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Padrões de Intenção e a ordem pictórica: um resumo por Eduardo Souza disponível em http://filosofiadodesign.com/padroes-de-intencao-e-a-ordem-pictorica-um-resumo/ “Nós não explicamos um quadro: explicamos observações sobre um quadro”. É assim que Michael Baxandall inicia o seu Padrões de Intenção – A explicação histórica dos quadros, uma obra subliminarmente reflexiva sobre a crítica e história da arte. A frase é a partida epistemológica da crítica inferencial, que encara o tato crítico e domínio histórico como quase a mesma coisa. Há dilemas no campo da crítica tratados na obra—como a polarização entre crítica e história— mas não ficam explícitas em suas análises e argumentações. Isso tornaria hermético o conteúdo do livro. É objetivo seu não torna-lo—nem às obras de arte—exclusivos para iniciados. Uma de suas características é a capacidade de conciliar pontos de vista conflituosos da crítica de arte: mesmo fazendo uma explicação histórica dos quadros, nunca perde o quadro de vista. Sua crítica é fortemente ostensiva—por mais que, segundo o próprio, essa característica seja própria do campo, ela é subvalorizada. Assim, a construção da perspectiva histórica nunca é o fim da crítica inferencial. Seu fim é a melhor apreciação do quadro—estética e historicamente. As análises se desenrolam como um diálogo, ora consigo, ora diretamente com o leitor. Um diálogo empilhado de referências, solto e direto—vale dizer que nenhuma das aparentes digressões é sem propósito. É constante que Baxandall nos forneça respostas provisórias em sua argumentação, a fim de desembaraçar um problema por vez. Por um lado, manter o todo da argumentação em mente demanda algum esforço; por outro, há quase sempre uma revisão ao iniciar cada sessão. Isso reflete, também, a posição de Baxandall com relação à própria crítica: ele não quer instituir uma única interpretação. Esse diálogo traz implicações que podem ser problemáticas: parece fácil perder a mão ao referenciá- lo. A crítica inferencial não parece ser passível de generalizações e categorizações; ela se torna uma boa ferramenta analítica somente em contato direto com um caso específico—é fortemente ostensiva. Várias das noções que adota “são gerais demais para ser útil em casos particulares”.

Padrões de Intenção e a ordem pictórica

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Um resumo do livro de Michael Baxandall Padroes de Intenção - Uma explicação histórica dos quadros, centrada no conceito de ordem pictórica, evidenciado apenas no último capítulo do livro.

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Page 1: Padrões de Intenção e a ordem pictórica

Padrões de Intenção e a ordem pictórica: um resumo

por Eduardo Souza

disponível em http://filosofiadodesign.com/padroes-de-intencao-e-a-ordem-pictorica-um-resumo/

“Nós não explicamos um quadro: explicamos observações sobre um quadro”. É assim que Michael

Baxandall inicia o seu Padrões de Intenção – A explicação histórica dos quadros, uma obra

subliminarmente reflexiva sobre a crítica e história da arte. A frase é a partida epistemológica da

crítica inferencial, que encara o tato crítico e domínio histórico como quase a mesma coisa.

Há dilemas no campo da crítica tratados na obra—como a polarização entre crítica e história— mas

não ficam explícitas em suas análises e argumentações. Isso tornaria hermético o conteúdo do livro. É

objetivo seu não torna-lo—nem às obras de arte—exclusivos para iniciados.

Uma de suas características é a capacidade de conciliar pontos de vista conflituosos da crítica de arte:

mesmo fazendo uma explicação histórica dos quadros, nunca perde o quadro de vista. Sua crítica é

fortemente ostensiva—por mais que, segundo o próprio, essa característica seja própria do campo,

ela é subvalorizada. Assim, a construção da perspectiva histórica nunca é o fim da crítica inferencial.

Seu fim é a melhor apreciação do quadro—estética e historicamente.

As análises se desenrolam como um diálogo, ora consigo, ora diretamente com o leitor. Um diálogo

empilhado de referências, solto e direto—vale dizer que nenhuma das aparentes digressões é sem

propósito. É constante que Baxandall nos forneça respostas provisórias em sua argumentação, a fim

de desembaraçar um problema por vez. Por um lado, manter o todo da argumentação em mente

demanda algum esforço; por outro, há quase sempre uma revisão ao iniciar cada sessão. Isso reflete,

também, a posição de Baxandall com relação à própria crítica: ele não quer instituir uma única

interpretação.

Esse diálogo traz implicações que podem ser problemáticas: parece fácil perder a mão ao referenciá-

lo. A crítica inferencial não parece ser passível de generalizações e categorizações; ela se torna uma

boa ferramenta analítica somente em contato direto com um caso específico—é fortemente

ostensiva. Várias das noções que adota “são gerais demais para ser útil em casos particulares”.

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Entretanto, “sua utilidade está em ser uma fórmula não descritiva (...), que permite incluir as

características específicas de casos particulares”.

A estrutura é didática: Baxandall faz uma incursão na história da arte em três partes, de Picasso a Piero

della Francesca, no século XV. Antes disso, entretanto, se propõe à análise da Ponte do Rio Forth, na

Escócia, para testar seu método idiográfico. Ele parte da “ideia de que é possível explicar objetos

históricos considerando-os como soluções a problemas que aparecem em determinadas situações, e

tentando reconstruir uma relação lógica entre esses termos”.

São apresentados os primeiros conceitos da crítica inferencial, como os de Encargo e Diretrizes—

aspectos que devem ser obedecidos e que motivaram a criação de algo. A questão implicitamente

sublinhada, parece, é a desmistificação da obra de arte. A ponte, enquanto objeto histórico, é

evidência de uma postura individual frente a um conjunto de aspectos circunstanciais, assim como,

por exemplo, O Retrato de Kahnweiler, de Picasso; nesse sentido, eles “não são necessariamente

diferentes (...) [as diferenças] parecem ser mais de grau de equilíbrio de seus elementos”.

Ainda assim, fica claro que o método utilizado para a Ponte do Rio Forth precisa ser adequado para

essa outra categoria de objeto. É necessário definir melhor alguns aspectos da crítica. Um dos termos

mais passíveis de confusão é o de intenção. Em seu uso corrente, a palavra pode significar as opiniões

e o estado de espírito de indivíduos, mas “a intenção não é um estado de espírito construído, mas

uma relação entre o objeto e suas circunstâncias”, ou seja, ela “aplica-se mais ao quadro que aos

pintores”.

A reconstituição que fazemos “não é uma narrativa, mas uma representação de atividade de reflexão

ou de racionalidade intencional referida às circunstâncias, cuja existência e sentido, nunca é demais

insistir, se realiza no confronto ostensivo” com o objeto em questão. Em relação à ponte, é menos

óbvio definir as circunstâncias de Picasso (seu Encargo e Diretrizes), ou separar as etapas de

concepção e execução. Fica claro, então, que, para Picasso, “o Encargo em si não tem forma; as formas

começam pelas Diretrizes”.

Uma chave para entende-las é o mercado de arte de sua época: era uma cultura em que convivia. O

mercado “constitui um meio de comunicação não verbal” em que “ambas as partes façam escolhas e

que toda escolha feita por um grupo tem consequências para o espectro de escolhas possíveis para

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ambos os lados”. Cada escolha de cada uma das partes vai constituir um padrão de transações, a que

Baxandall nomeia troc. Portanto, Picasso “dispunha de uma multiplicidade de opções, e cada uma lhe

permitia apoiar-se numa série de expectativas” que formavam seu Encargo. Ou melhor, a parte

histórica de seu Encargo.

A generalidade do troc é evidente. Aqui, uma das partes—o mercado de arte—fundamenta algumas

de suas significações “de maneira confusa nas indicações oferecidas por fatos estruturais, e não nas

expectativas expressas”, que, por sua vez, estão relacionados a um sistema econômico, embora nem

sempre o reflitam de modo imediato ou preciso. O troc é a ideia a que essas indicações vão se

articular para que se tornem significativos para a crítica. “Até as ideias mais gerais somente adquirem

significado definido quando consideradas à luz de contextos pictóricos específicos—quando o geral

se une ao particular”.

Na pintura, os processos de concepção e execução se interpenetram constantemente, pois “cada

pincelada modifica um quadro”. Assim, é preciso entende-la como um fluxo intencional

constantemente mutável para resolver as diretrizes e problemas (primários e secundários). Há uma

sequencia inumerável de intenções que se formam no ato de execução do quadro—inclusive aquelas

decisões não fazer ou deixar como está.

Picasso tinha problemas primários que se inseriam em um todo maior da história da arte—a exemplo,

a tensão entre a bidimensionalidade e a tridimensionalidade. Assim que ele “confronta esses

problemas com seus meios materiais” surgem outros subproblemas—a preocupação central do

pintor— que são respondidos, com novos repertórios a cada quadro. O Retrato de Kahnweiler

representa não só um passo na evolução do próprio Picasso, como também “um episódio numa

sequencia de formulação e resolução de problemas”. Por isso, o que veio antes e depois de um

quadro nos dá uma perspectiva do conjunto de intenções do pintor, de sua evolução.

Aqui, as características pictóricas ganham papel central. Para Picasso, o encargo era habitual; ele

lidava com as questões imediatas da pintura. Os problemas que ele achou e se propôs—a pintura de

Cézanne e a obra de Apollinaire são decisivos nisso—“são reais e importantes tanto para a pintura

quanto para o mundo visível”. Mesmo que ele não tivesse consciência dos seus critérios, ele tinha de

os possuir para saber quando algo era achado (sua famosa frase: “eu não procuro, eu acho”). Por fim,

“ter critérios para avaliar o próprio trabalho é agir com uma intenção”.

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Baxandall considera a análise ainda muito esquemática e geral. A partir da análise de Uma dama

tomando chá, de Chardin, visa dar um enfoque mais apurado, definindo a que outros fatores do troc a

crítica de arte pode se associar. Dito de outra forma, deve-se “examinar até que ponto se pode pensar

para fins críticos nas relações entre o interesse visual dos quadros e a reflexão sistemática (...) que faz

parte da cultura (...)”, dado que no troc, um pintor apenas desenvolve uma melhor sistematização das

ideias.

Grande parte do terceiro capítulo monta o cenário de Chardin ao pintar o quadro e o explica à luz do

conceito de nitidez corrente no “lockianismo vulgar” da época. Não é difícil afirmar que algumas

noções correntes de nitidez poderiam nos ajudar descrever o quadro. Essa construção da mentalidade

histórica se mostra necessária, mas não suficiente para compreender o quadro: ela pode ajudar a

descrevê-lo, mas não ajuda a explicá-lo. Para isso, as características pictóricas precisam vir à mesa.

Chardin—assim como Picasso e qualquer outro pintor—está inserido na história da arte. Em seu troc,

está a relação com outros trabalhos holandeses, além de suas próprias questões com a luz em seus

quadros. “Uma parte do problema dele, portanto, era de saber como conciliar esse esquema de uso

da luz, de grande função dramática, com o tema nórdico do ajuntamento de frutas e coisas

inanimadas e as cenas cotidianas da vida burguesa”, enquanto que as questões da visão nítida, se

entraram em suas diretrizes, “deve ter sido no nível da crítica e da autocrítica”. Os conceitos

internalizados por Chardin servem para nos ajudar a compreender melhor a obra na medida em que,

pictoricamente, isso se justifica segundo as intenções do pintor.

Chardin é capaz de usar a percepção para construir a narratividade “camuflada na despretensão de

sensações que não duram mais do que alguns instantes”. Em sua época, já se questionava o que a

pintura representa, já que um desenho técnico representaria a substância de forma muito mais

confiável—em oposição às sensações, no lockianismo vulgar. Uma dama tomando chá, “pode

representar uma percepção fugidia (...). Mas também é possível que o quadro represente uma

percepção global e duradoura, o registro de vários níveis de atenção (...). Ou ainda, pode ser o registro

dessa segunda forma de percepção sob a falsa aparência da primeira” (pág. 148-149). A narrativa é

fundamentalmente pictórica, um “registro de atenção reconstituído que nós mesmos, guiados pela

nitidez e por outros elementos, sumariamente voltamos a reconstituir”.

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A questão central reservada para O Batismo de Cristo de Piero della Francesca é saber até onde é

possível penetrar nas estruturas de intenções e qual é a validade crítica dessas observações. Mesmo

que este seja de fato o objetivo principal de Baxandall, é nessa busca que ele explicita o conceito que

me parece o mais importante e permeia todo o livro, o de ordem pictórica.

As questões linguísticas do início do livro são retomadas e agravadas por tratar de uma cultura muito

diferente da nossa. Reconhecendo a diferença entre a perspectiva do nativo e do observador, a mera

utilização do termo commensurazione para explicar os padrões de intenção de Piero já se mostram

eficientes. A impossibilidade de remontar a perspectiva do nativo é óbvia, usar isso como um

argumento contra o esforço de fazê-lo é o mesmo que “dissuadir alguém de treinar corrida

apontando que ele nunca vai correr uma distância em absolutamente tempo nenhum”.

À medida que avança, Baxandall rejeita explicações da alta iconografia, porque “elas se apoiam em

elementos adicionais”, exegéticos. Essas explicações podem ser substituídas por outras—mais

simples—que obedeçam às três posturas autocríticas de legitimidade, ordem e necessidade crítica e

estejam diretamente ligadas às características pictórica da obra.

A partir de uma primeira de análise, que é usada para testar a aplicação dessas posturas e delinear as

principais peculiaridades do quadro, ele propõe uma interpretação simples do quadro. Esta última é

guiada pelas posturas autocríticas e um forte conhecimento de causa. O fio condutor da análise são

os problemas pictóricos que Piero, enquanto pintor, encontrou. Por exemplo, ele teve de lidar com

uma situação nova: compor o batismo em um formato vertical. Isso criou um problema que ele teve

de resolver de acordo com sua linguagem pictórica, que não permitiria espremer os anjos em

primeiro plano, comprometendo a monumentalidade da pintura (uma forte característica de sua

obra).

Com essa postura, salta aos olhos o que faz da crítica inferencial muito mais do que uma explicação

histórica dos quadros: a consciência aguda de que os significados simbólicos “(…) não são imediata ou

individualmente necessários para a intenção que nos parece estar na origem da peculiar organização

de formas e cores que vemos nessa pintura”. O que emerge como potencial nesse tipo de crítica é,

sobretudo, a autoridade da ordem pictórica. Parece óbvio, mas é o que parece passar desapercebido

ou subvalorizado na maior parte das críticas: pintura é uma arte visual. “São eles [os dados visuais],

não os símbolos, a linguagem do pintor”.

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De fato, “é difícil ressaltar, numa explicação verbal de um quadro, a autoridade desses dados visuais

em comparação com a significação desta ou daquela coisa codificada em um dicionário de símbolos”.

Entretanto, “a autoridade deles é fundamental, se realmente levamos a sério que pintura é uma arte

visual”. Baxandall tenta explicar o que nos parece o conceito-chave do Padrões de Intenção, um

“elemento impreciso da organização da pintura (...): parece tão frágil, tão estético, e toma tanto

tempo”: a ordem pictórica.

Há uma questão em especial que marca O Batismo de Cristo: a relação entre o plano e o espaço

pictórico—um problema que lembra aquele defrontado por Picasso, séculos depois. O plano do

quadro estava perdendo seu peso para o espaço, em uma composição fortemente baseada na

profundidade. Piero parece ter criado paradoxos de acomodação em diversos elementos para

equilibrar a composição, “como se quisesse contrabalançar num nível infra-representacional a

energia de sua representação no espaço profundo”.

Embora reconheça que essas explicações seriam facilmente rejeitadas pelo campo da crítica,

Baxandall tem como objetivo primário, não convencer estar certo, mas “afirmar claramente uma

atitude: a de que este é medium pictórico através do qual as pinturas significam”. Para ele, a ordem

“pode ser observada em todas as coisas, desde a forma da pincelada de um pintor barroco até a

reestruturação da experiência visual implícita no Retrato de Kahnweiler, de Picasso; ou ainda na

manipulação da visão distinta por Chardin. Atrás de uma grande pintura supõe-se uma grande

organização—da percepção, da emoção, da construção".

A crítica inferencial, feita e construída de forma dialógica, não tenta categorizar as obras entre um

pólo estético e outro histórico; é capaz de identificar e respeitar o médium pictórico. A finalidade da

crítica não é se arrogar a autoridade da interpretação mais correta: o que determinará o valor de cada

uma delas é se o público puder apreciar uma obra com mais clareza. O público é o teste. Neste

sentido, quanto mais científica for a história, mais ela se torna crítica: os resultados e métodos

precisam ser mostrados e testados; se o resultado não for efetivo, aquela alternativa é rejeitada.

Baxandall encara que “se todas as informações históricas que apresentei (...) não inspirarem outras

pessoas a desenvolver uma compreensão mais aguçada da força pictórica (...) é sinal de que fracassei”,

e isso, diz ele, é bom. É revigorante. “Confere a uma pesquisa egoísta a virtude e a dignidade social

que de outro modo não teria”.