testemunhas sobre um feito e uma imputação nos quais a sua própria falsidade se ma-nifesta? Se me acusam de negar a existência do inferno e, um pouco antes, me acusam de ter afirmado que algum pontífice entre os canonizados como santo está nesse lugar, como concordar que um pontífice está no inferno se nego a existência deste? Se me atribuem também ter negado a autenticidade dos Livros Sagrados, e se me acusam de seguir os perversos dogmas de Lutero, uma vez que este deduz seus erros dos livros que acre-dita inspirados por Deus, como aquele que nega esta inspiração sustentará as suas crenças se estas são deduzidas dos mesmos livros que considera fabulosos? Do mesmo modo são todas as outras acusações. Vós acreditaríeis, americanos, que um tribunal tão respeitável e cuja instituição é a mais santa, se deixasse arrastar do amor às pessoas, à prostituição de sua honra e de sua reputação? Estejam certos, meus amados concidadãos, que se eu não houvesse decidido libertar nosso reino dos grandes males que o oprimem e dos muitos maiores que o ameaçavam, e que estavam na iminência de cair sobre ele, jamais teria sido acusado de herege.

Todos os meus delitos trazem em sua origem o desejo de vossa felicidade. Sem isto, não teria pegado em armas; desfrutaria de uma vida doce, suave e tranquila; passaria por verdadeiro católico como, de fato, o sou e me lisonjeio de ser; e jamais haveria tido quem se atrevesse a me denegrir com a infame nota de heresia. Entretanto, de que meio se haveriam de valer os espanhóis europeus em cujas opressoras mãos estava a nossa sorte? A empresa era demasiado

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árdua. A nação que tanto tempo esteve em letargia, desperta repentinamente de seu sonho para a doce voz da liber-dade; correm apressados os povos e tomam as armas para sustentá-la a todo custo.

Os opressores não têm armas nem pessoas para nos obrigar com a força a seguir com a horrorosa escravidão à qual nos tinham condenado. Afinal, que recursos lhes faltaram? Valeram-se de toda espécie de meios por injustos, ilícitos e infames que fossem, contanto que levassem à sustentação de seu despotismo e à opressão da América; abandonaram até a última relíquia de honradez e hombridade; prostituíram as autoridades mais re-comendáveis; fulminaram excomunhões, que ninguém melhor do que eles próprios sabem não ter força algu-ma; procuraram amedrontar os incautos e aterrorizar os ignorantes para que, espantados com o nome do anátema, temessem onde não há motivo para temer.

Quem acreditaria, amados concidadãos, que chegasse a este ponto o descaramento e atrevimento destes gachupines?1 Profanar as coisas mais sagradas para assegurar sua intolerável dominação? Valer-se da mesma re-ligião santa para abatê-la e destruí-la? Usar de excomunhões contra toda a mente da Igreja e fulminá-la sem que haja motivo religioso para isso?

Abri os olhos, americanos, não vos deixeis seduzir por nossos inimigos. Eles são católicos apenas por polí-tica. Seu Deus é o dinheiro e as cominações somente têm por objetivo a opressão. Acreditais, por acaso, que não pode ser verdadeiro católico aquele que não esteja sujeito ao déspota espanhol? De onde veio este novo dogma, este novo artigo de fé? Abri os olhos, volto a dizer, meditai sobre vossos verdadeiros interesses. Deste precioso momento depende a felicidade ou infelicidade de vossos filhos e de vossa numerosa posteridade. Serão certamente incalculáveis, amados cidadãos meus, os males aos quais ficareis expostos, se não aproveitardes este momento feliz que a Divina Providência vos colocou nas mãos.

Não escutais as sedutoras vozes de nossos inimigos que, sob o véu da religião e da amizade, querem vos fazer vítimas de sua insaciável cobiça. Acreditais, amados concidadãos, que os gachupines, homens desnaturados, que romperam os mais íntimos vínculos do sangue — se estremece a natureza! —, abandonando seus pais, seus irmãos, suas mulheres e seus próprios filhos, sejam capazes de ter sentimentos de humanidade por outra pessoa? Podereis ter com eles algum enlace superior aos que a mesma natureza pôs nas relações com suas famílias? Não se atropelam todos por somente o interesse de se fazerem ricos na América? Não acreditais que homens nutridos desses senti-mentos possam manter amizade sincera conosco: sempre que se lhes apresente o vil interesse, eles vos sacrificarão com a mesma ligeireza com que abandonaram seus próprios pais. Acreditais que ao atravessar imensos mares e se expor à fome, à nudez e aos perigos da vida inseparáveis da navegação, isso tenham empreendido para vir fazer-vos felizes? Enganais-vos, americanos. Abraçariam os espanhóis esse cúmulo de trabalhos para fazer felizes homens que não conhecem? O motivo de todas essas fadigas não é senão sua sórdida avareza: eles não vieram senão para despojar-nos de nossos bens, para tirar nossas terras, para nos terem sempre avassalados sob os seus pés.

Rompamos, americanos, esses laços de ignomínia com os quais nos tiveram ligados tanto tempo. Para con-segui-lo, necessitamos apenas de nos unirmos. Se não brigarmos contra nós mesmos, a guerra está concluída e nossos direitos a salvo. Unâmo-nos, pois, todos os que nasceram neste bendito solo. Vejamos desde hoje como estrangeiros e inimigos de nossas prerrogativas todos os que não são americanos. Estabeleçamos um Congresso que se componha de representantes de todas as cidades, vilas e lugares deste reino que, tendo como objetivo principal manter nossa santa religião, dite leis suaves, benéficas e adaptadas às circunstâncias de cada povo. Eles, então, governarão com a doçura dos padres, nos tratarão como seus irmãos, desterrarão a pobreza, moderando a devastação do reino e a extração de seu dinheiro, fomentarão as artes, estimularão a indústria. Nós então fa-remos uso livre das riquíssimas produções de nossos fecundos países e daqui a poucos anos, desfrutarão seus habitantes de todas as delícias que o Soberano Autor da natureza derramou sobre este vasto continente.

Fonte | ROMERO, José Luis; ROMERO, Luis Alberto (Orgs.). Pensamiento político de la emancipación. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1985. p. 41-43.

1 Gachupines é uma maneira pejorativa de se referir aos espanhóis (N. do T.).

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1826 | Simón BolíVAr

Mensagem ao Congresso Constituinte da Bolívia (projeto de Constituição)*

nascido em 1783, no território da atual Venezuela, Bolívar (1783-1830) era filho de uma das mais ricas famílias da aristocracia de

Caracas. Durante a sua formação viajou pela europa e pela América, o que lhe permitiu observar de perto o funcionamento das instituições nos euA pós-independência, a ascensão de napoleão Bonaparte e as transformações provocadas pela revolução Francesa. numa de suas viagens, em 1805, à Itália, jurou no Monte sacro, ao lado de simón rodríguez, seu preceptor, responsável pelo legado iluminista de sua

formação, que lutaria pela independência da América Merdional, como ele a denominava, o que então correspondia aos seguintes

atuais países: Venezuela, Colômbia, panamá, equador, peru e Bolívia.

em 1826, depois de liderar a luta pela independência do Alto peru, apresentou seu projeto de Constituição para o Congresso da Bolívia

(região correspondente ao Alto peru), considerado por ele como o melhor modelo republicano para América ao sul do rio grande.

Combinando valores liberais e dispositivos que garantiam a centralização do poder, Bolívar buscou trazer para o novo estado americano o que ele avaliava como o que havia de melhor nas Monarquias — parlamentares

ou não — e nas repúblicas, com a preocupação de corrigir os erros e garantir a consolidação do estado. o texto de Bolívar nos permite ver as diversas possibilidades abertas pelas independências na construção dos

novos estados americanos. (n.F. e M.B.)

Legisladores!Ao oferecer-vos o Projeto de Constituição para a Bolívia, sinto-me tomado por confusão e timidez porque

estou persuadido de minha incapacidade para fazer leis. Quando considero que a sabedoria de todos os séculos não é suficiente para compor uma lei fundamental que seja perfeita, e que o mais esclarecido Legislador é a causa imediata da infelicidade humana, do engano e, por assim dizer, o seu ministro divino, o que deverei vos dizer do soldado que, nascido entre escravos e sepultado nos desertos de sua pátria, não viu mais que cativos com correntes e companheiros com armas para rompê-las? Eu, Lesgilador...! Vosso engano e meu compromis-so disputam a preferência. Não sei quem padece mais neste horrível conflito, se vós, pelos males que deveis temer das leis que me haveis pedido, ou eu, do opróbio a que me condenais por vossa confiança.

Evoquei todas as minhas forças para vos expor minhas opiniões sobre o modo de conduzir homens livres pelos princípios adotados entre os povos cultos, ainda que as lições da experiência somente mostrem largos períodos de desastres, interrompidos por relâmpagos de ventura. Quais guias poderemos seguir diante da som-bra de tão tenebrosos exemplos?

Legisladores! Vosso dever vos chama a resistir ao choque de dois monstruosos inimigos que reciprocamen-te se combatem e ambos vos atacarão de cada vez. A tirania e a anarquia formam um imenso oceano de opressão que rodeia uma pequena ilha de liberdade, golpeada perpetuamente pela violência das ondas e dos furacões que tentam impeli-la sem cessar à sua submersão. Olhai o mar que ides sulcar em uma frágil barca com um piloto tão inexperiente.

O projeto de Constituição para a Bolívia traz a divisão em quatro Poderes Políticos, sendo acrescentado um a mais, sem complicar, com isso, a divisão clássica de cada um dos outros. O Poder Eleitoral recebeu atribui-ções que não estavam constituídas em outros governos que se supõem entre os mais liberais. Pareceu-me não apenas conveniente e útil, mas também fácil, conceder aos representantes imediatos do povo os privilégios que mais podem desejar os cidadãos de cada departamento, província e distrito. Nenhum direito é mais importan-te para um cidadão que a eleição de seus legisladores, magistrados, juízes e pastores. Os colégios eleitorais de cada província representam as necessidades e os interesses deles e servem para queixar-se das infrações das leis

* No original, Mensaje sobre el Congreso Constituyente de Bolivia.

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e dos abusos dos magistrados. Atrever-me-ia a dizer com alguma exatidão que esta representação participa dos direitos de que gozam os governos particulares dos Estados federados. Deste modo, foi colocado um novo peso na balança contra o Executivo; e o governo adquiriu mais garantias, mais popularidade e novos títulos para que se sobressaia entre os mais democráticos.

Cada dez cidadãos nomeiam um eleitor; e assim se encontra a nação representada por um décimo de seus cidadãos. Não se exige nada além de certas capacidades, nem é necessário possuir bens para representar a au-gusta função do soberano; mas é preciso saber escrever seu voto, assinar seu nome e ler as leis. É preciso pro-fessar uma ciência ou uma arte que lhe assegure um sustento honesto. Não se colocam outras exclusões que as do crime, da ociosidade e da ignorância absoluta. O saber e a honra, e não o dinheiro, são o que se requer para o exercício do poder público.

O corpo legislativo tem uma composição que o faz necessariamente harmonioso entre suas partes: não se achará sempre dividido por falta de um juiz árbitro, como sucede onde não há mais que duas Câmaras. Ha-vendo três, a discórdia entre duas é resolvida pela terceira, e a questão é examinada pelas duas partes conten-dedoras e uma imparcial que a julga. Desse modo nenhuma lei útil fica sem efeito ou, pelo menos, haverá sido vista uma, duas e três vezes antes de ser recusada. Em todos os negócios entre dois contrários se nomeia um terceiro para decidir, e por tal motivo não seria absurdo que nos interesses mais árduos da sociedade se desde-nhasse esta providência ditada por uma necessidade imperiosa? Assim, as Câmaras guardarão entre si aquelas considerações que são indispensáveis para conservar a união do todo, que deve deliberar no silêncio das paixões e com a calma da sabedoria. Os Congressos modernos, me dirão, são compostos por apenas duas seções. É porque na Inglaterra, que tem servido de modelo, a nobreza e o povo deviam representar-se em duas Câmaras distintas; e se na América do Norte foi feito o mesmo sem haver nobreza, só posso supor que o costume de estar submetido ao governo inglês inspirou-lhe tal imitação. O fato é que dois corpos deliberantes devem combater-se perpetuamente; e por isto, Sieyes não queria mais que um. Clássico absurdo.

A primeira Câmara é de tribunos e goza da atribuição de iniciar as leis relativas à fazenda, à paz e à guerra. Ela tem o poder de inspeção imediata dos ramos que o Executivo administra com menos intervenção do Legislativo.

Os senadores formulam os códigos e regulamentos eclesiásticos e velam sobre os tribunais e o culto. Cabe ao senado escolher os prefeitos, os juizes do distrito, governadores, corregedores e todos os subalternos do Departamento de Justiça. Propõe à Câmara de Censores, os membros do Tribunal Supremo, os arcebispos, bispos, dignidades e cônegos. É competência do senado tudo o que pertence à Religião e às leis.

Os censores exercem um poder político e moral que tem alguma semelhança com a do areópago de Atenas e dos censores de Roma. Serão eles os fiscais do governo para zelar se a Constituição e os tratados internacio-nais estão sendo religiosamente observados. Pus sob sua égide o Juízo Nacional que deve decidir sobre a boa ou a má administração do Executivo.

São os censores os que protegem a moral, as ciências, as artes, a instrução e a imprensa. A mais terrível, assim como a mais augusta função, pertence aos censores. Condenam ao opróbio eterno os usurpadores da autoridade soberana e os insignes criminosos. A medida da glória foi confiada a suas mãos: por isso mesmo, os censores devem gozar de uma inocência intacta e de uma vida sem mancha. Se cometerem algum delito, serão acusados até por faltas leves. A estes sacerdotes das leis foi confiada a conservação de nossas sagradas tábuas, porque são eles os que devem clamar contra seus profanadores.

O Presidente da República vem a ser nossa Constituição, como o sol que, firme em seu centro, dá vida ao universo. Esta suprema autoridade deve ser perpétua, porque nos sistemas sem hierarquias, necessita-se, mais do que em outros, de um ponto fixo ao redor do qual girem os magistrados e os cidadãos, os homens e as coisas. Deem-me um ponto fixo, dizia um antigo, e moverei o mundo. Para a Bolívia, este ponto é o presidente vitalício. Nele se apoia toda nossa ordem, sem ele ter sido responsável por isso. Sua cabeça foi cortada para que ninguém tema suas intenções, e suas mãos foram atadas para que a ninguém prejudiquem.

O Presidente da Bolívia possui as atribuições do Executivo americano, mas com restrições favoráveis ao povo. A duração do seu mandato é a dos presidentes do Haiti. Eu tomei como exemplo para a Bolívia o Exe-cutivo da República mais democrática do mundo.

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Na ilha do Haiti, permitam-me esta digressão, falava-se em insurreição permanente: depois de haver expe-rimentado o império, o reino, a república, todos os governos conhecidos e alguns mais, a ilha viu-se forçada a recorrer ao ilustre Pétion para que a salvasse. Confiaram a ele os destinos do Haiti. Nomeado Pétion como presidente vitalício com atribuições para eleger o sucessor, nem a morte deste grande homem, nem a sucessão de um novo presidente, causaram o menor perigo ao Estado: tudo se caminhou sob o digno Boyer com a calma de um reino legítimo. Prova triunfante de que um Presidente vitalício, com o direito de eleger o seu sucessor, é a inspiração mais sublime da ordem republicana.

O Presidente da Bolívia será menos perigoso que o do Haiti, sendo o seu modo de sucessão mais seguro para o bem do Estado. Além do mais, o Presidente da Bolívia está privado de todas as influências: não nomeia os magistrados, os juízes, nem os dignitários eclesiásticos por menores que sejam. Esta redução de poder não foi experimentada, todavia, por nenhum governo bem constituído: ela acrescenta freios sobre freios à autoridade de um chefe que achará sempre todo o povo dominado por aqueles que exercem as funções mais importantes da sociedade. Os sacerdotes mandam nas consciências; os juízes na propriedade, na honra e na vida; e os ma-gistrados em todos os atos públicos. Não devendo estes ao povo senão suas dignidades, sua glória e sua fortuna, não pode o presidente esperar prejudicá-los com ambiciosos objetivos. Se a esta consideração se agregam as que naturalmente nascem das oposições gerais que encontra um governo democrático em todos os momentos de sua administração, parece que é certo estarmos seguros de que a hipótese de usurpação do poder público dis-tancia-se mais deste governo do que de nenhum outro.

Legisladores! A liberdade de hoje será indestrutível na América. Vejam a natureza selvagem deste continen-te que expele por si só a ordem monárquica: os desertos convidam à independência. Aqui não há grandes no-bres, grandes eclesiásticos. Nossas riquezas eram quase nulas e hoje em dia esta situação ainda mais se acentuou. Ainda que a Igreja goze de influência, está longe de aspirar ao domínio, e fica satisfeita com a sua própria con-servação. Sem esses apoios, os tiranos não são permanentes; e se alguns ambiciosos se empenharem em levantar impérios, Dessalines, Cristóbal, Iturbide lhes dirão que é preciso esperar. Não há poder mais difícil de manter que o de um príncipe novo. Bonaparte, vencedor de todos os exércitos, não conseguiu vencer esta regra, mais forte que os impérios. E se o grande Napoleão não conseguiu se manter contra a liga dos republicanos e dos aristocratas, quem conseguirá na América fundar monarquias em seu solo incendiado com as brilhantes chamas da liberdade que devoram as tábuas que se colocam para elevar estes cadafalsos régios? Não, legisladores: não temais os pretendentes a coroas. Elas serão para as cabeças como a espada pendendo sobre Dionísio. Os prínci-pes reluzentes que se obstinam em construir tronos sobre os escombros da liberdade erigirão túmulos às suas cinzas, que contarão aos séculos futuros como eles preferiram sua vã ambição à liberdade e à glória.

Os limites constitucionais do Presidente da Bolívia são os mais estreitos que se conhecem: apenas nomeia os funcionários da fazenda, paz e guerra e manda no exército. Eis aqui suas funções.

Toda a administração pertence ao ministério, responsável perante os censores, e está sujeita à vigilância zelosa de todos os legisladores, magistrados, juízes e cidadãos. Os funcionários da alfândega e os soldados, únicos agentes desse ministério, não são na verdade os mais adequados para granjear popularidade; assim, sua influência será nula.

O vice-presidente é o magistrado mais limitado que serviu ao poder: obedece juntamente ao Legislativo, ao Executivo e a um governo republicano. Do primeiro, recebe as leis; do segundo, as ordens; e entre estas duas barreiras deve marchar por um caminho difícil e ladeado por precipícios. Apesar de tantos inconvenientes, é preferível governar deste modo do que com império absoluto. As barreiras constitucionais estimulam uma consciência política e lhe dão firme esperança de encontrar o farol que a guie entre os escombros que a ro-deiam: elas servem de apoio contra os impulsos de nossas paixões, concentradas em estranhos interesses.

No governo dos Estados Unidos observou-se ultimamente a prática de nomear o primeiro ministro para suceder ao presidente. Nada é tão conveniente em uma república como este método: reúne a vantagem de colocar à cabeça da administração um sujeito com experiência no manejo do Estado. Quando entra e exerce suas funções, vai formado e leva consigo a auréola da popularidade e uma prática consumada. Apoderei-me desta ideia e a estabeleci como lei.

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O Presidente da República nomeia o vice-presidente para que administre o Estado e suceda-o no poder. Por esta providência evitam-se eleições, que produzem uma grande calamidade nas Repúblicas, e a anarquia, que é o luxo da tirania e o perigo mais imediato e mais terrível para os governos populares. Vede de que modo ocorre nos reinos legítimos a tremenda crise das repúblicas.

O vice-presidente deve ser o homem mais puro. A razão é que se o primeiro magistrado não elege um ci-dadão muito correto, deve temê-lo como a um inimigo encarniçado e suspeitar até de suas secretas ambições. Este vice-presidente deve esforçar-se para merecer, por seus bons serviços, o crédito que necessita para desem-penhar as mais altas funções e esperar pela grande recompensa nacional — o poder supremo. O corpo legisla-tivo e o povo exigirão capacidade e talento por parte deste magistrado e lhe pedirão uma cega obediência às leis da liberdade.

Tanto quanto a herança perpetua o regime monárquico, como quase sempre acontece no mundo, assim também não será mais útil o método que acabo de propor para a sucessão do vice-presidente? Quais foram os príncipes hereditários eleitos por mérito e não por sorte e que, em lugar de ficarem presos à inércia e à igno-rância, puseram-se à cabeça da administração? Seriam, sem dúvida, monarcas mais esclarecidos e fariam a fe-licidade dos povos. Sim, Legisladores, a monarquia que governa a terra obteve seus títulos de aprovação na herança que a fez estável e na unidade que a fez forte. Por isso, ainda que um príncipe soberano seja um menino mimado, enclausurado em seu palácio, educado pela adulação e conduzido por todas as paixões, esse príncipe, a quem me atreveria a chamar de “a ironia do homem”, manda sobre o gênero humano porque conserva a ordem das coisas e a subordinação de seus cidadãos, com um poder firme e uma ação constante. Considerai, Legisladores, que tais grandes vantagens se reúnem no presidente vitalício e no vice-presidente hereditário.

O Poder Judiciário que proponho goza de uma independência absoluta: em nenhuma parte há tanta. O povo apresenta os candidatos e o Legislativo escolhe os indivíduos que irão compor os tribunais. Se o Poder Judiciá-rio não emanar de tal origem, é impossível que conserve, em toda sua pureza, a salvaguarda dos direitos indi-viduais. Esses direitos, Legisladores, são os que constituem a liberdade, a igualdade, a segurança e todas as ga-rantias da ordem social. A verdadeira constituição liberal está nos códigos civis e criminais e a mais terrível ti-rania é exercida pelos tribunais, pelo espantoso instrumento das leis. De ordinário, o Executivo não é mais do que o depositário da coisa pública, mas os tribunais são os árbitros das próprias coisas — das coisas dos indiví-duos. O Poder Judiciário contém a medida do bem e do mal dos cidadãos, e se há liberdade, se há justiça na República, estas são distribuídas por esse poder. Pouco importa às vezes a organização política, contanto que a civil seja perfeita, que as leis se cumpram religiosamente e sejam consideradas inexoráveis como o destino.

Era de se esperar, conforme as ideias do dia, que proibíssemos o uso da tortura, das confissões e que abreviás-semos a prolongação dos pleitos jurídicos em um intricado labirinto de recursos.

O território da República se governa por prefeitos, governadores, corregedores, juízes de paz e administra-dores regionais (alcaides). Não consegui detalhar o regime interior e as atribuições de tais jurisdições; é meu dever, entretanto, recomendar ao Congresso os regulamentos concernentes ao serviço dos departamentos e províncias. Tendes presente, Legisladores, que as nações se compõem de cidades e de aldeias, e que é do bem-estar destas que se forma a felicidade do Estado. Nunca prestareis demasiado vossa atenção ao bom regime dos departamentos. Este ponto é prioritário na ciência legislativa e, não obstante, é fartamente desdenhado.

Dividi a força armada em quatro partes: exército de linha, esquadra, milícia nacional e defesa militar. O destino do exército é guarnecer a fronteira. Deus nos preserve de que volte suas armas contra os cidadãos! Basta a milícia nacional para conservar a ordem interna. A Bolívia não possui grandes costas e, por isso mesmo, é inútil a marinha: devemos, apesar disso, obter algum dia umas e outras. Por todos os aspectos, a defesa mi-litar é preferível que a de guardas: um serviço semelhante é mais imoral que supérfluo, portanto, interessa à República guarnecer suas fronteiras com tropas de linha e tropas de defesa contra a guerra da fraude.

Pensei que a Constituição da Bolívia deveria se reformar por períodos, segundo exige o movimento do mundo moral. Os trâmites da reforma serão assinalados nos termos que julguei mais próprios no caso.

A responsabilidade dos funcionários se apresenta na Constituição Boliviana do modo mais efetivo. Sem responsabilidade, sem repressão, o Estado é um caos. Atrevo-me a pedir encarecidamente aos Legisladores para

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ditarem leis fortes e determinantes sobre esta importante matéria. Todos falam de responsabilidade, mas ela fica nos lábios. Não há responsabilidade, Legisladores: os magistrados, juízes e funcionários abusam de suas atribuições porque não se contêm com rigor os agentes da administração, sendo, entretanto, os cidadãos as vítimas deste abuso. Eu recomendaria uma lei que prescrevesse um método de responsabilidade anual para cada funcionário.

Foram estabelecidas as garantias mais perfeitas: a liberdade civil é a verdadeira liberdade; as demais são nomi-nais ou de pouca influência no que diz respeito aos cidadãos. Foi garantida a segurança pessoal, que é a finalida-de da sociedade e da qual emanam as demais. Quanto à propriedade, ela depende do código civil, que vossa sabedoria deveria compor logo para a felicidade dos vossos concidadãos. Conservei intacta a lei das leis — a igualdade: sem ela perecem todas as garantias, todos os direitos. A ela devemos fazer os sacrifícios. Aos seus pés pusemos, coberta de humilhação, a infame escravidão.

Legisladores, a infração de todas as leis é a escravidão. A lei que a conservasse seria a mais sacrílega. Que direitos se alegaria para a sua conservação? Vejo este delito por todos os aspectos e não me convenço de que haja um só Boliviano tão depravado que pretenda legitimar a mais insigne violação da dignidade humana. Um homem possuído por outro! Um homem propriedade! Uma imagem de Deus submetida ao jugo como o bru-to! Dize-nos, onde estão os títulos dos usurpadores do homem? A Guiné não os mandou, pois a África devas-tada pelo fratricídio não oferece mais que crimes. Transplantadas para cá estas relíquias daquelas tribos africa-nas, que lei ou poder será capaz de sancionar o domínio sobre essas vítimas? Transmitir, prorrogar, eternizar tal crime mesclado de suplícios é o ultraje mais chocante. Fundar um princípio de possessão sobre a mais feroz delinquência não poderia se conceber sem o transtorno do dever. Nada pode romper o santo dogma da igual-dade. E haverá escravidão onde reina a igualdade? Tais contradições constituiriam melhor o vitupério de nos-sa razão do que o de nossa justiça: seríamos reputados mais como dementes do que como usurpadores.

Se não houvera um Deus Protetor da inocência e da liberdade, preferiria a sorte de um leão generoso, do-minando nos desertos e nos bosques, à de um cativo ao serviço de um infame tirano que, cúmplice de seus crimes, provocara a cólera do Céu. Mas não: Deus destinou o homem à liberdade. Ele o protege para que exerça a celestial função do arbítrio.

Legisladores! Farei menção a um artigo que, segundo minha consciência, tive que omitir. Em uma consti-tuição política não se deve prescrever uma crença religiosa porque, segundo as melhores doutrinas sobre as leis fundamentais, estas são as garantias dos direitos políticos e civis, e como a religião não toca em nenhum desses direitos, é de natureza indefinível para a ordem social e pertence à moral intelectual. A religião governa o homem em sua casa, no gabinete, no interior de si mesmo: somente ela tem o direito de examinar sua consci-ência íntima. As leis, pelo contrário, focam a superfície das coisas: não governam senão fora da casa do cidadão. Aplicando tais considerações, poderá um Estado reger a consciência dos súditos, velar sobre o cumprimento das leis religiosas e dar o prêmio ou o castigo quando os tribunais estão no Céu e quando Deus é o juiz? Ape-nas a inquisição seria capaz de substituí-los neste mundo. Voltará a inquisição com suas teias incendiárias?

A religião é a lei da consciência. Toda lei sobre ela a anula, porque impondo a necessidade do dever, tira o mérito da fé que é a base da religião. Os preceitos e os dogmas sagrados são úteis, luminosos e de evidência metafísica. Todos devemos professá-los, mas este dever é moral, não político.

Por outra parte, quais são neste mundo os direitos do homem perante a religião? Eles estão no Céu, pois lá está o tribunal que recompensa o mérito e faz justiça segundo o código que ditou o seu Legislador. Sendo tudo isto de jurisdição divina, parece-me, à primeira vista, sacrilégio e profano mesclar nossas ordenanças com os mandamentos do Senhor. Prescrever, pois, a religião, não compete ao Legislativo, porque este deve assinalar apenas as infrações das leis para que não sejam meros conselhos. Não havendo castigos temporais, nem juízes que os apliquem, a lei deixa de ser lei.

O desenvolvimento moral do homem é a primeira intenção do Legislador: logo que este desenvolvimento é conquistado, o homem apoia sua moral nas verdades reveladas e professa de fato a religião, que é tanto mais eficaz quanto o que foi adquirido o foi por investigações próprias. Além do mais, os pais de família não podem descuidar do dever religioso perante seus filhos. Os pastores espirituais estão obrigados a ensinar a ciência do

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Céu: o exemplo dos verdadeiros discípulos de Jesus é o mestre mais eloquente de sua divina moral; mas a moral não se impõe, tampouco o mestre, nem a força deve ser empregada para dar conselhos. Deus e seus ministros são as autoridades da religião que trabalham por meios e órgãos exclusivamente espirituais, mas este, de forma alguma, é o caso do Corpo Nacional, que dirige o poder público com objetivos puramente temporais.

Legisladores, ao ver a já proclamada nova Nação Boliviana, quantas generosas e sublimes considerações não deverão elevar vossas almas! A entrada de um novo estado na sociedade dos demais é um motivo de júbilo para o gênero humano, porque aumenta a grande família dos povos. Qual, pois, deve ser o de seus fundadores! — e o meu! Vendo-me igualado com o mais célebre dos antigos — o Pai da Cidade Eterna! Esta glória pertence de direito aos Criadores das Nações que, sendo seus primeiros benfeitores, deviam receber recompensas imor-tais; mas a minha, além de imortal, tem o mérito de ser gratuita, por não merecida. Onde está a República? Onde está a cidade que eu fundei? Vossa generosidade, dedicando a mim uma nação, adiantou-se a todos os meus serviços e é infinitamente superior a quantos bens podem vós, homens, fazer.

Meu desespero aumenta ao contemplar a imensidão de vosso prêmio, porque depois de haver esgotado os talentos, as virtudes e o gênio mesmo do maior dos heróis, todavia, seria eu indigno de merecer o nome que haveis querido dar, o meu! Falarei de gratidão quando ela não conseguirá jamais expressar nem debilmente o que sinto por vossa bondade que, como a de Deus, ultrapassa todos os limites! Sim, somente Deus teria o po-der para chamar esta terra de Bolívia. Que quer dizer Bolívia? Um amor desenfreado pela liberdade que, ao recebê-la, vosso arroubo não viu nada que fosse igual ao seu valor. Não achando vossa embriaguez uma de-monstração adequada à veemência de seus sentimentos, tirou vosso nome e deu o meu a todas as vossas gera-ções. Isso, que é inaudito na história dos séculos, o é ainda mais na dos desprendimentos sublimes. Tal aspec-to mostrará aos tempos que estão no pensamento do Eterno o que ansiáveis em relação à posse de vossos di-reitos, que é a capacidade de exercer as virtudes políticas, de adquirir os talentos luminosos e o gozo de serem homens. Este aspecto, repito, provará que vós sois dignos de obter a grande benção do Céu — a Soberania do Povo —, única autoridade legítima das nações.

Legisladores, felizes vós que presidis os destinos de uma República que nasceu coroada com os louros de Ayacucho e que deve perpetuar sua feliz existência sob as leis ditadas por vossa sabedoria, na calma que sucedeu à tempestade da guerra.

Lima, 25 de maio de 1826.Simón Bolívar

Fonte | MONDOLFI, Edgardo (Org.). Bolívar, ideas de un espíritu visionario. Caracas: Biblioteca del Pensamiento Venezolano, 1990. p. 78-89. Disponível em: <www.geocities.com/Athens/Acropolis/7609/bolivar/bolivia1826.html>.

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1890 | gioVAnni roSSi

Canção da Colônia Cecília*

Como consequência das guerras de unificação, a Itália passou a sofrer uma grave série de conflitos sociais (que foram denominados

questione sociale) e que foi resolvida, em grande medida, com a imigração para países como o Brasil, que, por sua vez, tinha o objetivo

de povoar o seu território embranquecendo sua população.

numa viagem a Milão, em 1888, Dom pedro II conheceu giovanni rossi (1856-1943), um anarquista italiano, conhecido por um livro

que propunha a organização de uma comunidade utópica anarquista na América do sul. o caráter humanista e os valores libertários do

coletivismo, como a inexistência de propriedade privada, e o amor livre, interessaram o Imperador do Brasil, que acabou convidando rossi para

testar a ideia no paraná. em 1890, cerca de 150 anarquistas saíram de gênova, entoando este hino, com destino ao Brasil, a fim de pôr

em prática a ideia da Colônia Cecília, primeira experiência anarquista no país. A Colônia Cecília é um dos exemplos mais conhecidos entre

as várias experiências utópicas que foram desenvolvidas em ambas as Américas por anarquistas e por socialistas de várias correntes: fourieristas,

owenistas, entre outros. embora nenhuma delas tenha prosperado, representaram a concretização de ideias alternativas, comprometidas com a mudança da sociedade pelo exemplo prático e não pela ação

revolucionária ou pela luta política. (n.F. e M.B.)

o CAnto DA FloreStA

O eco das florestas

das cidades ensurdecidas por nosso grito

ora de vingança e ora de morte

libertâmo-nos do inimigo.

Atentos companheiros do ânimo forte

a nós não nos perturba a dor e a morte

alegrem-se companheiros, faremos a união

e viva e viva a revolução.

Deixo-te, Itália, terra de ladrões

com meus companheiros vou em exílio

e todos unidos a trabalhar

e formaremos a colônia social.

E você, burguês, não paga o preço

tudo cai, rei, pátria e Deus

e a anarquia forte e gloriosa

e vitoriosa triunfará.

Sim, sim, nossa causa triunfará

e nós gozaremos dos direitos sociais,

seremos livres, seremos iguais,

a nossa ideia triunfará.

20 de fevereiro de 1890Giovanni Rossi

Fonte | Disponível em: <www.ecn.org/contropotere/canti_anarchici.htm>.

* Originalmente intitulada Il canto della floresta (O canto da floresta), a canção ficou conhecida pelo nome de Colônia Cecília.

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1891 | JoSé mArtí

nossa América*

A Independência de Cuba significou tanto um golpe fundamental na era colonial na América ao sul do rio grande, quanto o

início do Imperialismo. José Martí (1853-1895), a liderança mais conhecida da luta pela independência de Cuba, chamou a atenção

para a possibilidade desse fenômeno. exilado em nova Iorque e representando nos euA, como cônsul, a Argentina, o uruguai e o

paraguai, conheceu em profundidade a política dos estados unidos em relação ao que chamava de Nuestra America. Martí, um dos

intelectuais mais reconhecidos do período, difundiu suas ideias fora de Cuba trabalhando como correspondente para vários jornais do

resto do continente.

no texto a seguir, José Martí estuda as possibilidades de uma política continental independente, e a necessidade de unificar posições entre

os diversos países americanos de forma a construir uma unidade para fazer frente ao crescimento da influência dos estados unidos

e o apetite das potências europeias na região. Autor da poesia que inspirou a “guantanamera”, morreu na primeira batalha da última

guerra pela Independência do seu país (1895-1898). Foi poeta, jornalista e ensaísta. tornou-se um ícone da luta anti-imperialista, mas

sua vasta obra ainda não é muito conhecida. (n.F. e M.B.)

Crê o aldeão vaidoso que o mundo inteiro é sua aldeia, e desde que ele seja o prefeito, ou que mate o rival que lhe tirou a noiva, ou que cresçam na sua região as suas economias, já considera boa a ordem universal sem saber dos gigantes que levam sete léguas nas botas e podem lhe colocar a bota em cima; nem da briga dos co-metas no Céu que vão pelo ar, adormecidos, engolindo mundos. O que reste de aldeia na América há de despertar. Estes tempos não são para se deitar com o lenço na cabeça, senão com as armas na almofada, como os varões de Juan de Castellanos: as armas do juízo que vencem as outras. Trincheiras de ideias valem mais que trincheiras de pedras.

Não há proa que talhe uma nuvem de ideias. Uma ideia enérgica, levantada a tempo ante o mundo, tal como a bandeira mística do juízo final, para um esquadrão de encouraçados. Os povos que não se conhecem devem apressar-se para se conhecerem como aqueles que vão lutar juntos. O que ensinam os punhos, como irmãos ciu-mentos, que querem os dois a mesma terra, ou o da casa pequena que tem inveja do da casa melhor, devem se acertar de modo que sejam uma as duas mãos. Os que, sob o amparo de uma tradição criminosa, cercaram, com o sabre pintado do sangue de suas próprias veias, a terra do irmão vencido, do irmão castigado, para além de suas culpas, se não querem que os chame o povo de ladrões, devolvam suas terras ao irmão. As dívidas de honra, não as cobra o honrado em dinheiro, mas pela bofetada. Já não podemos ser o povo de folhas, que vive no ar, com a copa carregada de flor, estalando e zumbindo, segundo lhe acaricie o capricho da luz ou a golpeiem e derrubem as tempestades: as árvores colocar-se-ão em fila para que não passe o gigante das setes léguas! Chegou a hora da verificação e da marcha unida e devemos andar num grupo unido, como a prata das raízes dos Andes.

Aos que nasceram prematuros somente lhes faltará o valor. Os que não têm fé na sua terra são homens pre-maturos. Porque lhes falta o valor, negam-no aos demais. Não alcançam a árvore difícil com o braço fraco, o braço de unhas pintadas e pulseira, o braço de Madri ou de Paris, e dizem que não podem alcançar a árvore. Há de se carregar o barco com estes insetos daninhos que roem os ossos da pátria que os nutre. Se são pari-sienses ou madrilenses, vão ao Prado, com seus faróis, ou vão a Tortoni, com seus sorvetes. Estes filhos de carpinteiros que se envergonham porque seus pais são carpinteiros! Estes nascidos na América que se envergo-nham porque levam o semblante indígena da mãe que os criou e a renegam — safados! —, que renegam também a mãe doente e a deixam só no leito das doenças! Pois quem é o homem de verdade? Aquele que fica com a mãe, a lhe curar a doença ou aquele que a coloca para trabalhar onde não a vejam e vive de seu susten-

* No original, Nuestra América.

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to nas terras apodrecidas com o verme de gravata, maldizendo o seio que o carregou e passeando com o letrei-ro de traidor nas costas da casaca de papel? Estes filhos de nossa América que hão de se salvar com seus índios vão de menos para mais; estes desertores que pedem fuzil nos exércitos da América do Norte, que afoga em sangue seus índios, vão de mais para menos! Estes delicados, que são homens e não querem fazer o trabalho de homens! Pois o Washington que fez esta terra para eles, foi viver com os ingleses, viver com os ingleses nos anos em que os via voltarem-se contra sua própria terra? Estes “inacreditáveis” da honra, que a arrastam pelo solo estrangeiro, como os incríveis da Revolução Francesa, dançando e remoendo-se, arrastavam os erres!

Em que pátria pode ter um homem mais orgulho que nas nossas repúblicas dolorosas da América, levantadas entre as massas mudas de índios ao ruído da briga do livro contra o castiçal, sobre os braços ensaguentados de uma centena de apóstolos? De fatores tão decompostos, jamais, em menor tempo histórico, foram criadas na-ções tão adiantadas e compactas. Acredita o soberbo que a terra foi feita para lhe servir de pedestal, porque tem a pena fácil ou a palavra colorida e acusa de incapaz e irremediável a sua república nativa, porque não lhe dão suas florestas novas maneira constante de ir pelo mundo como um cacique famoso, guiando éguas da Pérsia e derramando champanha. A incapacidade não está no país nascente que pede formas adaptadas a si e grandeza útil, senão naqueles que querem reger os povos originais, de composição singular e violenta, com leis herdadas de quatro séculos de prática livre nos Estados Unidos, de dezenove séculos de monarquia na França. Com um decreto de Hamilton não se detém a marcha do potro do llanero.1 Com uma frase de Sieyès não se estanca o sangue coalhado da raça indígena. Ao que existe, ali onde se governa, há de se prestar atenção para governar bem; e o bom governante da América não é o que sabe como se governa o alemão, o francês, senão aquele que sabe com quais elementos é feito seu país e como pode guiá-lo em conjunto, para chegar, através de métodos e instituições nascidas do mesmo país, àquele estado desejável no qual cada homem se conhece e trabalha e desfrutam todos da abundância que a natureza oferece para todo este povo, que a fecunda com seu trabalho e a defende com sua vida. A forma de governo deve ser compatível com a constituição própria do país. O go-verno não é mais do que o equilíbrio dos elementos naturais do país.

Por isso, o livro importado foi vencido na América pelo homem natural. Os homens naturais venceram os letrados artificiais. O mestiço autóctone venceu o criollo exótico. Não há batalha entre a civilização e a barbá-rie, senão entre a falsa erudição e a natureza. O homem natural é bom e acata e premia a inteligência superior, desde que esta não se valha de sua submissão para prejudicá-lo, ou ofendê-lo, desprezando-o — coisa que não perdoa o homem natural, disposto a recuperar pela força o respeito de quem lhe fere a suscetibilidade ou lhe prejudica o interesse. Por esta conformidade com os elementos naturais desdenhados, subiram ao poder os tiranos da América e caíram quando os traíram. As repúblicas purgaram nas tiranias sua incapacidade de co-nhecer os elementos verdadeiros do país, derivar deles a forma de governo e governar com eles. Governante, num povo novo, quer dizer criador.

Em povos compostos por elementos cultos e incultos, os incultos governarão por seu hábito de agredir e resolver as dúvidas com suas mãos, ali onde os cultos não aprendem a arte do governo. A massa inculta é pre-guiçosa e tímida com as coisas da inteligência e seu desejo é que a governem bem. Entretanto, se o governo a prejudica, derruba-o e governa ela mesma. Como hão de sair das universidades os governantes, se não há universidade na América, lugar onde se ensina o rudimentar da arte do governo que é a análise dos elementos peculiares dos povos da América? A adivinhar partem os jovens para o mundo, com óculos ianques ou fran-ceses, e aspiram dirigir um povo que não conhecem. Na carreira da política deveria ser negada a entrada da-queles que desconhecem os rudimentos da política. O prêmio dos concursos não deve ser para a melhor ode, senão para o melhor estudo dos fatores do país em que se vive. No jornal, na cátedra, na academia, deve levar-se adiante o estudo das condições reais do país. Conhecê-los basta, sem vendas nem rodeios, porque o que põe de lado, por vontade ou esquecimento, uma parte da verdade, no fim das contas, cai com a verdade que falta-va, que cresce com a negligência e derruba o que se levantava sem ela. Resolver o problema depois de conhe-

1 Llaneros são os vaqueiros das regiões da Venezuela e da Colômbia (N. do T.).

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cer seus elementos é mais fácil do que resolver o problema sem conhecê-los. Vem o homem natural, indigna-do e forte, e derruba a justiça acumulada dos livros porque não se administra de acordo com as necessidades patentes do país. Conhecer é resolver. Conhecer o país e governá-lo, conforme o conhecimento, é a única maneira de livrá-lo das tiranias. A universidade europeia deve ceder lugar para a universidade americana. A história da América, dos Incas para cá, deve ser ensinada detalhadamente, ainda que não se ensine a dos arcon-tes da Grécia. Nossa Grécia é preferível à Grécia que não é nossa. É-nos mais necessária. Os políticos nacionais devem substituir os políticos exóticos. Enxerte-se em nossas repúblicas o mundo, mas o tronco deve ser o de nossas repúblicas. E cale o pedante vencido; que não há pátria na qual possa ter o homem mais orgulho que em nossas dolorosas repúblicas americanas.

Com os pés no rosário, a cabeça branca e o corpo pintado de índio e criollo, viemos, intrépidos, ao mundo das nações. Com o estandarte da Virgem, saímos à conquista da liberdade. Um padre, alguns tenentes e uma mulher levantam no México a república sobre os ombros dos índios. Um cônego espanhol, à sombra de sua capa, ensina a liberdade francesa a alguns bacharéis magníficos que colocam como chefe da América Central contra a Espanha o general da própria Espanha. Com os hábitos monárquicos e o Sol no peito, levantaram-se os povos: os venezuelanos pelo norte e os argentinos pelo sul. Quando os dois heróis se chocaram e o conti-nente ia tremer, um, que não foi o menor, voltou suas rédeas. E como o heroísmo na paz é mais escasso porque é menos glorioso que o da guerra; como ao homem é mais fácil morrer com honra do que pensar com ordem; como governar com os sentimentos exaltados e unânimes é mais factível que ordenar, depois da luta, os pen-samentos diversos, arrogantes, exóticos ou ambiciosos; como os poderes articulados na acometida épica des-gastavam-se sob a cautela felina da espécie e o peso do real, o edifício que haviam levantado nas regiões rudes e singulares de nossa América mestiça, nos povos de perna desnuda e casaco de Paris, a bandeira dos povos nutridos de seiva governante na prática contínua da razão e da liberdade; como a constituição hierárquica das colônias resistia à organização democrática da República; ou as capitais de gravatinha deixavam no saguão o campo de bota e potro; ou os redentores bibliógenos não entenderam que era preciso governar a revolução que triunfou com a alma da terra, mas não contra ela e nem sem ela; começou a padecer a América e padece da fatiga da acomodação entre os elementos discordantes e hostis que herdou de um colonizador despótico e mal-intencionado, e das ideias e formas importadas que vêm retardando, pela falta de realidade local, o governo lógico. O continente desconjuntado durante três séculos por um poder que negava o direito do homem ao exercício de sua razão, desatendendo ou desprezando os ignorantes que o haviam ajudado a se redimir, deu início a um governo que tinha por base a razão; mas a razão de todos nas coisas de todos e não a razão univer-sitária de uns sobre a razão campestre dos outros. O problema da independência não era a mudança de formas, mas, sim, a mudança de espírito.

Com os oprimidos havia de ser feita uma causa comum para consolidar o sistema oposto aos interesses e hábitos de poder dos opressores. O tigre, espantado com o clarão, volta à noite ao lugar onde se encontra a presa. Morre lançando chamas pelos olhos e com as garras ao ar. Não se ouve ele chegar, a não ser que venha com as garras de veludo. Quando a presa desperta tem o tigre em cima dela. A colônia continuou vivendo na república; e nossa América está se salvando de seus grandes erros — da soberba das cidades capitais, do triun-fo cego dos camponeses desdenhados, da importação excessiva de ideias e fórmulas alheias, do desdém iníquo e apolítico da raça aborígene —, pela virtude superior, adubada com sangue necessário da república que luta contra a colônia. O tigre espera, atrás de cada árvore, encolhido em cada esquina. Morrerá, com as garras ao ar, lançando chamas pelos olhos.

Entretanto, “estes países têm salvação”, como anunciou Rivadavia, o argentino, o que pecou com a fineza em tempos crus; o facão não vai ter bainha de seda, nem o país que ganhou com a lança pode deixar a lança para trás porque se irrita e se coloca na porta do Congresso de Iturbide “para que lhe façam imperador o loiro”. Estes países se salvarão porque com o gênio da moderação que parece imperar, pela harmonia serena da natureza, no continente da luz, e pelo influxo da leitura crítica que sucedeu na Europa à leitura tateante e ao falanstério no qual se empapou a geração anterior, está nascendo na América, nestes tempos reais, o ho-mem real.

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Éramos uma visão, com o peito de atleta, as mãos de janota e o rosto de criança. Éramos uma máscara, com as calças da Inglaterra, o colete francês, o jaquetão da América do Norte e o gorro da Espanha. O índio, mudo, dava voltas ao nosso redor e ia ao monte, ao topo do monte, para batizar seus filhos. O negro, atento, cantava na noite a música de seu coração, sozinho e desconhecido, entre as ondas e as feras. O camponês, o criador, se revoltava, cego de indignação, contra a cidade desdenhosa, contra sua criatura. Éramos dragonas e togas, em países que vinham ao mundo com a alpargata nos pés e o elástico indígena na cabeça. O gênio teria sido o irmanar, com a caridade do coração e o atrevimento dos fundadores, o elástico indígena e a toga; em libertar o índio; ir dando espaço suficiente ao negro; ajustar a liberdade ao corpo dos que se levantaram e venceram por ela. Sobrou-nos o ouvidor, o general, o letrado e o prebendado. A juventude angelical, como dos braços de um polvo, lançava ao Céu, para cair com glória estéril, a cabeça, coroada de nuvens. O povo natural, com o impulso do instinto, ajuntava, cego de triunfo, os bastões de ouro. Nem o livro europeu, nem o livro ianque, davam a chave para o enigma hispano-americano. Provou-se o ódio e os países a cada ano estavam mais por baixo. Cansados do ódio inútil da resistência do livro contra a lança, da razão contra o castiçal, da cidade con-tra o campo, do império impossível das castas urbanas divididas sobre a nação natural, tempestuosa e inerte, começa, como se sem saber, a provar o amor. Colocam-se de pé os povos e se saúdam. “Como somos?”, se perguntam; e uns e outros vão dizendo como são. Quando aparecer em Cojímar um problema, não vão buscar a solução em Dantzig. As levitas são, todavia, da França, mas o pensamento começa a ser da América. Os jo-vens da América arregaçam as mangas, colocam as mãos na massa e a levantam com o fermento do suor. En-tendem que se imita em demasiado e que a salvação está em criar. Criar é a palavra-chave desta geração! O vinho é de banana; e se sai ácido, é nosso vinho! Entende-se que as formas de governo de um país devem se acomodar com seus elementos naturais; que as ideias absolutas, para não cair em um erro de forma, devem ser colocadas em formas relativas; que a liberdade, para ser viável, tem de ser sincera e plena; que se a república não abre os braços para todos e avança com todos, morre a república. O tigre de dentro se lança pela fenda, assim como o tigre de fora. O general segura a marcha da cavalaria no passo dos infantes. Ou são deixados na retaguarda os infantes e a cavalaria envolve o inimigo. Estratégia é política. Os povos devem viver se critican-do porque a crítica é a saúde; contudo, a crítica deve ser feita com apenas um peito e com uma só mente. Devemos descer até os infelizes e levantá-los nos braços! Com o fogo do coração, devemos degelar a América coagulada! Levantar, agitando e empurrando, pelas veias, o sangue natural do país! De pé, com os olhos ale-gres dos trabalhadores, se saúdam de um povo a outro, os novos homens americanos. Surgem os estadistas naturais do estudo direto da natureza. Leem para aplicar, mas não para copiar. Os economistas estudam a di-ficuldade em suas origens. Os oradores começam a ser sóbrios. Os dramaturgos trazem os personagens nativos para a cena. As academias discutem temas viáveis. A poesia corta a cabeleira zorrilesca e pendura na árvore gloriosa o colete vermelho. A prosa, cintilante e peneirada, segue carregada de ideias. Os governantes, nas repúblicas de índios, aprendem sobre o índio.

De todos os perigos, a América vai se salvando. Sobre algumas repúblicas está dormindo o polvo. Outras, pela lei do equilíbrio, se lançam a pé no mar, para recuperar, com uma pressa louca e sublime, os séculos per-didos. Outras, esquecendo que Juárez passeava numa carruagem de mulas, colocam uma carruagem de vento e, de cocheiro, uma pompa de sabão; o luxo venenoso, inimigo da liberdade, apodrece o homem leviano e abre a porta para o estrangeiro. Outras purificam, com o espírito épico da independência ameaçada, o caráter viril. Outras criam na guerra entre um rapaz contra o vizinho a soldadesca que pode devorá-las. Entretanto, outro perigo corre, por acaso, nossa América, que não vem de si, mas da diferença de origens, métodos e in-teresses entre os dois fatores continentais e está próxima a hora em que devem se aproximar, demandando relações íntimas, com um povo empreendedor e pujante que a desconhece e a desdenha. E como os povos viris, que se fizeram a si próprios, com a escopeta e com a lei, amam, e somente amam, os povos viris; como a hora do desenfreio e a ambição, de que, por ventura, se liberte pelo predomínio do mais puro de seu sangue, a América do Norte ou, no que puderam lançá-la suas massas vingativas e sórdidas, a tradição da conquista e o interesse de um caudilho hábil, não está tão próxima ainda dos olhos do mais espantadiço, que não haja tempo para a prova de altivez, contínua e discreta, com que se pudesse encará-la e desviá-la; como seu decoro

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de república, coloca à América do Norte, ante os povos atentos do Universo, um freio que não irá tirar a pro-vocação pueril ou a arrogância ostentosa ou a discórdia parricida de nossa América, é dever urgente de nossa América ensinar a si mesma como é, una em alma e intento, vencedora veloz de um passado sufocante, man-chada somente com sangue de adubo arrancado de nossas mãos, da briga com as ruínas, e das veias que nos deixaram picadas nossos donos. O desprezo do vizinho formidável, que não a conhece, é o perigo maior de nossa América; e urge, porque o dia da visita está próximo, que o vizinho a conheça, a conheça logo, para que não a despreze. Por respeito, logo que a conhecesse, tiraria dela as mãos. Há de se ter fé no melhor do homem e desconfiar do pior dele. Há de se dar oportunidade para o melhor para que se revele e prevaleça sobre o pior. Caso contrário, o pior prevalece. Os povos devem ter um lugar de fuzilamentos para aqueles que os incitem a ódios inúteis; e outro para quem não lhes diga a tempo a verdade.

Não há ódio de raças porque não há raças. Os pensadores raquíticos, os pensadores de lâmpadas, tecem e reaquecem as raças de livraria, que o vilarejo justo e o observador cordial buscam em vão na justiça da natu-reza onde, por sua vez, se ressalta no amor vitorioso e no apetite turbulento, a identidade universal do homem. A alma emana, igual e eterna, dos corpos diversos em formas e cores. Peca contra a Humanidade o que fo-mente e propague a oposição e o ódio das raças. Contudo, na massa dos povos se condensam, na proximidade com outros povos diversos, características peculiares e ativas, de ideias e hábitos, de ampliação e aquisição, de vaidade e avareza, que o estado latente de preocupações nacionais puderam, em um período de desordem in-terna ou de precipitação do caráter acumulado do país, virar uma ameaça grave para as terras vizinhas, isoladas e débeis, que o país forte declara perecedoras e inferiores. Pensar é servir. Nem há de se supor, por antipatia provinciana, uma maldade congênita e fatal do povo loiro do continente porque não fala nosso idioma, nem veem a casa como nós a vemos, nem se parecem conosco com suas mazelas políticas que são diferentes das nossas; nem têm muitos homens enfermos e triguenhos, nem olhar caridoso, desde sua eminência ainda mal segura, em relação àqueles que, com menos favor da História, sobem a passos heroicos a via das repúblicas; nem hão de se esconder os dados patentes de um problema que pode ser resolvido, para a paz dos séculos, com o estudo oportuno e a união tácita e urgente da alma continental. Porque já soa o hino unânime; a geração atual leva nas costas, pelo caminho adubado por seus pais sublimes, a América trabalhadora; do Bravo2 a Ma-galhães3, sentando no dorso do condor, o Grande Semí4 espargiu, pelas nações românticas do continente e pelas ilhas dolorosas do mar, a semente da América nova!

Fonte | Revista Ilustrada de Nova York, 10 de janeiro de 1891. El Partido Liberal, México, 30 de janeiro de 1891. Disponível em: <www.analitica.com/bitblioteca/jmarti/nuestra_america.asp>.

2 Referência ao Rio Bravo, situado na fronteira entre o México e os EUA. Também chamado de Rio Grande (N. do T.).3 Referência ao estreito de Magalhães, no extremo sul da Argentina e do Chile (N. do T.).4 O Gran Semí é uma figura mitológica, pertencente à gênese da tribo dos tamanacos. De acordo com estas escrituras, estudadas por Arís-tides Rojas, foi graças à inspiração, ou ao conselho, do Pai Amalivaca e sua mulher, únicos sobreviventes do dilúvio, que se salvou o gênero humano. O casal saiu do dilúvio lançando para trás sementes de moriche — a palmeira venezuelana. Para cada semente, nasceu um casal, mãe e pai dos que hoje povoam a terra. Ou seja, segundo esta tradição, nasceram juntos o homem e a mulher, o que deixou Martí encantado (N. do T.).

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1911 | emiliAno zApAtA

programa de Ayala*

A revolução que começou em 1910 fez com que o México se tornasse um país moderno. ela teve múltiplas fases e projetos políticos em

disputa, alguns com um sentido apenas regional, enquanto outros pretendiam construir no país um estado centralizado. entre estes

projetos, um deles adquiriu importância maior: o liderado por emiliano Zapata (1879-1919). embora a proposta de Zapata estivesse

comprometida aparentemente com demandas regionais e fosse considerada no México por muitos como uma relíquia do passado

indígena, encarnava os anseios dos camponeses do mundo inteiro por terra e liberdade.

o programa de Ayala, localidade onde foi divulgado, é tanto um posicionamento político ante o governo de Francisco I Madero, quanto uma declaração dos princípios que deveriam nortear as

atividades dos camponeses. o universo de Zapata era o estado de Morelos, e as suas alianças, como a realizada com pancho Villa,

assumiam um caráter defensivo, sem a perspectiva de exportar ideias para outras regiões. A traição que levou Zapata à morte obrigou seus seguidores a redefinir práticas, mas não os objetivos. Zapata tornou-

se um símbolo para as lutas dos camponeses do México e do resto da América ao sul do rio grande. (n.F. e M.B.)

Programa libertador dos filhos do estado de Morelos, afiliados ao Exército insurgente, que defende o cumpri-mento do Programa de São Luís, com as reformas que acreditamos conveniente aumentar em benefício da pátria mexicana.

Nós que assinamos este documento, constituídos em Junta Revolucionária para sustentar e levar a cabo as promessas feitas na Revolução de 20 de novembro de 1910, passado próximo, declaramos solenemente, ante a face do mundo civilizado que nos julga e ante a nação a que pertencemos e amamos, os propósitos que formu-lamos para acabar com a tirania que nos oprime e redimir a pátria das ditaduras que nos são impostas, os quais ficam determinados no seguinte programa:

1o Tendo em consideração que o povo mexicano, comandado por d. Francisco I Madero, teve de derramar seu sangue para reconquistar liberdades e reivindicar direitos violados e não para que um homem se apropriasse do poder, violando os sagrados princípios que jurou defender sob o lema do “Sufrágio efetivo e da não reeleição”, ultrajando, assim, a fé, a causa, a justiça e as liberdades do povo; tendo em consideração que esse homem a que nos referimos é d. Francisco I Madero, o mesmo que iniciou a precipitada revolução, o que impôs como nor-ma governamental sua vontade e influência sobre o governo provisório do ex-presidente da República licen-ciado Franciso L. de la Barra, causando, com este feito, reiterados derramamentos de sangue e múltiplas des-graças à pátria de uma maneira solerte e ridícula, não possuindo outros objetivos que não o de satisfazer suas ambições pessoais, seus desmedidos instintos de tirano e seu profundo desacato ao cumprimento das leis pre-existentes emanadas do imortal Código de 571 escrito com o sangue dos revolucionários de Ayutla.

Tendo em conta que o chamado chefe da Revolução Libertadora do México, d. Francisco I Madero, por falta de integridade e debilidade total, não levou a um final feliz a Revolução que gloriosamente iniciou com o apoio de Deus e do povo; haja vista que deixou de pé a maioria dos poderes governamentais e elementos corrompidos de opressão do governo ditatorial de Porfírio Diaz, que não são, nem podem ser, de maneira alguma, a representação da soberania nacional, e que, por serem obstinados adversários nossos e dos princípios que até hoje defendemos, estão provocando o mal-estar do país e abrindo novas feridas no seio de nossa pátria

1 O Código 57 é uma referência à Constituição de 1857 (N. do T.).

* No original, Plan de Ayala.

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para lhe dar de beber seu próprio sangue; tendo também em conta que o supracitado senhor d. Francisco I Madero, atual presidente da República, trata de se esquivar do cumprimento das promessas que fez à nação no Programa de São Luís Potosí, sendo as referidas promessas postergadas aos convênios da cidade de Juárez; já anulando, perseguindo, encarcerando ou matando os elementos revolucionários que lhe ajudaram a ocupar o alto posto de presidente da República, por meio das falsas promessas e numerosas intrigas à nação.

Tendo em consideração que o tantas vezes repetido Francisco I Madero tratou de ocultar com a força bruta das baionetas e de afogar em sangue os povos que lhe pedem, solicitam ou exigem o cumprimento de suas promessas na Revolução, chamando-os de bandidos e rebeldes, condenando-os a uma guerra de extermínio, sem conceder nem outorgar nenhuma das garantias que prescrevem a razão, a justiça e a lei; tendo em consideração que o pre-sidente da República, Francisco I Madero, fez do sufrágio efetivo uma sanguinária chacota para o povo, impon-do contra a vontade do mesmo povo, na vice-presidência da República, o licenciado José María Pino Suárez, ou os governadores dos estados, designados por ele, como o chamado general Ambrosio Figueroa, carrasco e tirano do povo de Morelos; entrando num escandaloso conluio com o Partido Científico,2 de fazendeiros-feudais e caciques opressores, inimigos da Revolução proclamada por ele mesmo, a fim de forjar novas cadeias e seguir o molde de uma nova ditadura mais abjeta e mais terrível que a de Porfírio Diaz, pois tem ficado claro e patente que foi ultrajada a soberania dos estados, violadas as leis sem nenhum respeito à vida nem aos interesses do povo, como sucedeu no estado de Morelos e outros, conduzindo-nos à mais horrorosa anarquia que já registrou a his-tória contemporânea. Por estas considerações declaramos o supracitado Francisco I Madero inapto para realizar as promessas da Revolução de que foi autor, por ter traído os princípios com os quais ludibriou a vontade do povo e pôde fazer sua escalada ao poder; incapaz para governar e por não ter nenhum respeito à lei e à justiça dos povos, além de traidor da pátria por estar humilhando a sangue e a fogo os mexicanos que desejam liberdade, a fim de satisfazer os cientistas, fazendeiros e caciques que nos escravizam. Desde hoje, começamos a continuar a Revo-lução iniciada por ele, até conseguir a derrocada dos poderes ditatoriais estabelecidos.

2o Desconhece-se como chefe da Revolução o senhor Francisco I Madero e como presidente da República pelas razões anteriormente expressas, objetivando-se a derrubada deste funcionário.

3o Reconhece-se como chefe da Revolução Libertadora o comandante-general Pascual Orozco, sucessor do caudilho d. Francisco I Madero e, caso não aceite este delicado posto, será reconhecido como o chefe da Re-volução o comandante-general d. Emiliano Zapata.

4o A Junta Revolucionária do Estado de Morelos manifesta à nação, sob forma de protesto, que faz seu o Pro-grama São Luis Potosí, com as adições que continuam a seguir, em benefício dos povos oprimidos, e que se fará defensora dos princípios defendidos até vencer ou morrer.

5o A Junta Revolucionária do Estado de Morelos não admitirá transações nem arranjos enquanto não conse-guir a derrubada dos elementos ditatoriais de Porfírio Diaz e de Francisco I Madero, pois a nação está cansada de homens falsos e traidores, que fazem promessas como libertadores e, ao chegar ao poder, se esquecem delas e se transformam em tiranos.

6o Como parte adicional do Programa que invocamos, fazemos constar: que os terrenos, montes e águas, todos esses bens imóveis que os fazendeiros, cientistas ou caciques tenham usurpado à sombra da justiça corrupta, passarão para a posse dos povos ou dos cidadãos que tenham títulos correspondentes a essas propriedades, das quais foram despojados por má-fé de nossos opressores, que mantiveram a todo custo, com as armas nas mãos, a mencionada posse; e os usurpadores que se considerem com direitos sobre elas, o defenderão diante dos tri-bunais especiais que se estabelecerão quando do triunfo da Revolução.

2 No início dos anos 1890, articuladores de um partido fundamentado nos princípios do positivismo científico tornaram-se conhecidos como “os científicos”. Vale lembrar que, no último quarto do século XIX, no contexto de grandes descobertas científicas e inovadoras aplicações tecnológicas, cresceu enormemente o prestígio das ciências e do conhecimento científico (N. do T.).

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7o Em virtude da imensa maioria dos povos e cidadãos mexicanos não serem mais donos do terreno em que pisam, sem poder melhorar em nada sua condição social, nem poder se dedicar à indústria ou à agricultura — por estarem monopolizadas, em algumas mãos, as terras, os montes e a água; por esta causa, será expropria-do, com prévia indenização, um terço dos monopólios de seus poderosos proprietários com o objetivo de que os povos e cidadãos do México obtenham ejidos,3 colônias, fundos legais para os povos ou campos de semea-dura ou de trabalho e se melhore em tudo e por tudo a falta de prosperidade e de bem-estar dos mexicanos.

8o Os fazendeiros, cientistas ou caciques que se oponham, direta ou indiretamente, ao presente Programa, terão seus bens nacionalizados e os dois terços que lhes correspondem serão destinados para indenizações de guerra, pensões de viúvas e órfãos das vítimas que sucumbiram na luta para implementar o presente Programa.

9o Para executar os procedimentos a respeito dos bens anteriormente mencionados, serão aplicadas as leis de desamortização e nacionalização segundo convenha; pois de norma e exemplo podem servir aquelas postas em vigor pelo imortal Juárez sobre os bens eclesiásticos, que escarmentaram os déspotas e conservadores que, por todo tempo, quiseram nos impor o jugo ignominioso da opressão e do retrocesso.

10o Os chefes militares insurgentes da República que levantaram com as armas nas mãos sob a voz de d. Fran-cisco I Madero, para defender o Programa de São Luís Potosí, e que se oponham com força ao presente Pro-grama, serão julgados traidores da causa que defenderam e da Pátria, visto que, na atualidade, muitos deles, por condescender com os tiranos por um punhado de moedas ou por suborno, estão derramando o sangue de seus irmãos que reclamam o cumprimento das promessas que fez à nação d. Francisco I Madero.

11o As despesas de guerra serão feitas conforme o artigo XI do Programa de São Luís Potosí, e todos os pro-cedimentos empregados na Revolução que empreendemos estarão em conformidade com as mesmas instru-ções determinadas pelo mencionado Programa.

12o Uma vez triunfante a Revolução que levamos ao plano da realidade, uma junta dos principais chefes revo-lucionários dos diferentes estados nomeará ou designará um presidente interino da República, que convocará as eleições para a organização dos poderes federais.

13o Os principais chefes revolucionários de cada Estado, em junta, designarão o governador do estado, e este elevado funcionário convocará as eleições para a devida organização dos poderes públicos, com o objetivo de evitar ordens compulsórias criadas para a desgraça dos povos, como a conhecida ordem de Ambrosio Figueroa no estado de Morelos e outros, que nos condenam ao precipício de conflitos sangrentos sustentados pelo dita-dor Madero e o círculo de cientistas fazendeiros que o aconselham.

14o Se o presidente Madero e os demais elementos ditatoriais do atual e do antigo regime desejam evitar as imensas desgraças que afligem a pátria, se possuem um verdadeiro sentimento de amor por ela, que renunciem imediatamente aos postos que ocupam e, com isso, alguma coisa restará das graves feridas que foram abertas no seio da pátria; pois, caso não seja feito dessa forma, sobre suas cabeças cairão o sangue e o anátema de nos-sos irmãos.

15o Mexicanos: considerai que a astúcia e a má-fé de um homem estão derramando sangue de uma maneira escandalosa, por ser ele incapaz de governar; considerai que seu sistema de governo está oprimindo a pátria e pisoteando com a força bruta das baionetas nossas instituições; assim como levantamos nossas armas para levá-lo ao poder, vamos voltá-las contra ele por faltar com seus compromissos para com o povo mexicano e por ter traído a Revolução iniciada por ele mesmo; não somos personalistas, somos partidários dos princípios e não dos homens!

3 Ejidos: terras comunais apropriadas coletivamente (N. do T.).

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Povo mexicano, apoiai com armas nas mãos este Programa e fareis a prosperidade e o bem-estar para a pátria.Liberdade, Justiça e Lei!Ayala, estado de Morelos, 25 de novembro de 1911.

General em chefe, Emiliano Zapata, rubrica. Generais: Eufemio Zapata, Francisco Mendoza, Jesús Navarro, Otilio E. Montaño, José Trinidad Ruiz, Próculo Capistrán, rubricas. Coronéis: Pioquinto Galis, Felipe Vaquero, Cesáreo Burgos, Quintín González, Pedro Salazar, Simón Rojas, Emigdio Marlolejo, José Campos, Felipe Tijera, Rafael Sánchez, José Pérez, Santiago Aguilar, Margarito Martínez, Feliciano Domínguez, Manuel Vergara, Cruz Salazar, Lauro Sánchez, Amador Salazar, Lorenzo Vázquez, Catarino Perdomo, Jesús Sánchez, Domingo Romero, Zacarías Torres, Bonifacio García, Daniel Andrade, Ponciano Domínguez, Jesús Capistrán, rubricas. Capitães: Daniel Mantilla, José M. Carrillo, Francisco Alarcón, Severiano Gutiérrez [rubricas, e seguem mais assinaturas].

Fonte | Herzog, Jesús Silva. Breve Historia de la Revolución Mexicana. La Habana: Editorial de Ciencias Sociales, 1969. Disponível em: <www.worldpolicy.org/globalrights/mexico/1911-zapata.html>.

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1923 | frAnciSco JoSé de oliVeirA ViAnnA

Evolução do povo brasileiro*

oliveira Vianna (1883-1951) foi consultor do Ministério do trabalho entre 1932 e 1940 e, nesse último ano, foi nomeado ministro do

tribunal de Contas da união, posição que ocuparia até sua morte. Filho de um fazendeiro fluminense, bacharelou-se pela Faculdade

nacional de Direito, na cidade do rio de Janeiro, e depois se tornou professor da Faculdade de Direito do estado do rio de Janeiro, em

niterói. Desde 1924 foi membro do Instituto Histórico e geográfico Brasileiro e, a partir de 1937, da Academia Brasileira de letras.

Além de ter sido um apologista dos governos de Vargas, especialmente do estado novo, foi fundamentalmente um daqueles que podem ser nomeados “pensadores do Brasil”, um analista, com

sólido embasamento em conceitos teóricos das ciências humanas europeias e norte-americanas, dos “problemas brasileiros”. Vianna

não se limitava, porém, a identificar, descrever ou explicar os tais “problemas”, mas igualmente propunha o que pensava serem as

alternativas para solucioná-los. suas ideias eram antes de tudo antiliberais, pois julgava que as instituições dos estados fundados nos princípios do liberalismo eram incompatíveis com a “índole”

do povo brasileiro. Assim, pregava que o estado mais adequado à situação brasileira deveria ser eminentemente corporativista, orgânico,

intervencionista e centralizador. (l.A.g.)

I

Desde o momento em que a ciência confessava a sua ilusão e reconhecia que as leis gerais, a que havia chegado, não correspondiam à realidade das formas infinitas da vida, compreendi que a melhor coisa a fazer não era insistir por encerrar a nossa evolução nacional dentro dessas fórmulas vãs ou querer subordinar o nosso ritmo evolutivo a um suposto ritmo geral da evolução humana — ao evolucionismo spenceriano, como fez Sílvio Romero, à teoria filogenética de Haeckel, como fez Fausto Cardoso, ou à lei dos três estados, de Comte, como têm feito os positivistas sistemáticos. Pareceu-me trabalho inútil esforçar-me por descobrir nos acontecimentos da nossa história a revelação dessas leis gerais, de que a própria ciência acabava de instaurar o processo de fa-lência. O mais sábio caminho seria tomar para ponto de partida o nosso povo e estudar-lhe a gênese e as leis da própria evolução. Se estas coincidissem com as supostas leis gerais, tanto melhor para a ciência e para nós; se não, ficaríamos, pelo menos, “conhecendo-nos a nós mesmos” — o que já seria alguma coisa, porque vale-ria o consolo de estarmos com a sabedoria dos antigos.

Faríamos com isto um trabalho de dupla utilidade. Prepararíamos, por um lado, elementos para a futura síntese geral, concorrendo assim com o nosso esforço para a obra comum da ciência; e, por outro lado, com o conhecimento integral das leis que presidem a nossa formação, prepararíamos as bases de uma política objetiva e experimental, de uma política orgânica, induzida das condições específicas da nossa estrutura social e da nossa mentalidade coletiva.

Há uma anamnese das nações, como há uma anamnese dos indivíduos — e é tão necessário, no governo dos povos, o conhecimento daquela, para a determinação de qualquer política reformadora, como o desta para a exata diagnose de qualquer caso clínico. Bem razão têm os historiadores alemães, da escola de Ranke e Mommsen, quan-do fazem da história, não propriamente como queria Cícero, “a mestra da vida”; mas, principalmente, “a mãe e a mestra da política”. É que cada povo tem, como acabamos de ver, a sua maneira própria de ser e de existir — e essa maneira só a história, pela comparação das diversas fases evolutivas de cada um, é capaz de definir com precisão.

Nenhum erro maior do que o daqueles que, partindo de uma suposta identidade entre nós e os outros gran-des povos civilizados (porque temos a mesma civilização), julgam-se dispensados de estudar o nosso grupo nacional nas suas peculiaridades. Essa abstenção envolve um erro imenso, comparável ao erro do médico, que,

* Parte do capítulo introdutório da edição de 1956.

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partindo do fato de que todos os homens têm a mesma fisiologia, se julgasse dispensado de pesquisar, para a formulação do seu diagnóstico e a determinação da terapêutica aconselhável, as particularidades idiossincrási-cas de cada doente. Faria, neste caso, não obra severa e honesta de ciência e, muito menos, obra técnica de médico, mas apenas obra grosseira ou leviana de charlatão, à semelhança dos nossos boticários de aldeia, tão deliciosamente interessantes no desembaraço com que aplicam, a olho e pelas aparências, conhecidas fórmulas feitas, pilhadas ao Chernoviz.1

Já mostrei, aliás, no meu ensaio sobre O idealismo na evolução política, como tem sido funesto para nós esse preconceito da absoluta semelhança entre nós e os outros povos civilizados e como esse preconceito, com que justificamos a imitação sistemática das instituições europeias, nos tem valido, há cerca de cem anos, decepções dolorosas e fracassos desconcertantes.

Nunca será demais insistir na urgência da reação contra esse preconceito secular; na necessidade de estudar-mos o nosso povo em todos os seus aspectos; no imenso valor prático destes estudos: somente eles nos poderão fornecer os dados concretos de um programa nacional de reformas políticas e sociais, sobre cujo êxito nos seja possível contar com segurança.

Há, por exemplo, para nós, povo de transplantação, em cujo solo confluem tantas raças exóticas, um formi-dável problema prático, que interessa fundamentalmente à orientação dos nossos destinos. É o conhecimento das reações do nosso meio cós mico sobre o ádvena, aquilo que Huntington chama “o conhecimento de como adaptar o homem à natureza, ou de como adaptar a natureza ao homem”.2 É um problema-central, de que está dependendo o futuro e a grandeza da civilização do Ocidente — flor delicada dos climas frios — nestes climas tropicais. Ora, este problema não pode ser inteiramente resolvido com fórmulas feitas fora daqui, mas sim com o estudo local e particular do nosso meio e da gente que o habita. Entretanto, eis aí um problema fundamen-tal, que está na raiz de todos os outros — dos problemas econômicos aos problemas de educação, dos proble-mas de educação aos problemas políticos e administrativos.

II

Há, certamente, e seria absurdo que não houvesse, pontos numerosos de semelhança entre o nosso grupo na-cional e os outros grupos nacionais do mundo civilizado. Herdamos o mesmo cabedal de elementos civiliza-dores, a mesma cultura, os mesmos ideais, as mesmas instituições políticas e sociais e continuamos a respirar dentro do ambiente cultural, em que eles respiram, e a vibrar, tanto quanto possível, ao ritmo das suas aspira-ções, sentimentos e ideias.

Somos parte integrante de um grande todo: nele estamos e dele participamos por milhares de dependências, claras e visíveis umas, obscuras e invisíveis outras, mas não menos sensíveis e eficientes. Mas, embora todas essas atinências e afinidades, dependências e semelhanças, não nos confundimos: somos diversos por muitos aspectos, distintos por muitos lados, peculiares e exclusivamente nós mesmos por muitos modos de ser e de existir.

Essas similitudes, resultantes da identidade de civilização, entre nós e os outros povos, não implicam, nem podiam implicar, a inexistência e, muito menos ainda, a desaparição das peculiaridades locais e das caracterís-ticas nacionais da nossa gente. Entre os grandes povos ocidentais, por exemplo, a imitação recíproca se opera de maneira mais íntima e intensa; mas, nenhum desses povos abdica das suas particularidades nacionais, ou as reconhece desprezíveis na solução dos seus problemas fundamentais: “Esses mesmos povos que tendem assim a se assemelhar cada vez mais — diz Lucien Febvre —; que se imitam reciprocamente, que se penetram in-conscientemente, que se modelam pela imagem de cada um e fazem flutuar acima deles, como uma sorte de emanação sutil, uma civilização comum; esses mesmos povos, não menos fortemente, não menos ativamente,

1 Manual de medicina popular, de uso frequente no século XIX (N. do T.).2 Huntington, E. Civilization and climate, 2. ed. New Haven: Yale University Press, 1922. p. 144.

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esforçam-se por se distinguir cada vez mais dos seus vizinhos e, por meio de uma cultura atenta dos seus dons particulares, por acentuar o mais possível os traços característicos da sua fisionomia”.3

Certo, a ação das correntes de civilização, essencialmente uniformizadoras, tende a corrigir e contrabater a ação dos agentes diferenciadores, isto é, a ação das particularidades locais do solo, da raça e da história; mas, essa ação niveladora da imitação não poderá ser tal que anule a ação todo-poderosa daquelas. Esta é incoercível e acaba sempre por revelar-se na resultante das forças que determinam a evolução de cada grupo.

É preciso não perder de vista nunca este fato e convencer-nos que são eles, estes agentes locais, que terão sempre, nos destinos das instituições importadas e das ideias imitadas, a palavra final e definitiva. Tem sido assim até agora e não há razão alguma para crer não continue a ser assim.

O modo de distribuição da nossa população bastaria por si só para mostrar que não somos os mesmos e que essa identidade, que muitos pressupõem existir entre nós e os outros grandes povos civilizados, é meramente ilusória. Nem seria possível admitir que sejam idênticas as condições orgânicas de dois povos, um dos quais, a Bélgica, por exemplo, concentra em cada quilômetro quadrado de território uma massa formigante de mais de 200 indivíduos, e outro que, em cada quilômetro quadrado, não consegue senão distribuir escassamente quatro indivíduos. Ora, todos nós sabemos que a densidade da população é um fator poderosamente influente na gênese e no funcionamento das instituições sociais, desde as cooperativas locais de consumo, produção ou crédito até o quadro geral dos poderes públicos.

Essa dessemelhança de estrutura, derivada da nossa dispersão demográfica, agrava-se com a dessemelhança de estrutura, derivada da nossa defectiva organização de classes. Somos um povo que, por motivos particulares à nossa evolução, não temos, no quadro das nossas classes sociais, uma classe média à maneira europeia, nem as classes existentes, populares ou dirigentes, possuem a coerência, a integração, a unidade das classes corres-pondentes nos grandes povos civilizados.4 Falta-nos, por exemplo, uma aristocracia local, com a educação, o prestígio, o civismo da gentry saxônia: e é sabido que todo o jogo das instituições do selfgovernment inglês re-pousa exclusivamente na capacidade e na atividade desta classe. É este um ponto de dessemelhança irredutível entre a sociedade inglesa e a nossa — e mais de uma vez o desconhecimento deste fato nos tem valido decep-ções lamentáveis.

Estas diferenças de estrutura complicam-se com diferenças mais sutis de mentalidade. Esta representa um complexo, que nasce da lenta acumulação de mil causas obscuras, desde as vicissitudes históricas de cada gru-po humano às qualidades dos elementos étnicos que colaboram na sua formação. Conjunto inextricável de ideias, sentimentos, preconceitos, desejos, crenças, tendências, para ele também contribuem os reflexos múlti-plos, perceptíveis ou imperceptíveis, das forças modeladoras da terra e do clima e, tanto quanto as influências da história e da raça, essas reações, vindas do meio cósmico, concorrem para dar à mentalidade de cada grupo humano certos atributos, que a tornam perfeitamente inconfundível.5

III

Plenamente convencido dessas ideias, é que meti ombros à empresa, cuja enormidade cada vez mais se acres-centa e desmesura ante os meus olhos, entre deslumbrados e aturdidos: estudar a origem e a evolução do nos-so povo.

Materializações grosseiras destas íntimas preocupações do meu espírito, três volumes já saíram, tão desiguais no valor, quanto no tamanho: Populações meridionais do Brasil; Pequenos estudos de psicologia social; O idealismo na evolução política. Sai agora este, que é o quarto sobre a nossa evolução nacional. Obedece ao mesmo método dos ensaios anteriores: como Populações meridionais e O idealismo na evolução política, o seu ponto de partida é ainda “o quadro das realidades naturais e sociais que nos cerca e em que vivemos”. É apenas uma síntese rápida, sem

3 Febvre, L. La terre et l´evolution humaine. Paris: La Renaissance Afl du Livre , 1922. p. 383.4 Ver: Populações meridionais do Brasil, vol. I, parte II: “Formação social”.5 Ver: Mukerjee, Rahakamal. Regional sociology, 1926.

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pretensão nenhuma a análises exaustivas dos assuntos que aborda. Representa mais um conjunto de sugestões de estudos a fazer do que propriamente um trabalho definitivo.

No volume das Populações Meridionais, o meu principal objetivo foi discriminar e ressaltar a trama das vin-culações que prendem os indivíduos aos grupos regionais a que pertencem: é, por isso, um ensaio de sociologia histórica e psicologia social. Neste volume, porém, que agora sai, o meu objetivo principal é mostrar as corre-lações existentes entre os indivíduos e o território em que habitam: é, pois, um estudo de antropogeografia eco-nômica e política.

Retomando as considerações feitas em Populações Meridionais sobre a formidável função colonizadora dos paulistas antigos, faço neste volume de agora uma discriminação mais justa e minuciosa das causas econômicas, sociais e etnográficas do bandeirismo. Mostro como as particularidades do nosso relevo geográfico, da nossa estrutura geológica e das nossas condições fitográficas explicam e condicionam todas as modalidades e diretri-zes daquela maravilhosa irradiação.

Trato, porém, muito sinteticamente da projeção desses grandes colonizadores na direção da grande planície platina; como também é muito sinteticamente que descrevo a expansão dos antigos vaqueiros do S. Francisco no sentido dos sertões do nordeste e dos modernos sertanejos cearenses no sentido das florestas amazônicas. Mas, isto porque são assuntos que pretendo estudar, com mais largueza e minúcia, no volume II das Populações Meridionais, dedicado exclusivamente à formação do núcleo gaúcho, e nos volumes das Populações Setentrionais, inteiramente consagrados às origens históricas das nossas atuais populações sertanejas.

Na parte II, referente à evolução da raça, desenvolvo com mais amplitude as minhas ideias sobre o problema étnico brasileiro, de que havia feito uma síntese rápida no capítulo VI das Populações Meridionais, quando estu-dei a etnologia das nossas classes rurais. Detenho-me agora principalmente sobre os aspectos antropológicos da nossa formação racial. Os aspectos propriamente morais, relativos à nossa psicologia étnica, trato-os um tanto ligeiramente neste ensaio. É que são pontos, ou já estudados na minha contribuição sobre O tipo étnico brasilei-ro e os seus elementos formadores, escrita para o Dicionário Histórico, Geográfico e Etnográfico do Brasil, publicados pelo Instituto Histórico Brasileiro, ou são pontos que irei estudar mais em detalhe no volume que planejo — O ariano no Brasil — onde analisarei certos aspectos ainda obscuros da nossa psicogênese, à luz dos modernos critérios da antropologia social.

Na parte III, encontrará o leitor um pequeno ensaio sobre as reações que fatores geográficos têm exercido sobre a evolução das nossas instituições políticas. Deixo de parte o estudo da influência exercida pelos agen-tes culturais, porque sobre este ponto já expus o meu pensamento no rápido ensaio sobre O idealismo na evo-lução política, que faz parte da pequena “Biblioteca do Estado de São Paulo”. Se nada digo também da nossa psicologia política propriamente, é que este ponto já foi amplamente estudado, no tocante às populações do centro-sul, nos últimos capítulos do primeiro volume das Populações meridionais, e o serão futuramente, no tocante às populações do extremo-sul e às dos sertões do norte, nos volumes que dedicarei a esses dois grupos regionais.

Escrito em pouco menos de um mês, ressente-se um tanto este livro da celeridade com que foi feito. Daí, em grande parte, as lacunas, que apresenta. Digo em grande parte, porque para isto também concorreram as condições da sua publicação oficial. Editado, em primeira mão, pelo Ministério da Agricultura, como contri-buição histórica ao volume prefacial dos resultados do Recenseamento de 1920, esse caráter oficial de sua edição não podia deixar de influir sobre a orientação de minhas ideias e o modo do seu desdobramento.

Em primeiro lugar, sendo como que o prefácio de um recenseamento demográfico e econômico, pareceu-me que este ensaio se devia limitar apenas ao estudo dos aspectos econômicos e demográficos da nossa evolução. Eis porque deixei de parte inteiramente, ou meramente esbocei, o estudo da nossa evolução artística, da nossa evo-lução religiosa, da nossa evolução literária, da nossa evolução jurídica e de outros aspectos interessantes da nossa evolução social, como a evolução da família, a evolução dos costumes e a evolução das classes ou profissões.

Por outro lado, ao receber o encargo de sintetizar a nossa história nacional, recebi também o aviso de que o meu trabalho não devia ultrapassar cem páginas do formato habitual das publicações da Diretoria-Geral de Estatística. Esta limitação de espaço obrigou-me, mesmo para os aspectos que me propus a estudar, ao aban-

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dono de certos detalhes interessantes, que, devidamente escrutados, poderiam fazer-me ir muito além das raias pré-traçadas à minha exposição.

Outra causa, que me levou a não dar a esse estudo uma maior amplitude, foi o fato mesmo de ser publicado sob a égide oficial. Confesso com a maior franqueza que este fato me constrangeu um tanto na apreciação dos acontecimentos políticos do período republicano, especialmente nas suas últimas décadas. Escusei-me, por isso, de comentar certos lados obscuros e depressivos deste período, cuja crítica, para ser justa, não podia deixar de ser condenatória. Espero, porém, poder fazê-lo, com a imparcialidade devida e também a maior liberdade, quando tiver de estudar, na Introdução à história da República, o novo regime e os seus agentes.

IV

No tocante especialmente ao trabalho técnico de reconstituição do nosso passado, segui neste ensaio, como nos anteriores, um método inteiramente diverso daquele “método secular”, de que fala Ferrero a propósito dos historiadores romanos anteriores a Sallustio. Estes, como Atticus e Cornelius Nepos, limitavam-se, nas suas narrações, a enfileirar secamente os fatos históricos ano por ano, “como se os personagens da história fossem sombras e os acontecimentos simples objeto de enumerações monótonas”.

Em vez dessa exibição de mostruário de museu, procurei, ao contrário, fazer vir à tona e desprender-se a enorme reserva de vida latente, contida nos códices empoeirados dos nos sos arquivos e nas páginas dos nossos velhos cronistas coloniais, de modo que a nossa história se mostre o que ela realmente é: uma obra bela, he-roica e viva de inteligência e coração, cujos personagens — dos maiores aos mais obscuros — sentem, refletem, resolvem, agem como seres sensíveis e conscientes que são, dentro de um ambiente físico e de um ambiente social, sobre os quais eles atuam e dos quais recebem reações inevitáveis.

Duas coisas, realmente, não aparecem nas obras dos nossos velhos historiadores senão furtivamente e a medo, duas coisas sem as quais a história se torna defectiva e parcial. A primeira é o povo, a massa humana sobre quem atuam os criadores aparentes da história: vice-reis, governadores-gerais, tenentes-generais, fun-cionários de graduação, diretamente despachados da metrópole. A segunda é o meio cósmico, o ambiente fí-sico, em que todos se movem, o povo e os seus dirigentes, e onde uns e outros haurem o ar que respiram e o alimento que lhes nutre as células, e que age com o seu relevo, a sua estrutura, o seu subsolo, a sua hidrografia, a sua flora, a sua fauna, o seu clima, as suas correntes atmosféricas e as suas intempéries. Tudo isto influi, tudo isto atua, tudo isto determina as ações dos homens na vida quotidiana — e, entretanto, nada disto parece se refletir na explicação da nossa gente.

Não vai nesta afirmação a mais leve censura aos nossos velhos historiadores, nem o mais leve desapreço à sua obra formidável de análise das fontes documentárias e de pesquisa dos nossos arquivos. Mas seria impossí-vel negar que essa bela e soberba obra está truncada e incompleta, porque nela não aparecem dois fatores capi-tais da nossa história: nem o meio cósmico, com o seu poderoso determinismo, nem o povo, que é, afinal, o verdadeiro criador dela. Narram-se os seus acontecimentos ou descrevem-se as ações dos seus personagens, como se eles agissem sem dependência do meio social em que se movem e do meio físico que os envolve. Por detrás do cenário dos acontecimentos, não parece que os nossos velhos narradores hajam sentido o surdo bor-bulhar da vida social, nem o latejar poderoso das forças do meio cósmico. Tudo é como se a nossa história se desenrolasse no ar, sem ponto de apoio material, sem contato com a terra, misteriosa mente suspensa, à manei-ra daquela “Cidade dos Pássaros”, ideada pelo gênio de Aristófanes.

Pareceu-me isto um excesso de abstração e, sem querer discutir a superioridade do velho método, julguei que não seria de todo desdenhável fazer baixar a nossa história das alturas sublimadas, em que pairava, de modo a prendê-la às complexas realidades do meio social e às duras realidades do meio físico. Seria, talvez, repassá-la de prosaísmo e banalizá-la, mas seria, por certo, fazê-la mais vivaz e humanizada.

Nesse empenho de trazer para a nossa história o que ela tem de vivo e humano, esforço-me, tanto quanto possível, para que não se insinue, no meu julgamento dos fatos e dos homens, nenhum preconceito pessoal. Estudando as nossas realidades históricas e sociais, o nosso povo, a sua vida, a sua estrutura, a sua psicologia, e

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a vida, a estrutura e a psicologia dos grupos regionais que o compõem, faço-o com o mesmo espírito de obje-tividade e a mesma imparcialidade com que os técnicos do Serviço da Defesa Agrícola estão agora estudando a “praga vermelha” dos cafezais da Paraíba ou os sábios de Manguinhos estudaram, entre as populações do planalto e da costa, a função patogênica do Necator americanus.

Como nestes, o que me inspira é o mais absoluto sentimento de objetividade: somente os fatos me preocu-pam e somente trabalhando sobre eles é que infiro e deduzo. Nenhuma ideia preconcebida. Nenhuma preo-cupação de escola. Nenhuma limitação de doutrina. Nenhum outro desejo senão o de ver as coisas como as coisas são — e dizê-las realmente como as vi.

O meu grande, o meu principal empenho é surpreender o Homem, criador da história, no seu meio social e no seu meio físico, movendo-se e vivendo neles, como o peixe no seu meio líquido ou a ave entre as ondas impalpáveis e invisíveis do éter, em que circula.

Nenhuma ambição maior do que a de poder dizer desses meus estudos o que dos seus versos disse Marcial: “Neles não encontrareis nem Harpias, nem Centauros, nem Górgonas; mas, em cada página, o homem respi-ra e vive”.

Fonte | VIANNA, Oliveira. Evolução do povo brasileiro. [1923]. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956.

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1927 | AuguSto céSAr SAndino

Manifesto político

De origem humilde, Augusto César sandino (1895-1934) nasceu num vilarejo no interior da nicarágua. procurando melhores condições

de vida, migrou para o México em 1923 e entrou em contato com o movimento operário que lutava pela nacionalização do petróleo das

empresas estadunidenses. estas lutas o inspiraram na perspectiva do que é defender uma nação, fazendo-o recordar como o governo da nicarágua era submisso aos euA. em 1926 retornou ao seu país,

decidido a lutar por sua soberania.

sandino foi um homem peculiar, patriota e místico, sempre atento à luta anti-imperialista, mas com um forte conteúdo social. embora

estivesse próximo dos comunistas da região (o salvadorenho Farabundo Martí era um dos seus colaboradores), a sua influência

política principal foi a revolução Mexicana, marcada por um nacionalismo com forte componente social. sandino deixou um

grande legado de luta contra o imperialismo estadunidense, pela soberania e a emancipação dos pobres, que seria resgatado, mais

tarde, pela Frente sandinista de libertação nacional (Fsln), na década de 1960. (n.F. e M.B.)

Para os nicaraguenses, os centro-americanos e os de raça indo-hispânica:O homem que de sua pátria não (nem sequer) exige um palmo de terra para sua sepultura merece ser ouvi-

do e não apenas ouvido, mas também acreditado. Sou nicaraguense e me sinto orgulhoso de que em minhas veias circula, mais do que em qualquer outra, o sangue índio americano que, por atavismo, contém o mistério de ser patriota, leal e sincero; o vínculo de nacionalidade me dá o direito de assumir a responsabilidade pelos meus atos nas questões da Nicarágua e, portanto, da América Central e de todo o continente de nossa língua, sem me importar que os pessimistas e covardes me deem o título o qual, em sua qualidade de eunucos, mais lhes acomode. Sou trabalhador da cidade, artesão, como se diz neste país, mas meu ideal apresenta um amplo horizonte de internacionalismo, de direito de ser livre e de exigir justiça, ainda que, para alcançar este estado de perfeição, seja necessário derramar o sangue próprio e alheio. Que sou plebeu, dirão os oligarcas, ou seja, os patos do brejo. Não importa: minha maior honra é surgir do seio dos oprimidos, que são a alma e o nervo da raça, somos os que vivemos postergados e à mercê dos desavergonhados sicários que ajudaram a preparar o delito da alta traição: os conservadores da Nicarágua que feriram o coração livre da pátria e que nos persegui-ram ferozmente como se não fôssemos filhos de uma mesma nação.

Faz 17 anos que Adolfo Díaz e Emiliano Chamorro1 deixaram de ser nicaraguenses porque a ambição ma-tou o direito de sua nacionalidade, pois eles arrancaram da haste a bandeira que cobria todos os nicaraguenses. Hoje essa bandeira ondula preguiçosa e humilhada pela ingratidão e indiferença de seus filhos que não fazem um esforço sobre-humano para libertá-la das garras da monstruosa águia de bico encurvado, que se alimenta com o sangue deste povo, enquanto que no Campo de Marte de Manágua flutua a bandeira que representa o assassinato de povos débeis e a inimizade de nossa raça.

Quem são os que ataram minha pátria ao posto da ignomínia? Díaz e Chamorro e seus sequazes ainda que-rem ter o direito de governar esta desventurada pátria, apoiados pelas baionetas e pelos Springfields do invasor. Não! Mil vezes não! A revolução liberal está de pé. Há pessoas que não traíram, que não desistiram, nem ven-deram seus rifles para satisfazer a ambição de Moncada.2 Está de pé a revolução, e hoje, mais que nunca, for-talecida, porque só sobrevivem nela elementos de valor e abnegação.

Moncada, o traidor, faltou naturalmente com seus deveres de militar e de patriota. Não eram analfabetos os que lhe seguiam e tampouco ele era um imperador para que nos impusesse sua desenfreada ambição. Eu co-

1 Homens políticos nicaraguenses que se tornaram aliados dos interesses estadunidenses no país (N. do T.).2 Como Diaz e Chamorro (cf. nota 1), chefe militar considerado traidor pelo movimento nacionalista nicaraguense por ter se aliado aos interesses dos EUA no país (N. do T.).

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mino, ante os contemporâneos e ante a história, este Moncada desertor, que se bandeou para o inimigo estran-geiro com cartucheira e tudo o mais que tinha. Crime imperdoável que reclama vingança!

Os grandes dirão que sou muito pequeno para a obra que tenho empreendido; no entanto, minha insignifi-cância está ultrapassada pela altivez do meu coração de patriota e, assim, juro ante a pátria e ante a história que minha espada defenderá o decoro nacional e que será a redenção para os oprimidos. Aceito o convite à luta e eu mesmo a provoco, e desafio o invasor covarde e os traidores da minha pátria. Contesto com meu grito de com-bate e meu peito e o de meus soldados — que formarão muralhas onde as legiões dos inimigos da Nicarágua serão lançadas. Poderá morrer o último de meus soldados, que são os soldados da liberdade da Nicarágua, mas antes, mais de um batalhão dos vossos, invasor loiro, terá provado o pó de minhas agrestes montanhas.

Não serei Magdalena, que de joelhos implorou o perdão de meus inimigos, que são os inimigos da Nicará-gua, porque creio que ninguém tem o direito na terra de ser um semideus. Quero convencer os nicaraguenses frios, os centro-americanos indiferentes e a raça indo-hispana que, num contraforte da cordilheira andina, há um grupo de patriotas que saberão lutar e morrer como homens.

Vinde, ralé de morfinômanos; vinde nos assassinar em nossa própria terra, que eu os espero de pé, firme, à frente de meus patriotas soldados, sem me importar com o vosso número; contudo, tendes presente que quan-do isso ocorrer, a destruição de vossa grandeza trepidará no Capitólio de Washington, avermelhando com vosso sangue a esfera branca que coroa vossa famosa White House, antro onde maquinais vossos crimes.

Eu quero justificar (advertir) aos governos da América Central, sobretudo o de Honduras, que minha ati-tude não deve lhes preocupar, caso acreditem que, porque tenho elementos mais do que suficientes, invadiria seu território em atitude bélica para derrubá-los. Não! Não sou mercenário, mas sim um patriota que não permite um ultraje a nossa soberania.

Desejo que, já que a natureza dotou nossa pátria de riquezas invejáveis e nos colocou como ponto de encon-tro do mundo, e que este privilégio natural é o que deu lugar a que sejamos cobiçados até a ponto de quererem nos escravizar, por isso mesmo, anseio romper a ligação com que nos atou o nefasto chamorrismo.

Nossa jovem pátria, essa morena tropical, deve ser a que ostenta em sua cabeça o gorro frígio, com o belís-simo lema que simboliza nossa divisa — “vermelho e negro” — e não a violada por aventureiros morfinôma-nos ianques traídos por quatro espantalhos que dizem ter nascido aqui em minha pátria.

O mundo estaria desequilibrado se permitisse que somente os Estados Unidos da América do Norte fossem os donos de nosso canal, pois seria o mesmo que ficar à mercê das decisões do colosso do Norte — de quem o mun-do passaria a ser tributário —, dos monopolizadores de má-fé que querem aparecer como donos sem que justifi-quem tal pretensão.

A civilização exige que se abra o canal da Nicarágua, mas que se faça com capital de todo o mundo e não seja exclusivamente da América do Norte, pois pelo menos metade do valor das construções deverá ser com capital da América Latina e a outra metade dos demais países do mundo que desejem ter ações na dita empre-sa; e que os Estados Unidos da América do Norte só possam ter os três milhões que lhes deram os traidores Chamorro, Díaz e Cuadra Pasos; e a Nicarágua, minha pátria, receberá os impostos que de direito e por jus-tiça lhe correspondem, com os quais teríamos rendimentos suficientes para cruzar de ferrovias todo o nosso território e educar nosso povo num verdadeiro ambiente de democracia efetiva, e também para que sejamos respeitados e não nos olhem com o sanguinário desprezo que hoje sofremos.

Povo irmão: ao deixar expostos meus ardentes desejos pela defesa de nossa pátria, acolho-o em minhas filas, sem distinção de cor política, sempre que vossos componentes venham bem-intencionados, pois tendes pre-sente que a todos se pode enganar com o tempo, mas com o tempo não se pode enganar a todos.

Mina de São Albino, Nova Segóvia, Nicarágua, América Central.Pátria e Liberdade.

A. C. Sandino1º de julho de 1927

Fonte | Disponível em: <http://latinamericanstudies.org/sandino/sandino7-1-27.htm>.

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1927 | JoSé cArloS mAriátegui

programa do partido Socialista peruano

José Carlos Mariátegui (1894-1930) foi o mais original dos teóricos marxistas da América ao sul do rio grande. As suas ideias são uma síntese do idealismo de Benedetto Croce, das inovações de Antonio gramsci, com um forte componente indigenista, e sobre uma base

marxista-leninista. Muito jovem se tornou opositor dos governos peruanos e, por sua militância, foi obrigado a exilar-se na Itália,

aproximando-se então do debate entre gramsci e Croce.

no programa do partido socialista, apresentado a seguir, podemos perceber a heterodoxia de Mariátegui. e foi essa heterodoxia que

provocou o banimento das suas ideias, até que a revolução Cubana abriu as portas àquelas experiências marxistas fora dos parâmetros

da Internacional Comunista (IC). para ele, os principais problemas de nuestra América, e mais especificamente do peru, eram a questão

indígena, a propriedade da terra e a internacionalização da economia, pelo que era inviável pensar na construção de uma aliança com a

burguesia nacional para formar um governo democrático-burguês, em virtude da fragilidade e da inexistente vocação revolucionária

da burguesia. De fato, Mariátegui era contrário ao gradualismo da IC para os países americanos e entendia que era possível chegar ao

socialismo através da revolução. (n.F. e M.B.)

O programa deve ser uma declaração doutrinária que afirme:

1. O caráter internacional da economia contemporânea, que não permite a nenhum país fugir das correntes de transformação surgidas das atuais condições de produção.

2. O caráter internacional do movimento revolucionário do proletariado. O Partido Socialista adapta sua práxis às circunstâncias concretas do país, contudo, obedece a uma ampla visão de classe e às próprias circunstâncias nacionais que estão subordinadas ao ritmo da história mundial. A revolução da independência, há mais de um século, foi um movimento solidário de todos os povos subjugado pela Espanha; a revolução socialista é um movimento conjunto de todos os povos oprimidos pelo capitalismo. Se a revolução liberal, nacionalista por seus princípios, não pôde acontecer sem uma estreita união entre os países sul-americanos, fácil é compreender a lei histórica que, em uma época mais acentuada de interdependência e vinculação das nações, impõe que a revolução social, internacionalista em seus princípios, se opere com uma coordenação muito mais disciplinada e intensa dos partidos proletários. O manifesto de Marx e Engels condensou o primeiro princípio da revolução proletária na frase histórica: “Proletários de todos os países, uni-vos!”.

3. O aguçamento das contradições da economia capitalista. O capitalismo se desenvolve no contexto de um povo semifeudal como o nosso, em um momento em que, chegada a etapa dos monopólios e do imperialismo, toda a ideologia liberal, correspondente à etapa da livre concorrência, deixou de ser válida. O imperialismo não permite a nenhum destes povos semicoloniais, que explora como mercados para seu capital e suas mercadorias, e como reservatórios de matérias-primas, um programa econômico de nacionalização e industrialismo; obriga-os à especialização, à monocultura (petróleo, cobre, açúcar, algodão, no caso do Peru), fazendo-os sofrer uma permanente crise de artigos manufaturados, crise derivada desta rígida determinação sobre a produção nacio-nal por fatores do mercado mundial capitalista.

4. O capitalismo encontra-se em seu estágio imperialista. É o capitalismo dos monopólios, do capital financei-ro, das guerras imperialistas pelo monopólio dos mercados e pelas fontes de matérias brutas. A práxis do socialismo marxista neste período é a do marxismo-leninismo. O marxismo-leninismo é o método revolu-cionário para a etapa do imperialismo e dos monopólios. O Partido Socialista do Peru o adota como méto-do de luta.

5. A economia pré-capitalista do Peru republicano que, pela ausência de uma classe burguesa vigorosa e pelas condições nacionais e internacionais que determinaram o lento avanço do país pela via capitalista, não pode livrar-se — sob o regime burguês, feudalizado submetido aos interesses capitalistas em conluio com a feudali-

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dade gamonalista1 e clerical — das taras e refugos da feudalidade colonial. O destino colonial do país retoma seu processo. A emancipação da economia do país é possível unicamente pela ação das massas proletárias, solidárias com a luta anti-imperialista mundial. Somente a ação proletária pode estimular, primeiro, e realizar, depois, as tarefas da revolução democrático-burguesa que o regime burguês é incapaz de desenvolver e cumprir.

6. O socialismo encontra na sobrevivência das comunidades, assim como nas grandes empresas agrícolas, os elementos de uma solução socialista para a questão agrária, solução que tolerará, em parte, a exploração da terra por pequenos agricultores, ali onde o yanaconazgo2 ou a pequena propriedade recomendem deixar a terra entregue à gestão indivi-dual, ao tempo em que se avança na gestão coletiva da agricultura nas zonas onde esse gênero de exploração preva-leça. Apesar disso, o mesmo estímulo que se presta ao livre ressurgimento do povo indígena, à manifestação criadora de suas forças e ao espírito nativo, não significa, em absoluto, uma romântica e anti-histórica tendência de construção ou ressurreição do socialismo incaico, que correspondeu a condições históricas completamente superadas e das quais somente sobraram, como fator aproveitável dentro de uma técnica de produção perfeitamente científica, os hábitos de cooperação e socialismo dos camponeses indígenas. O socialismo pressupõe a técnica, a ciência, a etapa capitalista e não pode importar o menor retrocesso na aquisição das conquistas da civilização moderna, a não ser, pelo contrário, a máxima e metódica pedagogia revolucionária contemporânea, incompatível com os privilégios da escola capitalis-ta, que condena as classes pobres à inferioridade cultural e faz da instrução superior o monopólio da riqueza.

7. Cumprida a etapa democrático-burguesa, a revolução passa a ser, em seus objetivos e sua doutrina, a revolução proletária. O partido do proletariado, capacitado pela luta para o exercício do poder e para o desenvolvimento de seu próprio programa, realiza, nesta etapa, as tarefas da organização e defesa da ordem socialista.

8. O Partido Socialista do Peru é a vanguarda do proletariado, a força política que assume a tarefa de sua orien-tação e direção na luta pela realização de seus ideais de classe.

Anexos ao programa serão publicados projetos de tese sobre a questão indígena, a situação econômica e a luta anti-imperialista, que, depois do debate das seções e das emendas que em seu texto introduza o Comitê Cen-tral, serão definitivamente formuladas no Primeiro Congresso do Partido.

Desde o manifesto, o Partido dirigirá uma convocatória a todos os seus seguidores, às massas trabalhadoras, para trabalharem pelas seguintes reivindicações imediatas:

Reconhecimento amplo da liberdade de associação, reunião e imprensa operária.

Reconhecimento do direito de greve para todos os trabalhadores. Abolição da conscrição viária.3

Substituição da Lei de Vadiagem pelos artigos que consideravam especificamente a questão da vadiagem no anteprojeto do Código — aceleração da incorporação destas conquistas à vida nacional.

Somente o socialismo pode resolver o problema de uma educação efetivamente democrática e igualitária em virtude da qual cada membro da sociedade receba toda a instrução a que sua capacidade lhe dê direito. O regime educacional socialista é o único que pode aplicar plena e sistematicamente os princípios da escola única, da esco-la do trabalho, das comunidades escolares e, em geral, de todos os ideais do Código Penal postos em vigor pelo Estado, com a única exceção dos artigos incompatíveis com o espírito e o critério penal da lei especial.

Estabelecimento dos Seguros Sociais e da Assistência Social do Estado.

Cumprimento das leis de acidentes de trabalho, de proteção do trabalho das mulheres e menores, das jornadas de oito horas nos trabalhos da agricultura.

Assimilação da malária, nos vales da costa, à condição de Doença Profissional com as consequentes responsabi-lidades de assistência para os fazendeiros.

Estabelecimento da jornada de sete horas nas minas e em 105 tipos de trabalho considerados insalubres, peri-gosos e nocivos à saúde dos trabalhadores.

1 Gamonal: grande fazendeiro ou potentado de uma região, comarca ou município (N. do T.).2 Trabalho obrigatório, nos campos ou doméstico, imposto a índios considerados rebeldes ou fugitivos, que eram entregues pelas autorida-des aos grandes fazendeiros (N. do T.).3 Conscrição viária. Lei que obrigava os homens entre 18 e 60 anos a trabalhar para o Estado na construção de estradas. Aplicada, na práti-ca, apenas à população indígena (N. do T.).

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Obrigação das empresas mineiras e petroleiras de reconhecer seus trabalhadores de modo permanente e efeti-vo, permitindo que tenham acesso a todos os direitos que lhes garantem as leis do país.

Aumento dos salários na indústria, na agricultura, nas minas, nos transportes marítimos e terrestres e nas ilhas guaneras,4 na proporção do custo de vida e do direito dos trabalhadores a uma qualidade de vida mais elevada.

Abolição efetiva de todo trabalho forçado ou gratuito e abolição ou punição do regime semiescravista na montanha.

Entrega às comunidades de terras de latifúndios para a distribuição entre seus membros, em proporções sufi-cientes às suas necessidades.

Expropriação, sem indenização, a favor das comunidades, das terras dos conventos e congregações religiosas.

Direito dos yanaconas, arrendatários etc., que trabalhem num terreno há mais de três anos consecutivos, de obter a adjudicação definitiva do uso de suas parcelas, mediante anuidades não superiores a 60% da taxa anual de arrendamento.

Rebaixar em no mínimo 50% esta taxa, para todos os que continuem em sua condição de parceiros ou arren-datários.

Adjudicação às cooperativas e aos camponeses pobres das terras recebidas para o cultivo pelas obras agrícolas de irrigação.

Manutenção, em todas as partes, dos direitos reconhecidos aos empregados pela lei respectiva.

Regulamentação, por uma comissão paritária, dos direitos de aposentadoria de forma que não implique o menor menosprezo dos já estabelecidos pela lei.

Implantação do salário e do soldo mínimo.

Ratificação da liberdade de cultos e ensino religioso pelo menos nos termos do artigo constitucional e conse-quente revogação do último decreto contra as igrejas não católicas. Gratuidade do ensino em todos os graus.

Estas são as principais reivindicações pelas quais o Partido Socialista lutará de imediato. Todas elas respon-dem a peremptórias exigências da emancipação material e intelectual das massas. Todas elas devem ser ativa-mente apoiadas pelo proletariado e pelos elementos conscientes da classe média.

A Liberdade do Partido para atuar publicamente, sob o amparo da constituição e das garantias que esta confere aos cidadãos, para criar e difundir sem restrições sua imprensa, para realizar congressos e debates, é um direito reivindicado pelo ato próprio da fundação pública deste agrupamento.

Os grupos solidamente associados, que se dirigem hoje ao povo por meio deste manifesto, assumem com convicção, com a consciência de um dever e uma responsabilidade histórica, a missão de defender e propagar seus princípios e manter e aumentar sua organização, a custo de qualquer sacrifício. E as massas trabalhadoras da cidade, do campo e das minas, e o campesinato indígena, cujos interesses e aspirações representamos na luta política, saberão assumir estas reivindicações e esta doutrina, combaterão perseverante e esforçadamente por elas e encontrarão, através da luta, a via que conduz à vitória final do socialismo.

Viva a classe operária do Peru!Viva o proletariado mundial!Viva a revolução social!

Fonte | MARIÁTEGUI, José Carlos. La organización del proletariado. In: COMISIÓN POLÍTICA DEL COMITÉ CENTRAL DEL PARTIDO COMUNISTA PERUANO (Ed.). Lima: Ediciones Bandera Roja, 1967. Disponível em: <http://64.233.163.132/search?q=cache:dUDnRRKHuWoJ:www.marxists.org/espanol/mariateg/1928/oct/07a.htm+Programa+do+Partido+Socialista+Peruano&cd=9&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br>.

4 Ocupadas com a produção de guano, adubo natural e produção peruana importante à época (N. do T.).

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1931 | l indolfo leopoldo Boekel collor

Discurso de posse no Ministério do Trabalho

lindolfo Collor (1890-1942) é até hoje nacionalmente reconhecido por ter sido o principal responsável pela elaboração das primeiras

leis trabalhistas do Brasil, promulgadas quando ocupou o cargo de Ministro do trabalho (1931-1932) e que, mais tarde, constituiriam

a base da Consolidação das leis do trabalho (Clt), promulgada em 1943. A atuação de Collor ancorava-se em uma mudança de perspectiva no tratamento do que então se chamava a questão

social. A postura tradicional dos governos brasileiros até então, de pouca atenção e/ou repressiva a esta área, foi substituída pela ampla intervenção do estado como um fator regulador das relações entre o capital e o trabalho, preocupando-se com uma especial proteção aos

trabalhadores, vistos como o elo mais fraco do binômio.

nascido no rio grande do sul, de pais descendentes de imigrantes alemães, bacharelou-se farmacêutico em 1909, mas, ao que consta, não

exerceu a profissão. Depois de residir alguns anos no rio de Janeiro, voltou ao estado natal, quando se vinculou ao partido republicano rio-grandense. na década de 1920, foi redator-chefe do jornal de

seu partido, representante na Assembleia estadual e depois deputado federal. nesta condição participou ativamente da campanha da Aliança liberal em 1929 e, no ano seguinte, da conspiração que levou ao 3 de

outubro de 1930. rompendo com getúlio Vargas em 1932, deixou o Ministério do trabalho, cuja criação teria sido iniciativa sua, e apoiou o

movimento constitucionalista naquele ano. (n.F. e M.B.)

Sr. ministro. Meus amigos. Sinto, avalio bem e não tenho por que disfarçar as responsabilidades que começam a pesar-me neste momento. Sei que elas são das mais altas, das mais prementes e das mais graves. Venho da ação demolidora para a ação construtiva e terei de construir em terreno do qual ainda nem o levantamento topográfico foi sequer tentado com as cautelas e seguranças imprescindíveis.

É o Ministério do Trabalho, especificamente, o Ministério da Revolução. A mentalidade do governo de-posto, de que no Brasil as questões sociais são meros problemas de polícia, suscetíveis de solução pela ultima ratio das medidas repressivas, já impusera, de há muito, à consciência liberal da nação o mais justificado e pe-remptório dos protestos. O manifesto de 20 de setembro, o ideário em cujo derredor se feriu a campanha da Aliança Liberal, que terminou pela vitória da Revolução, vale neste, como em todos os seus capítulos, por compromisso de honra, a cujo resgate não nos poderíamos subtrair. Relembrando esse compromisso, a que dei toda a minha sinceridade de homem de pensamento e de pregador de ideias, quero proclamar que lamento apenas não haja sido possível confiar a mãos mais experimentadas do que as minhas a execução dessa parte do nosso programa, do qual, quando o redigi, não imaginara que me pudessem vir a caber tarefas de realização.

Assumo este novo posto de responsabilidade pública com a decisão de corresponder à confiança com que sou distinguido. No que a mim mesmo se refere, o meu programa é imensamente simples. Serei, daqui por diante, o que tenho sido em toda a minha vida política: um homem de boa-vontade. Tratarei de não ficar aquém das minhas responsabilidades. Indagarei, observarei, agirei. Das minhas esperanças, que espero não se transformem todas em desilusões, excluo desde já, e com toda a prudência, a preocupação de fazer milagres.

o proGrAMA Do noVo DepArtAMento

Quanto ao programa do novo departamento administrativo, ele pode ser resumido em poucas palavras. Creio que nenhuma inteligência honesta se lembraria de discutir, no Brasil, a conveniência da criação deste novo mi-nistério. Idealizado, a começo, como o órgão que houvesse de superintender apenas as questões relativas ao tra-balho, entendeu, depois, o chefe do governo provisório, que as suas funções devessem ser alargadas com o acrescentar-lhe as matérias administrativas atinentes à produção e à circulação da riqueza. Lógica, sem dúvida, essa deliberação, pela imediata interdependência dos problemas do trabalho com os da indústria e do comércio.

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O Ministério do Trabalho, da Indústria e do Comércio vai ter organização eminentemente prática e brasi-leira. As experiências e as observações de outros povos serão por nós cuidadosamente consultadas e tomadas em consideração. Mas os problemas brasileiros, decorrentes de causas especificamente nossas e traduzindo si-tuações peculiares ao nosso grau de desenvolvimento, esses não podem ser resolvidos com mentalidade estran-geira, impossível de transplantação literal para o nosso meio. Os princípios são universais: a sua aplicação, nacional.

Não tem havido, da parte da nossa administração, o cuidado de adaptar às nossas condições e possibilidades as experiências de outros países. Temos tido, em assuntos de legislação social, dois critérios: um, estrangeiro, puramente fictício, e um, nacional, sem a necessária atinência à situação real do país.

Ao passo que, dentro das nossas fronteiras, os poderes públicos vinham dando aos problemas sociais o mais integral do seu desprezo, gastávamos no exterior somas de vulto, com tomarmos assento em assembleias cujas resoluções nunca tiveram nenhum valor entre nós. Signatários do Tratado de Versailles, obrigâmo-nos a co-operar na Organização Internacional do Trabalho, “de maneira a melhorar as condições de existência das populações operárias, condições que significam para um grande número de pessoas a miséria, a injustiça e as privações, dando causa ao descontentamento que perturba a ordem social, com grande perigo para a paz e a harmonia universais”. Mas, apesar dessa declaração, cuja assinatura nos custou muito dinheiro, nunca ratifi-camos nem examinamos a maior parte das convenções por nós aprovadas. E um presidente houve que, na vigência desse compromisso, afirmou absoluta inexistência de qualquer questão social no Brasil.

A queStão SoCIAl

Volto a dizer, com o manifesto da Aliança Liberal, que a existência da questão social entre nós nada tem de grave ou de inquietador: ela representa um fenômeno mundial, é demonstração de vida, de progresso. O que de inquietador aparece no Brasil é a preocupação de ignorar oficialmente a existência de problemas dessa na-tureza e desse alcance.

o proBleMA DoS SeM trABAlHo

Se o trabalho ainda apresenta rendimentos extremamente precários entre nós, é porque ele nunca deixou de ser empiricamente realizado. Pois poderá conceber-se fenômeno menos explicável, no Brasil, do que o dos homens sem trabalho, tanto em discussão nestes últimos tempos?

Fixemos, no que ao Rio de Janeiro se refere, as linhas principais do fenômeno. Dentro do próprio Distrito Federal e fora dele, sobre as suas fronteiras, jazem completamente abandonadas enormes extensões de terra, à espera que as fecunde a energia humana, e dentro da cidade acotovelam-se homens sem trabalho, ao passo que, para o desenvolvimento da nossa produção, continuamos a apelar para o esforço dos alienígenas. Claro que nada mais precisa ser dito, neste particular, para deixar assinalada a desorganização do nosso trabalho. E, se alongarmos o olhar para o interior, as observações só poderão confirmar a precariedade do nosso ritmo eco-nômico.

É essa desorganização, incipiente ainda, que o poder público tem de enfrentar resolutamente, já e já. A sua atividade reguladora encontra, porém, desde logo, uma dificuldade preliminar: é a falta de estatísticas seguras, relativas ao trabalho, no momento atual. Sem estatísticas não é possível nenhuma ação social merecedora des-se nome.

Mas as boas estatísticas não se improvisam, e males existem, decorrentes da desorganização do trabalho, que exigem solução imediata. A quem tem fome não se pode dizer que espere pelos resultados de um estudo cien-tífico. O que o desocupado quer é trabalho, para evitar ou matar a fome. Eis por que, apenas fixadas as grandes linhas gerais do quadro, a ação do poder público deverá intervir, imediatamente, no sentido de criar o ambien-te econômico favorável ao desenvolvimento do trabalho. Aos que disserem que isso é difícil, responderemos que, se fácil fora, desnecessária seria a assistência do Estado: as coisas se resolveriam por si mesmas. E não ha-veria falta de trabalho, nem injustiças sociais a sanar.

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o ASpeCto eConôMICo nACIonAl

Na verdade, o aspecto econômico por forma alguma pode ser considerado exclusivo na solução de tais proble-mas. Pelo contrário, ao fator econômico sobreleva em importância a necessidade da justiça social.

Examinemos com olhos humanos as condições do trabalho no Brasil e concluiremos que o operariado bra-sileiro merece e requer a nossa assistência e proteção em vários e vários capítulos; onde, por muitas regiões, a garantia de salários dignos e remuneradores; onde a proteção indispensável a todo trabalho humano; onde a regularização do trabalho de mulheres, de adultos e menores; onde os seguros sociais, as aposentadorias, as casas higiênicas e baratas, as escolas, os recreios, para não falar senão naquilo a que todo homem deve ter di-reito, como tem direito ao sol.

A proDução e A CIrCulAção DA rIquezA

Por outro lado, examinemos onde residem as causas da dificuldade que oneram a produção e a circulação da riqueza no nosso país. Tratemos de am parar a produção, não apenas com barreiras alfandegárias, que, em vez de baratear a vida, a encarecem, mas com medidas adequadas ao melhor aproveitamento das nossas energias e das nossas matérias-primas.

Problema que imediatamente merecerá as atenções da administração é o que se refere aos motivos da super-produção ou, melhor, da falta de colocação para os nossos produtos. Complexo é esse problema da vida nacio-nal, e por certo não se lhe poderá dar solução sem um golpe de vista conjunto sobre todos os seus contornos. Entre indústrias e indústrias há que distinguir, para não agrupar na mesma chave o trabalho das nossas matérias-primas e a impudica exploração do povo, feita à sombra de favores aduaneiros, que outra coisa não fazem senão encarecer o custo das subsistências. Assim, que se proíba a importação de artigos de luxo e dos similares aos de produção nacional, pelo tempo que as circunstâncias indicarem; mas que se acabe resolutamente com as tarifas protecionistas de indústrias que não podem ter existência real no Brasil.

BAIXA GerAl Do níVel DoS preçoS

Deve o nosso maior esforço tender, neste momento, por produzir uma baixa geral nos níveis dos preços. Há impostos que precisam ser abolidos, fretes marítimos que são exagerados, tarifas ferroviárias que só conseguem trazer dificuldades à circulação.

Não se pode, com lógica, falar na conquista de novos mercados, enquanto a política econômica do Brasil parece preocupada em criar toda a sorte de embaraços à expansão das nossas atividades. Desde logo, o Brasil deve ser um ótimo mercado para o Brasil. Não é o comércio internacional, como a olhos ingênuos se afigura, o índice diferencial no progresso dos povos. Ao homem dos Estados Unidos corresponde, possivelmente, um per capita menor na percentagem dos negócios internacionais, do que nas dos números correspondentes a vários países centro-americanos.

InCentIVo Ao trABAlHo e JuStIçA SoCIAl

Entre as matérias extremamente complexas que passarão a ter justificação administrativa no novo ministério, impossível seria elaborar um plano de ação minudente e invariável. Nada há mais variável do que o critério da administração. O que se pode e deve é estabelecer as diretivas gerais, de ordem econômica e social, a que fi-cará adstrita a atividade do administrador. Este critério pode ser resumido em poucas palavras: incentivo ao trabalho e à justiça social.

Sem dúvida, difícil é a hora que vivemos. A inépcia do governo que acaba de ser deposto pela revolta do povo brasileiro deixou-nos a braços com múltiplos problemas, alguns de angustiosa premência, urgente solução. O governo, por si só, não pode oferecer remédio a esses problemas. Mas, para um povo que deu, da sua fé, do seu entusiasmo, da sua energia e da sua bravura, tão alta e impressionante prova como esta, com que o Brasil acaba de revelar-se aos seus próprios olhos, para um povo como o brasileiro não existem obstáculos insuperáveis. Por grandes que sejam as nossas dificuldades, elas são pequenas em relação, já não das nossas riquezas, que nada

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valem enquanto não forem exploradas, mas da nossa capacidade de agir, que, esta sim, não se arreceia de ne-nhum esforço, e deve constituir o primeiro, o melhor e o mais justo motivo do nosso orgulho.

Encerro, sr. ministro e meus amigos, estas palavras iniciais da minha ação administrativa. Elas não têm a pretensão de constituir um programa. O meu programa é a ação. Vamos começar a agir.

Fonte | LIMA, Mario de Andrade (Org.). Lindolfo Collor: origens da Legislação Trabalhista Brasileira. Porto Alegre: Fundação Paulo do Couto e Silva, 1991.

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1931 | Victor rAúl hAyA de lA torre

programa mínimo do partido Aprista peruano*

no mesmo período em que Mariátegui definia a sua vocação pelo socialismo, outro político e pensador aparecia no cenário peruano,

Víctor raúl Haya de la torre (1895-1979). Mariátegui e Haya compartilharam referências semelhantes, porém, a ênfase nacionalista e anti-imperialista de Haya e o compromisso de Mariátegui em formar

um partido marxista acabaram provocando a ruptura entre ambos.

Haya ficou com o controle da Apra (Alianza para la revolución Americana), que foi um movimento que pretendia unir o leninismo

a um nacionalismo anti-imperialista. porém, diferentemente de tantos militantes do período, não foi a revolução soviética que levou

Haya à política, mas, sim, o movimento pela reforma universitária, deflagrado em Córdoba, na Argentina, em 1918. De acordo com os objetivos do reformismo, a Apra tinha como objetivo ser um

movimento de tipo continental que se opunha à política dos estados unidos para a América ao sul do rio grande, e, ao mesmo tempo, lutava para que os setores populares alcançassem o poder. em seu

apogeu, a Apra teve ramificações na Argentina, em Cuba e no México. essa política americanista levou Haya de la torre a um longo exílio no

México. Com o tempo, a Apra mudou de orientação política, optando pelo pragmatismo, que a afastou dos setores populares, perdendo

o impulso reformista e se incorporando ao sistema. o documento a seguir apresenta os objetivos e as contradições da Apra. (n.F. e M.B.)

Companheiros do Partido.Meus concidadãos:Minha palavra inicial há de ser a que expresse minha profunda satisfação ante o feito desta magnífica assem-

bleia. O Peru está, finalmente, alcançando o advento da democracia, da boa democracia, renovada sob as bandeiras do aprismo. Já não é a velha democracia verbal que encobriu tantas tiranias. Agora é a democracia autêntica, que o povo forja, que o povo defende e está disposto a se sacrificar até o fim para vê-la afirmada e transformada em nosso país que bem a necessita. Disse que o aprismo renova a democracia porque o aprismo incorpora, pela primeira vez na política nacional, novas ideias, novos homens, novos métodos; e, sobretudo, porque o aprismo está defendendo que é necessário ser responsável na política. À nossa política, faltou respon-sabilidade. Por isso careceu de prestígio, careceu de ação, careceu de força autêntica nas raízes populares. Po-lítica à base de suborno, à base de ameaça, à base de engano não pode ser política de responsabilidade.

Eu, nesta tarde, vou me permitir fazer uma breve análise do que é o aprismo. Não posso deixar de dizer que lamento profundamente a posição incômoda de tantos cidadãos que me escutam, que hão de se ver obrigados a me ouvir de pé. Cabe-me, entretanto, uma satisfação: eu também estou de pé.

proGrAMA MáXIMo e proGrAMA MínIMo

Como nunca tivemos no país partidos de princípios, confundiu-se frequentemente o programa máximo e o programa mínimo do aprismo. Todos os partidos modernos têm um programa máximo e um programa mí-nimo. No Peru pretendeu-se confundir estes dois aspectos de nossa ideologia.

O programa máximo do aprismo tem um significado continental que não exclui o programa de aplicação nacional. Nós consideramos que o Peru não pode afastar-se dos problemas da América Latina e que a Améri-ca Latina não pode afastar-se dos problemas do mundo. Se vivemos dentro de um sistema econômico interna-cional e a economia tem um papel decisivo na vida política dos povos, seria absurdo pensar que o Peru, que conta com uma economia em parte dependente desse organismo econômico internacional, pudesse viver iso-

* No original, Programa Mínimo del Partido Aprista Peruano. Pronunciado na Plaza de Toros, no distrito de Acho, em Lima, no dia 23 de agosto.

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lado contra todo preceito científico e contra toda corrente de relação que é garantia do progresso.[...]

rAzão Do MoVIMento AprIStA

O movimento aprista é um movimento que tende, fundamentalmente, a resgatar para a organização política do país o equilíbrio.

Nós não podemos unir, todavia, sob um controle direto e homogêneo, os dois aspectos de nossa economia; temos que tratar de controlar e de respaldar a luta de interesses por meio de uma organização nova do Estado, com representação dentro dele do que há de força de trabalho no país; criação de riqueza e proteção da econo-mia, base fundamental da nacionalidade. Nós necessitamos, consequentemente, de um Partido de classes pro-dutoras e médias porque elas são as classes responsáveis pela produção e pela circulação da riqueza nacional.

Este é o esquema econômico justificativo do ideário político do aprismo.Eu quis deixar bem claro o conceito fundamental que, na ordem econômica, é a base da nossa organização

política. Conceito fundamental que, talvez com excesso de insistência, vou repetir, dizendo que, de acordo com a realidade nacional na qual não há definição econômica clara, porque não é um país industrial, mas sim um país camponês, carecemos do aspecto moderno de uma organização agrária e, tendo uma numerosa classe média sem garantias, é necessário lhe dar o apoio do Estado. A classe camponesa, a classe média e a classe pro-letária industrial devem unir-se, somando seus interesses ou vinculando o que há de comum em seus interes-ses, para alcançar politicamente o controle do Estado. É este o motivo de formar a nossa aliança com os traba-lhadores intelectuais que integram a classe média, e, também, porque nossas classes produtoras não receberam do Estado o auxílio de cultura que lhes permitiria ter seu próprio conteúdo intelectual. Quanto aos demais, esse fenômeno é novo. Assim ocorreu na Inglaterra com a fundação do Partido Trabalhista. Ali se produziu, sob a iniciativa do mineiro Keir Hardie, a aliança do proletariado com os intelectuais da Sociedade Fabiana.1 Esse operário, saído das minas de Gales, pensou que não era possível, todavia, ao proletariado inglês, apesar de sua velha organização e de seu tempo já longo de vida enquanto classe, uma ação política independente. Então, os operários das Trade-Unions se juntaram com os intelectuais fabianos formando este grande partido de es-querda que se chama Labour Party. Ainda que este seja um exemplo ilustrativo, é preciso sublinhar que nosso problema é outro, naturalmente, e, por isso, o programa e a orientação do aprismo são perfeita e claramente nacionais.

Pois bem. Organizando um partido político que seja a representação das três classes, média, proletária e camponesa, nós consideramos a organização do Estado. Contudo, nos encontramos com problemas de ad-ministração e de técnica estatal que merecem atenção imediata; trata-se de um país que descuidou de sua cultura política, de sua cultura geral, de sua cultura propriamente econômica; um país onde vivemos dese-quilibrados, onde falta uma economia própria que provenha da nação sem viver subordinada à parte de nossa economia vinculada aos interesses estrangeiros; um país onde não há respaldo econômico próprio para resistir a uma crise mundial, um país onde, por falta de uma economia própria, se produz um fenômeno como o do desemprego, que é característico de organismos industriais avançados. Como é possível que neste país se produza o fenômeno do desemprego, que é característico de uma industrialização desenvolvi-da, sem que nós tenhamos cruzado essa etapa do capitalismo? Somos como uma criança que teve todos os defeitos do velho sem haver gozado das horas venturosas da maturidade. E isto somente pode ser explicado pela desorganização de nossa economia e, sobretudo, por sua desnacionalização. Num país assim, é neces-sário reorganizar o Estado sobre a base do conceito econômico da política e, naturalmente, para reparar os erros do passado, sobre a base da técnica.

1 Sociedade de intelectuais socialistas reformistas ingleses (N. do T.).

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o eStADo AprIStA

Nós, os apristas, propomos um novo tipo de Estado baseado não no cidadão como quantidade, mas no cidadão como qualidade. Por isso, nosso Estado deverá ser um Estado de participação de todos aqueles que, de uma forma ou de outra, contribuam com o trabalho, quer dizer, com a formação da riqueza nacional. Queremos um Estado no qual cada homem participe, sem abandonar sua função vital de trabalhador; queremos um Estado no qual o técnico e o especialista dirijam as atividades estatais a fim de poder rumar cientificamente para um novo caminho que resolva nossos grandes problemas. Tratamos de organizar um Estado técnico; tratamos de nos aproximar da democracia funcional. Este é o princípio fundamental do aprismo, no que diz respeito à organização do Estado.

o ConGreSSo eConôMICo e o proGrAMA Do pArtIDo

Daí que um dos pontos de partida de nosso programa seja o que nós chamamos de Congresso Econômico. Se não conhecemos a realidade econômica, se não sabemos tampouco sequer quantos habitantes têm o Peru, se não temos auscultado cientificamente nossos problemas vitais, é necessário começar por uma prévia investiga-ção desses problemas. Como carecemos do saber técnico e administrativo de investigação, que, por sinal, nunca tivemos, necessitamos reunir uma assembleia de caráter econômico na qual estejam representados todos os que intervêm de alguma forma na produção da riqueza: capital e trabalho nacionais e estrangeiros, visto que formam parte de nossa economia; comércio e indústria; transporte; agricultura etc. O operário e o camponês frente a frente com o empresário e o proprietário para que juntos discutam nossa realidade, para investigar o que somos economicamente e, uma vez que conheçamos o que somos, o que temos, do que necessitamos e o que podemos ter, não com um conceito arbitrário e empírico, mas sobre a realidade eloquente e indiscutível das cifras, então, começaremos a reorganização do Estado, sabendo para onde vamos e sabendo qual deverá ser a base econômica de nossas promessas políticas.

Companheiros: por isso o aprismo não fez um programa com uma lista de promessas, que poderia resultar interminável num país como o nosso, onde está tudo por fazer. Porque é necessário renovar o conceito do político e, dando-lhe um conteúdo econômico, investigando nossa realidade, descobrindo nosso meio de vida e consultando as bases de nossa economia, podemos construir a arquitetura de nosso futuro político. Se nós conhecemos qual é nossa verdadeira organização econômica; se nós descobrimos o que é que economicamen-te se necessita; quais são nossas fontes de riqueza verdadeiras e saudáveis; se nós podemos chegar a conhecer as próprias bases de nossa economia, teremos, então, nessas bases, os pilares de um novo programa de reconstru-ção da base de produção: reconstrução que poderia ser garantida e financiada pelo Estado, desde que este conte com a vontade indeclinável do trabalho que constitui sua base. Esse plano de progresso econômico é um plano nacional e não do Partido. É o plano prévio para a organização do Estado; é o plano de uma nova as-sembleia, na qual já não se pronunciariam discursos eloquentes sobre a democracia pura, nem se lançariam promessas mais ou menos belas de reconstrução, mas sim, na qual se erigiria a cifra como garantia de tudo o que se pretende fazer na política e na administração. O plano não exclui algumas reformas de caráter imedia-to, que se referem à arquitetura do nosso Estado. Nós devemos tender, fundamentalmente, para organizar um Estado com servidores técnicos. Para este fim, há que se excluir, tão logo seja possível, a politicagem da admi-nistração e, segundo este propósito, acabar com os empregos de favor, estabelecer uma medida, o exame de todos os que queiram servir ao Estado, abolir as cartas de recomendação, terminar com a mendicância nas portas dos ministérios e com a entrega de empregos como pagamento de serviços eleitorais.[...]

o que o AprISMo eXIGe

O que o aprismo exige, sim, de seus membros, é honestidade, sinceridade e firme propósito de sacrifício. Nós não somos uma força política para compartilhar empregos públicos. Nós não somos uma força política que faça falsas promessas; nós estamos longe da demagogia; nós queremos exigir do povo seus deveres no atual momen-to; queremos lhe dizer que há que se resgatar o que se perdeu moral e materialmente para a nação. As forças

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que até hoje permaneceram alijadas da vida política da República, elas é que são o que há de mais puro, de mais forte, de majoritário na vida nacional. São as forças que devem se incorporar e cumprir tal tarefa. Con-tudo, nós somos e seremos forças de esquerda, pois a direita fracassou.

Vamos nós demonstrar que a esquerda pode governar o país. Vamos demonstrar também que nossa força não aponta para extremismos inúteis. Aqueles que nos chamaram de força dissolvente equivocaram-se porque o aprismo é, em si, um organismo perfeitamente sistematizado e disciplinado, que marcha com os pés sobre a arena e olhando de muito perto nossa realidade. Vamos, pois, concidadãos, cumprir uma tarefa que é verda-deiramente grande para todos nós. E daqui peço a todos os que não concordem com o ideário do aprismo, que combatam as ideias com ideias; que não recorram aos métodos inconfessáveis da paixão política; que, como disse ao chegar em Lima, contribuam todos para elevar e dignificar a consciência nacional. O aprismo, cujo credo é a justiça e que pressupõe nobreza e sabedoria, não pode se reduzir à vingança ou ao rancor. Nós abri-mos os braços a todos aqueles que querem discutir nossas ideias, nossos princípios. Nós não somos nem exclu-sivistas, nem oportunistas. Nossa força, justamente por ter suas raízes na consciência pública, justamente por ser verdadeira, tem que demonstrar generosidade e tem que contestar o ataque insidioso que sofre sem violên-cia, demonstrando que nós não vamos entrar nesse terreno, que chegou a hora de dar o exemplo ante o país e ante a América de que é possível, no Peru, achar formas de luta mais dignas, mais conscientes.

Essa nossa atitude não pressupõe nem pessimismo, nem debilidade. Nós temos consciência de nossa posição na política. Nós sabemos muito bem que cada aprista deve responder como eu à pergunta sobre se nós pagamos algo para aumentar as fileiras de nosso Partido. Por isso posso perguntar, não apenas aos apristas, mas a todo o país, se alguém soube que nosso Partido tenha dado algum dinheiro para subornar uma consciência ou para comprar um voto.

Aqueles que não podem compreender as grandes manifestações do despertar da consciência cidadã de um povo, podem pagar. Entretanto, não é possível que no Peru venha a germinar a política clientelística, aquela política que tende a desviar a consciência do povo para impedir que se caminhe para as grandes realizações.

Por isso, nós temos que nos apresentar sempre ante o país dizendo o que realmente significa a obra do apris-mo, proclamando que pode ser que estejamos equivocados — no que eu não acredito — mas jamais poderá ser dito que nós procedemos com falsidade e, ainda menos, que procedemos por interesse.

leVAntAr o eSpírIto Do poVo

É muito difícil levantar o espírito de um povo. É muito difícil conduzir as grandes massas de homens e levá-las por novos caminhos, levá-las para novas teorias sobre a ordem política. Contudo, nós estamos realizando esta obra; nós, todos os apristas, sem exceção, estamos demonstrando ao Peru que é possível, finalmente, que o povo entenda e que, se não entende, observe e sinta o que é um novo ideário de reivindicações integrais; que não é preciso se perder em extremismos inúteis; que não necessitamos das receitas europeias para dar denomi-nação a nosso movimento; que nosso movimento surge de nossa realidade e que, se surge da nossa realidade, é peruano, absolutamente peruano.

Por isso, companheiros e concidadãos, o aprismo, de um lado, levanta a bandeira do governo científico, do governo baseado na economia, do governo baseado na investigação, do governo baseado na capacidade e, de outro, levanta a bandeira de um movimento político firmado na emoção. Nós somos os que, ao mesmo tempo, proclamamos a necessidade de um governo científico, de um governo de método, de um governo de discipli-na, mas somos também os que invocamos emoção, entusiasmo, fé e decisão para aqueles que foram chamados para impor tal tipo de governo.

Devemos nos fortalecer cada vez mais. Nosso movimento ruma para frente sempre, entoando cantos vito-riosos. Eu acabei de ver aqui, concidadãos, a saudação que me haveis feito, levantando vossos títulos eleitorais; isso é, sem dúvida, simpático num país em que se desconhecia até agora o valor moral, não o valor mensurável, do título eleitoral.

E essa atitude indica, pois, que o aprismo tem o apoio do povo bom, esse que verdadeiramente pratica a democracia. Por isso, nós defendemos e defenderemos o voto secreto, que é menos influenciável que o voto

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aberto. Por isso, nós mantemos o princípio da eleição livre e legal, porque a eleição livre e legal nos dará a vitória. Por isso nós reivindicamos a independência do eleitor, a garantia do eleitor. Por isso é que nós nos preocupamos que cada um compreenda o que significa a função do votante. Nós estamos contribuindo para o advento da democracia verdadeira. Por isso é que, convencidos da concepção clara de nossos princípios demo-cráticos, preferiríamos ser derrotados a sacrificar o que há de moral e de puro em nosso movimento.

Nós queremos, vencidos ou vencedores, deixar no país o exemplo de um Partido que apareceu sem outra força que não fosse o entusiasmo do povo. Nós queremos que o legado de nosso Partido para a história nacio-nal seja o mesmo que deixaram as grandes tentativas que jamais podem ser apagadas de nossa memória. Nós somos os herdeiros do pensamento magnífico de Manuel González Prada. E se nós sabemos que González Prada não pôde chegar a ser Presidente do Peru e que outro político também de grande importância e, sem dúvida, raro no meio de nossa política, D. Nicolás de Piérola, foi derrotado em 1904 e afastado da luta em 1908, nós queremos que na história não se repita este caso. Nós queremos a voz e o voto da opinião pública; que o anseio nacional não se engane; e, por isso, organizamos uma força perfeitamente definida e disciplinada que está disposta a ir à luta para demonstrar que no Peru já existe força suficiente para que se respeite a opinião da maioria.

Com a consciência exata de nossa missão histórica, concidadãos, queremos deixar ao futuro um exemplo; queremos que as gerações jovens do Peru, que os que venham depois de nós, respeitem a lei e sigam nossos passos; queremos que não seja perdido o rastro luminoso do Partido Aprista Peruano, cujo ideário pode ser heresia para muitos hoje, mas há de ser, segundo o pensamento do Mestre,2 crença do amanhã.

SAuDAção

Saúdo, pois, em nome do Partido Aprista Peruano, não apenas os apristas presentes, saúdo também os que, sem pertencer ao nosso Partido, adversários ou não, vieram contribuir esta tarde nesta manifestação de cultura, esta manifestação talvez sem precedentes no país, e para demonstrar que podem ser adversários respeitosos e leais oponentes amanhã.

E, em nome deste Partido que não recebe ouro de ninguém, que vive pela cooperação de todos, agradeço também aos que, sendo adversários ou indiferentes, contribuíram esta tarde para dar força econômica a nossas caixas de luta.

E agora, companheiros, saúdo os apristas de Lima, saúdo os cidadãos aqui reunidos e lhes pergunto depois desta breve enunciação, que poderíamos chamar de ideário de nosso Partido, se não poderão acolher o grito que eu lanço, grito que expressa a ânsia de todo o Peru: “Somente o aprismo poderá nos salvar!”

Fonte | Marxists Internet Archive, 2002. Disponível em: <www.marxists.org>.

2 Referência a Manuel González Prado chamado pelos apristas e, sobretudo, pelo próprio Haya de la Torre, de “maestro”. Considerado um grande intelectual, foi um dos inauguradores do pensamento moderno peruano (N. do T.).

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1932 | fArABundo mArtí

Manifesto do partido Comunista de El Salvador aos soldados do Exército

Foi na universidade nacional de el salvador, aos 20 anos, que Farabundo Martí (1893-1932) realizou as primeiras ações políticas, em oposição ao regime oligárquico de seu país. participou de movimentos

operários e camponeses na guatemala e no México, tornou-se secretário de relações Internacionais do então criado partido

Comunista Centro-Americano e trabalhou com a Federação regional de trabalhadores de el salvador. Conheceu Augusto César sandino

em 1928, quando foi à nicarágua como representante da liga Anti-Imperialista das Américas e envolveu-se ativamente com sua luta.

Com a crise de 1929 e o colapso da economia em seu país, pioraram ainda mais as condições miseráveis às quais a população, de maioria

indígena, estava submetida. em 1930, Martí ajudou a fundar o partido Comunista de el salvador, que acabou se tornando o canalizador das reivindicações dos trabalhadores e camponeses descontentes

com o regime oligárquico de Maximiliano Hernandez Martínez. Agindo de forma independente da Internacional Comunista (IC), o partido idealizou uma insurreição, em 1932, a fim de implementar

um governo socialista. no entanto, os planos foram descobertos e os principais líderes acabaram presos e, em sua maioria, mortos.

Irrompeu então uma insurreição popular, com a participação de mais de 40 mil combatentes, sob a liderança dos comunistas, tendo sido

brutalmente reprimida, deixando cerca de 20 mil mortos. sua luta seria resgatada pela Frente Farabundo Martí de libertação nacional

(FMln), atuante até os dias de hoje em el salvador. (n.F. e M.B.)

Camaradas:O Comitê Central do Partido Comunista dirige-se a vocês no momento em que as classes trabalhadoras da

República começam a luta armada para conquistar o poder, que utilizarão para se libertar e libertar vocês do jugo do capital e dos grandes donos de terras que hoje estão condenando à fome muitíssimas famílias trabalha-doras em fábricas, estradas de ferros, oficinas, fazendas e outras empresas capitalistas, com salários tão baixos que não são suficientes para remediar a miséria de todos os que produzem as riquezas.

Vocês mesmos conhecem as matanças provocadas pelos governos de Romero Bosque, Araujo e Martínez, de acordo com os ricos e o imperialismo, entre os trabalhadores de Santa Tecla, Sansonate e Zaragoza, e, ul-timamente, no dia 5 deste mês, no distrito de Santa Rita, jurisdição de Atiquizaya. Vocês também sabem que as greves declaradas por nós, trabalhadores, têm o objetivo de obrigar os ricos a aumentarem nossos salários, pois não podemos viver com estes pagamentos de agora, que sempre foram miseráveis. Os ricos e o governo não querem que os trabalhadores organizados exijam os seus direitos, e por isso mataram e matam, prenderam e prendem centenas de trabalhadores, enviando-os à estrada de Cojutepeque,1 apesar de as greves terem sido feitas de forma pacífica.

Este Comitê Central tem guiado os trabalhadores nas eleições municipais e legislativas. Em todas as cidades, vilas e povoados, todo o mundo percebeu que o Partido Comunista é o maior de todos, tendo obtido a maio-ria dos votos, como disseram os próprios jornais da classe rica; mas, apesar desta maioria, o governo de Mar-tínez, criado dos ricos, não permitiu que os trabalhadores ocupassem as prefeituras, nem os cargos de deputa-do na Assembleia Nacional.

Os ricos e o governo compreendem que os trabalhadores no poder teriam favorecido a classe pobre, que tem estado a vida inteira sob o jugo da escravidão.

Por esses motivos, o Comitê Central do Partido Comunista tem armado todos os operários, operárias, cam-poneses e camponesas para conquistar o poder e estabelecer um governo de operários, camponeses e soldados

1 Cojutepeque é a capital do departamento salvadorenho de Cuscatlán. A construção da estrada era feita, em larga medida, com mão de obra compulsória (N. do T.).

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que, representados pelos conselhos formados por eles, terão toda a força para esmagar sem piedade os ricos e a burguesia em geral, dando as terras aos camponeses e soldados, e protegendo os camponeses pobres que têm seu pedacinho de terra, pois nossa luta dirige-se contra os ricaços que possuem grandes propriedades e fazen-das, e não contra os que têm apenas um pedacinho e nem sequer têm onde cair mortos.

O levantamento armado das massas operárias e camponesas, dirigido por este Comitê Central, deve encon-trar em vocês, camaradas soldados, toda a ajuda, todo o apoio que vocês forem capazes de dar como nossos irmãos na luta mortal contra os ricos exploradores, que são os mesmos que os condenam à disciplina dura do quartel, sem lhes pagar nada e usando-os apenas para oprimir a mesma classe dos pobres à qual vocês também pertencem.

Quando começar o movimento armado, quando as grandes massas de trabalhadores se levantarem com o grito da revolução, vocês devem eleger delegados que receberão amplas instruções do Comitê Central. Devem eleger comitês de soldados entre vocês, assim como um soldado para ser o Comandante Vermelho, que os dirigirá no movimento de acordo com este Comitê Central. Não devem disparar nenhum tiro contra nós.

Viva o Exército Vermelho!Viva o Comitê Central do partido que é o chefe da revolução proletária!Abaixo os oficiais e os chefes!

San Salvador, 20 de janeiro de 1932.

Fonte | DALTON, Roque. Miguel Mármol: El Salvador, 1930-32. Pensamento Crítico, Havana, n. 48, p. 98-106, jan. 1971. Traduzido por Claudia Shilling e Luis Carlos Borges. Transcrito por: LOWY, Michael. O marxismo na América Latina: uma antologia de 1909 até os dias atuais. 2ª ed. ampl. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1996. p. 124-129.

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1935 | AliAnçA nAcionAl liBertAdorA (Anl)

programa do governo popular nacional-Revolucionário

A Aliança nacional libertadora (Anl) foi uma frente político-social reunindo um conjunto de forças, entre as quais exercia uma certa preponderância o partido Comunista do Brasil, fundado em

1922. também participavam da Anl socialistas, a ala esquerda do tenentismo e muitas pessoas sem vinculação partidária, sob a

liderança simbólica de luís Carlos prestes, que havia se tornado dirigente comunista. Depois da dissolução da Anl, os comunistas

promoveram, em seu nome, a insurreição de novembro de 1935, na qual participaram militantes da Internacional Comunista, europeus e de outros países da América do sul. A proposta da revolução estava

definida como nacional-democrática, mas o processo insurrecional foi muito mais um movimento militar, herdeiro do tenentismo, do que

uma revolução popular.

o programa preparado para a insurreição visava implementar um governo popular, democrático, que garantisse a soberania do país

ante as pretensões imperialistas dos capitais estrangeiros. pode-se perceber, assim, um tom nacionalista nas propostas, nas quais constam igualmente a defesa de uma legislação social mínima, a

garantia da terra aos que a trabalham e a formação de um exército nacional revolucionário. A insurreição de 1935 e a experiência revolucionária de el salvador de 1932 são as únicas exceções

registradas no âmbito da estratégia comunista de aceitação da luta política dentro do sistema democrático na América ao sul do rio

grande. (n.F. e M.B.)

Com o objetivo principal de desfazer mal-entendidos, assim como o de responder às interrogações de muitos companheiros aliancistas, passamos a dar algumas informações concretas sobre o caráter do Governo Popular Revolucionário, pela implantação do qual nos batemos, como libertadores do Brasil e verdadeiros democratas, isto é, como membros ativos da Aliança Nacional Libertadora.

1) Caluniam a ALN e fazem evidentemente um trabalho de provocação policial todos aqueles que dizem ser a nossa organização uma simples máscara do Partido Comunista, porque a ANL é uma ampla frente única nacional, contra o imperialismo estrangeiro que nos escraviza e contra o fascismo que, em países como o nos-so, é instrumento do mais hediondo terror a serviço do imperialismo, incapaz de continuar dominado pelos antigos métodos até agora empregados.

Da mesma maneira, não compreendem nada sobre as intenções dos libertadores do Brasil ou são simples agentes provocadores dos nossos adversários, aqueles que pretendem confundir o Governo Popular Nacional-Revolucionário pelo qual se bate a ANL com um governo soviético, com a ditadura democrática de operários e camponeses, soldados e marinheiros.

Nas condições atuais do Brasil, diante da ameaça do mais terrível fascismo, diante da completa colonização do nosso país pelo imperialismo, ao qual vai ele sendo vendido cinicamente pelo governo de traição nacional de Getúlio e de seus mais fiéis lacaios nos estados, o que nós, da ANL, proclamamos, é a necessidade de um governo surgido realmente do povo em armas, compreendendo como um povo, a totalidade da população de um país, com exclusão somente dos agentes imperialistas e da maioria insignificante que os segue. Esse gover-no não será somente um governo de operários e camponeses, mas um governo no qual estejam representadas todas as camadas sociais e todas as correntes importantes, ponderáveis, da opinião nacional. Será um governo popular, na estrita significação da palavra, por se apoiar nas grandes organizações populares, como sindicatos, organizações camponesas, organizações culturais, forças armadas, partidos políticos e democratas etc, e terá à sua frente os homens de real prestígio popular, os homens que em cada lugar representam a realidade, o povo ou a população local. À frente de tal governo, como chefe inconteste, com maior prestígio popular em todo o país, não é possível encontrar um nome capaz de substituir o de Luís Carlos Prestes, porque o nome de Prestes

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representa para as grandes massas de todo o país a garantia de que tal governo lutará realmente, efetivamente, pela execução do programa da ANL; e garantia de que tal governo não seguirá pelo caminho dos anteriores, pelo caminho trilhado por Vargas, de completo abandono das promessas de 1930 e de franca e cínica traição nacional.

Convém aqui um esclarecimento oportuno. Com o crescimento impressionante do prestígio da ANL, dela se aproximam muitos elementos que dizem concordar com o seu programa e mesmo com a implantação de um governo popular no Brasil, mas sem Prestes, ou, pelo menos, sem que Prestes seja em tal governo a figura central e decisiva. Pode parecer, à primeira vista, que se trate exclusivamente de uma questão pessoal e nada mais. Mas isso não é exato. É indispensável que todos os aliancistas compreendam o fundo evidentemente contrarrevolucionário de tal tendência. Afastar a figura nacional popular e revolucionária de Prestes da direção do governo é conspiração dos que temem a execução do programa da ANL, a luta contra o imperialismo e a satisfação dos interesses populares. É querer seguir o mesmo caminho de 1930, o caminho da traição, o cami-nho da liquidação progressiva dos verdadeiros revolucionários. Por isso, precisamos mostrar ao povo que os defensores de tal ponto de vista são organizadores, desde já, em nossas fileiras, da contrarrevolução.

2) O Governo Popular, como representante dos interesses das grandes massas da população, só poderá ser exercido sob o controle direto do povo, praticando a democracia no seu sentido mais alto pela prática da com-pleta liberdade de pensamento, de palavra, de imprensa, de organização religiosa, racial, de cor etc. O Gover-no Popular só poderá viver na prática e na execução de todas as medidas solicitadas pelo povo, por meio de suas mais diversas organizações. O Governo Popular será a democracia praticada pela primeira vez em nosso país, será realmente o governo do povo, porque em tal governo o povo intervirá diretamente com suas suges-tões, exigências, participando também praticamente na execução das medidas que lhe interessem. À frente de tal governo poderão ficar homens de real prestígio popular. Nestas condições, no Governo Popular deverão estar representadas todas as camadas sociais, inclusive a burguesia nacional pelos seus elementos realmente anti-imperialistas e antifascistas. O Governo Popular, governo surgido do povo em armas, não será um gover-no somente de operários e camponeses, será o governo da ampla frente única de todos os brasileiros anti-im-perialistas.

3) Mas, ao mesmo tempo, esse governo será um Governo Nacional Revolucionário, porque, ante o imperia-lismo e seus agentes, esse governo será profundamente revolucionário, não se conhecendo nem dívidas, nem tratados, nem acordos, nada em suma de tudo o que significa a vergonhosa entrega do Brasil aos capitalistas estrangeiros. Diante do imperialismo, o Governo Nacional Revolucionário será, realmente, nacional e revo-lucionário, profundamente, radicalmente, energicamente, revolucionário. Neste sentido, é indispensável que se acentue que esse será o único governo capaz de uma atitude enérgica face aos dominadores estrangeiros, porque apoiado por todo o povo, exercido pelos seus chefes de maior prestígio popular, sofrendo a influência direta das grandes organizações de massa, apoiado nas forças armadas de todo o país, será o primeiro governo em nosso país dentro da democracia popular que será capaz de exercer a mais dura ditadura contra os imperia-listas e seus agentes. Democracia, sim, mas para o povo, para os brasileiros e para todos os que trabalham ho-nestamente sem explorar o Brasil; mas a mais dura, mais enérgica e mais terrível ditadura contra o feudalismo estrangeiro e contra os seus agentes no Brasil, contra os brasileiros que vendem sua pátria ao imperialismo. Dar liberdade aos agentes do imperialismo seria negar o conteúdo nacional-revolucionário de tal governo e suicí-dio da própria revolução libertadora.

4) O Governo Popular Revolucionário não significará a liquidação da propriedade privada sobre os meios de produção, nem tomará sob seu controle as fábricas e empresas nacionais. O referido governo, dando início no Brasil ao desenvolvimento livre das forças de produção, não pretende a socialização da produção industrial e agrícola porque, nas condições atuais do Brasil, só será possível, com a implantação da verdadeira democracia, liquidar o feudalismo e a escravidão, dando todas as garantias para o desenvolvimento livre das forças de pro-

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dução do país. Mas, como os pontos estratégicos estão em mãos do imperialismo, o Governo Nacional Revo-lucionário, desapropriando e nacionalizando revolucionariamente tais empresas, terá desde o início grandes forças de produção em suas mãos, o que constituirá incontestavelmente um forte fator ao lado do desenvolvi-mento livre das forças de produção do país, que garantirá o ulterior desenvolvimento progressivo do Brasil.

5) O Governo Popular tomará imediatamente todas as medidas necessárias no sentido de garantir a execução de uma legislação social mínima que compreenderá como medidas essenciais, entre outras: a) oito horas de trabalho e menor número para menores; b) igual salário para igual trabalho; c) salário mínimo de acordo com as condi-ções de cada localidade, mas determinado pelas próprias organizações operárias; d) descanso semanal obrigatório remunerado; e) férias anuais remuneradas; f ) condições higiênicas nos locais de trabalho; g) dois meses de repou-so antes e depois do parto com salário garantido; h) comitês de operários para controle da legislação em cada local de trabalho; i) seguro social para os sem trabalho; j) caixas de pensões e aposentadorias etc.

O Governo Popular Revolucionário tomará imediatamente todas as medidas no sentido de baratear a vida, diminuindo e mesmo suprimindo os impostos sobre o pequeno comércio, como os impostos sobre a produção, como os impostos de consumo sobre os artigos de primeira necessidade, diminuindo os fretes, ferroviários e marítimos, para os artigos de amplo consumo etc. O Governo Popular tomará todas as medidas para garantir a instrução popular, liquidar o analfabetismo, elevar o nível intelectual das massas etc., tornando obrigatório o ensino. O Governo Popular tomará todas as medidas para garantir a saúde popular, desenvolvendo o núme-ro de hospitais e de clínicas, distribuindo gratuitamente ao povo os medicamentos, modificando as condições de habitação das grandes massas urbanas pela desapropriação dos edifícios que hoje pertencem ao imperialismo e seus lacaios nacionais.

O Governo Popular, nacionalizando os bancos, garantirá os depósitos neles existentes e pertencentes a todos os que não sejam traidores nacionais, agentes diretos ou indiretos do imperialismo.

O Governo Popular terá como renda fundamental para satisfazer as despesas públicas o imposto sobre as rendas das grandes companhias estrangeiras e nacionais, dos grandes capitalistas nacionais, liquidando com todos os impostos pagos hoje pelo povo.

6) No campo, o Governo Popular será exercido pelos homens de confiança da grande massa trabalhadora e defenderá naturalmente os interesses de tal massa contra os grandes proprietários feudais, os senhores territo-riais que exploram pelo mais duro feudalismo e escravidão a quase totalidade de nossa população camponesa e que estão diretamente ligados aos exploradores imperialistas. O Governo Popular acabará evidentemente com a submissão medieval ao grande proprietário, assim como todas as contribuições feudais ao senhor. Ga-rantindo a posse da terra aos que trabalham, garantindo terra para todos os que queiram trabalhar, o Governo Popular exigirá dos proprietários capitalistas o cumprimento no campo da legislação social que for implantada pela revolução. O Governo Popular, porém, não desapropriará os que não empregam a exploração feudal, e garantindo a liberdade de comércio, diminuindo os fretes, acabando com todos os impostos sobre a produção etc., permitirá uma enorme e até desconhecida expansão do mercado interno nacional.

7) O Governo Popular Nacional Revolucionário, respeitando os direitos dos oficiais (mesmo generais) do Exército e das forças armadas de todo o país, só tomará medidas de rigor contra os traidores do Brasil, contra os oficiais que lançarem suas tropas contra o povo ou que tentarem organizar a contrarrevolução a favor do imperialismo. Contra tais elementos, o Governo Popular não conhecerá clemência, mas com todos os outros, como quadros experimentados, unificará todas as forças armadas do país e, junto com os operários e campo-neses em armas, dará corpo ao grande exército nacional revolucionário, o exército capaz de lutar vitoriosa-mente contra a invasão imperialista e a contrarrevolução, exército baseado na disciplina voluntária e cujos chefes serão homens de confiança dos próprios soldados. Ainda uma palavra sobre a forma que terá o Governo Popular. Nada melhor que a própria vida, que a própria realidade revolucionária para dar formas aos frutos da revolução. Mas se desde já é necessário responder a tal questão, podemos dizer que nada diz ser impossível que

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o Governo Popular tenha a mesma forma aparente dos governos até hoje dominantes, isto é, um governo central, exercido por um presidente, um governo com um ministério (de maneira que as mais ponderáveis correntes populares anti-imperialistas estejam representadas no poder); nos estados e municípios, idênticos governos exercidos por pessoas de prestígio popular no estado ou no município.

Fonte | SILVA, H. 1935: a Revolta Vermelha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969. p. 443-447. Transcrito por: LOWY, Michael. O marxismo na América Latina: uma antologia de 1909 até os dias atuais. 2. ed. ampl. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1996. p. 129-133.

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1940 | lázAro cárdenAS

Discurso do presidente da República no XV Congresso da Confederação dos Trabalhadores do México

lázaro Cárdenas (1895-1970) nasceu no estado de Michoacán, no México. na juventude, participou das forças revolucionárias que

lutavam pela reforma Agrária, chegando ao posto de coronel. em 1920, foi eleito governador do seu estado e, depois de ter assumido

a presidência do partido revolucionário nacional e alguns cargos ministeriais, tornou-se presidente do país, de 1933 a 1940.

o cardenismo representa o auge do nacional-estatismo no México. Como presidente, fez avançar profundamente importantes

mudanças estruturais, promovendo a reforma agrária, fomentando o sindicalismo e implantando as chamadas escolas socialistas, com o objetivo de combater o analfabetismo e limitar a influência da Igreja Católica, para citar alguns exemplos. também investiu maciçamente

na industrialização e nacionalizou os monopólios do petróleo, criando a petróleos Mexicanos (pemex), em 1938. A política internacional e

cultural de Cárdenas são as suas marcas distintivas, já que foi um dos poucos governos que apoiaram incondicionalmente a república

espanhola, acolhendo exilados como l. trotsky ou a comunista italiana tina Modotti, e apoiando artistas revolucionários como Diego de

rivera e os demais muralistas.

neste discurso de balanço e de despedida, Cárdenas fez uma avaliação de seu mandato e traçou perspectivas para o futuro. (n.F. e M.B.)

Trabalhadores do México: Seis anos de governo, já quase terminados, nos permitem tentar uma avaliação, ainda que seja de forma

rápida, do processo político-social que se desenvolve em nossa República, fortalecendo a fé nos destinos na-cionais com aquilo que já foi conseguido e também com todos aqueles objetivos, todavia, inconclusos.

O processo revolucionário de qualquer país não é obra casual, mas, sim, produto de tarefas continuadas por vários períodos governamentais. Alguns destes períodos, como o nosso, teve a sorte de levar a cabo transfor-mações aceleradas como o caso da reivindicação dos direitos do México sobre os produtos do petróleo, medi-da de autêntico nacionalismo; a distribuição da terra, que significa o fim de um regime semifeudal no sentido de uma economia mais justa; as obras de caráter material e social empreendidas nas zonas indígenas, como na dos yaquis, que representaram o fim de um velho problema econômico-político, colocando em prática os mais elementares princípios da justiça no trato do governo com nossa população indígena; em matéria de irrigação, as represas construídas e as que estão para terminar; a importante reforma do artigo 3o constitucional; a mul-tiplicação de escolas e centros educacionais; a orientação dos professores no sentido de uma ampla e clara responsabilidade social; a criação de serviços de assistência pública; as obras de saneamento; a construção de um sistema de estradas e caminhos vicinais já terminados e outros em plena construção; as novas estradas de ferro; os bancos de crédito para os ejidos1 e de crédito operário, respectivamente, que vêm fomentando o tra-balho e a produção de fortes núcleos proletários; o estatuto dos trabalhadores a serviço do Estado que os dei-xou livres das contingências políticas.

O governo da República conseguiu colocar em marcha os aspectos do trabalho aqui sumariamente assina-lados e que correspondem a um programa traçado desde o princípio de nosso mandato, do qual procuramos não nos afastar, apesar dos interesses inevitavelmente afetados que não desperdiçaram nenhuma oportunidade para tentar semear correntes de dúvida ou de franca oposição ao governo.

Seguindo uma política de imediato contato entre governantes e governados, foi nossa maior preocupação levar, em constantes excursões do governo até os próprios lugares onde existem os problemas, as possibilidades

1 Ejidos: terras comunais de apropriação coletiva (N. do T.).

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que o Estado pode proporcionar; não porque tenhamos acreditado que, somente com nossa presença podería-mos resolvê-los em sua totalidade, mas, sim, porque pensamos que em um país como o nosso, em que, por diversas razões históricas, sobreviveram formas de regime semifeudal, era indispensável, rompendo essas for-mas, levar diretamente às massas, principalmente às indígenas, a confiança e o conhecimento de seus direitos e de suas obrigações, fomentando, assim, correntes de otimismo, de trabalho e de cooperação. Nunca acredi-tamos, contudo, que o governo da República, com todos os benefícios que positivamente pôde levar às regiões visitadas, eliminou pela raiz as necessidades ou problemas existentes, especialmente os de caráter econômico, cuja solução, em muitos casos, ultrapassa as possibilidades do erário nacional, mas, sim, posso assegurar que, durantes estas excursões do governo, foi possível resolver numerosos casos que vinham ocasionando graves dificuldades entre povos e agrupamentos.

Desde o início de nosso governo, os homens que assumimos a responsabilidade, sabíamos que iríamos chegar a uma etapa de intensa luta e de extraordinário caráter polêmico e tivemos que enfrentar a necessidade de re-solver, em definitivo, situações extremas nas quais, mais do que nunca, puseram-se em luta os interesses cole-tivos e o egoísmo, o decoro nacional e a mecânica do capital imperialista; assim, coube a este regime reivindi-car, definitivamente, o direito inalienável do México de explorar os recursos de seu subsolo; lutar para que as fontes de produção natural sejam patrimônio do maior número de trabalhadores e, não, fonte de riqueza exclu-siva de alguns; e a defender também, com apego à lei, os mais elementares direitos dos próprios trabalhadores, lutando por sua unidade como base de sua firmeza, de sua disciplina e de sua responsabilidade, com a firme convicção de que as fontes de trabalho, postas sob sua direção, têm inevitavelmente que triunfar, cedo ou tarde, já que os obstáculos que até agora se apresentaram são: uns de caráter econômico internacional, cujo alcance não é possível controlar à vontade, mas cuja transitoriedade é evidente; outros, derivados das indispensáveis economias e reajustes que a própria organização operária teve que realizar, sacrificando-se momentaneamente em benefício posterior de seus interesses como classe; e, por último, os que, em matéria de organização, dis-ciplina e formas técnicas de trabalho, foram inevitáveis, como o são, da mesma maneira, dentro de qualquer regime e em qualquer economia, quando se passa de um sistema para outro. Somente, repetimos, que estes fenômenos são transitórios e ninguém que seja honrado em sua crítica pode negar a justiça que carrega o di-reito que os trabalhadores do México têm de melhorar suas condições de vida — princípio dinâmico que originou e animou a marcha da Revolução Mexicana.

Por sorte, este sentido humano da Revolução já está garantido no corpo jurídico de nossa Constituição e de nossas leis, e uma interpretação estrita destas normas legais colocou o povo em condições de receber os bene-fícios e defender suas conquistas. Neste aspecto, nossos tribunais estabeleceram sentenças com um profundo conteúdo humano de justiça cuja validez moral tem um significado universal.

A Revolução Mexicana, através de seu longo processo de integração, com os altos e os baixos naturais de toda transformação acelerada de uma sociedade, conquistou uma série de postulados econômicos, morais, educativos etc., que constituem a essência de nossa vida pública e cujo valor jurídico está estampado nas leis que nos regem e no funcionamento regular de nossos tribunais.

Não se pode considerar que a Revolução Mexicana concluiu sua missão, mas tampouco pode-se temer uma mudança em sua trajetória, porque o espírito e a letra de nossas leis e, sobretudo, a consciência dos homens da Revolução, são garantias plenas de um fiel cumprimento do programa iniciado com o sacrifício dos precurso-res que nos legaram novas normas de justiça social.

Às vésperas de concluir o período de meu governo e com a autoridade de amigo dos trabalhadores, quero lhes rogar que não poupem esforços, que eliminem paixões pessoais, que liquidem desavenças, por mais velhas que sejam, e que não cessem em seu empenho de transformar em realidade a unificação total do proletariado mexicano, convencidos de que, caso não consigam esta unificação, não poderão avançar a causa da nacionali-dade, nem estabilizar as instituições revolucionárias e a paz pública, nem conquistarão a definitiva autonomia espiritual e política do México.

Não esqueçamos que o México hoje se tornou um país primordialmente agrícola que, atrasado ainda neste aspecto, necessita não apenas alimentar melhor os seus próprios habitantes, como também produzir o suficien-

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te para promover o desenvolvimento geral do país, coordenando a produção agrícola com um plano técnico de industrialização. Continuamos vivendo à base de uma indústria atrasada e de uma escassa grande indústria que não tem de nacional mais do que os recursos do território que aproveita, o esforço do mexicano assalaria-do e um poder revolucionário que luta para eliminar as condições de privilégio.

Contudo, para sair desta etapa atrasada, necessitamos cumprir nosso programa econômico e social, demons-trando com o êxito das empresas que são entregues aos trabalhadores, que estes são capazes de assumir a res-ponsabilidade coletiva que se lhes pede. Que isso não será alcançado se não há um afã perseverante de elevar sua capacidade técnica, de aumentar sua eficiência em qualquer posição que o trabalhador se encontre e fazer da responsabilidade um culto de dever proletário, que não reconhece mais hierarquias que não a do mérito, da eficiência, da disciplina e da honestidade. Quando os trabalhadores se esquecem que não são indivíduos isola-dos da massa, se convertem em sabotadores do movimento proletário para se colocarem nos terrenos da espe-culação capitalista.

A conflagração que assola o mundo e que afeta a soberania dos pequenos e grandes povos deve manter de pé e alerta o proletariado de cada país, caso não se queira que o expansionismo imperialista mude as rotas da redenção. No México, vem-se observando como um movimento de revisionismo das conquistas sociais da Revolução — pretendendo manchar a tradição histórica de nossos povos que lutaram para construir países livres espiritual, econômica e politicamente —, aliado a mexicanos que, adotando o pensamento e tática de órgãos de penetração imperialista e, com o pretexto da segurança da propriedade individual, da liberdade de consciência, da inviolabilidade do lar e da integridade da pátria, querem converter o ejidatário em um minús-culo proprietário desarmado ante os propósitos de restauração dos latifúndios; o operário, em um obediente servo de exploração capitalista; e a escola, em um centro de difusão dos caducos erros que detiveram a marcha do México.

Ante a restauração da frente conservadora, é necessário não abandonar os campos de luta e corrigir severa-mente as deficiências e erros para que não sirvam de pretexto para elementos atrasados (autodenominem-se eles de “ação nacional”, sinarquismo,2 ou de um suposto anticomunismo) se aproveitarem para sua catequização, de quaisquer divergências entre os ejidatários, operários, mulheres e juventude, com o objetivo de fazê-los ví-timas inconscientes de um trabalho que tende a debilitar as fileiras revolucionárias, sabendo que se sacrificarão as novas gerações em dolorosas lutas fratricidas. Frente à união internacionalista dos conservadores, foi opor-tuno o Congresso Internacional contra a Guerra, organizado pela Confederação dos Trabalhadores do Méxi-co, que teve a ideia de unificar os trabalhadores de todo o continente para eliminar a violência como solução para os conflitos e alcançar o progresso mediante normas de amizade e de justiça. Iniciativa que levanta a mis-são social desta confederação, ao estender seu trabalho aos trabalhadores da América, fortalecendo sua solida-riedade pela elevação das condições humanas dos nativos, sem privilégio de raça, de nacionalidade ou de condição econômica.

Uma das normas estabelecidas pela atual administração foi respeitar a vida dos cidadãos, elevando, assim, o valor da existência e o espírito de fraternidade e de dignidade nacionais, reconhecendo, em toda a sua ampli-tude, o direito que a Constituição concede aos mexicanos para expressar livremente suas ideias. Não seria possível encaminhar de outra maneira o país na direção que almeja nosso povo.

A tolerância do regime, excessiva em alguns casos, foi saudável para o país porque contribuiu para o fracas-so dos propósitos de ilegal violência de seus opositores, causando, com esta atitude do governo, em toda a nação, uma impressão favorável que influenciou extraordinariamente na manutenção da paz. O povo de todo o México deve fazer respeitar este postulado, que é um inalienável direito social, e exigir que se castigue com todo o rigor da lei os que esquecem que é sua obrigação suprema proteger a vida dos cidadãos.

Devo também expressar a vocês que está assegurada para a nação a riqueza petrolífera através da reforma constitucional que determina sua organização interior. O governo defendeu a medida mantendo a solidarie-

2 Sinarquismo: proposta corporativista conservadora (N. do T.).

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dade e a simpatia dos povos de numerosos países que, por diferentes formas, expressaram sua adesão e justifi-caram ante as chancelarias a retidão jurídica e moral da causa do México. Faço público, para o conhecimento de todos os mexicanos, que, na atitude do governo, tanto no caso do petróleo, como ante o problema da de-fesa continental, não houve e nem haverá transações, pactos secretos, nem acordo algum que possa lesionar, ainda que da menor forma, a integridade territorial, ou o decoro, ou a soberania da nação.

Acreditei ser necessário expressar a vocês os resultados de minha experiência governamental e manifestar que me retiro tranquilo, com paz interior, dada pelo máximo esforço feito para o cumprimento de nossos supremos deveres e, sobretudo, porque entrego o governo nas mãos de um homem honesto, nascido da Re-volução, o general Manuel Ávila Camacho, amigo sincero das classes trabalhadoras e conhecedor de nossos problemas nacionais.

Quero, por último, aproveitar este ato para agradecer as demonstrações de solidariedade da Confederação dos Trabalhadores do México, da Confederação Nacional Camponesa e de todas as organizações sociais da República, do apoio continental para nosso país da Convenção dos Partidos Democráticos Populares Latino-Americanos reunida no Chile, dos trabalhadores de Cuba e dos povos irmãos, que viram em nossa luta sua própria defesa para obter a autonomia econômica ante a atitude das oligarquias que continuam acreditando que somos países a serem conquistados à maneira colonial. Nesta hora de afirmações sociais, eu os saúdo com efusão e desejo solidariedade completa entre todos os trabalhadores da América.

Fonte | CÁRDENAS, Lázaro. Palabras y documentos públicos: informes de gobierno y mensajes presidenciales de año nuevo (1928-1940). vol. 1. Cidade do México: Siglo Veinteuno Editores, 1978. p. 449-453.

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1946 | JuAn domingo perón

Lançamento de candidatura

poucas lideranças da América latina foram tão controversas quanto Juan Domingo perón (1895-1975). golpista e admirador de Mussolini na sua juventude, saudou, mais tarde, a vitória da revolução Cubana

e, do exílio onde se encontrava, na republicana Dominicana (ditadura de trujillo) e da espanha de Franco, conclamou à luta revolucionária

por uma Argentina socialista. seus discípulos e correligionários, muito diferentes entre si, inspiraram-se em suas palavras para formular

propostas corporativistas, socialistas, liberais ou reformistas. A sua política internacional era uma ambígua terceira posição, antes de ter sido criada a denominação Terceiro Mundo, resumida por seus

adeptos como nem ianques, nem marxistas. suas ideias podem ser vistas como um misto de keynesianismo, social-democracia e

corporativismo. Inegável, porém, é que a sua política encarnou os anseios e as demandas da classe trabalhadora argentina, e que a sua

prática foi mais importante do que as suas ideias.

De fato, o peronismo é mais uma prática política, pragmática e ligada à construção do estado. Mas ele também tem um forte componente

plebeu e antielitista, que, no início, foi encarnado por María eva Duarte de perón, a Evita, e que ainda hoje se manifesta na cultura

política do país. no texto a seguir podemos ver a capacidade de perón para unificar o sentimento nacionalista e classista, e as referências que

pautariam o seu primeiro governo. (n.F. e M.B.)

Chego a vossa presença com a emoção de me sentir parte deste mar humano de consciências honradas; destas consciências de criollos autênticos que não se dobram frente às adversidades e que preferem morrer de fome a ter de comer o amargo pão da traição.

Chego a vós para dizer-vos que não estais sós em vossos anseios pela redenção social, senão que os mesmos ideais são apoiados por nossos irmãos em toda a vastidão de nossa terra gaúcha. Venho comovido pelo senti-mento unânime, manifestado através de campos, montes, rios, pantanais e montanhas; venho comovido pelo eco ressoante de uma única vontade coletiva: a de que o povo seja realmente livre para que, de uma vez por todas, fique livre da escravidão econômica que o angustia. E ainda diria mais: que o angustia como antes o oprimiu e que se não conseguir se tornar independente agora, ainda o humilharia mais no porvir. E o opri-miria até deixar a classe operária sem forças para alcançar a redenção social que vamos conquistar antes de quinze dias.

Na mente daqueles que conceberam e gestaram a Revolução de 4 de Junho estava fixa a ideia da redenção social de nossa pátria. Este movimento inicial não foi uma militarada1 a mais, não foi uma quartelada a mais, como alguns gostam de repetir; foi uma faísca, que o 17 de Outubro utilizou para incendiar a fogueira na qual hão de queimar, até serem consumidos, os restos do feudalismo que ainda sobrevivem na terra ameri-cana.

Porque viemos terminar com uma moral social que permitia que os trabalhadores tivessem para comer so-mente o que lhes era dado pela vontade patronal, e não pelo dever imposto pela justiça distributiva, acusam nosso movimento de ser inimigo da liberdade. Contudo, eu apelo à vossa consciência, à consciência dos ho-mens livres de nossa pátria e do mundo inteiro, para que me respondam honestamente se opor-se a que os homens sejam explorados e envilecidos obedece a uma causa liberticida.

Não devemos contemplar tão-somente o que se passa no “centro” de Buenos Aires; não devemos considerar a realidade social do país como um simples prolongamento das ruas centrais bem asfaltadas, iluminadas e ci-vilizadas; devemos considerar a vida triste e sem esperanças de nossos irmãos do interior, em cujos olhos pude perceber a centelha desta esperança de redenção.

1 Isto é, uma conspiração militar de caráter político (N. do T.).

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Por eles, por nós, por todos juntos, por nossos filhos e os filhos de nossos filhos, devemos fazer com que — enfim! — triunfem os grandes ideais da autêntica liberdade que sonharam os forjadores de nossa indepen-dência, e que nós sentimos palpitar na profundeza de nosso coração.

[...]Quero deixar de lado os provocadores mercenários; as desorientadas moças que, em nome da liberdade,

quiseram impor o uso do símbolo monetário no peito das damas argentinas, o que foi rechaçado por elas no exercício da própria liberdade; os poucos estudantes que acreditaram “descer” de sua posição social sem se solidarizar com o clamor dos homens trabalhadores, sem refletir que unicamente seu “trabalho” será o que no futuro chegará a enobrecer sua passagem pela vida; quero também deixar de lado os ressentidos que, imagi-nando serem excepcionais, acreditavam que o favor e a amizade pessoal podiam mais que o esforço, lento e constante, de cada dia e o espírito do sacrifício ante os embates da adversidade; quero deixar de lado o pessi-mista, o interesseiro, o mesquinho, para me dirigir aos homens de boa-vontade que ainda não compreenderam a essência da revolução social, cujas serenas páginas estão sendo escritas no Livro da História da Argentina e lhes dizer: “Irmãos: com o pensamento criollo, o sentimento criollo e o valor criollo estamos abrindo o sulco e plantando a semente de uma pátria livre, que não admite regatear sua soberania, e de cidadãos livres — que não somente o sejam politicamente, como tampouco vivam escravizados pelo patrão. Sigam-nos; sua causa é nossa causa; nosso objetivo se confunde com sua própria aspiração, pois somente queremos que nossa pátria seja socialmente justa e politicamente soberana”.

Para alcançar esta altíssima finalidade não nos valemos nem nos valeremos jamais de outros meios que não aqueles que nos outorgam a Constituição (para a restauração de cujo império empenhei minha palavra, minha vontade e minha vida) e as leis socialmente justas que possuímos ou que os órgãos legislativos naturais nos outorguem no futuro. Para alcançar esta altíssima finalidade, não necessitamos recorrer às teorias ou métodos estrangeiros; nem aos que fracassaram, nem aos que hoje pretendem se impor, pois como disse em outra opor-tunidade, para conseguir que a Argentina seja politicamente livre e socialmente justa, não basta sermos argen-tinos e nada mais que argentinos. Bastará que, dentro do quadro histórico e constitucional, o mecanismo das leis seja empregado como um meio de progredir, mas de progredirmos todos, pobres e ricos, em vez de pro-gredirem somente estes últimos, às custas do trabalhador.

No escasso tempo em que intervim diretamente nas relações entre capital e trabalho, tive a oportunidade de expressar o pensamento que regeria minha ação. Foram assinalados os objetivos a conseguir e expostas com clareza as finalidades que nos propúnhamos. Neste plano de tarefas e nas motivações que as justificam, foi reconhecido o clamor da classe operária, da classe média e dos patrões que não têm contraído compromissos com o exterior. E ainda acrescentarei que estes não tiveram inconvenientes em nos acompanhar enquanto acreditaram que nossa dignidade podia ser corrompida, que poderíamos trocar a causa operária por um cheque com menor ou maior número de zeros, tanto mais quanto maior fosse nossa deslealdade. Contudo, equivoca-ram-se por completo, porque nem eu nem nenhum dos meus leais correligionários deixamos de cumprir os ditados da decência, da hombridade e do cavalheirismo. Ligada nossa vida à causa do povo, com o povo com-partilharemos o triunfo ou a derrota.

[...]Tachar de totalitários os operários argentinos é algo que sai do absurdo para cair no grotesco. Precisamente,

as organizações operárias que me apoiam têm sido as que durante os últimos anos batalharam em defesa dos povos oprimidos contra os regimes opressores, ainda que fossem (assim como em todas as partes do mundo, sem excluir os países que fizeram a guerra, salvo a Rússia) a aristocracia, a plutocracia, a alta burguesia, o ca-pitalismo, enfim, e seus séquitos, quem adorava as ditaduras e repelia as democracias. Assumiam esta conduta quando pensavam que as ditaduras defendiam seus interesses e as democracias os prejudicavam, por não serem um muro suficiente de contenção frente aos avanços do comunismo. Se minhas palavras requeressem uma prova, poderia oferecê-la, bem convincente, nas coleções dos diários da oligarquia que agora estremece dian-te de qualquer suposto atentado às essências democráticas e liberais, mas que tiveram uma atitude muito dis-tinta quando o problema se apresentava em outros povos. E se a prova não fosse, todavia, categórica, remeteria

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o caso ao exame da atuação dos partidos políticos que governaram nos últimos tempos, e cujos líderes, atuan-do de vestais, um tanto caducas e muito recompostas, querem agora compatibilizar seus alaridos democráticos, puramente retóricos, com a realidade de suas tradicionais fraudes eleitorais, de suas constantes intervenções nos governos das províncias, com o abuso do poder em favor dos oligarcas e contra os deserdados.

Onde está, pois, o verdadeiro sentimento democrático e de amor às liberdades se não neste mesmo povo que me incita à luta? Não deixa de ser significativo que os grupos oligárquicos disfarçados de democratas unam seus alaridos e suas condutas a esses mesmos comunistas que antes foram (pelo terror que lhes inspiravam) a causa de seus fervores totalitários e a quem agora dedicam os melhores de seus sorrisos. Como é igualmente um espetáculo curioso observar o afã com que esses dirigentes comunistas proclamam sua fé democrática, esquecendo que a doutrina marxista da ditadura do proletariado e a prática da União Soviética (orgulhosa-mente exaltada por Molotov em discursos feitos há poucos meses) são eminentemente totalitárias. Entretanto, o que vamos fazer? Os comunistas argentinos são fracos de memória e não recordam tampouco que, quando governaram os partidos que se intitulam democratas, eles tiveram de viver na clandestinidade e que somente saíram dela para alcançar personalidade jurídica quando foi-lhes permitido por um governo, do qual eu fazia parte, apesar da incompatibilidade com os métodos da liberdade que me atribuem.

A cumplicidade a que chegaram é, sinceramente, repugnante e representa a maior traição que foi possível cometer contra as massas proletárias. Os partidos comunistas e socialistas que, hipocritamente, se apresentam como obreiristas — mas que estão servindo aos interesses capitalistas — não têm inconvenientes em fazer a propaganda eleitoral com o dinheiro entregue pela entidade patronal. E, todavia, se surpreendem de que os trabalhadores das províncias do norte, que vivem uma existência miserável e escravizada, em benefício de um capitalismo ganancioso, que conta com o apoio dos partidos, que são frequentemente dirigidos por estes mes-mos patrões (lembro, por exemplo, Patrón Costas e Michel Torino), tenham apedrejado o trem no qual viaja-va um conglomerado de homens que, no fundo, querem é prolongar aquelas situações! Usando de uma palavra que eles gostam muito, poderíamos dizer que são os verdadeiros representantes do continuísmo; mas do con-tinuísmo com a política de escravidão e miséria dos trabalhadores.

Até aqui me referi à vossa posição notadamente democrática. Permitam-me aludir, ainda que seja breve-mente, à minha. Não me importam as palavras dos adversários e muito menos seus insultos. Basta-me a retidão do meu proceder e a noção de nossa confiança. Isto me permite afirmar, modestamente, sinceramente, com simplicidade, sem ostentação nem gritos, sem necessidade de arrancar os cabelos nem rasgar minhas roupas, que sou democrata no duplo sentido político e econômico do conceito, porque quero que o povo, todo o povo (e nisso, sim, eu sou totalitário), e não uma parte ínfima do povo, governe a si mesmo, e porque desejo que todo o povo adquira a liberdade econômica que é indispensável para exercer as faculdades de autodetermina-ção. Sou, pois, muito mais democrata que meus adversários, porque eu busco uma democracia real, enquanto eles defendem a aparência de uma democracia, a forma externa da democracia. Eu pretendo que um melhor padrão de vida ponha os trabalhadores, mesmo os mais honestos, a salvo das coações dos capitalistas; e eles querem que a miséria do proletariado e seu desamparo estatal lhes permitam continuar seus velhos vícios de compra e de usurpação das libretas de enrolamiento.2 No mais, é lamentável que a mim, que proporcionei e faci-litei a volta à normalidade, que me situei em posição de cidadão civil para enfrentar a luta e que desprezei ocasiões que me vinham à mão para chegar ao poder sem o processo eleitoral, se imputem propósitos incons-titucionais, presentes ou futuros. E, todavia, é mais lamentável que essas acusações sejam feitas por quem, a título de democratas, não saiba a que arbítrio acudir, ou a que oficial, do exército ou da marinha, voltar os olhos para evitar as eleições nas quais sabem que serão derrotados, não porque vai haver fraude, até mesmo porque não vai haver ou, melhor dizendo, porque eles já não têm à sua disposição todos os elementos que antes usavam para ganhar fraudulentamente as eleições. Vêm reclamando há tempos por eleições limpas, mas quando elas chegam, se assustam com os métodos democráticos.

2 Documento de identidade masculino da época. Enrolamiento significa convocação para o serviço militar (N. do T.).

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Por todas essas razões, não sou tampouco daqueles que acreditam que os integrantes da chamada União Democrática deixaram de cumprir seu programa político — isto é, a democracia com um conteúdo econômi-co. O que ocorre é que eles estão defendendo um sistema capitalista às custas dos trabalhadores, ou pelo menos desprezando os seus interesses, mesmo quando fazem pequenas concessões — às quais, logo, vou me referir; enquanto nós defendemos a posição do trabalhador e acreditamos que somente aumentando enormemente seu bem-estar e incrementando sua participação no Estado e a intervenção deste nas relações de trabalho será pos-sível que subsista o que o sistema capitalista de livre iniciativa tem de bom e de aproveitável frente aos sistemas coletivistas. Pelo bem de minha pátria, quisera que meus inimigos se convencessem de que minha atitude não somente é humana, como é conservadora, na dupla acepção do vocábulo. E bom seria também que descartas-sem de uma vez por todas o qualificativo de “demagógico” que atribuem a todos os meus atos; não porque estes careçam de valor construtivo, nem porque busquem implantar uma tirania da plebe (que é o significado da palavra demagogia), mas, sim, simplesmente, porque não estão de acordo com egoístas interesses capitalis-tas, nem se preocupam excessivamente com a atual “estrutura social”, nem do que eles, sujando a própria casa, chamam de “os supremos interesses do país”, confundindo-os com os seus próprios.

Pessoalmente, prefiro a ideia defendida por Roosevelt (e não creio que o testemunho possa ser recusado) de que a economia deixou de ser um fim em si mesmo para se converter num meio para solucionar os problemas sociais. Quer dizer, se a economia não serve para levar o bem-estar a toda a população, mas apenas para uma parte dela, resulta em coisa bem desprezível. Lástima que os conceitos de Roosevelt a este respeito foram jo-gados fora pela Câmara... e pela “Antecâmara”, quer dizer, pelos organismos norte-americanos equivalentes à nossa União Industrial, Bolsa de Comércio e Sociedade Rural. E conste, além disso, que Roosevelt estava muito longe de ser um homem avançado, tanto em termos sociais, quanto em termos políticos.

Por isso, quando nossos inimigos falam de democracia, têm em suas mentes a ideia de uma democracia estática, quero dizer, de uma democracia baseada nos atuais privilégios de classe. Como os órgãos do Estado e o poder do Estado, a organização da sociedade, os meios coercitivos, os métodos de propaganda, as insti-tuições culturais, a liberdade de expressão do pensamento, a própria religião, se encontram sob o seu domí-nio, a seu serviço exclusivo, podem atirar-se tranquilos nos braços da democracia, pois sabem que a têm dominada e que ela servirá somente de disfarce para seus interesses. Precisamente, nesta situação está basea-do o conceito revolucionário marxista e a necessidade que apontam de uma ditadura proletária. Contudo, como ocorreu na Argentina e, em virtude de minha campanha, o elemento trabalhador, o operário, o ver-dadeiro servo da gleba, o escravizado peão do sulco nortista, alentado pela esperança de uma vida menos dura e de um porvir mais risonho para suas companheiras e seus filhos, sacodem sua submissão ancestral, reclamam como homens a milésima parte das melhorias a que têm direito, põem em perigo a pacífica e tradicional digestão dos poderosos e querem manifestar sua força e sua vontade em uma determinada elei-ção. Então, a democracia, aquela democracia capitalista, sente-se estremecida em seus cimentos e nos lança a imputação do totalitarismo. Deste modo, chegaríamos à conclusão de que o futuro congresso representa-rá um regime democrático se triunfarem os privilégios da classe até agora dominante e que representará um regime ditatorial se, como estou seguro, triunfarem nas eleições as massas de trabalhadores que me acom-panham por todo o país.

Mas não importam os qualificativos. Nós representamos a autêntica democracia, a que se baseia na vontade da maioria e no direito de todas as famílias a uma vida decente, a que tende a evitar o espetáculo da miséria em meio à abundância, a que quer impedir que milhões de seres pereçam de fome enquanto centenas de ho-mens esbanjam estupidamente seu dinheiro. Se isso é demagogia, sintâmo-nos orgulhosos de ser demagogos e lancemos no rosto deles a condenação à sua hipocrisia, ao seu egoísmo, à sua falta de sentimento humano e ao seu afã de lucrar que vai sangrando a vida da nação. Já basta de falsos democratas que utilizam uma grande ideia para servir à sua cobiça! Já basta de exaltados constitucionalistas que só amam a Constituição enquanto os ponha a salvo das reivindicações proletárias! Já basta de patriotas que não têm receios de utilizar o pavilhão nacional para cobrir mercadorias avariadas, mas que se escandalizam quando o veem unido a um símbolo de trabalho honrado.

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Nossa trajetória no terreno social é igualmente clara como no político. Desde que sob minha iniciativa foi criada a Secretaria de Trabalho e Previdência, não estive preocupado com outra coisa a não ser melhorar as condições de vida e de trabalho da população assalariada. Para esta última, era mister um instrumento de atua-ção, e a Secretaria de Trabalho e Previdência resultou ser um meio insuperável para a realização desses objeti-vos. A medida da eficácia da Secretaria de Trabalho e Previdência nos é dada tanto pela adesão operária quan-to pelo ódio patronal. Se o organismo tivesse resultado inócuo, seria bem provável que muitos fervores demo-cráticos insuspeitos tivessem um tom bem menor. E é bem provável que muitos homens que até ontem não ocultaram suas simpatias pelas ditaduras estrangeiras ou que serviram de fato a outros governos na Argentina, não houvessem adotado hoje heroicas e espetaculares posições pseudodemocráticas. Se o milagre da transfor-mação foi produzido, isso se deu simplesmente porque a Secretaria de Trabalho deixou de representar um campo fechado somente desfrutado pela plutocracia e pela burguesia. Acabaram-se as negativas dos patrões de participar dos trâmites conciliatórios promovidos pelos operários; foi posto um ponto final na amistosa media-ção dos políticos, dos grandes senhores e dos poderosos industriais para que a razão do trabalhador não fosse mais atropelada. A Secretaria de Trabalho fez justiça estrita e, se em muitas ocasiões, inclinou-se para os tra-balhadores, fê-lo porque este era a parte mais frágil do conflito. Essa posição espiritual da autoridade é o que não foi tolerado pelos elementos que perderam hegemonia que vinham exercendo, e essa é a chave de sua oposição ao organismo criado. Isto é o que chamam de demagogia: para eles, quando o empregador engana o empregado, representa o trabalho construtivo dos princípios democráticos; mas quando o Estado faz justiça aos operários, constitui pura anarquia.

Acredito que nessa subversão das partes em conflito se encontre a verdadeira obra revolucionária que rea-lizamos e que, por seu efeito psicológico, tem maior valor e mais ampla transcendência que todas as demais. É por esse motivo que todas as pressões se dirigem contra a Secretaria de Trabalho com o empenho de des-truí-la. À outra coisa não obedecem os rugidos de satisfação que lançaram o capitalismo, sua imprensa e seus servidores quando em uma recente sentença da Suprema Corte da nação declarou-se a inconstitucionalidade das delegações regionais. Porque a verdade é que essa decisão, adotada poucos dias antes das eleições, trata de desferir um brutal golpe na Secretaria de Trabalho e Previdência e constitui um primeiro passo para desfazer as melhorias sociais que os trabalhadores conquistaram. O respeito às decisões judiciais não exclui o direito de comentar e de discutir suas decisões, muito menos quanto maiores sejam as inovações que se façam à li-berdade e à democracia. Já chegara, pois, o momento de discutir quais são as competências que, em relação ao direito do trabalho, correspondem à nação e quais as que são atributo das províncias. Até será fácil de-monstrar — ouvindo a opinião de tratadistas, muito ao gosto oligárquico — que a Suprema Corte, tão rigo-rosa e tão equivocada nesta ocasião, no que diz respeito às faculdades de aplicação das leis de trabalho, con-sentiu e aprovou o fato de a nação vir enfrentando, já há muitos anos, os protestos legislativos das províncias. E diga-se que, neste particular, penso ser acertada sua posição porque as normas do trabalho que tendem à internalização devem ser nacionais. O que não admito é a dualidade de critério, cuja motivação não me in-teressa no momento. Se alguém quer encontrar a aplicação, talvez a ache em uma obra do Renard. Ofereço a citação a meus inimigos socialistas e tenho como certo que, entre eles ou entre as associações profissionais pseudodemocráticas, será dado início a um novo processo por desacato e até é possível que se tome disso pretexto para ver se há oficiais do exército ou da marinha que cheguem a tempo para impedir nosso triunfo eleitoral.

[...]Brevemente me referirei às ideias centrais que impulsionaram nossa ação no terreno econômico. Apoio o

princípio da liberdade econômica. Contudo, esta liberdade, como todas as liberdades, chega a gerar o mais feroz egoísmo se, em seu exercício, a liberdade de cada um não se articular com a liberdade dos demais. Nem todos nós viemos ao mundo dotados de suficiente equilíbrio moral para nos submetermos de bom grado às normas de uma convivência social sã. Nem todos nós podemos evitar que os desvios do interesse pessoal de-generem em egoísmo espoliador dos direitos dos demais e em um movimento avassalador de usurpação das liberdades alheias. E é aqui neste ponto, que separa o bem e o mal, que a autoridade do Estado deve acudir

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para corrigir as falhas dos indivíduos e suprir a carência de estímulos morais que devem guiar a ação de cada um, se quisermos que a sociedade futura saia do marasmo que atualmente a afoga.

O Estado pode orientar o ordenamento social e econômico sem que, com isso, intervenha na ação indivi-dual do industrial, do comerciante e do consumidor. Estes, conservando toda a liberdade de ação que os có-digos fundamentais lhes outorguem, podem ajustar suas realizações aos grandes planos que traça o Estado para conquistar os objetivos políticos, econômicos e sociais da nação. Por isso, afirmo que o Estado tem o dever de estimular a produção, mas deve fazê-lo com tal cuidado que consiga, de uma vez, o adequado equilíbrio entre as diversas forças produtivas. Para cumprir este objetivo, determinará quais são as atividades já consolidadas em nosso meio, quais as que requerem um apoio para conseguir solidez devido à vital importância que tenham para o país; e, por último, quais já cumpriram seu objetivo de suprir a carestia dos tempos de guerra, mas cuja manutenção na época de normalidade representaria uma carga antieconômica, que nenhum motivo razoável aconselha manter, ou que gerariam concorrências estéreis com outros países produtores. Contudo, ainda há outro motivo que obriga o Estado argentino a regular certos aspectos da economia. Os compromissos inter-nacionais que o Estado tem contraído obrigam-no a orientar as diretrizes econômicas supranacionais, tendo em vista a cooperação entre todos os países. E se esta cooperação há de ser eficaz e há de basear-se em certas regras gerais de aplicação entre Estados, não vejo a forma pela qual a economia interna de cada país fique à mercê do capricho de alguns oligarcas manipuladores de finanças, acostumados a sempre fazer trabalhar os demais em proveito próprio. Ao Estado, rejuvenescido pela contribuição do sangue trabalhador que nosso movimento injetará em todo seu sistema circulatório, corresponderá à missão de regular o progresso econô-mico nacional, sem esquecer o cumprimento dos compromissos que a nação contraia ou tenha contraído com outros países.

Pelo que lhes disse hoje, pelo que afirmei em ocasiões anteriores, pareceria ocioso repetir que não sou ini-migo do capital privado. Julgo que o capital privado deve ser estimulado enquanto constitua um elemento ativo da produção e contribua para o bem-estar geral. O capital resulta pernicioso quando se erige ou preten-de erigir-se como um instrumento de dominação econômica. Em troca, é útil e benéfico quando sabe elevar sua função à categoria de colaborador efetivo do progresso econômico do país e colaborador sincero da obra da produção, e compartilhe seu poderio com o esforço físico e intelectual dos trabalhadores para aumentar a riqueza do país.

Por isso, nos postulados éticos que presidem a ação de nossa política, junto à elevação da cultura do operário e da dignificação do trabalho, incluímos a humanização do capital. Somente levando a cabo estes postulados, conseguiremos o desaparecimento das discórdias e da violência entre patrões e trabalhadores. Para estes últi-mos, não existe outro remédio que não implantar uma inquebrantável justiça distributiva.

No novo mundo que surge no horizonte, o estado de necessidade que angustia ainda muitíssimos trabalha-dores, em meio a um estado de abundância geral, não deve perpetuar-se. É preciso impedir que o trabalhador chegue ao estado de necessidade3 porque, saibam bem os que não querem saber ou fingem não saber, o estado de necessidade está à beira do estado de periculosidade; porque nada estoura tão facilmente os diques da paci-ência e da resignação quanto o convencimento de que a injustiça é tolerada pelos poderes do Estado, porque são precisamente eles que têm a obrigação de evitar que se produzam as injustiças.

Uma obrigação nacional de primeira ordem exige que a organização política, a organização econômica e a organização social, até agora em mãos da classe capitalista, se transformem em organizações a serviço do povo. O povo do 25 de Maio queria saber do que se tratava,4 mas o povo do 24 de Fevereiro5 quer assumir tudo o que o povo deve saber. Para terminar e, como detalhe complementar do aspecto econômico, vou me referir brevemente às orientações gerais que desejamos seguir para realizar a industrialização que o país necessita.

3 Ou seja, o estado de miséria (N. do T.).4 O dia 25 de maio de 1810 culminou numa semana decisiva, iniciada no dia 18, que levou à independência da Argentina. No dia 25, o povo, reunido nas ruas, gritava: “O povo quer saber!!” (N. do T.).5 O dia 24 de fevereiro de 1946 é associado ao início do primeiro mandato presidencial de J. D. Perón (N. do T.).

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Acima de tudo, o princípio essencial que rege nossa nação é este: a riqueza não se constitui somente enquan-to um monte de dinheiro maior ou menor que possa ter entesourado o país. Para nós, a verdadeira riqueza se constitui no conjunto da população, no trabalho propriamente dito e na organização ordenada desta popula-ção e deste trabalho.

É, pois, o elemento humano, atual e futuro, o fator que há de despertar a preocupação fundamental do Estado. Vale dizer que aí se inclui a elevação do nível de vida até um padrão compatível com a dignidade do homem e a melhoria econômica geral; o estímulo às organizações mutualistas e cooperativistas; o incremento da formação técnica e da capacitação profissional; a construção de casas baratas e econômicas para operários e empregados; os empréstimos para a construção e renovação dos lares da classe média, dos pequenos proprietá-rios, dos melhores rentistas e dos aposentados modestos; estímulos, fomento e desenvolvimento para um vasto plano de seguridade social; e melhoramento das condições gerais de trabalho. Não podemos falar de empre-ender a industrialização do país sem registrar bem claramente que o trabalhador deve ser protegido antes da máquina ou da tarifa alfandegária. E tampouco tenho de repetir que o progresso do trabalhador do campo deve ser de acordo com o do homem da cidade. Todos devem se convencer de que a cidade, sem o esforço do homem do campo, está condenada a desaparecer. De cada 35 habitantes rurais, somente um é proprietário! Vede se estamos muito distantes da realidade quando dizemos que deve ser facilitado o acesso à propriedade rural. Deve ser abolida a injustiça representada pelo fato de existirem 35 pessoas descalças, descamisadas, sem teto e sem pão, para que um almofadinha venha a brilhar de cartola e de bengala pela rua Flórida, e ainda se sinta com o direito de insultar os agentes da ordem porque conservam a ordem que ele, em sua inconsciência, trata de alterar com suas vaias contra os descamisados.

Garantida a sorte do fator humano, estaremos em condições de prosseguir com o plano de industrialização nos seus minúsculos detalhes. Inventário e classificação de matérias-primas; energia que produz e pode pro-duzir o país; ajudar o estabelecimento de indústrias, promovendo iniciativas como o estímulo às inversões de capital e o fomento à criação e à ampliação de laboratórios de pesquisa científica e econômico-social, com ampla colaboração de técnicos e operários; redução de custos em benefício de produtores e consumidores; moderação dos impostos que pesam sobre toda atividade socialmente útil; estímulo à produção para abastecer abundantemente as necessidades do país, sem limitar as possibilidades de produção e transformação, sem ex-tirpar vinhedos nem restringir a semeadura para evitar que se destruam as sobras que podiam reduzir o preço, mas que assim produziam lucros fabulosos para os capitalistas, ao passo que condenavam centenas de milhares de trabalhadores a não beber vinho e a não comer pão; permitir preços remuneradores ao capital que sejam firmes e estáveis, que sirvam de garantia aos altos salários e assegurem benefícios corretos; incitar o desenvol-vimento do livre comércio e do transporte barato, terrestre, marítimo, fluvial e aéreo.

Claramente, a Argentina não pode ficar estagnada em um ritmo sonolento ao qual a condenaram todos aqueles que se puseram a viver às suas custas; a Argentina deve recobrar o pulso firme de uma juventude sã e de um sangue limpo. A Argentina necessita da contribuição desse sangue juvenil da classe operária; não pode continuar com as correntes sanguíneas de múltiplas gerações de gente caduca porque chegaríamos às nefastas consequências das velhas dinastias que morreram fisicamente antes que os povos as jogassem fora, cansados de aguentá-las.

O sangue novo contribui com o nosso movimento; este sangue deverá sair das urnas no dia 24 deste mês, esta nova Argentina que ansiamos com toda a força e a pujança de nosso coração.

Não posso terminar minhas palavras sem me referir aos problemas internacionais. A base de minha atuação deve ser a defesa da soberania argentina com tão maior energia quanto maior seja a grandeza daqueles que tentem ignorá-la, porque desprezo os homens e as nações que crescem diante dos débeis e se dobram diante dos poderosos.

[...]Quando o senhor Braden chegou ao nosso país, ostentando a representação diplomática de seu país, a situa-

ção era a seguinte: depois de um longo e injusto isolamento que nenhum argentino sensato pôde jamais acei-tar como justo, a República Argentina foi incorporada ao seio das Nações Unidas. Respaldou todos os pactos

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com toda a retidão que caracteriza sua vida nas relações internacionais e iniciou o cumprimento estrito das obrigações contraídas. Como corolário da nova situação e a fim de lhe dar expressão concreta e efetiva, chegou até nós, dos Estados Unidos, a missão Warren.

Em um curto período, mas eficaz, esta missão concluiu diversos acordos conosco, acordos políticos, econô-micos e militares, cuja execução havia de beneficiar ambos os países, dentro de um plano de mútuo respeito e benefício comum.

Quando o governo da nação se dispôs a dar cumprimento a cada uma das obrigações estipuladas; quando se preparavam os embarques de linho em troca de combustíveis que deveríamos receber e que o país necessitava urgentemente; quando se acreditava que o ouro bloqueado nos Estados Unidos poderia ser repatriado; quando, enfim, as duas nações se dispuseram a esquecer ressentimentos, eliminar maus entendidos, retomar os intercâm-bios culturais e comerciais que foram tradição no passado, tudo em uma atmosfera de compreensão e cooperação recíproca, chega ao país o senhor Braden, novo embaixador dos Estados Unidos da América do Norte. Como primeira medida, o senhor Braden anula todos os convênios que haviam sido considerados pela missão Warren.

[...]O senhor Braden revelou, muito rápido, a razão de suas agressões ao governo da revolução e a mim, em

particular: é que ele quer implantar em nosso país um governo próprio, um governo títere, e para isto come-çou a articular a contribuição de todos os quislings6 disponíveis. O senhor Braden, para facilitar sua ação, su-bordina a imprensa e todos os meios de expressão do pensamento. Garante, por métodos próprios, o apoio dos círculos universitários, sociais e econômicos, explicitando sua extraordinária habilidade de dominar os outros no campo da política. Naturalmente, da política deposta pela revolução de 4 de Junho.

Conseguido o primeiro passo na realização do plano denunciado, ou seja, a união compacta de todos os inimigos da revolução e, mais especialmente, de meus adversários, o senhor Braden acreditou oportuno e conveniente para múltiplos fins, passar em revista seu pequeno exército de traidores. Não encontrou nada melhor do que organizar a Marcha da Constituição e da Liberdade, a qual se realizou depois de o ex-embai-xador superar muitos obstáculos e dificuldades.

O senhor Braden, em seu afã de garantir a constituição de um governo submisso na Argentina, compactuou com tudo e com todos, concedeu sua amizade a conservadores, radicais e socialistas; aos comunistas, demo-cratas, progressistas e pró-nazis; e junto com todos eles, estendeu sua mão aos detritos que a revolução foi expulsando de seu seio em seus profundos processos depuradores. O ex-embaixador somente exigia, para dar sua poderosa amizade, uma bem provada declaração de ódio contra minha humilde pessoa.

Os discursos, declarações e atos do senhor Braden, tanto durante sua gestão à frente da embaixada dos Es-tados Unidos, como em suas funções atuais, provam, de maneira irrefutável, sua ativa, profunda e insolente intervenção na política interna de nosso país. Disse já em outras ocasiões que as novas condições imperantes no mundo criaram uma interdependência entre todos os países da Terra, mas fixei o alcance dessa interdepen-dência à dimensão econômica, sustentando o direito de cada nação de adotar a filosofia político-social que estiver de maior acordo com seus costumes, sua religião, posição geográfica e circunstâncias históricas, se é que se quer realmente subsistir com a dignidade e hierarquia de um Estado soberano.

Declaro que a intromissão do senhor Braden em nossos assuntos, até o extremo de criar, incitar e dirigir um conglomerado político fiel, não pode contar com o apoio do povo e do governo dos Estados Unidos. O pre-sidente Truman expressou recentemente que todos os povos capacitados têm o direito de eleger os próprios governos. O Senado dos Estados Unidos, ao aprovar a nomeação do senhor Braden para seu cargo atual, esta-beleceu expressamente que não poderia intervir nas questões dos países latino-americanos sem prévia consul-ta. O mesmo aludido governo reiterou há pouco a proibição dos homens de negócios norte-americanos de intervirem na política de outros países. O próprio senhor Braden alterna suas ameaças de intervenção econô-mica e militar com reivindicações de não intervencionismo.

6 Vidkun Quisling, testa de ferro dos nazistas, durante a II Guerra Mundial foi chefe do governo norueguês. Seu nome tornou-se sinônimo de colaboracionismo e submissão (N. do T.).

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[...]Em nome do senhor Braden, quando atuava como embaixador em nosso país, alguém suficientemente au-

torizado declarou que eu jamais seria presidente dos argentinos e que aqui, em nossa pátria, não poderia exis-tir nenhum governo que se opusesse às ideias dos Estados Unidos.

Agora eu pergunto: para que quer o senhor Braden contar, na Argentina, com um governo fiel e obediente? É, por acaso, porque pretende repetir em nosso país sua fracassada tentativa em Cuba, onde, como é público e notório, quis ferir de morte a indústria e chegou, inclusive, a ameaçar e a coagir a imprensa livre que o denun-ciava?

Se, por um desígnio fatal do destino, triunfarem as forças regressivas da repressão, organizadas, incitadas e dirigidas por Spruill Braden, será uma realidade terrível para os trabalhadores argentinos, uma situação de angústia, miséria e opróbrio que o mencionado ex-embaixador pretendeu impor, sem êxito, ao nosso povo.

Em consequência, saibam os que votarão no dia 24 a favor da fórmula da cumplicidade oligárquico-comu-nista que, com este ato, entregam, simplesmente, seu voto ao senhor Braden. O dilema, nesta hora transcen-dental, é este: ou Braden ou Perón. Por isso, plagiando a imortal frase de Roque Sáenz Peña: “Saiba o povo votar”.

12 de fevereiro de 1946.

Fonte | Disponível em: <www.pjbonaerense.org.ar/peronismo/discursos_peron/12_2_46.htm>.

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1950 | AlBerto pASquAlini

Conferência de Caxias

reconhecido nacionalmente como o principal “teórico do trabalhismo”, membro do partido trabalhista Brasileiro (ptB) desde

praticamente o início de sua estruturação, Alberto pasqualini (1901-1960) se preocupou em traduzir as posições defendidas em sua

militância em termos de adequadas bases ideológicas. Mesclando noções do catolicismo mais à esquerda, da chamada doutrina social

da Igreja, com a defesa dos conteúdos das leis trabalhistas, postas em vigor nos períodos dos governos Vargas, pasqualini representava uma

face culturalmente mais ilustrada do trabalhismo.

nascido no rio grande do sul, este filho de descendentes de imigrantes italianos estudou em um seminário para a formação de

padres católicos. não pretendendo ordenar-se, cursou posteriormente a Faculdade de Direito de porto Alegre, diplomando-se em 1929.

participou da revolução de 1930 e, em 1935, foi eleito vereador em porto Alegre. no estado novo, chegou ao cargo de secretário do

Interior e Justiça do seu estado natal. Depois de 1945, foi por duas vezes candidato a governador do estado do rio grande do sul, tendo

sido derrotado em ambas as oportunidades. logrou, porém, ocupar uma vaga senatorial entre 1951 e 1955, abandonando o cargo neste

último ano devido a graves problemas de saúde. (n.F. e M.B.)

o trabalhismo brasileiro não visa à instituição de sociedade socialista. Admite o principio da livre-iniciativa privada, da propriedade e

exploração particular dos meios de produção, porém, com as limitações que o bem público exige.

Foi a seguinte a notável conferência proferida sábado último em Caxias, pelo dr. Alberto Pasqualini:Tomei como tema desta palestra: “O trabalhismo em face do pensamento cristão”. Meu propósito não

é propriamente desfazer dúvidas, pois mal posso imaginar que se levantem dúvidas quanto à nossa orien-tação, já que tem sido ela claramente exposta inúmeras vezes. Meu propósito é antes prevenir-vos e alertar-vos contra a deturpação da doutrina e dos objetivos do trabalhismo, fato que, lamentavelmente, costuma acontecer por ocasião das campanhas eleitorais, quando, em vez de se esclarecerem os espíritos, procura-se confundi-los, com o único objetivo de desviar votos de um lado e canalizá-los para outra direção.

Creio que isso seja um erro. Nosso dever, como homens públicos, é agir honestamente e proclamar sempre a verdade, pois nosso objetivo deveria ser menos obter votos para partidos ou candidatos do que conquistar consciências para uma causa.

Entendo também — e me perdoem se estou equivocado — que é um grave erro fazer da religião um tema político ou demagógico, ou fazer da política uma discussão de caráter religioso, quando nenhum motivo exis-te para isso, pois, todos, somos igualmente cristãos. A política, no seu sentido elevado, é a ciência e a arte que tem por objetivo estudar os problemas da coletividade e indicar a forma e a técnica de sua solução, de modo que cada um possa alcançar não somente a maior soma de bem-estar material, mas que possa também satisfazer integralmente as suas necessidades e aspirações de caráter cultural e espiritual. A política, porém, encara essas questões do ponto de vista natural. Cristo não disse que tinha vindo ao mundo para abolir a lei natural, mas para aperfeiçoá-la e coroá-la. Desde, pois, que as soluções — estas ou aquelas —, conforme o ponto de vista de cada um, não ofendam os princípios da religião, nenhuma razão existe para que se pretenda envolvê-la e arrastá-la a favor desta ou daquela parcialidade política.

A religião exprime o conjunto de nossas relações de subordinação ao Criador, que devem pairar acima, muito acima das competições políticas, de natureza puramente terrena e muitas vezes mesquinha.

Na porta das igrejas devem desaparecer os partidos para que, dentro delas, haja apenas filhos de Deus, por-que Deus olha nossas consciências e nossas almas e não os emblemas partidários que trazemos sobre o peito.

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Nossa função, como políticos e homens públicos, deve ser, como disse, esclarecer a opinião e não confundi-la com mistificações.

Mesmo em política, embora muitos pensem o contrário, devemos ser honestos e leais na maneira de pensar, de falar e de agir.

[...]

o trABAlHISMo BrASIleIro não é SoCIAlIStA

Passemos agora ao trabalhismo brasileiro. É o Partido Trabalhista Brasileiro socialista; já não digo socialista no sentido materialista, mas socialista no sentido do trabalhismo inglês? Devemos responder negativamente. O Partido Trabalhista Brasileiro não é socialista. Está, portanto, muito aquém da linha do próprio trabalhismo inglês. Só por esse simples fato não poderia ele estar em desacordo com o pensamento cristão, tal como o en-contramos expresso nos ensinamentos pontificiais.

O trabalhismo brasileiro não visa à instituição da sociedade socialista. Admite o princípio da livre-iniciati-va privada, da propriedade e exploração particular dos meios de produção, porém com as limitações que o bem público exige. Entende que há certas riquezas que, por envolverem um grande poder econômico e político, e por constituírem a base do próprio desenvolvimento e da própria independência do país, devem ficar nas mãos do Estado. Tais são as riquezas do subsolo e as fontes naturais de energia hidráulica de grande potencial. Quan-do o senador Getúlio Vargas se referiu, certa vez, às tendências socializantes do PTB — palavras que foram mal interpretadas —, quis simplesmente aludir à exploração dessas riquezas, que não foram produzidas pelo homem, mas que são dádivas da natureza e devem ser utilizadas exclusivamente em benefício do povo, da coletividade nacional e da coletividade humana. E falou apenas em “tendências” porque essa estatização pres-supõe a disponibilidade de recursos técnicos, financeiros e humanos, que ainda não possuímos.

Será isso contrário aos princípios da Igreja? Absolutamente. Os ensinamentos de Pio XI, na encíclica Qua-dragesimo Anno, e de Pio XII, em um discurso proferido aos trabalhadores italianos em março de 1945, são muito claros a respeito e autorizariam até a ultrapassar os limites das reivindicações socializantes do trabalhis-mo brasileiro, que se circunscrevem a setores muito restritos.

Não existe hoje nenhum país no mundo onde impere o puro regime capitalista. Há países de economia puramente socialista e países onde coexistem as duas formas de economia, a capitalista e a economia socialista ou estatizada. Até nos Estados Unidos, onde o princípio do livre empreendimento e da iniciativa privada é quase um dogma, o governo federal está tomando a si uma série de empreendimentos econômicos, sobretudo no setor da energia elétrica. Nas dez proposições do seu programa — o Fair Deal —, declara o presidente Truman que “os grandes recursos naturais devem ser protegidos e desenvolver-se para benefício de todo o povo, e não de grupos reduzidos”.

É exatamente essa tese que nós sustentamos.No Rio Grande do Sul, por exemplo, o plano de eletrificação, que está sendo executado pelo atual gover-

no, é exatamente um plano de socialização da energia elétrica. Todo o sistema ferroviário está também há muito tempo estatizado, pois é explorado exclusivamente pelo Estado. O abastecimento de água, nesta cidade, também é um serviço socializado, isto é, municipalizado. Quando se fala em socialização de certos serviços e empreendimentos, é necessário não pensar logo na Rússia e não ver sempre essa palavra escrita com tinta encarnada...

InterVenção Do eStADo no MeCAnISMo eConôMICo

Entende o trabalhismo que o poder público deve intervir no mecanismo econômico, não para desorganizar a economia, mas para orientá-la, para substituir as puras forças do acaso pela racionalização, prevenindo e evitando assim as crises econômicas que tantos malefícios e sofrimentos causam ao povo, levando muitas empresas à falência e muitos trabalhadores ao desemprego. O Estado deve intervir para coibir o abuso do poder econômico, os açambarcamentos, os trustes, os cartéis, os monopólios e todas as manobras que visam

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tão-somente à exploração do povo, proporcionando a alguns lucros fabulosos. O Estado deve também inter-vir para regular as relações de trabalho, para assegurar todas as garantias ao trabalhador, o que não exclui o exato cumprimento dos seus deveres para com a empresa. Deve enfim intervir para que se realize, em toda a sua plenitude, a justiça social, que não deve ser apenas uma frase vazia, mas que se deve traduzir por um conjunto de medidas praticadas destinadas a realizá-la. Isto, senhores, está de pleno acordo com os ensina-mentos cristãos.

o luCro nA ConCepção trABAlHIStA

Nosso programa entende que o lucro, dentro de certos limites, conforme a sua origem e a forma de sua utili-zação, é legítimo. Sustentamos, porém, que o lucro e os rendimentos não devem proporcionar a poucos afor-tunados uma vida egoísta nababesca e parasitária, mas que, deduzida a parcela que deve constituir a justa re-muneração de quem planejou o empreendimento econômico, coordenou os fatores da produção e correu os riscos, deve encontrar a sua aplicação natural no desenvolvimento da empresa e em inversões de utilidade so-cial, a fim de criar novas fontes de riqueza e proporcionar outras oportunidades de trabalho.

É exatamente o que recomenda Pio XI quando afirma que as rendas do patrimônio não devem ficar ao livre-arbítrio do seu proprietário e que aqueles que aplicam grande quantidade de suas rendas supérfluas em empre-endimentos úteis, proporcionando novas oportunidades de trabalho, praticam a virtude da magnificência.

CApItAlISMo InDIVIDuAlIStA ou lIBerAlISMo eConôMICo

O capitalismo individualista e egoísta sustenta que o Estado não deve imiscuir-se na economia; que se deveria dar aos proprietários dos meios de produção e do dinheiro a liberdade de agir como bem entendessem, de tirar o máximo do consumidor pagando o mínimo ao trabalhador, obtendo, assim, cada vez maiores lucros; que cada um poderia especular à vontade e fazer dos ganhos o que bem lhe aprouvesse, gastando-os até no luxo e na dissipação. Quanto aos pobres, que se arranjassem como pudessem, pois, segundo dizem, é uma lei da na-tureza que os fracos sejam dominados pelos mais fortes e explorados pelos mais espertos.

Houve, entretanto, quem pensasse de maneira diversa e exclamasse: “Quando vemos esta multidão de po-bres, abatidos pela miséria por causas de que não são responsáveis e, a seu lado, tantos ricos que se divertem sem pensar nos outros, esbanjando grandes somas em coisas fúteis, não podemos deixar de constatar com amar-gura que, não somente a justiça não é devidamente observada, mas que o preceito da caridade continua in-compreendido na prática quotidiana”.

Quem assim falava, senhores, não era um “avançado”, era apenas Pio XI, em uma de suas encíclicas.

oBrIGAção DoS rICoS

Afirma nosso programa que àqueles que têm demais incumbe o dever de contribuir para resolver os proble-mas dos que vivem na privação e na necessidade, e que o poder público deve instituir tributos adicionais sobre os altos rendimentos, sobre os artigos de luxo e sobre o supérfluo em geral, a fim de que, por essa for-ma, se possa constituir um grande fundo social que permitirá realizar uma imensa obra de recuperação social, de assistência aos trabalhadores e desenvolvimento da economia nacional, corrigindo os desequilíbrios exis-tentes.

Estará este ponto em conflito com a doutrina da Igreja? Creio que não, porque é ainda Pio XI que adver-te: “O Estado deve empenhar-se em criar as condições materiais de vida, sem as quais uma sociedade orga-nizada não pode subsistir, e em proporcionar trabalho especialmente aos pais de família e à juventude. Com esse objetivo, é necessário que as classes abastadas, em razão da urgente necessidade do bem comum, sejam obrigadas a assumir os encargos sem os quais não se poderá salvar a sociedade humana, nem elas a si próprias. As medidas que o Estado deve tomar para esse fim devem ser de tal natureza que atinjam realmente aqueles que têm em suas mãos os maiores capitais e os vão continuamente aumentando com grave prejuízo para os demais”.

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MeIoS De ACeSSo à proprIeDADe

Segundo a doutrina da Igreja, a propriedade privada é um direito natural. Ora, de acordo com as estatísticas, em nosso país nem 20% da população possui uma propriedade imobiliária, ou sob a forma de moradia ou de terra. Isso significa que, na situação existente, o direito natural não se realiza em 80% dos casos.

Nós, os trabalhistas, não pretendemos socializar a propriedade, isto é, transferi-la das mãos dos particulares para as mãos do Estado, mas queremos torná-la acessível a todos, pondo por isso, à disposição de cada um, os meios de adquiri-la. Não basta dizer que cada trabalhador deve ter direito a possuir a sua moradia higiênica e confortável, e que ninguém proíbe a cada trabalhador do campo a aquisição de um pedaço de terra. É neces-sário ir um pouco além, é necessário que o dinheiro para comprar a casa e para comprar a terra esteja realmen-te ao alcance dos trabalhadores. E quem vai fornecer esse dinheiro? Os bancos? Já se disse, com espírito, que os bancos são instituições que emprestam dinheiro àqueles que dele não precisam. É, senhores, o poder públi-co que deve fornecer esse dinheiro. E como? Cobrando juros de 10 ou 12%? Não, não cobrando juro algum. Quando o empréstimo ou financiamento visa a possibilitar ao trabalhador adquirir a sua moradia, ou ao pe-queno agricultor adquirir terra e instrumentos de trabalho, o juro não tem sentido algum. E onde irá o poder público buscar o dinheiro para fazer esses empréstimos? Pode consegui-lo de três fontes principais: a primeira será a redução de todos os desperdícios e despesas públicas desnecessárias e improdutivas. O Estado existe para realizar o bem público e não para alimentar o parasitismo. A segunda será uma tributação adicional dos altos rendimentos, pois é esta uma das formas de canalizá-los para inversões sociais e de utilidade coletiva. A tercei-ra será uma tributação adicional dos artigos de luxo. Não é justo que alguém possua três ou quatro automóveis e outros não tenham sequer o suficiente para pagar o bonde; não é justo que alguns morem em palácios e outros em cortiços imundos; não é justo que muitas damas vistam peles que custam centenas de milhares de cruzeiros e muitas mães não tenham sequer um trapo para cobrir o corpo dos filhos.

Poder-se-ia, assim, conseguir anualmente alguns milhões que seriam aplicados em financiamentos, sem juros, para que cada trabalhador pudesse adquirir sua moradia confortável; para que cada trabalhador rural, cada agricultor pudesse adquirir terra e instrumentos de trabalho; para que o cooperativismo se pudesse de-senvolver; para que se pudessem realizar, em grande escala, obras públicas e serviços de assistência social, abrir estradas, construir escolas, hospitais, usinas de produção de energia, aparelhar portos, meios de transportes, realizar obras de saneamento e recuperação do solo, instalar colônias agrícolas, o que não se faz com palavras, mas com grande soma de recursos.

ContrA A DItADurA Do DInHeIro

Nós, trabalhistas, nos rebelamos contra a ditadura do dinheiro e entendemos que ele deve ser acessível, sob a forma de crédito, a todos aqueles que desejam realizar empreendimentos úteis à coletividade. O dinheiro, como forma genérica que é do capital, deve ser um meio e não um fim, não podendo, em consequência, ser usado como meio de opressão, de especulação e de exploração.

Será, meus amigos, que isso contraria os ensinamentos cristãos?“Nos nossos tempos”, diz Pio XI, “não se acumulam somente riquezas, mas também se criam enormes pode-

res e uma prepotência econômica e despótica nas mãos de poucos. Muitas vezes não são estes sequer os do nos, senão apenas os depositários e administradores, que governam o capital segundo sua vontade e seu arbítrio. Esses potentados são extraordinariamente poderosos: donos absolutos do dinheiro, governam o crédito e o distribuem segundo o seu arbítrio. Dir-se-ia que administram o sangue de que vive toda a economia e que, desse modo, têm em suas mãos a alma da vida econômica e que ninguém pode respirar sem o seu consentimento”.

É contra esse quadro, descrito pelo grande pontífice, que nos insurgimos, e desejamos e propomos que o Estado tome medidas eficazes para modificá-lo, porque é esse seu dever elementar.

Sustentamos também a tese que todo ganho deve corresponder a um trabalho socialmente útil e que todo ganho de pura especulação, que não derive do trabalho, é iníquo e representa uma exploração daqueles que trabalham e produzem.

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FInAlIDADeS DA terrA

Sustentamos que a terra, por existir em extensão limitada e por provirem dela, em última análise, os elemen-tos necessários à vida, deve ser explorada no sentido do seu maior rendimento econômico e social. Deve ser acessível a todos que desejem torná-la produtiva com o seu trabalho e que tenham necessidade de fazê-lo para sustentarem a si e a suas famílias. Em certos casos, será necessário subdividir a propriedade territorial, noutros casos não. Se, por exemplo, numa zona de colonização ou necessária à colonização alguém possuir uma gran-de extensão de terra e especule sobre a sua valorização, o Estado deve desapropriá-la, loteá-la e ceder os lotes a longo prazo, sem lucros e sem juros, aos agricultores e colonos que quiserem cultivá-la. A terra não pode ser objeto de especulação, fato esse que poderia ocorrer de duas maneiras: uma, esperando seu proprietário a va-lorização, e outra, explorando, mediante condições e arrendamentos extorsivos, aqueles que não a possuem e têm necessidade dela.

Será que, assim pensando, nos afastamos do pensamento da Igreja?Pio XII, falando aos agricultores italianos, em novembro de 1946, e referindo-se ao problema agrário ita-

liano, assinalava que a terra, que deveria ser, por natureza, a fonte generosa e nutriz das cidades e da campanha, só produzia agora para os seus especuladores. Enquanto o povo sofria fome e o agricultor se endividava sempre mais, arruinando-se, a economia do país se esgotava, comprando a preço de ouro os víveres que era obrigada a importar de fora. Essa perversão da propriedade privada da terra, dizia o Santo Padre, é profundamente pre-judicial, sendo aconselhável a sua divisão.

Entendemos, também, que a organização da pequena agricultura, sob a forma cooperativa, e fortemente amparada pelo crédito social, permitirá introduzir-lhe os melhoramentos da técnica moderna, evitando os inconvenientes do capitalismo rural, isto é, da grande exploração que cria a forma mais miserável do proleta-rismo. Parece que ainda aqui estamos seguindo os conselhos de Pio XII quando, em mensagem radiofônica de 12 de setembro de 1944, dizia que a pequena e média propriedade agrícola, artesanal, profissional e industrial devia ser garantida e favorecida e que as uniões cooperativas deveriam assegurar-lhes as vantagens da explora-ção capitalista.

o trABAlHISMo e oS pequenoS AGrICultoreS

Toda vez, agricultores desta região, que vos disserem que o Partido Trabalhista pretende socializar as vossas propriedades, as vossas colônias e os vossos parreirais, podeis responder que é esse o maior absurdo e a maior falsidade que se poderia inventar. O que quer o trabalhismo é justamente o contrário, quer que o poder público ponha à vossa disposição os meios para comprardes a terra e os instrumentos de trabalho de que precisardes, que vos dê escolas, estradas, garantia de preços mínimos, assistência técnica, seguro agrí-cola, assistência médica e hospitalar, para que, quando cairdes doentes, não tenhais, num mês de hospital, de gastar tudo aquilo que economizastes em anos com tanto sacrifício. Tudo isso será possível se deixarmos as palavras, as frases ocas e vazias, e tivermos coragem de enfrentar problemas com medidas concretas, criando o fundo social a que há pouco me referi. Isso tudo, se Deus quiser e vós ajudardes, o trabalhismo há de concretizar.

oBJetIVoS FunDAMentAIS Do trABAlHISMo

O objetivo fundamental do trabalhismo é realizar o princípio de cooperação e eliminar a exploração sob todas as formas e modalidades, porque ela custa aos trabalhadores, da cidade e dos campos, o suor dos seus rostos e o pão dos seus filhos. Entendemos que o trabalho é a fonte originária, direta ou indireta, de todos os bens e, por essa razão, os trabalhadores devem merecer a especial atenção e proteção do Estado. Eis por que a legisla-ção social, obra de nosso eminente candidato senador Getúlio Vargas, não somente deverá ser mantida, mas deverá também ser ampliada e estendida aos trabalhadores rurais.

Em mensagem de 24 de fevereiro de 1942, observava o atual pontífice que a Igreja não pode ignorar, ou não ver, que os trabalhadores, em seu esforço para melhorar sua situação, esbarram contra todo um sistema

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que, longe de ser conforme a natureza, está em oposição com a ordem de Deus e com a finalidade que Ele conferiu aos bens terrestres. E o mesmo pontífice, em um discurso aos trabalhadores italianos, em junho de 1945, acentuava que “não é apenas a situação dos trabalhadores que exige reformas, mas a própria estrutura complexa da sociedade, pois toda ela tem necessidade de retificações e reajustes, abalada como está em seu conjunto”.

Diante dessas palavras, observa o Bispo de Hamur, o cristão católico não pode hesitar em reconhecer que existe na sociedade atual como que um estado de pecado, de que somos todos solidariamente responsáveis, e que exige de nós um esforço vigoroso de reforma, de redenção.

É precisamente nessa obra de reforma e de redenção social que nós, trabalhistas, desejamos colaborar. Para realizá-la, não preconizamos a instituição do socialismo porque isso, no Brasil, seria um contrassenso. Pondo de lado outras considerações, qualquer um pode compreender que, para socializar o capital, isto é, os meios de produzir, seria necessário, antes, que eles existissem. O Brasil está ainda na fase da formação do seu capital, do seu aparelhamento produtor. O que precisamos é justamente incentivar a iniciativa privada, mas incentivá-la em empreendimentos socialmente úteis e não em atividades de mera especulação, e sempre dentro dos prin-cípios que de fendemos e sustentamos.

É preciso não esquecer que há duas maneiras de privar o acesso à propriedade e aos meios de produção: uma, atribuindo-os exclusivamente ao Estado, e teremos então o socialismo; e outra, enfeixando-os nas mãos de uma oligarquia econômica e financeira, e teremos então o capitalismo na sua forma mais ofensiva e repugnan-te. Contra isso nos batemos e nos bateremos.

não BAStA InVoCAr oS preCeItoS CrIStãoS

Muito me poderia alongar sobre o programa do trabalhismo, a sua orientação, os seus objetivos, as suas solu-ções. Seria, porém, abusar da vossa tolerância e da vossa bondade. O que apenas vos posso assegurar, católicos, para tranquilidade de vossas consciências, é que não há um só ponto, um só item desse programa que não se possa considerar inspirado num sentimento ou num mandamento cristão. Todas as reivindicações da consci-ência cristã estão no programa do partido.

Mas, senhores, não basta invocar os preceitos cristãos, não basta falar em Deus, pátria e família. É neces-sário também cumprir e dar execução prática a esses preceitos e, no que concerne à organização social e econômica, não cabe isso à religião, mas constitui dever e tarefa dos partidos através do mecanismo institu-cional do Estado.

Na organização atual, são as massas trabalhadoras das cidades e dos campos, são os pequenos agricultores que carregam todo o fardo pesado da sociedade. No entanto, o apóstolo São Paulo nos adverte que é carre-gando o fardo uns dos outros que os homens cumprem a lei de Deus.

Meus senhores: somos trabalhadores e muito nos orgulhamos de o ser. De mim vos digo que, nos estreitos limites de minhas possibilidades, pregarei sempre suas ideias e as defenderei enquanto tiver forças para fazê-lo. É um imperativo de minha consciência e um impulso do coração.

noVA etApA Do trABAlHISMo

A legislação social do Brasil é obra de um trabalhista, do maior deles, de nosso grande candidato, senador Getúlio Vargas. Essa obra deve ser agora completada. Cumpre que as garantias jurídicas da legislação do tra-balho sejam complementadas com as garantias econômicas do trabalhador, com a possibilidade de ter a sua moradia decente e confortável, porque a decência e o conforto não devem ser privilégios dos afortunados. Deve o trabalhador ter a possibilidade efetiva de ascender na escala dos padrões sociais e econômicos, ter sem-pre garantida uma ocupação de acordo com as suas necessidades e as da família.

É necessário voltarmos os nossos olhos para os trabalhadores rurais, que vivem entregues à própria sorte, sem uma legislação e sem medidas econômicas que os amparem: para essa imensa legião de párias, chamados mar-ginais, que não têm meios de trabalhar, e creio que nem disposição de viver; para os nossos honrados e laborio-

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sos agricultores da colônia, a quem devemos o alimento de cada dia, para que tenham do Estado o amparo, a proteção e a assistência de que necessitam. Isso não constitui um favor, é um direito que lhes assiste.

Pretende ainda o trabalhismo que todos aqueles que possuem capacidade e vontade de realizar empreendi-mentos úteis à coletividade tenham sempre os meios financeiros à disposição. Não se trata de suprimir a ini-ciativa privada, mas, no contrário, de que todos possam desenvolver suas aptidões na prestação de serviços úteis à coletividade e ao desenvolvimento do país. O que não poderemos tolerar é o parasitismo, o enriquecimento sem trabalho, o desperdício de dinheiros públicos, que custam o suor e o sacrifício do povo.

Para que tudo isso possa ser alcançado, trabalhadores, agricultores, homens progressistas da lavoura, da in-dústria e do comércio, precisamos contar com vosso apoio e a vossa solidariedade. Temos, rio-grandenses, um compromisso sagrado de sufragar nas urnas nosso preclaro candidato, senador Getúlio Vargas. Temos, traba-lhistas, o compromisso de votar em nosso eminente candidato ao governo do estado, senador Ernesto Dorne-les, e em nossos candidatos ao parlamento nacional e à assembleia legislativa do estado. Lá, cada um no seu posto, saberá defender e realizar o grande e nobre ideal trabalhista.

Fonte | SIMON, P. (Org.). Alberto Pasqualini: textos escolhidos. Brasília: Senado Federal, 2001.

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1961 | congreSSo nAcionAl doS lAVrAdoreS

e trABAlhAdoreS AgrícolAS BrASileiroS

Declaração de Belo Horizonteo movimento de lavradores e trabalhadores agrícolas no Brasil

ganhou notável expressão na conjuntura da primeira metade dos anos 1960, constituindo-se em fator maior de radicalização das lutas sociais

e políticas do período.

As ligas Camponesas, formadas desde a década de 1940, ganhando expressão em 1955, com a do engenho da galileia, no interior de pernambuco, eram uma de suas principais bases de sustentação.

A liga da galileia, espécie de associação de ajuda mútua de camponeses, formada em 1954, destinava-se a auxiliar as famílias a enterrar os mortos, pois estes eram, então, jogados em covas de

indigentes, sob o regime de caixão emprestado. posteriormente, passou a se movimentar por reivindicações e interesses concretos

até chegar à luta pela reforma agrária radical. quando o proprietário resolveu expulsá-los do engenho, houve luta, e a liga conseguiu que

o engenho fosse desapropriado (mediante indenização), tornando-se a galileia um símbolo da luta camponesa. A partir dela, as ligas Camponesas expandiram-se para outros estados, como a paraíba,

onde foi fundada a liga Camponesa de sapé, em 1958, a maior do nordeste, sob a liderança de João pedro teixera, assassinado em 1962.

outro eixo do movimento dos trabalhadores rurais era constituído pelos sindicatos rurais, que também começaram a se disseminar pelo

país na mesma conjuntura, agrupando os assalariados agrícolas.

A Declaração de Belo Horizonte, formulada pelo I Congresso nacional dos lavradores e trabalhadores Agrícolas, em 1961, ao formular

a reivindicação de uma reforma agrária radical, representa um momento de afirmação destes movimentos, a partir do qual eles

iriam se desdobrar, envolvendo múltiplos segmentos das massas de trabalhadores rurais.

Com a ditadura militar, em 1964, a luta por uma reforma agrária radical e tudo o que significava enquanto um projeto de sociedade,

foi reprimida e liquidada, sendo perseguidos, presos ou mortos os principais líderes. (n.F. e M.B.)

As massas camponesas oprimidas e exploradas de nosso país, reunidas em seu I Congresso Nacional, vêm por meio desta declaração manifestar a sua decisão inabalável de lutar por uma reforma agrária radical. Uma tal reforma nada tem a ver com as medidas paliativas propostas pelas forças retrógradas da nação, cujo objetivo é adiar por mais algum tempo a liquidação da propriedade latifundiária. A bandeira da reforma agrária radical é a única bandeira capaz de unir e organizar as forças nacionais que desejam o bem-estar e a felicidade das mas-sas trabalhadoras rurais e o progresso do Brasil.

O I Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas, após os debates travados durante todo o período de sua realização, definiu os elementos básicos que caracterizam a situação atual das massas campone-sas e fixou os princípios gerais a que se deve subordinar uma reforma agrária radical.

A característica principal da situação agrária brasileira é o forte predomínio da propriedade latifundiária. Com uma população rural de cerca de 38 milhões de habitantes, existem no Brasil apenas 2.065.000 proprie-dades agrícolas. Neste número incluem-se 70.000 propriedades latifundiárias, que representam 3,39% do total dos estabelecimentos agrícolas existentes, mas que possuem 62,33% da área total ocupada do país.

É o monopólio da terra, vinculado ao capital colonizador estrangeiro, notadamente o norte-americano, que nele se apoia para dominar a vida política brasileira e melhor explorar a riqueza do Brasil. É o monopólio da terra o responsável pela baixa produtividade de nossa agricultura, pelo alto custo de vida e por todas as formas atrasadas, retrógradas e extremamente penosas de exploração semifeudal que escravizam e brutalizam milhões de camponeses sem-terra. Essa estrutura agrária caduca, atrasada, bárbara e desumana constitui um entrave decisivo ao desenvolvimento nacional e é uma das formas mais evidentes do processo espoliativo interno.

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A fim de superar a atual situação de subdesenvolvimento crônico, de profunda instabilidade econômica, política e social e, sobretudo, para deter a miséria e a fome crescentes, para elevar o baixo nível de vida do povo em geral e melhorar as insuportáveis condições de vida e de trabalho a que estão submetidas as massas camponesas, torna-se cada vez mais urgente e imperiosa a necessidade da realização de uma reforma agrária que modifique radicalmente a atual estrutura de nossa economia agrária e as relações sociais imperantes no campo.

A reforma agrária não poderá ter êxito se não partir da ruptura imediata e da mais completa liquidação do monopólio da terra, exercido pelas forças retrógradas do latifúndio e o consequente estabelecimento do livre e fácil acesso à terra dos que nela queiram trabalhar.

É necessário, igualmente, que a reforma agrária satisfaça as necessidades mais sentidas e as reivindicações imediatas dos homens do campo. Que responda, portanto, aos anseios e interesses vitais dos que trabalham a terra e que, aqui, se encontram reunidos através de seus representantes e delegados de todo o país ao I Con-gresso Nacional dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil.

Para os homens que trabalham a terra, a reforma agrária, isto é, a completa e justa solução da questão agrá-ria no país, é a única maneira de resolver efetivamente os graves problemas em que se debatem as massas cam-ponesas e, portanto, elas, mais do que qualquer outra parcela da população brasileira, estão interessadas em sua realização. As massas camponesas têm a consciência de que a solução final dessa questão depende delas.

A execução de uma reforma agrária, efetivamente democrática e progressista, só poderá ser alcançada à base da mais ampla e vigorosa ação, organizada e decidida, das massas trabalhadoras do campo, fraternalmente ajudadas em sua luta pelo proletariado das cidades, os estudantes, a intelectualidade e demais forças naciona-listas e democráticas do povo brasileiro.

As medidas aqui propostas, capazes de realmente conduzir à solução do magno problema da reforma agrária em nossa pátria, evidentemente, se chocam e se contrapõem aos interesses e soluções preconizadas pelas forças sociais que se beneficiam e prosperam à base da manutenção da arcaica e nociva estrutura agrária atual. Sobre esta estrutura repousa a instável economia, dependente e subdesenvolvida, de nossa pátria, e, a todo custo, essas forças procuram impedir que ela se modifique.

A reforma agrária que defendemos e propomos diverge e se opõe frontalmente, portanto, aos inúmeros projetos, indicações e proposições sobre as pretensas “reformas”, revisões agrárias e outras manobras elaboradas e apresentadas pelos representantes daquelas forças, cujos interesses e objetivos almejam sobretudo ao desejo de manter no essencial e indefinidamente o atual estado de coisas.

A reforma agrária pela qual lutamos tem como objetivo fundamental a completa liquidação do monopólio da terra exercido pelo latifúndio, sustentáculo das relações antieconômicas e antissociais que predominam no campo e que são o principal entrave ao livre e próspero desenvolvimento agrário do país.

Com a finalidade de realizar a reforma agrária que efetivamente interessa ao povo e às massas trabalhadoras do campo, julgamos indispensável e urgente dar solução às seguintes questões:

a) Radical transformação da atual estrutura agrária do país, com a liquidação do monopólio da propriedade da terra exercido pelos latifundiários, principalmente com a desapropriação pelo governo federal dos latifúndios, substituindo-se a propriedade monopolista da terra pela propriedade camponesa, em forma individual ou as-sociada, e a propriedade estatal.

b) Máximo acesso à posse e ao uso da terra pelos que nela desejam trabalhar, à base da venda, usufruto ou aluguel a preços módicos das terras desapropriadas aos latifundiários e da distribuição gratuita das terras devolutas.

Além das medidas que visam a modificar radicalmente as atuais bases da questão agrária no que respeita ao problema da terra, são necessárias soluções que possam melhorar as atuais condições de vida e de trabalho das massas camponesas, como sejam:

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a) Respeito ao amplo, livre e democrático direito de organização independente dos camponeses em suas associa-ções de classe.

b) Aplicação efetiva da parte da legislação trabalhista já existente e que se estende aos trabalhadores agrícolas, bem como imediatas providências governamentais no sentido de impedir sua violação. Elaboração de estatuto que vise a uma legislação trabalhista adequada aos trabalhadores rurais.

c) Plena garantia à sindicalização livre e autônoma dos assalariados e semiassalariados do campo. Reconhecimen-to imediato dos sindicatos rurais.

d) Ajuda efetiva e imediata à economia camponesa, sob todas as suas formas.

As massas camponesas sentem agravar-se, a cada dia que passa, o peso insuportável da situação a que estão submetidas. Por isso mesmo, se mobilizam e se organizam para lutar decididamente pela obtenção de seus objetivos, expressos em uma efetiva, democrática e patriótica reforma agrária. Essa luta já se processa e evolui-rá até que sejam atingidos e realizados seus objetivos, pelos quais as massas no campo não pouparão esforços nem medirão sacrifícios.

Nas atuais condições, tudo deve ser feito para conseguir que as forças que dirigem os destinos da nação brasileira se lancem à realização de uma eficaz e inadiável política agrária, capaz de, através da execução de medidas parciais, ir dando solução às questões indispensáveis à plena realização da reforma agrária de que ne-cessitam os lavradores e trabalhadores agrícolas, assim como todo o povo brasileiro. Tais medidas, ente outras, são as seguintes:

a) Imediata modificação pelo Congresso Nacional do artigo 147 da Constituição Federal, em seu parágrafo 16, que estabelece a exigência de “indenização prévia, justa e em dinheiro” para os casos de desapropriação de terra por interesse social. Esse dispositivo deverá ser eliminado e reformulado, determinando que as indeniza-ções por interesse social sejam feitas mediante títulos do poder público, resgatáveis a prazo longo e a juros baixos.

b) Urgente e completo levantamento cadastral de todas as propriedades de área superior a 500 hectares e de seu aproveitamento.

c) Desapropriação, pelo governo federal, das terras não aproveitadas das propriedades com área superior a 500 hectares, a partir das regiões mais populosas, das proximidades dos grandes centros urbanos, das principais vias de comunicação e reservas de água.

d) Adoção de um plano para regulamentar a indenização em títulos federais da dívida pública, a longo prazo, e a juros baixos, das terras desapropriadas avaliadas à base do preço da terra registrado para fins fiscais.

e) Levantamento cadastral completo, pelos governos federal, estaduais e municipais, de todas as terras devolutas.f) Retombamento e atualização de todos os títulos de posse da terra. Anulação dos títulos ilegais ou precários de posse, cujas terras devem reverter à propriedade pública.g) O imposto territorial rural deverá ser progressivo, através de uma legislação tributária que estabeleça: 1º) forte

aumento de sua incidência sobre a grande propriedade agrícola; 2º) isenção fiscal para a pequena propriedade agrícola.

h) Regulamentação da venda, concessão em usufruto ou arrendamento das terras desapropriadas aos latifundiá-rios, levando em conta que em nenhum caso poderão ser feitas concessões cuja área seja superior a 500 hec-tares, nem inferior ao mínimo vital às necessidades da pequena economia camponesa.

i) As terras devolutas, quer sejam da propriedade da União, dos estados ou municípios, devem ser concedidas gratuitamente, salvo exceções de interesse nacional, aos que nelas queiram efetivamente trabalhar.

j) Proibição da entrega de terra públicas àqueles que as possam utilizar para fins especulativos.l) Outorga de títulos de propriedade aos atuais posseiros que efetivamente trabalham a terra, bem como defesa

intransigente de seus direitos contra a grilagem.m) Que seja planificada, facilitada e estimulada a formação de núcleos de economia camponesa, através da pro-

dução cooperativa.

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Com vistas a um rápido aumento da produção, principalmente de gêneros alimentícios, que possa atenuar e corrigir a asfixiante carestia de vida em que se debate a população do país, sobretudo as massas trabalhadoras da cidade e do campo, o Estado deverá elaborar um plano de fomento da agricultura que assegure preços mí-nimos compensadores nas fontes de produção; transporte eficiente e barato; favoreça a compra de instrumen-tos agrícolas e outros meios de produção; garanta o fornecimento de sementes, adubos, inseticidas etc. aos pequenos agricultores; conceda crédito acessível aos pequenos cultivadores, proprietários ou não, e combata o favoritismo dos grandes fazendeiros.

O I Congresso Nacional de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas conclama o povo brasileiro a tomar em suas mãos esta bandeira e torná-la vitoriosa.

Belo Horizonte, 17 de novembro de 1961.

Fonte | JULIÃO, Francisco. Que são as ligas camponesas? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1962. p. 81-87.

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1965 | erneSto che gueVArA

O socialismo e o homem novo em Cuba*

ernesto guevara de la serna (1928-1967) nasceu em rosário, na Argentina. Concluiu seus estudos de medicina em 1953, depois de ter feito uma grande viagem pela América do sul, na qual se sensibilizou com o estado de miséria da maioria da população. De passagem pelo México, em 1954, vindo da guatemala, onde presenciou o golpe que

liquidou o governo nacionalista de J. Arbenz, acabou conhecendo Fidel Castro — ali exilado, e que lutava pela derrubada do ditador de

Cuba, Fulgêncio Batista, aliado dos euA. Conquistado pelos ideais revolucionários de Castro, uniu-se à luta, tornando-se, mais tarde, um dos principais líderes da revolução Cubana. Com a vitória, em 1959, assumiu

alguns cargos governamentais, entre eles o de Ministro da Indústria, mas, em 1964, resolveu deixar o governo e voltar para a luta armada — dessa

vez, no Congo. Frustrada a tentativa de revolução na áfrica, articulou um projeto revolucionário para as Américas a partir de uma base a

ser organizada na Bolívia. Deslocando-se para este país, sofreria, entre outros problemas, a dificuldade de obter a confiança dos camponeses

— base de sua estratégia guerrilheira. Identificado seu foco guerrilheiro, perseguido e cercado, foi preso e assassinado em outubro de 1967.

guevara deixou um legado humanístico de luta pela emancipação dos oprimidos que vai além das fronteiras nacionais. para ele, uma

revolução não se fazia apenas pela luta armada e a tomada do poder, mas também pela construção, ou melhor, pelo nascimento de um novo homem. nesta carta a Carlos quijano, ele procurou demonstrar como o

socialismo em Cuba guiava-se por estas referências. (n.F. e M.B.)

Prezado companheiro,1

Termino estas notas numa viagem pela África, animado com o desejo de cumprir, ainda que tardiamente, a minha promessa. Quisera fazê-la tratando do tema do título. Creio que poderia ser interessante para os lei-tores uruguaios.

É comum escutar da boca dos porta-vozes capitalistas, como um argumento na luta ideológica contra o socialismo, a afirmação de que esse sistema social ou o período de construção do socialismo a que, por sinal, estamos dedicados, se caracteriza pela abolição do indivíduo em benefício do Estado. Não pretenderei refutar esta afirmação sobre uma base meramente teórica, mas sim estabelecer os fatos na forma como são vividos em Cuba e agregar comentários de índole geral. Primeiro, esboçarei os grandes traços da história de nossa luta revolucionária antes e depois da tomada do poder.

Como é sabido, a data precisa em que se iniciaram as ações revolucionárias que culminaram em 1o de janei-ro de 1959, foi a de 26 de julho de 1953. Um grupo de homens dirigidos por Fidel Castro atacou na madru-gada desse dia o quartel Moncada, na província do Oriente. O ataque foi um fracasso, o fracasso se transfor-mou em desastre e os sobreviventes foram parar na cadeia, para reiniciar, logo que foram anistiados, a luta revolucionária.

Durante esse processo, no qual só existiam germens do socialismo, o homem era um fator fundamental. Nele se confiava, individualizado, específico, com nome e sobrenome, e de sua capacidade de ação dependia o triunfo ou o fracasso do fato projetado.

Chegou a etapa da luta guerrilheira. Esta se desenvolveu em dois ambientes distintos: o povo, massa, todavia adormecida, a qual sua vanguarda deveria mobilizar; a guerrilha, motor impulsor da mobilização, gerador de consciência revolucionária e de entusiasmo combativo. Foi essa vanguarda o agente catalisador, o que criou condições subjetivas necessárias para a vitória. Também nela, no marco do processo de proletarização de nosso pensamento e da revolução que se operava em nossos hábitos e em nossas mentes, o indivíduo foi o fator fun-

1 Che Guevara enviou esta carta a Carlos Quijano, do semanário Marcha, de Montevidéu (N. do T.).

* No original, El hombre nuevo.

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damental. Cada um dos combatentes de Sierra Maestra que alcançasse algum grau superior nas forças revolucio-nárias tinha uma história de feitos notáveis em sua trajetória. Com base nesses, conquistava seus graus.

Foi uma época heroica, na qual os revolucionários disputavam para conseguir um cargo de maior responsa-bilidade, de maior perigo, sem outra satisfação além do cumprimento do dever. Em nosso trabalho de educa-ção revolucionária, voltamos com frequência para esse tema instrutivo. Na atitude de nossos combatentes se vislumbra o homem do futuro.

Em outras oportunidades de nossa história se repetiu o feito da entrega total à causa revolucionária. Duran-te a Crise de Outubro ou nos dias do ciclone Flora, vimos atos de valor e sacrifício excepcionais realizados por todo um povo. Encontrar a fórmula para perpetuar na vida cotidiana essa atitude heroica é uma de nossas ta-refas fundamentais do ponto de vista ideológico.

Em janeiro de 1959, estabeleceu-se um governo revolucionário com a participação de vários membros da burguesia entreguista. A presença do Exército Rebelde constituía a garantia do poder, como fator fundamen-tal de força.

Produziram-se, em seguida, contradições sérias, resolvidas em primeira instância, em fevereiro de 1959, quando Fidel assumiu a chefia do governo com o cargo de primeiro-ministro. O processo culminou em julho do mesmo ano, ao renunciar o presidente Urrutia diante da pressão das massas.

Aparecia na história da Revolução Cubana, agora com características nítidas, um personagem que voltaria sistematicamente: a massa.

Este ente multifacetário não é, como se pretende, a soma de elementos da mesma categoria (reduzidos à mesma categoria, além do mais, pelo sistema imposto), que atua como um manso rebanho. É verdade que segue sem vacilar seus dirigentes, fundamentalmente Fidel Castro, mas o grau dessa confiança depositada nele responde precisamente à sua interpretação cabal dos desejos do povo, de suas aspirações e à luta sincera pelo cumprimento das promessas feitas.

A massa participou na reforma agrária e no difícil trabalho de administração das empresas estatais; passou pela experiência heroica de Playa Girón (Baía dos Porcos); forjou-se nas lutas contra os distintos bandos de bandidos armados pela CIA; viveu uma das definições mais importantes dos tempos modernos na Crise de Outubro; e continua hoje trabalhando na construção do socialismo.

Consideradas as coisas de um ponto de vista superficial, poderia parecer que têm razão aqueles que falam de subordinação do indivíduo ao Estado, pois a massa realiza com entusiasmo e disciplina sem igual as tarefas que o governo fixa, sejam de índole econômica, cultural, de defesa, esportiva etc. A iniciativa parte, em geral, de Fidel ou do alto poder da revolução e é explicada ao povo que a toma como sua. Outras vezes, experiências locais são tomadas pelo partido e o governo para fazê-las gerais, seguindo o mesmo procedimento.

No entanto, o Estado se equivoca às vezes. Quando um desses equívocos é produzido, nota-se uma dimi-nuição do entusiasmo coletivo, e como efeito, uma diminuição quantitativa de cada um dos elementos que o formam e o trabalho paralisa até ficar reduzido a magnitudes insignificantes; é o instante de retificar. Assim sucedeu em março de 1962, diante de uma política sectária imposta ao partido por Anibal Escalante.2

É evidente que o mecanismo não basta para assegurar uma sucessão de medidas sensatas e que falta uma conexão mais estruturada com as massas. Devemos melhorá-la durante o curso dos próximos anos, mas no caso das iniciativas surgidas de estratos superiores do governo, por agora, utilizamos um método quase intui-tivo de sondar as reações gerais frente aos problemas apresentados.

Nisso Fidel é professor, cujo particular modo de integração com o povo só pode ser apreciado vendo-o atuar. Nas grandes concentrações públicas se observa algo assim como o diálogo de dois diapasões cujas vibra-ções provocam outras e novas no interlocutor. Fidel e a massa começam a vibrar num diálogo de intensidade crescente até alcançar o clímax num final abrupto, coroado por nosso grito de luta e vitória.

2 Aníbal Escalante era um líder comunista cubano, proveniente das fileiras do Partido Socialista Cubano (PSC), como assim se autodeno-minava o partido dos comunistas cubanos desde os anos 1940. Foi acusado de participar de uma organização (denunciada como uma “micro-fração”), destinada a reforçar a influência e o poder dos comunistas provenientes do PSC no poder revolucionário (N. do T.).

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O difícil de entender para quem não vive a experiência da revolução é esta estreita unidade dialética exis-tente entre o indivíduo e a massa, na qual ambos se inter-relacionam e, por sua vez, a massa, como conjunto de indivíduos, inter-relaciona-se com os dirigentes.

No capitalismo podemos ver alguns fenômenos desse tipo quando aparecem políticos capazes de conseguir a mobilização popular, mas se não se trata de um autêntico movimento social, em cujo caso não é plenamen-te lícito falar de capitalismo, o movimento terá a vida de quem o impulsiona ou até o fim das ilusões popula-res, imposto pelo rigor da sociedade capitalista. Nesta, o homem está dirigido por um frio ordenamento que, habitualmente, escapa ao domínio da compreensão. O exemplar humano, alienado, tem um invisível cordão umbilical que o liga à sociedade em seu conjunto: a lei do valor. Ela atua em todos os aspectos da vida, vai modelando seu caminho e seu destino.

As leis do capitalismo, invisíveis para o comum das gentes e cegas, atuam sobre o indivíduo sem que este perceba. Ele somente vê a amplitude de um horizonte que aparece infinito. Assim o apresenta a propaganda capitalista que pretende extrair do caso Rockefeller — verídico ou não — uma lição sobre as possibilidades de êxito. A miséria que é necessário acumular para que surja um exemplo assim e a soma de ruindades que acar-reta uma fortuna desta magnitude não aparecem no quadro e nem sempre é possível às forças populares escla-recer estes conceitos (caberia aqui uma reflexão sobre como, nos países imperialistas, os operários vão perdendo seu espírito internacional de classe por causa do influxo de uma certa cumplicidade na exploração dos países dependentes; como este fato, ao mesmo tempo, lima o espírito de luta das massas no próprio país, mas esse é um tema que sai da intenção dessas notas).

De toda forma, o caminho apresenta obstáculos que, aparentemente, um indivíduo com as qualidades ne-cessárias pode superar para alcançar a meta. O prêmio se avista no horizonte; o caminho é solitário. Além do mais, é uma corrida de lobos: somente pode-se alcançar a vitória sobre o fracasso dos outros.

Tentarei, agora, definir o indivíduo, ator desse estranho e apaixonante drama que é a construção do socia-lismo, em sua dupla existência de ser único e membro da comunidade. Acredito que o mais sincero é reconhe-cer sua qualidade de não feito, de produto não acabado. As falhas do passado são transportadas para o presente na consciência individual e é necessário fazer um trabalho contínuo para erradicá-las. O processo é duplo, por um lado, atua a sociedade com sua educação direta e indireta, por outro, o indivíduo se submete a um proces-so consciente de autoeducação.

A nova sociedade em formação tem que competir muito duramente com o passado. Isso se faz sentir não apenas na consciência individual em que pesam os resíduos de uma educação sistematicamente orientada para o isolamento do indivíduo, como também pelo próprio caráter deste período de transição, com a persistência das relações mercantis. A mercadoria é a célula econômica da sociedade capitalista; enquanto existir, seus efei-tos se farão sentir na organização da produção e, portanto, na consciência.

No esquema de Marx, se concebia o período de transição como resultado da transformação explosiva do sistema capitalista destroçado por suas contradições. Na realidade posterior, o que se tem visto é que ao se desgalharem da árvore imperialista, alguns países se constituem em ramos débeis, fenômeno previsto por Lê-nin. Nestes, o capitalismo se desenvolveu o suficiente para fazer sentir seus efeitos, de um modo ou de outro, sobre o povo, mas não são suas próprias contradições as que, esgotadas em todas as possibilidades, fazem ex-plodir o sistema. A luta de libertação contra um opressor externo, a miséria provocada por acidentes estranhos, como a guerra, cujas consequências fazem as classes privilegiadas pesarem ainda mais sobre os explorados, os movimentos de libertação destinados a derrubar regimes neocoloniais, são os fatores habituais de desencadea-mento. A ação consciente faz o resto.

Nestes países não se produziu, todavia, uma educação completa para o trabalho social e a riqueza está longe do alcance das massas mediante o simples processo de apropriação. O subdesenvolvimento, por um lado, e a habitual fuga de capitais para países civilizados, por outro, tornam impossível uma mudança rápida e sem sacri-fícios. Resta uma grande distância a percorrer na construção da base econômica, e a tentação de seguir os caminhos trilhados do interesse material, como alavanca impulsora de um desenvolvimento acelerado, é mui-to grande.

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Corre-se o perigo de que as árvores impeçam de ver o bosque. Perseguindo a quimera de realizar o socia-lismo com a ajuda das armas estragadas que nos legou o capitalismo (a mercadoria como célula econômica, a rentabilidade, o interesse material individual como alavanca etc.), pode-se chegar a um beco sem saída. E che-gamos nesse ponto depois de percorrer uma grande distância na qual os caminhos se entrecruzam muitas vezes e é difícil perceber o momento em que nos equivocamos na rota. Entretanto, a base econômica adaptada fez seu trabalho de sapa sobre o desenvolvimento da consciência. Para construir o comunismo, simultaneamente com a base material, há de se fazer o Homem Novo.

Daí ser tão importante escolher corretamente o instrumento de mobilização das massas. Esse instrumento deve ser de índole moral, fundamentalmente, sem esquecer uma correta utilização do estímulo material, so-bretudo de natureza social.

Como já disse, em momentos de perigo extremo, é fácil potencializar os estímulos morais. Para manter sua vigência, é necessário o desenvolvimento de uma consciência na qual os valores adquiram categorias novas. A sociedade em seu conjunto deve se converter em uma gigantesca escola.

As grandes linhas do fenômeno são similares ao processo de formação da consciência capitalista em sua primeira época. O capitalismo recorre à força, mas além do mais, educa as pessoas dentro do sistema. A pro-paganda direta se realiza pelos encarregados de explicar a inevitabilidade de um regime de classe, seja de ori-gem divina ou por imposição da natureza como ente mecânico. Isso apazigua as massas que se veem oprimidas por um mal contra o qual não é possível lutar.

Em seguida, vem a esperança e, com esta, o capitalismo se diferencia dos regimes anteriores de casta que não ofereciam saída possível. Para alguns continuará vigente, todavia, a fórmula da casta: o prêmio aos obedientes consiste na chegada, depois da morte, em outros mundos maravilhosos onde os bons são premiados. Com isso, segue-se a velha tradição. Para outros, a inovação; a separação em classes é fatal, mas os indivíduos podem sair daquela à qual pertencem mediante o trabalho, a iniciativa etc. Tal processo e o de autoeducação para o triun-fo devem ser profundamente hipócritas: é a demonstração interessada de que uma mentira é verdade.

Em nosso caso, a educação direta adquire uma importância muito maior. A explicação é convincente por-que é verdadeira, não precisa de subterfúgios. Exerce-se através do aparato educativo do Estado em função da cultura geral, técnica e ideológica, por meio de organismos tais como o Ministério da Educação e o aparelho de divulgação do partido. A educação impregna as massas e a nova atitude preconizada tende a converter-se em hábito. A massa, tornando sua esta educação, pressiona aqueles que não são educados. Esta é a forma indi-reta de educar as massas, tão poderosa quanto a outra.

Entretanto, este processo é consciente: o indivíduo recebe continuamente o impacto do novo poder social e percebe que não está completamente adequado a este. Sob a influência da pressão subjacente à educação in-direta, trata de se acomodar a uma situação, que ele sente ser justa, mas cuja sua própria falta de desenvolvi-mento impediu de alcançar. Assim, ele autoeduca-se.

No período de construção do socialismo, podemos ver o Homem Novo que vai nascendo. Sua imagem não está, ainda, acabada. Nunca poderia estar, já que o processo marcha paralelo ao desenvolvimento de formas econômicas novas. Abstraindo aqueles cuja falta de educação instiga ao caminho solitário e à autossatisfação de suas ambições — apesar de estarem dentro deste novo panorama de marcha conjunta, esses têm tendência a caminhar isolados da massa que acompanham. O importante é que os homens vão adquirindo cada dia maior consciência da necessidade de sua incorporação à sociedade e, ao mesmo tempo, de sua importância como motores dela própria.

Já não marcham completamente sozinhos, por caminhos perdidos, em busca de anseios distantes. Seguem sua vanguarda, constituída pelo partido, pelos operários mais avançados, pelos homens mais avançados que caminham ligados às massas e em estreita comunhão com elas. As vanguardas têm sua visão voltada para o futuro e em sua recompensa, mas esta não se vislumbra como algo individual. O prêmio é a nova sociedade na qual os homens terão características distintas: a sociedade do homem comunista.

O caminho é longo e repleto de dificuldades. Às vezes, por tomar o caminho errado, precisamos retroceder; outras, por caminhar com demasiada pressa, nos separamos das massas; em certos momentos, por fazê-lo len-

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tamente, sentimos próxima a respiração daqueles que nos seguem de perto. Em nossa ambição de revolucio-nários, tratamos de caminhar tão rápido quanto possível, abrindo caminhos, mas sabemos que temos que nos nutrir da massa e que esta somente poderá avançar mais rápido se a instigamos com o nosso exemplo.

Apesar da importância dada aos estímulos morais, o fato de existir a divisão em dois grupos principais (ex-cluindo a fração minoritária dos que não participam, por uma razão ou outra, da construção do socialismo), indica a relativa falta de desenvolvimento da consciência social. O grupo da vanguarda é ideologicamente mais avançado que a massa; esta conhece os valores novos, mas insuficientemente. Enquanto nos primeiros se pro-duz uma mudança qualitativa que lhes permite ir ao sacrifício em suas funções avançadas, os segundos somen-te veem pela metade e devem ser submetidos a estímulos e pressões de certa intensidade. É a ditadura do proletariado sendo exercida não somente sobre a classe derrotada, mas também, individualmente, sobre a clas-se vencedora.

Tudo isso implica, para seu êxito total, na necessidade de uma série de mecanismos, de instituições revolu-cionárias. Na imagem das multidões marchando em direção ao futuro, o conceito de institucionalização se encaixa como o de um conjunto harmônico de canais, degraus, barragens, aparelhos bem regulados que per-mitam essa marcha, que permitam a seleção natural dos destinados a caminhar na vanguarda e que concedam o prêmio e o castigo aos que cumprem ou atentem contra a sociedade em construção.

Essa institucionalização da Revolução, todavia, não foi ainda conquistada. Buscamos algo novo que permita a perfeita identificação entre o governo e a comunidade em seu conjunto, ajustada às condições peculiares da cons-trução do socialismo e fugindo ao máximo dos lugares — comuns da democracia burguesa, transplantados para a sociedade em formação (como as câmaras legislativas, por exemplo). Foram feitas algumas experiências dedica-das a criar paulatinamente a institucionalização da Revolução, mas sem demasiada pressa. O freio maior que ti-vemos foi o medo de qualquer aspecto formal que nos separe das massas e do indivíduo, que nos faça perder de vista a última e mais importante ambição revolucionária que é ver o homem libertado de sua alienação.

Não obstante a carência de instituições, o que deve acabar sendo superado gradualmente, agora, as massas fazem a história como um conjunto consciente de indivíduos que lutam por uma mesma causa. O homem, no socialismo, apesar de sua aparente padronização, é mais completo. Apesar da falta de um mecanismo perfeito para ele, sua possibilidade de se expressar e se fazer sentir no aparelho social são infinitamente maiores.

Contudo, é preciso acentuar a participação consciente, individual e coletiva, em todos os mecanismos de direção e de produção e ligá-la à ideia da necessidade da educação técnica e ideológica, de maneira que se perceba como tais processos são estreitamente interdependentes e seus avanços, paralelos. Assim, o homem conquistará a total consciência de seu ser social, o que equivale à sua realização plena como criatura humana, rompendo todas as cadeias da alienação. Isso se traduzirá concretamente na reapropriação de sua natureza através do trabalho libertado e da expressão de sua própria condição humana por meio da cultura e da arte.

Para que se desenvolva a primeira, o trabalho deve adquirir uma condição nova. A mercadoria-homem cessa de existir e se instala um sistema que outorga uma cota pelo cumprimento do dever social. Os meios de produção pertencem à sociedade e a máquina é apenas a trincheira onde se cumpre o dever. O homem come-ça a libertar seu pensamento do fato irritante que pressupunha a obrigatoriedade de satisfazer suas necessidades animais mediante o trabalho. Ele começa a se ver retratado em sua obra e a compreender sua magnitude hu-mana através do objeto criado, do trabalho realizado. Isso já implica deixar uma parte de seu ser em forma de força de trabalho vendida que não lhe pertence mais, mas que significa uma emanação de si mesmo, uma contribuição à vida comum em que se reflete o cumprimento de seu dever social.

Fazemos todo o possível, de um lado, para dar ao trabalho esta nova categoria de dever social e uni-lo ao desenvolvimento da técnica, o que dará melhores condições para a obtenção de uma maior liberdade; e, de outro lado, para a realização de trabalho voluntário, baseados na apreciação marxista de que o homem real-mente alcança sua plena condição humana quando produz sem a compulsão da necessidade física de se vender como mercadoria.

Claro que ainda há aspectos coercitivos no trabalho, ainda que ele seja necessário. O homem não transfor-mou toda a coerção que o rodeia em reflexo condicionado de natureza social e ainda produz, em muitos casos,

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sob a pressão do meio (compulsão moral, a chama Fidel). Ainda falta conquistar o completo prazer espiritual ante sua própria obra, sem a pressão direta do meio social, mas ligada a ele por novos hábitos. Isso será o co-munismo.

A mudança não se produz automaticamente na consciência, assim como não se produz tampouco na eco-nomia. As mudanças são lentas e não são rítmicas. Há períodos de aceleração, outros, de pausa, e, inclusive, de retrocesso. Devemos considerar, além do que apontávamos antes, que não estamos frente a um período de transição puro, tal como o sugerira Marx na Crítica ao Programa de Gotha, mas sim em uma nova fase não pre-vista por ele: o primeiro período de transição do comunismo ou da construção do socialismo. Este transcorre em meio a violentas lutas de classe e com elementos de capitalismo em seu seio que obscurecem a compreensão cabal de sua essência.

Se a isto se agrega o escolasticismo que freou o desenvolvimento da filosofia marxista e impediu o estudo sistemático do período, cuja economia política não se desenvolveu, devemos convir que ainda estamos enga-tinhando e é preciso dedicar-se a investigar todas as características primordiais da experiência passada antes de elaborar uma teoria econômica e política de maior alcance.

A teoria que vier dará indefectível proeminência aos dois pilares da construção: a formação do Homem Novo e o desenvolvimento da técnica. Em ambos os aspectos ainda falta muito a fazer, mas é menos justificá-vel o atraso em relação à concepção da técnica como base fundamental, já que aqui não se trata de avançar às cegas, mas sim de acompanhar, em boa medida, o caminho aberto pelos países mais adiantados do mundo. Por isso, Fidel insiste na necessidade da formação tecnológica e científica de todo o nosso povo e, mais ainda, de sua vanguarda.

No campo das ideias que conduzem as atividades não produtivas, é mais fácil ver a divisão entre a necessi-dade material e a espiritual. Já há muito tempo o homem procura se libertar da alienação mediante a cultura e a arte. Morre diariamente nas oito e algumas horas que atua como mercadoria para ressuscitar em sua criação espiritual. Contudo, esse remédio comporta os germens da mesma enfermidade: é um ser solitário, que busca a comunhão com a natureza. Defende sua individualidade oprimida pelo meio e reage ante as ideias estéticas como um ser único cuja aspiração é permanecer imaculado.

Trata-se apenas de uma tentativa de fuga. A lei do valor não é já um mero reflexo das relações de produção. Os capitalistas monopolistas a rodeiam com uma complicada estrutura que a converte em uma serva dócil, ainda que os métodos que empreguem sejam puramente empíricos. A superestrutura impõe um tipo de arte no qual é preciso educar os artistas. Os rebeldes são dominados pela maquinaria e somente os talentos excep-cionais poderão criar sua própria obra. Os restantes devem se tornar assalariados envergonhados ou serão tri-turados.

Inventa-se a investigação artística a qual se dá como definidora da liberdade, mas esta investigação tem seus limites imperceptíveis até o momento de se chocar com eles, vale dizer, de expor os reais problemas do homem e de sua alienação. A angústia sem sentido ou o passatempo vulgar constituem válvulas cômodas à inquietação humana. Combate-se a ideia de fazer da arte uma arma de denúncia. Se as leis do jogo são respeitadas, conse-guem-se todas as honras: as mesmas que poderia ter um macaco ao inventar piruetas. A condição é não tratar de escapar da jaula invisível.

Quando a Revolução tomou o poder, produziu-se o êxodo dos completamente domesticados. Os demais, revolucionários ou não, viram um caminho novo. A investigação artística ganhou um novo impulso. No en-tanto, as rotas estavam mais ou menos traçadas e o sentido do conceito de fuga se escondeu atrás da palavra liberdade. Entre os próprios revolucionários, manteve-se muitas vezes esta atitude, reflexo do idealismo bur-guês na consciência.

Em países que passaram por um processo similar, pretendeu-se combater estas tendências com um dogma-tismo exagerado. A cultura geral se converteu quase em um tabu e se proclamou o cúmulo da aspiração cul-tural, uma representação formalmente exata da natureza, convertendo-se esta última, logo, em uma represen-tação mecânica da realidade social que se queria fazer ver: a sociedade ideal, quase sem conflitos, nem contra-dições, que se buscava criar.

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O socialismo é jovem e comete erros.Nós, revolucionários, carecemos, muitas vezes, dos conhecimentos e da audácia intelectual necessários para

encarar a tarefa do desenvolvimento de um Homem Novo por métodos distintos dos convencionais, e os mé-todos convencionais sofrem a influência da sociedade que os criou (outra vez, é exposto o tema da relação entre forma é conteúdo). A desorientação é grande, e os problemas da construção material nos absorvem. Os homens do partido devem tomar essa tarefa nas mãos e buscar conquistar o objetivo principal: educar o povo.

Busca-se, então, a simplificação, o que todo o mundo entende, que é o que entendem os funcionários. Anula-se a autêntica investigação artística e se reduz o problema da cultura geral a uma apropriação do pre-sente socialista e do passado morto (portanto, não perigoso). Assim nasce o realismo socialista sobre as bases da arte do século passado.

Contudo, a arte realista do século XIX também é de classe, mais puramente capitalista, talvez, que esta arte decadente do século XX, na qual transparece a angústia do homem alienado. O capitalismo na cultura deu tudo de si e nada mais resta dele senão o anúncio de um cadáver fedorento na arte, sua decadência de hoje. Entretanto, por que pretender buscar nas formas congeladas do realismo socialista a única receita válida? Não se pode opor ao realismo socialista a liberdade, porque esta ainda não existe e não existirá até o completo de-senvolvimento da sociedade nova; mas que não se pretenda condenar todas as formas de arte posteriores à primeira metade do século XIX a partir do trono pontifício do ultrarrealismo, pois se cairia em um erro proudhoniano do retorno ao passado, colocando-se uma camisa de força na expressão artística do homem que nasce e se constrói hoje.

Falta o desenvolvimento de um mecanismo ideológico e cultural que permita a investigação e capine a erva ruim, tão facilmente multiplicável no terreno adubado pela subvenção estatal.

Em nosso país, o erro do mecanismo realista não ocorreu, mas, sim, outro, de signo contrário. E aconteceu por não se compreender a necessidade da criação do Homem Novo, que não seja o que represente as ideias do século XIX, mas tampouco as do nosso século decadente e doentio. O homem do século XXI é o que deve-mos criar, ainda que isso seja uma aspiração subjetiva e não sistematizada. Precisamente este é um dos pontos fundamentais do nosso estudo e do nosso trabalho, e na medida em que conquistemos êxitos concretos sobre uma base teórica, ou vice-versa, extrairemos conclusões teóricas de caráter amplo sobre a base da nossa inves-tigação concreta, e teremos feito uma contribuição valiosa ao marxismo-leninismo e à causa da humanidade. A reação contra o homem do século XIX nos trouxe a reincidência do decadentismo do século XX. Não é um erro demasiado grave, mas devemos superá-lo, sob pena de abrir uma ampla via para o revisionismo.

As grandes multidões vão se desenvolvendo, as novas ideias vão alcançando um ímpeto adequado no seio da sociedade e as possibilidades materiais de desenvolvimento integral de absolutamente todos os seus membros tornam o trabalho muito mais frutífero. O presente é de luta, o futuro é nosso.

Resumindo, a culpabilidade de muitos de nossos intelectuais e artistas reside em seu pecado original: não são autenticamente revolucionários. Podemos tentar enxertar o olmo para que dê peras, mas simultaneamente há que semear pereiras. As novas gerações virão livres do pecado original. As possibilidades de que surjam artistas excepcionais serão tanto maiores quanto mais se tenha ampliado o campo da cultura e a possibilidade de expressão. Nossa tarefa consiste em impedir que a geração atual, deslocada por seus conflitos, se perverta e perverta as novas. Não devemos criar assalariados dóceis ao pensamento oficial, nem bolsistas que vivam am-parados pelo orçamento público, exercendo uma liberdade entre aspas. Já virão os revolucionários que entoem o canto do Homem Novo com a autêntica voz do povo. É um processo que requer tempo.

Em nossa sociedade, desempenham um papel a juventude e o partido.Particularmente importante é a primeira, por ser a argila maleável com a qual se pode construir o Homem

Novo sem nenhum dos defeitos anteriores. Ela recebe um tratamento de acordo com nossas ambições. Sua educação é cada vez mais completa e não esquecemos sua integração ao trabalho desde os primeiros instantes. Nossos bolsistas fazem o trabalho físico em suas férias ou simultaneamente com o estudo. O trabalho é um prêmio em certos casos, um instrumento de educação, em outros, mas jamais um castigo. Uma nova geração nasce.

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O partido é uma organização de vanguarda. Os melhores trabalhadores são propostos por seus companhei-ros para integrá-lo. Este é minoritário, mas de grande autoridade pela qualidade de seus quadros. Nossa aspi-ração é que o partido seja de massas, mas isso ocorrerá quando as massas tiverem alcançado o nível de desen-volvimento da vanguarda, quer dizer, quando estiverem educadas para o comunismo. O trabalho dedica-se a esta educação. O partido é o exemplo vivo. Seus quadros devem ser exemplos de capacidade de trabalho e de sacrifício, devem levar, com sua ação, às massas, a cumprir a tarefa revolucionária, o que implica anos de dura luta contra as dificuldades da construção, os inimigos de classe, as máculas do passado, o imperialismo...

Queria explicar agora o papel que desempenha a personalidade, o homem como indivíduo das massas que fazem a história. É nossa experiência, não uma receita.

Fidel deu à Revolução o impulso nos primeiros anos, a direção, a tônica sempre, mas há um bom grupo de revolucionários que se desenvolve no mesmo sentido que o dirigente máximo, e uma grande massa que segue os seus dirigentes porque têm fé neles. E têm fé porque eles souberam interpretar seus anseios.

Não se trata de quantos quilos de carne se come ou de quantas vezes por ano pode alguém ir passear na praia, nem de quantas belezas que vêm do exterior possam comprar com os salários atuais. Trata-se, precisa-mente, de que o indivíduo se sinta mais realizado, com muito mais riqueza interior e com muito mais respon-sabilidade. O indivíduo de nosso país sabe que a época gloriosa que chega é a do sacrifício, ele conhece o sa-crifício. Os primeiros o conheceram em Sierra Maestra e onde quer que tenham lutado. Depois, o conheceram em toda Cuba. Cuba é a vanguarda da América e deve fazer sacrifícios porque ocupa o lugar avançado, porque indica às massas da América Latina o caminho para a liberdade plena.

Dentro do país, os dirigentes têm que cumprir seu papel de vanguarda, e é preciso dizê-lo com toda a sin-ceridade: em uma revolução verdadeira, à qual se dá tudo, da qual não se espera nenhuma retribuição material, a tarefa do revolucionário de vanguarda é, ao mesmo tempo, magnífica e angustiante.

Deixe-me dizer-te, correndo o risco de parecer ridículo, que o revolucionário verdadeiro é guiado por grandes sentimentos de amor. É impossível pensar num revolucionário autêntico sem esta qualidade. Talvez seja este um dos grandes dramas do dirigente: ele deve unir a um espírito apaixonado, uma mente fria, e tomar decisões dolorosas sem que um único músculo seu se contraia. Nossos revolucionários de vanguarda têm que idealizar esse amor aos povos, às causas mais sagradas, e fazê-lo único, indivisível. Não podem se contentar com a pequena dose de carinho cotidiano que o homem comum exercita.

Os dirigentes da Revolução têm filhos que, em seus primeiros balbucios, não aprendem o nome do pai; mulheres que devem ser parte do sacrifício geral de sua vida para levar a Revolução ao seu destino; o marco dos amigos corresponde estritamente ao marco dos companheiros da Revolução. Não há vida fora dela.

Nessas condições, é preciso uma grande dose de humanidade, uma grande dose de sentido de justiça e de verdade para não cair em extremos dogmáticos, em escolasticismos frios, em isolamento das massas. Todos os dias é preciso lutar para que esse amor pela humanidade viva se transforme em fatos concretos, em atos que sirvam de exemplo, em mobilização.

O revolucionário, motor ideológico da revolução dentro de seu partido, se consome nessa atividade ininter-rupta que não tem outro fim senão a morte, a menos que a construção seja obtida em escala mundial. Se seu afã de revolucionário enfraquece quando as tarefas mais urgentes se veem realizadas em escala local e ele se esquece do internacionalismo proletário, a revolução que dirige deixa de ser uma força dinâmica e desaparece numa cômoda modorra, aproveitada por nossos inimigos irreconciliáveis, e o imperialismo assim ganha terre-no. O internacionalismo proletário é um dever, mas também é uma necessidade revolucionária. Assim educa-mos nosso povo.

Claro que há perigos presentes nas atuais circunstâncias. Não somente o do dogmatismo, não somente o de congelar as relações com as massas em meio à realização da grande tarefa. Também existe o perigo das debili-dades nas quais se pode cair. Se um homem pensa que, para dedicar sua vida inteira à revolução, não pode distrair sua mente com a preocupação de que falte alguma coisa a seu filho, que os sapatos das crianças estejam furados, que sua família careça de determinado bem necessário, sob este raciocínio deixa infiltrar-se os ger-mens da futura corrupção.

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Em nosso caso, defendemos que nossos filhos devem ter e carecer o que têm e o que carecem os filhos do homem comum, e nossa família deve compreender e lutar por isso. A revolução se faz através do homem, mas o homem tem que forjar dia a dia seu espírito revolucionário.

Assim vamos marchando. À cabeça da imensa coluna — não nos envergonha nem nos intimida dizer — segue Fidel, depois, os melhores quadros do partido e, imediatamente, tão próximo que é possível sentir sua enorme força, segue o povo em seu conjunto numa sólida armadura de individualidades que caminham em direção a um fim comum, indivíduos que alcançaram a consciência do que é necessário fazer, homens que lutam para sair do reino da necessidade e entrar no da liberdade.

Essa imensa multidão se ordena. Sua ordem responde à consciência da necessidade da mesma. Ela já não é força dispersa, divisível em milhares de frações disparadas no espaço, como fragmentos de uma granada, tra-tando de alcançar por qualquer meio, em luta competitiva com seus iguais, uma posição, algo que permita apoio frente ao futuro incerto.

Sabemos que há sacrifícios adiante e que devemos pagar um preço pelo fato heroico de constituir uma van-guarda como nação. Nós, dirigentes, sabemos que temos que pagar um preço por ter o direito de dizer que estamos à frente do povo que, por sua vez, está à frente da América. Todos e cada um de nós paga pontual-mente sua cota de sacrifícios, conscientes de receber o prêmio na satisfação do dever cumprido, conscientes de avançar com todos até o Homem Novo que se vislumbra no horizonte.

Permita-me tentar algumas conclusões.Nós, socialistas, somos mais livres porque somos mais plenos; somos mais plenos por sermos mais livres. O

esqueleto de nossa liberdade completa está formado, falta a substância proteica e a roupagem. Nós as criaremos. Nosso sacrifício é consciente. É uma cota para pagar a liberdade que construímos. O caminho é longo e des-conhecido em parte, mas conhecemos nossas limitações. Faremos o homem do século XXI: nós mesmos. Forjarêmo-nos na ação cotidiana, criando um homem novo com uma nova técnica.

A personalidade desempenha o papel de mobilização e direção enquanto encarna as mais altas virtudes e aspirações do povo, e não se separa da rota. Quem abre o caminho é o grupo da vanguarda, os melhores entre os bons, o partido. A argila fundamental de nossa obra é a juventude, nela depositamos nossa esperança e a preparamos para tomar de nossas mãos a bandeira. Se esta carta balbuciante esclareceu algo, cumpri o objetivo pelo qual a envio.

Receba nossa saudação ritual com um aperto de mãos ou uma “Ave Maria Puríssima”.Pátria ou morte.

Fonte | GUEVARA, Ernesto Che. Escritos y discursos. La Habana: Editorial de Ciencias Sociales, 1977, t. 8.

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1969 | unidAde populAr, chile

programa

o programa da unidade popular levou salvador Allende (1908-1973) à presidência do Chile, entre 1970 e 1973, quando morreu

nas mãos dos militares que ele considerava leais e que, finalmente, o derrubaram, através de um golpe de estado. trata-se de um texto

fundamental para a compreensão da experiência chilena.

Com a morte de Allende, concluiu-se, no Chile, um dos ciclos democráticos mais extensos da América ao sul do rio grande.

quando chegou ao governo, salvador Allende tinha construído uma longa trajetória política, que o afastara da medicina, tendo

sido eleito senador pelo partido socialista e várias vezes candidato a presidente por coalizões de forças e partidos de esquerda com o

caráter de Frente popular. A proposta era a de chegar ao socialismo pela via democrática, diferentemente dos outros projetos socialistas

revolucionários que propunham a luta armada para conquistar o poder. Contava com o apoio do próprio partido, o socialista, do

partido Comunista Chileno e de outros partidos menores. o projeto da unidade popular teve grande impacto e contribuiu para redefinir,

em certa medida, a luta pelo socialismo: na europa, por exemplo, condicionaria a proposta do chamado euro-comunismo. nos três

anos que durou o seu mandato, Allende teve que se equilibrar entre as pressões das esquerdas, as ameaças das direitas e do governo dos

euA, e os anseios populares. Apesar das dificuldades, conseguiu levar à frente uma série de políticas reformistas, como a nacionalização dos

recursos minerais (cobre) e a reforma agrária. (n.F. e M.B.)

A única alternativa verdadeiramente popular e, portanto, a tarefa fundamental que o governo do povo tem diante de si, é terminar com o domínio dos imperialistas, dos monopólios, da oligarquia latifundiária e iniciar a construção do socialismo no Chile.

A unIDADe e A Ação Do poVo orGAnIzADo

O crescimento das forças trabalhadoras no que diz respeito ao seu número, sua organização, sua luta e a cons-ciência de seu poder reforça e propaga o desejo por mudanças profundas, a crítica à ordem estabelecida e o choque com suas estruturas. Em nosso país, são mais de três milhões de trabalhadores cujas forças produtivas e enorme capacidade construtiva não poderão ainda se libertar dentro do atual sistema que somente pode explorá-los e submetê-los.

Essas forças, junto a todo o povo, mobilizando todos aqueles que não estão comprometidos com o poder dos interesses reacionários, nacionais e estrangeiros, mediante a ação unitária e combativa da imensa maioria dos chilenos, poderão romper as atuais estruturas e avançar na tarefa de sua libertação.

Os imperialistas e as classes dominantes do país combaterão a Unidade Popular e tratarão de enganar uma vez mais o povo. Dirão que a liberdade está em perigo, que a violência tomará conta do país etc. Contudo, as massas populares acreditam cada vez menos nestas mentiras. Diariamente cresce sua mobilização social que hoje se vê reforçada e incentivada pela unificação das forças de esquerda.

Para estimular e orientar a mobilização do povo do Chile até a conquista do poder, construiremos em toda a parte Comitês da Unidade Popular, articulados em cada fábrica, fazenda, povoado, escritório ou escola pelos militantes dos movimentos e dos partidos de esquerda e integrados por essa multidão de chilenos que se defi-nem a favor de mudanças fundamentais.

Os Comitês da Unidade Popular não serão somente organismos eleitorais. Serão intérpretes e combatentes das reivindicações imediatas das massas e, sobretudo, serão responsáveis pela preparação para se exercer o poder popular.

Assim, pois, este novo poder que o Chile necessita deve começar a ser gestado desde já, onde quer que o povo se organize para lutar por suas necessidades específicas e onde quer que se desenvolva a consciência da neces-sidade de exercê-lo.

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Esse método de trabalho comum será um método permanente e dinâmico de desenvolvimento do progra-ma, uma escola ativa para as massas e uma forma concreta de aprofundar o conteúdo político da Unidade Popular em todos os seus níveis.

Em um determinado momento da campanha, os conteúdos essenciais deste programa, enriquecidos pela discussão e a contribuição do povo e por uma série de medidas imediatas de governo, serão registrados numa Ata do povo que será, para o novo governo popular e a Frente que o apoia, um mandato irrenunciável.

Apoiar o candidato da Unidade Popular não significa, portanto, somente votar em um homem, mas tam-bém pronunciar-se a favor da transformação urgente da atual sociedade, que se encontra sob o domínio dos grandes capitalistas nacionais e estrangeiros.

o poDer populAr

As transformações revolucionárias que o país necessita só poderão ser realizadas se o povo chileno tomar em suas mãos o poder e exercê-lo real e efetivamente.

O povo do Chile conquistou, através de um longo processo de luta, determinadas liberdades e garantias democráticas cuja continuidade deve ser mantida em atitude de alerta e de combate sem trégua. Contudo, o povo não dispõe do poder propriamente dito.

As forças populares e revolucionárias não se uniram para lutar pela simples substituição de um Presidente da República por outro, nem para substituir um partido por outros no governo, mas sim para levar a cabo as mudanças de fundo que a situação nacional exige sobre a base da transferência do poder, dos antigos grupos dominantes aos trabalhadores, ao campesinato e aos setores progressistas das camadas médias da cidade e do campo.

O triunfo popular abrirá o caminho, assim, para o regime político mais democrático da história do país.Em matéria de estrutura política, o governo popular tem a dupla tarefa de:

Preservar e tornar mais efetivos e profundos os direitos democráticos e as conquistas dos trabalhadores. Transformar as atuais instituições para instaurar um novo Estado no qual os trabalhadores e o povo tenham o

real exercício do poder.

o AproFunDAMento DA DeMoCrACIA e DAS ConquIStAS DoS trABAlHADoreS

O governo popular garantirá o exercício dos direitos democráticos e respeitará as garantias individuais e sociais de todo o povo. A liberdade de consciência, de palavra, de imprensa e de reunião, a inviolabilidade do domi-cílio e os direitos de sindicalização e de organização existirão efetivamente, sem as restrições que as classes dominantes utilizam para limitá-los.

Para que isso seja efetivo, as organizações sindicais e sociais dos operários, empregados, camponeses, pobladores,1 donas de casa, estudantes, profissionais, intelectuais, artesãos, pequenos e médios empresários e demais setores de trabalhadores serão chamados a intervir no nível que lhes corresponda nas decisões dos ór-gãos de poder. Por exemplo, nas instituições de previdência e seguridade social, estabeleceremos a administra-ção por meio dos próprios segurados, assegurando aos mesmos eleições democráticas e votação secreta de seus conselhos diretores. Em relação às empresas do setor público, seus conselhos diretores e seus comitês de pro-dução devem ter mandatários diretos de seus operários e empregados.

Nos organismos habitacionais correspondentes à sua jurisdição e nível, as Associações de Vizinhos e demais organizações de pobladores disporão de mecanismos para fiscalizar suas operações e intervir em múltiplos as-pectos de seu funcionamento. Contudo, não se trata unicamente destes exemplos, mas também de uma nova concepção na qual o povo adquire uma intervenção real e eficaz nos organismos do Estado.

Além disso, o governo popular garantirá o direito dos trabalhadores ao emprego e à greve e de todo o povo à educação e à cultura, com pleno respeito a todas as ideias e crenças religiosas, garantindo o exercício do culto.

1 Pobladores: moradores de poblaciones, conjuntos habitacionais existentes nas periferias das cidades, constituídos por casas habitadas pelos pobres das cidades (N. do T.).

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Serão ampliados todos os direitos e garantias democráticos, entregando-se às organizações sociais os meios reais para exercê-los e criando os mecanismos que lhes permitam atuar nos diferentes níveis do aparato do Estado.

O governo popular baseará essencialmente sua força e sua autoridade no apoio que lhe ofereça o povo or-ganizado. Esta é nossa concepção de governo forte, oposta, portanto, à que elaboram a oligarquia e o impe-rialismo que identificam a autoridade com a coerção exercida sobre o povo.

O governo popular será pluripartidário. Estará integrado por todos os partidos, movimentos e correntes revolucionários. Será, assim, um executivo verdadeiramente democrático, representativo e coeso.

O governo popular respeitará os direitos da oposição que se exerçam dentro dos marcos legais.O governo popular iniciará de imediato uma real descentralização administrativa, conjugada com uma

planificação democrática e eficiente que elimine o centralismo burocrático e o substitua pela coordenação de todos os organismos estatais.

Modernizar-se-á a estrutura das municipalidades, reconhecendo a autoridade que lhes corresponde de acor-do com os planos de coordenação de todo o Estado. Tender-se-á a transformá-las em órgãos locais da nova organização política, dotadas de financiamento e atribuições adequadas a fim de que possam atender, em in-teração com as Associações de Vizinhos e coordenadas entre si, aos problemas de interesse local de suas comu-nas e de seus habitantes. Devem assumir funções com o mesmo sentido as Assembleias Provinciais.

A polícia deve ser reorganizada com o intuito de que não possa voltar a ser empregada como um organismo de repressão contra o povo e cumpra, em vez disso, o objetivo de defender a população das ações antissociais. Humanizar-se-á o procedimento policial de maneira a garantir efetivamente o pleno respeito à dignidade e à integridade física do ser humano. O regime carcerário, que constitui um dos piores males do atual sistema, deve ser transformado pela raiz, com vistas à regeneração e à recuperação dos que o tenham delinquido.

uMA noVA orDeM InStItuCIonAl: o eStADo populAr

A organização política

Através de um processo de democratização em todos os níveis e de uma mobilização organizada das massas, será construída a partir da base a nova estrutura do poder.

Uma nova constituição política institucionalizará a incorporação maciça do povo ao poder estatal.Será criada uma organização única do Estado, estruturada no nível nacional, regional e local, tendo a As-

sembleia do Povo como órgão superior de poder.A Assembleia do Povo será a Câmara Única que expressará nacionalmente a soberania popular. Nela con-

fluirão e se manifestarão as diversas correntes de opinião.Esse sistema permitirá suprimir pela raiz os vícios que marcaram o Chile, tanto o presidencialismo ditatorial

quanto o parlamentarismo corrompido.Normas específicas determinarão e coordenarão as atribuições e responsabilidades do Presidente da Repú-

blica, ministros, Assembleia do Povo, organismos regionais e locais de poder e partidos políticos com o fim de assegurar a eficiência legislativa, a eficiência do governo e, sobretudo, o respeito à vontade da maioria.

A fim de estabelecer a devida harmonia entre os poderes que emanam da vontade popular, e para que esta possa se expressar de um modo coerente, todas as eleições serão efetuadas num processo conjunto dentro de um mesmo lapso de tempo.

A geração de todos os organismos de representação popular deverá realizar-se por sufrágio universal, secre-to e direto dos homens e mulheres maiores de 18 anos, civis e militares, alfabetizados e analfabetos.

Os integrantes da Assembleia do Povo e de todos os organismos de representação popular estarão sujeitos ao controle dos eleitores, mediante mecanismos de consulta que poderão revogar seus mandatos.

Será estabelecido um rigoroso sistema de incompatibilidades que conduza ao término do mandato ou à privação do cargo de um deputado ou um de funcionário de altas responsabilidades que se envolva na gerência de interesses privados.

Os instrumentos da política econômica e social do Estado constituirão um sistema nacional de planificação, terão caráter executivo e sua missão será dirigir, coordenar e racionalizar a ação do Estado. Os planos em cur-

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so deverão ser aprovados pela Assembleia do Povo. Os organismos dos trabalhadores terão uma intervenção fundamental no sistema de planificação.

Os organismos regionais e locais de poder do estado popular exercerão autoridade no limite geográfico que lhes corresponda e terão atribuições econômicas, políticas e sociais. Poderão, além do mais, propor iniciativas e exercer a crítica aos organismos superiores.

No entanto, o exercício das atribuições dos organismos regionais e locais deverá ajustar-se aos marcos fixa-dos pelas leis nacionais e pelos planos gerais de desenvolvimento econômico e social.

Em cada um dos níveis do estado popular se integrarão as organizações sociais com atribuições específicas. A elas caberá dividir responsabilidades e desenvolver iniciativas em seus respectivos limites de ação, assim como o exame e solução dos problemas de sua competência. Estas atribuições não implicarão limitação alguma à plena independência e autonomia das organizações.

Desde o próprio dia em que assumir o poder, o governo popular abrirá canais a fim de que se expresse a influência dos trabalhadores e do povo, por intermédio das organizações sociais, na adoção de decisões e na fiscalização do funcionamento da administração estatal.

Tais passos serão decisivos para a liquidação do centralismo burocrático que caracteriza o sistema de admi-nistração atual.

A organização da justiça

A organização e a administração da justiça devem estar baseadas no princípio da autonomia, consagrada cons-titucionalmente, e numa real independência econômica.

Concebemos a existência de um Tribunal Supremo cujos componentes sejam designados pela Assembleia do Povo, sem outra limitação além da que emane da natural idoneidade de seus membros. Este tribunal defi-nirá livremente os poderes internos, unipessoais ou colegiados, do sistema judiciário.

Entendemos que a nova organização e a administração da justiça virá em auxílio das classes majoritárias. Além do mais, será rápida e menos onerosa.

Para o governo popular, uma nova concepção da magistratura substituirá a atual, individualista e burguesa.

A defesa nacional

O Estado Popular prestará atenção prioritária à preservação da soberania nacional, o que concebe como um dever de todo o povo.

O Estado Popular manterá uma atitude alerta frente às ameaças à integridade territorial e à independência do país, incitadas pelo imperialismo e por setores oligárquicos que se intrometem em países vizinhos e que além da repressão de seus povos exibem tendências expansionistas e revanchistas.

Ele definirá ainda uma concepção moderna, patriótica e popular da soberania do país, baseada nos seguintes critérios:

Garantia do caráter nacional de todos os setores das forças armadas. Neste sentido, fica estabelecida a recusa de qualquer emprego delas para reprimir o povo ou participar em ações que interessem a potências estrangeiras.

Formação técnica e aberta a todos as contribuições da ciência militar moderna, de acordo com as conveniências do Chile, da independência nacional, da paz e da amizade entre os povos.

Integração e colaboração das forças armadas em diversos aspectos da vida social. O Estado Popular se preocu-pará em possibilitar a contribuição das forças armadas ao desenvolvimento econômico do país, sem prejuízo de seu trabalho, essencialmente voltado à defesa da soberania.Sobre estas bases, é necessário garantir às forças armadas os meios materiais e técnicos e um justo e demo-

crático sistema de remunerações, promoções e aposentadorias que garantam aos oficiais, suboficiais, graduados e soldados a segurança econômica durante sua permanência nas fileiras, as condições de aposentadoria e a pos-sibilidade efetiva para todos de ascender apenas de acordo com seus méritos pessoais.

Fonte | Disponível em: <www.salvador-allende.cl>.

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1969 | frente SAndiniStA de liBertAção nAcionAl (fSln)

O programa histórico da FSLn

A Frente sandinista de libertação nacional surgiu em 1962, depois de um longo período de descenso revolucionário a partir da morte de Augusto César sandino, em 1934. Com a perspectiva de reunir todas

as forças que se opunham à ditadura de somoza e ao imperialismo estadunidense, a Frente articulou segmentos da pequena-burguesia,

nacionalistas, socialistas e ampla participação popular.

em 1979, depois de mais de 10 anos de guerrilha rural e urbana, a revolução sandinista conseguiu estabelecer um governo popular

revolucionário, derrubando a ditadura. no entanto, a devastação da nicarágua depois da guerra, o financiamento dos Contras — exército paramilitar contrarrevolucionário — pelo governo reagan a partir de 1983, o bloqueio econômico, entre outros problemas, levaram à sua

derrota nas eleições de 1990. tendo retornado, porém, recentemente ao governo, os sandinistas evidenciaram que ainda permanecem como uma das principais forças políticas de seu país, com um denso legado: o fato de ter promovido as primeiras eleições livres no país, em 1984, garantido o pluripartidarismo, reduzido o analfabetismo, erradicado

enfermidades endêmicas, como a pólio, com as jornadas de vacinação, tendo a unesco, a unicef e a oMs colocado a nicarágua como modelo

de programas educativos, infantil e de saúde, além de um grande investimento na cultura, que se torna visível na edição de livros e na

produção cinematográfica, até então inexistentes no país. (n.F. e M.B.)

A Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) surgiu da necessidade do povo nicaraguense de ter uma “organização de vanguarda” capaz de conquistar, mediante a luta frontal contra seus inimigos, a tomada do Poder Político e o estabelecimento de um sistema social que liquide a exploração e a miséria das quais pade-ceu nosso povo no passado histórico.

A FSLN é uma organização Político-militar cujo objetivo estratégico é a tomada do Poder Político mediante a destruição do aparelho militar e burocrático da ditadura e o estabelecimento de um governo revo-lucionário baseado na aliança oPerário-camPonesa, e o concurso de todas as forças patrióticas anti-imPeria-listas e antioligárquicas do país.

O povo da Nicarágua sofre a opressão de uma corja reacionária e fascista, imposta pelo imperialismo ianque desde o ano de 1932, ano no qual Anastasio Somoza García foi designado chefe-diretor da chamada Guarda Nacional (GN).

A corja somozista reduziu a Nicarágua à condição de uma neocolônia explorada pelos monopólios ianques e os grupos oligárquicos do país.

O regime atual é um regime politicamente impopular e juridicamente ilegal. Seu reconhecimento e ajuda por parte dos norte-americanos constitui uma prova irrefutável da ingerência estrangeira nos assuntos internos da Nicarágua.

A FSLN analisou com seriedade e grande responsabilidade a realidade nacional e decidiu enfrentar a dita-dura com as armas nas mãos, já que chegamos à conclusão de que o triunfo da Revolução Popular Sandinista e a derrocada do regime inimigo do povo surgirão como consequência do desenvolvimento de uma dura e prolongada guerra popular.

Quaisquer que sejam as manobras e os meios empregados pelo imperialismo ianque, a ditadura somozista está condenada ao fracasso total ante o avanço e o desenvolvimento impetuoso das forças populares encabeça-das pela frente sandinista de liBertação nacional.

Ante esta conjuntura história, a FSLN traçou este programa político com vistas a fortalecer e desenvolver nossa organização, incentivar e estimular o povo da Nicarágua para que marche para a frente, decidido a lutar até derrotar a ditadura e resistir à intervenção do imperialismo ianque para forjar uma pátria livre, próspera e revolucionária.

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I. uM GoVerno reVoluCIonárIo

A Revolução Popular Sandinista estabelecerá um governo revolucionário que liquidará a estrutura reacionária originária de farsas eleitorais e golpes militares. O poder popular forjará uma Nicarágua sem exploração, sem opressão, sem atraso, uma pátria livre, progressista e independente.

O governo revolucionário ditará as seguintes medidas políticas:

dará ao poder revolucionário uma estrutura que permita a plena participação de todo o povo, tanto no nível nacional como no nível local (departamental, municipal, distrital);

garantirá a todos os cidadãos o exercício pleno de todas as liberdades individuais e o respeito aos direitos hu-manos;

garantirá a liberdade de expressão do pensamento que conduza primordialmente à vigorosa difusão dos direitos populares e dos direitos pátrios;

garantirá a liberdade para organizar o movimento operário-sindical na cidade e no campo, liberdade para or-ganizar associações camponesas, juvenis, estudantis, femininas, culturais, esportivas etc.;

garantirá o direito dos nicaraguenses emigrados e exilados de retornar ao solo pátrio; garantirá o asilo aos cidadãos de outros países perseguidos por participar na luta revolucionária; castigará severamente os algozes culpados de perseguir, delatar, ultrajar, torturar e assassinar os revolucionários

e o povo; privará de seus direitos políticos os indivíduos que ocupem altos cargos públicos, responsáveis pelas farsas elei-

torais e pelos golpes militares; O governo revolucionário ditará as seguintes medidas econômicas: expropriará os latifúndios, fábricas, empresas, edifícios, meios de transporte e demais bens usurpados pela famí-

lia Somoza e acumulados mediante a malversação e saque das riquezas da nação; expropriará os latifúndios, fábricas, empresas, meios de transporte e demais bens usurpados por políticos e mi-

litares e todo tipo de cúmplices que se valeram da corrupção administrativa do regime atual; nacionalizará os bens de todas as companhias estrangeiras que se dediquem à exploração dos recursos minerais,

florestais, marítimos e de outra índole; estabelecerá o controle operário na gestão administrativa das empresas e demais bens expropriados e nacionalizados; centralizará o serviço de transporte coletivo; nacionalizará o sistema bancário, o qual estará a serviço exclusivo do desenvolvimento do país; estabelecerá uma moeda independente; desconhecerá os empréstimos impostos ao país pelos monopólios ianques ou de qualquer outra potência; estabelecerá relações comerciais com todos os países, qualquer que seja o sistema que os reja, em benefício do

desenvolvimento econômico do país; estabelecerá uma adequada política tributária, que será aplicada com estrita justiça; proibirá a usura, estendendo-se a proibição a nacionais e a estrangeiros; protegerá os pequenos e médios proprietários (produtores, comerciantes), salvo os excessos provocados pela

exploração dos trabalhadores; estabelecerá o controle estatal sobre o comércio exterior com vistas a diversificá-lo e torná-lo independente; restringirá rigorosamente a importação de artigos de luxo; planificará a economia nacional, pondo fim à anarquia característica do sistema capitalista de produção. Parte

importante dessa planificação se destinará à industrialização e à eletrificação do país.

II. reVolução AGrárIA

A Revolução Popular Sandinista definirá uma política agrária que realize uma Reforma Agrária autêntica que, de forma imediata, consiga a redistribuição massiva da terra, liquidando a usurpação latifundiária em benefício dos trabalhadores (pequenos produtores) que trabalham na terra.

Expropriará e liquidará o latifúndio capitalista e feudal.

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Entregará gratuitamente a terra aos camponeses de acordo com o princípio de que a terra deve pertencer a quem trabalha.

Realizará um plano de desenvolvimento agropecuário em busca da diversificação e aumento da produtivi-dade de cada setor.

Garantirá aos camponeses os seguintes direitos: crédito agrícola, comercialização (garantia de mercado para seus produtos) e assistência técnica.

Protegerá os proprietários de terras patriotas que colaborem com a guerrilha mediante a indenização do valor de suas terras que excedam o máximo estabelecido pelo governo revolucionário.

Estimulará e auxiliará os camponeses para que se organizem em cooperativas, com o objetivo de que eles próprios tomem nas mãos o seu destino e participem diretamente do desenvolvimento do país.

Abolirá as dívidas contraídas pelo campesinato com o latifundiário e todo tipo de agiota.Liquidará o desemprego compulsório que existe durante a maior parte do ano no campo e cuidará da cria-

ção de frentes de trabalho para a população camponesa.

III. reVolução nA CulturA e nA eDuCAção

A Revolução Popular Sandinista lançará as bases para o desenvolvimento da cultura nacional, da educação popular e da reforma universitária.

Impulsionará uma campanha ampla para exterminar de forma imediata o analfabetismo.Desenvolverá a cultura nacional e extirpará dela a penetração neocolonial.Resgatará do esquecimento a que foram submetidos pelos regimes impopulares, ao longo da nossa história,

os intelectuais progressistas e as suas obras. Assistirá ao desenvolvimento e progresso da educação nos distintos níveis (primária, intermediária, técnica, universitária etc.); a educação será gratuita em todos os níveis e obri-gatória em alguns.

Concederá bolsas aos estudantes com escassos recursos econômicos de diferentes níveis. As bolsas incluirão: moradia, alimentação, vestuário, livros e transporte.

Formará mais e melhores professores, com os conhecimentos científicos que a época atual demanda, e que possam satisfazer à totalidade da nossa população.

Nacionalizará os centros de ensino privados convertidos imoralmente em indústrias por comerciantes que hipocritamente invocam princípios religiosos.

Adaptará os programas de ensino às necessidades do país e aplicará métodos de ensino experimentais e cien-tíficos adaptados às necessidades do país.

Realizará uma reforma universitária que incluirá, entre outras, as seguintes demandas:

resgatar a universidade do domínio das classes exploradoras, para servir ao autêntico criador e construtor de nossa cultura: o povo. O ensino universitário deve estar orientado em função do homem, em função do povo. A universidade deve deixar de ser um viveiro de egoístas burocratas;

liquidar a discriminação que sofreu a juventude oriunda da classe operária e camponesa no acesso às aulas universitárias;

multiplicar o orçamento estatal para a universidade de maneira a solucionar economicamente os diversos pro-blemas que ela enfrenta;

representação majoritária dos estudantes nas juntas de faculdade, tendo presente que o estudante constitui o setor principal da comunidade universitária;

liquidar a penetração neocolonial na universidade, particularmente a que exercem os monopólios norte-americanos, através das esmolas doadas por fundações pseudofilantrópicas;

promoção de uma pesquisa livre, experimental, científica que deve contribuir para elucidar a problemática nacional e universal;

fortalecer a unidade dos estudantes, professores e pesquisadores com todo o povo, perpetuando o generoso exemplo de terem oferecido suas vidas em prol de um ideal patriótico.

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IV. leGISlAção trABAlHIStA e SeGurIDADe SoCIAl

A Revolução Popular Sandinista liquidará as injustiças das condições de vida e de trabalho das quais padecem a classe operária sob brutal exploração, a favor de uma legislação trabalhista e da assistência social.

Promulgará um Código Trabalhista que regulamentará, entre outros, os seguintes direitos:

promulgará a adoção do princípio “quem não trabalha, não come”, excetuando logicamente os que, devido à idade (crianças e idosos), por prescrição médica ou outra razão de força maior, não estejam em condições de participar do processo de produção;

observação estrita da jornada de oito horas de trabalho; os rendimentos do trabalhador (salários e demais prestações) deverão ser suficientes para satisfazer suas neces-

sidades diárias; respeito à dignidade do trabalhador, proibindo e castigando o tratamento injusto a este no desempenho do seu

trabalho; abolir as demissões injustificadas; obrigação de pagar salários no prazo legal; direito a todos os trabalhadores a férias periódicas; liquidação do flagelo da falta de moradia; estenderá a proteção da seguridade social a todos os operários e empregados públicos do país. A proteção in-

cluirá os casos de doenças, incapacidade física e aposentadoria; prestará assistência médica gratuita a toda a população. Instalará clínicas e hospitais em todo o território nacio-

nal; empreenderá campanhas amplas para erradicar as doenças endêmicas e prevenir as epidêmicas; realizará a reforma urbana, que entregará a cada família uma moradia adequada, pondo fim à usual especulação

do espaço urbano (lotificação, urbanização, casas de aluguel etc.), que explora a necessidade das famílias traba-lhadoras da cidade de dispor de um teto adequado para viver;

iniciará e desenvolverá a construção de moradias adequadas para a população camponesa; reduzirá as tarifas de água, luz, esgoto; aplicará programas para estender todos esses serviços à totalidade da

população urbana e rural; incentivará a prática de esportes em todas as classes e categorias; eliminará a humilhante mendicância pondo em prática as medidas antes mencionadas.

V. HoneStIDADe ADMInIStrAtIVA

A Revolução Popular Sandinista extirpará a corrupção administrativa governamental e estabelecerá a estrita honestidade administrativa.

Abolirá a criminosa indústria do vício (prostituição, jogos de azar, tráfico de drogas etc.) explorada pelo setor privilegiado da Guarda Nacional e pelos parasitas estrangeiros.

Estabelecerá um estrito controle da arrecadação de impostos para impedir o lucro de funcionários governa-mentais, o que porá fim ao que se pratica usualmente nas dependências oficiais do regime atual.

Terminará com o negócio arbitrário dos membros da Guarda Nacional que saqueiam a população median-te a cobrança de impostos locais.

Porá fim ao negócio que representa para os comandantes militares a apropriação do orçamento destinado à proteção dos prisioneiros comuns e levará a cabo a instalação de centros adequados para a reabilitação de tais delinquentes.

Abolirá o contrabando praticado em grande escala pelo bando de políticos, militares e estrangeiros cúmpli-ces do regime.

Castigará severamente as pessoas que incorram em delitos contra a honestidade administrativa (desfalques, contrabando, exploração de bebidas etc.), severidade que será maior quando se trate de elementos que militem no movimento revolucionário.

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VI. reInCorporAção DA CoStA AtlântICA

A Revolução Popular Sandinista porá em prática um plano especial para a recuperação da Costa Atlântica,1 deixada ao máximo do abandono, para incorporá-la à vida da nação.

Terminará com a exploração iníqua que sofreu a Costa Atlântica, durante toda a sua história, pelos mono-pólios estrangeiros, particularmente pelo imperialismo ianque.

Determinará as terras adequadas da zona para o desenvolvimento da agricultura e da pecuária.Aproveitará as condições favoráveis para impulsionar o desenvolvimento da indústria pesqueira e florestal.Estimulará o florescimento dos valores culturais locais da região, provenientes dos aspectos originais de sua

tradição histórica.Aniquilará a odiosa discriminação à qual foram submetidos os indígenas miskitos, sumos, zambos e negros

da região.

VII. eMAnCIpAção DA MulHer

A Revolução Popular Sandinista abolirá a odiosa discriminação que a mulher tem padecido em relação ao homem. Estabelecerá a igualdade econômica, política e cultural entre a mulher e o homem.

Oferecerá à mãe e ao filho atenção especial.Eliminará a prostituição e outras mazelas sociais, com o que elevará a dignidade da mulher.Porá fim ao regime de servidão de que padece a mulher e que se reflete no drama da mãe trabalhadora

abandonada.Estabelecerá o direito à igual proteção, por parte das instituições revolucionárias, para as crianças nascidas

fora do casamento.Estabelecerá creches para o cuidado e a atenção aos filhos das trabalhadoras.Estabelecerá dois meses de repouso-maternidade, antes e depois do parto, para as mulheres que trabalham.Elevará o nível político, cultural e vocacional da mulher mediante sua participação no processo revolucio-

nário.

VIII. reSpeIto àS CrençAS relIGIoSAS

A Revolução Popular Sandinista garantirá à população crente a liberdade de professar qualquer religião.Respeitará o direito dos cidadãos a professar e praticar qualquer crença religiosa.Apoiará o trabalho dos sacerdotes e demais pastores religiosos que defendam o povo trabalhador.

IX. polítICA eXternA InDepenDente

A Revolução Popular Sandinista liquidará a política externa de submissão ao império ianque e estabelecerá uma política externa patriótica de absoluta independência nacional e comprometida com uma autêntica paz universal.

Porá fim à intromissão ianque nos problemas internos da Nicarágua e praticará ante os demais países uma política de respeito mútuo e de colaboração fraternal entre os povos.

Expulsará a missão militar ianque, os chamados Corpos da Paz (espiões disfarçados de técnicos), elementos militares e políticos semelhantes que constituem uma descarada intervenção no país.

Aceitará a ajuda econômica e técnica de qualquer país, sempre e quando não implique compromissos polí-ticos.

Promoverá junto com os demais povos do mundo uma campanha a favor de uma autêntica paz universal.Desconhecerá todo tratado assinado com qualquer potência estrangeira que prejudique a soberania nacional.

1 Região tradicionalmene negligenciada pela ditadura somozista e pelos governos conservadores do país (N. do T.).

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X. A unIDADe populAr Centro-AMerICAnA

A Revolução Popular Sandinista lutará pela verdadeira união dos povos centro-americanos em uma só pátria.Respaldará uma autêntica unidade com os povos irmãos na América Central. Esta unidade objetivará a

coordenação dos esforços para alcançar a libertação nacional e para estabelecer um novo sistema social sem o domínio imperialista e sem traição nacional.

Liquidará com a chamada integração que se propõe a multiplicar a submissão da América Central aos mo-nopólios norte-americanos e às forças reacionárias locais.

XI. SolIDArIeDADe entre oS poVoS

A Revolução Popular Sandinista porá fim ao emprego do território nacional como base de agressão ianque contra outros povos irmãos e porá em prática a solidariedade militante com os povos que estão combatendo por sua libertação.

Apoiará ativamente a luta dos povos da Ásia, África e América Latina contra o novo e o velho colonialismo e contra o inimigo comum: o imperialismo ianque.

Apoiará a luta do povo negro e de todo o povo dos Estados Unidos por uma autêntica democracia e igual-dade de direitos.

Apoiará a luta de todos os povos contra a instalação de bases militares ianques em países estrangeiros.

XII. eXérCIto pAtrIótICo populAr

A Revolução Popular Sandinista abolirá a força armada inimiga do povo denominada Guarda Nacional (GN) e criará um Exército Popular, Revolucionário e Patriótico.

Abolirá a Guarda Nacional (GN), força inimiga do povo criada pelas forças de ocupação norte-americana em 1927 com o fim de perseguir, torturar e assassinar patriotas sandinistas.

No novo Exército Popular, poderão ingressar os soldados profissionais, membros do antigo exército, que tenham observado a seguinte conduta:

que tenham apoiado o combate guerrilheiro; que não tenham participado de assassinatos, saques, torturas e perseguição do povo e dos militantes revolucio-

nários; que tenham se sublevado contra o regime despótico e dinástico dos Somoza.

Fortalecerá o novo exército popular, elevando sua capacidade combativa e seu nível tático e técnico.Inculcará na consciência dos membros do Exército Popular o princípio de apoiar-se em suas próprias forças

no cumprimento de seus deveres e desenvolver toda sua atividade criadora.Aprofundar nos membros do Exército Popular os ideais revolucionários com vistas a fortalecer o espíri-

to patriótico e a firme convicção de lutar até alcançar a vitória, vencendo os obstáculos e retificando os erros.

Forjará uma disciplina consciente nas fileiras do Exército Popular e incentivará os vínculos estreitos que devem existir entre os combatentes e o povo.

Estabelecerá o serviço militar obrigatório e armará os estudantes, operários e camponeses que, organizados em milícias populares, defenderão os direitos conquistados ante a inevitável investida das forças reacionárias do país e do imperialismo ianque.

XIII. VenerAção De noSSoS MártIreS

A Revolução Popular Sandinista cultivará gratidão e veneração eterna aos mártires de nossa pátria e dará con-tinuidade ao luminoso exemplo de heroísmo e generosidade legado por eles.

Educará as novas gerações para a gratidão e veneração eterna aos caídos na luta para que a Nicarágua seja uma pátria livre.

Fundará uma escola superior para educar os filhos dos mártires de nosso povo.

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Inculcará em todo o povo o exemplo imortal dos nossos mártires defendendo o ideal revolucionário.até a vitória semPre!!!

Fonte | FRENTE SANDINISTA DE LIBERACIÓN NACIONAL. Programa histórico del FSLN. Managua: Departamento de Propaganda y Educación Política del FSLN, 1984 (Colección Viva Sandino). Disponível em: <www.fsln-nicaragua.com>.

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1970 | pArtido comuniStA do BrASil (pc do B)

programa dos 27 pontos da União pela Liberdade e pelos Direitos do povo (ULDp) — guerrilha do Araguaia

o partido Comunista do Brasil (pC do B) surgiu no início dos anos 1960, de uma ruptura com o partido Comunista Brasileiro (pCB),

reivindicando a história e o nome do velho partido fundado em 1922. Defendia a luta armada como caminho revolucionário para alcançar

o poder e, um pouco mais tarde, assumiu as referências maoístas, tornando-se um aliado, no plano internacional, do partido Comunista

da China (pCC). o novo partido organizou o movimento guerrilheiro do Araguaia (1972-1975), reunindo homens e mulheres de diversos estados e de distintas origens sociais que convergiram para a região

de Xambioá-Marabá, no sul do pará, ao longo dos anos 1960 e meados dos anos 1970, no auge da ditadura militar.

Com a construção da transamazônica, a grilagem, apoiada pelo governo e pelas forças armadas, aumentou significativamente,

desapropriando as terras dos posseiros e radicalizando o potencial de contradições sociais da região. em 1972, surpreendido ainda em

fase de implantação, o foco guerrilheiro começou a operar numa estratégia militar de resistência ao cerco policial-militar, definindo um

programa de luta contra os latifundiários, os grileiros, a ditadura e por uma revolução popular, tentando mobilizar o apoio das comunidades.

Foi nesse momento que os guerrilheiros lançaram a ulDp (união pela liberdade e Democracia dos povos), em que formularam as

reivindicações da população local e indicaram os caminhos da revolução. A guerrilha foi desmantelada em 1975, após sofrer dura

repressão, tendo sido assassinados grande parte dos revolucionários (n.F. e M.B.)

A União do Povo do interior deve fazer-se partindo de suas reivindicações mais sentidas e mais imediatas. Que deseja o homem do interior? Quais são os problemas que mais o afetam? Ele quer:

1. Terra para trabalhar e título de propriedade de sua posse.2. Combate à grilagem, com castigo severo a todos que grilarem terras.3. Preços mínimos compensatórios para os produtos da região, preços que não se distanciem muito dos que

estão em vigência nos grandes mercados de consumo. Criação de Distribuidoras do Estado, que adquiram por preço fixado todos os produtos que lhe sejam oferecidos e, ao mesmo tempo, vendam com uma pequena margem de lucro, e também a prazo, adubos, ferramentas, venenos, sementes, máquinas de fabricar farinha, lonas para a colheita de arroz, moinhos etc.

4. Facilidades para o deslocamento da produção através de diferentes meios de transportes e financiamento ao lavrador para compra de animais.

5. Proteção à mão de obra dos que trabalham nos castanhais, na extração da madeira ou nas grandes fazendas. O castanheiro deve receber por hectolitro de castanha cortada um preço que seja, pelo menos, um terço do fi-xado pelo governo para a cidade de Marabá. O hectolitro deve ser de seis latas de parafina, sem cálculo e sem arredondar as latas. O preço das mercadorias vendidas nos armazéns não pode exceder em muito o preço corrente nas cidades e povoados próximos. O pagamento ao castanheiro deve ser realizado no local de traba-lho. Os trabalhadores da exploração da madeira ou das grandes fazendas devem receber seus salários em di-nheiro no fim de cada mês, não sendo permitido o pagamento de salários em espécie ou bagulhos.

6. Assegurar aos “garimpeiros” o direito de trabalhar livremente e a regulamentação de sua atividade, impedindo que seja explorado na venda dos bens obtidos em seu trabalho.

7. Liberdade de caça e pesca para sua alimentação, permitindo-se a venda das peles dos animais por eles mortos para seu próprio consumo. A matança generalizada da caça com o único objetivo de comercializar as peles deve ser proibida.

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8. Liberdade para poder coletar, quebrar e vender o babaçu.9. Redução dos impostos que recaem sobre o trabalho da terra e sobre o pequeno comércio. Os pequenos e

médios lavradores não devem pagar nenhum imposto ou taxa ao Incra.1 Liquidação do sistema de multas dos serviços de impostos e da cobrança de impostos com auxílio da polícia.

10. Direito de todo lavrador ou trabalhador da selva possuir sua arma de caça e de defesa pessoal.11. Assistência médica por meio de postos instalados em zonas e distritos e também de postos ambulantes mon-

tados sobre embarcações e caminhões. Serviço médico gratuito, para as doenças endêmicas, e pago a preços módicos, para as doenças evitáveis como a sífilis. Combate sistemático e eficaz à malária e à verminose.

12. Criação de escolas nos povoados, nas margens dos grandes rios, nas proximidades de várias plantações, com doação do material escolar. Construção de internatos para crianças que vivam longe das escolas, com cursos de 8 a 10 meses de duração.

13. Fim das arbitrariedades da polícia contra o povo. A polícia não pode cobrar suas diligências, autorização para festas, as prisões e não pode prender ninguém sem motivo plenamente justificado. Não tem direito a bater nos presos, nem tirar armas, animais, instrumentos de trabalho ou objetos de utilização do homem do interior. Os policiais estão obrigados a manter uma atitude de respeito para com o lavrador e sua família, assim como em relação às mulheres.

14. Casamento civil e registro de nascimento gratuitos.15. Proteção à mulher. Em caso de separação do marido ou companheiro, a mulher tem direito a uma parte da

produção e dos bens domésticos, de acordo com o trabalho desenvolvido, direta ou indiretamente, para a obtenção ou produção desses bens. Ajuda à maternidade. Cursos práticos para formar novas parteiras ou me-lhorar os conhecimentos técnicos das que já trabalham na região, com o objetivo de garantir uma melhor assistência às mulheres grávidas.

16. Trabalho, instrução e educação física para a juventude. Estímulo ao desenvolvimento do esporte, com a cons-trução de campos de futebol e de basquete, pistas de atletismo e outras iniciativas. Ajuda à criação de clubes, centros recreativos e culturais e à construção de suas sedes.

17. Respeito a todos os religiosos, não sendo permitida a perseguição a qualquer pessoa por motivos de prática religiosa, inclusive de quem professa a pajelança e o terecô (religiões da região), o espiritismo, sempre que estas práticas não causem danos ao indivíduo.

18. Liberdade para reunir-se, discutir seus problemas, críticas às autoridades, exigir seus direitos, organizar suas associações e eleger, sem pressão de nenhum tipo, seus representantes.

19.Criação de Comitês Populares, eleitos diretamente pelo povo, para administrar os distritos e povoados, orien-tar as iniciativas que têm relação com a coletividade e resolver as desavenças surgidas entre os habitantes. Os Comitês estabelecem, de comum acordo com o povo, as normas de proteção à plantação, contra a invasão de gado, porcos e outros animais, assim como orientam a maneira de criá-los sem causar prejuízo aos interesses coletivos.

20.Eleição livre do prefeito e de um conselho administrativo nos municípios, assim como de Comitês Populares nos bairros das cidades.

21.Emprego de boa parte dos impostos arrecadados nos municípios para o desenvolvimento das cidades e povoados. O governo federal e o governo estadual de cada estado devem ajudar os municípios na construção de estradas, pavimentação de ruas, instalação de luz e água, manutenção de escolas e execução de serviços médicos.

22.Elaboração de planos de urbanização e desenvolvimento em todas as cidades. Facilidades para a construção de casas, estímulo à criação de bibliotecas e radioemissoras locais, sem que seja necessária nenhuma permissão das autoridades para seu funcionamento.

23.As terras do Estado abandonadas e localizadas nas proximidades dos povoados e pequenas cidades devem ser distribuídas anualmente entre os habitantes, para que sejam cultivadas por um ano.

1 Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, órgão criado pelo Estado (N. do E.).

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24. Aproveitamento racional das grandes áreas não cultivadas em torno das cidades e povoados para a criação de granjas e plantações rentáveis, com o objetivo de garantir trabalho e meio de vida à população da região.

25.Defesa da terra dos índios, respeito a seus hábitos e costumes e ajuda do governo aos indígenas.26.Obrigação de reflorestamento e aproveitamento total das árvores derrubadas na exploração de madeira em

larga escala. O benefício da madeira deve ser feito na região para incentivar seu progresso. A madeira exis-tente em cada área determinada de terra pertence ao posseiro.

27.Respeito à propriedade privada que não ocasione prejuízo à coletividade. Apoio às iniciativas privadas de caráter progressista, à pequena e média indústria e ao artesanato.

a união Pela liBerdade e Pelos direitos do Povo, surgida para unir as amplas massas, crê que esses 27 pontos sintetizam as reivindicações mais sentidas e imediatas do homem desta região. Incluem tudo o que ele deseja e a que tem direito. Representam, contudo, o mínimo exigido por ele nas condições atuais. Por isso a ULDP considera que este é um programa em defesa dos pobres e pelo progresso do interior. Em torno dele se unirá o povo sofrido: os lavradores, os castanheiros, os vaqueiros, os garimpeiros, os peões, os barqueiros, os que trabalham na madeira e na quebra do babaçu, os pequenos e médios comerciantes, enfim, todos os que querem o progresso da região e a felicidade de seus habitantes.

É a hora da decisão, de acabar para sempre com o abandono em que vive o interior e de pôr fim aos incon-táveis sofrimentos de milhões de brasileiros abandonados, humilhados e explorados. A Revolução abrirá o caminho para uma nova vida.

Até hoje, o povo foi tratado como escravo. Chegou o momento de levantar-se para varrer os inimigos da liberdade, da independência e do progresso do Brasil.

Fonte | MONTEIRO, Adalberto. Guerrilha do Araguaia. Uma epopeia pela liberdade. 4. ed. São Paulo: Anita Garibaldi, 2005 ou disponível em: <http://vermelho.org.br/araguaia/capa.asp>.

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1990 | moVimento doS trABAlhAdoreS Sem-terrA (mSt)

Hino do MST

em 1984, surgiu o Movimento dos trabalhadores sem-terra (Mst) — que se transformou, desde então, no maior movimento social

organizado do Brasil —, num país onde 26 mil proprietários de terra (de um total de 5 milhões) são donos de 46% de todas as terras, em

contraste com 4,6 milhões de famílias de trabalhadores sem-terra.

o Mst é um movimento que luta por uma sociedade menos miserável e desigual, na qual a terra passe a cumprir a sua função social, por

meio de uma reforma agrária de inspiração socialista, de modo que se eliminem a exclusão social e as injustiças cometidas no campo. na

concepção do Mst, a proposta de reforma agrária não consiste apenas na distribuição das terras, mas deve vir combinada com políticas de

estado relativas à agroindústria, à educação e a novas tecnologias que respeitem o meio ambiente. estas premissas também estão associadas à luta pelo poder popular, isto é, pela horizontalização da política através da construção de uma rede de Conselhos populares — condição básica

para que o estado passe a ser um instrumento dos oprimidos.

segue o hino do Mst, símbolo de identidade dos sem-terra, aprovado no II Congresso do Movimento, realizado em Brasília, em 1990. (n.F. e M.B.)

Vem, teçamos a nossa liberdade

braços fortes que rasgam o chão

sob a sombra de nossa valentia

desfraldemos a nossa rebeldia

e plantemos nesta terra como irmãos!

Vem, lutemos

punho erguido

Nossa força nos leva a edificar

Nossa pátria

livre e forte

construída pelo poder popular

Braço erguido ditemos nossa história

sufocando com força os opressores

hasteemos a bandeira colorida

despertemos esta pátria adormecida

o amanhã pertence a nós trabalhadores!

Nossa força resgatada pela chama

da esperança no triunfo que virá

forjaremos desta luta com certeza

pátria livre operária e camponesa

nossa estrela enfim triunfará!

Letra: Ademar BogoMúsica: Willy C. de Oliveira

Fonte | Disponível em: <www.mst.org>.

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1999 | celSo monteiro furtAdo

Brasil: opções futuraso pernambucano Celso Furtado (1920/2004) foi um dos mais

importantes economistas brasileiros e latino-americanos do século XX. Depois de formar-se em Direito, participou da Força expedicionária

Brasileira durante a segunda guerra Mundial. Imediatamente depois, doutorou-se em economia na universidade de sorbonne,

em paris. nesse período, colaborou com as brigadas de reconstrução da Iugoslávia. Ao seu retorno, partiu para santiago do Chile para

ingressar na recém-criada Cepal (Comissão econômica para a América latina), dirigida por raúl prebisch. As distintas missões realizadas lhe permitiram conhecer a realidade da América latina. os seus estudos

sobre o Brasil seriam a base para o plano de Metas do governo Juscelino Kubitschek, para o qual dirigiria, como primeiro presidente,

a então recém-criada superintendência do Desenvolvimento do nordeste (sudene). o seu envolvimento político com o governo João

goulart, para quem preparou o plano trienal, em 1963, levaria-o ao exílio, depois do golpe de 1964. Após a anistia e com o fim da

Ditadura, em 1979, exerceria diversos cargos como consultor do governo do Brasil, da onu, da unesco e outros. A sua trajetória lhe

valeu uma cadeira na Academia Brasileira de letras.

A seguir um dos seus últimos e mais importantes textos. (n.F. e M.B.)

Refletir sobre a configuração futura da economia mundial é mera conjectura intelectual, pois é próprio do capitalismo a sua imprevisibilidade. Dessa evidência pretende-se inferir que o conceito de longo prazo é de escassa validade analítica em se tratando de macroeconomia. Uma empresa de ação transnacional necessitaria apoiar-se em projeções de longo prazo para aumentar a eficácia das decisões de investimento, mas isso seria inadequado no caso de uma economia nacional.

Nosso objetivo é demonstrar que esse raciocínio é inconsistente com respeito a uma economia no estágio de desenvolvimento da brasileira, de marcada heterogeneidade estrutural e regional. Isso porque os mercados só engendram decisões globalmente coerentes em países que alcançaram um avançado grau de homogeneida-de social. O certo é que um projeto orientador de uma política nacional de desenvolvimento faz-se tanto mais necessário quanto maior é a heterogeneidade social, se se pretende elevar o nível tecnológico. Em casos extre-mos, em que o Estado nacional inexiste (estatuto colonial), a política de desenvolvimento torna-se impraticá-vel. Mas não é o caso das atuais economias chamadas subdesenvolvidas. A situação destas é, sem lugar à dúvi-da, complexa, pois as forças dominantes são geralmente heterogêneas, dificultando a obtenção de um consen-so social.

Uma análise caso por caso faz-se, portanto, imprescindível, pois uma mudança na conjuntura internacional pode ter efeitos muito diversos de país para país. No caso do Brasil, é flagrante a diferença entre a situação presente de desastroso endividamento externo e de desequilíbrio nas contas púbicas e a situação, por exemplo, nos anos 1930, quando o dinamismo do mercado interno comandava o processo econômico, sendo o acesso a financiamento externo muito limitado.

Sem lugar à dúvida, houve condições históricas que tornaram possível e mesmo inevitável a prática de uma política de desenvolvimento. As forças sociais dominantes pressionaram nessa direção. Outras circunstâncias podem favorecer a emergência de lideranças carismáticas, inclusive populistas, as quais conseguem mobilizar forças sociais heterogêneas e mesmo tradicionalmente antagônicas. Não se trata de aceitar a tese do determi-nismo histórico, pois o poder criativo dos homens se sobrepõe a todos os constrangimentos, mas de identificar os fatores que circunscrevem o exercício desse poder.

Meu objetivo é explorar as modificações que estão ocorrendo na delimitação desse espaço em que se mani-festa a criatividade política. Dois conceitos nos ajudam a ordenar as ideias sobre esse tema complexo: o de globalização e o de rentabilidade social. O fato de que seja necessário articular a problemática que emerge nes-ses dois planos de análise nos adverte para a complexidade da matéria. De início, deve-se ter em conta a ne-cessidade de superar os limites da análise econômica para incorporar fatores de natureza política. No plano

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nacional como no global, as variáveis econômicas ligam-se intrinsecamente às estruturas de poder, e o fenô-meno político torna-se tanto mais difícil de captar quanto sua origem deixa de ser a simples detenção de capi-tais para assumir a forma de controle de inovações tecnológicas.

Consideremos o processo de globalização. A importância do comércio exterior para o crescimento de todas as economias foi reconhecida desde os primórdios da Revolução Industrial. A teoria ricardiana dos custos comparativos foi a primeira explicação consistente para o processo de desenvolvimento induzido pela divisão internacional do trabalho. Por outro lado, o protecionismo não foi outra coisa senão uma teorização sobre os efeitos positivos do represamento da demanda em benefício dos investimentos ligados ao mercado interno. De uma ou de outra forma, o dinamismo era induzido por decisões de política econômica. A industrialização brasileira é um caso clássico de crescimento por indução externa, mediante subsídios às importações de equi-pamentos.

O que existe de novo na globalização atual é que ela se faz pela estruturação dos sistemas produtivos exis-tentes em benefício das grandes empresas que planejam seus investimentos em escala internacional. Assim, a indústria automotora que se instalou no Brasil há meio século, em função das perspectivas de crescimento do mercado interno, se vem reestruturando em nível dos processos produtivos num espaço multinacional. Do ponto de vista das empresas, isso apresenta vantagens evidentes, a começar por economias de escala de produ-ção resultantes da terceirização, que permite dividir com outras empresas os riscos de prejuízos causados pela maior instabilidade da demanda efetiva decorrente da globalização.

A globalização aumenta consideravelmente o poder das grandes empresas em suas negociações com as au-toridades locais e, em particular, com os assalariados que emprega. Daí o declínio do poder sindical que se observa por todas as partes, e não apenas nos países subdesenvolvidos.

Uma chave para perscrutar o futuro da civilização globalizada está exatamente neste ponto: o dinamismo, mas também a instabilidade do sistema capitalista, fundam-se no controle da acumulação por uma minoria que exerce o comando político. É a predominância dessas forças que está na raiz da tendência à concentração da renda, e também das crises de insuficiência de demanda efetiva e de desemprego estrutural. O poder dos sin-dicatos de assalariados encontrou espaço para crescer porque exerceu o importante papel de corretor de insu-ficiência de demanda. Nesse sentido, pode-se afirmar que a difusão do poder político a que deu origem a as-censão do assalariado pela sindicalização foi fundamental para o desenvolvimento da sociedade capitalista. Também se pode afirmar que sem essa difusão do poder político, a sociedade capitalista teria perdido impulso de crescimento ou teria assumido a forma de regimes totalitários.

Para captar a especificidade do subdesenvolvimento econômico, faz-se necessário retomar a visão histórica do sistema de divisão do trabalho em escala internacional. Os países exportadores de produtos primários ob-tinham aumentos de produtividade com base em simples realocação de recursos, diferenciando-se estrutural-mente daqueles que se beneficiaram do aumento de produtividade física decorrente da introdução de novas tecnologias. Surgiu assim a “brecha” de produtividade a que se referiram os primeiros estudos da Cepal. O subdesenvolvimento é o estágio em que se acham os países que acumularam importante atraso no plano tec-nológico. A redução dessa brecha fez-se cada vez mais difícil, em razão de que os países subdesenvolvidos tornaram-se dependentes da importação de inovações tecnológicas. A redução da referida brecha somente foi alcançada naqueles países que se dotaram de um sistema tecnológico autônomo, vale dizer, onde prevaleceu na orientação dos investimentos o conceito de rentabilidade social. Isso nos leva a concluir que o subdesenvolvi-mento somente pode ser superado mediante a adoção de um conjunto coerente de políticas públicas. A racio-nalidade dos mercados conduz inexoravelmente à consolidação ou à ampliação da brecha, o que tem sido comprovado pela experiência histórica.

As inovações que alimentam o desenvolvimento são de natureza técnica ou estética. Se observarmos um produto qualquer que simbolize o progresso, digamos o automóvel, veremos que a curva de sua evolução é marcada por fases em que prevalece o avanço técnico e outras em que são mais notórios os ganhos estéticos. É fácil perceber que, se as inovações se limitassem ao plano da técnica, cedo elas saturariam o mercado, acarre-tando aumentos dos salários e baixa dos investimentos. A introdução de novos modelos é essencial para man-

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ter o padrão de distribuição de renda. Portanto, podemos afirmar que a inovação fundada no mero progresso técnico ampliou sua eficácia à medida que se apoiava na capacidade do homem para inventar valores estéticos. Certo, os valores estéticos podem emergir independentemente das inovações técnicas, assim como podem ser influenciados por elas, conforme se observou desde cedo no caso da música. Em síntese, os valores estéticos, conjuntamente com os éticos, traduzem o gênio humano em sua forma mais nobre e requerem uma proteção que só as políticas públicas integradas num projeto de desenvolvimento social podem assegurar. Sem essa visão de conjunto, a dimensão técnica se impõe por si mesma e acarreta um processo de desestruturação cultural.

Fiz referência ao fato de que dois conceitos nos ajudam a captar o sentido das transformações atualmente em curso: o de globalização e o de rentabilidade social. Este segundo conceito se refere à ordenação das decisões econômicas no quadro dos sistemas políticos nacionais. Na sua fase primário-exportadora, o Brasil foi uma economia relativamente fechada, pois as exportações dificilmente alcançavam um décimo da produção nacio-nal. Isso significa que o mercado interno sempre foi uma referência básica para os tomadores de decisões eco-nômicas.

As decisões estratégicas eram, evidentemente, condicionadas por fatores externos ligados à situação do ba-lanço de pagamentos. Mas, ao debilitar-se esse constrangimento externo, o que aconteceu após a grande crise de 1929, o país iniciou uma longa fase de crescimento essencialmente apoiado no mercado interno. Esse cres-cimento engendrou um sistema de produção orientado para uma utilização seletiva da reduzida capacidade de importação e apoiado em forte proteção de áreas de escassa capacidade competitiva. Sem lugar à dúvida, essa política contribuiu para consolidar a unidade nacional ao criar reserva de mercado para excedentes de produ-ção regionais que perdiam seus mercados externos e estimulou os subsídios aos investimentos em atividades estratégicas, em grande medida de iniciativa do Estado.

Esse sistema de produção integrado em escala nacional tinha peculiaridades ligadas à história de um país continental em processo de ocupação territorial e grande mobilidade demográfica. São poucos os países com essas características e todos, inclusive os Estados Unidos, que são um caso especial, são economias relativamen-te fechadas. Esse tipo de país tem certamente grande possibilidade de crescimento, mas requer uma política adequada. Tratando-se de um país subdesenvolvido, como é o caso do Brasil, o essencial é saber usar a limita-da capacidade de importação para absorver tecnologia no quadro de políticas públicas que tenham em conta as peculiaridades do estágio de desenvolvimento.

Se o objetivo estratégico é conciliar uma taxa de crescimento econômico elevada com absorção do desem-prego e desconcentração da renda, temos de reconhecer que a orientação dos investimentos não pode subor-dinar-se à racionalidade das empresas transnacionais. Devemos partir do conceito de rentabilidade social a fim de que sejam levados em conta os valores substantivos que exprimem os interesses da coletividade em seu con-junto. Somente uma sociedade apoiada numa economia desenvolvida, com elevado grau de homogeneidade social, pode confiar na racionalidade dos mercados para orientar seus investimentos estratégicos. Essa discre-pância entre a racionalidade dos mercados e o interesse social tende a agravar-se com a globalização. No caso da indústria automotora, o problema parece simples, pois as empresas são de capital estrangeiro e o avanço tecnológico significa aumento dos custos em divisas. Mas, tratando-se de empresas nacionais, o mesmo fenô-meno pode apresentar-se, pois a tecnologia mais avançada também se traduz em aumento de custos em divisas com crescente pressão na balança de pagamentos. Contudo, não é esse o problema principal, e sim o impacto negativo no plano social. A tecnologia tradicional que segue a linha do fordismo tende a ser substituída pela organização em equipes em busca de flexibilidade, o que reduz a capacidade dos assalariados de se organizarem em poder sindical. Esse problema se apresenta de forma aguda no capitalismo mais desenvolvido, a começar pelos Estados Unidos, e está na raiz da tendência generalizada para a concentração da renda.

Alcançamos, assim, o âmago do problema colocado pelo avanço tecnológico. A orientação assumida por este traduz a necessidade de diversificar o consumo dos países de elevado nível de vida. As inovações nas téc-nicas de marketing passaram a ter importância crescente. A sofisticação dos padrões de consumo dos países ricos tende a comandar a evolução tecnológica. Só assim se explica o desperdício frenético de bens descartados como obsoletos e as brutais agressões na fronteira ecológica.

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Regressamos, portanto, ao início da nossa exposição, em que afirmamos a imprevisibilidade da evolução do sistema capitalista. Seu dinamismo é compulsivo e leva a fases recorrentes de tensões, com resultados imprevi-síveis. Grandes destruições causadas por guerras abriram o caminho a fases de extraordinária prosperidade. É dentro desse quadro de incertezas que devemos indagar: em que direção caminhará nosso país? Se adotamos a tese de que a globalização constitui um imperativo tecnológico inescapável, que levará todas as economias a um processo de unificação de decisões estratégicas, teremos de admitir que é reduzido o espaço de manobra que nos resta. O Brasil é um país marcado por profundas disparidades sociais superpostas a desigualdades regionais de níveis de desenvolvimento, portanto frágil em um mundo dominado por empresas transnacionais que tiram partido dessas desigualdades.

A globalização opera em benefício dos que comandam a vanguarda tecnológica e exploram os desníveis de desenvolvimento entre países. Isso nos leva a concluir que países com grande potencial de recursos naturais e acentuadas disparidades sociais — como o Brasil — são os que mais sofrerão com a globalização. Isso porque poderão desagregar-se ou deslizar para regimes autoritários de tipo fascista como resposta às tensões sociais crescentes. Para escapar a essa disjuntiva temos que voltar à ideia de projeto nacional, recuperando para o mer-cado interno o centro dinâmico da economia.

A maior dificuldade está em reverter o processo de concentração de renda, o que somente será feito median-te uma grande mobilização social.

Temos que preparar a nova geração para enfrentar grandes desafios, pois se trata de, por um lado, preservar a herança histórica da unidade nacional, e, por outro, continuar a construção de uma sociedade democrática aberta às relações externas. Como as possibilidades de crescimento do mercado interno são grandes, há espaço para uma colaboração positiva da tecnologia controlada por grupos estrangeiros. Numa palavra, podemos afirmar que o Brasil só sobreviverá como nação se se transformar em uma sociedade mais justa e preservar a sua independência política.

Fonte | Disponível em: <www.academia.org.br/imortais/cads/11/celso2.htm>.

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2005 | eXército zApAtiStA de liBertAção nAcionAl (ezln)

Sexta Declaração da Selva de Lancadona*

quando pensamos no eZln, vem a nossa mente o rosto encoberto do subcomandante Marcos. quem conhece seu verdadeiro rosto? Isso nos leva a pensar que poucos movimentos são tão admirados e tão

mal-conhecidos como o eZln. o eZln tornou-se público no dia 1o de janeiro de 1994, em san Cristóbal, capital do estado de Chiapas, México. esse foi o dia do lançamento do North American Free Trade

Agreement (nafta)1, e uma desconhecida organização guerrilheira indígena surgiu para contestar a integração proposta por este acordo.

Desde as suas origens, a mudança constante é a melhor arma do eZln. Começou como uma organização guerrilheira clássica, em

meados da década de 1980. Depois, passou a utilizar a violência como uma forma de chamar a atenção para a região mais pobre e esquecida

do México, e é, atualmente, um desafio tanto para o governo mexicano quanto para a conceituação dos cientistas sociais, partindo do seu lema “mandar obedecendo”. Já foi (e ainda é) catalogado de

guerrilha pós-moderna ou cibernética, de antiorganizacionista, de indigenista e de muitas outras coisas. o fato é que o elZn sempre tem

ousado, dialogando com intelectuais, artistas e políticos nacionais e estrangeiros, captando importantes apoios para a causa dos indígenas

da região e do México. (n.F. e M.B.)

Esta é nossa palavra sincera que busca tocar o coração da gente humilde e simples como nós, mas que também, como nós, é digna e rebelde. Esta é nossa palavra sincera para contar o que tem sido nossa caminhada e onde estamos agora, para explicar como vemos o mundo e nosso país, para dizer o que pensamos fazer e como pen-samos fazer, e para convidar as outras pessoas para que caminhem conosco em algo muito grande que se cha-ma México e algo maior que se chama mundo. Esta é nossa palavra sincera para dar conta a todos os corações que são honestos e nobres, do que queremos no México e no mundo. Esta é nossa palavra sincera porque é nossa ideia chamar aqueles que são como nós e nos unir a eles, em todas as partes onde vivem e lutam.

I. Do que SoMoS

Nós somos os zapatistas do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), ainda que também nos cha-mem de “neozapatistas”. Bom, pois nós, os zapatistas da EZLN, nos levantamos em armas em janeiro de 19942 porque achamos que já chega de tantas maldades que fazem os poderosos, que somente nos humilham, nos roubam, nos encarceram e nos matam, e nada de ninguém dizer nem fazer nada. Por isso, nós dissemos que “Já Basta!”, ou seja, que já não vamos permitir que nos considerem menos e que nos tratem pior do que aos animais. E, então, também dizemos que queremos a democracia, a liberdade e a justiça para todos os mexica-nos, ainda que nos concentremos mais entre os povos indígenas. Porque ocorre que nós, do EZLN, somos quase todos puros indígenas daqui de Chiapas, mas não queremos lutar somente pelo nosso bem ou somente pelo bem dos indígenas de Chiapas, ou somente pelos povos indígenas do México; queremos lutar junto com todos os que são gente humilde e simples como nós, e que têm grandes necessidades, e que sofrem a exploração e os roubos dos ricos e seus maus governos, aqui em nosso México, e em outros países do mundo.

E, então, nossa pequena história é que nos cansamos da exploração que sofríamos dos poderosos e, por isso, nos organizamos para nos defender e para lutar pela justiça. A princípio, não éramos muitos, apenas alguns, andando daqui e dali, falando com, e escutando, outras pessoas como nós. Isso fizemos durante muitos anos e

1 Em português, Tratado Norte-Americano de Livre Comércio.2 Na madrugada do dia 31 de dezembro de 1993 para o dia 1º de janeiro de 1994, para surpresa dos mexicanos e do mundo, apareceu em cena, atacando os povoados da província de Chiapas, no sul do México, uma organização revolucionária armada autodenominada Exército Zapatista de Libertação Nacional (N. do T.).

* No original, Sexta Declaración de la Selva Lacandona del Ejército Zapatista de Liberación Nacional.

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o fizemos em segredo, ou seja, sem fazer barulho. Ou seja, acumulamos nossa força em silêncio. Levamos dez anos assim, e crescemos e, logo depois, já éramos muitos milhares. Então, nos preparamos bem com a política e com as armas e, de repente, quando os ricos estavam em plena festa de ano-novo, nós invadimos suas cidades, e as tomamos, e deixamos claro a todos que aqui estamos e é preciso nos considerar. Então, os ricos tiveram um bom susto e nos mandaram seus grandes exércitos para acabar conosco, tal como sempre fazem quando os explorados se rebelam, e mandaram acabar com todos. Contudo, não acabaram com a gente, porque nos pre-paramos muito bem antes da guerra e nos fortalecemos em nossas montanhas. E aí andavam os exércitos buscando-nos e lançando-nos suas bombas e balas e já estavam fazendo seus planos de matar de uma vez por todas todos os indígenas, porque não sabem bem quem é zapatista e quem não é. E nós, correndo e combaten-do, combatendo e correndo, tal como fizeram nossos antepassados. Sem nos entregar, sem nos render, sem que fôssemos derrotados.

E, então, a gente das cidades saiu às ruas e começou a gritaria para que parassem com a guerra. E, então, pois, nós paramos nossa guerra e escutamos esses irmãos e irmãs das cidades que nos disseram para que tratás-semos de chegar a uma conciliação, ou seja, a um acordo com os maus governos para que se solucionasse o problema sem matança. E, assim, nós resolvemos considerar a gente porque essa gente é, como dizemos, “o povo”, ou seja, o povo mexicano. Foi o que fizemos, deixamos de lado o fogo e puxamos a palavra.

E ocorre que os governos disseram que, sim, que vão se comportar bem, e vão dialogar e fazer acordos, e vão cumpri-los. E nós dissemos que “está bem”, mas também pensamos que seria bom conhecermos essa gen-te que saiu às ruas para parar a guerra. Então, enquanto estávamos dialogando com os maus governos, também conversamos com essas pessoas e vimos que a maioria era gente humilde e sincera como nós, e ambos enten-demos bem por que lutamos, ou seja, eles e nós. E a essa gente chamamos “sociedade civil” porque a maioria não era de partidos políticos, mas era gente assim comum e corrente, como nós, gente sincera e humilde.

Contudo, ocorre que os maus governos não queriam uma boa conciliação, tudo não passava de uma arti-manha, de que vamos conversar e fazer acordo e, na verdade, estavam preparando seus ataques para nos elimi-nar de vez. E, então, várias vezes nos atacaram, mas não nos venceram, porque nós resistimos bem e muita gente em todo mundo se mobilizou. E, então, os maus governos pensaram que o problema era que muita gente estava vendo o que se passava com o EZLN, e começaram seu plano de fazer como se nada estivesse acontecendo. E, enquanto nos rodeiam, ou seja, enquanto nos fazem um cerco, eles esperam que, como as nossas montanhas estão muito longe, pode ser que a gente se esqueça, porque está longe da terra zapatista. E aos poucos os maus governos nos testam, e nos tratam de enganar ou nos atacam, como em fevereiro de 1995, quando nos enviaram uma grande quantidade de exércitos, mas não nos derrotaram. Porque, como logo se disse, não estávamos sós e muita gente nos apoiou e resistimos bem.

E, assim, já os maus governos tiveram que fazer acordos com o EZLN, e esses acordos se chamam “Acor-do de San Andrés”, porque “San Andrés” se chama o município onde foram assinados esses acordos. E, nes-ses diálogos, nós não estávamos sozinhos falando com aqueles dos maus governos, pois convidamos muita gente e organizações que estavam ou estão em luta pelos povos indígenas do México, e todos diziam sua palavra e todos estávamos de acordo de como iríamos falar com os maus governos. E assim foi esse diálogo, no qual não apenas estavam os zapatistas, por um lado, e os governos, por outro, mas, com os zapatistas, es-tavam os povos indígenas do México e os que nos apoiavam. E, então, nesses acordos, os maus governos disseram que sim, que vão reconhecer os direitos dos povos indígenas do México e que vão respeitar sua cultura e garantir tudo em lei, incorporada à Constituição. Contudo, tão logo assinaram os acordos, os maus governos agiram como se tivessem esquecido e se passaram muitos anos e nada foi cumprido desses acordos. Ao contrário, o governo atacou os indígenas para fazê-los recuar na luta, como em 22 de dezembro de 1997, data na qual Zedillo mandou matar 45 homens, mulheres, idosos e crianças no povoado de Chiapas que se chama Acteal. Este grande crime não pode ser esquecido tão fácil e é uma amostra de como os maus gover-nos não se atormentam o coração para atacar e assassinar os que se rebelam contra as injustiças. E, enquanto tudo isso acontece, nós, zapatistas, insistimos e insistimos para que se cumpram os acordos e resistimos nas montanhas do sudeste mexicano. E, então, começamos a falar com outros povos indígenas do México e as

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organizações que têm e fizemos acordos com eles para que fôssemos lutar juntos pela mesma causa, ou seja, pelo reconhecimento dos direitos e da cultura indígena. E, bom, também nos apoiou muita gente de todo o mundo e pessoas que são muito respeitadas, sendo sua palavra muito grande, porque são grandes intelectuais, artistas e cientistas do México e de todo o mundo. E também fizemos encontros internacionais, ou seja, nos juntamos e conversamos com pessoas da América, da Ásia, da Europa, da África e da Oceania e conhecemos suas lutas e seus modos e dissemos que são encontros “intergalácticos”, não para fazer gracinha, mas porque convidamos também os outros planetas, mas parece que não chegaram ou, talvez, se chegaram, não deixaram claro.

Contudo, seja como for, os maus governos não cumpriam os acordos e, então, fizemos um plano para falar com muitos mexicanos para que nos apoiassem. E, então, primeiro fizemos, em 1997, uma marcha à Cidade do México que se chamou “dos 1.111”, porque foram um companheiro ou companheira de cada povoado zapatista, mas o governo não deu atenção. Em seguida, em 1999, fizemos uma consulta em todo o país e aí se percebeu que a maioria estava de acordo com as demandas dos povos indígenas, mas os maus governos, tampouco, deram atenção. E, já por último, em 2001, fizemos o que se chamou de “a marcha pela dignidade indígena” que teve muito apoio de milhões de mexicanos e de outros países e chegou até onde estão os deputados e senadores, ou seja, ao Congresso da União, para exigir o reconhecimento dos indígenas mexicanos.

Contudo, acontece que não, que os políticos que são do partido PRI,3 do partido PAN4 e do partido PRD5 fizeram um acordo entre eles e simplesmente não reconheceram os direitos e a cultura indígenas. Isso foi em abril de 2001 e aí os políticos demonstraram claramente que não têm nenhuma decência e são uns sem-vergo-nhas que só pensam em ganhar seu dinheiro como maus governantes que são. É necessário recordar isso por-que vocês já vão ver que agora vão dizer que, sim, que vão reconhecer os direitos indígenas, mas é uma men-tira que espalham para que votemos neles, porque já tiveram sua oportunidade e não cumpriram.

E, então, aqui vemos claramente que de nada serviram o diálogo e a negociação com os maus governos do México. Ou seja, não há hipótese de que possamos falar com os políticos, porque, nem seu coração, nem sua palavra são honestos, porque estão tortos e espalham mentiras dizendo que, sim, vão cumprir, mas não vão. Ou seja, que esse dia em que os políticos do PRI, PAN e PRD aprovaram uma lei que não serve, ma-taram de uma vez o diálogo e disseram claramente que não importam os acordos que fazem e assinam, porque não têm palavra. E, assim, já não fizemos nenhum contato com os poderes federais, porque enten-demos que o diálogo e a negociação haviam fracassado por causa desses partidos políticos. Vimos que eles não se importam com o sangue, a morte, o sofrimento, as mobilizações, as consultas, os esforços, os pro-nunciamentos nacionais e internacionais, os encontros, os acordos, as assinaturas, os compromissos. Assim, a classe política não apenas fechou, uma vez mais, a porta aos povos indígenas, como também deu um gol-pe mortal à solução pacífica, dialogada e negociada da guerra. E também já não se pode acreditar que cum-pram os acordos a que cheguem com qualquer pessoa. É bom que o vejam, para que aprendam com a expe-riência do que nos aconteceu.

E, então, nós vemos tudo isso e nós pensamos com nossos corações o que vamos fazer. E a primeira coisa que vimos é que nosso coração já não é igual ao que era antes, quando começamos nossa luta, mas, sim, que está maior, porque já tocamos o coração de muita gente boa. E também vimos que nosso coração está mais machucado, ou seja, mais ferido. E não é que esteja ferido pelas trapaças feitas pelos maus governos, mas, sim, porque, quando tocamos os corações dos outros, tocamos também suas dores. Ou seja, é como se nós nos vís-semos em um espelho.

3 Partido Revolucionário Institucional — pretendia encarnar a tradição da revolução mexicana e era então governo no México (N. do T.).4 Partido de Ação Nacional — congrega forças políticas liberais e de direita (N. do T.).5 Partido de Resistência Democrática — reúne forças de esquerda moderada (N. do T.).

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II. onDe eStAMoS AGorA

Então, como zapatistas que somos, pensamos que não bastava deixar de dialogar com o governo, mas que era necessário seguir em frente na luta, apesar desses parasitas preguiçosos dos políticos. O EZLN decidiu, então, pelo cumprimento, e somente por sua conta (ou seja, como se diz, de forma “unilateral”, porque so-mente de um lado), dos Acordos de San Andrés no que diz respeito aos direitos e à cultura indígenas. Duran-te quatro anos, desde meados de 2001 até meados de 2005, nos dedicamos a isso e a outras coisas que vamos lhes dizer.

Bom, começamos, então, a gostar dos municípios autônomos rebeldes zapatistas, que é como se organizam os povos para governar e serem governados, para torná-los mais fortes. Este modo de governo autônomo não é inventado do nada pelo EZLN, mas provém de vários séculos de resistência indígena e da própria experiên-cia zapatista, é o autogoverno das comunidades. Ou seja, não se trata de vir alguém de fora para governar, mas que os próprios povos decidem, entre eles, quem e como se governa, e se não obedecem os governantes, os povos os retiram. Ou seja, se o que manda não obedece ao povo, ele o escorraça, sai da condição de autorida-de e entra outra.

Contudo, então, vimos que os municípios autônomos não estavam parecidos, mas que uns estavam mais avançados e tinham maior apoio da sociedade civil e outros estavam mais abandonados. Ou seja, faltava orga-nizar para que fossem mais parecidos. E também vimos que o EZLN, com sua força político-militar, estava se metendo nas decisões que eram atribuições das autoridades democráticas, isto é, “civis”. E aqui o problema é que a força político-militar do EZLN não é democrática, porque é um exército e vimos que isso não está bom; que está acima o militar e, abaixo, o democrático, porque não deve se deixar que o que é democrático seja decidido militarmente, mas, sim, que deve ser o contrário: ou seja, que, acima, está o político-democrático, mandando, e, abaixo, o militar, obedecendo. Ou talvez seja melhor que não haja nada abaixo, somente uma pura planície, sem militar, e, por isso, os zapatistas são soldados para que não haja soldados. Bom, mas então, deste problema, o que fizemos foi começar a separar o que é político-militar do que são as formas de organi-zação autônomas e democráticas das comunidades zapatistas. E, assim, ações e decisões que antes fazia e toma-va o EZLN foram passando, pouco a pouco, às autoridades eleitas democraticamente pelos povos. Claro que dizer isto é fácil; e; na prática, custa muito, porque são muitos anos, primeiro, de preparação para a guerra e, em seguida, no curso da guerra, já vamos nos acostumando com o político-militar. Contudo, como queira, o fizemos porque é o nosso modo; o que nós dizemos, nós fazemos, caso contrário, para que vamos andar di-zendo algo que depois não iremos fazer?

Assim foi que nasceram as Juntas de Bom Governo, em agosto de 2003, e com elas, continuou-se com a autoaprendizagem e o exercício do “mandar obedecendo”.

Desde então, e até a metade de 2005, a direção do EZLN não mais se meteu a dar ordens em assuntos civis, mas acompanhou e apoiou as autoridades eleitas democraticamente pelos povos e, além do mais, exerceu vi-gilância para que os povos se informassem bem, assim como a sociedade civil nacional e internacional, dos apoios recebidos e de como eram utilizados. E agora estamos passando o trabalho de vigilância do bom gover-no às bases de apoio zapatistas, com cargos temporários que se alternam, de modo que todos e todas aprendam e realizem esse trabalho. Porque nós pensamos que um povo que não vigia seus governantes está condenado a ser escravo, e nós lutamos para ser livres, não para trocar de senhor a cada seis anos.

O EZLN durante estes quatro anos também passou às Juntas de Bom Governo e aos Municípios Autônomos os apoios e contactos que, em todo o México e no mundo, foram conseguidos nestes anos de guerra e resis-tência. Além do mais, nesse período, o EZLN foi construindo um apoio econômico e político que permitia às comunidades zapatistas avançar com menos dificuldades na construção de sua autonomia e a melhorar suas condições de vida. Não é muito, mas é muito superior ao que se tinha antes do início da revolta, em janeiro de 1994. Se você analisar um desses estudos que fazem os governos, vai ver que as únicas comunidades indí-genas que melhoraram suas condições de vida, ou seja, sua saúde, educação, alimentação e moradia, foram as que estão em território zapatista, que é como nós dizemos, onde estão nossos povos. E tudo isso foi possível

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pelo avanço dos povos zapatistas e o apoio muito grande que foi recebido de pessoas boas e nobres, que nós chamamos de “sociedades civis” e de suas organizações em todo o mundo. Como se todas essas pessoas hou-vessem tornado realidade isto de que “outro mundo é possível”, mas nos fatos, não no puro falatório.

E, então, os povos tiveram bons avanços. Agora, há mais companheiros e companheiras que estão aprenden-do a ser governo. E, ainda que pouco a pouco, mais mulheres estão entrando nesses trabalhos; todavia, conti-nua faltando o respeito às companheiras para que elas participem mais nos trabalhos da luta. E, assim, também com as Juntas de Bom Governo, melhoraram a coordenação entre os municípios autônomos e a solução de problemas com outras organizações e com as autoridades oficiais. E também melhoraram muito os projetos das comunidades, e é mais igualitária a divisão de projetos e apoios que oferece a sociedade civil de todo o mundo: melhorou a saúde e a educação, ainda que, todavia, falte um bocado para ser o que deve ser, e o mesmo acon-tece com a moradia e a alimentação e, em algumas zonas, melhorou muito o problema da terra porque estas foram recuperadas dos fazendeiros e distribuídas, mas há zonas que continuam sofrendo por falta de terras para cultivar. E, assim, se melhorou muito o apoio da sociedade civil nacional e internacional porque, antes, cada um ia para onde mais se chamava, e agora as Juntas do Bom Governo as orientam para onde é mais necessário. E, pela mesma razão, em todas as partes, há mais companheiros e companheiras que estão aprendendo a se relacionar com as pessoas de outras partes do México e do mundo, estão aprendendo a respeitar e a exigir respeito, estão aprendendo que há muitos mundos e que todos têm o seu lugar, seu tempo e seu modo e, assim, é preciso respeitar mutuamente a todos.

Bom, nós, os zapatistas da EZLN, nos dedicamos nesse tempo à nossa força principal, ou seja, aos povos que nos apoiam. E, por isso, melhorou, sim, a situação, ou seja, que não há quem diga que de nada serviram a organização e a luta zapatistas, mas, sim, que, ainda que nos exterminem completamente, nossa luta, sim, serviu de algo.

Contudo, não somente cresceram os povos zapatistas, como, também, cresceu o EZLN. Porque o que acon-teceu nesse tempo é que novas gerações renovaram toda nossa organização. Ou seja, é como se tivessem lhe injetado uma nova força. Os comandantes e comandantas, que estavam maduros no início da revolta em 1994, têm agora a sabedoria do que foi aprendido na guerra e no diálogo de 12 anos com milhares de homens e mulheres de todo o mundo. Os membros do CCRI,6 a direção político-organizativa zapatista, agora aconse-lham e orientam os novos que vão entrando em nossa luta e os que vão ocupando cargos de direção. Já há tempos que os “comitês” (que é como nós os chamamos) estiveram preparando toda uma nova geração de comandantes e comandantas, que, depois de um período de instrução e teste, começam a conhecer os traba-lhos do poder organizativo e a exercê-los. E acontece também que nossos insurgentes, insurgentas, milicianos, milicianas, responsáveis locais e regionais, assim como as bases de apoio, que eram jovens no início da revolta, são já homens e mulheres maduros, veteranos combatentes e líderes naturais em suas unidades e comunidades. E aqueles que eram crianças naquele janeiro de 1994, são já jovens que cresceram na resistência e foram for-mados na digna rebeldia levantada pelos maiores nestes 12 anos de guerra. Estes jovens têm uma formação política, técnica e cultural que não tinham aqueles que iniciaram o movimento zapatista. Esta juventude ali-menta agora, cada vez mais, tanto nossas tropas como os postos de direção na organização. E, bom, todos nós vimos as espertezas da classe política mexicana e a destruição que suas ações provocaram em nossa pátria. E vimos as grandes injustiças e matanças que fez a globalização neoliberal em todo o mundo. Contudo, sobre isso, falaremos mais adiante.

Assim, o EZLN resistiu a 12 anos de guerra, de ataques militares, políticos, ideológicos e econômicos, de cerco, de hostilidade, de perseguição; e não conseguiram nos vencer, não nos vendemos, nem nos rendemos, mas, sim, avançamos. Mais companheiros de muitas partes entraram na luta, de modo que, em lugar de nos deixarem mais débeis depois de tantos anos, nos tornaram mais fortes. Claro que há problemas que podem ser resolvidos, separando-se mais o político-militar do civil-democrático. Contudo, há coisas mais importantes, como o são as demandas pelas quais lutamos, que não foram conquistadas completamente.

6 Comitê Clandestino Revolucionário Indígena (N. do T.).

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Segundo nosso pensamento e o que vemos em nosso coração, chegamos a um ponto no qual não podemos ir mais à frente e, por outro lado, é possível que percamos tudo o que temos, se ficarmos como estamos e não fizermos nada mais para avançar. Ou seja, chegou a hora de nos arriscarmos outra vez e darmos um passo pe-rigoso, mas que valha a pena. Porque, uma vez unidos com outros setores sociais que têm as mesmas carências que nós, será possível conseguir o que necessitamos e merecemos. Um novo passo adiante na luta indígena só é possível se o indígena se junta com os operários, camponeses, estudantes, professores, empregados... ou seja, os trabalhadores da cidade e do campo.

E continuará... Das montanhas do Sudeste Mexicano

Comitê Clandestino Revolucionário IndígenaComando General do Exército Zapatista de Libertação Nacional.

México, no sexto mês do ano de 2005.

Fonte | Disponível em: <www.ezln.org.mx>.