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  A recuperação da obra profética de Pe. António Vieira Entre 1777, fim do consulado de Marqu ês de Pombal, e 1933, ano de implantação do Estado Novo, a obra de Pe. António Vieira viu-se contaminada pelo labéu da “lenda negra” que envolvia toda a actividade dos je- suítas. Durante este longo período de tempo, são ape- nas valorizados os Sermões , que recebem várias edições parciais. A confusão entre o seu nome e a autoria da obra  A Arte de Furtar contribuiu para aprofundar o  juízo negativo sobre a sua obra. Expulsa pela segunda vez em 1911, com a instauração da República, a Com- panhia de Jesus regressa a Portugal em 1925 1 , ini- ciando-se na década de 1930 a lenta recuperação da imagem positiva de Pe. António Vieira como o maior prosador e pregador português. Em 1935, em  Mensa-  gem, F. Pessoa sintetizou este juízo, cognominando Pe. António Vieira de “Imperador da Língua Portuguesa”. O melhor estudo sobre esta fase é o de José Eduardo Franco e Bruno Cardoso, Vieira na Literatura Anti- -Jesuítica 2 . O Quinto Império consiste no estado perfeito e realizado ou consumado do Reino de Cristo em todo o mundo; é o reino em que todos os Príncipes e nações e povos viverão em paz segurança, cessarão todas as guerras, as comunidades serão boas observantes da lei divina, sendo Cristo adorado e obedecido por todos;  pressupõe-se que a justiça seja universal, o bem-estar pleno e todas as qualidades humanas negativas desaparecerão.  Miguel Real Centro de Literaturas de Expressão Portuguesa das Universidades de Lisboa Padre António Vieira a arquitectónica do Quinto Império na carta Esperanças de Portugal (1659) 1 Sobre a historia da Companhia de Jesus, cf. José Eduardo Franco, O Mito dos Jesuítas. Em Portugal. No Brasil e no Oriente, Lisboa, Gradiva, 2 vols., 2006/07. 2 Cf. José Eduardo Franco e Bruno Cardoso, Vieira na Literatura  Antijesuítica (Séculos XVIII – XX ), (prefácio de António Matos Fer- reira), Lisboa, Roma Editora, 1997. REVISTA LUSÓFONA DE CIÊNCIA DAS RELIGIÕES – ANO VII, 2008 / n. 13/14 – 107-140  107  P A D R E A N T Ó N I O V I E I R A

Padre António Vieira a arquitectónica do Quinto Império na carta Esperanças de Portugal (1659)

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Análise da importância da carta Esperanças de portugal para o Quinto Império

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  • A recuperao da obra profticade Pe. Antnio Vieira

    Entre 1777, fim do consulado de Marqus de Pombal,e 1933, ano de implantao do Estado Novo, a obra dePe. Antnio Vieira viu-se contaminada pelo labu dalenda negra que envolvia toda a actividade dos je-sutas. Durante este longo perodo de tempo, so ape-nas valorizados os Sermes, que recebem vrias ediesparciais. A confuso entre o seu nome e a autoria daobra A Arte de Furtar contribuiu para aprofundar ojuzo negativo sobre a sua obra. Expulsa pela segundavez em 1911, com a instaurao da Repblica, a Com-panhia de Jesus regressa a Portugal em 19251, ini-ciando-se na dcada de 1930 a lenta recuperao daimagem positiva de Pe. Antnio Vieira como o maiorprosador e pregador portugus. Em 1935, em Mensa-gem, F. Pessoa sintetizou este juzo, cognominando Pe.Antnio Vieira de Imperador da Lngua Portuguesa.O melhor estudo sobre esta fase o de Jos EduardoFranco e Bruno Cardoso, Vieira na Literatura Anti--Jesutica2.

    O Quinto Imprioconsiste no estado perfeitoe realizado ou consumado

    do Reino de Cristo em todo o mundo;

    o reino em que todos osPrncipes e naes e povosvivero em paz segurana,cessaro todas as guerras,

    as comunidades sero boasobservantes da lei divina,

    sendo Cristo adorado e obedecido por todos;

    pressupe-se que a justiaseja universal,

    o bem-estar pleno e todasas qualidades humanas

    negativas desaparecero.

    Miguel RealCentro de Literaturas

    de Expresso Portuguesa das Universidades de Lisboa

    Padre Antnio Vieira a arquitectnica do Quinto Imprio

    na carta Esperanas de Portugal (1659)

    1 Sobre a historia da Companhia de Jesus, cf. Jos EduardoFranco, O Mito dos Jesutas. Em Portugal. No Brasil e no Oriente, Lisboa,Gradiva, 2 vols., 2006/07.

    2 Cf. Jos Eduardo Franco e Bruno Cardoso, Vieira na LiteraturaAntijesutica (Sculos XVIII XX), (prefcio de Antnio Matos Fer-reira), Lisboa, Roma Editora, 1997.

    REVISTA LUSFONA DE CINCIA DAS RELIGIES ANO VII, 2008 / n. 13/14 107-140 107

    P A D R E A N T N I O V I E I R A

  • MIGUEL REAL

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    Em 1918, rompendo em parte o vu negro que cobria a obra de Pe. AntnioVieira, o paraense J. Lcio de Azevedo, com acesso a documentos inditos, inicia oresgate da imagem de Pe. Antnio Vieira, publicando a Histria de Antnio Vieira, emdois volumes3, a primeira grande biografia relativamente rigorosa de Pe. AntnioVieira, bem como trs volumes com a sua correspondncia. Enformado de umamentalidade positivista, que a omisso do atributo de Padre no ttulo denuncia,Lcio de Azevedo no hesita em classificar de delrios, devaneios e desvarios aobra proftica de Pe. Antnio Vieira. Neste sentido, o grande estudo inaugural destavertente interpretativa pertenceu a Raymond Cantel, Prophtisme et Messianisme danslOeuvre dAntnio Vieira4, defendendo constituir a viso messinica de Pe. AntnioVieira o cimento agregador da sua obra. Em 1972, Antnio Jos Saraiva, professorem Amesterdo, tendo acesso a um conjunto de obras de autores judaicos do sculoXVII, destaca as semelhanas entre os espritos profticos de Menasseh ben Israel ede Pe. Antnio Vieira no artigo Antnio Vieira, Menasseh ben Israel e o Quinto Im-prio da revista Studia Rosenthaliana5. Lcio de Azevedo desprezara a importnciado encontro entre estes dois autores em 1648/49. Em 1973, H. Cidade chama a aten-o para a importncia do artigo de A. J. Saraiva do ano anterior em Vieira luz deum recente estudo de Antnio Jos Saraiva6, publicado na Colquio-Letras.

    Estava assim lanada, em 1973, a recuperao da obra proftica de Pe. AntnioVieira. Com efeito, pode datar-se deste ano o ponto de no-retorno do movimentointerior aos estudos vieirinos que levaria posteriormente, em 1997, equivalncia deimportncia entre a obra retrica e a obra proftica de Pe. Antnio Vieira, conside-rando-se que a amputao de uma destas vertentes como fora feito at meados dosculo XX constituiria gravssima diminuio do valor total da obra de Pe. Ant-nio Vieira.

    1997, ano do tricentenrio da morte de Pe. Antnio Vieira, ostenta-se a cons-cincia histrica da equivalncia entre as suas obras retrica e proftica. Com efeito,Arnaldo Esprito Santo publica importantssimo artigo na revista Oceanos (Lisboa,n.os 30/31, Abril/Set.) sobre a estrutura da Clavis Prophetarum e realiza-se o Con-gresso Internacional do Terceiro Centenrio da Morte de Pe. Antnio Vieira, cujostrs volumes de Actas, publicados em 19997 estabelecem solidamente o actual para-digma de equivalncia hermenutica entre a qualidade da oratria e a qualidade daviso messinica e proftica de Pe. Antnio Vieira.

    Em 1994, sai a pblico o importantssimo estudo de Alcir Pcora publicado noBrasil, Teatro do Sacramento: A Unidade Teolgico-Retrico-Poltica dos Sermes de Ant-nio Vieira 8, estabelecendo vnculos ideolgicos efectivos entre a retrica, a teologiae o compromisso social de Pe. Antnio Vieira, tentando deste modo estabelecer uma

    3 Cf. J. Lcio de Azevedo, A Histria de Antnio Vieira, [1918], Lisboa, Clssica Editora, 19923.4 Cf. Raymon Cantel, Prophtisme et Messianisme dans lOeuvre dAntnio Vieira, Paris, Ed. Hispano-

    Americanas.5 Cf. Antnio Jos Saraiva, Antnio Vieira, Menasseh ben Israel e o Quinto Imprio, in Histria e

    Utopia Estudos sobre Vieira, Lisboa, ICALP, 1992.6 Cf. Hernni Cidade, Vieira luz de um recente estudo de Antnio Jos Saraivain Colquio-Letras,

    n 12, Maro de 1973.7 AA. VV., Actas do Congresso Internacional do Terceiro Centenrio da Morte de Pe. Antnio Vieira, [1997],

    Lisboa, Universidade Catlica Portuguesa/Companhia de Jesus, 1999, 3 vols. 8 Cf. Alcir Pcora, Teatro do Sacramento: A Unidade Teolgico-Retrico-Poltica dos Sermes de Antnio

    Vieira, So Paulo, Edusp, 1994.

  • ponte entre os dois campos hermenuticos, o literrio e o teolgico-proftico. Nocam po da historiografia vieirina, Adma Muhana publica no Brasil, em 1995, Os Au -tos do Processo de Vieira na Inquisio9. Pela primeira vez, vm a pblico com explcitoe subido pormenor as diferenas entre a doutrina oficial da Igreja Catlica, repre-sentada pelo Tribunal do Santo Ofcio, e a viso messinica e proftica de Pe. Ant-nio Vieira. Neste mesmo ano, Paulo Borges publica A Plenificao da Histria em PadreAntnio Vieira - Estudo sobre a Ideia de Quinto Imprio na Defesa perante o Tribunal deSanto Ofcio defendendo ser Vieira o grande milenarista portugus10.

    Em 1999, Antnio Lopes, SJ., publica Vieira, O Encoberto11, primeira grande re-cuperao da viso proftica advinda do interior da prpria Companhia de Jesus.Antnio Lopes, SJ., considera a utopia de Pe. Antnio Vieira como Histria levada mais alta realizao. Finalmente, em 2000, Arnaldo Esprito Santo publica pela pri-meira vez a traduo portuguesa do Livro III da Clavis Prophetarum12. Aqui se provaque Pe. Antnio Vieira, aps a libertao da Inquisio, amacia a sua viso profticae messinica do Quinto Imprio, eliminando as teses reprovadas pelo Tribunal doSanto Ofcio. Como manifestao do seu pensamento proftico aps a morte de D.Joo IV, o malogro da ressurreio deste rei e a libertao da priso do Santo Of-cio, Pe. Antnio Vieira reiterou solidamente, nos ltimos anos de vida, na Quinta doTanque, s portas de Salvador, o seu pensamento proftico, registando-o em latim,escrevendo-o ao mesmo tempo que aprimorava os seus sermes para edio. Nose deve separar, assim, como tem sido feito, a viso retrica da viso proftica de Pe.Antnio Vieira. justamente neste sentido que, em 2003, se publica no Brasil o es-tudo de Valmir Muraro, Padre Antnio Vieira. Retrica e Utopia13, que visa, descom-plexadamente, vincular a nova retrica de Pe. Antnio Vieira sua viso messinicae proftica. Deste modo, como se comprovou por este conspecto das hermenuticassobre a obra de Pe. Antnio Vieira ao longo do sculo XX e incios do XXI, resgatadaque fora a sua obra proftica na segunda metade do sculo passado, duas grandesinterpretaes se levantam conflituosamente sobre a importncia do seu funda-mento no interior da cultura portuguesa uma, mais racionalista e europesta, de-fende o vnculo da sua obra literria e proftica a uma raiz barroca; outra, mais na-cionalista, defende o vnculo da sua obra literria e proftica ao providencialismopresente de um modo muito singular na cultura portuguesa. A nossa anlise inclina-se para esta segunda hermenutica.

    Trs absolutismos culturais em meados do sculo XVIIA partir de 1641, regressado da Bahia a Lisboa integrado na comitiva que viera

    jurar fidelidade do Brasil a D. Joo IV, novo rei, reconhece-se na obra do Pe. Ant-nio Vieira o duplo reflexo da atmosfera mental reinante ao longo destes anos que

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    9 Adma Muhana, Os Autos do Processo de Vieira na Inquisio, S. Paulo, Ed.Unesp e Fund. Cultural doEstado da Bahia, 1995.

    10 Cf. Paulo Borges, A Plenificao da Histria em Padre Antnio Vieira - Estudo sobre a Ideia de QuintoImprio na Defesa perante o Tribunal de Santo Ofcio, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1995.

    11 Cf. Antnio Lopes, SJ., Vieira, O Encoberto, Cascais, Principia, 1999.12 Cf. Pe. Antnio Vieira, Clavis Prophetarum, Livro III, [ed. de Arnaldo Esprito Santo], Lisboa, Im-

    prensa Nacioonal Casa da Moeda, 2000.13 Cf. Valmir Muraro, Padre Antnio Vieira. Retrica e Utopia, Florianpolis, Ed. Insular, 2003.

  • compunham o perfil social singular de Portugal de meados do sculo XVII. Por umlado, uma fortssima imagem de decadncia criada pela representao contrastivaentre o Portugal de 1385 a 1580 e o Portugal de meados do sculo XVII, um Portu-gal de bancarrota, de perda de domnios coloniais e da conscincia muito ntida queeuropeiamente no contvamos nem existamos14; por outro lado, aps a Restaura-o, no seguimento do despertar nacional e da renovao da dignidade patritica,motivados pelo orgulho de recuperao da independncia, assiste-se ao esforo colectivo de tentativa de restabelecimento do antigo estatuto poltico-econmicoperdido, fundamentalmente atravs de uma poltica de alianas matrimoniais(D. Teodsio e D. Catarina, com sucessos diferentes) que inserisse diplomaticamentePortugal nos jogos de fora polticos centrados em torno de e contra a Espanha15.

    Assim, se cruzarmos estas duas imagens, a primeira como veculo consciente ereal de humilhao patritica, a segunda como conscincia rigorosa da distncia eco-nmica e social entre o estado de coisas nacional e o prestgio e riqueza de, por exem-plo, um povo pequeno como o holands, que nos saqueava a costa brasileira e nosarrebatava S. Tom e So Paulo de Luanda, compreende-se como estavam criadasna conscincia colectiva portuguesa as condies propiciatrias para a emergnciade foras e correntes extremistas de purificao social.

    Com efeito, a vastssima literatura autonomista compendiada por Hernni Ci-dade16 e Joo Francisco Marques evidenciam como dominantes as posies ideol-gicas de carcter imperativo e intolerante, vinculadas a hipostasiarem maximamentea imagem de Portugal, ultrapassando a sua fase de decadncia e prognosticando umanova fase de glria e xtase. Neste sentido, duas correntes culturais subterrneas emanifestas prevalecem intelectualmente nas duas dezenas de anos seguintes Res-taurao, fundando-se num mesmo quadro imagtico e desenhando os mesmos vn-culos mentais:

    1 A exacerbao de um nacionalismo glorioso, seja enquanto reduto ltimo eu-ropeu de uma ortodoxia de pensamento catlico contra-reformista (Inquisio), sejaenquanto restabelecimento de uma nova nao prspera e abundante prometidapara o tempo de regresso de D. Sebastio [Sebastianismo, como o indicavam as obrasde D. Joo de Castro (neto), Parfrase e Concordncia de algumas Profecias do Bandarra,Sapateiro de Trancoso, de 1603, e de frei Sebastio de Paiva17], seja enquanto projeco

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    14 ...colhe com evidncia que a conservao do reino de Portugal, enquanto ele no busca outro re-mdio, quando menos, muito duvidosa e arriscada. Assim o julgam todos os polticos do Mundo, quepesam fielmente as foras das monarquias e medem os sucessos pelo poder; e de o sentirem assim, nascea pouca correspondncia que os Prncipes da Europa ho tido com este Reino: o Papa no recebendo onosso embaixador; Dinamarca no admitindo a nossa confederao; Sucia no continuando o comrcio;Holanda no guardando amizade; Frana, que a mais obrigada, no nos mandando embaixador assis-tente, Pe. Antnio Vieira, Proposta Feita a El-Rei D. Joo IV, em que lhe Representava o Miservel es-tado do Reino (1643), in Obras Escolhidas, Prefcio e Notas de Antnio Srgio e Hernni Cidade, Lisboa,S da Costa, s/d., Vol. IV, p. 9.

    15 Para a histria do esforo de manuteno da independncia de Portugal, cf. Rafael Valladares, AIndependncia de Portugal. Guerra e Restaurao. 1640 1680, (prefcio de Romero Magalhes), Lisboa, AEsfera dos Livros, 2006.

    16 Cf. Hernni Cidade, A Literatura Autonomista sob os Filipes, Lisboa, Ed. S da Costa, s/d., bem comoJoo Francisco Marques, A Parentica Portuguesa e a Dominao Filipina, Porto, INIC/Centro de Histriada Universidade, 1986.

    17 Cf. Frei Sebastio de Paiva, Tratado da Quinta Monarquia, [prefcio de Arnaldo Esprito Santo; ed.Jos Eduardo Franco e Bruno Cardoso Reis], Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2006.

  • no futuro do lugar de Portugal como condutor do mundo (o Quinto Imprio de Pe.Antnio Vieira, mas tambm dos sacerdotes e frades pregadores, Antnio Bandeira,Antnio de Spnola, Antnio de S, Cristvo de Almeida, Cristvo de Lisboa,Diogo de Areda, Francisco Escobar, Joo da Conceio, Joo de Deus, Jos do Esp-rito Santo, Lopo Soares e Lus de S18). Nos trs casos, evidencia-se a imagem de Por-tugal como sustentada na concepo do estatuto de nao superior, fundamento doProvidencialismo portugus ou porque fidelssima s Escrituras, aos Comentriose s prescries conciliares e papais emanadas a partir do Conclio de Trento, ou por-que nica provida de um rei Encoberto, futuro generalizador de justia e riqueza;

    2 Vinculada anterior imagem e dela derivada, desenvolve-se a necessidadeideolgica de uma purificao social ou, se se quiser, a necessidade de unificaodas estruturas mentais geradora da exaltao de uma doutrina absolutista com aconsequente reconverso/excluso de doutrinas estranhas e minoritrias, seja en-quanto perseguio heresia (Inquisio), seja enquanto nacionalismo egotista emessinico (Sebastianismo), seja enquanto processo comandado por Portugal de di-luio de todas as doutrinas e crenas no Cristianismo (Reino de Cristo Consumadode Pe. Antnio Vieira); nos trs casos, evidencia-se de novo a imagem de Portugalcomo sustentada na concepo do estatuto de nao superior.

    Assim, a obra de Pe. Antnio Vieira coexiste com uma evidente frgil real si-tuao poltica nacional (de novo ameaada de perda de independncia por parte deEspanha e de mutilao de partes do territrio ultramarino pela Holanda) sublimadapor uma forte conscincia nacional. Desta contradio nascer o quadro mental fun-dado nos trs absolutismos que estatuem, cada um a seu modo, no tempo de Pe. An-tnio Vieira, a concepo do estatuto de Portugal como nao superior:

    Proselitismo Ortodoxo: purificao de Portugal pela f catlica (a Inquisio);

    Sebastianismo/Joanismo: purificao de Portugal pelo nacionalismo;

    Quinto Imperialismo: purificao de Portugal pela assuno do seu papelmessinico no advento da nova sociedade justa e santa do Quinto Imprio.

    Estes trs absolutismos constitutivos da mentalidade cultural de meados do s-culo XVII estatuem-se como expresso directa da crise dinstica levantada pelamorte de D. Sebastio em 1578 e pela perda da independncia de Portugal em 1580,da crise econmica que desde os princpios do sculo afectava Portugal, da cons-cincia da impossibilidade financeira e administrativa de se continuar a manter umto extenso imprio, do isolamento internacional a que estvamos votados desde164019.

    Porm, contrariando a viso positivista da histria, estas e outras razes hist-ricas particulares devem ser estatudas como causas prximas, eficientes ou con-junturais do desencadeamento e desenvolvimento de to apurada e momentnea ne-

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    18 Cf. sermonrio de todos estes pregadores em Joo Francisco Marques, A Utopia do Quinto Imprioe os Pregadores da Restaurao , Vila Nova do Famalico, Quasi Editores, 2008.

    19 O Santo Padre s reconheceu a total separao de Portugal do domnio castelhano em 1669, 29 anosdepois da Restaurao.

  • cessidade de purificao religiosa catlica, de to exacerbada vinculao a um ReiEncoberto e de to feroz defesa de um futuro majestoso para Portugal. De facto, estastrs concepes da histria portuguesa, a partir de 1640, integram-se em duas outrasmais antigas, mais fundas, mais permanentes e mais fortemente constitutivas damentalidade portuguesa, a seguir enunciadas.

    1 A mentalidade de Cruzado regenerador do infiel patente nos reis e docu-mentos da I Dinastia cruzada com a mentalidade de Militia Dei desenvolvida pelosTemplrios em Portugal; consequentemente, era possvel identificar imaginaria-mente a purificao do territrio de Portugal, depois da expulso do mouro e do po-voamento catlico, com o novo estado do mundo, o Reino do Esprito Santo, ou seja,com a viso joaquimita do Imprio do Esprito Santo trazida para Portugal pelofranciscano espiritual catalo lvaro de Vilanova e generalizada, a partir de Alen-quer, pela rainha santa Isabel (sc. XIII); esta viso oferece profundas semelhanas,quanto teoria providencialista da Histria, com o Quinto Imperialismo de P. An-tnio Vieira20 e com o sebastianismo, com a diferena de este se vincular exclusiva-mente a um pas21;

    2 A impregnao da mentalidade portuguesa popular de duas constantes cul-turais do povo judeu:

    a. o eterno retorno do ciclo erro-expiao/castigo-perdo, gerador de um es-prito de resignao e passividade face ao futuro22;

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    20 A viso joaquimita do Esprito Santo, assente na evoluo histrica das Trs Idades funde-se hojecom algum grau de indistino com a viso quintoimperialista de Portugal em autores como, por exem-plo, Antnio Quadros, Portugal, Razo e Mistrio, Introduo ao Portugal Arqutipo, Lisboa, Guimares Eds.,1986, 1987, 2 Volumes, e Agostinho da Silva, Dispersos, introd. e org. de Paulo Borges, Lisboa, Ed. Instit.de Cult. e Lngua Portuguesa, 1988, Reflexo Margem da Literatura Portuguesa, Lisboa, Guimares Eds.,1990 (2. ed.; 1., 1958), Ir ndia sem Abandonar Portugal, Lisboa, Assrio & Alvim, 1994, Vida Conversvel,Lisboa, Assrio & Alvim, 1994. Nestes dois autores e nos livros referidos defende-se, hoje, um providen-cialismo portugus de forte carcter quintoimperialista, onde a difuso das armas e da f so substitu-das pela difuso da cultura portuguesa e do modo singular de ser portugus.

    21 Sobre a viso joaquimita da Histria de Portugal, existe de facto uma inconsciente influncia no pen-samento de Vieira, que, por diversas vezes, cita o monge calabrs, mais de memria e no sentido geral dasua obra do que citando livros e passagens: Maria Jos Ferro Tavares, em Bandarra e o Messianismo Ju-daico (in Histria de Portugal, dir. Joo Medina, Amadora, Ed. Clube Internacional do Livro, 1995, vol. VI,p. 35), detecta influncia das ideias joaquimitas em Bandarra; em Antnio Jos Saraiva existe uma refe-rncia mais explcita quando nos informa em Antnio Vieira, Menasseh Ben Israel e o Quinto Imprio,in Histria e Utopia, ed. cit., , p. 81, Nota 21, que D. Joo de Castro, durante a sua estadia em Veneza paraconhecer o famoso 4. falso D. Sebastio, utilizou muitas fontes joaquimitas, em particular a compilao de obrasde discpulos e comentadores de Joachim de Fiore, publicada em Veneza em 1516, com o ttulo Abbas Joachim Mag-nus Propheta. Como a obra de D. Joo de Castro (neto), Parfrase e Concordncia de algumas Profecias do Ban-darra, Sapateiro de Trancoso (1603), foi de vital importncia para a confluncia entre o pensamento sebas-tianista, de que era um entusiasmado crente, e o pensamento proftico do bandarrismo, e como Pe. A. Viei-ra se inspirou, entre vrias fontes, na viso messinica de Bandarra sobre as profecias do Antigo Testamento,ento poderamos encontrar nesta linha relativamente sinuosa a influncia de algumas ideias joaquimi-tas em Pe. A. Vieira; por outro lado, estas ideias poderiam igualmente ter chegado ao seu conhecimentoatravs da obra de frei Bernardo de Brito, que Vieira cita, principalmente a Crnica de Cister.

    22 possvel encontrar nas caractersticas bsicas da personalidade histrica do povo portugus umconjunto de traos semelhantes aos traos judaicos apresentados no texto. Por exemplo, Eduardo Lou-reno, em Labirinto da Saudade, Psicanlise Mtica do Destino Portugus, Lisboa, Ed. D. Quixote, 1978, pp. 51--65, refere um conjunto de traos peculiares ao portugus como, entre outros, humildade, pacincia face adversidade, infinita resignao, inexpugnvel credulidade, que se aproximam indubitavelmente de tra-os tambm peculiares ao povo judaico; por outro lado, Antnio Jos Saraiva, em A Cultura em Portugal,

  • b. compensatoriamente de a., a crena na vinda futura do Messias libertador;propulsor de um novo reinado de paz e justia e gerador de uma viso ma-jestosa do futuro face a um presente resignado.

    Assim,

    Deste modo, as duas correntes culturais absolutistas e salvficas que enformama mentalidade portuguesa de meados do sculo XVII estatuem-se como amplifica-o indirecta nesta conjuntura social e neste tempo histrico do Providencialismocomo fundo permanente da personalidade portuguesa.

    A teoria proftica de Pe. A. Vieira como sntese do conflito entre duas formas

    de providencialismo portugus

    Existe, assim, intrnseco Histria de Portugal, a permanncia de uma viso quese acorda com um destino divino e herico para o povo portugus, uma espcie depulso de salvao que, num primeiro momento, se propaga para o outro (mouro, ne-gro, ndio, chino...), reconvertendo-o doutrina pura. Num segundo momento his-trico, a partir do desastre de Alccer-Quibir, esta pulso de salvao reconverte-seautisticamente sobre si, tomando-se a si prprio (o povo portugus) como necessita-do de salvao (justamente como o povo judaico - de povo eleito libertado e liberta-dor tornou-se povo castigado e errante, esperando no futuro o Messias salvador).

    O Sebastianismo/Joanismo e a Inquisio do sculo XVII so dois exemplos dosegundo impulso providencialista mantendo-se como foi, virado sobre si prprio,

    A viso joaquimita/cruzadstica

    fundem-se { na viso Providencialista da Histria de PortugalA viso judaico-messinica

    PADRE ANTNIO VIEIRA: A ARQUITECTNICA DO QUINTO IMPRIO

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    Teoria e Histria, Livro I - Introduo Geral Cultura Portuguesa, Lisboa, Gradiva, 1994, pp. 81-106, apontaoutro conjunto de caractersticas em que destaca o esprito messinico portugus (Esprito de Cruzada) comoum dos esteios fundamentais da grande marca distintiva da personalidade portuguesa: ser e no ser/estare no estar, justamente semelhante ao esprito diasporizante dos judeus; Teixeira de Pascoais, em O Es-prito Lusitano ou o Saudosismo, Porto, Ed. Renascena Portuguesa, 1912, ou Arte de Ser Portugus, Lisboa,Ed. Delraux (1. ed. 1915), 1978, ou A Era Lusada, Porto, Ed. Renasc. Portuguesa, 1914, ou O Gnio Portu-gus - Na Sua Expresso Filosfica, Potica e Religiosa, Porto, Ed. Renasc. Portuguesa, 1913, exprime igual-mente a aceitao plena da existncia de um messianismo portugus incrustado na Histria de Portugal;do mesmo modo, Agostinho da Silva e Antnio Quadros, nos livros referidos em nota acima, concordamcom a tese do providencialismo portugus semelhante ao providencialismo judaico, alis, Agostinho daSilva tem frases que paralelizam o destino histrico judaico e o nosso, como, por exemplo, ...Deus no podeabandonar o seu outro povo eleito... (in Um Fernando Pessoa, Lisboa, Guimares Eds., 1959, p. 15) referindo-se, obviamente a judeus e portugueses como os dois povos eleitos. Curiosamente, se consultarmos a es-pantosa sntese antropolgica sobre os elementos fundamentais da cultura portuguesa de Jorge Dias noencontramos, nas caractersticas bsicas do povo portugus, traos de aproximao com as caractersti-cas do povo judaico, cf. Jorge Dias, O Essencial sobre os Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesa, Lis-boa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1985.

  • Portugal ser sempre um pas exemplar e puro. Porm, a obra proftica de Pe. An-tnio Vieira diferente. O Quinto Imperialismo de Pe. Antnio Vieira recompe, empleno sculo XVII, o esprito providencialista inicial de salvao do outro patentena I Dinastia e nos Descobrimentos, cruzando-o com o segundo esprito providen-cialista salvando o outro (o mundo, cristianizando-o na totalidade fim ltimodo Quinto Imprio), salvamo-nos a ns prprios.

    Assim, se evidencia como a obra de Pe. Antnio Vieira e a sua doutrina do Im-prio de Cristo Consumado nascem como confluncia entre o primeiro e o segundoimpulsos ou espritos providencialistas, ou seja e concretamente, a sua doutrina fazconfluir:

    1 em 1642 no Sermo dos Bons Anos: o Sebastianismo no Joanismo;

    2 em 1648/9 aps o contacto com Menasseh bem Israel: o Judasmo no Joa-nismo;

    3 em 1659 Em Esperanas de Portugal. Quinto Imprio do Mundo: o Joanismo nadoutrina do Quinto Imprio;

    4 1643/44 a Inquisio comea a investigar as suas teorias pr-joanistas e pr-judastas(11).

    Em sntese:

    SEBASTIANISMO

    JOANISMO P. A. VIEIRA/QUINTO IMPERIALISMO

    JUDASMO

    Com efeito, Pe. Antnio Vieira chega a Lisboa em 1641 como um dos trs repre-sentantes do testemunho de fidelidade da colnia brasileira Restaurao de Por-tugal sucedida em 1 de Dezembro de 164023. Pe. Antnio Vieira tem 33 anos. Entreos seus diversos sermes pregados em S. Salvador da Baa e outras pequenas loca-lidades do serto brasileiro s o Sermo de S. Sebastio deixa antever a possvel emer-gncia de um forte esprito proftico no seu pensamento pessoal. Pe. Antnio Vieiraencontra em Lisboa um ambiente social e mental de grande efervescncia em tornoda proclamao de D. Joo IV e da defesa da independncia. uma efervescncia queculmina no s a libertao de 60 anos de domnio castelhano como, igualmente, osmais gloriosos mas mais difceis cento e cinquenta anos da histria de Portugal. Olimite mximo atingido pela expanso do Imprio e a incapacidade administrativae militar de um controle rigoroso de todas as suas reas territoriais, bem como a ape-tncia mercantil dos povos europeus desencadeadores da segunda expanso (Ho-landa, Inglaterra, Frana), tinham criado, no reinado de D. Joo III, uma desorienta-o social e mental expressa tanto no arrojo da modernizao da Universidade de

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    23 Cf. Lcio de Azevedo, Histria de Antnio Vieira, [1918], Lisboa, Clssica Editora, 19923,vol. I,pp. 47ss.; igualmente, Hernni Cidade, Padre Antnio Vieira. A Obra e o Homem, Lisboa Arcdia, 1963[2. ed.: 1979], pp. 46ss.

  • Coimbra (posteriormente travada), quanto na insistncia do estabelecimento da In-quisio como modo oficial de filtrar e de eliminar as doutrinas exteriores oficia-lidade eclesial catlica. Quanto maior o estado de decadncia do Imprio mais os ne-gcios individuais superam a ordem do Estado, mais cresce nas conscincias catli-cas a necessidade de um retorno ordem inicial evangelizadora dos Descobrimen-tos. A educao herica, ortodoxa e absolutista de D. Sebastio24, fundada nos ideaisde proselitismo catlico e de uma viso magnnima da histria de Portugal, tinhagerado na estrutura mental do jovem rei tanto o desejo de emulao dos antigos fei-tos dos portugueses quanto a necessidade de o provar atravs de uma empresa ines-quecvel que pudesse fazer retornar Portugal aos antigos tempos de D. Joo II e D.Manuel I.

    O desastre de Alccer Quibir, o estado de decapitao financeira do reino e oenigma relativo veracidade da morte de D. Sebastio, seguido da perda da inde-pendncia, geraram uma miscelnia cultural e social tendente a acentuar os indciosde uma vaga esperana de que D. Sebastio no teria de facto morrido e, presumi-velmente, aps ter expiado o seu erro numa peregrinao Terra Santa, regressariapara restabelecer em Portugal o esprito de justia e de bem-estar25. O aparecimentode quatro falsos D. Sebastio entre 1584 e 1602 constitui prova da existncia gene-ralizada desta esperana messinica concentrada em D. Sebastio. Justamente nesteltimo ano, frei Bernardo de Brito publica a Crnica de Cister, em que afirma ter en-contrado em 1597, no cartrio do mosteiro de Alcobaa, um pergaminho em latim,jurado por D. Afonso Henriques e assinado por S. Teotnio, confessor do rei, e pelosbispos de Braga e de Coimbra, no qual se narra a apario e anunciao de Cristo aD. Afonso Henriques na noite anterior batalha de Ourique. Relata-se neste perga-minho que Cristo aparecera em sonho a D. Afonso Henriques, enviando-lhe poste-riormente um velho ermito que lhe dissera:

    Senhor, tende um nimo cheio de confiana, porque sem dvida vencereis e nosereis vencido nesta batalha; sois particular mimosos de Deus, e sobre vs e vossosdescendentes tem postos os olhos de sua misericrdia at dcima sexta gerao, naqual se diminuir uma descendncia, e nela assim diminuda e quase extinta, porele os olhos e ver o que mais lhe convm...

    O prprio Cristo anuncia a D. Afonso Henriques:

    Tem confiana, Afonso, porque no s vencers esta batalha, mas todas as maisem que pelejares contra os inimigos da Cruz. Achars tua gente pronta e animosapera a batalha; e pedindo-te que entres na peleja com nome d erei, no lhe ponhas d-vidas em nada, mas concede livremente quanto te pedirem, porque eu sou o funda-dor e o destruidor dos Imprios e Reinos, e quero fundar em ti e em tua gerao um

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    24 Cf. Antnio Machado Pires, D. Sebastio e O Encoberto, Lisboa, Ed. Fundao Calouste Gulbenkian,19822, p. 52. Igualmente, Hernni Cidade, A Literatura Autonomista sob os Filipes, Lisboa, Ed. S da Costa,s/d., p. 173.

    25 Sobre o desaparecimento-morte de D. Sebastio, os boatos em Lisboa e a propagao da crena nasobrevivncia fsica do rei em Alccer-Quibir, cf. Miguel D`Antas, Os Falsos D. Sebastio, introd. e notasde Sales Loureiro, Odivelas, Heuris, s/d., complementado com Annimo, Crnica do Xarife Mulei Maha-met e D`El-Rei D. Sebastio, 1573 -1578, introd. e notas de Sales Loureiro, Odivelas, Heuris, 1978.

  • Imprio, pera que meu nome seja levado a gentes estranhas. E pera que teus descen-dentes conheam de cuja mo tm o Reino, compors o escudo de tuas armas do preocom que eu comprei o gnero humano (e so as cinco chagas), e daquele por que fuicomprado dos judeus (em que entende os trinta dinheiros), ser-me- este Reino san-tificado, pera mim prprio, puro pela f e amado pela piedade.26

    Comprovadamente falso, at pela textura do pergaminho usado, o texto de Ber-nardo de Brito se, por um lado, vem dar corpo a uma vaga lenda existente desde osculo XV sobre o destino providencial da monarquia portuguesa, vem conferir, poroutro, legitimidade poltica s reivindicaes surdas de independncia nacional. Si-multaneamente, e sob um fundo de apagamento econmico-social de Lisboa, cujoantigo esplendor martimo era agora substitudo pelo de Madrid, os astrlogos des-cobrem uma conjuno mxima de planetas em 1603 que deixa adivinhar substan-ciais alteraes de ordem temporal e espiritual. Manuel Bocarro Francs escreveu,em 1624, uma obra dedicada a esta conjuno planetria: Discurso que o Doutor Ma-nuel Bocarro, Mdico, Filsofo e Matemtico Lusitano, fez sobre a conjuno mxima, que secelebrou no ano de 1603, 31 de Dezembro. Nesta obra, M. Bocarro Francs declara:

    Assim ao Imprio Romano seguiu-se a Monarquia Maoumetana e se pode con-jecturar que se h-de levantar a ltima e mais poderosa Monarquia que provarei serLusitana (...) Alm de razes astrolgicas por donde se conjectura que o Imprio Lu-sitano se h-de levantar com Suprema Monarquia (...) acho alguns vaticnios prof-ticos que vares santos e pios deixaram escrito sobre este particular.27

    Sobre esta mesma conjuno planetria de 1603 e para se constatar como a suainterpretao proftica contribuiu para a efervescncia mental que Pe. Antnio Vieiraveio encontrar em Lisboa em 1641 - , escreveu, em 1654, um autor annimo:

    ... que sairia das partes mais Ocidentais um prncipe que se intitularia Rei dos Cris-tos, de um reino o mais pequeno e menos poderoso do mundo que Deus escolheriapara destruio do Turco. O qual Rei, Deus escolheria para esta empresa sendo omenos poderoso para mostrar que obrava nele o poder divino, no o brao humano.Ele faria liga com os prncipes catlicos e destruiria o Turco. Nele principiaria novoImprio e o do Turco acabaria. Pergunta-se logo em que tempo tinham complementoestas profecias. Responde a profecia que da era de 1645 at de 1660 se veriam cum-pridas, porque durante estes quinze anos continuaro os efeitos da conjuno mxima(de 1603).28

    Outro autor annimo, escrevendo depois de 1669, descreve os acontecimentosextraordinrios acontecidos na terra e no cu justificadores do desastre de Alccer-Quibir e a queda da Lusitnia:

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    26 Bernardo de Brito, Crnica de Cister, Livro III, Cap. II, apud Hernni Cidade, A Literatura, ed. cit.,pp. 163 165 (traduo do latim de Hernni Cidade).

    27 Transcrito de Rui Grilo Capelo, Profetismo e Esoterismo - A Arte do Prognstico em Portugal nos Scu-los XVII e XVII, Coimbra, Minerva, p. 68.

    28 Idem, ibidem, p. 69.

  • Apareceu na praia junto ao forte poucos dias antes da infeliz jornada de fricaum grande peixe espada que do mar lanou a terra como aviso: numa parte tinha es-culpido um azorrague e aoite, na outra muito ao claro a era de 1578, tempo que deuprincpio satisfao das nossas culpas (...) comeou a aparecer uma estrela nova (em1604), nunca vista, que durou at 29 de Novembro, que foi coisa de se admiraremmais os matemticos do que quantos sinais at ento tinham visto e comeou a de-saparecer pelo poente de fronte da barra de Lisboa.29

    Em 1615, Joo Sardinha compila e d estampa, em Curiosidades Matemticas, aobra de seu tio Frei Martinho de S. Paulo, de Coimbra, onde este tende a justificarastrologicamente o passado recente de Portugal atravs do aparecimento e desapa-recimento de cometas:

    (O cometa de 1577) ... o qual se fez junto do p direito do Setentrio e feneceu naconstelao de Pgaso, a quem se seguiu logo a morte de El-Rei D. Sebastio (...) emfrica, com destruio do seu exrcito e cativeiro do Reino Portugus na Coroa deCastela. (...) (O aparecimento de cometas pode prognosticar) ...grandes mudanas ealvoroos, discenses e calamidades (...), causas de mortes de Reis, prncipes e sbios(...), motins, alvoroos, levantamentos, feitos horrendos e espantosos (...), no Vero- esterilidade (...), no Inverno - leis e costumes novos (.-..) cometa em tempo deeclipse - destruio de algum reino, imprio ou provncia (...), cometa em tempo deconjunes de Saturno, Jpiter e Marte - males durveis, dissdios e devastaes (...),cometa de tarde - enfermidades, esterilidades, terramotos e inundaes (...). A natu-reza dos efeitos se pode conhecer pelos planetas, signos e estrelas com quem se juntao cometa (...). Poucas vezes se viu que depois se no seguisse morte de prncipes eoutras muitas mortes, pestes, guerras, runas de cidades e reinos.30

    Em 1618, o mesmo Manuel Bocarro Francs, no seu tratado sobre o apareci-mento de cometas no cu neste mesmo ano, desenha cenrios apocalpticos sobre aEuropa em futuro prximo:

    Por ocupar este cometa o signo da Libra e ser gerado por Saturno, inimigo dognero humano e proceder no nascimento do Sol, denota (segundo Ptolomeu) a mortede um grande monarca das partes ocidentais, mortes extraordinrias e arrebatadasde senhores prncipes e nobres, inquietao de Reinos, mudana deles e de muitos es-tados (e em Espanha particularmente), como tambm queda de muitos poderosos (...)Em Itlia, terra de Romanos, denota muitas guerras e civis conflitos e acabarem-seuns com os outros (...) nas partes Orientais se levantaro os servos contra os seussenhores (...) (denota tambm) grandes guas e tempestades e enchentes do Tejo, nosquais se afogaro muito gado e muitas pessoas.31

    Em 1624, Manuel Bocarro Francs publica um longo poema, Anacefaleose da Mo-narquia Lusitana, em 131 oitavas dedicado a Filipe III de Portugal, mas de carcter se-

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    29 Idem, ibidem, p. 73.30 Idem, ibidem, p. 74.31 Idem, ibidem, pp. 75 76.

  • bastianista. O autor preso e -lhe apreendido o manuscrito de Anacefaleose IV de-dicado ao Duque de Bragana, D. Teodsio, pai do futuro D. Joo IV. Liberto, exila-se na Itlia e faz publicar este manuscrito, onde revela que o Prncipe Encoberto regressar at 100 anos depois do nascimento de D. Sebastio, portanto at 165432.D. Francisco Manuel de Melo reala que os sentimentos sebastianistas, atravs dospregadores jesutas de vora, tinham tido um papel determinante da revolta doManuelinho, em vora, em 163733. Avolumava-se, assim, a existncia de uma fortecorrente popular e intelectual descontente com o estado de coisas subjacente ao domnio espanhol, bem como um forte desejo de concretizao rpida da libertaode Portugal do domnio castelhano. Este corpo confuso e desordenado de progns-ticos e de protestos desembocava directamente na aluso ao rei ou Prncipe Enco-berto que viria libertar o seu povo e este Prncipe no podia deixar de ser D. Se-bastio, cuja morte no era aceite por amplos sectores da sociedade portuguesa.

    crescente literatura de carcter sebastianista, cujo reflexo nas classes letradascorresponde a um sentido desejo popular de independncia, de efectiva esperananuma personagem redentor, conflui a efervescncia messinica prpria do povojudeu, foradamente convertido ao cristianismo desde o reinado de D. Manuel I. Defacto, todo o sculo XVI portugus subterraneamente atravessado por uma vagaexpressiva de messianismo judaico, fruto dos decretos de expulso de 1492, em Es-panha, e 1496/7, em Portugal34. A extrema humilhao a que ento fora votado opovo judaico despertou em alguns dos seus membros a convico milenria do in-cio dos fins dos tempos e da emergncia escatolgica do Messias que a todos leva-ria para a Terra Prometida.

    justamente no ano seguinte ao da morte do ltimo falso D. Sebastio e ao dapublicao por frei Bernardo de Brito do manuscrito que garantia a legitimidade pro-videncial de D. Afonso Henriques, que surge, em Paris, o livro Parfrase e Concor-dncia de Algumas Profecias de Bandarra, Sapateiro de Trancoso, de D. Joo de Castro(neto), que, do ponto de vista dos grupos sociais letrados, influencia fortementetodo o sculo XVII portugus. Nesta obra, identificando o Encoberto com D. Sebas-tio, D. Joo de Castro faz confluir o sebastianismo, de que era um entusiasmado de-fensor, inclusivamente tentando provar, em Veneza, que o quarto falso D. Sebastioera realmente o prprio rei35, com o messianismo judaico atravs da interpretao se-bastianista das Trovas de Bandarra. Com a interpretao de D. Joo de Castro, o se-bastianismo ganha a sua bblia nas Trovas do Bandarra e ser esta interpretao que,cinquenta anos mais tarde, aps o regresso da sua segunda viagem Holanda, Pe.Antnio Vieira usar para legitimar profeticamente, face Inquisio, o anncio doQuinto Imprio do Mundo.

    Com base em profecias de S. Isidoro de Sevilha, em coplas avulsas de Frei Pedrode Frias e de Frei Joo de Rocacelsa, que circulavam oralmente na raia beir hisp-nico-portuguesa, e no ambiente de alvoroo religioso-social que atravessava as co-munidades judaicas residentes em Trs-os-Montes e nas Beiras, o sapateiro re-mendo (sapateiro de calado velho), folgazo (Bandarra tem o significado de alegre,

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    32 Cf. Antnio Machado Pires, op. cit., pp. 79 80.33 Cf. D. Francisco Manuel de Melo, Altercaes de vora, Lisboa, Portuglia Editora, 1967, pp. 34-37.34 Cf. Maria Jos Pimenta Ferro Tavares, Os Judeus em Portugal no sculo XV, I vol., Lisboa, Universi-

    dade Nova de Lisboa, 1982, II vol., Instituto Nacional de Investigao Cientfica, 1984.35 Cf. Antnio Machado Pires, op. cit., p. 79.

  • ligeiro, folgazo), Gonalo Anes, de Trancoso, com jeito para a criao espontneade quadras populares, comps oralmente, entre 1530 e 1540, um conjunto de trovasque sintetizava, indubitavelmente, uma perspectiva messinica e judaica do fim dostempos36. Designado por idiota, que significava rstico, inculto, mas no analfabeto,Gonalo Anes baseava os seus versos no que ouvia nas homilias de domingo, numaou outra leitura avulsa do Antigo Testamento, compondo assim uma mistura sin-crtica de partes importantes da Bblia Velha, atribuindo maior importncia s pro-fecias do Livro de Daniel, ao desaparecimento das 10 Tribos de Israel e ao Leo deJud. Em 1537, Heitor Lopes, cristo converso, vizinho de Bandarra, ter trasladadoas Trovas deste, tornando-as pblicas, deixando-as copiar e circular de mo em mo.Em 1538, um cristo-novo de Castelo Branco ou da Covilh procura Bandarra paracom ele conversar sobre o contedo proftico das Trovas. Francisco Mendes, de Se-tbal, escreve-lhe. Em vora, uma cpia dos seus versos chegou ao conhecimento deAfonso Medina, desembargador da Mesa da Conscincia, que abre processo inqui-sitorial. Beira Alta, Beira Baixa, Estremadura, Alto Alentejo, em dois anos as cpiasmanuscritas abundam e circulam com uma surpreendente velocidade, possivel-mente devido s ntimas ligaes entre os membros das comunidades judaicas, j quea acusao do tribunal da Inquisio a de judasmo (para alm da do lanamentode novidades que causam alvoroo). Em 1541, Bandarra absolvido pelos ju-zes, mas proibido de compor novas trovas e intimidado a no mais escrever sobreas Sagradas Escrituras nem fazer ou anunciar profecias. Em 1581, as Trovas, aindaque no impressas, foram includas no catlogo dos livros proibidos, o que prova queelas continuavam clandestinamente a circular em forma manuscrita.

    Em 1578, D. Sebastio perde a vida na batalha de Alccer-Quibir e, em 1580, Por-tugal perde a independncia. As profecias de Bandarra adquirem ento uma novadimenso social e poltica. Originadas entre o humilhado e silencioso povo judaico,que fora expulso de Castela pelos Reis Catlicos e entrara em Portugal, no reinadode D. Joo II37, para uma estada de oito meses antes de partir para o estrangeiro, e,posteriormente, com D. Manuel I, vira-se forado reconverso, as Trovas simboli-zam poeticamente tanto o estado de degradao moral de quinze sculos de cristia-nismo quanto o esboroamento econmico-social de Portugal de ento, desprovidode capitais suficientes para sustentar o Imprio, com o regresso de naus do Orientea abarrotarem de mercadoria para momentaneamente socorrerem o tesouro real. Apoltica de expanso e descoberta terminara com D. Manuel I, sucedendo-se uma po-ltica de rapina comercial no diferente da da holandesa e apenas civilizacional-mente compensada pelo herico esforo, quase sempre individual ou de grupos res-tritos, de evangelizao missionria. Bandarra profetiza aos judeus da Beira e, de-pois, atravs de Heitor Lopes, aos judeus portugueses, o anncio do Messias e a con-sumao para breve do Quinto Imprio.

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    36 Especificamente sobre o bandarrismo, cf. Maria Jos Pimenta Ferro Tavares, Bandarra e o Mes-sianismo Judaico Portugus, in Histria de Portugal, ed. cit., Antnio Carlos Carvalho, Messianismo, ANossa Pesada Herana, in Ler, Ed. Crculo de Leitores, N. 29, Inverno de 1995, pp. 70-75, Elias Lipiner,O Sapateiro de Trancoso e o Alfaiate de Setbal, Rio de Janeiro, Imago Ed., 1993, Antnio Machado Pires, D.Sebastio e O Encoberto, Lisboa, Ed. F, Calouste Gulbenkian, 19822, Antnio da Silva Neves, Bandarra - OProfeta de Trancoso, Mem Martins, Ed. Europa-Amrica, 1990.

    37 Cf. Maria Jos Pimenta Ferro Tavares, A expulso dos judeus de Portugal, in Histria de Portu-gal, ed. cit., pp. 25 34.

  • Contra a viso ontolgica de Oliveira Martins38, que interpreta o messianismo dasTrovas e a sua fuso com o sebastianismo como a manifestao mais especfica dognio da raa portuguesa, pensamos ter razo Antnio Srgio quando, realistica-mente, opera uma identificao, na conscincia nacional de seiscentos, entre as pro-fecias de Trancoso e a aspirao independentista nascida pelo descalabro de Alc-cer-Quibir39: caso Portugal no tivesse perdido a independncia, as Trovas difcil-mente ultrapassariam o mbito do messianismo cultural judaico. Antnio Srgiotorna claro que o mito do Encoberto surge primeiro em Espanha, cerca de 1520, atra-vs de textos atribudos a Santo Isidoro de Sevilha e a Merlim; em 1523, um judeusublevara algumas populaes de Valncia, que o seguiam como a um Redentor e odesignavam por O Encoberto; este caudilho de Valncia, enforcado pelas autorida-des, deixara alguns seguidores, cada um a si prprio se designando por O Encobertoredivivo. Um padre aragons, frei Joo de Rocacelsa, comps vrias coplas ondeanuncia igualmente a chegada do Encoberto. Simultaneamente, em Portugal, o al-faiate de Setbal Lus Dias anuncia-se como o Redentor. No de estranhar, assim,que Bandarra, em Trancoso, terra raiana e fortemente judaica, vaze a sua inspiraopotica glosando temas bblicos do Antigo Testamento que profetizavam o reino dalibertao e da abundncia para um prximo futuro. Este incipiente e difuso movi-mento messinico, de fundo lrico, evidencia as dificuldades econmicas ou mesmoa impossibilidade de sustentar o imprio mundial que os reinos da Pennsula haviamedificado e, face ao esgotamento dos recursos e decadncia prevista, restava so-mente sonhar ou re-equacionar mentalmente o paraso que fora perdido quando aPennsula fora pacificamente terra de trs religies.

    Porm, diferentemente de Espanha, cujo gesto messinico se perdeu historica-mente, em Portugal a perda da independncia veio plasmar as profecias de Bandarrano desejo popular de independncia, doando corpo mstico aos rumores de sobre-vivncia de D. Sebastio em Marrocos e da sua peregrinao Terra Santa como ex-piao do desastre nacional que fora Alccer-Quibir.

    As Trovas, independentemente do real ou falso valor proftico que podem pos-suir e independentemente da inteno do seu autor, transformaram-se rapidamentenuma espcie de materializao concreta da comprovao factual que o esprito ju-daico necessitava para solidificar a aceitao generalizada da apario do Messiasnos prximos tempos. Um conjunto de outros acontecimentos em outras localidadesdo reino vieram dar mais fora, por um lado, crena messinica e, por outro, aocriptojudasmo praticado entre os cristos-novos. Diogo de Leo de Castanilha, sa-pateiro de Miranda do Douro, declarava que o Messias regressaria entre 1540 e 1544e que conduziria o seu povo a Jerusalm. Morreu na Inquisio em 1544. Tambmpara este sapateiro de Trs-os-Montes, o Messias identificava-se com o Encoberto maneira de Bandarra. Com base em clculos extrados do Livro de Daniel, Diogo Men-des, tabelio de Miranda e discpulo de Diogo de Leo, alargava para 1575 a data doregresso do Messias. Em 1530, o alfaiate setubalense Lus Dias40, que prega velada-mente entre Setbal e Lisboa, intitulou-se o Messias, prometendo para breve o fim

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    38 Cf. Oliveira Martins, Histria de Portugal, Lisboa, Guimares Editores, 1951, vol. II, pp. 79 ss.39 Cf. Antnio Srgio, Interpretao no romntica do Sebastianismo, in guia, Porto, Ed. Renas-

    cena Portuguesa, II srie, 1917, p. XI. 40 Elias Lipiner, O Sapateiro de Trancoso e o Alfaiate de Setbal, Rio de Janeiro, Imago Ed., 1993, obra

    que opera um paralelismo muito interessante entre Bandarra e Lus Dias.

  • do mundo; em 1542, a Inquisio condenou-o morte pelo fogo; entretanto, LusDias rene em torno de si um conjunto de crentes, entre os quais Francisco Mendes,o mdico do Cardeal D. Afonso, irmo do Inquisidor-Mor, Cardeal D. Henrique.Joo Lopes, caixeiro em Lisboa (caixeiro designava ento o mister de feitura de bom-bos) e outro Francisco Mendes, boticrio em Setbal, sequazes de Lus Dias, tinhamtido relaes com Bandarra, quando este viera a Lisboa. de pressupor que umagrossa fatia dos cristos-novos de Lisboa tivesse aceite Lus Dias por Messias, j queMestre Gabriel, rabi oculto dos cristos-novos, segundo testemunhos na Inquisio,o aceitava como tal (Mestre Gabriel fugiu do reino quando chamado a depor In-quisio). Lus Dias, quando interrogado pela Inquisio sobre a existncia de doisfilhos seus circuncidados, responde que eles assim j tinham nascido, o que era con-siderado um sinal prodigioso entre os judeus. Lus Dias foi queimado, em 1541, pelaInquisio.

    Em 1525, tinha chegado a Portugal o judeu David Rubeni, vindo de uma confe-rncia com o Papa Clemente VII. David Rubeni apresentava-se como irmo de Joseph,que governava na Arbia um reino de 300 000 judeus. Vinha pedir ajuda Cristan-dade na luta contra o Turco e trazia igualmente como objectivo a unificao dos ju-deus da Dispora. Recebido por D. Joo III, que lhe prometer auxlio, nunca con-cretizado, a presena de David Rubeni em Portugal fez efervescer a mente dos cris-tos-novos que anteviam na sua visita e no seu priplo pela Europa uma espcie demensagem do Messias, j que a existncia de um reino judeu na Palestina pressupunhaa existncia de um Messias que o governasse. Diogo Pires, cristo-novo e escrivo daCasa da Suplicao de D. Joo III, fazendo-se circuncidar, fez-se discpulo de Rube-ni e tomou para si o nome hebraico de Solomon Molco (ou Molho ou Molcho). Sa-lomo viajou por Itlia, Salnica, Turquia e Palestina, congregando comunidades dejudeus sefarditas e anunciando o aparecimento do Messias para o ano de 1540.

    No sculo XVII, paralelo ao Sebastianismo, emergiu um movimento messinicoque veio abalar a comunidade sefardita espalhada pelo Mediterrneo e Europa Cen-tral - o Sabatismo, de Shabbatai Zevi, judeu de Esmirna, na Turquia, nascido em 1626,e descendente de judeus peninsulares. Shabbatai estava convencido de que o ano de1666 marcaria o fim dos tempos e que ele prprio, dotado de uma personalidade ms-tica, com alteraes de personalidade, era o Messias. E assim se anunciou, percor-rendo a Terra Santa, onde foi anematizado, casando com uma prostituta no Cairo elanando um movimento redentor que se estenderia a todas as comunidades sefar-ditas, mesmo as europeias. Em 1666, porm, tendo sido preso pelo sulto turco,Shabbatai, sob pena de ser morto, abjura do judasmo e converte-se ao Islo.

    Esta a atmosfera mental que Pe. Antnio Vieira vem encontrar em Portugal em1641: um judasmo flor da pele que, a partir de 1603, com a interpretao das Tro-vas do Bandarra por D. Joo de Castro (neto) tinha sido incorporado ou fundido nosebastianismo, e um pas recm-libertado de Castela, cujo fervor patritico inundavatodos os discursos. A imagem de Bandarra encontrava-se exposta na S de Lisboa41,como se ele tivesse sido um santo, e neste mesmo ano de 1641 D. lvaro de Abran-ches, governador da Beira, levanta novo sepulcro para o Bandarra na Igreja de S. Pe -

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    41 Cf. Adma Muhana, Os Autos do Processo de Vieira na Inquisio, S. Paulo, Ed.Unesp e Fund. Cultu-ral do Estado da Bahia, 1995, p. 54.

  • dro da vila de Trancoso42. D. Vasco Lus da Gama, V Conde da Vidigueira e I Mar-qus de Nisa, embaixador de D. Joo IV em Paris, e, posteriormente, amigo dePe. Antnio Vieira, prepara de Frana a edio das Trovas do Bandarra, que sero publicadas em Nantes, em 1644. Esta edio cuidadosamente encenada para queum conjunto de versos seja interpretado de modo a se identificar o novo rei por acla-mao D. Joo IV com o Prncipe Encoberto. Nasce assim o joanismo como substi-tuto do sebastianismo, que Pe. Antnio Vieira comungar fortemente, utilizando osmesmos argumentos inscritos nesta edio das Trovas.

    Em 1 de Janeiro de 1642, meses depois de ter chegado a Lisboa, o Sermo dos BonsAnos, pregado por Pe. Antnio Vieira na Capela Real, marca, neste autor, a emer-gncia da aceitao terica do providencialismo portugus em forma de profetismojoanista. Todo o Sermo atravessado por uma concepo ontolgica do tempo se-gundo o qual existe neste uma espessura de sinais profticos condutores reali zaode acontecimentos segundo momentos divinamente pr-determinados: a. sinais na-turais (cometas, estrelas, conjunes planetrias, por exemplo); b. revelaes pes-soais (os profetas, por exemplo); c. o paradigma escondido da Sagrada Escritura,que, para alm dos aspectos religiosos e morais revelados, de obrigatoriedade uni-versal e intemporal, dever ser interpretado segundo a circunstancialidade histricaconcreta. A arte do prognstico , assim, a arte da conjuno destes trs nveis de re-velao num acontecimento singular (neste caso, o da Restaurao de Portugal e oda aclamao de D. Joo IV). O Sermo dos Bons-Anos justamente o primeiro textode Antnio Vieira onde esta arte de evidncia proftica manifestada. Possui ele umobjectivo claro: se o que foi profetizado j em parte se cumpriu (segundo a leiturajoanista das Trovas do Bandarra da edio de Nantes e a leitura das palavras da apa-rio de Cristo a D. Afonso Henriques, segundo Bernardo de Brito), o que ainda nose cumpriu segundo a profecia igualmente se cumprir, tal como Santa Isabel, primada Virgem Maria, igualmente acreditou que todas as profecias do Arcanjo se cum-pririam, embora s uma estivesse cumprida, a gravidez espiritual de Maria43. E o quefalta cumprir-se? anunciado em outro pargrafo do mesmo Sermo: os portugue-ses sero vencedores de sangue de hereges na Europa, sangue de mouros na frica, san-gue de gentios na sia e na Amrica, vencendo e sujeitando todas as partes do Mundo a ums Imprio, para todos em uma coroa as meterem gloriosamente debaixo dos ps do sucessorde S. Pedro. Assim o contam as profecias, assim o prometem as esperanas, assim o confir-mam estes felizes princpios44. Esta frase, proferida no dia 1 de Janeiro de 1642,constitui no s a expresso directa da aceitao do providencialismo e do profetismopor Pe. Antnio Vieira como, igualmente, a expresso ainda indirecta do que maistarde, a partir de 1649, no regresso de Holanda, constituir a teoria do Quinto Im-prio do Mundo, o Reino de Cristo Consumado.

    Face situao financeira catastrfica de Portugal, Pe. Antnio Vieira pregou, emSetembro de 1642, aos trs estados da Corte para subvencionarem o tesouro real nopagamento da defesa militar contra Espanha. Em 1643, Pe. Antnio Vieira redige,com o seu habitual sentido radical e proftico, uma proposta de soluo econmicapara o reino a D. Joo IV: a soluo encontrava-se justamente nos mercadores judeus

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    122 REVISTA LUSFONA DE CINCIA DAS RELIGIES

    42 Cf. Antnio Machado Pires, op. cit., p. 80.43 Pe. Antnio Vieira, Sermo dos Bons-Anos, in Obras Escolhidas, Prefcio e Notas de Antnio Sr-

    gio e Hernni Cidade, Lisboa, Ed. S da Costa, Vol X, p. 184.44 Idem, ibidem, pp. 188 189.

  • que tinham sido expulsos de Portugal e que faziam progredir as cidades e naespara onde se tinham exilado, como, por exemplo, a Holanda45.

    Assim, aps Pe. Antnio Vieira, em 1 de Janeiro de 1642, ter tomado partido en-tusiasmado pelo sebastianismo em forma de joanismo, um ano e pouco volvidos,em 3 de Julho de 1643, faz confluir quela tese proftica o dinheiro e o esforo dosjudeus. Por uma via que alguns historiadores tm considerado oportunista, no sen-tido de que apenas o dinheiro dos judeus interessaria a P. Antnio Vieira, posioesta, alis, fortemente criticada, e com razo, por Antnio Jos Saraiva46, Pe. Ant-nio Vieira aproxima-se pela primeira vez das teses judaicas, vendo na gente danao um povo laborioso, enriquecedor das comunidades onde se insere e, o maisimportante face atmosfera religiosa de Portugal, em nada pervertor dos costumestradicionais da Igreja Catlica (at em Roma existem sinagogas, refere o autor).Nesta fase, no so ainda as ideias judaicas que cativam o pensamento de Pe. Ant-nio Vieira, mas o capital mercantil dos judeus; no entanto, ser por esta via que Pe.Antnio Vieira se aproximar dos senhores judeus de Ruo, ser por esta via que ne-gociar emprstimos para a coroa de Portugal com Duarte Silva, cristo-novo de Lis-boa (que, alis, ser preso pela Inquisio) e ser, por esta via, que negociar capi-tais e crditos para D. Joo IV em Haia e Amesterdo.

    Porm, Pe. Antnio Vieira revela, no texto desta proposta, que j tem conheci-mento das Trovas de Bandarra. Tentando convencer D. Joo IV e os elementos doConselho Real, Pe. A. Vieira declara:

    que ... alm de ser de f que toda esta nao [judaica] se h-de converter e conhecera Cristo, as nossas profecias [que profecias seno as de Bandarra?] contam estafelicidade entre os prodigiosos efeitos do milagroso reinado de Vossa Majestade; por-que dizem que ao rei encoberto viro ajudar os filhos de Jacob e que por meio destesocorro tornaro conhecimento da verdade cde Cristo, a quem reconhecero e adora-ro por Deus.47

    Os filhos de Jacob ajudaro Portugal e atravs desta ajuda tomaro conheci-mento das verdades de Cristo, convertendo-se. Ora, este texto o primeiro (1643) emque Pe. A. Vieira admite, ainda que incipientemente e sem o carreamento de provasposteriores, uma ideia que se conservar at ao fim da sua vida: judeus e cristos es-peraro juntos e harmonizados o fim dos tempos sob o Imprio temporal de um ssenhor e Imperador temporal e um s Imprio espiritual de Cristo sob o domniopapal.

    Face situao de penria financeira em que o reino se encontra, face situaode prolongada demora da guerra de Espanha contra a Frana, que no permite queas tropas castelhanas se desloquem para Portugal, face perda de possesses no Bra-sil para os holandeses e mesmo face perda de Angola e S. Tom (territrios ex-portadores de escravos) tambm para os holandeses, face ao isolamento internacio-

    PADRE ANTNIO VIEIRA: A ARQUITECTNICA DO QUINTO IMPRIO

    REVISTA LUSFONA DE CINCIA DAS RELIGIES 123

    45 Cf. a obra fundamental de Yosef Kaplan, Judos Nuevos en Amsterdam - Estudio sobre la historia sociale intelectual del judasmo sefard en el siglo XVII, Barcelona, Ed. Gedisa, 1996.

    46 Cf. Antnio Jos Saraiva, Histria e Utopia Estudos sobre Vieira, Lisboa, ICALP, 1992, p. 76.47 Pe. Antnio Vieira, Proposta Feita a El-Rei D. Joo IV, em que se lhe Representava o Miservel

    Estado do Reino, in Obras ... ed. cit., Vol. IV, p. 24.

  • nal da nova dinastia de Bragana48, Pe. Antnio Vieira prope que o comrcio ma-rtimo e o comrcio interno do reino sejam abertos aos judeus sefarditas da Europa,principalmente aos de origem portuguesa. E apresenta 6 razes e 4 exemplos:

    1 Favorecer os homens da nao no contra lei alguma, nem divina nem hu-mana;

    2 Os telogos aceitam que, para defesa e conservao dos reinos, os prncipespodem unir a si qualquer tipo de infiis;

    3 Cristo aconselha que se deve dissimular a ciznia para sustentar as razes dotrigo, entendendo por ciznia os infiis e por trigo os catlicos;

    4 Para desenvolvimento do comrcio, Portugal admite nos seus portos muitoshereges da Holanda, Frana e Inglaterra; os judeus so apenas mais uns he-reges;

    5 A heresia dos protestantes mais contagiosa que a heresia dos judeus, j queaqueles j so cristos e estes no aceitam Cristo;

    6 A admisso dos judeus obra de grande servio de Deus e contribui para oaumento da nossa f49.

    Os 4 exemplos so os seguintes:

    1 Os Reis Catlicos de Espanha, sendo muito zelosos da igreja crist, admiteme favorecem, no entanto, os homens da nao no seu territrio para efeitos deprogresso do comrcio;

    2 Os Reis de Frana, cristianssimos, e particularmente Lus XIII, O Justo, quequase destruiu o seu reino para combater os hereges, no s no expulsouos judeus como lhes fez grandes favores;

    3 A mesma poltica seguiu o novo Rei Lus XIV, a Repblica de Veneza, os Du-ques de Florena e todos os potentados catlicos guardam os mesmos cui-dados com os judeus;

    4 Finalmente, o prprio Papa, no s no diferencia cristos-velhos de cristos-novos, como igualmente permite a existncia de sinagogas em Roma50.

    Pe. Antnio Vieira empenha-se, assim, na defesa e promoo de uma poltica debvio favorecimento de atraco dos capitais judaicos para Portugal. Em 1649, seisanos depois, nas primeiras denncias Inquisio por parte de alguns frades seusadversrios51, esta proposta ser recordada como o primeiro momento em que Pe.Antnio Vieira escapara ao rigor ortodoxo sob o qual Portugal ento vive. No en-tanto, enquanto D. Joo IV viver, at 1656, e enquanto D. Lusa de Gusmo for re-gente, Pe. Antnio Vieira gozar sempre de proteco real.

    Deste modo, nos dois Sermes a que fizemos referncia e na Proposta apresentadaem 1643 ao Rei D. Joo IV assiste-se revelao lenta e gradual do pensamento pro-ftico de Pe. Antnio Vieira, primeiro aceitando o joanismo, depois fazendo confluiro joanismo com o messianismo judaico. No entanto, tanto um como outro dos mo-

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    124 REVISTA LUSFONA DE CINCIA DAS RELIGIES

    48 Idem, ibidem, vol. IV, p. 9.49 Idem, ibidem, vol. IV, pp. 16 22.50 Idem, ibidem, vol. IV, pp18 19.51 Cf. J. Lcio de Azevedo, Histria de Antnio Vieira, ed. cit., p. 136.

  • vimentos profticos oferecem ainda uma doutrina relativamente vaga, sem um ar-quitectnica conceptual coerente garantedora da sua solidez proftica. Apenas emAmesterdo, com Menasseh ben Israel, Pe. Antnio Vieira encontrar os funda-mentos rigorosos desta arquitectnica, bem como o nome que a sintetizar - QuintoImprio do Mundo.

    1646 1648: Encontro com Menasseh ben IsraelEntre 1646 e 1648, Pe. A. Vieira desloca-se por duas vezes Holanda com pas-

    sagem pela Frana. Trs so os objectivos bsicos destas viagens:

    1 Conseguir casamento para o prncipe D. Teodsio;2 Desenvolver negociaes com os holandeses sobre a guerra que estes trava-

    vam com Portugal no territrio do Brasil;3 Abrir as portas do comrcio martimo com os territrios africanos e americano

    de Portugal aos judeus portugueses residentes na comunidade sefardita daHolanda.

    Destes trs objectivos, falharo os dois primeiros e o terceiro, sendo um aparentesucesso inicial com a formao da Companhia das ndias Orientais e Ocidentais em1649, subsidiada por capitais judaicos, revelar-se-, posteriormente, um obstculo aofranco desenvolvimento do comrcio com o Brasil devido monopolizao das li-nhas martimas por esta Companhia. Porm, o grande acontecimento destas duasviagens reside na precipitao que o pensamento proftico de Pe. Antnio Vieirasofre no aclaramento de todas as dimenses da doutrina do bandarrismo/sebastia-nismo/joanismo face s Sagradas Escrituras:

    1 Os mistrios e sinais da Bblia passavam a fazer sentido;2 A Histria de Portugal, toda ela, passava a fazer sentido;3 A evangelizao e a missionarizao de franciscanos, jesutas e outras ordens

    religiosas por toda a sia, fria e Amrica passavam a fazer sentido;4 A queda dos Lugares Santos e o cerco do Turco Europa passavam a fazer

    sentido;5 A destruio do Reino de Israel e o desaparecimento das 10 Tribos de Israel

    passavam a fazer sentido;6 A morte de Cristo s mos dos judeus e as prprias perseguies e matanas

    a este povo passavam a fazer sentido;7 A perda da independncia de Portugal durante 60 anos e a subsequente Res-

    taurao pelo rei D. Joo IV e no por seu pai D. Teodsio ou por D. Sebas-tio passavam a fazer sentido;

    8 A sua prpria vida, de Pe. Antnio Vieira - nascido em Lisboa mas criado naBaa, em conjunto com o impulso juvenil de servir os jesutas -, passava a fazersentido.

    PADRE ANTNIO VIEIRA: A ARQUITECTNICA DO QUINTO IMPRIO

    REVISTA LUSFONA DE CINCIA DAS RELIGIES 125

  • E que sentido fazia? O sentido que Pe. A. Vieira encontrara em Amesterdo forao sentido total da histria e do mundo concentrado num nico ano, 1666, e numanica teoria englobalizadora, o Quinto Imprio do Mundo ou o Reino de CristoConsumado. E to forte era a sua convico na posse do mistrio da humanidadeque no hesitar, posteriormente, em defender publicamente que o rei D. Joo IV,tal como Cristo, ter de ressuscitar para que o Reino de Cristo Completo e Consu-mado ou Quinto Imprio se cumpre e generalize por toda a Terra.

    O primeiro estudo que chama a ateno para a real importncia da estadia de Pe.Antnio Vieira em Amesterdo para a construo do edifcio proftico deste autor de 1972. Pertence a Antnio Jos Saraiva e foi publicado em Studia Rosenthaliana,justamente em Amesterdo52. J ento existia a obra citada de Raymond Cantel, umptimo estudo sobre a histria e o profetismo, mas indubitavelmente A. J. Saraivaque, vivendo ento em Amesterdo e tendo acesso a um conjunto de livros de au-tores judaicos publicados no sculo XVII, destaca as semelhanas entre o esprito pro-ftico de M. ben Israel e o de Pe. Antnio Vieira, sendo que este comea a escrevera Histria do Futuro em 164953, isto , no ano imediatamente a seguir ao do regressoda Holanda. O bigrafo de Pe. Antnio Vieira, Lcio de Azevedo, confere uma im-portncia menor ao encontro entre o rabi judaico e Pe. Antnio Vieira. No entanto,Hernni Cidade, que, em conjunto com Antnio Srgio, fizera editar as Obras Esco-lhidas de Pe. A. Vieira na Ed. S da Costa, e, antes, nas comemoraes dos 250 anosda morte deste, editara os Sermes na Agncia Geral do Ultramar, e, ainda, em 1953,conseguira publicar na Livraria Progresso da Baa, Brasil, a Defesa de Pe. AntnioVieira face Inquisio, reala desde logo a importncia deste estudo de A. J. Saraiva,chamando a ateno para ele numa recenso crtica na Colquio Letras54.

    Em sntese, que novidades traz ao pensamento de Pe. Antnio Vieira o encon-tro numa estalagem entre este e M. ben Israel, depois de ter ouvido o rabi judaico deorigem portuguesa na sinagoga de Amesterdo? Segundo A. J. Saraiva, podem re-sumir-se em dois aspectos:

    1. A Questo das 10 Tribos Perdidas de Israel P. A. Vieira ficou a saber que aTribo de Ruben, uma das 10 Tribos perdidas de Israel, fora encontrada, em 1644, nosplanaltos da Colmbia pelo mercador Aaro Levy, de nome portugus originrio An-tnio de Montesinos - sinal miraculoso anunciador do fim dos tempos, j que Ban-darra, seguindo o pensamento proftico judaica, anunciara nos seus versos ser aTribo de Ruben a primeira a ser encontrada;

    2. A Questo do Messias O Messias judaico um homem entre os homens, no um filho de Deus; um libertador e um justiceiro; ser o desencadeador do regresso

    MIGUEL REAL

    126 REVISTA LUSFONA DE CINCIA DAS RELIGIES

    52 Posteriormente includo em Antnio Jos Saraiva, Antnio Vieira, Menasseh ben Israel e o QuintoImprio, in Histria e Utopia ... ed. cit., pp. 75-107. Como complemento, devem ler-se Yosef Kaplan, Ju-dos Nuevos en Amsterdam, ed. cit..; David Franco Mendes - J. Mendes dos Remdios, Os Judeus Portugue-ses em Amesterdo, ed. (fac-smile das edies de 1911 e 1975), estudo introdutrio de Manuel Cadafaz deMatos e Herman Prins Salomon, Lisboa, Ed. Tvola Redonda, 1990.

    53 Sobre a questo de saber se, em 1649, Pe. A. Vieira estava escrevendo a Histria do Futuro ou o in-cio do Clavis Prophetarum, cf. palavras do prprio Vieira em Os Autos do Processo de... ed. cit, pp. 55; no en-tanto, comentadores presumem ter sido engano de Vieira, que se encontrava preso e sem os seus papis,e que a Clavis ... no teria sido iniciada antes de 1663. Assim, seria a Histria do Futuro que Vieira iniciouno seu regresso de Holanda, em 1649.

    54 Cf. Hernni Cidade, Vieira Luz de um Recente Estudo de Antnio Jos Saraiva, in Colquio-Letras, Lisboa, Ed. F. Calouste Gulbenkian, n 12, Maro de 1973.

  • de todos os judeus Terra Santa onde, enfim, se tornaro membros de uma comu-nidade prspera e feliz. Este Messias humano ainda no veio. Pe. Antnio Vieira teriaassim concludo que a doutrina crist, de ndole eminentemente espiritual, no ex-clui a doutrina judaica sobre o Messias, de ndole eminentemente temporal. A liga-o entre a vinda do Messias e as profecias de Daniel tambm deveria ter sido ob-jecto de disputa entre os dois pensadores. M. ben Israel afirmava que a pedra queparte a esttua no sonho de Nabucodonossor o Messias, que quebraria o QuartoImprio, o da Igreja Romana, e levantaria o reino dos justos, o Quinto Imprio ter-restre dos judeus. A igreja catlica considerava que o novo imprio do mundo de-pois do imprio romano da Igreja s poderia ser um Imprio espiritual, celeste, quese iniciaria depois do Apocalipse. Nasce, assim, uma forte divergncia entre ambos:para os judeus, o Imprio do Messias ser um Imprio terrestre e temporal, tendocomo centro Israel; para Pe. Antnio Vieira de 1647/8, representando o pensamentocatlico, o Imprio do Messias ser necessariamente um Imprio celeste anunciadocom o fim dos tempos e o segundo regresso de Cristo.

    Trs fortes concluses deveriam ter sido retiradas por Pe. Antnio Vieira desteencontro:

    1 Bandarra tivera razo: como ele profetizara, cerca de 100 anos antes, a pri-meira Tribo a aparecer foi a de Ruben;

    2 Os diversos sinais catastrficos que sucediam e se anunciavam por toda a Eu-ropa, como a ameaa latente do Turco invadir a ustria e dominar a Itlia ea terra papal e os prncipes catlicos adversos uns contra outros (Guerra deEspanha contra a Frana; Espanha a querer dominar Portugal) deviam ser in-terpretados como sinais do fim dos tempos;

    3 A leitura proftica que Pe. Antnio Vieira prprio fizera da Histria de Por-tugal, em 1642, deveria ser unida leitura proftica judaica e, cruzadas ambasas interpretaes, deveriam formar o corpo total da teoria do Quinto Imprio.

    Em 1649, iniciando a escrita da Histria do Futuro, que nunca terminar, Pe. A.Vieira comea a dar forma de letra ao trabalho de exegese bblica em que funda-mentar toda a estrutura proftica da teoria do Quinto Imprio.

    Teoria proftica de Pe. Antnio Vieira segundo Esperanas de Portugal

    Como evidencimos, o esprito proftico em Pe. Antnio Vieira emerge de umaconfluncia e fuso entre duas correntes messinicas existentes em Portugal na pri-meira metade do sculo XVII:

    1 O sebastianismo/joanismo, com base nas Trovas de Bandarra, primeiro di-fundidas em manuscrito e, a partir de 1603, em livro impresso, com a ediode D. Joo de Castro (neto), de tendncia claramente sebastianista, e a partirde 1644, com a edio de Nantes de D. Vasco Lus da Gama, edio que iden-tifica o Encoberto com D. Joo IV;

    PADRE ANTNIO VIEIRA: A ARQUITECTNICA DO QUINTO IMPRIO

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  • 2 O messianismo judaico, de forte expresso no interior das comunidades se-farditas do Mediterrneo e da Europa Central e com reflexos entre ns atra-vs do criptojudasmo. Neste caso, o texto fundamental continua a ser o dasTrovas de Bandarra, embora a sua interpretao identifique o Encoberto, nocom um rei portugus, mas com o Messias; a este livro, deve juntar-se todaa vasta literatura judaica que o Pe. Antnio Vieira teve oportunidade de seinformar durante a sua estadia em Amesterdo, principalmente o manuscritodo livro de Menasseh ben Israel, Esperana de Israel.

    Assim, evidenciar-se- o corpo doutrinrio do esprito proftico de Pe. AntnioVieira atravs de dois textos: o contedo da carta de 1659 deste autor ao Bispo Eleitodo Japo, o jesuta Andr Fernandes, carta intitulada Esperanas de Portugal, QuintoImprio do Mundo, pela autoria da qual Pe. Antnio Vieira foi chamado a depor In-quisio em 1663; basear-nos-emos igualmente nas duas Representaes apre-sentadas pelo Pe. Antnio Vieira ao Tribunal da Inquisio como sua defesa e vul-garmente conhecidas pelo ttulo Defesa Perante o Tribunal do Santo Ofcio.

    Comecemos pela anlise de Esperanas de Portugal, Quinto Imprio do Mundo.

    1. O QUE BANDARRA PROFETIZOU

    1.1. O que profetizou e j foi cumprido

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    55 Pe. Antnio Vieira, Esperanas de Portugal. Quinto Imprio do Mundo, in Obras Escolhidas, ed,cit., p. 5.

    56 Idem, ibidem, p. 6.

    VERSOS

    1. Antes que cerrem os quarentaErguer-se- gr tormentaDo que intenta,Que logo ser mansada,E tomaro entradaDe caladaNo tero quem os afoite 55.

    2. J o tempo desejado chegado,Segundo o firmal assenta;J se chegam os quarentaQue se ementaPor um doutor j passado,O Rei novo levantado.J d brado,J assoma sua bandeiraContra a grifa parideira,LagomeiraQue tais pastos tem gostado 56.

    ACONTECIMENTOS

    Revolta do Manuelinho, em voraem 1637, em que o povo, instigadopor pregadores jesutas, contestouo poder castelhano em Portugal.

    Restaurao e aclamaode D. Joo IV

    grifa parideira Castela que pormeio de casamentos veio a herdarPortugal. Grifa leo e guiasimbolizados nos escudos deCastela.

  • PADRE ANTNIO VIEIRA: A ARQUITECTNICA DO QUINTO IMPRIO

    REVISTA LUSFONA DE CINCIA DAS RELIGIES 129

    57 Idem, ibidem, p. 7.58 Idem, ibidem, pp. 8 9.59 Idem, ibidem, p. 12.60 Idem, ibidem, p. 13.61 Idem, ibidem, p. 14.62 Idem, ibidem.63 Idem, ibidem, p. 16.

    3. Saia, saia esse InfanteBem andante,Seu nome D. Joo.Tire e eleve o pendoGlorioso e triunfante 57.

    4. No acho ser detedoo agudo,Sendo ele o instrumento;No acho, segundo sentoO ExcelenteSer falso no seu escudo;Mas acho que o lanudoMui sisudoQue arrepelar o gato,E f-lo murar o rato,de seu fatoLeixando-o todo desnudo 58.

    5. No tema o Turco, no,Nesta sezo,Nem o seu grande mourismo,Que no conheceu baptismo,Nem o crismo, gado de confuso59

    6. O Rei novo acordado.J d brado,J ressoa o seu prego,J Levi lhe d a mo,Contra Sichem demandado 60.

    7. Vejo subir um InfanteNo alto de todo o lenho 61.

    8. Vejo subir um FronteiroDo Reino de trs da serra,Desejoso de pr guerraesforado cavaleiro 62.

    9. Este ser o primeiro Que h-de pr o pendoNa cabea do dragoDerrub-lo por inteiro 63.

    O novo rei chama-se D. Jooe de casa de Infantes.

    Marqus de Montalvo (Maranho) fiela D. Joo IV; ordena de imediatoa aclamao popular da Restaurao;Bandarra sente que ele excelente,mas a mulher e os filhos traram D. Joo IV.Conde de Aveiras (ndia) indeciso,o povo aclama o novo Rei, mas ele arrepela:o gato indeciso a caar o rato.Conde Aveiras, muito cabeludo,veio riqussimo da ndia,deixando-a desnuda.

    Constatao que a vitria sobre o Turcoainda h-de demorar;Primeiro D. Joo terde restabelecer o reino.

    Quando chegar o tempo de luta directacontra o Turco, D. Joo IV h-de ressuscitar,Levi, o Papa, h-de reconhec-lo (1669)e ambos lutaro com Sichem, o Turco,que domina Jerusalm.

    Infante D. Afonso porque o prncipe,o primognito, D. Teodsio, morreu.o lenho a parte da roda triunfanteque a vida: a vida deu mais uma volta.

    O Fronteiro Joo de Vasconcelos,Mestre de Campo General e Governadorde Armas do Alentejo que esforado e desejoso de batalhar, mas comandante inbil.

    Profecia do futuro o Drago o Turco, que vem do Oriente,e D. Joo IV h-de venc-lo.

  • 1.2. O que profetizou e ainda no foi cumprido

    MIGUEL REAL

    130 REVISTA LUSFONA DE CINCIA DAS RELIGIES

    64 Idem, ibidem, p. 19.65 Idem, ibidem, p. 20.66 Idem, ibidem.67 Idem, ibidem, p. 21.68 Idem, ibidem.

    VERSOS

    10. Vejo, vejo, direi vejo,Agora que estou sonhandoSemente de El-Rei D. FernandoFazer um grande despejo,E sair com gro desejo,E deixar sua vinha.E dizer: esta casa minha,agora que c me vejo 64.

    11. Vi um grande leo correr,e fazer sua viagem,E tomar o porco selvagemNa passagemSem nada lhe defender 65.

    12. Este rei de gro primorCom furor,Passar mar salgado,Em um cavalo enfreadoE no selado,Com gente de gro valor.Este diz que socorrerE tirarAos que esto em tristura.Deste conta a EscrituraQue se apuraQue o campo despejar 66.

    13. Tambm os VenezianosCom as riquezas que tm,Vir o Rei de Salm,Julg-los por mundanos 67.

    13. J os lobos so entradosde alcateia nas montanhas,Os gados tm esfolados,E muito alobegados.Fazendo grande faanha.O pastor-mor se assanhaE junta seus ovelheiros,Esperta sua campanhaSocorre os seus pegureiros 68.

    ACONTECIMENTOS

    D. Joo IV quarto neto do rei D. Fernandode Espanha.

    Parte com gro desejo para Jerusalme aqui, na Casa Santa, dir: Esta casa minha.

    O leo D. Joo IV;Viagem: partida para Jerusalm;Porco selvagem: o Turco;Passagem Mediterrneo.

    D. Joo IV;

    Mediterrneo;

    frente de uma armada

    Itlia que ser tomada pelo Turco.

    Os italianos sero tomados pelos Turcos;

    O Turco era Senhor de Jerusalm.

    Os Turcos;

    Papa;Prncipes catlicos;Parece que os Prncipes esto dormindofaze ao perigo do Islo.

  • PADRE ANTNIO VIEIRA: A ARQUITECTNICA DO QUINTO IMPRIO

    REVISTA LUSFONA DE CINCIA DAS RELIGIES 131

    69 Idem, ibidem, p. 22.70 Idem, ibidem, pp. 22 23.71 Idem, ibidem, p. 24.72 Idem, ibidem.73 Idem, ibidem, pp. 24 25.

    14. A Lua dar grande baixaSegundo o que se v nela,E assim os que tm com ela,Porque se lhes acaba a taxa.Abrir-se- aquela caixaQue at agora foi cerrada,E entregar-se- foradaEnvolta na sua faixa 69.

    15. Um grande leo se erguer,E dar grandes bramidos;Seus brados sero ouvidosA todos assombrar;Correr e morderE far mui grandes danos,E nos reinos africanosA todos sujeitar.Entrar mui esforado,Ser de toda a maneira;De cavalos de madeiraSe ver o mar coalhado,Passar a dar brado.Na Terra da PromissoPrender o velho coQue anda mui desmandado 70.

    16. J o leo espertoMui alerto,J acordou, anda caminho,Tirar cedo do ninhoO porco; e mui certo,Fugir pelo desertoDo leo e seu bramido;Demonstra que vai feridoDesse bom rei Encoberto 71.

    17. senhor tomai prazer,Que o gro porco selvagemSe vem j do seu quererMeter em vosso poder,Com seus portos e passagem 72.

    18. Tanja-se a gaita maior,Junte-se todo o rebanho,Eu com o vosso pastorCom mui gr soma de amorVamos a partir o ganho.Tudo nos sofranganho,Montes, vales e pastores;Descansai, bailadores,Que no entre aqui estranho 73.

    O Islo;

    Acaba o tempo prescrito; simboliza o fimdo Imprio Otomano.

    D. Joo IV

    Armada dos Prncipes Catlicos;

    Terra Santa ser libertada;O Sulto Turco.

    D. Joo IV;

    Turco;Os exrcitos turcos fogem, so derrotados;

    D. Joo IV.

    Turco;

    O Sulto submete-se finalmente a D. Joo IV.A Terra santa libertada.

    Alegria da vitria sobre o Islo;Os Prncipes Catlicos;D. Joo IV e o Papa;

    Dividir as terras conquistadas;

    No volte aqui o Turco.

  • MIGUEL REAL

    132 REVISTA LUSFONA DE CINCIA DAS RELIGIES

    74 Idem, ibidem, p. 25.75 Idem, ibidem, p. 27.76 Idem, ibidem, p. 28.77 Idem, ibidem.78 Idem, ibidem, p. 34.79 Idem, ibidem, p. 3580 Idem, ibidem.

    19. Sus! Antes de mais extremosBaile Fernando e Constana,E pois que j tudo vemos,Pelo bem que lhe queremosSeja ele o mestre de dana 74.

    20. De quatro reis, o segundoLevar toda a vitria 75.

    21. De perdes e oraesIr fortemente armado,Dar nele Santiago.Na volta que faz depoisEntrar com dois pendesEntre porcos sededosCom fortes braos e escudosDe seus nobres infanes 76.

    22. Dizei, Senhor, poderemosAo gro-pastor falar? 77

    23. Portugal tem a bandeiraCom cinco quinas no meio,E segundo ouo e creioEle a cabeceira;Tem das chagas a cimeiraQue em Calvrio lhe foi dada,E ser rei da manadaQue vem de longa carreira 78.

    24. Vejo erguer um gro reiTodo bem-aventurado,E ser to prosperadoQue defender a grei;Este guardar a leiDe todas as heresias,Derrubar as fantasiasDos que guardam o que no sei 79.

    25. Todos tero um amor,Assim gentios e pagosComo judeus e cristos,Sem jamais haver error.Serviro a um s senhor,Jesu Cristo que nomeio;Todos crero que j veioO ungido Salvador 80.

    Constana: Constantinopla; Fernando:nome suposto de D. Joo IV ou, ento, seunovo nome de depois de ressuscitado porqueO Encoberto ter nome de ferro (Ferrante).

    D. Joo IV ressuscitado pode tomar o nomede Fernando, o Segundo.

    D. Joo IV regressar e entrar na Europaou em Portugal com dois pendes:Rei de Portugal e Imperador de Constantinopla.

    Regresso das 10 Tribos perdidas de Israel. oRei D. Joo IV que as apresentar ao Papa.

    Portugal e D. Joo IV sero os cimeirosdo poder temporal do V Imprio

    Portugal converter a manada:as 10 Tribos de Israel.

    D. Joo IV como imperador temporaldo Reino de Cristo Consumado;

    Ser o guardio secular e civil contra todasas heresias; o Papa ser o imperadorespiritual.

    O V Imprio tem como condio a conversouniversal de gentios, judeus e hereges.Acabam os errores e todos adoraroa Cristo como o nico Senhor.Os judeus igualmente acreditaro,para sempre, que o Messias Cristo.

  • PADRE ANTNIO VIEIRA: A ARQUITECTNICA DO QUINTO IMPRIO

    REVISTA LUSFONA DE CINCIA DAS RELIGIES 133

    81 Idem, ibidem, pp. 43 45.

    A questo imediatamente tratada por Pe. Antnio Vieira a de persuadir oBispo do Japo, a quem a carta fora endereada, que o Rei que vencer os Turcos esubmeter ao mundo ao Quintop Imprio , de facto, o rei D. Joo IV. Os seus ar-gumentos so explanados a seguir.

    2. PROVAS DE QUE D. JOO IV SER O V IMPERADOR DO MUNDO 81

    AFIRMAES DE BANDARRA

    1. O rei semente de El-Rei D. Fernando

    2. Este rei ser novo

    3. Rei levantado no ano de quarenta4. Rei feliz e bem andante5. O seu nome Joo6. O rei seria reconhecido nas conquistas

    7. Faria guerra a Castela;

    8. Rei mui excelente

    9. Rei que no de casta goleima

    10. Rei novo primo e parente de reis

    11. Rei que vem de alta semente

    12. Rei que descende dos reis de Levanteat Poente

    13. Rei que tem um irmo bom capitoe que se desconhece a irmandade

    14. O novo Rei das terras e comarca

    15. Rei guardador da lei e da justia

    16. Rei que no ser recebido pelo Papaat um certo tempo

    17. Rei que, mesmo aclamado pela boca, no ser seguido pelo corao de todos

    18. Rei que h-de ser todo perfeito.

    FACTOS HISTRICOS

    D. Joo IV 4. neto de D. Fernando;

    D. Joo IV um novo rei; nunca antes o fora;

    Em 1640 foi a aclamao;Sempre foi felicssimo;Justamente o nome do novo rei; D. Joo IV foi reconhecido nos territrios

    conquistados;

    Sempre a fez em todo o seu reinado;

    Rei de facto excelente;

    D. Joo IV no descendente da Casa de ustria (casta de gulosos e comiles);

    D. Joo IV primo de trs reis da Europae parente dos demais;

    D. Joo IV descende dos reis de Portugal;

    D. Joo IV descende dos reis de Portugal e Castela (Poente) e dos reis de Npoles e Siclia (Levante);

    O irmo D. Duarte bom capito, mas no sabemos quo seu irmo El-Reiem ser bom capito;

    D. Joo IV das terras da comarca porque natural de Vila Viosa;

    O que fez D. Joo IV;

    D. Joo IV no foi reconhecido pelos trs pontfices;

    O que aconteceu depois da Restaurao;

    Quando El-Rei ressuscitar h-de ser todo perfeito.

  • 3. PROVAS DE QUE O ENCOBERTO D. JOO IV E NO D. SEBASTIO 82

    Seguidamente, Pe. Antnio Vieira questiona-se se algumas daquelas caracters-ticas no poderiam ser convenientes com a figura de D. Sebastio reaparecido ou,mesmo, ressuscitado. Ao seu modo particular de escrever, elabora 14 polarizaescontrastantes para provar que s D. Joo IV pode ser o Encoberto:

    MIGUEL REAL

    134 REVISTA LUSFONA DE CINCIA DAS RELIGIES

    BANDARRA

    1. Rei novo

    2. Seu nome Joo

    3. Rei novo infante

    4. Rei bem andante e feliz

    5. Sai, Saia, diz Bandarra

    6. No da casta goleima

    7. Primo e parente de reis

    8. Tem um irmo bom capito

    9. das terras da Comarca

    10. Guerra com Castela

    11. Justiceiro

    12. No reconhecido pelos Papas

    13. Lhe no achou nenhumseno

    14. Semente de Rei D. Fernando

    D. SEBASTIO

    Rei velho

    No

    Prncipe

    Infelicssimo

    No saia, no saia

    da Casa de ustria

    Neto de reis;

    No teve irmos vivos;

    da capital, Lisboa

    No teve

    Fora e valentia

    Sim

    Perdeu-nos

    Sim

    D. JOO IV

    Rei novo;

    ;

    Infante;

    Sim;

    Saia, saia;

    No ;

    Primo de reis;

    D. Duarte;

    de V. Viosa;

    Teve;

    Justo;

    No;

    Sim;

    Sim.

    Logo, com excepo da ltima prova, que tambm conveniente a D. Sebastio,todas as restantes se inclinam para a identificao entre D. Joo IV e o Encoberto.

    4. A ARQUITECTNICA DO QUINTO IMPRIO

    Para efeitos de apresentao, figura-se a arquitectnica do Quinto Imprio em 7momentos diferenciados:

    4.1. O que o Quinto Imprio

    O Quinto Imprio consiste no estado perfeito e realizado ou consumado doReino de Cristo em todo o mundo; o reino em que todos os Prncipes e naes e

    82 Idem, ibidem, pp. 357 58.

  • PADRE ANTNIO VIEIRA: A ARQUITECTNICA DO QUINTO IMPRIO

    REVISTA LUSFONA DE CINCIA DAS RELIGIES 135

    83 Pe. Antnio Vieira, Defesa perante o Tribunal do Santo Ofcio, Salvador, Bahia, Livraria Progresso,1957, I vol., p. 22 ss.

    84 Idem, ibidem, p. 235.85 Idem, ibidem, pp. 236 237, vol. II, p. 6.86 Idem, ibidem, p. 238.87 Idem, ibidem, p. 257.88 Idem, ibidem, p. 271 ss.

    povos vivero em paz segurana, cessaro todas as guerras, as comunidades seroboas observantes da lei divina, sendo Cristo adorado e obedecido por todos83; pres-supe-se que a justia seja universal, o bem-estar pleno e todas as qualidades hu-manas negativas desaparecero.

    4.2. Em que fontes se inspira a teoria do Quinto Imprio

    So quatro as fontes de que Pe. Antnio Vieira se serve:

    1 No Livro de Daniel onde se narra o sonho da esttua de Nabucodonossor e asua interpretao pelo profeta Daniel84;

    2 No mesmo Livro, a interpretao das Quatro Bestas sadas do mar corres-pondentes aos Quatro Imprios85;

    3 A viso das Quatro Carroas do profeta Zacarias86; 4 Diversos versos das Trovas do Bandarra, principalmente as referentes ao En-

    coberto identificado como D. Joo IV, j atrs enunciados.

    4.3. Onde se localizar o Quinto Imprio

    O Quinto Imprio localizar-se- na Terra, na totalidade geogrfica da Terra, e nono Cu segundo a ortodoxia catlica87.

    4.4. Quando se cumprir o Quinto Imprio

    A resposta a esta questo deve ser dividida em quatro nveis diferentes:

    a. Relao temporal de continuidade com a actualidade:

    Por sua vez, o processo de realizao integral do Quinto Imprio divide-se emtrs sucessividades temporais:

    a.1. Imprio de Cristo Incoado - correspondente ao passado desde o nasci-mento de Cristo at ao momento da expanso da Igreja por todo omundo;

    a.2. Imprio de Cristo Incompleto - correspondente actualidade de Pe. An-tnio Vieira;

    a.3. Imprio de Cristo Completo ou Consumado - correspondente plenarealizao do poder de Cristo por todo o mundo88.

    A plena realizao do Quinta Imprio opera-se em momentos sucessivos:

    a.4. Primeiro, convertem-se os gentios ou povos gentlicos;

  • MIGUEL REAL

    136 REVISTA LUSFONA DE CINCIA DAS RELIGIES

    89 Idem, ibidem, pp. 313 e 334.90 Idem, ibidem, p. 286.91 Pe. Antnio Vieira, Esperanas de Portugal. Quinto Imprio do Mundo, in Obras Escolhidas, ed,

    cit., p. 65.92 Pe. Antnio Vieira, Defesa perante o Tribunal do Santo Ofcio, ed. cit., II vol., p 50.93 Idem, ibidem, p. 51.94 Idem, ibidem, p. 52.95 Idem, ibidem, p. 53.96 Idem, ibidem, p. 55.97 Idem, ibidem, pp. 57 e 60.98 Idem, ibidem, p. 218.99 Idem, ibidem, p. 236.100 Idem, ibidem, p. 238.101 Idem, ibidem, II vol., p. 60.102 Idem, ibidem, I vol., pp. 276 280.

    a.5. Depois, convertem-se as naes judaicas89;a.6. Todas as heresias sero combatidas e eliminadas;a.7. Ento, nascer simultaneamente em toda a Terra o Reino de Cristo Con-

    sumado90.

    b. Efectivao da transio entre o Reino de Cristo Incompleto e Completo:

    b.1. Haver um dilvio de sangue como se fosse um novo baptismo, ou seja,uma mortandade anterior (pressupe-se que a partir da guerra contra oTurco) 91;

    b.2. Cada vez maior vocao de padres92;b.3. Oraes a Cristo;b.4. Oraes Virgem Maria93; b.5. Atravs da difuso da palavra de Cristo pelos Pregadores94;b.6. Pela iluminao do Esprito Santo95;b.7. Pelo poder militar dos reinos cristos (D. Joo IV)96;b.8. Atravs de milagres97.

    c. Quanto tempo dura o Quinto Imprio:No se sabe98.

    d. Quando acaba o Quinto Imprio:O Quinto Imprio terminar com o aparecimento do Anti-Cristo99. O domnio do Anti-Cristo durar 45 dias100.

    4.5. Quem promove o Quinto Imprio

    Dois futuros Imperadores sero destinados a promover o Quinto Imprio:

    a. O Sumo Pontfice - Imperador Espiritual;b. O Rei D. Joo IV- o Imperador temporal101.

    4.6. O que acontece quando se iniciar o Quinto Imprio

    Vrios prodgios acontecero:1 Toda a terra e todas as gentes sero reconvertidas a Cristo102;

  • PADRE ANTNIO VIEIRA: A ARQUITECTNICA DO QUINTO IMPRIO

    REVISTA LUSFONA DE CINCIA DAS RELIGIES 137

    103 Idem, ibidem, p. 282.104 Idem, ibidem, pp. 87 245.105 Idem, ibidem, pp. 147 148.106 Idem, ibidem, p. 115.107 Idem, ibidem, p. 162.108 Idem, ibidem, p. 205.109 Pe. Antnio Vieira, Os Autos do Processo de Inquisio, ed. cit., p. 172.

    2 Todos os reis e reinos se sujeitaro a Cristo103; 3 Os judeus regressaro sua Terra Prometida104;4 Constatar-se- que o Messias dos Judeus no o Messias dos Cristos; logo,

    podero harmonizar-se ambos os Messias - o primeiro, de carcter temporal; o se-gundo,