276
Universidade Federal da Bahia Instituto de Letras Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística Rua Barão de Geremoabo, nº147; CEP: 40170-290 Campus Universitário - Ondina, Salvador - BA Tel.: (71) 336-0790 / 8754 Fax: (71) 336-8355 E-mail: [email protected] PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE por Angela Sallenave Cambeses SALVADOR – BA 2005

PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

  • Upload
    buihanh

  • View
    223

  • Download
    8

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

Universidade Federal da Bahia Instituto de Letras

Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística Rua Barão de Geremoabo, nº147; CEP: 40170-290 Campus Universitário - Ondina, Salvador - BA

Tel.: (71) 336-0790 / 8754 Fax: (71) 336-8355 E-mail: [email protected]

PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE

por

Angela Sallenave Cambeses

SALVADOR – BA

2005

Page 2: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

Universidade Federal da Bahia Instituto de Letras

Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística Rua Barão de Geremoabo, nº147; CEP: 40170-290 Campus Universitário - Ondina, Salvador - BA

Tel.: (71) 336-0790 / 8754 Fax: (71) 336-8355 E-mail: [email protected]

PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE

por

Angela Sallenave Cambeses

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística da Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em Letras e Lingüística.

Orientadora: Profa. Dra. Mirella Márcia Longo Vieira Lima

SALVADOR – BA 2005

Page 3: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

Biblioteca Central Reitor Macedo Costa - UFBA

C174 Cambeses, Angela Sallenave. Paisagens com figuras: um estudo da obra de Cesário Verde / Ângela Sallenave

Cambeses. - 2005. 164 f. + anexo.

Orientadora: Profª·. Drª. Mirella Márcia Longo Vieira Lima. Tese (doutorado) - Universidade Federal da Bahia, Instituto de Letras, 2005.

1. Verde, Cesário, 1855-1886 - Crítica e interpretação. 2. Verde,.Cesário. Livro de Cesário Verde. 3. Poética. 4. Imagens - Interpretação. 5. Poetas portugueses - Séc. XIX. I. Vieira Lima, Mirella Márcia Longo. II . Universidade Federal da Bahia. Instituto de Letras. llI. Título.

CDU - 821(469).09 CDD - 869.13

Page 4: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

A

Minha maravilhosa família!

Page 5: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

AGRADECIMENTOS

� A Profa. Dra. Mirella Márcia Longo Vieira Lima pela cuidadosa orientação desta tese;

� Ao Prof. Dr. Renato Cordeiro Gomes e Profa. Dra. Ívia Iracema Duarte Alves pelas

sugestões dadas;

� Aos colegas de profissão pela compreensão e apoio;

� E a todos aqueles que, de uma forma ou de outra, contribuíram para elaboração desta tese.

Page 6: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

[...] Que pena que tenho dêle! Êle era um camponês

Que andava prêso em liberdade pela cidade...

Alberto Caeiro

Page 7: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

RESUMO

Objetiva-se evidenciar a singularidade da escrita do poeta português Cesário Verde. Para tanto, considera-se que a matéria da sua composição poética tem fontes na trajetória existencial do artista e na complexidade dos elementos estéticos e ideológicos que definiram a segunda metade do século XIX em Portugal. O estudo enfatiza os espaços poéticos de Cesário, particularmente a cidade contrastada ao campo. Em seguida, os focos do trabalho detêm-se sobre as figuras que povoam cidade e campo, em especial é focalizada a mulher que no século XIX tomou com desenvoltura e passo acelerado as ruas de Lisboa. Ao lado dessa figuração da Modernidade, são também objeto de comentário as trabalhadoras e uma alma popular que, enraizada no campo, migra para a Lisboa simultaneamente transformada e transtornada pelo processo de modernização.

Palavras-chave: Cesário Verde; cidade x campo; figuras lisboetas.

Page 8: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

ABSTRACT

The objective is to point out the poetical singularity of the Portuguese poet named Cesário Verde. To this intent we have to take into account that the subject of his poetical composition springs from the artist’s existential trajectory and from the complexity of the esthetic and ideological elements that defined the second half of the nineteenth century in Portugal. The present study emphasizes the poetical spaces of the author especially the city, contrasted with the country. Afterwards the focus of his work is embedded in the characters who populate the city and the country. The woman is taken as the main object since in the nineteenth century she quickly occupied the streets of Lisbon with liveliness and grace. Together with this representation of Modernity the work woman and a popular soul are object of his comments. This popular soul which is rooted in the country migrates to Lisbon, city which has been simultaneously transformed and disturbed by the process of Modernization.

Keywords: Cesário Verde; city x country; Lisbon characters.

Page 9: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 9

2 O POETA MODERNO: O HOMEM E O SEU TEMPO 18

2.1 O HOMEM 18

2.2 O SEU TEMPO 27

2.3 O POETA MODERNO 37

3 A PAISAGEM 52

3.1 ENTRE CIDADE E CAMPO 52

3.2 OS LUGARES E AS GENTES: VISÃO PANORÂMICA DA CIDADE DE CESÁRIO VERDE

63

3.3 LISBOA NUM FIM DE TARDE 74

3.3.1 O Sentimento dum Ocidental 78

3.3.1.1 Ave-Marias 78

3.3.1.2 Noite Fechada 81

3.3.1.3 Ao Gás 84

3.3.1.4 Horas Mortas 87

3.4 A PAISAGEM RURAL: O CAMPO E O SEU ESPÍRITO SECRETO 92

3.4.1 Nós 96

4 AS FIGURAS 108

4.1 A DAMA PÉ-DE-CABRA 112

4.1.1 A Atriz: Cristalizações 118

4.1.2 Outras Damas "Pé-de-Cabra" 125

4.2 AS TRABALHADORAS 134

4.3 A DAMA DOS SUAVES PÉS 140

4.3.1 Flores Velhas 141

4.4 A ALMA POPULAR 148

5 CONCLUSÃO 158

REFERÊNCIAS 164

ANEXO

Page 10: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

9

1 INTRODUÇÃO

Cesário Verde usava a tinta de forma singular...

João Cabral de Melo Neto

O presente trabalho objetiva primordialmente evidenciar para os leitores brasileiros,

e em especial para os estudantes dos Cursos de Letras da Bahia, a singularidade de Cesário

Verde.

Percebida pelo autor de “Paisagens com Figuras”1, a “forma singular” com que o

português usou as tintas na produção dos seus quadros poéticos deverá encontrar aqui uma

explicitação. Para conseguir esse intento, parto de dois princípios primordiais: o primeiro

diz respeito à consideração de que Cesário obteve essa singularidade mergulhando no seu

próprio tempo. As raízes de todos os elementos que compõem a sua estrutura formal – suas

imagens, suas técnicas de composição, seus jogos de luzes e sombras, suas idéias e suas

contradições – são relacionadas ao contexto histórico que o abrigou e que se refletiu em sua

vida, tanto quanto se reflete em sua obra. O segundo princípio aparentemente entra em

contradição com o primeiro, pois procura considerar que a escrita de Cesário ultrapassou os

códigos estéticos de sua época. Sua forma poética tornou-se singular, na medida em que

não se enquadrou totalmente em nenhum dos parâmetros estéticos e mesmo ideológicos, já

sistematizados no período em que foi produzida. Mas o paradoxo dissolve-se, se pensarmos

que, como um homem de seu tempo, o poeta teve uma experiência densa, que o fez

absorver tendências já codificadas e muitas outras que ainda se encontravam em estado de

1 MELLO NETO, João Cabral. Paisagens com figuras. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956.

Page 11: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

10

latência e permaneciam resistentes aos rótulos disponíveis. Assimilando vertentes históricas

e vetores culturais múltiplos, e até mesmo contraditórios, Cesário traduziu, numa escrita

poética singular, toda a complexidade da segunda metade do século XIX português,

deixando parecer, aos olhos de muitos, que extrapolava esse contexto.

Sintomaticamente, quando se começa a romper a espessa barreira de descaso ou de obtusa incompreensão perante a índole profunda, o alcance e o valor estético da obra de Cesário Verde, não é em vectores realistas, parnasianos ou naturalistas que surgem a inflexão hermenêutica e o louvor.2

Apesar de Cesário iniciar-se em plena década de 70, a primeira fase da sua

poesia é concedida a uma temática amorosa de laços românticos. Sua maioridade

poética, contudo, inicia-se a partir de 1875-1876, quando a sua obra, embora impregnada

pela estética realista, termina por ultrapassar esses parâmetros. Essa amplitude de uma

escrita que, aberta ao passado, sonda caminhos prospectivos levou a crítica a uma

diversidade de classificações, que contemplam, desde uma ótica naturalista, até uma

transfiguração expressionista e antevisões do surrealismo.

Tendo em vista o vasto leque de associações críticas, optei por tomar, como

ponto de partida, a enigmática singularidade que Cabral atribuiu à tinta de Cesário.

Construí um primeiro capítulo intitulado: O poeta moderno: o homem e o seu tempo.

Como o título já explicita, situei aí uma seqüência subdividida em três momentos com

ênfases distintas. Num primeiro momento, enfatizei O Homem, quando procurei dizer

quem foi Cesário Verde e, para tanto, inventariei uma série de informações biográficas

2 PEREIRA, José Carlos Seabra. Do fim-de-século ao modernismo. In: REIS, Carlos (Coord.). História crítica da literatura portuguesa. v. 7. Lisboa: Editorial Verbo, 2000. p. 81.

Page 12: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

11

que, projetando alguma luz sobre a especificidade da sua experiência humana,

eventualmente ajudasse, abrindo caminho para uma melhor compreensão da

singularidade que marca a sua poética.

Page 13: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

12

Inevitavelmente, a essa primeira etapa teria de seguir uma visão do panorama

histórico. Por isso, na etapa denominada O Seu Tempo, apresento a situação geral de

Portugal na segunda metade dos oitocentos, destacando principalmente o paradoxo

detectado por Jorge da Silveira em comentário sobre Cesário: Portugal era

simultaneamente o centro de um Império Colonial e um país periférico, em relação aos

países europeus que se encontravam em estágio mais avançado no processo de

industrialização.

Mas a situação contraditória de Portugal insere-se numa crise mais profunda que

atinge todo o Ocidente. Refiro-me às primeiras evidências de que a marcha para o

progresso anunciada pelo projeto Iluminista não poderia atingir a todos os povos e

constituir-se como um bem comum da humanidade. E mais: àquela altura da história,

ficava nítido que esse progresso transformador das paisagens e do próprio ritmo da

experiência humana trazia também instabilidade e miséria social. Esse impasse, geral no

Ocidente, tem em Portugal uma marca diferencial, na medida em que a nação periférica

confronta-se com os mitos contidos em seu passado; o centro desse Império, que é

também periferia, vê-se abalado pela crise geral, e por sua específica derrocada histórica.

Assim, numa terceira etapa, intitulada O Poeta Moderno, analiso o poema “Num Bairro

Moderno”3, com o intuito de mostrar que as soluções formais adotadas por Cesário

Verde constituem respostas aos impasses enfrentados pelo homem, pelo cidadão

português e pelo intelectual que se inseria na cultura do Ocidente.

Inovadores, os procedimentos de linguagem adotados pelo poeta enraízam-se na

experiência densa que o escritor teve no Portugal da sua época.

Page 14: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

13

Cesário viveu num país familiar e preso ao passado, mas, simultaneamente, ele

experimentou, na Lisboa de seu tempo, o transtorno dos que ingressam no desconhecido;

seus versos trazem a crônica de uma cidade que, sem conseguir desligar-se

completamente do projeto imperialista, era invadida por miséria e desequilíbrio social e

não deixava de exibir, em suas formas, as transformações preconizadas pelos projetos de

Modernização. O poeta foi desafiado a encontrar recursos de linguagem que o tornassem

capaz de expressar o impacto dessa paisagem ambivalente, onde trabalhadores ativos

movimentam-se celeremente, em contato com os desempregados e com toda sorte de

marginalizados.

Visivelmente influenciado por Hippolyte Taine, Cesário Verde quis ter um olhar

analítico e assim somou ao que parece ser uma natural ânsia de apreender o mundo

objetivo, uma tendência à exposição de detalhes. Como veremos, essa ansiedade de abarcar

a paisagem em seus planos multiformes fez com que o poeta extrapolasse a análise.

Portando uma extrema capacidade visiva, uma sensibilidade ao simultâneo e um desejo de

mudança social, Cesário terminou por fazer com que sua linguagem anunciasse

procedimentos que serão sistemáticos em correntes estéticas futuras.

Talvez por isso, a valorização do poeta deu-se, efetivamente, com o advento do

Modernismo através do reconhecimento de Mário de Sá Carneiro e de Fernando Pessoa;

principalmente de Pessoa, que significativamente recomenda, através de Alberto Caeiro a

3 VERDE, Cesário. Num Bairro Moderno. In: ______. Obra Completa. Prefácio, organização e notas de Joel Serrão. 7. ed. Lisboa: Livros Horizonte, 1999. p. 116-119.

Page 15: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

14

leitura do Livro de Cesário Verde “até lhe arderem os olhos”4 e conduz Álvaro de Campos

a exclamar: “ó Cesário Verde, ó Mestre”5.

A relação com os espaços da cidade e do campo sedimenta uma tradição na fortuna

crítica de Cesário Verde, chegando a ser mitificada por Alberto Caeiro através dos versos:

“Que pena que tenho dele/ Que andava preso em liberdade pela cidade.”6 Considerando a

densidade dessa relação que o poeta mantém com a paisagem que o envolve, e ainda tendo

em vista o diálogo estabelecido entre a sua intimidade afetiva e as imagens da cidade e do

campo, resolvi tomar seus espaços poéticos como centro do meu segundo capítulo

justamente intitulado A Paisagem.

Na sua primeira parte, esse segundo capítulo traz uma reflexão sobre a antinomia

cidade e campo, tal como ela se apresenta na obra de Cesário Verde, refletindo também

sobre a maneira como, ao longo da obra poética, esse binômio amplia-se e termina por ser

superado. À oposição entre cidade e campo agregam-se outras: a oposição existente entre

sociedade industrial e sociedade agrícola que, por sua vez, ecoa a relação tensa entre

Inglaterra e Portugal. Apresento, nesse item inicial – Entre Cidade e Campo –, essa

complexidade que, nos poemas de Cesário Verde, consegue ter o confronto entre campo e

cidade. De fato, o campo passa de cenário idealizado a espaço produtivo; no dizer de

Helder Macedo, alternativa real ao mal estar da vida urbana. Todavia, ao longo da sua

produção, Cesário foi apresentando um campo permeado por problemas.

No que concerne especificamente à cidade, considerei que Cesário jamais

abandonou uma atitude ambígua, permanecendo magneticamente atraído pelas formas

4 PESSOA, Fernando. Alberto Caeiro. In:______. Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1976. p. 205. 5 PESSOA, Fernando. Álvaro de Campos, op. cit., p. 314. 6 PESSOA, Fernando. Ficções do Interlúdio, op. cit., p. 205.

Page 16: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

15

urbanas, na medida mesma em que recusava as transformações exibidas por Lisboa e que

faziam com que a cidade fosse invadida por amplas contradições.

Via de regra, a apreensão dessas contradições é feita em conexão com o sentimento

de que a história é conduzida por um movimento de declínio. Embora se explicitasse em

meio ao fascínio exercido pelas formas urbanas – conforme eu busquei demonstrar na

segunda parte do segundo capítulo: Os lugares e as gentes: visão panorâmica da cidade de

Cesário Verde – essa “queda” atingia, de acordo com o poeta, todos os espaços. Para

qualificar essa decadência, tal como a concebe Cesário, analisei, numa terceira etapa de

desenvolvimento do segundo capítulo, o poema “O Sentimento dum Ocidental”7. Intitulei

essa passagem do meu texto Lisboa num fim de tarde.

Visto como fenômeno físico, o crepúsculo lisboeta é uma queda da luz em direção à

treva noturna; visto como imagem poética, ele representa uma decadência histórica e

cultural que concerne ao Ocidente como um todo e a Portugal, em particular. A persona

poética encena e internaliza esse declínio, quando caminha em sentido descendente pelas

ladeiras de Lisboa, indo pela Baixa na direção do cais. Além de recorrer a Helder Macedo,

interlocutor sempre presente ao longo de todo o trabalho, eu segui a perspectiva de Haquira

Osakabe que, em ensaio sobre Fernando Pessoa, considerou que os expoentes da cultura

portuguesa finissecular – Cesário entre eles – absorveram, além do naturalismo e do

realismo, a fantasia decadentista, depressão espalhada por toda a Europa. Assim, considerei

que, fiel ao movimento histórico, o escritor optou por um declínio que, da altura

característica ao verso camoniana, o conduziu à sua própria expressão. Solidário com a

decadência da civilização ocidental, o ânimo do poeta lírico também cai numa melancolia,

sentimento que constitui o eixo de toda a reflexão.

Page 17: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

16

Toda a obra poética de Cesário evidencia que, aos seus olhos, a cidade objetivava

uma específica dinâmica da história que ele teve dificuldade em aceitar. Falo da

Modernidade do século XIX, que Lisboa concretizou diante dos sentidos do poeta. Para

qualificar essa Modernidade, eu recorro a Marshall Berman, principalmente em sua

consideração de que, no século XIX, os projetos de modernização já ofereciam à

experiência humana uma paisagem transformada e sob o signo de uma instabilidade

profunda. E sigo o historiador Rui Ramos, em sua advertência de que, embora Lisboa não

tivesse alcançado o desenvolvimento de Londres e Paris, não é possível negar a ampla

transformação da sua paisagem.

Numa última etapa desse segundo capítulo, eu analiso o poema “Nós”8, enfatizando

a vida no campo, alternativa que Cesário tenta propor ante a doença civilizatória. Nesse

item – A Paisagem rural: o campo e seu espírito secreto – procuro demonstrar que o erro

atribuído por Cesário à Civilização coincide com a sua crítica à burguesia inativa e

improdutiva, vista como uma “raça” de fracos que confina e explora o poder vital, contido

na força física do homem simples e supostamente mais próximo a uma ordem natural.

Contudo, ao longo da reflexão desenvolvida em “Nós”, o poeta atesta que, a esse “erro” da

civilização ocidental, corresponde o ato injusto da natureza que ceifa o fraco, ainda que

esse fraco seja também o belo e o bom. Tal declínio dos valores que estruturaram a

civilização do Ocidente é vivenciado pela persona lírica como tragédia. Associando a esta,

uma tragédia familiar e pessoal, o poeta, como intelectual burguês, vê-se fadado a

sucumbir, junto com a arquitetura da civilização que também sucumbe.

7 VERDE, Cesário. O Sentimento dum Ocidental, op. cit., p. 149-156. 8 VERDE, Cesário. Nós, op. cit., p. 163-184.

Page 18: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

17

Mas se a Lisboa transformada e transtornada lançava, aos sentidos e ao espírito

analítico do poeta, um profundo desafio, Cesário desejou conhecer as figuras que

transitavam nessa paisagem. A elas, dedico o terceiro capítulo desse estudo: As Figuras.

Dentre essas figuras, destacou-se a mulher, principalmente a mulher que ganhou, nessa

segunda metade do século XIX, espaço nas fábricas, nas lojas e nas ruas.

Numa primeira parte do capítulo terceiro, focalizo especificamente essa dama cujo

passo desembaraçado e veloz conecta-se, na visão do poeta, à aceleração da vida moderna

que, em sua instabilidade, precipitava a caminhada na direção da morte. Aos olhos de

Cesário, a cidade é emblema da sua época; a mulher será personificação dessa cidade

moderna, figuração da própria Modernidade; em decorrência, o poeta sente, diante dessa

mulher, atração e medo. Optei por dividir a consideração da Dama Pé-de-Cabra, tendo em

vista que, no poema “Cristalizações”9, o poeta situa seus temores na dubiedade, no poder de

disfarce que ele atribui a uma atriz. Tudo indica que a ambigüidade do observador, feita de

atração e de recusa, é projetada sobre a mulher observada, de modo que ela surge associada

a uma luz enganadora, própria ao sol de inverno, que brilha sem cumprir a função de

aquecer. Dessa maneira, a “dama pé-de- cabra,” mulher que tem domínio das formas

urbanas e consegue caminhar celeremente pelas ruas macadamizadas, torna-se maligna,

principalmente por sua capacidade de atrair sem se deixar reter nem deter. Em certo

sentido, ela conecta-se ao ritmo da história e do mundo moderno que também recusam

qualquer tentativa de retenção.

Em Humilhações, a persona masculina reclama o desprezo da mulher inglesa que

humilha o amante, de modo similar ao tratamento que a Inglaterra conferia a Portugal.

9 Id., Cristalizações, op. cit., p. 122-125.

Page 19: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

18

Nesse terceiro capítulo, foi de extrema importância o estudo que Maria José de Jesus

desenvolveu sobre a mulher na segunda metade do século XIX.

Visando a completar o quadro das figuras presentes na paisagem de Cesário Verde,

eu continuei o terceiro capítulo com duas outras etapas. No item As trabalhadoras, refleti

sobre o imenso elenco de floristas, costureiras, operárias, verdureiras e varinas que surgem

nos textos de Cesário. Embora louvadas em suas resistências físicas, essas trabalhadoras

não se livram totalmente do olhar temeroso do poeta. De fato, a mulher por ele reclamada e

aclamada tem pés suaves que se deixam segurar; ela constitui não propriamente uma

lembrança, mas uma reminiscência, idealização de um tempo impossível e associada à

morte. Essa é a feição de Clarisse, em “Flores Velhas”10, poema que analisei no item: A

dama dos suaves pés. Por último, e para fechar o elenco das figuras, voltei a minha atenção

para a Alma Popular, presente em vários poemas, a partir da cogitação que Cesário dedica

ao povo português.

Durante os seus passeios pela cidade, Cesário reconhece nos operários o admirável

esforço de conquista do território urbano e o confronta com a tendência à queda da nação,

testemunhada pelos flagelos do Império. Assim, ao levar em conta as idéias predominantes

em Portugal na época de Cesário Verde, observei que, influenciado por Proudhon, seu

posicionamento distancia-se de muitas vertentes defendidas por seus contemporâneos, no

que diz respeito à visão do povo. Ao longo do meu texto, privilegiei a tensão existente entre

a visão de Cesário e algumas idéias de Oliveira Martins.

Quanto ao meu método de análise, desejo enfatizar o levantamento de unidades

simbólicas, a leitura comparativa dos poemas, feita com base nessas referências comuns.

10 Id., Flores Velhas, op. cit., p. 86-90. Deste poema existem duas versões: “Melodias Vulgares”, publicada em dez de 1874, no Jornal da Tarde, Porto; e “Flores Velhas” publicado no Livro de Cesário Verde, em 1887.

Page 20: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

19

Saliento ainda o diálogo sutil , mas constante, que travei com Cabral Martins. Se retirei de

Helder Macedo a lição sobre a necessidade de ir além da dimensão realista existente no

texto poético de Cesário Verde, aprendi com Cabral Martins a urgência de voltar a atenção

ao estrato ideológico marcante nesses versos e entranhado em todos os elementos formais.

Todos os poemas de Cesário Verde constantes deste trabalho foram extraídos da

sétima edição, de 1999, organizada por Joel Serrão e publicada pela Livros Horizonte, de

Lisboa. Em anexo, apresento as cópias dos poemas analisados em ordem cronológica de

publicação.

Page 21: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

20

2 O POETA MODERNO: O HOMEM E O SEU TEMPO

2.1 O HOMEM

Biografar poetas portugueses não é fácil. Além fronteiras, dos vultos célebres das letras, conservam-se preciosamente as obras de juventude, os documentos íntimos, a correspondência, as fotografias. [...] Entre nós tudo isso se destrói, inutiliza e extravia. Somos uma nação sem memória. Pior; só a temos para quem é pequeno.11

As palavras de Eça de Queiroz vêm justificar o método escolhido por João Pinto de

Figueiredo (1917-1984) no seu estudo sobre a vida de Cesário Verde que vai, através de um

discreto e apaixonado percurso, tentar resgatar a memória do poeta.

Tendo a importância da sua obra reconhecida, não pelos contemporâneos, mas pela

geração que se seguiu, Cesário Verde inclui-se entre esses vultos e não escapa à pátria

amnésia. Favorecem ao seu desconhecimento as lembranças apagadas – em parte – pelo

desaparecimento de originais e pela perda de diversas correspondências no incêndio que,

em 1919, destruiu o seu espólio.

Ao escrever sobre Cesário Verde, João Pinto de Figueiredo não se limitou a revelar

as descobertas feitas após cuidadosas pesquisas e investigações às fontes. Publicou-as,

transmitindo aos leitores e estudiosos da obra de Cesário o conhecimento dos fatos e da

vida, funcionando como subsídio a uma análise dos textos depois de amadurecida

elaboração. Preferiu apresentar um tipo de conversação crítico-biográfica de elevada

qualidade que supera, muitas vezes, os rígidos quadros apresentados por alguns biógrafos.

11 QUEIROZ, Eça apud FIGUEIREDO, João Pinto de. A vida de Cesário Verde. Lisboa: Editorial Presença, 1986. p. 11.

Page 22: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

21

Embora muitos tenham questionado o seu trabalho, considerando que o biógrafo

devia ter sido mais explícito em matéria de fontes, assegura quem o conheceu e ao seu

método de investigação, que João Pinto de Figueiredo, graças à sua retidão de caráter,

“jamais avançaria numa hipótese sem que a tivesse alicerçado uma antecedente e

escrupulosa indagação”.12 Logo, o método crítico-biográfico, por ele escolhido para

direcionar o seu trabalho, soma os dados da sua vida à sua experiência poética.

Evoco o discurso de João Pinto de Figueredo, não para limitar a análise da obra ao

exame da vida do autor, mas para buscar, o mais amplamente possível, a experiência total

de Cesário, transitando da estrutura dos poemas para os contextos ideológico e sociológico

de seu tempo, por sua vez postos em diálogo com os traços da vida e com dimensões

psicológicas possíveis de serem lidas no trabalho do biógrafo.

Além da análise de estruturas mais amplas, devemos levar em conta que o

significado maior da obra de Cesário não foi compreendido pelos seus contemporâneos que

se encontravam envolvidos num projeto aparentemente paradoxal de europeização e de

auto-identificação conhecido como “aportuguesamento”13 que os envolveu durante toda a

segunda metade do século XIX. Só mais tarde, o espírito inquiridor de Fernando Pessoa

pôde compreender a abrangência da poesia de Cesário, transformando-o no poeta que

instaura a modernidade em Portugal.

Ao destacar aqui algumas passagens da vida de Cesário extraídas das incursões

feitas por João Pinto de Figueiredo, procurei encontrar no rico material deixado por ele e

ainda por outros biógrafos, não menos reconhecidos, aquilo que, na sua trajetória, se revela

12 FERREIRA, David-Mourão. Algumas palavras sobre João Pinto de Figueiredo. In: ______. A vida de Cesário Verde. Lisboa: Editorial Presença, 1986. p .9. 13 VIEIRA, Afonso Lopes apud RAMOS, Rui. Prefácio a Segunda Edição. In: ______. História de Portugal. A Segunda Fundação. Lisboa: 2000. p. 16. Direção José Mattoso.

Page 23: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

22

esclarecedor para este trabalho, interferindo na sua poesia, e que de certa forma fortalece a

compreensão das imagens que Cesário apreendeu pela cidade. Essa busca de simbologias

novas, num tempo de mudanças, ele fez ao percorrer as ruas da capital.

Logo, a minha pretensão inicial, ao apontar para essas passagens, se limita a um

determinado momento da vida de Cesário, em que seu olhar vislumbra a cidade em

transformação e as figuras humanas que por ela desfilam, aspirando novos sonhos, se

agitando em constante movimento e preenchendo a mente do poeta de curiosidade e

apreensão. Os versos do poema “O Sentimento dum Ocidental”14 refletem o modo como o

poeta percorria Lisboa, na ânsia de compreendê-la:

Voltam os calafates, aos magotes,

De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;

Embrenho-me a cismar, por boqueirões, por becos,

Ou erro pelos cais a quem se atracam botes.

(CV. O Sentimento dum Ocidental, p. 149)

Ainda que a sua infância o tenha marcado definitivamente, através das constantes

viagens à Quinta da Linda-a-Pastora – lembremos do poema “Nós” –, esse período da sua

vida terá uma importância maior na representação voltada para o campo, local acolhedor,

visto que as viagens para lá eram empreendidas pela família Verde muitas vezes em

condições dramáticas devido aos males imprevisíveis que os levavam a abandonar

temporariamente Lisboa em busca de um refúgio seguro.

14 A partir desta nota, as estrofes dos poemas de Cesário Verde serão identificados como (CV. Título, página) e os versos isolados, citados no interior do texto, serão identificados apenas como (CV. p.)

Page 24: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

23

O poema “Nós” reflete todo esse drama familiar, uma vez que as imagens da

infância ficam registradas na mente do poeta permeadas da angústia de um tempo que não

iria mais se apagar.

Page 25: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

24

Foi quando em dois verões seguidamente a Febre

E o Cólera também andaram na cidade,

Que esta população, com um terror de lebre,

Fugiu da capital como da tempestade.

(CV. Nós, p. 163)

Sendo assim, esse espaço, se mostra na sua obra como um refúgio momentâneo no

qual as impressões então colhidas apresentavam a lembrança de um local seguro. Longe das

pestes e das ameaças à saúde da família, eles se recolhiam confortavelmente até os perigos

de contaminação desaparecerem da cidade e a família poder retornar a sua rotina natural.

E o campo, desde então, segundo o que me lembro,

É todo o meu amor de todos esses anos!

Nós vamos para lá; somos provincianos

Desde o calor de maio aos frios de novembro!

(CV. Nós, p. 164)

Este campo mostrou-se, muitas vezes, exultante e farto, um salutar refúgio, mas

também, uma lucrativa vivenda, cuja extensão de terra produtiva Cesário passa a

administrar a partir de 1875, quando o seu pai, Sr. José Anastácio Verde, lhe confia a

direção dos negócios, incluindo loja e propriedade. O aspecto será desenvolvido adiante,

quando analisarmos o poema “Nós”, cujos versos refletem episódios significativos da sua

biografia.

Todavia, as paisagens que mais fortemente mobilizaram o imaginário do poeta

brotaram da dinâmica da cidade com as figuras humanas que por ela se movimentavam.

Mantendo o trânsito do olhar analítico entre biografia e literatura, busco os versos mais

reveladores dessa vivência, somando assim, aos dados biográficos, a experiência poética

Page 26: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

25

procurando encontrar a “estrutura de uma existência” 15 para um maior conhecimento da sua

poesia.

Situado em local privilegiado, o estabelecimento comercial do Sr. Anastácio Verde

tinha duas espécies de fregueses. Os que vinham da Rua da Alfândega eram arrais, artífices,

campônios; os egressos da Rua dos Fanqueiros eram lojistas, donos e donas de hospedaria,

mulheres de funcionários, burguesinhas. Foi desse observatório ou em andanças pelas ruas,

que Cesário pôde olhar as paisagens citadinas e encontrar para elas um lugar na poesia.

O ingresso na loja de ferragens aconteceu imediatamente após as férias na Quinta,

seguindo a Primavera de 1871. Cesário começa a cuidar das correspondências da firma, da

contabilidade, e se juntava aos caixeiros, segundo as conveniências do momento. Apesar do

trabalho intenso, em determinada hora do dia era possível espiar o movimento constante de

transeuntes nas ruas, nos bondes, nos carros de aluguer.

A vantajosa situação do estabelecimento proporcionava a Cesário a visão de duas

cidades diferentes. De um lado do rio estava a Lisboa industrial, marítima, dos calafates e

das varinas, dos arsenais, das oficinas e dos cais; do outro, a Lisboa mercantil, burguesa,

dos magasins, das costureiras e das elegantes figuras.

Observem-se as duas quadras de paisagens descortinadas por esse único ponto de

observação.

Vazam-se os arsenais e as oficinas,

Reluz viscoso, o rio; apressam-se as obreiras;

E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,

Correndo com firmeza, assomam as varinas.

(CV. O Sentimento dum Ocidental, p. 142)

15 BARTHES, Roland apud. COMPAGNON, Antoine. Intenção e consciência. In: ______. O demônio da

Page 27: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

26

Teoria. Literatura e senso comum. Belo Horizonte: UFMG, 1999. p. 66.

Page 28: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

27

E mais: as costureiras, as floristas

Descem dos magasins, causam-se sobressaltos;

Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos

E muitas delas são comparsas ou coristas.

(CV. O Sentimento dum Ocidental, p. 144)

Logo essa multifacetada visão, que tanto abarcava a modesta gente como os

burgueses da parte mercantil, atraiu a curiosidade do poeta e despertou a sua atenção para

pessoas pitorescas que circulavam ruidosamente pelas ruas e que vão fazer parte da sua

obra como personagens de uma crônica citadina.

Nesse ambiente variado, Cesário Verde deixava-se impressionar também por

pequenas coisas: um pregão, um ruído de talher, uma quantidade excessiva de luz, a brisa

do Tejo evocadora de heróis e de epopéias e também ficava atento à visão dos

encouraçados ingleses e paquetes da Royal Mail atracados no porto. Tudo o que via e ouvia

dava-lhe sensações fortes e os tormentos que mais tarde veríamos expressos nos seus

poemas.

E o fim da tarde inspira-me; incomoda!

De um couraçado inglês vogam os escaleres;

E em terra num tinir de louças e talheres

Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.

(CV. O Sentimento dum Ocidental, p. 142).

Ao fechar a loja, Cesário errava pela Baixa, onde o movimento ia gradativamente

diminuindo com a presença mais lenta das carroças e carros de boi, vendo-se vez por outra

um coupé particular ou os trens de praça. Alguns grupos de trabalhadores podiam ser vistos

à porta dos cafés ou restaurantes antes de retornarem às suas casas.

Page 29: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

28

Entre os que se mostravam às horas mais avançadas, encontravam-se os guardas-

noturnos, os pedintes, as mulheres arrastando-se pelas esquinas. E porque alguns já se

haviam recolhido, podia-se ver, através das janelas, os serões burgueses, e os interiores dos

lares de família pobres em triviais atividades domésticas. Estes últimos eram tipos que

tornavam o poeta mais entristecido. Longe dos bairros burgueses e da zona comercial,

achava-se a pobreza, quando não a miséria.

O quadro interior, dum que á candeia,

Ensina a filha a ler, meteu-me dó!

Gosto mais do plebeu que cambaleia,

Do bêbado feliz que fala só!

(CV. Noitada, p. 126)

Esse variado ambiente citadino também despertou, em Cesário, sorrisos e olhares

para as jovens floristas, costureiras e atrizes que cruzavam o seu caminho – as atrizes em

especial – provavelmente pela imensa paixão que os palcos luminosos dos teatros lhe

despertavam.

A paixão por Tomásia Veloso, que aconteceu no período em que Cesário repartia o

seu tempo entre a família, os cafés e teatros, gera desavenças com seus protetores. A

adolescente nessa época fora contratada para atuar em Lisboa no novo teatro da rua da

Palma, o Príncipe Real.16 Encenava o Verde Gaio, quando ele a conheceu e logo fora

cativado pelo seu talento gracioso e pelo seu físico imaturo ao gosto do poeta. Tomásia será

citada no poema “Cristalizações”, pois certamente a atriz referida não é uma figura

imaginária.

16 FIGUEIREDO, João Pinto de, op. cit., p. 112.

Page 30: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

29

Donde ela vem! A atriz que eu tanto cumprimento;

E a quem, à noite, na platéia, atraio

Os olhos lisos como polimento!

Com seu rostinho estreito, friorento,

Caminha agora para o seu ensaio.

(CV. Cristalizações, p. 125)

O gosto particular por um perfil feminino que se distinguia da tradicional mulher-

matrona é revelado em muitos dos seus versos. Recordemos as descrições das irlandesas em

“Manhãs Brumosas”17, “alta escorrida”, traço comumente encontrado nas estrangeiras e que

fizeram parte do universo da sua poesia.

Balzac é meu rival minha senhora inglesa!

Eu quero-a porque odeio as carnações redondas;

Mas ele eternizou-lhe a singular beleza

E eu turbo-me ao deter seus olhos cor das ondas.

(CV. Humorismos de amor, p. 95)

A apreensão de todo esse rico universo através de caminhadas foi, no final do ano

de 1871, feito com certa liberdade, já que a família Verde só retornaria à capital no início

do ano seguinte, em 72, quando Cesário é incumbido de dirigir a propriedade agrícola.

Porém, essas paisagens que continuaram a fazer parte da sua vida cotidiana constituem o

centro dos seus primeiros trabalhos poéticos iniciados no ano de 1973, cuja originalidade

ainda não alcançava aquela dos versos da sua maturidade literária.

17 VERDE, Cesário. Nós., op. cit., p. 137.

Page 31: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

30

Embora distante, das avenidas efervescentes das grandes metrópoles, o universo da

Rua dos Fanqueiros transformava as pequenas coisas em fascinantes episódios da vida

cotidiana que ganhavam relevo especial no espírito atento do poeta.

A partir de 1877, Cesário já havia escrito alguns poemas de significativo valor,

tendo sido visto muitas vezes no Martinho a rabiscá-los. Iniciava uma longa e cansativa

peregrinação pelos jornais em busca da publicação de alguns dos seus poemas sem,

contudo, obter êxito. Decidira ingressar no Curso Superior de Letras num desejo talvez de

buscar outras relações longe dos meios comerciais. Os poemas – “Humorismos de Amor”18,

“Sardenta”19, “Vaidosa”20, “Esplêndida”21 – começam a dimensionar mais solidamente as

singularidades do seu estilo.

Suas primeiras publicações causaram escândalo público e rejeição da crítica. Vindos

de personalidades conhecidas – Ramalho Ortigão, Fialho de Almeida, Teófilo Braga –

alguns ataques terão provavelmente trazido ao poeta, além de mágoa, problemas de ordem

pessoal. As reações à publicação de “Cristalizações” e “Em Petiz”22 atestam as atitudes

adversas de alguns leitores que não compreenderam, naquele momento, as pretensões

artísticas do poeta, como sucedeu com as manifestações de Angelina Vidal, redatora da

Tribuna do Povo, desmerecendo-lhe o talento, o que gerou uma série de desentendimentos.

Ainda para fortalecer esse desdém pelas suas poesias publica-se, no Diário Ilustrado, na

Folha de Eduardo Coelho, as irônicas “Pérolas Realistas”, referência aos versos que se

seguem, do poema “Em Petiz”:

18 Id., Humorismos de Amor, op. cit., p. 95-97. 19 Id., Sardenta, op. cit., p. 121. 20 Id., Vaidosa, op. cit., p. 75. 21 Id., Esplêndida, op. cit., p. 71-72.

Page 32: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

31

Ah! Os ceguinhos com a cor dos barros,

Ou que a poeira no suor mascarra,

Chegam das feiras a tocar guitarra,

Rolam os olhos como dois escarros!

(CV. Em Petiz, p. 132)

Na Universidade conhecera Silva Pinto, o jovem republicano, sete anos mais velho

que ele, de temperamento forte, que desperta a estima e admiração do poeta, destacando-se

pelo interesse que demonstra ter pelos seus poemas, rejeitados ou ignorados por todos.

22 Id., Em Petiz, op. cit., p. 131-136.

Page 33: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

32

Importante na trajetória de Cesário, Silva Pinto foi o responsável, de certa forma, pela

inserção do poeta no meio literário, passando a conhecer intelectuais como Teófilo Braga,

João de Deus, Gomes Leal, Bittencourt Rodrigues, Fernando Leal, além de alguns

jornalistas do meio, freqüentadores de uma tabacaria da Rua Augusta e também do

Martinho. Realizadas junto a uma intensa atividade política, essas noitadas literárias não

tardaram a prejudicar a saúde frágil do poeta. A tuberculose que matara seus irmãos

também o atingiu.

O convívio com Silva Pinto não podia manter-se indefinidamente. Numa manhã de

janeiro, o amigo partiu para o Norte, onde havia a promessa de emprego. Contudo, a

amizade prosseguiu, tendo sido cultivada à distância. Encontrava-se em Lisboa quando

acontece a morte prematura de Cesário, em 19 de julho de 1886. Em abril de 87, Silva Pinto

tomaria a si a tarefa de organizar e publicar o Livro de Cesário Verde. Dividido em duas

partes – Crise Romanesca e Naturais –, incluía vinte e duas poesias, e poucos exemplares

impressos que foram distribuídos entre familiares e amigos.

2.2 O SEU TEMPO

No final do século XIX, o Ultimatum inglês (1890) – cerceando-lhe o direito de ir e vir pelo interior de suas próprias possessões, a Inglaterra obriga Portugal a reconsiderar os seus domínios ultramarinos – põe em carne viva o dilema nacional de ser simultaneamente o centro de um Império Colonial e a periferia da Europa23

Constatando que a obra poética de Cesário Verde foi escrita no período da história

portuguesa que antecedeu e, de certa forma, teve sua mais clara expressão no Ultimatum

23 SANTOS, Boaventura de Souza. Onze teses por ocasião de mais uma descoberta de Portugal. São Paulo: Novos Estudos: CEBRAP, 1992. p. 136.

Page 34: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

33

Inglês, Jorge da Silveira absorve a reflexão de Boaventura de Souza Santos sobre o final do

século XIX português. Assim, o crítico conclui que o poeta deve ter reagido ao dilema

imposto pela contradição do país – ser simultaneamente Império e periferia –

transformando tal dilema numa dificuldade expressiva: “Com que linguagem escrever o

presente?”24

Movido por essa indagação, Jorge da Silveira direciona o leitor de Cesário Verde

para um trajeto poético que dialoga com o itinerário das viagens portuguesas. Além da

curiosa apreensão das novidades, Cesário Verde teria, segundo a perspectiva do ensaísta,

observado uma sociedade contraditória, cujas transformações incluíam tentativas de

acompanhar o movimento civilizatório que atravessava a Europa no século XIX, embora

essa mesma sociedade se mantivesse à margem dele.

Tomando uma direção particular, proponho-me surpreender, nos versos de Cesário,

respostas à questão formulada por Jorge da Silveira. Com tal finalidade, vou antes focalizar

um pouco a situação histórica referida em seu ensaio.

Nas últimas décadas do século XIX, o entusiasmo com o modelo de uma sociedade

industrial voltada para o progresso já entrava em crise. Os grandes centros urbanos

evidenciavam mazelas sociais cada vez mais insolúveis. Portugal – Império Colonial e

simultaneamente nação periférica, em relação aos centros do capitalismo industrial – sofria

alguns dos malefícios dessa crise, sem ter atingido os padrões estabelecidos pela “religião

do progresso”.

Ao nomear as figuras que permeiam a obra do poeta como “náufragos da civilização

industrial”25, Jorge da Silveira nos conduz à visão do Portugal que inspirou a obra de

24 SILVEIRA, Jorge da. Cesário, duas ou três coisas. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1995. p. 8. 25 Ibid, p. 8.

Page 35: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

34

Cesário Verde como nação que naufragava meio às ondas que varriam a Europa. Os olhos

de Cesário recortam as figuras que protagonizam esse naufrágio; são figuras terrenas que

povoam a cidade, transportando consigo evidências que obrigaram o olhar realista do poeta

a inverter o sentido glorificador da epopéia camoniana. Em “O Sentimento de um

Ocidental”, Jorge da Silveira chama a atenção para o jogo verbal varões/varinas, fazendo

das mulheres que vendem peixe no porto as herdeiras e, simultaneamente, as substitutas dos

heróis que, no discurso glorificador da pátria, personificaram a nação.

De acordo com tal perspectiva, ao promover a viagem “de costas para o passado”26,

o poeta decide voltar o olhar para o local onde tudo começou. E agora, ao invés de olhar o

distante, o exótico, espantando-se com o desconhecido, como foi a emoção dos cronistas a

bordo das naus, ele inverte o foco para a cena próxima, passando a ver o que não era visto:

a cidade às margens do Tejo. De fato, Cesário será o cronista dessa terra familiar e ao

mesmo tempo desconhecida; ele faz a crônica de uma Lisboa que, trazendo os traços da

miséria prevista no Restelo, expõe também as marcas de um novo tempo – a Modernidade

– sem conseguir desligar-se do projeto imperialista.

Apresentando natureza histórica, o paradoxo português impõe aos olhos do poeta

uma paisagem, onde trabalhadores ativos, que anonimamente se movimentam na dinâmica

do crescimento urbano, convivem com os excluídos do processo modernizador, aqueles que

dele se acham marginalizados. Calceteiros, carvoeiros, padeiros, varinas, ferreiros,

costureiras compõem a força de trabalho dinâmica e ruidosa das cidades; e ainda os

fruteiros, as verdureiras transportam para a cena urbana a “formidável alma popular” dos

campos. Ao lado desses – alguns sub-empregados e explorados por inadequadas condições

de trabalho – existem ainda os miseráveis, as messalinas, os bêbados, o “velho professor de

Page 36: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

35

latim”, desventurados que também integram os quadros citadinos diante dos olhos

indiferentes e cruéis dos poderes públicos. De acordo com a sensibilidade social do poeta, e

com sua ideologia eivada de republicanismo, esses marginalizados teriam perdido uma

identidade social que só o trabalho pôde garantir.

Em alguns versos do poema “Nós”, Cesário Verde completa a geografia humana,

que aparece em “O Sentimento de um Ocidental” e em tantos outros textos, surpreendendo,

no ambiente rural, personagens sem identidade profissional: pobres artistas, artesãos e ex-

trabalhadores que ali desfilam desesperançados. São homens que vagam pelos campos onde

os impostos municipais, a filoxera e demais obstáculos ao desenvolvimento

desequilibraram economicamente o proprietário rural e empobreceram a sua mão de obra.

Podemos compreender o tom entristecido de Cesário nesse poema. Sua condição de

proprietário rural lhe permitiu sentir de perto esses problemas.

Mas hoje a rústica lavoura, quer

Seja o patrão, quer seja o jornaleiro,

Que inferno! Em vão o lavrador rasteiro

E a filharada lidam, e a mulher!

(CV. Nós, p. 178)

Vou recuperar alguns dados que melhor evidenciem a situação de Portugal no

período em que ocorreram a vida e a obra de Cesário Verde, para que melhor se explicite o

modo como o impacto das transformações repercutiu em seus poemas.

De acordo com Rui Ramos: “[...] só porque Portugal não cresceu como a Inglaterra

e a Alemanha, e porque Lisboa era mais pequena do que Paris, é um erro definir como

26 Ibid. loc. cit.

Page 37: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

36

irrelevantes as transformações que se verificaram em Portugal nesta época”.27 Lisboa é o

espaço que, com mais nitidez, evidencia essas mudanças. O grande destino dos que saíam

das suas terras para ficar no País eram as cidades. Segundo dados do historiador28

[...] Entre 1864 e 1900, enquanto a população geral chegou a 31%, a população das cidades portuguesas quase duplicava, passando de 474.517 para 811.162 habitantes. A percentagem de população vivendo nas cidades e vilas cresceu de 28% para 33% do seu total. Lisboa viu os seus moradores aumentar e os campos escassearem os seus habitantes.29

Assim, o deslocamento populacional não era um mero detalhe da situação

portuguesa, mas um dos mais importantes fatores da vida social, econômica e cultural de

Portugal.

Essas mudanças causadas pelo barateamento dos cereais, pela subida dos salários

nos campos, acrescidas das pragas que devastaram as lavouras, provocaram a

desvalorização das propriedades rurais, corroendo assim a base do tradicional poder que as

elites agrárias desfrutavam em Portugal. As dificuldades de obtenção de crédito e o

aumento de impostos municipais só vieram a sofrer alterações positivas tardiamente,

quando muitos dos proprietários já se encontravam em condições financeiras precárias.

Com todas essas dificuldades, o homem do campo buscava, cheio de esperança, os grandes

centros, formando uma massa de trabalhadores urbanos.

Em decorrência, crescem as tensões sociais do país. Um proletariado cada vez mais

consciente começa a reivindicar seus direitos; há um avanço significativo nas aspirações

sociais dos habitantes de Lisboa. Além disso, o confronto de perspectivas políticas agitava

27 RAMOS, Rui. Prefácio a Segunda Edição, op. cit., p. 35. 28 Ibid., p. 36. 29 Ibid. loc.cit.

Page 38: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

37

Portugal, onde a propaganda republicana, cada vez mais fortemente, projetava, no seio do

povo, a consciência de uma identidade coletiva.

Certamente que em alguns setores, como crescimento demográfico, alfabetização,

mortalidade, Portugal aproximava-se mais da Europa do Sul, fazendo realmente parte de

um grupo periférico. A situação social e econômica de Portugal agravava-se, sendo este o

principal motivo de seu distanciamento com relação ao Norte da Europa. A independência

do Brasil, em 1822, retirara dos cofres do Império Colonial a sua principal fonte de

rendimento. Finalmente, depois de 1860, os portugueses sofreram com a quebra dos valores

dos seus produtos agrícolas e foram incapazes de competir com as novas tecnologias

européias.

Na navegação, os veleiros portugueses vão desaparecendo dando lugar aos vapores

ingleses. Portugal não tinha condições materiais para produzir, a preços competitivos,

produtos que os países ricos importavam em grandes quantidades de mercados mais

baratos. Por isso, a integração das atividades econômicas portuguesas na economia mundial

era muito reduzida.

Quanto à indústria, não houve, na segunda metade do século XIX, um setor

industrial que tivesse crescido a ponto de mudar radicalmente a estrutura da população

ativa como aconteceu no Norte da Europa. Em suma, Portugal aproximava-se dos países da

Europa Ocidental pela organização liberal da sua política interna, mas os indicadores de

riqueza deixavam-no numa situação de economia periférica, o que se refletia nas relações

externas, principalmente com a Inglaterra.

Muitas das figuras humanas representadas por Cesário buscavam sobreviver em um

universo pleno de sinais de que o Império Colonial estava, de fato, naufragando. Os

trabalhadores associavam-se em cooperativas, em agremiações, em sindicatos. Empregadas

Page 39: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

38

nas fábricas, nas minas, nos arsenais e na construção urbana, as massas de trabalhadores

começaram a organizar-se e a ouvir o discurso dos agitadores. Em Portugal, o sistema

representativo sabia fazer pressão sobre os representantes da nação e sobre a administração.

Diante de tal situação interna, a ocorrência das pressões externas – que vão culminar

no Ultimatum – faz despertar o sentimento da “questão nacional.” Esse sentimento tem um

importante registro dez anos antes do Ultimatum, com o centenário de Camões, em 1880,

gerando um movimento de agitação entre os intelectuais impregnados das teorias

divulgadas por Antero de Quental, Oliveira Martins e Teófilo Braga. Essas teorias

promulgavam a necessidade de uma ordem que se adequasse a uma nova organização

política e econômica, que se costumava nomear de “consciência nacional”. Foi dentro desse

quadro que nasceu “O Sentimento de um Ocidental”, poema escrito para o III Centenário

Camoniano.

A apreensão dessa moldura histórica faz-se necessária, pois ela se forma e se

fortalece em meados do século XIX, período do amadurecimento poético de Cesário. Além

disso, tal moldura nos fará compreender os significados das imagens recortadas pelo poeta,

o modo como ele direciona seu olhar sobre as figuras que se agitam nas paisagens

portuguesas.

Cesário não podia, naquele contexto eivado de crescente nacionalismo, evidenciar

apenas a decadência, sem que mostrasse, na Lisboa atingida por transformações, a

necessidade de uma solução para a situação nacional. Assim, ao lado do “naufrágio” do

projeto imperialista, tão bem destacado por Jorge da Silveira, anoto um certo fascínio,

presente nos versos do poeta que olhava a construção das vias urbanas e a marcha dos

cidadãos sobre elas, como uma espécie de repatriação, metáfora para uma nova necessidade

de conquista: a do trabalhador português desafiado a controlar o seu território, bem como as

Page 40: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

39

condições de sua própria história. Os calceteiros que abrem caminhos na Lisboa

modernizada assinalam, para Cesário, a urgência de uma nova rota a ser seguida.

No poema “Cristalizações”, Cesário aproxima os valadores e calceteiros às

intrépidas naus e aos argonautas, ao utilizar uma terminologia náutica nos versos que se

encerram com a Cruz de Malta no peito dos trabalhadores.

E nesse rude mês, que não consente as flores,

Fundeiam-se, como esquadra em fria paz,

As árvores despidas. Sóbrias cores!

Mastros, enxárcias, vergas! Valadores

Atiram terra com largas pás.

[...]

Povo! No pano cru rasgado das camisas

Uma bandeira penso que transluz!

Com ela sofres, bebes, agonizas:

Listrões de vinho lançam-lhe divisas,

E os suspensórios traçam-lhe uma cruz!

(CV. Cristalizações, p. 124)

A glória abstrata do passado parece descer ao plano concreto da luta diária. Para

enfrentar seus obstáculos, os trabalhadores contam com a própria força física. Vendedores,

padeiros e verdureiras fornecem um pano de fundo moral, cujos valores se sedimentam no

esforço laborioso e no apego ao próprio trabalho. Nesse modelo, outros deverão encontrar

inspiração; refiro-me aos intelectuais e artistas também aludidos por Cesário Verde. O

problema máximo a enfrentar advém da força debilitadora que a ordem social injusta impôs

ao longo da história. Em larga medida, a obra de Cesário confronta a força da natureza e da

Page 41: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

40

“alma popular” à atração pelo declínio que cobre todo o Ocidente. Tal tendência à queda

surge como fruto de uma Civilização errada que deu poder aos mais fracos e debilitou os

fortes.

Não podendo deter-se numa visão idealizada do campo – perceptível apenas nos

primeiros textos – Cesário faz, em dado momento, uma espécie de opção pela cidade,

testemunhando nela os flagelos do Império e, ao mesmo tempo, admirando o esforço de

conquista do território urbano empreendida pelos novos agentes da história. Ali, a

sobrevivência diária parece ser o novo desafio a ser desenvolvido por cada habitante

citadino.

Junto a essa deambulação pelo espaço urbano, o poeta parece ainda buscar uma

solução poética que o ajude a expressar seu anseio de conciliação entre as raízes agrárias do

país e a opção de ingressar na Modernidade da Europa. Embora esse anseio vá ser

especialmente focalizado a seguir, adianto que ele interfere na composição das imagens,

aqui e ali cortadas pela antevisão de um campo modernizado pela tecnologia, cujo valor

pudesse se impor à cidade e para ela transferir a energia e o vigor necessários às conquistas

cotidianas.

Diante das complexidades da moldura histórica, cabe agora retornar à questão

levantada por Jorge da Silveira: “Com que linguagem, então, escrever o presente?”30.

Certamente, bebendo em fontes que nortearam toda a geração de 70, Cesário Verde

orientou-se de acordo com uma vocação realista. Sua consciência poética voltou-se para a

objetividade, o que imprimiu, no seu verso, um peculiar traço narrativo. No entanto, para

ser fiel à multiplicidade de aspectos que seu olhar surpreendeu nesse contexto, Cesário

ultrapassou a lógica subjacente ao realismo, adotando procedimentos formais que, ao

Page 42: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

41

quebrarem a linearidade da narrativa realista, visavam a uma expressão mais fiel dos

paradoxos da história; esses procedimentos introduziram de fato uma expressão moderna na

poesia portuguesa.

Falando sobre Cesário Verde, Eduardo Lourenço conclui que sua poesia expressa “a

essência da aventura humana enquanto cultura urbana, desintegrante e desintegrada.”31 Para

dar conta dessa desintegração, Cesário vai preservar, na forma do poema, a natureza

descontínua, subjacente à sua própria experiência da realidade. Daí seus quadros poéticos

operarem com a aglutinação, fazendo descrições de cenas, cuja somatória tem aspecto de

mosaico.

O poeta português, como leitor de Baudelaire, assimilou em seus versos

“movimentos característicos de uma câmera fotográfica”.32 Operando com cortes, com

simultaneísmos, o poeta procurava uma linguagem adequada aos novos estímulos propostos

por uma Lisboa simultaneamente transformada e transtornada.

Acrescento que, em larga medida, a experiência de Cesário Verde constitui uma

experiência finissecular e, por isso, ele não escapou à visão de que o mundo Ocidental, e

toda a civilização por ele criada, estavam em profundo declínio. Evidentemente que essa

noção constitui o pano de fundo do movimento cultural que se costuma nomear como

decadentismo. De acordo com Haquira Osakabe, a “glamourização”33 da palavra

“decadentismo” acabou por atenuar o impacto da substancial transformação pela qual o

século estaria passando, ocultando em boa parte o estado de profunda depressão que iria

30 SILVEIRA, Jorge da, op. cit., p. 9. 31 LOURENÇO, Eduardo. Os dois Cesários. Estudos portugueses: homenagem a Luciana Stegagno-Picchio. Lisboa: Difel, 1991. p. 971. 32 FARIA, Regina Lúcia de. Cesário Verde: um pintor da vida moderna. Lavra Palavra, Rio de Janeiro: PUC, p. 128, 1993. 33 OSAKABE, Haquira. Nem Deus nem a Humanidade. In: ______. Fernando Pessoa: resposta à decadência. Curitiba: Criar, 2002. p. 30-32.

Page 43: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

42

sofrer a Europa. “E essa depressão resultava não tanto do declínio de um tipo particular de

sociedade, mas da dissolução da tradição ética que o mundo ocidental teria erigido para

si.”34

Abarcando esse pano de fundo sombrio, Cesário Verde distancia-se do

“decadentismo” estético, não adotando a solução prevista por esse movimento; nas palavras

de Osakabe:

[...] o que salvou a humanidade do mergulho completo em sua própria dissolução foi que o decadentismo vislumbrou para o homem e para a época uma saída estratégica, com a superação da ética pela estética, através de um universo paralelo ao universo quotidiano, atitude que permitiria reorganizar e assimilar o que de excrescente parecesse àquele mesmo quotidiano.35

Embora no poema “Num Bairro Moderno”, Cesário ensaie essa saída pela via

estética, ele não se distancia duma ética que o fará aproximar-se do socialismo,

particularmente do socialismo de Prudhon. Assim, sua “visão de artista” irá compor um

quadro ideologicamente direcionado. Apesar desse distanciamento, não é possível deixar de

observar que a noção de decadência permeia toda a sua obra, de modo que ele, qualificando

a si próprio como Ocidental, irá manifestar-se interiormente adoecido por essa atração pelo

declínio.

Em síntese, foi para escrever o presente com fidelidade à complexidade da sua

experiência, conforme ditavam os princípios realistas, que Cesário viu-se obrigado a

ultrapassar os padrões da linguagem realista e introduzir uma nova expressão poética em

Portugal.

34 Ibid., p. 31. 35 Ibid., p. 32.

Page 44: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

43

2.3 O POETA MODERNO

Em 1875, aos vinte anos, Cesário publica os seguintes poemas:

“Deslumbramentos”36, “Humorismos do Amor”, “Ironias do Desgosto”37 e “Desastre”38.

De acordo com Joel Serrão, esses quatro poemas definiram os pendores fundamentais da

poesia do autor; a saber: o desejo de aliança entre lirismo e justiça; o complexo e original

relacionamento estético com a imagética feminina; as metamorfoses poéticas que

conduziriam a “Num Bairro Moderno”, quando se inicia o exercício de imaginação criadora

com as “metamorfoses imagético-verbais de apetência plástica, em última instância, de

natureza para-surrealista”.39

Certo é que a busca de uma linguagem capaz de expressar a experiência do seu

tempo terminou por converter-se, nos versos de Cesário, numa busca de identidade: quem é

o poeta moderno, de que modo ele interfere em seu mundo, de que modo o seu olhar

reorganiza os elementos da paisagem?

Cesário elegeu uma estrutura, para dar expressão a essa busca. Trata-se do

monólogo, entendido por Helder Macedo como “registro anotado de um passeio

reflexivo”40 durante o qual o sujeito procura entender a realidade compósita, da qual é, ao

mesmo tempo, uma parte e um observador isolado.

Penso que o poema “Num Bairro Moderno” não ilustra apenas a ocorrência do

procedimento registrado pelo crítico, mas também a peculiaridade e a específica

funcionalidade que a estrutura por ele descrita assume na poética de Cesário. E tal

36 VERDE, Cesário. Deslumbramentos, op. cit., p. 93-94. 37 Id. Ironias do Desgosto. op. cit., p. 98-99. 38 VERDE, Cesário. Desastre, op. cit., p. 100-102. 39 SERRÃO, Joel. O essencial sobre Cesáreo Verde. Lisboa: INCM,1986. p. 38.

Page 45: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

44

funcionalidade abarca tanto a saída pela via da estetização, caro à estética decadentista,

como um direcionamento político estranho a essa tendência finessecular. Em linhas gerais,

os versos expõem a reflexão de um assalariado que, caminhando para o trabalho, observa

um bairro burguês e detém sua atenção numa mulher que carrega verduras, terminando por

dialogar com ela:

Como é saudável ter o seu conchego,

E a sua vida fácil! Eu descia,

Sem muita pressa, para o meu emprego,

Aonde agora quase sempre chego

Com as tonturas duma apoplexia.

E rota, pequenina, azafamada,

Notei de costas uma rapariga,

Que no xadrez marmóreo duma escada,

Como um retalho de horta aglomerada,

Pousara, ajoelhando, a sua giga.

(CV. Num Bairro Moderno, p. 116)

A narratividade é marcante e determina, num primeiro plano, uma apreensão linear

do mundo, estabelecida pela seqüência de ações que a reflexão acompanha. No entanto, não

é no plano das ações que o poema se inicia, nem é na linearidade que ele se desenvolve. Os

primeiros versos situam a seqüência das ações num espaço: o bairro moderno lisboeta.

Nesse espaço social e geograficamente definido, a série de ações narradas parece ser uma

entre as várias que se desenrolam na paisagem. Em resumo, o procedimento narrativo

integra-se numa visão pictórica mais ampla, na qual o próprio tempo se traduz por

40 MACEDO, Helder. Nós; uma leitura de Cesário Verde. Lisboa: Presença, 1999. p. 46.

Page 46: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

45

elementos visíveis, expressando-se mesmo por detalhes cromáticos. Observe-se a primeira

estrofe:

Dez horas da manhã: os transparentes

Matizam uma casa apalaçada;

Pelos jardins, estancam-se os nascentes,

E fere a vista, com brancuras quentes,

A larga rua macadamizada

(CV. Num Bairro Moderno, p. 116)

Dessa paisagem mais ampla, fazem parte todas as figuras, entre elas a do

observador, fonte do monólogo e da narração.

Visando a apreender, analisar e também julgar a realidade, Cesário nela inclui um

observador, cujas impressões e sensações serão seu instrumento. Helder Macedo considera

como personas, essas figuras que observam, descrevem, narram e julgam.

Ao longo dos poemas, há variabilidade de personas e perspectivas: ora fala o

intelectual burguês, ora quem comenta a cena é um trabalhador assalariado, outras vezes é a

vítima de humilhações sociais. Embora reconheça que autor e eu poético ligam-se numa

tensão dialética, Helder Macedo anota que tal variabilidade na condução dos comentários

“impossibilita uma identificação autobiográfica”41. As observações do ensaísta corroboram

com a idéia de que a escolha do olhar que se movimenta na paisagem desempenha uma

função. Se ele é parte integrante da paisagem, essa última emana da sua observação.

Movendo-se num tempo objetivo, a percepção daquele que discursa sobre o mundo corta a

sua aparência objetiva e nela constrói seções. Tais cortes promovem uma suspensão da

linearidade narrativa, pois introduzem no poema a co-existência de planos. No poema em

questão, o plano principal é ocupado pela ação da verdureira, a quem o criado da casa

41 Ibid., p. 24.

Page 47: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

46

burguesa atira alguns cobres, com desprezo. De modo simultâneo, outras seqüências menos

importantes compõem a paisagem:

Um pequerrucho rega a trepadeira

Duma janela azul; e, com o ralo

Do regador, parece que joeira

Ou que borrifa estrelas; e a poeira

Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.

(CV. Num Bairro Moderno, p. 119)

Envolvida pelo conjunto dos acontecimentos simultâneos e pelos estímulos

sensoriais que deles advêm, a subjetividade do narrador-observador manifesta-se,

promovendo um corte na realidade. Depois de ter descrito a verdureira convencionalmente

– “[...] E eu, apesar do sol, examinei-a: [...]/ Se ela se curva, esguedelhada, feia [...]” (CV.

p. 116) – o caminhante que promove a narrativa em “Num Bairro Moderno” ultrapassa essa

descrição e confere aos elementos observados uma nova organização. Sofrendo a

interferência desse olhar que as observa, as verduras contidas no cesto transportado pela

frágil verdureira transformam-se num ser humano.

Subitamente, – que visão de artista! –

Se eu transformasse os simples vegetais,

A luz do Sol, o intenso colorista,

Num ser humano que se mova e exista

Cheia de belas proporções carnais?!

(CV. Num Bairro Moderno, p. 117)

Page 48: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

47

Ao interferir na paisagem, o observador traz ângulos que resistem à óptica do

realismo convencional e propõe uma saída estética, fornecida pela visão do artista. Nessa

visão incluem-se procedimentos que lembram aqueles característicos das vanguardas.

Principalmente na pintura, as técnicas de corte contrariaram a visão “naturalista”, buscando

revelar níveis de realidade, que supostamente resistiam à exploração convencional das

formas.

Embora Cesário não pareça ter a intenção de desvelar uma face oculta das coisas,

intenção que direcionava a maioria das vanguardas, ele adota recursos que a elas foram

caros. No seu caso específico, essa nova dinâmica das formas traduz principalmente uma

maneira de experimentar a realidade e revelar uma posição ideológica diante do mundo.

No poema em questão, os versos que seguem a interrogação – “Se eu transformasse

os simples vegetais” (CV. p. 117) – indicam a participação de uma série de elementos no

processo de transformação a ser operado pelo “visão do artista”. Há uma certa pressão que,

vinda do exterior, convida a transformação: “Bóiam aromas, fumos de cozinha [...] sobem

padeiros, [...] uma ou outra campainha toca [...]” (CV. p. 117). Um excesso de elementos

atinge os sentidos do observador, estimulando-o a recompor, pela percepção, um novo

corpo:

E eu recompunha, por anatomia,

Um novo corpo orgânico, aos bocados.

Achava os tons e as formas. Descobria

Uma cabeça numa melancia

E nuns repolhos seios injetados.

As azeitonas, que nos dão o azeite,

Negras e unidas, entre verdes folhos,

Page 49: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

48

São tranças dum cabelo que se ajeite;

E os nabos – ossos nus, da cor do leite,

E os cachos de uvas – os rosários de olhos.

(CV. Num Bairro Moderno, p. 117)

Com felicidade, Elza Miné associou a pintura de Guiseppe Archinboldo42 (1527 –

1593), pintor do maneirismo italiano, à visão que brota nesses versos, quando o homem que

caminha para o trabalho enxerga, nas verduras transportadas pela mulher franzina, um ser

vigoroso, personificação da Natureza e da Vida.

A transformação de materiais na composição de imagens já atraíra o artista do

século XVI. Em Primavera, Verão, Outono e Inverno, telas de autoria de Archinboldo a

natureza compõe as formas do rosto humano, parte por parte, no mais precioso detalhe e

relevo, substituindo as formas dos olhos, lábios, orelhas, maçãs do rosto, sobrancelhas.

Apesar da forte marca naturalista do poeta distanciar-se do maneirismo do pintor, suas

fantasias se aproximam, quando são comparados os elementos que compõem as duas

imagens humanas: “cachos de uvas” a “rosário de olhos”, por exemplo.

O poema “Num Bairro Moderno” “dramatiza simbolicamente a invasão da cidade

pelo campo”43, tratando dos efeitos psicológicos causados no narrador pela aparição

inesperada de alguém que lhe faz lembrar valores existenciais diferentes. No caso, a

vendedora de frutas e legumes evocaria um mundo natural e forte, em meio às ruas

macadamizadas da cidade.

Há colos, ombros, bocas, um semblante

42 MINÉ, Elza. Da transformação fantasiosa à explosão onírica: Archinboldo, Cesário, e Aníbal Machado. Letras & Letras, Porto, ano 3, n. 34, p. 9, out. 1990. 43 HELDER, Macedo, op. cit., p. 110.

Page 50: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

49

Nas posições de certos frutos. E entre

As hortaliças, túmido, fragrante,

Como de alguém que tudo aquilo jante,

Surge um melão, que me lembrou um ventre.

E, como um feto, enfim, que se dilate,

Vi nos legumes carnes tentadoras,

Sangue na ginja vívida, escarlate,

Bons corações pulsando no tomate

E dedos hirtos, rubros, nas cenouras

(CV. Num Bairro Moderno, p. 118)

Ao retomar o plano narrativo, seccionado pela “visão de artista”, o caminhante é

solicitado pela verdureira, terminando por ajudá-la a levantar o cesto demasiadamente

pesado.

O sol dourava o céu. E a regateira,

Como vendera a sua fresca alface

E dera o ramo de hortelã que cheira,

Voltando-se, gritou-me prazenteira:

“Não passa mais ninguém! ... Se me ajudasse?! ...”

Page 51: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

50

Eu acerquei-me dela, sem desprezo;

E, pelas duas asas a quebrar,

Nós levantamos todo aquele peso

Que ao chão de pedra resistia preso,

Com um enorme esforço muscular.

(CV. Num Bairro Moderno, p. 118)

Embora haja uma absorção da saída pela via estética, proposta pelo decadentismo

europeu, não se pode deixar de notar, no poema de Cesário, uma forte inflexão social: o

corte transformador operado pela “visão do artista” dá-se como reação à humilhação

imposta à verdureira pelo criado da casa burguesa, que lhe atira “um cobre ignóbil,

oxidado”. No nível do sentido, a “visão” é saneadora. A reordenação das formas anuncia

aqui a necessidade de reordenação da história; os elementos escolhidos pelo poeta

preenchem o sentido de uma necessária reestruturação social.

Sem dúvida, a verdureira evoca a positividade do campo, em meio à negatividade

do desequilíbrio social que marca o bairro burguês. O fato de que a visão irrompa em meio

à linearidade de uma narrativa sugere a concepção de uma dimensão da história que é tão

somente latência. Trazendo em seu cesto a matéria que possibilita a emersão de uma

Natureza vigorosa e positiva, a mulher é ela própria “um retalho” da paisagem urbana.

Assim como o narrador, acometido de apoplexia, ela faz parte de um mundo desligado da

sua origem e, por isso, privado de vigor, degradado, oxidado como o cobre que lhe atiram

com descaso. É evocada a situação dos trabalhadores que deixaram os campos, emigrando

para as cidades.

No entanto, assim como o narrador apoplético vai extrair de si a visão do artista; e

assim como todo o bairro, dominado pela apatia burguesa – “Rez-de-chaussé repousam

Page 52: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

51

sossegados”–, traz aromas, fumos e sons que estimulam, também a mulher, traz consigo os

elementos condutores de uma reordenação.

Helder Macedo considera que, ao longo da obra de Cesário, ocorre uma “exploração

funcional das antinomias básicas de uma realidade contraditória e a tentativa de reconciliá-

las numa visão totalizante dessa realidade.”44 Entre tais antinomias, existe o contraste entre

o campo e a cidade que nele exemplarmente reflete, em termos sociais, culturais e políticos,

a sociedade portuguesa no tempo de Cesário, e os versos do poeta organizam-se à volta

desse contraste.

Nos primeiros poemas, o campo constitui uma visão idílica, lugar do suporte

afetivo, refúgio bucólico que aparece na tradição romântica. No entanto, em “Num Bairro

Moderno”, surge a visão de uma natureza aprisionada na cidade e nela degradada,

fragilizada e ainda assim potente, pois conserva, em latência, vigor e autenticidade. Por isso

a frágil verdureira adquire poder hercúleo e é capaz de transmiti-lo.

“Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!”

E recebi, naquela despedida,

As forças, a alegria, a plenitude,

Que brotam dum excesso de virtude

Ou duma digestão desconhecida...

(CV. Num Bairro Moderno, p. 118)

Esse poder da verdureira entra em conexão com a crença num Portugal de raízes

agrárias que, na visão de Cesário, nesse poema, poderia fertilizar a nação doente e sanear os

males expostos nas ruas da cidade.

44 MACEDO, Helder, op.cit., p. 45.

Page 53: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

52

Devemos observar a atenção que Cesário e seus contemporâneos dedicaram às

idéias de Proudhon, cuja contestação da propriedade conciliava-se com a aceitação de uma

posse da terra. De acordo com essa óptica, a participação do indivíduo no trabalho agrícola

legitimaria a sua posse. Contestado na década de 50, esse modelo retorna com vigor na

geração de 70, como tentativa de conciliar nacionalismo e cosmopolitismo; e

principalmente como solução para a problemática inserção de Portugal na Modernidade da

Europa. Em sua perspectiva utópica, o socialismo de Proudhon acenava com uma

possibilidade de síntese, trazendo a visão de um campo útil, em acordo com os princípios

produtivistas preconizados pela modernidade industrial.

Não se pode esquecer que a noção poética de Cesário remete também a Engel, que

já encarava o socialismo como uma forma de unir os benefícios da cidade ao campo, visto

como entidade social, vendo a possibilidade de síntese da “Kultur” urbana e da “Natur”45

rural numa futura cidade socialista.

Nos poemas mais tardios, Cesário irá notar, nos campos, as mesmas misérias da

cidade; o que não lhe permitirá manter pelo menos um aspecto da crença que permeia os

versos de “Num Bairro Moderno”; qual seja: a da aliança entre a “visão do artista”, ele

mesmo através da sua persona, e a força da natureza e dos camponeses.

Não obstante, o que predomina aqui, em “Num Bairro Moderno” é a crença numa

natureza vigorosa, capaz de invadir a cidade e servir de instrumento para que Portugal

imponha-se ao mundo modernizado. Ao contrário de Oliveira Martins, que fala de um povo

vil e fraco, quando se refere a Portugal como “O Enfermo do Ocidente”46, Cesário, nesse

45 VASCONCELOS, Pedro de Almeida. Os socialistas revolucionários. In: ______. Dois séculos de pensamento sobre a cidade. Ilhéus: Editus, 1999. p. 39. 46 MARTINS, Oliveira apud PIRES, António Machado. Decadência e Modo de ser. Raça e História, modo de ser e modo de agir. In: ______. A idéia de decadência na Geração de 70. Lisboa: Vega, 1992. p. 268.

Page 54: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

53

poema, vê a fragilidade da verdureira convivendo com o seu oposto. Subjacente a essa

fragilidade, o poeta sente uma força que pode ser ativada por uma visão de artista.

Page 55: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

54

E pitoresca e audaz, na sua chita,

O peito erguido, os pulsos nas ilhargas,

Duma desgraça alegre que me incita.

Ela apregoa, magra enfezadita,

As suas couves repolhudas, pargas.

E, como as grossas pernas dum gigante,

Sem tronco, mas atléticas, inteiras,

Carregam sobre a pobre caminhante,

Sobre a verdura rústica, abundante,

Duas frugais abóboras-carneiras.

(CV. Num Bairro Moderno, p. 119)

Resta ainda assinalar as relações que o poema mantém com o mundo da pintura. A

representação cromática e plástica da realidade é bastante criativa e inovadora. Esse aspecto

enfatizado em sua obra – “a ótica pictural”47 – explica-se também pelo fato de o autor ter na

sua geração e no seu círculo de amizades, o predomínio de pintores sobre os poetas, de fato

ele freqüentou com mais assiduidade o de pintores – Grupo do Leão – que o grupo de

literatos.

O cenáculo de pintores considerados modernos, freqüentadores da cervejaria da Rua

do Príncipe, era composto de amigos pintores como Silva Porto, Columbano, mas também

de escritores como Abel Botelho, Alberto de Oliveira, Mariano Pina entre outros.

Essa freqüente aproximação à pintura tem suscitado interesse de muitos estudiosos

que consideram a sua poesia nascida de um “colorista”48. Nela, o elemento cor é

fundamental, o que pode ser observado também em outras composições.

47 PEREIRA, José Carlos Seabra, op. cit., p. 84. 48 Ibid., p. 85.

Page 56: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

55

Em “De Tarde”, cuja publicação desconhece-se a data, o poeta descreve o pequeno

quadro de um “pic-nic de burguesas”, a merenda ao por do sol com “talhadas de melão” e,

pouco antes do lunch, a descrição de uma dama descendo do “burrico” lembram quadros de

Renoir.

Foi quando tu, descendo do burrico

Foste colher, sem imposturas tolas,

A um granzol azul de grão-de-bico

Um ramalhete rubro de papoulas.

(CV. De Tarde, p. 157)

O impressionismo que muitos identificam em “Num Bairro Moderno”, datado de

1877, não pode, a rigor, ser considerado uma absorção direta da pintura, vez que as

primeiras exposições nesse estilo só tiveram lugar em Paris em 1874 e 1876 e, só mais

tarde, efeitos desse movimento surgiriam em Portugal. Apesar disso, sabe-se que essa nova

forma de arte era já discutida pelo Grupo do Leão, cenáculo de pintores freqüentado por

Cesário por volta de 1881 que, segundo João Pinto de Figueredo, embora considerados

modernos, desdenhavam o impressionismo. Quanto a Cesário, ele comenta:

[...] quando assuntos dessa natureza vinham à baila, Cesário manietado pelo seu desconhecimento da pintura e sua timidez de autodidata, é natural que se mantivesse calado. O seu silêncio, porém, não traduzia ignorância. Era o silêncio de quem, nada conhecendo tudo sabe, tudo adivinha por instinto – e é por isso que temos de considerá-lo o maior pintor ali presente.49

O impressionismo – tendência estilística caracterizada, segundo o artista plástico,

Eugene Boudin (1824-1898) pelo “movimento que leva a pintura ao estudo da luz plena, do

49 FIGUEREDO, João Pinto de, op. cit., p. 141.

Page 57: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

56

ar livre e da sinceridade na reprodução dos efeitos”50 e que preparou o caminho para todas

as manifestações artísticas que se seguiram – pode de fato ter marcado a descrição poética

do bairro moderno lisboeta. Essa aproximação é sintomática do caráter inovador que,

ultrapassando a representação realista, levou os leitores da obra de Cesário a dar uma

diversidade de classificações à sua poesia, diversidade que abarca desde a óptica

naturalista, a simbolista, parnasiana dissidente e ainda neo-romântica; essa última atribuída

pelo próprio Silva Pinto, quando dividiu a sua obra em “Crise Romanesca” e “Naturais”.

Ao longo do tempo, não faltou quem visse em seus versos a transfiguração expressionista e

marcas antecipatórias do ainda longínquo surrealismo. Essa variabilidade de leituras

evidencia a dificuldade que teve Cesário para dialogar com os parâmetros estéticos da sua

época e, em decorrência, também evidencia os obstáculos que retardaram o reconhecimento

de sua escrita.

Hippolyte Taine (1828-1893) definiu o seu método crítico, considerando como

ponto de partida uma intensa compreensão da realidade lastreada em minuciosa análise51.

Visivelmente influenciado por essa valorização de um olhar analítico, Cesário Verde

somou, ao que parece ser uma natural ânsia de apreender o mundo objetivo, uma tendência

à exposição de detalhes. Expressa através de múltiplas imagens poéticas, essa riqueza de

detalhes pretendia fazer jus à variedade de aspectos contidos nos espaços que envolviam o

poeta.

O anseio de tocar uma objetividade emprestou ao discurso de Cesário uma

narratividade própria. Todavia, ao discursar sobre os aspectos da natureza e da vida, o poeta

terminou por expor a aventura do seu próprio olhar. É o particular movimento dos seus

50 IMPRESSIONISMO. In: BARSA. v. 6. Rio de Janeiro; São Paulo: Encyclopédia Britannica do Brasil, 1993. p. 190b.

Page 58: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

57

olhos e a peculiaridade da sua visão que marcam seus versos com singular tonalidade. “Lira

deambulatória”, foi assim que David Mourão-Ferreira, em “Notas sobre Cesário Verde”52,

denominou o registro desse trânsito feito por um olhar inquieto que se move na concretude

do mundo.

51 TAINE, Hippolyte apud. MACEDO, Helder, op. cit., p. 19. 52 MOURÃO-FERREIRA, David. Notas sobre Cesário Verde. In: ______. Hospital das Letras. Lisboa: 1966. p. 97.

Page 59: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

58

Lembro que, no caso especial de Cesário Verde, a escolha dos detalhes é feita pela

presença, no poema, de um observador que recorta imagens de uma cidade em movimento

e, nesse recorte, vai imprimindo, aos mais variados aspectos, novos sentidos.

Visando sempre a acumular, inventariar aspectos, o método de composição adotado

por Cesário tem, como principal procedimento, a justaposição de acontecimentos que,

como já vimos, se aproxima da técnica de corte e montagem. De acordo com essa vocação

acumulativa, bem expressa pela insistência de construções assindéticas, o poema tende a

corresponder a quadros que incorporam matérias captadas por vários canais perceptivos,

agindo em simultaneidade. Quem enuncia, seleciona e coleciona imagens estáticas e

dinâmicas, mostrando sensações suas e captadas nos rostos que observa. Prazerosas ou

desagradáveis, essas seqüências de sensações e captações indicam, via de regra, um espaço

em transformação.

No poema “Contrariedades”53, Cesário lamentou a pouca atenção dada, pela crítica,

ao método de Taine:

A crítica segundo o método de Taine

Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa

Muitíssimos papéis inéditos. A imprensa

Vale um desdém solene.

(CV. Contrariedades, p. 109)

O poeta desejou ser lido através de um método que apreendesse sua intenção de

representar uma objetividade, definida pela convergência supostamente existente entre “o

53 VERDE, Cesário. Contrariedades, op. cit., p. 108-110.

Page 60: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

59

fluir dos acontecimentos externos e o fluir da consciência interna”54. No entanto, para falar

da sua poesia, talvez seja necessário extrapolar esse caminho de leitura que ele próprio

estabeleceu com base numa fronteira definida entre objetividade e consciência. Assim, vou

tomar suas paisagens e suas figuras como signos, elementos carregados de significação que,

existentes num espaço tocado pela cultura inerente ao olhar observador do poeta, foram

objeto de sua releitura. Com sua escrita, Cesário elabora um texto que lia um mundo

carregado de signos.

54 MACEDO, Helder, op. cit., p. 23.

Page 61: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

60

3 A PAISAGEM

3.1 ENTRE CIDADE E CAMPO

O primeiro aspecto que se impõe à análise da obra de Cesário Verde é a

complexidade temática de suas poesias. Para alguns leitores, essa complexidade impede

que seja situado, como eixo organizador da obra, o binômio cidade e campo. Contudo esse

binômio, que sedimenta uma tradição na literatura portuguesa, exerce, de fato, uma função

estruturante na escrita do autor. Conduzida por David Mourão Ferreira, Joel Serrão, João

Pinto de Figueiredo e Helder Macedo, reitero a validade dessa tradição interpretativa do

poeta que expôs em versos “gozos de lavrador e de homem prático”.

Em meio à pluralidade de enfoques que podem direcionar a leitura do “mestre”

Cesário, esta escolha contempla uma experiência axial das comunidades humanas nos

tempos modernos. Contudo, embora parta dessa antinomia espacial, que ao longo da

história foi carregada de significações, tento buscar, na obra de Cesário, os movimentos que

levam à sua superação.

Representando mais que espaços meramente físicos, a cidade e o campo presentes

nos versos de Cesário Verde vão remeter a outras significações que ampliam as suas

simbologias. Com propriedade, Helder Macedo já considerou que a cidade, nesses versos,

alude à insatisfação afetiva, ausência de amores. Se, em termos pessoais, os muros da

cidade e seus “prédios sepulcrais” são confinamento do afeto, em termos sociais, a cidade é

a opressão, a injustiça e o enfraquecimento dos naturalmente fortes. Força libertadora da

Page 62: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

61

vida, o campo é em princípio espaço para ação de agentes naturais, fadados a corrigir a

doença civilizatória.

Nos seus primeiros poemas, publicados entre 1873 e 1874, Cesário situa a visão de

um campo idílico, idealizado e abstrato, que serve como um contraponto aos aspectos

negativos da cidade. Em sua análise do poema “Setentrional” – publicado em 1874 com o

título “Cantos de Tristeza”55 e mais tarde incluído no Livro de Cesário Verde, com algumas

modificações – Helder Macedo enfatiza a representação da cidade como cenário propício

ao “mal presente”, oposto a um “tempo passado”: “A fuga da cidade está assim

imediatamente associada à felicidade amorosa passada, vivida no campo e recordada no

poema na imagística tradicional do campo romântico.” 56

Talvez já te esquecesses, ó bonina

Que viveste no campo só comigo,

Que te osculei a boca purpurina,

E que fui o teu sol e o teu abrigo.

[...]

Quando ao nascer de aurora, unidos ambos

Num amor grande como um mar sem praias

Ouvimos os meigos ditirambos,

Que os rouxinóis teciam nas olaias.

(CV. Cantos de Tristeza, p. 59-61)

Nesta reminiscência, o campo é espaço subjetivo e corresponde à sensação do

abraço. Nele, amante e amada unem-se como num “mar sem praias”. Helder comenta a

55 VERDE, Cesário. Cantos de Tristeza, op. cit., p. 59-63. 56 MACEDO, Helder, op. cit., p. 51.

Page 63: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

62

imagem: “O mar, como símbolo de uma desconfinada amplidão, e o campo são, portanto,

metáforas sinônimas, é a pura paisagem esvaziada não só de outras presenças humanas mas

também de quaisquer construções artificiais que a pudessem aproximar da cidade”.57

57 Ibid., p. 52.

Page 64: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

63

Entre 1875 e 1876, poemas como “Deslumbramentos”, “Frígida”, “Humilhações”58,

“A Débil” 59 têm como cenário a cidade focalizada como lugar do desencontro amoroso e,

em decorrência, da insatisfação humana. A partir de “Num Bairro Moderno”, em 1877,

principia a descortinar-se a visão de um campo produtivo, espaço não idealizado, mas real,

apontado como alternativa para as experiências humanas, tendo em vista os problemas da

cidade. Como vimos, “Num Bairro Moderno” insinua a irrupção da vitalidade rural, do

campo produtivo, se sobrepondo às deficiências, às injustiças, ao enfraquecimento causados

pela vida urbana. Em 1879, o poema “Em Petiz” traz as primeiras contradições inerentes a

esse campo real. O poeta colhe em suas lembranças infantis recortes da miséria campesina,

reportando-se às deficiências do mundo rural e assim passando a focalizar os problemas do

campo. Em “O Sentimento dum Ocidental”, poema de 1880, as sombras de Lisboa são

predominantes. Esse crepúsculo urbano entra em correspondência com a descida do ânimo

de quem fala tocado por profunda melancolia. Paisagem urbana e emoção do homem que

por ela caminha sem obter saída vão, juntos e gradativamente, ingressando na noite e nas

“horas mortas”. A cidade já é, a essa altura da obra poética, metonímia da civilização

ocidental que o poeta sente em declínio, incluindo-se, ele próprio, como artista, nesse

amplo movimento de descida.

Diante desse pano de fundo decadente, Cesário tinha que buscar saída. Assim, a

incursão do campo produtivo na cidade que, em “Num Bairro Moderno” fora apenas

promessa, “visão de artista”, retorna ao centro dos versos para ser objeto de uma reflexão

poética mais demorada e com um sentido mais radical. Em 1884, a publicação do poema

58 VERDE, Cesário. Humilhações, op. cit., p. 114-115. 59 Id. A Débil, op. cit., p. 111-113.

Page 65: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

64

“Nós” revela essa tentativa angustiada em que a reflexão busca na memória inquieta uma

solução que simultaneamente decida os destinos pessoal e nacional.

Caso fosse encontrado, esse caminho salutar constituiria uma alternativa ao fracasso

do progresso que a cidade expõe. Nesse seu poema mais longo – “Nós” – o poeta apresenta

as imagens de um campo produtivo e exuberante. Todavia, essa exuberância da natureza

não tem uma positividade sem contradições. Como potência mais vital da natureza, o

mundo campesino opõe-se a uma civilização que, contrária às leis naturais, privilegia

aqueles que são, na óptica de Cesário, fisicamente mais fracos. Assim, embora, no início do

poema, o coletivo “Nós” situe o poeta e a sua família numa aliança com os camponeses e

com o ambiente natural do campo, o final do poema evidencia os limites desse pacto, de

modo que a família termina por regressar à “cidade maldita”. O regresso é indicativo de que

eles – poeta e irmãos – estão de fato identificados com o mundo da cidade e com ela devem

sucumbir, ao lado da civilização Ocidental e dos seus valores.

E o campo, desde então, segundo o que me lembro

É todo o meu amor de todos estes anos!

Nós vamos para lá; somos provincianos

Desde o calor de maio aos frios de novembro!

(CV. Nós, p. 165)

Tínhamos voltado à capital maldita,

Eu vinha de polir isso tranquilamente,

Quando nos sucedeu uma cruel desdita,

Pois um de nós caiu, de súbito, doente.

(CV. Nós, p. 183)

Page 66: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

65

Assim, tento resumir a trajetória complexa que a antinomia campo/cidade segue nos

versos de Cesário. De fato, o campo, ou constitui um cenário idealizado, de matiz

romântico que funciona como pólo contrastivo; ou é alternativa real, exuberante e

produtiva; porém dotada de leis próprias e indiferentes à humanidade. Gradativamente, ao

reportar-se ao mundo rural, o poeta vai abarcando suas contradições até exibir o fato de que

este ambiente também não lhe permite uma completa filia, pois não acolhe a sua

consciência e fere os seus afetos. Desse modo, ao fim da trajetória, no poema “Nós”, a

antinomia cidade/campo tende a ser superada por uma negatividade que se espraia por

todos os espaços.

No que diz respeito à paisagem urbana, é necessário dizer que, diante da Lisboa de

seu tempo, Cesário Verde manifesta-se fascinado; e leia-se, nesse fascínio, uma conjunção

de atração e recusa. Essa atitude expressa uma resposta do poeta à Modernidade do século

XIX que a cidade apenas concretizava aos seus olhos. A cidade era o lugar de objetivação

para uma específica dinâmica da história que a sensibilidade de Cesário Verde teve

dificuldade em aceitar e impossibilidade de negar.

Em sua reflexão sobre a Modernidade, Marshall Berman apresentou uma divisão em

três fases: a primeira, do início do século XVI até o fim do século XVIII, a segunda, desde

a grande onda revolucionária de 1790, e o século XX: terceira fase. Para empreender uma

qualificação da segunda fase, aquela que inclui o período vivido por Cesário Verde,

Berman recua aos primórdios registrados por Rousseau, particularmente no texto de ‘A

Nova Heloísa’. Na sua romântica novela o jovem herói

Saint-Preux, realiza um movimento exploratório – um movimento arquetípico para milhões de jovens nas épocas seguintes – do campo para a cidade. Saint-Preuxe escreve à sua amada, Julie, das profundezas do tourbillon social. Essa atmosfera – de agitação e turbulência, aturdimento

Page 67: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

66

psíquico e embriaguez, expansão das possibilidades de experiência e destruição das barreiras morais e dos compromissos pessoais, auto-expansão e autodesordem, fantasmas na rua e na alma é a atmosfera que dá origem à sensibilidade moderna.60

De acordo com Berman, a Modernidade do século XIX tem, como peculiaridade, o

fato de oferecer à sensibilidade e experiência humanas uma paisagem já amplamente

transformada:

60 BERMAN. M. Tudo o que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. p. 17-18.

Page 68: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

67

[...] trata-se de uma paisagem de engenhos a vapor, prolíficas cidades que cresceram do dia para a noite, quase sempre com aterradoras conseqüências para o ser humano. Estados nacionais cada vez mais fortes e conglomerados multinacionais de capital; movimentos sociais de massa.61

As múltiplas mudanças que a história moderna passou a impor nos espaços

exteriores, principalmente a partir da configuração das cidades modernas com suas

aglomerações, surgiram, nos poemas, ora como contraste para o sonho de estabilidade

herdado do idealismo, ora como reflexo da instabilidade interior do homem moderno.

Segundo Walter Benjamin, tais relações tornam-se claras, quando Paris torna-se

objeto da poesia lírica escrita por Charles Baudelaire. Realmente, quaisquer que sejam as

manifestações anteriores, não se pode negar o pioneirismo do poeta francês na expressão

dessa nova sensibilidade. Apesar disso, é possível buscar, na literatura portuguesa,

antevisões dessa poesia da cidade. Tolentino – poeta setecentista que tem Lisboa como fio

condutor da sua obra – traz o embrião de uma sensibilidade voltada para um mundo urbano.

No entanto, seus versos não refletem ainda a profunda problemática que o tema só pôde

adquirir no século XIX, quando foram definidas as novas formas da cidade e as novas

relações mantidas pelos seus habitantes. Foi mesmo Baudelaire quem primeiro definiu a

cidade como território “de perdas, despedaçamento das idealidades e reino das

instabilidades fascinantes e assustadoras”62.

Como Baudelaire, Cesário fez da rua uma paisagem poética, de modo que suas

personas transitam por esses caminhos e permanentemente desestabilizam-se.

Berman prossegue sua qualificação da Modernidade, definindo a atitude dos seus

intelectuais: “Todos os grandes modernistas do século XIX atacam esse ambiente com

61 Ibid., p. 19. 62 Ibid., p. 19.

Page 69: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

68

paixão [...] apesar disso, todos se sentem surpreendentemente à vontade em meio a isso

tudo, sensíveis às novas possibilidades”63. Das múltiplas possibilidades descortinadas pela

paisagem moderna, está excluída, segundo Berman, qualquer promessa de “solidez e

estabilidade”. A paisagem que, em tantos poemas, aparece como espaço para o “movimento

deambulatório” das personas de Cesário Verde é marcada, primordialmente, por essa

instabilidade. Para responder a essa dinâmica que, no século XIX, expõe todas as suas

contradições, Cesário, como poeta, vai inserir-se numa linhagem que marca a literatura

portuguesa, desde os primórdios da experiência moderna, em suas primeiras fases.

A condição de inconsistência vem sendo tema da poesia portuguesa de forma mais

representativa, a partir do soneto camoniano “Mudam-se os tempos, mudam-se as

vontades”64 de reflexão pré-hegeliana; ou adquire o tom eloqüente da oratória de Vieira, ao

despertar os homens para a força transformadora do tempo no Sermão “O amor menino”,

em que são expressas as tensões e contrariedades próprias do barroco: “Atreve-se o tempo a

colunas de mármore, quanto mais a corações de cera”.65 Corações e colunas representam,

respectivamente, a vulnerabilidade dos comportamentos humanos e os sinais de uma

sociedade em mutação.

Contudo, no contexto de Vieira, o âmbito das mudanças, não ultrapassando o limite

da condição humana, serve como contraste para o horizonte de estabilidade que o orador

sacro pode ainda afirmar. Os reflexos do tempo incidem sobre a matéria instável, como

exemplifica Vieira, ao referir-se às colunas de mármore e aos corações de cera. Todavia,

tais reflexos estão ali presentes para que se consiga um efeito comparativo que,

63 Ibid., p. 18. 64 CAMÕES, Luís Vaz de. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. In: ______. Obras de Luís de Camões. Porto: Lello & Irmãos. 1970. p. 29.

Page 70: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

69

fortalecendo a eficácia e a força do tempo sobre as pessoas, apresenta a impotência do

tempo ante a ordem divina.

65 VIEIRA, Pe. Antônio. Sermão .O amor menino. In: ______. Os Sermões. v. 4. Porto: Lello & Irmãos, 1951. p. 359.

Page 71: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

70

E agora passo a preparar a discussão da noção de natureza e, portanto, do Campo,

no âmbito da poesia de Cesário. Persisto no tema das mudanças, tratado pela literatura,

particularmente pela literatura portuguesa. No que diz respeito à natureza, a literatura

anterior ao Romantismo trata geralmente de uma instabilidade que atinge simultaneamente

os frutos da terra e o homem, como no conhecido soneto “Formoso Tejo meu”, de

Francisco Rodrigues Lobo (1580-1622): “A ti foi-te trocando a grossa enchente / A quem

teu largo campo não resiste; / A mim trocou-me a vista em que consiste / O meu viver

contente ou descontente”66. Na imagística tradicional romântica, essa tradição comparativa

persistiu, ganhando uma força extraordinária.

Todavia, em seu movimento idealizador da natureza, o Romantismo terminou por

situar a paisagem natural numa proximidade cada vez mais aguda com a estabilidade, antes

restrita ao horizonte sagrado. Tal analogia fortaleceu a busca por espaços primitivos e

ermos que, por estarem supostamente mais próximos da estabilidade aspirada pela

subjetividade romântica, constituíam fontes de inspiração para os poetas.

Posteriormente, a partir de Schiller e, com a diferença entre “Poesia Ingênua” e

“Poesia Sentimental”, foi grafado o abismo entre a estabilidade aspirada pela consciência e

a natureza, sujeita a seus próprios ciclos e leis. Aspirando por uma estabilidade absoluta,

essa consciência isolou-se e passou a ver distinções entre a sua própria marcha, causada

pela mutação linear, histórica, e a marcha da natureza, causada por seus próprios

mecanismos. Para essa nova consciência marcada pela ironia, não haverá ilusão possível,

pois não haverá, para ela, coincidência entre os ritmos das mudanças históricas e humanas e

o ritmo da natureza. Os processos de transformação dos dois termos – humanidade e

66 LOBO, Francisco Rodrigues. Formoso Tejo meu. In: ______. Antologia da Poesia Portuguesa. v. 2. Porto Lello & Irmãos, 1977. p. 32.

Page 72: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

71

natureza – não podem entrar em analogia. Restará ao homem buscar, nas formas por ele

próprio criadas, o reflexo da sua instabilidade.

De um modo muito peculiar, Cesário absorve e atualiza, nas relações que mantém

com o campo em sua própria trajetória poética, essas modulações que a poesia moderna

exibe em sua relação com a natureza. Assim, há nele uma fase ingênua, em que “o mar sem

praia” equivale a um “desconfinamento” completo da emoção. Mas essa primeira aliança

vai sendo gradativamente rompida. No poema “Em Petiz”, o poeta rememora seu desgosto

infantil e conseqüentemente recupera uma perda do laço completo existente entre o seu

afeto e a paisagem rural. Em “Nós”, embora se manifeste o entusiasmo pela exuberância do

campo, a lei natural – que, no caso de Cesário, é a seleção do mais forte – termina por

determinar a impossibilidade desse pacto; de modo que o poeta – intelectual burguês

abastado e membro de um grupo fisicamente menos apto a sobreviver – vê-se obrigado a

participar do declínio civilizatório que a cidade objetiva em suas formas. A filia se dá com

a cidade, num pacto trágico que não é propriamente adesão afetiva, mas ironia e revolta.

Comparados aos antecedentes em língua portuguesa, os versos de Cesário Verde

evidenciam que, com nova e profunda complexidade, o tema das mudanças adquiriu, na

literatura do final do séc. XIX, um sentido agudo e específico, uma vez que o mundo

passou a se caracterizar por sua rigorosa descontinuidade, transformando as antigas

inquietações em, “experiência de ser estranho no mundo”67.

Correspondendo a uma aceleração do tempo, a instabilidade e as mudanças

propostas pelas experiências modernas determinam que a consciência moderna seja aguda e

67 MATOS, Olegária C. F. Os arcanos do inteiramente outro; a escola de Frankfurt, a melancolia e evolução. São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 69.

Page 73: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

72

dolorosa consciência do tempo como passagem radical. Trata-se de uma consciência

irônica, que se conforma como visão da morte.

Nos versos de “Ironias do Desgosto”, Cesário evidencia, talvez como em nenhum

outro poema, que a raiz do seu problema com a Modernidade – experiência radical e

quotidiana de um tempo que aceleradamente passa – constitui, de fato, um horror à morte,

como destino humano. O mesmo poema também esclarece a sua mágoa com o

descompasso entre o ritmo da natureza – cíclico, direcionado ao retorno da vida – e o ritmo

da vida humana, caminhando inexoravelmente para o fim. Observe-se, no diálogo em

versos, a pergunta crucial dirigida pela amada.

“Não vês como a campina é toda embalsamada

“E como nos alegra em cada nova flor?

“Então porque é tens na fronte consternada

“Um não sei quê tocante e enternecedor?

A essa pergunta, segue-se a resposta irônica dada pelo amante:

E eu só lhe respondia: “Escuta-me. Conforme

“Tu vibras os cristais da boca musical,

“Vai-nos minando o tempo, o tempo – o cancro enorme

“Que te há-de corromper o corpo de vestal.

(CV. Ironias do Desgosto, p. 98)

Em larga medida, a mulher representa a inconsciência da morte que, por ser

inconsciência, deixa o poeta dotado dessa visão onerosa num estado de solidão trágica. Em

“Ironias do Desgosto,” a mulher é identificada com a alegria da primavera, enquanto o

Page 74: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

73

homem, já trazendo a ciência da morte, traz consigo a previsão da decadência física que

virá com o envelhecimento. A jovialidade primaveril da mulher contrapõe-se à idade

madura do homem a quem o tempo tirou o vigor e a energia. Em outros momentos da obra

poética, a mulher está identificada à paisagem urbana; e assim como a cidade exibe a

passagem do tempo na mudança rápida que impõe às suas formas, a mulher é fadada a

exibir, ao olhar do poeta, a passagem do tempo no seu corpo; isso já pode ser percebido em

“Ironias do Desgosto”:

“E eu calmamente sei, na dor que me amortalha,

“Que a tua cabecinha ornada à Rabagas,

“A pouco e pouco há-de ir tornando-se grisalha

“E em breve ao quente sol e ao gás alvejará!

“E eu que daria um rei por cada suspiro

“Eu que amo a mocidade e as modas fúteis, vãs,

“Eu morro de pesar, talvez, porque prefiro

“O teu cabelo escuro às veneráveis cãs!

(CV. Ironias do Desgosto, p. 99)

Dentre o vasto leque de mudanças impostas à paisagem do século XIX, nada

inquietou mais Cesário do que as mudanças que a vida urbana trouxe ao comportamento

das mulheres. Daí porque a mulher será figura central da paisagem moderna. Como

veremos mais adiante, a inclusão da mulher nas ruas da cidade será motivo de reação do

poeta que passa a observar seus costumes e a vigiar os seus movimentos.

3.2 OS LUGARES E AS GENTES: VISÃO PANORÂMICA DA CIDADE DE CESÁRIO

VERDE

Page 75: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

74

Embora relacionada à experiência do poeta, a cidade dos poemas de Cesário Verde

é uma cidade escrita. Assim, ela é dimensionada, a cada traço, pela interferência do olhar

específico que, em cada texto, a cria. São olhares irrequietos que, em suas inquietudes,

carregam a geografia física de novas significações.

Seguindo algumas recomendações de Roland Barthes, não tenciono evocar os

processos da semiologia urbana, mas destacar algumas referências que funcionam como

unidades de significação: são bairros, monumentos, ruas, prédios, jardins gradeados,

espaços significantes que foram priorizadas pelo poeta. Esse levantamento panorâmico

serve como ponto de partida, para que sejam compreendidos os significados que essas

referências adquiriam nos poemas.

Ligados ao prazer, alguns ambientes tomam, na poesia de Cesário, uma dimensão

erótica. São identificados como “socialidades”, visto que se tornam pontos de encontro, de

troca, de lazer, para a população que começou a freqüentá-los. Para o eu poético, esses

cafés e bares são observatórios, a partir dos quais se descortina uma Lisboa em mutação.

Nos bares, ele observa através das janelas, dos vidros, das portas, o movimento exterior.

Nunca se preocupa com os que ali se encontram. A eles apenas se refere, para caracterizar o

tipo de bar. Os do porto freqüentam marinheiros estrangeiros, bebedores de gim. Os dos

centros freqüentam tipos diversos, talvez os bebedores de absinto, mais provavelmente do

bom vinho.

Ao falar do comércio, Cesário refere-se imediatamente a sua loja na Rua da

Alfândega e dos Fanqueiros, localizada na Baixa Lisboeta, de onde era possível ver os

diferentes tipos sociais freqüentadores do centro da cidade. Como já foi dito, a localização,

para um analista da vida urbana, era estratégica. A loja voltava-se de um lado para a parte

da cidade onde circulava a gente burguesa e, do outro, tornavam-se visíveis os

Page 76: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

75

freqüentadores do porto, mercadores, trabalhadores que viviam numa dinâmica diferente do

movimento da burguesia abastada.

Esse movimento de pessoas referido por ele em poemas como o “Sentimento dum

Ocidental” é notável no poema “Desastre” no qual se observam, circulando sem

compromisso, dândis, cocottes, poetas, democratas, aristocratas; era o desfile realizado no

Aterro, local que representa o avanço da cidade pelos espaços fluviais ou marítimos, que

sofreram o impacto da urbanização e que invadiram pouco a pouco as águas da cidade. Esse

novo traçado que a modernidade trouxe a Lisboa produziu contradições que, por sua vez,

trouxeram turbulências ao espírito do poeta. No aterro, passeia a classe favorecida, mas,

também é nele que caem, sofrem, morrem os desfavorecidos da sorte, que se penduravam

“como morcegos” em andaimes, durante a construção dos novos prédios que trazem o

crescimento vertical de Lisboa.

Flanavam pelo Aterro os dândis e as cocottes,

Corriam char-à-bancs cheios de passageiros

E ouviam-se canções e estalos de chicotes,

Junto à maré, no Tejo, e as pragas dos cocheiros.

(CV. Desastre, p. 100)

As pessoas não se deslocam mais por praças, como anteriormente faziam, elas

circulam, naquele momento, nos aterros, assim como nas avenidas e nos bulevares,

trocando olhares momentâneos, próprios a quem se exibe e, simultaneamente, se oculta,

num jogo de oferecer e negar.

Nos bairros periféricos, a aglomeração era outra. O poeta analisa os “bandos” que

saem do trabalho, numa agitação que, para ele, indicia o desejo dos trabalhadores das

Page 77: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

76

fábricas de seguirem rapidamente para seus lares. Dois aspectos são notados nesse grupo

que se desloca rapidamente: a vitalidade demonstrada no desempenho das tarefas –

lembremo-nos de que a maioria desses trabalhadores é oriunda da zona rural – e a

satisfação momentânea de se recolherem às suas casas depois de um dia de trabalho.

No porto, aglomeram-se as varinas, os trabalhadores portuários, os marinheiros,

numa mistura de raças e línguas, de sonhos de partir e de ficar. Ambiente familiar para o

povo, acostumado aos embarques e desembarques, o porto que aparece nos versos de

Cesário é principalmente local de desembarque de estrangeiros, de visitantes e de

compradores. Esse lugar visitado com freqüência pelo poeta em suas deambulações é

limitado pelo cais. Nesse ponto, a consciência reflexiva dos poemas costuma expandir-se,

desenvolvendo conclusões, no final das caminhadas. Sozinho ou com uma companheira,

esse eu poético chega ao porto quase sempre tocado pela mágoa. Assim, o porto é, de fato,

contradição: o fim e o começo, gozo e tormento.

E ali começaria o meu desterro! ...

Lodoso o rio, e glacial, corria;

Sentámo-nos, os dois, num novo aterro

Na muralha dos cais de cantaria.

(CV. Noitada, p. 128)

A essas pessoas que se agrupam nas ruas na saída do trabalho, nos bares, faltam a

facilidade e a desenvoltura do flaneur. Seus ritmos diferem da tranqüilidade irresponsável

desse tipo citadino. A multidão, que se “apinha” no cais ou na saída das fábricas – massa

humana da qual Cesário sempre procura se aproximar e descrever – torna-se um dos seus

temas essenciais. Em alguns casos, o observador emerge da multidão, realçando sua

Page 78: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

77

imagem para se colocar em primeiro plano; em outros momentos, ele mistura-se à massa

compacta. Os quadros citadinos são freqüentemente descritos em situações onde a massa

amorfa surge desordenada e ameaçadora.

E nestes nebulosos corredores

Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas;

Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas,

Cantam, de braços dados, uns tristes bebedores.

(CV. O Sentimento dum Ocidental, p. 156)

Diferentemente do que acontece com Edgar Allan Poe e Baudelaire, vemos, nos

versos de Cesário, dois tipos de quadros distintos. Se, na poesia dos seus antecessores, os

personagens individuais se movimentam com familiaridade por entre a aglomeração – “a

multidão não é a sua antítese”68, e sim o seu complemento – na obra de Cesário, ocorrem

dois tipos de situações: alguns tipos se distinguem da massa urbana que sentem, de fato,

como hostil; é o caso da “Débil”. Em outros momentos, surgem tipos femininos audazes,

provando ao observador que é possível ao indivíduo uma intensa familiaridade com a

multidão. O eu poético observa com espanto esses seres que circulam na cidade, sem

receios nem temores, como no caso de “Cristalização”.

“Mas se a atropela o povo turbulento!

Se fosse, por acaso, ali pisada!”

De repente, paraste embaraçada

Ao pé dum numeroso ajuntamento.

(CV. A Débil, p. 112)

Page 79: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

78

Porém, desempenhando o seu papel ma peça,

Sem que inda o público a passagem abra,

O demonico arrisca-se, atravessa

Covas, entulhos, lamaçais, depressa,

Com seus pezinhos rápidos, de cabra!

(CV. Cristalizações, p. 125)

Vendo a cidade através das suas formas concretas, dando a sua dimensão por

descrições físicas, Cesário termina por mostrar sua feição de organismo vivo. As procissões

que passam, o féretro de certo político que desfila, a estréia de uma famosa atriz dinamizam

a paisagem e, de certo modo, a animizam.

Anoitecia então. O féretro sinistro

Cruzou com um coupé seguido dum correio,

E um democrata disse: “Aonde irás ministro!

Comprar um eleitor? Adormecer num seio?”

(CV. Desastre, p. 101)

Os monumentos tomam na obra de Cesário uma característica especial. Dispersas

por Lisboa, as estátuas dos seus heróis vão perdendo sua função inicial, aquela do tempo

em que foram erguidos os pedestais. Em acordo com a futura observação de José Cardoso

Pires, essas estátuas “passam todo o tempo a ocupar os espaços de praças e parques sem

que a cidade nem lhes dê, ao menos, os bons-dias”.69 Suas presenças, contudo, parecem

insistir em recuperar, suas histórias, na memória dos que por ali passam, “inundando os

sentidos humanos.”70 A diferença de valor entre a imagem de uma estátua e outra qualquer

68 BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas de Baudelaire. In: ______. A modernidade e os modernos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1975. p. 51. 69 PIRES, José Cardoso. Lisboa, vistas da cidade. In: ______. Um olhar português. Lisboa: Círculo de Leitores, 1991. p. 133. 70 apud SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. Tradução Lygia Araújo Watanabe. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

Page 80: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

79

tende a tornar-se tão transitória, quanto o próprio movimento do passante. Essa indiferença

não escapou ao olhar de Cesário, assustado diante de uma Lisboa transformada.

Mas num recinto público e vulgar,

Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,

Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,

Um épico doutrora ascende, num pilar.

(CV. O Sentimento dum Ocidental, p. 144)

Esse olhar que capta a imagem estática dos monumentos, e que a dinamiza através

da memória, é o mesmo olhar que passeia pela cidade, buscando fugir da sensação de

desordem e confinamento. A notação dessas referências emblemáticas aparece na obra de

Cesário Verde, talvez em decorrência da sua necessidade de deter o curso da história,

acelerada demais pelo ritmo moderno. Em alguma medida, isso demonstra a percepção de

Cesário acerca da modernidade como um tempo que levava tudo à mudança e promovia

instabilidades externas e interiores.

Diante da transitoriedade das formas, as sociedades sempre buscaram materiais que

garantissem a preservação de algum registro do passado. Para tanto, o registro plástico, em

material concreto, sempre pareceu menos vulnerável do que as susceptíveis palavras.

Portanto, foi também para superar a lógica linear da narrativa histórica, mas foi

principalmente para suplementar a sua matéria – a palavra –, que Cesário Verde dotou a sua

poesia de aspectos plásticos e de sugestões pictóricas.

Monumentos, bustos e estátuas são emblemas da tradição e da cultura, que tornam a

cidade um corpo sinalizado por fatos e ações. A amargura que pode provocar certas

lembranças evocadas por esses sinais dispersos nas ruas, os emblemas, marca a obra de

Page 81: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

80

Cesário Verde. Eles evocam outros tempos que, por contraste, evidenciam a negatividade

do presente. A dispersão com que trafegam os caminhantes pela cidade provoca um

distanciamento que expressa uma nova displicência feminina, um novo comportamento do

homem e uma negligência dos políticos diante desses símbolos:

Adorável! Tu, muito natural,

Seguias a pensar no seu bordado;

Avultava, num largo arborizado,

Uma estátua de rei no pedestal.

(CV. A Débil, p. 111)

As construções seculares, como as igrejas, as prisões, os castelos, os quartéis são

constantemente visitados por seu olhar perscrutador que denuncia, investiga, captando por

trás dos grandes muros seus pecados e seus horrores. Especial plasticidade têm os claustros,

que se expandem para além das muralhas conventuais e projetam na composição visual de

Cesário um jogo de luz e sombra. Os cais, os becos escuros, as boticas, os restaurantes, os

prédios de andares, os jardins escuros também projetam sombras que compõem ambientes

lunares, promovendo no leitor sensações de ameaça e frustração.

Com a aceleração das experiências, a cidade moderna exibe uma série de formas

desvirtuadas de sua função e, por isso, desprovidas de sentido. Os conventos não têm mais,

nos novos tempos, a quem acolher. As “sofridas de amor” não buscam reclusão. O lugar é

tomado por policiais, as patrulhas necessárias nessa nova cidade. Os motins de

trabalhadores, as dezenas de desempregados, a ociosidade perigosa das ruas, mendigos

abandonados, prostitutas fazem parte de um quadro triste que se multiplica ao sabor do

crescimento desse espaço que precisa ser vigiado.

Page 82: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

81

E ali começaria o meu desterro! ...

Lodoso o rio, e glacial corria;

Sentamo-nos, os dois, num novo aterro

Na muralha dos cais de cantaria.

[...]

E tu que não serás somente minha,

Às carícias leitosas do luar,

Recolheste-te, pálida e sozinha,

À gaiola do teu terceiro andar!

(CV. Noitada, p. 129)

A obra poética de Cesário Verde nos revela a coexistência de elementos

heterogêneos, e até antagônicos, expressos através das linguagens diferenciadas, que já

disputavam o espaço da Lisboa que o poeta conheceu. Em sua cidade, já se refletia o

crescente desenvolvimento que o século XIX impunha. Os aterros, os prédios de azulejo, os

tapumes, os calçamentos – “formas agudizadas”71 por excelência – convertem a cidade num

ambiente inóspito, imposto pelo desenvolvimento capitalista. Essas formas conviviam sem

harmonia com bancos de praça, jardins floridos e parques, gerando o que Renato Cordeiro

Gomes chama uma “morfologia espacial”72 contrastante.

Ao falar de Lisboa, Cesário Verde transmite primeiro suas sensações iniciais e só

depois nos mostra o objeto, foco que o seu olhar termina abrigando por inteiro. Sua técnica

muito particular de apreensão sensorial incide sobre o plano físico e sobre o campo social,

misturando carência e desejo, forma concreta e visão, de modo que pelo menos três

71 GOMES. Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade: literatura e experiência urbana.Rio de Janeiro: 1994. p. 35.

Page 83: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

82

perspectivas se impõem ao leitor: há uma cidade feita de formas concretas, opressoras; há,

encoberta por essas formas, a cidade fantasmática evocativa do passado; e há a cidade

bloqueada; essa última é a cidade que poderia surgir da força de seus trabalhadores, não

fossem eles as vítimas do enfraquecimento imposto por uma história injusta.

À deformação física do espaço corresponde uma paisagem humana igualmente

deformada, acentuando a noção de paisagem artificial que, em seu exibicionismo, adoece e

simultaneamente fascina o poeta.

Flanavam pelo Aterro os dândis e as cocottes,

Corriam char-à-banc cheios de passageiros

E ouviam-se canções e estalos de chicotes,

Junto à maré, no Tejo, e as pragas dos cocheiros.

(CV. Desastre, p. 100)

A idéia sugerida no poema “Desastre” exemplifica a rejeição do observador que

repudia os estalos de chicotes e a presença dos dândis e das cocottes no lugar onde o Tejo e

o mar se encontram. A naturalidade perdida pela construção do aterro fez desaparecer desse

lugar a calma, transformando-o num local agitado, onde os modernos habitantes preferem

circular.

Alguns conservadores refugiam-se nos parques e nos jardins gradeados. Os parques

têm uma significação especial na obra de Cesário. Esses locais procuram preservar, dentro

da cidade, a natureza, mas terminam por mantê-la contida, gradeada. Lá os casais procuram

a tranqüilidade necessária a um afeto também contido, represado.

72 Id. loc. cit.

Page 84: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

83

A superposição de elementos humanos e físicos marca os quadros de Cesário e

revela seu inconformismo com o curso que Lisboa prometia seguir. Integram esses blocos

descritivos, os teatros abarrotados de espectadores, os cafés devassos, onde os poetas

partilhavam suas intimidades com os demais bebedores, os armazéns, as lojas cheias das

novidades inglesas e francesas que proporcionavam à sua clientela a ilusão de estarem

atualizados com a moda das metrópoles, os restaurantes da moda como o Mota e o

Martinho, locais de encontros dos artistas da época, todos eles ambientes freqüentados

comumente por homens e mulheres.

As novidades trazidas por navios vindos dos grandes centros urbanos são, com

riqueza de detalhes, descritas na obra do poeta, de modo que essas descrições imprimem

cores múltiplas à realidade. Cesário Verde também descreve, com freqüência, os novos

transportes urbanos, como se observa nos versos de “Desastre”: “Corriam char-à-banc

cheios de passageiros” (CV. p. 100) por onde circulam os tipos que não se mantêm mais

reclusos nos espaços fechados e preferem passear nas ruas. No poema “Esplêndida”, o eu

enunciador ainda acrescenta, ao tipo de transporte, o brilhantismo da equipagem e o

requinte do trajes dos lacaios com suas capas de borracha esbranquiçadas, os chapéus com

roseta e as librés de forma aprimorada.

Page 85: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

84

Ei-la! Como vai bela!...

Deita-se com languor no azul celeste

Do seu landau forrado de cetim;

E os seus negros corcéis, que a espuma veste

Sobem a trote a rua do Alecrim,

Velozes como a peste.

(CV. Esplêndida, p. 71)

Cesário imprimia o seu próprio ritmo nessas caminhadas pela cidade. Na maioria

das vezes, mantinha uma certa distância do quadro físico ou humano que observava.

Diferentemente do que ocorre no conto “O homem da multidão”73, escrito por Edgar Allan

Poe, em que é prevista uma cidade ilegível, Cesário não perde, em relação aos tipos

humanos que descreve, uma certa familiaridade. De algum modo, eles repetem-se. Afinal,

seu olhar observador circula numa cidade pequena, cuja extensão não ocuparia mais de

meia dúzia de bairros ingleses. Os tipos lisboetas, além de reduzidos, eram familiares para

quem freqüentava diariamente as ruas. Assim, é possível ao poeta identificar, no esmoler

que surge em “O Sentimento dum Ocidental”, o seu antigo professor de latim.

Mais numeroso, um primeiro grupo humano – formado na sua maioria de

trabalhadores, como artesãos, calafates, varinas, obreiras, mestres-carpinteiros,

trabalhadores diversos dos arsenais e das oficinas – merece do poeta uma descrição que

visa a revelar um confinado heroísmo, selado pela força física e pelo apego ao trabalho. Um

segundo grupo é formado pelas elites que circulam em bairros burgueses e nas ruas mais

centrais. Esses são os altos funcionários da nação, os padres de batina, que em menor

número passeiam pelas calçadas, misturando-se aos demais transeuntes e se comportando

73 POE, Edgar Allan. O homem da multidão. In: ______. Ficção Completa, Poesia e Ensaios. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1981. p. 392.

Page 86: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

85

sem pudor, sem discrição, como no poema “Noitada”: “Cara rapada, gordo e presumido,/ O

padre que parou para te ver” (CV. p. 126). Também os militares amedrontam e pertencem a

uma classe de gente que o poeta despreza. A sua falta de escrúpulo, o seu ar superior e

principalmente a sua atitude em relação à classe pobre são aspectos criticados.

Ao retratar certas figuras lisboetas, Cesário imprime seu posicionamento em relação

a instituições sociais que ele condena e muitas vezes combate. Refiro-me ao olhar irônico

lançado sobre os militares, os funcionários da nação, e principalmente sobre os padres. No

poema “Noitada”, o audacioso religioso lança o olhar desconcertante à dama que desfila:

“Tenho ainda gravado no sentido,

Porque tu caminhavas com prazer,

Cara rapada, gordo e presumido,

O padre que parou para te ver”.

(CV. Noitada, p. 126)

Na “Débil”, o eu enunciador qualifica-os de chusma de batinas, sempre a circularem

nas ruas, lugar público vulgar, atrapalhando o movimento dos que passam:

“Com elegância e sem ostentação,

Atravessavas, branca, esvelta e fina,

Uma chusma de padres de batina

E de altos funcionários da nação.”

(CV. A Débil, p. 111)

3.3 LISBOA NUM FIM DE TARDE

Page 87: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

86

Embora não perca o seu fascínio, a cidade representada nos versos de Cesário

assume, na maior parte das vezes, aspecto de confinamento. Trata-se de espaço, onde as

forças vitais encontram-se bloqueadas, impedidas de expansão. Diante dessa paisagem

soturna, o eu poético é tomado por uma profunda melancolia. Essa correspondência entre o

ânimo do poeta e a paisagem urbana constitui o centro do poema “O Sentimento de um

Ocidental,” considerado por muitos leitores a “obra prima” de Cesário Verde.

3.3.1 O Sentimento dum Ocidental

Nas nossas ruas, ao anoitecer,

Há tal soturnidade, há tal melancolia,

Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia

Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

(CV. O Sentimento dum Ocidental, p. 149)

A passagem do poente à noite oferece ao poeta motivo para reflexão. Seguindo uma

longa tradição simbólica do Ocidente, Cesário atribui positividade à luz, passando a

conceber o avanço para a noite como “descida,” movimento de declínio, decadência que

resulta em morte. As quatro secções são nomeadas em acordo com esse princípio que

norteia a construção das imagens.

Os versos deslocam-se das ‘Aves-Marias’ – primeira secção referente ao momento

crepuscular das seis horas da tarde – para a ‘Noite Fechada’ – segunda secção –, que é

seguida por uma espécie de revelação negativa: a terceira secção – ‘Ao Gás’ – descreve

aquilo que pode ser visto à luz dos candeeiros de gás, luz artificial da noite. Finalmente,

Page 88: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

87

uma quarta secção desnuda a equação noite/ morte, implícita em todo o movimento; e por

isso se chama ‘Horas Mortas’.

De modo solidário, o poeta responde à mudança que ocorre na paisagem, situando,

no plano subjetivo, uma “descida de humor”, queda nas “sombras da melancolia”. E é este

sentimento que constitui, de fato, o centro do poema, sendo aludido desde o seu título.

Ao analisar “Anoitecer,” soneto de Raimundo Correia (1859-1911), Alfredo Bosi

observa que o poema escrito pelo brasileiro “exprime intuições que apreendem o

sentimento por excelência da mudança das formas no correr do tempo: o sentimento de

melancolia.”74 E prossegue esclarecendo:

Os dicionários de língua portuguesa que gozavam de autoridade nos fins do século XIX não atribuíam ao termo melancolia outra acepção que não fosse a de estado mórbido do organismo que inclinava a alma à angústia e a uma tristeza sem fundo. O Moraes, fonte e modelo de todos, exemplifica com sombras da melancolia.75

Em princípio, pelo menos, os dois poetas – Raimundo Correia e Cesário Verde –

respondem, com um mesmo ânimo – a melancolia – à passagem do crepúsculo para a noite.

Ocorre, no entanto, que, enquanto nos versos do parnasiano brasileiro o anoitecer é um

fenômeno físico, no poema de Cesário, o declínio para a noite é, além de físico, um

movimento histórico e cultural, exposto na paisagem urbana, tal como ela se apresenta aos

olhos do poeta. É essa decadência – física, humana, social, histórica, cultural e concernente

ao Ocidente – que o poeta encena, enquanto caminha nas “descidas” de Lisboa.

Quem fala também desce por ladeiras que levam à Baixa e ao cais, tendo visões

fantasmáticas. Em meio a esses fantasmas, tem destaque o passado histórico. Evocado, o

74 BOSI, Alfredo. A intuição da passagem em um soneto de Raimundo Correia. In: ______. Leitura de Poesia. São Paulo: Ática, 1996. p. 222.

Page 89: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

88

passado glorioso das Navegações constitui o ponto alto de onde a história empreende seu

movimento de declínio. Note-se que, em linhas gerais, o poema funciona como ironia à

noção de evolução e de progresso.

Continuando seu laço solidário com a dinâmica decadente da história, o poeta

localiza em si próprio o ponto mais baixo de uma trajetória descendente, cujo ponto de

partida foi Camões. De fato, “O Sentimento dum Ocidental” foi publicado em 10 de junho

de 1880 no “Portugal a Camões” em folha comemorativa do Jornal de Viagens, por ocasião

do tricentenário do Camões.

Vendo na obra de Fernando Pessoa uma “resposta à decadência”, Haquira Osakabe

apresenta o caldo de cultura que compôs as últimas décadas do século XIX português. Vem

dele a observação de que

[...] os expoentes máximos da grande crise do período, Shopenhauer e Nietzsche na filosofia, e Baudelaire na literatura, estiveram vigorosamente inscritos no que se poderia chamar de saga lusitana oitocentista, através de nomes como Antero, Cesário Verde, Gomes Leal...76

Em sua perspectiva, tais autores teriam absorvido, além do naturalismo-realismo, a

fantasia decadentista, entendendo-se essa tendência finissecular como estado de profunda

depressão sofrida por toda a Europa. Esclarece Osakabe que “nesse sentido, o decadentismo

foi muito mais do que uma assumida deposição de armas: foi a manifestação de um estado

de espírito em que o homem sente-se mortalmente atingido no seu próprio cerne.”77

Helder Macedo inicia a sua análise do poema “O Sentimento dum Ocidental” com

as seguintes palavras:

75 Ibid., loc. cit. 76 OSAKABE, Haquira, op. cit., p. 29.

Page 90: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

89

A cidade é Lisboa; o sentimento do título é do narrador, natural do extremo ocidental da Europa, um português. Mas a cidade também representa o todo da civilização ocidental a que Portugal pertence; e o sentimento que ela provoca é ao mesmo tempo um produto dessa civilização e um protesto contra ela78.

Assim, o crítico vê, no anoitecer de Lisboa, um movimento que pode ser atribuído,

por extensão, a todo o Ocidente. E esse movimento, como já vimos, constitui uma descida.

Tomo essa descida como imagem dessa ampla decadência histórica e cultural, diante da

qual a emoção do poeta também desce até um mundo permeado por sombras melancólicas.

Nos versos de Cesário, ao lado da constatação de que tudo decai na noite, há uma

geral atração pelas “horas mortas;” e há entrega a essa noite, como se houvesse uma espécie

de “Amor Fati”, espalhando-se sobre a paisagem e contaminando aquele que a observa.

Diante dessa geral e soturna atração pela noite, o poeta tem reação ambígua. No plano

emocional, ele a assimila através da melancolia e tem “desejo de sofrer”. Mas é também

perceptível uma consciência crítica, fonte do protesto que Helder Macedo surpreende. Se,

em sua caminhada, o poeta está em afinidade emocional com o anoitecer e é assimilado

pelas “horas mortas”, simultaneamente, sua consciência revolta-se contra essa atração e

qualifica seu próprio desejo como absurdo.

3.3.1.1 Ave-Marias

Desde o início da sua caminhada pela Baixa lisboeta, a consciência poética fala

sobre o caráter soturno que, tomando a cidade ao anoitecer, atinge aquele que a observa.

77 Ibid., p. 31. 78 MACEDO, Helder, op.cit., p. 165.

Page 91: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

90

Como a luz crepuscular cede espaço à noite, a cidade modifica suas formas e o poeta

também se deixa invadir por sua absurda ânsia de sofrimento. Torna-se impossível definir a

fonte desse impulso para as trevas. Como sentimento, ele pertence ao sujeito. Como

elemento exterior, ele prende-se ao Ocidente.

Esse estado sombrio faz com que o caminhante deseje fugir, “transmigrando”

através do espaço geográfico – “Madrid, Paris, Berlim, São Petesburgo, o mundo” (CV. p.

149) – ou através do tempo histórico: “Evoco, então, as crônicas navais/ Mouros, baixéis,

heróis, tudo ressuscitado!” (CV. p. 150). Instaura-se aí um conflito entre o presente

limitante, opressivo, e o passado heróico; esse conflito permeia os versos e a viagem

simbólica que, através deles, é empreendida. A referência direta a Camões indica que

Cesário Verde regride na história, num esforço de entender o seu próprio tempo: “Luta

Camões no Sul, salvando um livro, a nado” (CV. p. 150).

O caminhante fala sobre Lisboa, sobre a Baixa vista no crepúsculo, e sua

“soturnidade” ao anoitecer. O poeta vê-se impossibilitado de retomar, na sua voz

atormentada, a magnitude camoniana. Contudo, ele não deixa de manifestar-se com uma

mórbida adesão afetiva a essa paisagem que o atinge e o contamina com as suas sombras. A

cidade impõe sofrimento e ele deseja sofrer, fascinado pelas formas que incluem

degeneração e dor.

Asfixiante, o crescimento urbano faz com que os homens assemelhem-se a animais:

“Como morcegos, ao cair das badaladas, / Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.”

(CV. p. 149) Os espaços tornaram-se confinadores, a cidade é “o templo da solidão”79:

O céu parece baixo e de neblina

Page 92: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

91

O gás extravasado enjoa-nos, perturba;

E os edifícios, com as chaminés e a turba,

Toldam-se duma cor monótona e londrina.

[...]

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,

As edificações somente emadeiradas,

Como morcegos, ao cair das badaladas,

Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.

(CV. O Sentimento dum Ocidental, p. 149)

A vastidão de tais sensações leva o poeta a procurar saídas desse confinamento. No

entanto, ele chega apenas ao encontro decepcionante com o porto. A imagem alude às

limitações da nação: “Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos, /Ou erro pelos

cais a que se atracam botes.” (CV. p. 149)

No cais, onde não mais se atracam os grandes veleiros, habitam pequenos botes. A

redução a essa pequenez náutica encontra aí o seu equivalente na função a que se prestam

essas embarcações: são botes ou escaleres, impelidos a remo e destinados a executar

serviços do navio para o cais: “De um couraçado inglês vogam os escaleres” (CV. p. 150).

Cesário mostra uma realidade que se distancia da magnitude imperial, da “ocidental

praia lusitana” e a expressa, evocando, em suas imagens, a subserviência de Portugal aos

povos da Europa do Norte, particularmente a Inglaterra. Sedimentado na constatação desse

ocaso, Cesário desenvolveu uma atitude irônica em relação à visão da nação com base em

uma monumentalidade transposta do passado. Tal atitude foi tomada pelos seus

contemporâneos como violação ao culto de Camões.

79 MACEDO, Helder, op.cit., p. 189.

Page 93: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

92

A designação da ‘Ave-Marias’, para o título da primeira secção, remete ao mesmo

tempo a dois aspectos: a luz dos dias gloriosos é contraposta à sombra da história atual. Os

momentos finais do dia provocam um efeito de obscurecimento e de agravamento da crise

moral por que passa o Portugal, em decadência. A massa de trabalhadores, de negro, funde-

se à imagem dos “prédios sepulcrais”, formando um todo orgânico, que torna o ar saturado.

O outro aspecto trazido pelo título ‘Ave-Marias’ reside no seu caráter de apelo, de súplica.

Como evocação suplicante, esse apelo cria um paralelo com o texto camoniano. O poeta

crepuscular apela aos céus, como o poeta do passado evocara as Tágides do Tejo.

Na natureza, a chegada da noite espalha o medo, implicado na ameaça de dissolução

de tudo. Afinal, há, na história, um confinamento que se espraia sobre as formas. Perdido

nesse labirinto é natural que o caminhante busque o porto e o mar, como espaço libertador.

Como já vimos, mesmo aí há frustração e o caminhante é obrigado a voltar, mudar de

direção, assim como Cesário muda o rumo camoniano e tem como matéria uma aventura

terrestre empreendida no quotidiano de Lisboa.

O poeta volta seu olhar para a classe trabalhadora, lojistas, dentistas, varinas,

transeuntes que circulam em meio aos “hotéis da moda” e vagam entre os escassos

símbolos de riqueza de uma burguesia reduzida. Prosseguindo e desenvolvendo a técnica de

mosaico e de montagem que já aparecera em “No Bairro Moderno”, Cesário acentua agora

os contrastes das formas urbanas, espelhos das contradições sociais e dos paradoxos

humanos de uma nação em situação igualmente paradoxal.

Ao fazer a opção de afastar-se das ruas mais elegantes da cidade onde desfilam os

tipos socialmente destacados e embrenhar-se pelos “becos”, pelos “boqueirões”, até o cais

buscando lugares menos prestigiados, o poeta localiza os tipos vigorosos. Todavia, esse

vigor é, de algum modo, alvo da degenerescência geral; como se a vida fosse impedida de

Page 94: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

93

desenvolver-se natural e plenamente. Há uma aproximação entre a saída das obreiras dos

arsenais e o movimento de esvaziamento do rio, como se a passagem do tempo acarretasse

esterilidade, supressão da vida. Assim, os filhos das varinas, depois de serem “embalados

nas canastras”, são “afogados nas tormentas.” O mesmo para os peixes, que, no contexto

das ‘Ave-Marias’, já estão podres e são focos de infecção. Participante do quadro, o poeta

assimila a sua profunda melancolia.

3.3.1.2 Noite-Fechada

E eu desconfio, até, de um aneurisma

Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes;

À vista das prisões, da velha Sé, das cruzes,

Chora-me o coração que se enche e que se abisma.

(CV. O Sentimento dum Ocidental, p. 151)

Se, na primeira secção do poema, predomina a sensação de confinamento, expressa

pelas imagens de fechamento e clausura que o caminhante vai gradativamente enumerando

– “as edificações como gaiolas”, “os boqueirões”, “os becos” –, nessa segunda seção, há

um agravamento do problema. Surgem referências a presídios, ao Aljube, às prisões da Sé,

que se somam aos espaços fechados das tascas e dos monastérios.

Assim como na natureza o crepúsculo cedeu espaço à noite e à frieza lunar; nas

formas urbanas, o confinamento revelou-se prisão, sujeição. No poeta, também avançou a

dor que agora se revela pranto e faz-lhe “chorar o coração”; ele se vê mesmo ameaçado por

um aneurisma.

Page 95: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

94

Mais uma vez a aventura pela cidade se prolonga numa equivalente viagem pela

história. A prisão do presente evoca a opressão exercida nos tempos da Inquisição. Surgem

os fantasmas de episódios sinistros, numa regressão que atinge a Idade Média.

Duas igrejas, num saudoso largo,

Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:

Nelas esfumo um ermo inquisidor severo,

Assim que pela história eu me aventuro e alargo.

[...]

Partem patrulhas de cavalaria

Dos arcos dos quartéis que foram já convento;

Idade Média! A pé, outras a passos lentos,

Derramam-se por toda a capital, que esfria.

(CV. O Sentimento dum Ocidental, p. 151-152)

Enquanto o poeta carrega de positividade – “brônzeo”, “monumental”, de

“proporções guerreiras” – a estátua de Camões, ele ironiza com os versos “num recinto

público vulgar”, a escolha do local onde ela é erguida para ser homenageada. Assim, numa

dialética contínua entre o heróico e o desprestigiado, entre o requintado e o repugnante,

entre o velho herói e o herói da vida moderna, Cesário vai contrapondo o presente e o

passado, com espírito melancólico.

Helder Macedo vê ironia nessa visão de que a cidade é “unida pela devoção

religiosa.”80 Fundamentado no princípio religioso, o pacto civil é, na óptica de Cesário,

gerador de clausura e a morte. Por isso, ele cita “a nódoa negra e fúnebre do clero”, “o

80 MACEDO, Helder, op. cit., p. 166.

Page 96: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

95

inquisidor severo”, “os sinos de um tanger monástico e devoto”, além da imagem de morte

relembrada pelo terremoto. Somam-se a esses símbolos, igualmente sombrios e

“espectrais”, a presença dos soldados que hoje ocupam antigos conventos Evocam-se várias

formas de intolerância: a religiosa, a política.

Uma das passagens mais comentadas desse poema registra as “nobres proporções

guerreiras” da estátua de Camões em contraste com a massa acumulada de “corpos

enfezados na realidade espectral da cidade”81. Da mesma forma, o “brônzeo, monumental”

da estátua entra em choque com o espaço que ela ocupa – “recinto público vulgar”; estaria

aí concentrado o impulso dessacralizador do épico, que tanto repúdio trouxe a Cesário:

Mas, num recinto público e vulgar,

Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,

Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,

Um épico doutrora ascende, num pilar!

(CV. O Sentimento dum Ocidental, p. 152)

David Mourão-Ferreira comenta a intenção de Cesário ao proceder dessa forma:

Cesário por seu lado talvez também admirasse Camões. Mas, perante o espetáculo convencional da sua estátua, perante a verborréia oficial da medíocre gente da política e das secretarias, por isso, sobretudo constitui o tricentenário, sente, como é natural, uma vontade súbita de desmoralizar o épico, tão oportunisticamente aproveitado por quem dizia admirá-lo e não podia entender.82

No espaço constritor desse poema, as preocupações sociais do poeta são

contrastadas com a despreocupação dos emigrados que jogam a sorrir nas brasseries.

81 Ibid., p. 176. 82 MOURÃO-FERREIRA, David. Hospital das Letras. Lisboa: 1966, p. 129.

Page 97: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

96

Com sua “luneta de uma lente só” de forma semelhante ao poeta épico, Cesário

desejou através de uma nova perspectiva ideológica ver o mundo ainda que “recortado por

quadros revoltados” e encontrar nele algum tipo de heroísmo ainda possível.

3.3.1.3 Ao Gás

E saio. A noite pesa, esmaga. Nos

Passeios de lajedo arrastam-se as impuras.

Ó moles hospitais! Sai das embocaduras

Um sopro que arripia os ombros quase nus.

Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso

Ver círios laterais, ver filas de capelas,

Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,

Em uma catedral de um comprimento imenso.

(CV. O Sentimento dum Ocidental, p. 153)

Prosseguindo sua trajetória descendente, o caminhante ultrapassa as trevas e

ingressa no conhecimento do seu conteúdo. A luz artificial do gás revela um mundo

também artificial, infernal, feito de simulações e ardis. Na terceira secção do poema

adensa-se a opressão da noite que vem associada a imagens de doenças. O mal físico,

contudo, transforma-se nessa secção em doença social e o poeta constrói o poema,

aproximando tipos que ele considera socialmente doentes – as prostitutas –, dos locais onde

a doença se encontra – os hospitais. Essa técnica de aproximações projeta o leitor para um

ambiente confuso, onde as coisas não se definem completamente. Iluminada pelo gás, a

seqüência de lojas parece ser fila de capelas e a avenida confunde-se com uma grande

catedral.

Page 98: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

97

A percepção confusa – do poeta e, em decorrência, do seu leitor – atinge não apenas

as coisas, mas também o tempo. As épocas superpõem-se; de modo que se revela o engodo

do progresso e a inverdade da evolução no contexto focalizado pelo olhar que,

simultaneamente, observa, analisa, julga e também delira. Chorando nos pianos, as

burguesinhas de hoje são as freiras enclausuradas no passado.

As burguesinhas do catolicismo

Resvalam pelo chão minado pelos canos;

E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,

As freiras que os jejuns matavam de histerismo.

(CV. O Sentimento dum Ocidental, 153)

Em consonância à desordem geral do contexto, a pressão do ar é exercida na direção

inversa ao esperado. Se antes o céu comprimia com a sua neblina, agora “Sai das

embocaduras/ um sopro que amplia” (CV. p. 153). Completa-se a visão infernal que o poeta

produz da cidade. Esse espaço angustiante, cuja opressão se exprime na disposição lateral

das “filas de capelas”, é estruturado de forma a parecer que reduz o espaço por onde o poeta

circula. Tal opressão é expressa pela forma verbal “cercam-me” que vem fortalecer a

sensação de claustro ou de uma “catedral profana”83.

E afinal, o que a luz do gás permite à imaginação vislumbrar é o conteúdo da noite,

sua verdade percebida por Cesário como doença, nos corpos humanos e no corpo social:

E eu sonho o Cólera, imagino a Febre,

Nesta acumulação de corpos enfezados;

Sombrios e espectrais recolhem os soldados;

Inflama-se um palácio em face de um casebre.

83 MACEDO, Helder, op. cit., p. 181.

Page 99: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

98

(CV. O Sentimento dum ocidental, p. 152)

Dentro dessa visão caótica são captados, pelos sentidos e percepção social do poeta,

a vitalidade do forjador e o cheiro “salutar e honesto” do pão, símbolos de trabalho e

alimento, opostos à fragilidade doentia da sociedade.

Colabora na composição desse quadro doentio, a forte presença das mulheres nas

ruas. Sobre isso, falarei adiante. Por enquanto, cabe destacar aqui a menção às costureiras e

floristas que “causam sobressaltos” a quem as observa.

O registro dessas complexidades leva o poeta ao desabafo, quando ele lamenta não

poder repetir o timbre da voz camoniana. A realidade que se expõe no presente impõe a

tonalidade melancólica e simultaneamente crítica, levando o poeta a uma meditação que

evolui para a confissão de uma dor profunda.

No poema camoniano, o Velho do Restelo refere-se às conquistas como – “vaidades

do homem”, “ilustres subidas”84. Sua fala ecoa aqui, mas sofre uma inversão irônica,

quando Cesário reporta-se às “Longas decidas!”, mencionando a dificuldade que tem em

retratar seu quadro difuso e paradoxal.

Longas descidas! Não poder pintar

Com versos magistrais, salubres e sinceros,

A esguia difusão dos vossos revérberos

E a vossa palidez romântica e lunar!

(CV. O Sentimento dum Ocidental, p. 153)

Aqui e ali o poeta retoma Camões, quando não diretamente, invertendo as imagens

que às avessas se apresentam e o vão conduzindo por essa cidade num anoitecer

Page 100: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

99

melancólico. Os quadros revelados pelo gás do candeeiro não geram entusiasmo. Neles,

existem traços grotescos. A presença desses traços conduziu alguns leitores de Cesário a

afirmarem que o poeta inclui-se entre os retratistas de paisagens infernais. Helder Macedo

aproxima sua Lisboa em hora crepuscular, do Inferno concebido por Dante.85

3.3.1.4 Horas Mortas

O tecto fundo de oxigênio, de ar,

Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras;

Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras,

Enleva-me a quimera azul de transmigrar.

(CV. O Sentimento dum Ocidental, p. 154)

Em sua última secção, o poema exibe o confronto entre a situação real de

“emparedamento” – impossibilidade de expansão experimentada pelo homem – e o seu

anseio criador da “quimera azul de transmigrar.”

Cabe lembrar que “O Sentimento do Ocidental” foi dedicado ao poeta Guerra

Junqueiro. Contemporâneo de Cesário Verde, o homenageado notabilizou-se por sua crítica

aos costumes do Portugal oitocentista, destacadamente aos maus costumes do clero.

Dedicado ao campo, à semelhança de Cesário, Junqueiro criticou o vício social e o

confrontou a um ideal de justiça, paz e concórdia. ‘Horas Mortas’ traz, em uma série de

imagens, referências a um mundo de perfeição, eivado de valores ideais. No entanto, nesta

84 CAMÕES, Luis Vaz de, op. cit., p. 187.

Page 101: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

100

última secção de “O Sentimento dum Ocidental”, as imagens do “idealismo” apresentam-se

como fragmentos perdidos, ecos de um mundo que, como o passado, tornou-se

fantasmático. Assim, entre “a dupla correnteza das fachadas”, as notas pastoris soam como

delírios auditivos. Perceba-se:

85 MACEDO, Helder, op. cit., p. 184.

Page 102: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

101

E eu sigo, como as linhas de uma pauta

A dupla correnteza augusta das fachadas;

Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas,

As notas pastoris de uma longínqua flauta.

(CV. O Sentimento dum Ocidental, p. 155)

Enfaticamente, ‘Horas Mortas’ concentra-se na asfixia que foi, para o intelectual do

Ocidente, a derrocada de todos os ideais; entre eles, o ideal de um futuro arquitetado por

progresso e salubridade que não poderiam surgir daquele presente aprisionador. Invadido

por esse imenso desalento, o poeta lembra a transitoriedade da vida e, então, lamenta ser

ilusão a eternidade, cuja impossibilidade é posta em paralelo a uma grandeza que não

pertence aos portugueses do seu tempo:

Se eu não morresse nunca! E eternamente

Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas!

Esqueço-me a prever castíssimas esposas,

Que aninhem em mansões de vidro transparente!

[...]

Mas se vivemos, os emparedados,

Sem árvores, no vale escuro das muralhas! ...

Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas

E os gritos de socorro ouvir, estrangulados.

(CV. O Sentimento dum Ocidental, p. 155)

Em contraste com o sonho de perfeição, já perdido, a realidade noturna surge da

paisagem urbana que expõe seus tristes dejetos. São restos de vida e restos de gente que

insistem em se manter despertos nas ruas. As tabernas, os bêbados, os dúbios caminhantes,

os cães, as personagens da noite mantêm-se sob a vigilância das forças militares. Mesmo os

Page 103: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

102

restos são contidos. A dor humana, no entanto, não pode ser contida e ainda mais se

expande, na busca de seus “amplos horizontes”.

Cesário Verde conclui “O Sentimento dum Ocidental”, com a visão dos grandes

montes, onde tudo começara para os primeiros argonautas, mas terminaria para ele, numa

associação com os imensos prédios sepulcrais. Amplos horizontes são procurados através

de marés de fel, mas não por “glória de mandar” e sim pela necessidade de obter abrigo

para a dor.

Certamente Cesário não se fez entender por alguns homens de seu tempo que

esperavam um ânimo mais celebratório em ocasião de homenagem a Camões. Nem todos

tinham consciência do seu próprio mundo, nem sensibilidades voltadas às “horas mortas”

do Ocidente. Cedo, Cesário percebeu as ambigüidades que se estabeleceram a partir da “luz

traiçoeira”86, que Baudelaire atribuiu à cidade moderna. Identificado emocionalmente com

a decadência que atribuía à paisagem de Lisboa, o poeta a criticou e nela observou todos os

perigos; sua admiração pela mudança fez-se acompanhar por uma personalíssima tristeza.

Percebe-se que, a essa tristeza, subjaz a observação cuidadosa de alterações políticas e

sociais da Lisboa oitocentista que, beneficiando apenas alguns habitantes, lançavam

crueldade sobre outros.

Finalizo o comentário do poema, salientando que “O Sentimento dum Ocidental”

reflete as tensões de uma sociedade complexa, na qual o poeta encontrou mais elementos

para lamentar do que motivos para celebrar.

Ainda que fascinante, a negatividade da paisagem urbana confirma-se em outros

poemas de Cesário Verde. Destacadamente, o poema “Noitada” – em que o caminhante

vaga pelas ruas, levando consigo a lembrança do passeio realizado no sábado anterior,

Page 104: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

103

quando tivera a amada ao seu lado – antecipara, provavelmente em 1878 ou 1879, as

características crepusculares já aqui assinaladas a partir de “O Sentimento dum Ocidental”.

Nas estrofes de “Noitada”, Cesário acrescenta a elas a noção de uma frustração afetiva.

Embora Davi Mourão-Ferreira87 tenha considerado haver uma distância abismal

entre as atitudes que, em cada um dos poemas, Cesário manifesta em relação à cidade, ele

mesmo relaciona a frustração amorosa de “Noitada” com a melancolia radical de “O

Sentimento dum Ocidental”.

É perceptível o cuidado com que o poeta observa o aspecto dos prédios, das casas,

dos bares, dos monumentos, das estátuas, seu estado de conservação, sua localização.

Todavia, a perspectiva dominante em “Noitada” é a daquele que se debruça no muro, no

desejo de ver o que se oculta sob a fachada.

A sensualidade da mulher, sua displicência ao caminhar, contrasta com o ar

magoado e entristecido do parceiro que, possuidor de intenções sérias, não pode

compartilhar com a dama os seus desejos fúteis.

A lua dava trémulas brancuras.

Eu ia cada vez mais magoado;

Vi um jardim com árvores escuras,

Como uma jaula todo gradeado!

[...]

Tu sorrias de tudo: os carvoeiros

Que aparecem ao fundo dessas ruínas,

E à crua luz os pálidos barbeiros

86 BAUDELAIRE, Charles. Obras Completas. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1995. p. 859. 87 MOURÃO-FERREIRA, David, op. cit., p. 99.

Page 105: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

104

Com óleos e maneiras femininas.

(CV. Noitada, p. 127)

Ao longo da caminhada, o poeta vai se envolvendo pouco a pouco com os quadros

de miséria e injustiça que encontra no caminho. A mulher distancia-se, demonstrando

inteira familiaridade e acordo com o ambiente. Em certo momento, porém, a aproximação

do casal é inevitável e ocorre uma inesperada mudança de tom, percebe-se que a mulher,

antes displicente e distraída em relação às imagens circundantes, deixa-se conduzir:

E assim ao meu capricho abandonada,

Errámos por travessas, por vielas,

E passamos por pé duma tapada

E um pátio real com sentinelas.

(CV. Noitada, p. 126)

O longo e demorado caminho seguido pelo casal desemboca, como ocorre em “O

Sentimento dum Ocidental” e em muitos outros textos do poeta, no limite da cidade, no cais

de cantaria. Trata-se de um elemento da paisagem que carrega, na poesia de Cesário, uma

simbologia especial, pois representa o fim da jornada, a impossibilidade de continuar

caminhando.

Enquanto o poeta percorre as ruas, as travessas, as vielas, ainda que entristecido, ele

mantém alguma esperança. Mas o limite da cidade o desestabiliza, uma vez que o impede

de caminhar e de vagar à procura de matéria poética, esparsa na dinâmica citadina.

Desde os seus primeiros versos, “Noitada” confirma a atmosfera melancólica de “O

Sentimento dum Ocidental”. O “gás amarelado”, “o cemitério”, “o sino rachado que deu

horas”, “o jardim com árvores escuras como jaula gradeado”, “o pátio velho dum canteiro”,

Page 106: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

105

“o prédio de azulejos”, “as travessas”, “as vielas”, “as tapadas”, “a calçada sepulcral” e

finalmente “o cais” imprimem um sentido inibidor. Somadas aos elementos da geografia

humana descritos no percurso – “o padre”, “o militar”, “o sentinela”, “a patrulha”, “os

pálidos barbeiros” – essas formas urbanas colaboram para compor a atmosfera de asfixia e

morte.

Juntos, tipos sociais e formas citadinas desenham, na obra de Cesário, quadros que,

ao olhar do próprio poeta, provocam sofrimentos, ainda que a riqueza de seus efeitos

contrastantes provoque também fascínio: desejo de sofrer.

A intensidade, a veemência, a gravidade com que Cesário Verde registrou os fatos

urbanos nesses dois poemas longos justificam amplamente a compaixão que Alberto Caeiro

sentiu, diante dos seus versos: “Que pena que tenho dele! Que anda preso em liberdade pela

cidade”88.

3.4 A PAISAGEM RURAL: O CAMPO E SEU ESPÍRITO SECRETO

A recolha desses instantâneos no tempo pulsante da cidade será substituída, a partir

de 1883, ano anterior à publicação do poema “Nós”. Texto mais pessoal e auto biográfico

de toda a obra, “Nós” responde aos momentos de crise que o poeta atravessou com a morte

de seu irmão Joaquim Tomás e também com abalos em sua própria saúde. A partir desse

momento, Cesário põe-se a recordar. Talvez pressentindo o seu próprio fim, ele tenha

lançado um olhar para o passado.

Devemos, contudo, distinguir o seu refúgio na infância, das recordações saudosistas

de outros poetas que recorreram à memória. Cesário deseja rever momentos, privilegiar

Page 107: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

106

situações das quais extraiu lições de energia. O poeta evoca preferencialmente a vida

alegre, a vegetação “pletórica” e “potente” do campo, reabilitando tudo o que pode ser

forte, vibrante, enfim, tudo o que se opunha à morte indesejada. Recorreu ao campo como

cenário daqueles momentos em que os seus sentidos estiveram mais ativos e perceberam a

“eterna novidade do mundo”. Assim, o cheiro do “resinoso pinho” ou a “cor negrejante das

folhas” do laranjal transferiam vigor ao seu corpo, ativando os seus sentidos e

transformando-se em poderosos instrumentos de captação do mundo objetivo.

Nesta evocação revigorante, o poeta incorpora, ao poema “Nós,” um hino à Força e

à Saúde ausentes na “capital maldita”. Na verdade, a matéria de Cesário é

preferencialmente a cidade. Assim, mesmo em ânimo anti-celebratório, ele volta-se para

ela, de modo que a referência à paisagem rural situa-se ou como um contraponto

necessário, para que melhor apareça a negatividade da paisagem urbana, ou como uma

alternativa possível para o confinamento. Em “Nós”, o campo é, em princípio, um refúgio.

Cessado algum bucolismo que ainda permeia os poemas mais imaturos, a natureza

aparece na poesia de Cesário através de elementos que, na cidade, sofrem o aprisionamento

que os debilita. De fato, a mulher que habita a cidade em “A Débil” constitui imagem da

própria poesia aprisionada, a cujo culto o poeta promete dedicar a sua vida:

E eu, que urdia estes fáceis esbocetos,

Julguei ver, com a vista de poeta,

Uma pombinha tímida e quieta

Num bando ameaçador de corvos pretos.

E foi, então, que eu homem varonil,

Quis dedicar-te a minha pobre vida,

88 PESSOA, Fernando. Alberto Caeiro, op. cit., p. 205.

Page 108: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

107

A ti, que és tênue, dócil, recolhida,

Eu que sou hábil, prático, viril.

(CV. A Débil, p. 112-113)

Tendo seu vigor aprisionado, sua vitalidade reduzida, essa débil mulher, idealizada,

é, na cidade, a poesia possível. A ela, corresponde uma natureza posta também sob os

cercos dos prédios sepulcrais e das instituições. O que Cesário vai buscar em “Nós” é o

cenário que confira possibilidade de expansão a este vigor. Em outras palavras, o poeta

procura condições para desenvolver uma filia. Quem fala expressa anseio dessa filiação,

adesão ao cenário do campo como espaço que não confina a vida, mas permite o seu pleno

desenvolvimento.

Na longa reflexão do poema “Nós”, Cesário parece mesclar a imagem da irmã

morta à noção de uma natureza frágil que sucumbe à negatividade da época. Num passado

remoto e infantil, houve essa poesia e essa natureza frágeis, débeis e que facilmente

sucumbiram. Ao seu lado, estiveram os componentes do coletivo “Nós”: os homens da

família, os camponeses, as camponesas. Apenas esses permaneceram. Capazes de resistir às

intempéries naturais, esses “fortes” não conseguem resistir à visão do destino humano

direcionado ao declínio e à morte. Por isso, a família decai, diante da morte da irmã. A

morte da figura débil é fenômeno que exibe o destino humano dentro do tempo.

O que torna mais trágico o poema “Nós” é que a força que rege um pacto em torno

da vida campesina – feito pelo poeta, por seus irmãos, pelos homens e pelas mulheres

vigorosas do campo, e ainda pelos próprios elementos naturais – não é suficiente para fazer

frente ao mal estar do tempo: a visão do “muro” final e fatal, morte que a época postula

como completa “aniquilação”.

Page 109: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

108

Mas o processo é gradativo. Tentando refugiar-se na natureza pletórica, e a ela

associar-se, a família termina por ser traída pela lei natural que seleciona os fortes. Frágil

demais, sucumbe a irmã. Depois, as diferenças de classe é que se expõem, dificultando a

aliança entre a família e os camponeses: “Pobre da minha geração exangue/ De ricos!

Antes, como os abrutados,/ Andar com uns sapatos ensebados/ E ter riqueza química no

sangue!” (CV p. 178).

Afinal, a morte da irmã apenas começa a tornar visível um enfraquecimento geral

que, iniciado como debilidade de uma específica natureza, prolonga-se como fenômeno

inerente a uma classe e termina por espalhar-se sobre tudo.

A fatalidade confirma-se, quando aqueles que compõem o sujeito plural, “Nós”,

também começam a sucumbir; em sua última parte, o poema trata da morte do irmão de

Cesário. Se essa doença geral encontra na “tuberculose” uma imagem excelente, ela

encontra, na cidade, emblema e cenário propício à sua disseminação. Assim, mesmo o

pacto em torno da saúde e do desenvolvimento do campo, configurador do laço expresso na

palavra “Nós,” revela sua contradição, pois não consegue resistir à consciência de morte

espalhada sobre a história. A derrocada de todas as crenças e finalmente a derrocada da

crença no progresso ressoam nessa negatividade, de modo que há, mesmo entre “Nós,” o

triunfo trágico do impulso à decadência.

3.4.1 Nós

Foi quando em dois Verões, seguidamente, a Febre

E o Cólera também andaram na cidade,

Que esta população, com um terror de lebre,

Fugiu da capital como da tempestade.

Page 110: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

109

(CV. Nós, p. 163)

Evocando um episódio da vida em família, Cesário inicia o seu mais longo poema,

situando o campo como lugar que, no passado, fornecera alternativa ante a cidade invadida

pela doença. De fato, num momento da sua vida, esse espaço geográfico significou para o

poeta possibilidade de vida saudável, de vigor, de força da natureza.

A despeito da sua afinidade com tantos intelectuais da Geração de 70, a ideologia

cosmopolita não diminuiu em Cesário a admiração pelas tradições nacionais. Essa

admiração fortaleceu a sua concepção de que a cultura agrícola poderia salvar o país.

Lembro que Cesário escreveu num período de crise, quando os movimentos migratórios do

campo para Lisboa e Porto trouxeram problemas tanto para essas cidades, como para o

campo.

Nas cidades, o aumento populacional produziu o caos urbano com o surgimento de

epidemias freqüentes, referidas nos versos iniciais de “Nós”. Mais adiante, quando o poema

desenvolve-se, registram-se problemas que chegam ao campo. Nele, a ausência de mão de

obra, principalmente na época das colheitas e plantio, encarecia os serviços, levando os

produtores muitas vezes a descumprirem seus compromissos. Esse desequilíbrio das

populações, rural e urbana, gerava tumultos que são também registrados nos versos do

poeta.

As cinco primeiras estrofes exibem imagens infernais típicas dos contextos em

convulsões extremas. Nelas, Cesário narra o pânico de uma Lisboa assaltada pela doença.

Todavia, da sexta até a décima quadra, surgem as imagens de uma natureza que, indiferente

aos males históricos, mostra-se opulenta e em pleno vigor. Transcrevo as quadras cinco e

Page 111: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

110

seis, que espelham o contraste, e também a décima quadra que encerra a primeira parte do

poema:

Uma iluminação a azeite de purgueira,

De noite amarelava os prédios macilentos.

Barricas da alcatrão ardiam; de maneira

Que tinham tons de inferno outros arruamentos.

Porém lá fora, à solta, exageradamente,

Enquanto acontecia essa calamidade,

Toda a vegetação, pletórica, potente,

Ganhava imenso com a enorme mortandade!

[...]

E o campo, desde então, segundo o que me lembro,

É todo o meu amor de todos estes anos!

Nós vamos para lá; somos provincianos,

Desde o calor de Maio aos frios de Novembro!

(CV. Nós, p. 164-165)

Nas palavras de Helder Macedo, a antinomia se estabelece e os dois espaços se

definem:

“Nós” começa, portanto, com uma equação exemplar – a cidade é repressão, confinamento, doença e morte; o campo é liberdade, amplidão, saúde e vida – os feixes de associações significados por “cidade” e “campo”, os pólos semânticos do universo de Cesário.89

89 MACEDO, Helder, op. cit., p. 192.

Page 112: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

111

Na segunda parte do texto, paralelamente ao amor à terra, Cesário expressa o seu

olhar de homem prático, habituado às negociações e ao comércio, reconhecendo nesse

ambiente, além do reconfortante e saudável local de recuperação e repouso, uma fonte

fecunda de produção agrícola que proporcionava a sua família, juntamente com a atividade

do comércio de ferragens, o conforto e a condição de burgueses abastados da sociedade

lisboeta.

Esse interesse econômico já se explicita, quando nos primeiros versos do poema ele

faz referência à decisão do pai: fugir da cidade infectada pela peste e refugiar-se na Quinta.

Ele, dum lado, via os filhos achacados,

Um lívido flagelo e uma moléstia horrenda!

E via, do outro lado, eiras, lezírias, prados

E um salutar refúgio e um lucro na vivenda!

(CV. Nós, p. 164)

As frutas: maçãs, laranjas, uvas, os cereais, a vegetação farta e abundante, além da

pecuária, são aspectos “benignos” e “rurais” evocados por Cesário para revelar que o

campo dispunha de recursos e condições de sobrevivência, além de possuir as condições de

fornecer às cidades os prazeres alimentares, produto das colheitas saudáveis. Observe-se,

contudo, que há um elogio à produção, ao campo produtivo. Cesário mostra com clareza

que seu campo não constitui uma Arcádia perdida e que o suor e a labuta são requisitos

para cultivá-lo.

Contudo, nós não temos na fazenda

Nem uma planta só de mero ornato!

Cada pé mostra-se útil, é sensato,

Por mais finos aromas que rescenda!

(CV. Nós, p. 167)

Page 113: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

112

Ao longo de treze quadras, o poeta expõe com orgulho o fato de sua família, que

detém a posse da terra, formar com os trabalhadores uma coletividade voltada à extração

dos bens e dos dons ofertados pela natureza, a partir do labor.

As imagens naturais tornam-se iluminadas por uma recordação que recupera o

apogeu dos sentidos. Ampliados até uma dimensão espetacular, esses sentidos recordados

provocam no poeta a sensação de estar “pintando quadros por letras, por sinais”. Logo os

casos aparentemente diminutos são por ele revistos com uma clareza espetacular. As vozes

dos campônios e o ruído das ferramentas dos trabalhadores ganham uma sonoridade que o

silêncio do campo intensifica. Os cheiros resinosos do pinho, do alimento cozido no lar, do

estrume que fecunda e adoça as uvas são sentidos tão fortemente como outrora. O

detalhamento da feitura do caixote das uvas de exportação ganha todo o realismo do seu

processo manufatural.

No entanto, o entusiasmo é arrefecido, quando vem à lembrança a morte da irmã.

Concentra-se, nessa figura, a noção de uma beleza não utilitária, pólo de idealidade, que,

por seus traços de fragilidade, destina-se a rapidamente perecer:

E foi num ano pródigo, excelente

Cuja amargura nada sei que adoce,

Que nós perdemos essa flor precoce,

Que cresceu e morreu rapidamente!

Ai daqueles que nascem neste caos,

E sendo fracos, sejam generosos!

As doenças assaltam os bondosos

E – custa a crer – deixam viver os maus!

(CV. Nós, p. 167)

Page 114: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

113

Vulnerável à seleção natural e às leis que determinam que o campo ofereça

alimentos e não “ornatos”, a beleza, representada pela irmã, fenece. A antinomia

cidade/campo começa a ser transcendida. Afinal, a família fugira da cidade doente, onde se

evidenciara a negatividade do progresso. O grupo buscara filiação ao campo, natureza forte

que, indiferente à tragédia humana das cidades, alimentava-se de seus dejetos. Essa

indiferença das leis naturais atinge diretamente a irmã e indiretamente a família, que sofre a

sua perda. Rompe-se o pacto. Adiando o enfrentamento dessa ruptura, a memória recua no

tempo. Nas quadras seguintes, o poeta regride ao período em que a irmã participava dos

trabalhos no campo, embora ela própria não pudesse, por sua fragilidade, estar incorporada

ao “Nós” e não tivesse o vigor das camponesas:

E antes tu, ser lindíssimo, nas faces

Tivesse “pano” como as camponesas;

E sem brancuras, sem delicadezas,

Vigorosa e plebéia, inda durasses!

(CV. Nós, p. 170)

Em “Nós”, a antinomia entre “cidade e campo” fornece ponto de partida para

modulações de rara complexidade. Se em princípio o campo é refúgio, alternativa de vida

salutar, ante a cidade doente, com o decorrer do tempo, há, no campo, uma lei injusta que

ceifa a vida dos mais frágeis. No entanto, a oposição não apenas se mantém, como é nesse

poema que ela amplifica-se. A partir dessa antinomia, o poema traz com nitidez o confronto

entre a sociedade industrial e a sociedade agrícola, que, por sua vez, ecoa a relação tensa

entre Portugal e a Inglaterra:

Page 115: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

114

Ó cidades fabris, industriais,

De nevoeiros, poeiradas de hulha,

Que pensais do país que vos atulha

Com a fruta que sai de seus quintais?

[...]

Mas isso tudo é fácil, é maquinal

Sem vida, como um círculo ou um quadrado

Com essa perfeição do fabricado

Sem o ritmo do vivo do real!

Ah! que de glória, que de colorido

Quando por meu mando e meu conselho,

Cá se empapelam as “maçãs de espelho”

Que Herbert Spencer talvez tenha comido

(CV. Nós, p. 170-172)

O realce que é dado a tudo que é produzido na Quinta Linda-a-Pastora ganha uma

maior dimensão visto que, assim fazendo, o poeta enaltece o produto nacional deixando

sempre claro que os países do Norte dependiam dos produtos agrícolas das regiões do Sul.

Surge daí a disputa entre o espaço onde se encontra o progresso e esse espaço fértil.

A Europa do Norte, que sustenta o mundo artificial, contrasta com o mundo natural do Sul

representado pelo mundo agrário, cheio de saúde e vigor. Amplificam-se os pólos cidade e

campo com a contraposição entre países industriais e país agrário representado por

Portugal. As “frutas ácidas”, tardias da Inglaterra perdem em sabor para as “ricas primeurs

da nossa terra”; as “cidades fabris, industriais” são contrapostos aos “quintais” portugueses.

Esse antagonismo responde pela fantasia da cidade “infernal” que surge no poema. Portugal

Page 116: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

115

agrário resiste às imposições da Londres industrializada e sombria. A produção agrícola

portuguesa é colocada como superior a tudo o que é produzido fora.

E não eram caixitas bem dispostas

Como as passas de Málaga e Alicante;

Com sua forma estável, ignorante,

Estas pesavam, brutalmente, às costas!

(CV. Nós, p. 175)

Os versos que mais significativamente reforçam a visão do campo produtivo

refletem a tradição familiar de manter a Quinta ordenada e cultivada, distinguindo-se aí,

com clareza, o espaço rural produtor, do campo bucólico pastoril.

Ainda que os retiros impostos à família no campo tenham-se caracterizado como

repouso salutar, para recuperação de alguns de seus membros, como foi para Júlia, para

Joaquim Tomás e posteriormente para o próprio poeta, ele, em lugar de insistir na descrição

desse abrigo familiar, evocará longamente os trabalhadores, suas atividades, seus

instrumentos, unindo sua força à deles, de modo a reproduzir, nos versos, o contexto de

vitalidade que atribuiu ao ambiente do campo.

Se, na transmutação dos vegetais que ocorre no poema “Num Bairro Moderno,”

Cesário aponta o caminho da recuperação de “forças, a alegria, a plenitude”, em “Nós”, ele

busca recuperar, no registro mnemônico, um entusiasmo que no tempo presente já se

transformara em revolta e em desdém. Assim, o movimento narrativo não é mais

deambulatório, não existe a caminhada pelas ruas. O poeta reflete e quem flutua é a sua

memória, inquieta na recuperação dos fatos e na reflexão que tece sobre eles:

Page 117: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

116

A impressão doutros tempos, sempre viva,

Dá estremeções no meu passado morto,

E inda viajo, muita vez, absorto,

Pelas várzeas da minha retentiva.

(CV. Nós, p. 173)

Os versos, ora focalizam o laranjal, ora as vinhas, os arredores da quinta, numa

“lenta e deleitosa ocupação psicológica do ambiente”90 que, segundo Helder Macedo, é

desenvolvida com uma satisfação prazerosa. As associações de certas imagens dessa

paisagem campestre sugerem, vez por outra, a parte de um corpo, fazendo lembrar, mais

uma vez, as transfigurações dos vegetais do poema “Num Bairro Moderno”.

Montanhas inda mais longinquamente,

Com restevas, com ombros, com boças,

Lembram cabeças estupendas, grossas,

De cabelo grisalho, muito rente.

(CV. Nós, p. 166)

Essa vontade de personificar o campo, a natureza, acentua cada vez mais o seu

desejo de se relacionar com ela, que já se fizera presente nas suas representações femininas

juvenis, como vemos em “Provincianas” – “Que mocetona e que jovem/ A terra!” (CV. p.

185) –, ou maduras como as montanhas de cabelos grisalhos do poema “Nós”.

O seu trabalho de acompanhamento de todo o processo do plantio à colheita, a

posterior feitura dos caixotes e empacotamento das uvas para exportação é preciosamente

descrito em detalhes e o poeta expressa a sua intenção quando diz: “Pinto quadros por

letras, por sinais”. Recordando os sons das ferramentas, as vozes dos trabalhadores ou

Page 118: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

117

ressuscitando fisionomias que a “distância fatal” o fez perder, ele apura os sentidos no

desejo de não deixar escapar nenhuma imagem, procurando resgatar assim o prazer que

sentia em participar do trabalho rural.

Na sua segunda secção, recapitula os anos de contato com o campo e exalta a

“vitalidade equatorial” da lavoura. Em certo momento, porém, os versos abrem mão da

postura entusiasmada pelo cenário rural e expressam, já num tom entristecido, as

dificuldades e as privações a que os campônios se submetem:

A nós, tudo nos rouba e nos dizima:

O rapazio, o imposto, as pardaladas,

As osgas peçonhentas, achatadas,

E as abelhas que engordam nas vindimas.

(CV. p. 178)

Inicia-se, a partir de então, a contaminação do campo pela atmosfera sombria que

emana do Ocidente; a visão de declínio atingirá também a paisagem campesina, a despeito

da sua potencialidade vital. Todavia, os fatores negativos vêm principalmente das cheias,

das secas, das pragas que, vez por outra, assolavam as lavouras.

Este quadro de devastações naturais é minimizado, diante da superior gravidade que

a morte de Júlia representa. À vista do “cruel destino humano” que ganha proporções de

dor e desolação, esses acidentes naturais tornam-se superáveis.

As turvas cheias de Novembro, em vez

Do nateiro subtil que fertiliza,

Fossem a inundação que tudo pisa,

90 MACEDO, Helder, op. cit., p. 192.

Page 119: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

118

No rebanho afogassem muita rês!

Ah! Nesse caso pouco se perdera,

Pois isso tudo era um pequeno dano,

À vista do cruel destino humano

Que os dedos te fazia como cera!

(CV. Nós, p. 180-181)

Cesário busca na natureza imagens que lhe permitam discursar sobre a morte da

irmã, ele recorre à simbologia da árvore, “seiva genealógica que se gasta” ou da “flor

cortada”. Nessa perspectiva, vai afirmando que a morte da irmã revela um enfraquecimento

geral do mundo humano:

E que se fazer se a geração decai!

Se a seiva genealógica se casta!

Tudo empobrece! Extingue-se uma casta!

Morre o filho primeiro que o pai!

[...]

Mas seja como for tudo se sente,

Da tua ausência! Ah! Como o ar nos falta,

Ó flor cortada, susceptível, alta,

Que assim secaste prematuramente!

(CV. Nós, p. 182)

Diferente da terra que se regenera após as catástrofes, a humanidade sucumbe a um

fim sem remédio. Diante dessa constatação, Cesário lastima o abalo que sua época impôs às

crenças:

Page 120: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

119

Nós ignoramos, sem religião,

Ao rasgarmos caminho, a fé perdida,

Se te vemos ao fim desta avenida,

Ou essa horrível aniquilação!...

(CV. Nós, p. 183)

As marcas deixadas no espírito do poeta produzem um efeito de revolta e injustiça –

“As doenças assaltam os bondosos/ E – custa a crer – deixa viver os maus!” (CV. p. 166) –

que se volta contra a seleção dos fortes pela natureza: A irmã, fraca e generosa, não podia

sobreviver. A morte da irmã evidencia que o pacto da família com a paisagem natural e

com os camponeses fora um engano. O sujeito coletivo “Nós” integra, de fato, uma

humanidade doente, frágil e destinada a perecer. Indiferente a uma humanidade que, em

suas estruturas sociais sacrificara a força e erguera as cidades como presídios para os

elementos, a natureza exerce as suas leis.

O poema “Nós” relata uma experiência no campo, experiência que configura um

modo de vida alternativo à cidade. No entanto, essa alternativa não consegue impedir o

movimento de queda na melancolia e de regresso à cidade, onde a tragédia se agrava. Em

sua derradeira secção, o poema conta o retorno à “capital maldita” e a morte do irmão:

Tínhamos voltado à capital maldita,

Eu vinha de polir isto tranqüilamente,

Quando nos sucedeu uma cruel desdita,

Pois um de nós caiu, de súbito, doente.

[...]

Pobre rapaz robusto e cheio de futuro!

Não sei dum infortúnio imenso como o seu!

Page 121: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

120

Viu o seu fim chegar como um medonho muro,

E, sem querer, aflito e atônito, morreu!

(CV. Nós, p. 183-184)

Os versos finais são escritos em tom de revolta. O poeta rebela-se contra a seleção

da natureza, que sacrifica os fracos, indiferente às suas qualidades morais e assim ela

parece ceifar também “Nós”.

A despeito dessa constatação, Cesário não reitera em “Nós” a saída pela via estética,

de alguma maneira esboçada em “Num Bairro Moderno”. Pelo contrário, para ele, a

literatura adquire sentido apenas a partir de uma história pautada por valores justos. Assim,

diante da injustiça natural e da decadência histórica, a literatura tem abalada a sua razão de

ser. Paradoxalmente, o momentâneo desdém pela atividade literária é registrado como

produção poética; observe-se:

E agora, de tal modo a minha vida é dura,

Tenho momentos maus, tão tristes, tão perversos,

Que sinto só desdém pela literatura,

E até desprezo e esqueço os meus amados versos.

(CV. Nós, p. 184)

São vários os aspectos que configuram a negatividade do texto: eivada de

utilitarismo, a época não permite a existência do “ornato”, da beleza não utilitária e pura. A

natureza, por sua vez, é injusta, pois seleciona o mais forte, sacrificando o mais fraco, ainda

que ele seja bom. E quanto à sociedade, ela promove um confinamento da vitalidade: o

povo saudável sofre os cercos da miséria e têm poder os ricos que são fisicamente mais

Page 122: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

121

fracos e por isso sucumbem. Entre esses últimos, o poeta vê-se, com os filtros da ironia e do

desgosto, destinado a sucumbir.

Page 123: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

122

4 AS FIGURAS

Retomo aqui o eixo central da minha visão de Cesário. O poeta português reagiu à

Modernidade que a ele chegava sob o signo de uma instabilidade profunda e feita de

mudanças aceleradas e prenunciadoras da morte. Transformada e, simultaneamente,

transtornada, a cidade de Lisboa concretizou, ante os sentidos do poeta, essa conturbada

dinâmica histórica e se constituiu, para ele, num emblema fascinante e ameaçador. A

mulher que andava nas ruas de Lisboa personificou essa Modernidade e, portanto, o poeta a

representou, motivado por sentimentos ambíguos que envolvem simultaneamente atração e

recusa.

Ao descrever a cidade de Lisboa, Cesário Verde grafou em seus versos mais do que

a visão de uma cidade européia em desenvolvimento no séc. XIX. Ele evidenciou a relação

de impacto que os elementos da cidade traziam para uma sensibilidade que, diante daqueles

traços urbanos, posicionava-se com espanto; um espanto que é próprio aos iniciantes e aos

forasteiros. Tal como um viajante em terras estranhas, a sensibilidade do poeta, ainda

marcada por um mundo pré-moderno, procurou descobrir que sentidos se escondiam e que

sentidos ainda se gestavam naquela Lisboa vibrante, cujas formas fascinantes pareciam-lhe

enganadoras.

Os aspectos físicos observados por ele – ou as situações eventuais apresentadas

durante o percurso desse caminhante – vão compondo quadros que prometem trazer, como

último porto, “um labirinto infernal”, “uma paisagem cruel”; ainda que, por vezes,

trouxesse também a revelação de possibilidades positivas em latência. O caminhante é, via

de regra, impulsionado pela expectativa de que, em certo momento, ao dobrar de uma

Page 124: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

123

esquina qualquer de Lisboa, possa surgir, inesperadamente, uma positiva e vital

transformação.

No entanto, a despeito dessa expectativa, a negatividade revelada cumulativamente

nos elementos múltiplos compõe um espaço onde toda filia é impossível, uma vez que as

buscas por afeto e por expansão vital frustram-se, a cada procura. Em cada um dos poemas,

como em cada um dos espaços – praças, teatros, ruas – reforça-se a visão desse lugar

infernal, que é o lugar da inadequação do eu e da sua carência afetiva.

A cidade de Lisboa crescia e seus habitantes passavam pouco a pouco a ocupar os

espaços públicos transformando as ruas num constante rebuliço de trabalhadores e

transeuntes. Esses aspectos, em alguma medida, evocavam os grandes centros europeus. As

ruas e as calçadas tornavam-se mais largas, as lojas expunham constantemente as novidades

parisienses nas vitrines, os prédios de andares e casas residenciais alteravam as suas

fachadas, passando a utilizar, na arquitetura, as novidades que a indústria fornecia. Em

Cesário, essas alterações causam estranhamento. Qualquer intimidade é abalada, de modo

que o caminhante transforma-se em observador surpreso e atento, que não deixa nenhum

elemento novo sem registro.

Cedo, o poeta começa a perceber que algumas dessas mudanças seduziram muitos

moradores, fazendo-os abandonar hábitos antigos e adquirir novos costumes. No que diz

respeito às mulheres, percebe-se a sua gradativa inserção, tanto nas atividades comerciais,

quanto na vida social lisboeta; as antigas reclusas passam a buscar as novidades

estrangeiras expostas nas lojas, principalmente a moda de Paris, que ditava o vestuário da

época. Essas mudanças de comportamento desnortearam Cesário, que as tomou como signo

de uma instabilidade doentia, quando não letal.

Page 125: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

124

A persona poética que mergulha mais intimamente no tecido urbano executa um

movimento de demanda malograda. Ela movimenta-se na Lisboa em transformação, à

procura de condições para obter com o mundo uma filia. Em primeiro lugar, há o poeta que

busca formas adequadas à expressão das diversas contradições que o rodeiam. A ele segue-

se o ocidental que busca solução para o declínio vivido por toda uma cultura. O homem

português também procura saída para o país agrário que sucumbia ao domínio da Europa

industrializada.

Do centro dessas demandas mais gerais, destacam-se carências pessoais, sexuais e

afetivas: o homem procura mulher. Essas buscas angustiadas distinguem a persona poética

cesárica de tantas outras que, na mesma época, praticavam uma pura flanerie. Em muitos

poemas, esses movimentos de demanda resultam numa asfixia afetiva provocada pela

impossibilidade de entendimento com a mulher.

Se Lisboa lançava ao olhar observador do poeta um grande desafio, a mulher é a

principal figura dessa paisagem desafiante. À associação tradicional entre a Cidade e a

mulher, de origem bíblica, Cesário agrega o fato de que, na Lisboa transtornada, a mulher,

antes completamente reclusa, agora andava nas ruas. Aos olhos temerosos do poeta, essa

desenvoltura parece ameaçadora e ele a associa definitivamente a uma nova configuração

da história portuguesa: a Lisboa tocada pela modernidade. Nesse sentido, a sedução

feminina, situada pela cultura como poder destruidor, é evocada na cena de Cesário que

expõe os seus temores.

Maria José de Jesus observa que, no Portugal do século XIX,

[...] a mulher mantinha ainda uma posição muito apagada e muito dependente dos mecanismos de coação de uma sociedade essencialmente provinciana e conservadora. No entanto, com a ascensão social de

Page 126: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

125

algumas camadas de Lisboa e do Porto, e com certo florescimento da vida noturna nestas cidades, a mulher burguesa passa a dispor de mais momentos de lazer e de maiores possibilidades de fuga ao ambiente doméstico e ao controlo do homem.91

Essas novidades provocaram o susto que o homem Cesário Verde expõe

nitidamente em seus versos. Pelo mesmo motivo, seus contemporâneos romancistas

privilegiaram o tema do adultério, responsabilizando o suposto liberalismo da época, as

bases fracas do casamento e as influências de um meio social hipócrita e corrupto. Eça de

Queiroz oferece um exemplo em O Primo Basílio.

Cesário desejou conhecer as figuras que povoavam as ruas de Lisboa;

destacadamente, ele desejou conhecer a mulher que transitava pelas avenidas. Como todos,

esse conhecimento envolve uma posse. Atormentado pelo medo de possuir – que para ele

tem nitidamente uma conotação sexual e amorosa – Cesário Verde parcialmente afastou-se

desse ambiente conturbado. Seu recurso foi a divisão, visível nos poemas, entre uma

parcela de si que se integra na cidade, vive e sofre as imposições do seu modus vivendi, e

uma outra parcela – aquela que arquiteta o poema. Isso também determina a narratividade

específica que se observa em seus versos, quando a persona do narrador distingue-se da

mente que a projeta.

Para Cesário, a cidade grande é um labirinto, uma babel corruptora, cujos

habitantes já se deixaram corromper e cuja geografia é percorrida com familiaridade por

muitos, principalmente pela mulher moderna. Espantado, o observador das ruas demonstra

seu interesse por pontos de fuga – lugares ermos ou jardins; depois, ele eventualmente

chega ao cais, ou a outra fronteira. Em sua visão, as praças e os jardins constituem retalhos

91 JESUS, Maria José de. Alguns estereótipos sobre a mulher na Segunda metade do século XIX. Veredas. Revista da Associação Internacional de Lusitanistas. v. 1. Coimbra, p. 158, 1998. Direção Helder Macedo.

Page 127: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

126

de uma natureza debilitada e aprisionada, mas ainda vital; e por isso ele espera aí encontrar

resquícios que atenuem as suas carências.

Por vezes, os elementos de uma paisagem são claros, fáceis de decifrar, evidentes,

ora são obscuros, de difícil decifração. A geografia humana de Lisboa apresentou, para

Cesário Verde, profundas dificuldades que ele projetou principalmente na mulher; por isso,

a representação da mulher em seus versos constitui o centro desta etapa da minha reflexão.

Page 128: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

127

4.1 A DAMA PÉ-DE-CABRA

Figura emblemática da cidade que lhe serve de abrigo, a mulher urbana surge como

uma companhia cruel, durante os passeios que o poeta realiza. Sensuais, alheias às

assimetrias sociais, essas belas mulheres avançam nos seus caminhos, sem partilhar os

estranhamentos e os sonhos da persona que assimila e comenta as dores do mundo. No que

se refere ao desprezo pelas dores da cidade, as figuras femininas descritas em muitos dos

poemas seguem numa indiferença que lembra o comportamento tipificado por Charles

Baudelaire no poema em prosa “Os olhos dos pobres”92. O sorriso solto dessas damas atesta

futilidade inaceitável para um intelectual comprometido com a construção de uma cidade

socialmente harmoniosa.

Com efeito, em “Noitada,” –, a mulher revela atitude jocosa: “Sei que em tudo

atentavas, tudo vias! [...] Tu sorrias de tudo [...]” (CV. p. 127). Em outros momentos, o

caminhante analisa a agilidade e desenvoltura com que a dama trafega pelas ruas, numa

ação demasiada audaz para os olhos masculinos que a observam. O movimento veloz e

desembaraçado torna-se aspecto importante, no que diz respeito à caracterização das

habitantes da cidade na obra do poeta.

De acordo com os diversos ritmos de caminhada, o observador vai delineando

perfis, contextualizando mulheres que, desenvoltas na malha urbana, terminam por revelar

traços da própria cidade.

92 BAUDELAIRE, Charles. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. p. 308.

Page 129: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

128

Segundo Cabral Martins93, evidenciam-se três tipos fundamentais de mulher na obra

de Cesário Verde: A mulher fria, A mulher robusta e A mulher sublime, compondo cada

uma delas séries específicas.

93 MARTINS, Cabral. Cesário Verde ou a transformação do mundo. Lisboa: Editorial Comunicação, 1988. p. 33.

Page 130: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

129

Embora definida por traços comuns, como beleza, independência e sensualidade, a

série da Mulher Fria, tal como proposta por Cabral Martins, apresenta um conjunto de

variantes: a Atriz, a Britânica, a Messalina. De fato, é preciso observar que, muitas vezes,

Cesário prioriza traços específicos a cada uma das variantes, de modo que se configuram

com nitidez matizes diferenciados, compondo o quadro da mulher que domina as ruas

centrais da cidade. Ao diversificar o padrão da mulher da cidade lisboeta, o poeta

demonstrou a sua rica percepção, aproximando-se do comportamento atento e sagaz do

fisiologista, conhecido artista citadino do séc. XIX, que descrevia o caráter dos que

desfilavam nas ruas, observando os seus traços fisionômicos.

Deste modo, o poeta percebe o ritmo de caminhada da mulher: se é mais ou menos

rápido, audaz, familiar, mais ou menos descontraído através de espaços que, por sua vez,

também são reveladores de um status ou de uma classe social. A relação da mulher com os

demais transeuntes demonstra por vezes envolvimento com a rotina da cidade; em outros

momentos, isso revela a distração daquelas que não têm qualquer compromisso social.

Principalmente os pés das mulheres com seus diversos tamanhos e movimentos

indicam a natureza de suas donas, na medida em que seus diferentes ritmos revelam os

diferentes graus de afinidade com o ambiente que eles percorrem.

O aspecto físico das mulheres também fornece informações preciosas da classe

social a que pertencem, visto que os seus trajes, descritos às vezes com detalhes de cores e

formas, constituem elementos importantes nos quadros poéticos.

O espaço central da cidade é rico, cheio de atrativos a observar, mas a sua descrição

exclusiva seria, aos olhos do poeta, um engodo. Em suma, principalmente o comportamento

das damas que dominam as ruas desse centro demonstra completa adaptação à cidade

transformada e total identificação com o ambiente conturbado e opressor em que ela vive.

Page 131: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

130

Minha diretriz de leitura leva a uma relativização da classificação sugerida por

Cabral Martins. Assim, aglomero vários de seus tipos numa só figura que denomino “Dama

pé-de-cabra”. Penso primordialmente nos versos do poema “Cristalizações”: “O demonico

arrisca-se, atravessa/ Covas entulhos, lamaçais, depressa,/ Com seus pezinhos rápidos de

cabra!”. (CV. p. 122). Nessa nomenclatura, ressoa o conjunto de significações que o olhar e

a sensibilidade do observador já imprimem aos elementos que atingem seus canais

perceptivos. Tais estímulos emanam das mulheres que povoam o centro nevrálgico da

cidade, local de circulação de burgueses, políticos, comerciantes e dos mais variados tipos

atuantes no centro de Lisboa. Podemos circunscrever o desfile da “dama pé-de-cabra” ao

espaço citadino mais central, comercial, burguês, espaço insidioso, portador de

ambigüidades.

A imagem da “dama pé-de-cabra” constitui uma recorrência na literatura

portuguesa. Ela já se faz presente num episódio medieval de autor desconhecido compilado

na Portucalia Monumenta Historica94. Adotando essa denominação, eu enfatizo a

aproximação de Cesário com uma caracterização específica e bem delineada, ao longo de

uma tradição. Insisto que, com isso, reforço o meu método de leitura, lastreado na

convicção de que Cesário observa, na cidade, um tecido de elementos simbólicos,

carregados de sentidos construídos e sedimentados por uma cultura.

O texto medieval relata o casamento de D. Diego Lopes, nobre cavaleiro, que “[...]

estando um dia a espreitar uma caça, ouviu cantar, em cima de uma pedra, uma dama mui

formosa”95, sendo que essa dama possuía um pé forcado, como um pé-de-cabra. Apesar do

sinal aparente, D. Diego apaixona-se pela cantora e tem com ela dois filhos. Esse episódio é

94 A DAMA Pé-de-cabra. In: PORTUCALIA Monumenta Historica apud REMÉDIOS, Mendes dos. História da Literatura Portuguesa. Coimbra: Atlântida, 1930. p. 72.

Page 132: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

131

retomado por Alexandre Herculano, que trabalha com temas medievais, conforme o gosto

romântico.

Ao introduzir em Portugal o novo gênero do romance histórico, Alexandre

Herculano inicia a publicação de algumas narrativas n’O Panorama, de onde saíram

primeiramente alguns contos e novelas, dentre as quais a narrativa lendária da Dama Pé-de-

Cabra, depois compiladas no livro Lendas e Narrativas96. O sacrilégio – ou violação de

mandatos divinos – constitui motivo recorrente nos romances de Herculano. Algumas

mulheres são representadas por ele como encarnações de anjos ou diabos, posto que

dotadas de forças extraordinárias. D. Fernando, em “O Monge de Cister”, vende a alma a

um demônio em corpo de mulher. A lenda da dama pé-de-cabra inspirada nos Nobiliários

tem, como personagem central, o próprio diabo que supostamente se oculta sob a aparência

da mulher.

Cronologicamente distantes entre si, as mulheres que povoam o texto medieval, as

que aparecem no romance de Herculano, e as damas que transitam nos versos de Cesário

Verde têm em comum a beleza extraordinária das formas e um poder de enfeitiçar,

assinalado como malefício que se faz representar pelo pezinho de cabra. Na história

medieval, o significado malévolo inerente ao símbolo “pé-de-cabra” revela-se no momento

em que D. Diego faz o sinal da cruz. Diante do gesto cristão, a mulher desaparece, fugindo

para buscar refúgio na floresta.

O pé-de-cabra é a marca do diabo, aquele que alicia, que tem o poder de enganar,

entorpecer sua vítima a seu bel-prazer. Este sentido católico passou a interferir fortemente

na leitura do símbolo, por volta dos séculos XVI e XVII, quando a figura da feiticeira passa

95 Ibid., loc. cit. 96 HERCULANO, Alexandre. Lendas e Narrativas. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1971.

Page 133: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

132

a ser confrontada à imagem inversa da Virgem Maria. Mulher-mãe sem sexo, Maria passa a

sediar uma oposição à mulher sexuada que atrai e repugna os homens97, aquela que os

enlouquece com seu poder sedutor e que terá uma repercussão simbólica especial na obra

de Cesário Verde. Contudo, nos versos do poeta, esse elemento simbólico – pé-de-cabra –

reveste-se de

97 Cf. AS FEITICEIRAS. In: BRUNEL, P. Dicionário de Mitos Literários. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997. p. 349.

Page 134: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

133

novos componentes, quando lhe são acrescidas significações dadas pelo novo contexto.

Símbolo recorrente, a menção aos pés femininos surge em sete poemas sob formas

variadas – “altos pés”, “pés cansados”, “pés-de-cabra”, “seguir seus passos”, “caminhar”,

“pisar”, “marchar”. São pés que se projetam afoitamente, de modo que não se torna

possível acompanhar seu ritmo, que, no caso, implica familiaridade com as formas urbanas

e capacidade de ser desenvolta nas ruas. São exemplos os poemas: “Cristalizações”,

“Manhãs Brumosas”, “Num Álbum” e “Noitada”, nos quais o movimento de pés femininos

mostra domínio do ambiente por onde circulam. Em outros poemas, eles indicam sedução

amorosa. O carinho feito nos pés da mulher pelo amante, o toque, as carícias do homem

estão associados ao seu desejo de reter e de deter. Nos versos de “Flores Velhas”, o homem

julga esconder entre suas mãos os “pés suaves” de uma mulher, numa atitude receosa de

perdê-la. Trata-se de uma tentativa que ecoa o desejo que o homem sente de aprisionar em

suas mãos, de nelas conseguir conter os elementos que impelem a mulher a libertar-se, a

distanciar-se.

Nos versos do poeta Cesário, a velocidade dos pés femininos tem uma força

simbólica que evoca a dinâmica das cidades modernas, lembrando também o incessante

movimento de ir e vir dos trabalhadores, dos flâneurs, dândis e dos mais variados tipos

sociais que desfilam pelas ruas movimentadas. Assim, segurar os pés da dama é tentar detê-

la, mas é também tentar deter a dinâmica da urbe moderna. Em última instância, reter os

pés da mulher é tentar deter um movimento da história; e é tentar deter o tempo, cujo curso

incessante conduz aceleradamente à morte.

Em “Merina”, há um contraponto à desenvoltura: os “passinhos curtos” da mulher

indicam que sua aventura pela rua ainda é tímida. Por outro lado, vemos, em

“Cristalizações”, “pés afoitos” e “pés-de-cabra” a se lançarem com destreza por um espaço

Page 135: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

134

urbano que, aos olhos temerosos do observador, avançava com a mesma rapidez em busca

da meta longínqua do progresso.

Encontra-se, em “Noitada,” uma caracterização para os pés femininos que fortalece

a idéia de domínio da cidade pela mulher. Apesar de pequeninos, os cansados pés nos

versos desse poema demonstram-se impelidos a seguir adiante e, em conseqüência, a deixar

o homem em solidão:

Eu sinto ainda a flor da tua pele,

Tua luva, teu véu, o que tu és!

Não sei que tentação é que te impele

Os pequeninos e cansados pés.

[...]

E tu que não serás somente minha,

Às carícias leitosas do luar

Recolheste-te, pálida e sozinha,

À gaiola do teu terceiro andar

(CV. Noitada, p. 126)

No entanto, há, nessa mesma simbologia dos pés, um sentido diverso. De fato, são

tendências opostas que terminam por apresentar funcionamentos complementares na

composição imagética de Cesário. Ao mesmo tempo em que os pés da mulher devem ser

detidos, seguros numa carícia que os retém, o olhar do poeta goza a contemplação do

movimento, cujo ritmo acelerado constitui uma novidade que o deslumbra. Na verdade, a

persona poética emite um olhar que precisa acompanhar a rapidez dos pés femininos que

Page 136: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

135

circulam, dimensionando uma nova paisagem. Juntos, olhos e pés configuram uma

dinâmica ansiosa.

O olhar e os pés, um a captar imagens, outro a tomar posse do novo espaço, dupla

apreensão do homem moderno, na ilusão de que os espaços tornar-se-ão familiares, um dia.

O que é válido para o amante ansioso por possuir a mulher é válido também para aquele

que busca entender a cidade: conhecer não significa dominar, tocar com as mãos não

significa reter.

Recorro agora ao poema “Cristalizações”, de 1879, que situa, com absoluta

precisão, a figura da “dama pé-de-cabra”.

4.1.1 A Atriz: Cristalizações

Anteriormente, comentei a atitude ambígua de Cesário em relação à modernidade e

a extensão desse ânimo que, direcionado à cidade e à mulher, oscila entre a atração e a

recusa. “Cristalizações” traz, no seu centro, essa dubiedade que, existindo no sujeito

observador, determina a feição dos objetos por ele apreendidos.

Primeiro, há uma dubiedade que emana dos elementos físicos; do sol de inverno que

tudo clareia e faz luzir, mas nada consegue aquecer:

Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiros,

Vibra uma imensa claridade crua.

De cócoras, em linha, os calceteiros.

Com lentidão, terrosos e grosseiros,

Calçam de lado a lado a longa rua.

Como as elevações secaram do relento,

Page 137: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

136

E o descoberto sol abafa e cria!

A frialdade exige o movimento;

E as poças de água, como em chão vidrento,

Reflectem a molhada casaria.

(CV. Cristalizações, p. 122)

A luz de dezembro deslumbra, mas, pouco a pouco, vai revelando-se enganosa e

promotora de ilusões: “E os charcos brilham tanto, que eu diria/ Ter ante mim lagoas de

brilhantes!” (CV. p. 123). Os sentidos do observador são tocados, super-excitados num

atordoamento que atenua a consciência. De fato, essa apreciação excitada pelas sensações

atinge, nesse poema, a apreensão da realidade social. Embora os fracos gelem no frio, ao

narrador, tudo parece “alegremente exato”.

E engelhem, muito embora, os fracos, os tolhidos,

Eu tudo encontro alegremente exacto.

Lavo, refresco, limpo os meus sentidos.

E tangem-me, excitados, sacudidos,

O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfato!

(CV. Cristalizações, p. 124)

A síntese desse equívoco perceptivo reside no observador que, estando na Lisboa

mercantil, julga estar num país do Norte europeu. Falando dessa persona que organiza os

quadros de “Cristalizações”, Helder Macedo a qualifica como “um típico burguês triunfante

da era industrial, um produto das idéias de Spencer e do liberalismo mercantil.”98

Certamente é assim, na medida mesma que, no poema, Cesário, ao construir a persona, dá

voz à sua parcela que mais fortemente se deixa arrastar pelo poder sedutor das formas

98 MACEDO, Helder, op. cit., p. 146.

Page 138: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

137

urbanas. Contudo, mesmo essa parcela fascinada é assombrada pela constatação da

exploração social e das dores dela decorrentes. Nesse sentido, se, no início do poema, como

quer Helder Macedo, “o ambiente é descrito de um ponto de vista puramente estético”99, ao

longo do seu desenvolvimento vão surgindo os antagonismos sociais e a bandeira da

revolta:

99 Ibib., p. 147.

Page 139: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

138

Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas!

Que vida tão custosa! Que diabo!

E os cavadores pousam as enxadas,

E cospem nas calosas mãos gretadas,

Para que não lhes escorregue o cabo.

Povo! No pano cru rasgado das camisas

Uma bandeira penso que transluz!

Com ela sofres, bebes, agonizas:

Listrões de vinho lançam-lhe divisas,

E os suspensórios troçam-lhe uma cruz!

(CV.Cristalizações, p. 124)

Há, em tudo, uma natureza dupla, vinda da aparência enganosa. Sob as sensações

prazerosas do observador, vicejam o seu desconforto social e a sua culpa, assim como, sob

a própria organização estética do poema – que é cristal – existem as dores humanas, o

inconformismo e a consciência social do poeta. Esse duplo princípio organiza todas as

imagens: sob a transparência cristalina da luz solar, há um intenso frio que provoca o

sofrimento dos oprimidos, assim como, sob a “alegre precisão” das formas modernas que se

expõem em Lisboa, há injustiça social e profundo antagonismo entre as classes.

É como figura central, e como personificação desse jogo enganoso entre aparência e

verdade, que a atriz surge no poema. Na sua configuração negativa ecoa uma visão

autopunitiva que atinge o poeta e a própria arte, destacadamente a arte teatral, vista

tradicionalmente como simulação, como disfarce e como engano.

Page 140: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

139

Ao registrar a passagem dessa mulher – emblema da cidade e do seu tempo – o

poeta desenvolve uma analogia, aproximando a atriz, das imagens que a cultura compôs

para a feiticeira e, em última instância, para o diabo:

Page 141: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

140

De escuro bruscamente, ao cimo da barroca,

Surge um perfil direito que se aguça;

E ar matinal de quem saiu da toca,

Uma figura fina desemboca,

Toda abafada num casaco à russa.

Donde ela vem! A actriz que tanto cumprimento

E a quem, à noite na platéia, atraio

Os olhos lisos como polimento!

Com seu rostinho estreito, friorento,

Caminha agora para o seu ensaio.

[...]

Mas fina de feições, o queixo hostil, distinto,

Furtiva a tiritar em suas peles,

Espanta-me a actrizita que hoje pinto,

Neste dezembro enérgico, sucinto

E nestes sítios suburbanos reles!

[...]

Porém desempenhando o seu papel na peça,

Sem que inda o público a passagem abra,

O demonico arrisca-se, atravessa.

Covas entulhos, lamaçais, depressa,

Com seus pezinhos rápidos de cabra!

(CV. Cristalizações, p. 124-125)

Segundo os biógrafos de Cesário, a atriz não é uma figura imaginária, mas sim

Tomásia Veloso, então atuando no Príncipe Real, teatro de Lisboa. Seja ela quem for, o seu

aparecimento brusco no poema, o seu deslocamento rápido pelas ruas constitui atributos

Page 142: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

141

que, acrescidos ao escuro das vestes, remetem à imagem da feiticeira, tal como ela projeta-

se da cultura. Vale a pena lembrar que a vassoura voadora, associada à figura fantástica da

bruxa, também trazia o signo da rapidez, da necessária aceleração do movimento. Além

disso, a vassoura também trazia uma dubiedade, porque disfarçava, sob a familiaridade

doméstica, o poder extraordinário de voar.

A atriz de que fala Cesário expõe-se à luz do dia e entra em confronto com a mulher

que o poeta vê nos palcos, à noite. À luz do sol, ela revela “seu queixo hostil,” sua pertença

aos “sítios suburbanos” e “reles”. No entanto, como sua essência é a simulação, mesmo

durante o dia ela “desempenha um papel” e anda desenvolta pelas ruas.

Outra aproximação – entre essa figura de mulher citadina e a imagem tradicional da

bruxa – é sugerida pelo uso dos advérbios de lugar selecionados por Cesário: “o cimo da

barroca”, “sítios suburbanos”, assim como, “saiu da toca.” Lembro que as covas e as

barrocas foram sempre locais onde viviam as poderosas sibilas. Referência constante nos

textos da Idade Média, as moradas daquelas mulheres cheias de poder e magia despertavam

o interesse dos curiosos em desvendar o oculto, apesar da Inquisição procurar condenar e

punir tal prática. Ainda que, na literatura portuguesa, existam variantes inúmeras dessa

figura – a feiticeira – todas com diversidade de hábitos, lembro a sábia sibila, conhecedora

da história do nascimento de Portugal, descrita pelo Licenciado no elo entre a farsa e a

alegoria do “Auto da Lusitânia”, de Gil Vicente100.

Nos versos de “Cristalizações” – “o demonico, arrisca-se atravessa covas entulhos,

lamaçais depressa com seus pezinhos rápidos de cabra.” – a denominação de demonico

100 O licenciado, narrando o tempo vivido pelo autor da obra em lugar secreto, em convívio com a sibila, nos esclarece a razão do seu profundo conhecimento sobre as origens de Portugal. Através dessa passagem podemos observar onde se funda o aprendizado do autor: “dizem que achou o diabo / em figura de donzela / e

Page 143: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

142

atravessando lugares cheios de obstáculos com seus pezinhos de cabra, mais precisamente,

forcados como os do diabo, fortalece a comparação com a figura do demônio aliciador,

ainda

ele namorou-se dela / porém ela era o diabo encantado”. VICENTE, Gil. Farsa chamada Auto da Lusitânia. In: ______. Obras de Gil Vicente. Porto: Lello e Irmãos, 1965. p. 422.

Page 144: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

143

que o uso do diminutivo demonico pretenda suavizar a referência àquela que circula por

entre os trabalhadores.

Fortalecendo a escolha cuidadosa, na descrição do episódio – além do brusco

aparecimento, do deslocamento rápido, do local de onde ela surge e, finalmente, da

semelhança em alguns aspectos com a figura do demônio – vejo ainda uma descrição do

cenário que o torna bastante próximo dos ambientes que habitualmente circundam essas

figuras diabólicas.

Aproximo mais uma vez o texto de Cesário ao de Gil Vicente. “Creio que é da

Pederneira/ Neto de um tambolireiro”101, diz Gil Vicente, quando procura apresentar,

através do Licenciado, o autor da alegoria que surge em “Auto da Lusitânia”, para

introduzir a figura da bruxa. Pederneira102, do latim vulgar petrinariu, pedra muito dura,

que produz faíscas quando ferida com um fragmento de aço, é também o termo utilizado

pelo poeta Cesário Verde nos versos: “E eles descalçam com os picaretes, Que ferem lume

sobre pederneiras”. (CV. p. 122). No caso último, as pederneiras serão pisadas

arriscadamente pela dama, assim como ela consegue caminhar sobre as covas, entulhos e

lamaçais “com seus pezinhos rápidos de cabra” (CV. p. 125).

Tal como ocorre em outras representações da mulher, em poemas como

“Deslumbramentos”, “Frígida”, e outros em que surgem damas pé-de-cabra, a atriz que

atravessa a rua ainda sem calçamento desloca-se depressa, com destino definido, mostrando

sua determinação, num dinamismo que surpreende as personas observadoras.

A mulher que se desloca para o centro da cidade assemelha-se também ao arquétipo

da mulher fatal que encanta com sua sensualidade, envolvendo seu admirador num jogo de

101 Ibid., loc. cit.

Page 145: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

144

vida e morte. No poema “Cristalizações” – aquele que estou tomando como centro do

comentário – o seu aparecimento súbito dá-se em meio a uma imensa claridade crua: “De

escuro, bruscamente, ao cimo da barroca, Surge um perfil direito que se aguça”. O cenário

assemelha-se ao ambiente criado para “Carmem”103, na obra de Prosper Mérimée, que

também surge no jogo claro/escuro, “na obscura claridade que vem das estrelas”104.

Surgida na tensão entre sombra e luz, disfarce e revelação, a imagem da mulher

nesses contextos entra em afinidade com o diabo, quando não se diz o próprio diabo. Fêmea

que se move sem cessar – numa agilidade que, aos olhos do poeta, lhe é própria e que

também evoca a rapidez de um animal – a dama pé-de-cabra constitui um signo que se

fortalece a cada nova aparição. No poema de Cesário, há sugestão do disfarce no uso do

termo “furtiva”, que obscurece a nitidez da figura, induzindo o leitor à lembrança dos

inúmeros disfarces do anjo decaído.

A esses atributos sedimentados numa tradição, somam-se marcas que são próprias à

época de Cesário. É claro que, em seus versos, a imagem da bruxa que saiu da cova

corresponde principalmente ao espanto do homem numa época em que a mulher projetava-

se para fora do espaço doméstico. Assim, a atriz anda abafada, ao caminhar para o seu

ensaio, o que nos sugere uma nova condição da mulher, integrada a um mundo de trabalho

e lutando para sobreviver na dinâmica sociocultural da cidade moderna.

A atriz Tomásia Veloso, por exemplo, nascera a 22 de abril de 1865 – ainda não

completara, portanto, catorze anos – mas, tendo estreado aos cinco anos, trabalhara muito

102 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 1291. 103 Cf. CARMEM. In: BRUNEL, P., op. cit., p. 147. 104 Ibid., loc. cit.

Page 146: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

145

no Porto, no Teatro da Trindade e no das Carmelitas, sendo por isso, já então, considerada

uma veterana.

Page 147: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

146

4.1.2 Outras damas “Pé-de-Cabra”

O caráter estranho da mulher que anda nas ruas é também aludido pela figura da

estrangeira. Em “Deslumbramento”, destaco o verso: “Milady é perigoso contemplá-la/

Quando passa aromática e normal.” (CV. p. 93)

Na imagem da britânica que assoma dos versos de Cesário, parece estar presente a

visão do domínio da nação inglesa sobre Portugal. Essa sujeição política está

provavelmente contemplada no poema através da superioridade que a mulher estrangeira

manifesta diante do seu admirador. Note-se que ela reivindica para si o isolamento insular

da Inglaterra e também o domínio sobre aqueles a quem, de longe, consegue fascinar:

“Grande dama fatal sempre sozinha” (CV. p. 93). A altivez da Milady confunde-se no

poema com o poder da Inglaterra. Nela, tudo “atrai como um tesouro”, e o desprezo dessa

dama é retribuído com combate e ameaça pelo orgulhoso admirador:

Mas cuidado, Milady, não se afoite,

Que hão – de acabar os bárbaros reais;

E os povos humilhados pela noite,

Para vingança aguçam os punhais.

(CV. Deslumbramentos, p. 93)

Essa submissão masculina, com os mesmos traços do sabor de vingança, é

encontrada nos versos de “Cinismos”105. Neles, o eu expõe todo seu desejo contido, suas

confissões amorosas que culminam com o sarcasmo.

105 VERDE, Cesário, op. cit., p. 64.

Page 148: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

147

Page 149: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

148

Hei-de abrir-lhe o meu íntimo sacrário

[...]

Hei-de mostrar, tão triste e tenebroso.

Os pegos abismais da minha alma

[...]

Que ela há-de chorar enternecida!

[...]

E eu hei-de soltar uma risada ...

(CV. Cinismos, p. 64)

Para a superioridade e o desprezo da dama, existem respostas distintas. Nem sempre

há uma revolta ameaçadora. Muitas vezes, registra-se outra atitude na evocação da figura

bíblica de Job106, tal como se dá com a persona poética de “Humilhações”. Na sua

simplicidade trágica, a persona expressa-se a partir desse exemplo de paciência. Outras

vezes, Job é evocado como exemplo de passividade. Quando evoca Job, nos versos de

“Humilhações”, Cesário caracteriza a persona poética desse poema como alguém que se

sujeita às provações impostas pela passagem de mulheres que ignoram a sua dor e a sua

solidão. O admirador encarna em si o temor pela proximidade da dama, a ponto de ficar

“batendo os queixos de terror” ou em “aceitar seus desdéns”. Observe-se a passagem em

que, explicitamente, ele se nomeia Job:

106 Job – Forma utilizada por Cesário nos seus versos.

Page 150: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

149

Page 151: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

150

Esta aborrece quem é pobre. Eu quase Job,

Aceito os seus desdéns, seus ódios idolatro-os;

E espero-a nos salões dos principais teatros,

Todas as noites ignorado e só.

(CV. Humilhações, p. 114)

No entanto, nem sempre a distância entre o homem que deseja e a mulher desejada

expressa a relação do humilde Portugal com a soberba Inglaterra. Existe também – e até

principalmente – a expressão das distâncias sociais inerentes à própria sociedade

portuguesa. Nesses casos, as diferenças tornam-se mais agudas, porque indicam a condição

desfavorecida do admirador humilde diante de uma amada poderosa: “Eu ocultava o fraque

usado nos botões” (CV. p. 114).

Tal como surge especificamente nos versos de Cesário, essa assimetria amorosa

contempla a insatisfação de um grupo desfavorecido que, a essa altura da história, aspira

ascender ao mundo dos luxuosos salões, dos espetáculos reservados a uma minoria de

burgueses abastados. É o que se pode ler na seguinte passagem: “E, muito embora tu,

burguês, me não entenda [...]/ Ó minha pobre bolsa, amortalhou-se a idéia/ De vê-la

aproximar, sentado na platéia” (CV. p. 114).

Toda atmosfera contribui para aumentar o distanciamento amoroso, que, no caso,

implica distância social. Se, em poemas como “Noitada”, essa distância é apenas física, “E

para te seguir entrei contigo” (CV. p. 127), em outros poemas, o abismo aprofunda-se,

aumentando a intensidade, na medida em que a persona observadora identifica-se com a

figura de Job, nesses versos representando emblema de carência.

É certo que Cesário não chega a atingir, em sua evocação do mito bíblico, o nível da

angústia marcante no soneto “O dia em que nasci”, quando Camões, parafraseando o livro

Page 152: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

151

de Job, e nele inserindo a temática do desconcerto do mundo, expressa o desajuste entre a

realidade histórica e as suas íntimas demandas. Todavia, também em Cesário, Job é

evocado como um emblema da miséria, no caso, uma miséria que oscila entre a revolta e a

passividade.

No contexto poético de Cesário Verde, a identificação com Job destaca a paciência

do homem que sofre e que acrescenta, à sua pobreza, os estigmas de marginalização que

foram se somando a essa imagem, a partir da segunda metade do século XIX. Nessa

referência emblemática do sofrimento humano, Cesário introduz uma série de elementos

sugestivos de sua própria época e de sua específica sociedade. A classe social é registrada

nas roupas – no colarinho amarrotado –, na postura curvada, chegando à marginalização

indicada pela loucura; vejam-se os versos de “Esplêndida”:

E eu vou acompanhando-a, corcovado,

No trottoir, como um doido, em convulsões,

Febril, de colarinho amarrotado,

Desejando o lugar dos seus truões,

Sinistro e mal trajado.

(CV. Esplêndida, p. 72)

A provação de Job é, todavia, melhor configurada como indigência afetiva; sua

prova dá-se na travessia de um deserto afetivo. Assim, sua submissão melhor se codifica

pela proximidade com o quadro de vassalagem amorosa, típico da cortesia medieval. A sua

adoração por aquela a quem ama e a sua subserviência forçam o olhar crítico a buscar a

figura do cortesão medieval surgida na corte meridional francesa de Provença e tornada

figura presente nos ambientes palacianos do Ocidente até o final do século XVI. De origem

Page 153: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

152

plebéia, o cortesão circulava pelos lares mais simplórios como no de Lediça ainda no “Auto

da Lusitânia”107 vale lembrar:

Senhora sou cortesão

E da linhagem d’Enéias,

E por vossa inclinação

Folgara de ser d’Abraão

O sangue de minhas veias...

Esse amante circula pelos paços das Cantigas de Amor, com intenções distintas.

Apesar de o flerte ser seu objeto de interesse, no ambiente palaciano, o cortesão se compraz

em sofrer pela dame-sans-merci por não poder ver correspondida a sua paixão. Essa

expressão, entre outros provençalismos, se tornou lugar comum nas cantigas lírico-

amorosas pela força da sua significação. Vejamos o exemplo de João de Lobeira:

Senhor genta,

mi(n), tormenta

vosso amor em guisa tal

que, tormenta

que eu senta

Outra non m’é bem nem mal

mas la vossa m’é mortal.[...]

(LOBEIRA, João de. Lais de Leonoreta, p. 103-104) 108

107 VICENTE, Gil, op. cit., p. 428.

Page 154: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

153

Em poemas como: “A Forca”109: “Já que adorar-me dizes que não podes, Imperatriz

serena, alva e discreta” (CV. p. 43) ou em “Caprichos”110, “Num castelo deserto e solitário”

(CV. p. 67), em que a dama se distancia do eu lírico por ser nobre, Cesário Verde recorre à

figura medieval e faz referência às formas da poesia medieva. “Ó doce castelã das

minhas

108 LOBEIRA, João. Lais de Leonoreta. In: CANCIONEIRO Colocci-Brancute, p. 103-104, apud REMÉDIOS, Mendes dos. op. cit. 109 VERDE, Cesário. A Forca, op. cit., p. 43. 110 Ibid., p. 67.

Page 155: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

154

trovas” (CV. p. 67). Ainda que o ambiente não seja palaciano, alguns dos seus poemas

conferem às damas títulos de nobreza. Elas são denominadas “Imperatriz”, “Rainha” ou

“Princesa”, acentuando-se a distância social. Num primeiro momento, a resignação do

amado dá-se diante do silêncio da amada, não havendo comunicação entre eles, pois nem

mesmo se conhecem, dada a vastidão do mundo urbano. Num segundo momento, são as

diferenças sociais que se acentuam, sugerindo uma subserviência do homem.

Volto a “Humilhações”, quando o admirador analisa as peças em cartaz nos salões

dos principais teatros como um pretexto que esconde a intenção de ver a mulher passar.

Mas ela não o observa, menos ainda ele será observado, quando ela desfila pela Rua do

Alecrim.

E daria, contente e voluntário,

A minha independência e o meu porvir,

Para ser, eu poeta solitário,

Para ser, ó princesa sem sorrir

Teu pobre trintanário”

(CV. Humilhações, p. 72)

Esta conduta motivou estudos sobre um suposto sadomasoquismo de Cesário Verde.

Entre tais estudos, destaca-se o artigo intitulado “Haverá um erotismo da humilhação em

Cesário Verde?”, de Pierret e Gerard Calender111. O objeto de interesse do artigo é, de fato,

o eu do poema, a persona que encontra delícias na humilhação erótica. Não se pode inferir

um sadomasoquismo do autor, porque as suas personas acompanham os passos das

mulheres, ainda que, nelas, só enxergue desprezo. Situando o problema no plano da

111 CALENDER, Pierret; CALENDER, Gerard. Haverá um erotismo da humilhação em Cesário Verde? Letras & Letras, Porto, n. 34, p. 7-8, 1990.

Page 156: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

155

representação poética, vejo, nas mulheres que surgem no poema, principalmente

personificações da própria paisagem onde circulam.

Quando associamos a cidade e a mulher, a imagem feminina adquire novos traços

ameaçadores. Esses traços são projetados pelo temor do homem que se defronta com uma

nova configuração da história. Nesse sentido, a sedução exercida pela mulher e vista

tradicionalmente como poder destruidor é evocada por Cesário; é assim que ele representa

temores que começavam a ser impostos pela história.

Em alguns poemas, Cesário Verde evoca a imagem da revoltada Lilith112, para

expressar seu susto diante da mulher urbana que transita entre os homens. Em larga medida,

seus versos trazem uma resposta àquilo que foi o início da inserção da mulher no mundo do

trabalho, inserção que teria curso na República Portuguesa e que, encontrando, nos anos da

ditadura salazarista, sérios obstáculos, sofreu considerável retrocesso.

O poema “Lúbrica”113 alude à etimologia das palavras “Lilith” (lasciva) e “Lulu”

(libertinagem) nos próprios versos. O amado reconhece os desejos ocultos de Marta e os

artifícios utilizados para seduzi-lo. Nessa reclamação do seu direito ao prazer, a mulher,

segundo a visão masculina de Cesário, perde a si própria, assim como perde aquele que

encontra. Note-se que Marta, no Evangelho, é a mulher que se volta para a ação, em

oposição a Maria, voltada para a contemplação e para a audição das palavras sagradas.

Torna-se, portanto, visível que a mulher que caminha nas ruas é, no ponto de vista do poeta,

associada àqueles que reclamam um lugar no espaço civil.

Quando fala da mulher que escreve, Cesário termina por aludir a uma frieza afetiva.

Falando, a partir da sua óptica masculina, Cesário apresenta uma mulher que se

112 Cf. LILITH. In: BRUNEL, P., op. cit., p. 583. 113 VERDE, Cesário. Lúbrica, op. cit., p. 47-48.

Page 157: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

156

desumanizou. Tal como vista pelo poeta, essa mulher usa seu poder sedutor para dominar

um homem que se sente frágil para escapar a essa força, passando a ser o instrumento de

satisfação dos seus desejos. Delirada por Cesário, a mulher que age, caminhando ou

escrevendo, torna-se fria e calculista, indiferente a qualquer sentimento.

Lanças-te no papel

As mais lascivas frases;

A carta era um painel

De cena de rapazes!

(CV. Lúbrica, p. 47)

No relato bíblico do Éden, homem e mulher receberam conceituações, que

marcaram toda a história do Ocidente. Dentro desse quadro, o homem irá ocupar um lugar

de superioridade em relação à sua companheira na aventura humana. À mulher, coube um

segundo lugar, além do estigma de inferioridade que lhe foi imposto como marca física e

psíquica. A direção que toma a cultura do Ocidente procurará não só marginalizar, mas

também inferiorizar as mulheres.

Dentro desse contexto da cultura dominante, a figura de Lilith representa um desvio.

Trata-se da mulher ativa que se recusa à submissão e reclama direito à ação. Lilith

abandona o paraíso. O mito de Lilith alerta os homens sobre o perigo que representa a

mulher ativa. Em última instância, ela é a mulher que age na direção de obter o seu prazer.

Contudo, Cesário é atraído pela beleza da Lilith citadina e se dispõe a visitá-la. Veja-se em

“Flores Venenosas”114 como é descrita essa mulher:

114 Ibid., p. 76-77.

Page 158: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

157

Ó vagas de cabelo esparsas longamente,

Que sois o vasto espelho onde eu me vou mirar,

E tendes o cristal dum lago refulgente

E a rude escuridão dum largo e negro mar.

(CV. Flores Venenosas, p. 76)

Page 159: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

158

Um outro aspecto recorrente e importante no perfil da dama pé-de-cabra surge na

constante evocação da Messalina, que traz em si características extremamente negativas.

Aos olhos assustados do poeta, a Messalina é marcada pela impureza, manchada pelo

pecado:

Ó áridas messalinas

Não entreis no santuário

[...]

Vós tendes almas impuras

Não me profaneis o templo

(CV. Ó áridas Messalinas, p. 45)

Maria Saraiva de Jesus analisa o estereótipo feminino do século XIX; a ensaísta

portuguesa faz a seguinte observação:

Os estudos de fisiologia empreendidos na época e a reformulação da teoria dos temperamentos de Galeno, juntamente com as idéias veiculadas pelo discurso filosófico de Comte, Michelet, Littré, Taine, Shopenhauer e outros, determinam o paradigma científico da mulher como uma “doente” por natureza, essencialmente caracterizada por um certo histerismo, que se pode apresentar em diversos graus, mas que assume sempre conotações de âmbito sexual, sugeridas pela origem etimológica do vocábulo, derivado do grego hystéra (útero).115

115 SARAIVA, Maria de Jesus. Alguns esteriótipos sobre a mulher na segunda metade do século XIX. Veredas. Revista da Associação Internacional de Lusitanistas, Porto, n. 1, p. 153-154, 1998.

Page 160: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

159

Existem alguns traços dessas representações nos versos de Cesário, eles surgem na

“libidinosa Marta” ou a mulher de “ombros desnudos” de “Impossível” ou ainda, a

“fantasiosa” mulher de “Proh Pudor!”116.

116 VERDE, Cesário. Proh Pudor, op. cit., p. 56.

Page 161: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

160

Os tipos descritos – a mulher feiticeira, dotada de mágicos poderes de sedução; a

mulher altiva, de superior majestade; a mulher ativa e a mulher pecadora – são variantes de

um tipo mais abrangente: a ameaçadora e atraente dama pé-de-cabra, que encontrou na

cidade espaço para a sua expansão histórica; a cidade é seu palco e seu abrigo. Tais

aspectos ajudam a entender a relação de Cesário Verde com a Lisboa que se modernizava e

que para ele se manifestava como espaço de um tempo existencial que, marchando em

ritmo acelerado, conduzia para um fim.

4.2 AS TRABALHADORAS

Para prosseguir com os perfis femininos representados por Cesário Verde, devo

lembrar algumas alterações ocorridas na sociedade européia e especialmente na portuguesa,

a partir do século XVIII. Essas alterações acompanharam a política econômica que a nova

fase industrial produziu a partir da Revolução Industrial. Nesse momento, evidenciam-se as

mudanças comportamentais do homem e especialmente da mulher.

Considerando as grandes transformações por que passou a Europa com as novidades

disseminadas após o desenvolvimento da indústria na Inglaterra – principalmente a partir da

segunda metade do século XIX, quando se verifica a rápida absorção do modelo industrial

pelo continente – é fácil compreender o novo papel que a mulher vai assumir na sociedade

moderna.

O uso contínuo da máquina aumentou a necessidade de mão-de-obra, levando as

fábricas a recorrerem ao trabalho feminino e infantil. A industrialização rapidamente

englobou os membros do grupo familiar, submetendo-os ao capital, o que vem trazer

mudanças de comportamentos na sociedade.

Page 162: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

161

A mulher revela-se capaz de desempenhar atividades em diferentes áreas sociais,

marcando significativamente sua presença nos centros urbanos e adquirindo uma condição

diferenciada, como nos revelam os historiadores e nos sugerem alguns dos mais

representativos escritores do século XIX.

Através de estratégias discursivas próprias, Cesário Verde comenta as repercussões

dessas mudanças, em Portugal. A mulher trabalhadora aparece em seus versos, sob diversos

tipos. Ainda que tenha estreitas conexões com a sombra ameaçadora de Lilith, cuja

significação já apresentei, essa mulher será admirada pelo poeta, que cantou seus dotes

físicos, seu poder construtivo, inerente à sua capacidade de resistir ao trabalho exigido por

um mundo injusto.

A par da sua capacidade sedutora, a Trabalhadora circula no mesmo espaço em que

circulam os homens, o que a situa no pólo oposto ao da mulher frágil, restrita ao ambiente

doméstico. Tal igualdade é posta à prova, ao longo do seu cotidiano, pela própria natureza

das atividades que ela desempenha. Efetivamente, Cesário dedica um espaço significativo,

na sua obra, às mulheres que fazem esforços físicos, trabalhando no comércio e na

indústria. Ao lado das atrizes, essas mulheres fortes circulam livremente pela cidade.

Refletindo sobre a representação da mulher na literatura portuguesa do século XIX,

Maria Saraiva de Jesus procura demonstrar que a perspectiva das escritoras portuguesas não

diferia muito da visão exposta pelos escritores. Nesse contexto tradicionalmente machista,

estereótipos construídos pela cultura foram absorvidos pelas mulheres. A Adelina de Luz

coada por ferros de Ana Plácido ou As mulheres queixosas de Guiomar Torresão são

atraídas por ambientes noturnos e pela temática do sacrifício e da morte. No seu trabalho, a

ensaísta cita ainda a escritora Maria Amália Vaz de Carvalho, mentora da mulher

portuguesa do seu tempo, produtora de crônicas e ensaios de caráter pedagógico, mas que

Page 163: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

162

deixa ainda transparecer, nas suas idéias, ecos de uma visão que situa a mulher na condição

de um ser constitucionalmente doente, na qual o casamento funcionaria como uma terapia

de ordem fisiológica e sexual, visão próxima à representada na literatura da época.

Sem deixar de confirmar muitos desses estereótipos, Cesário Verde distancia-se dos

seus contemporâneos, num aspecto determinado. Apesar de aparecerem em romances

realistas, não vemos, com freqüência, as trabalhadoras – principalmente as trabalhadoras

das classes mais baixas, primeiras a ganharem a rua, por força da necessidade de

sobrevivência familiar – desempenharem papéis significativos; pelo contrário, elas são

convocadas para os papéis mais sórdidos da trama romanesca. Conforme Cid Seixas, “foi

preciso esperar o advento do Neo-Realismo para que o romance voltasse a construir a

humanidade sofrida e digna dos trabalhadores braçais”.117 Mesmo os realistas,

extremamente inflamados pelo socialismo de Proudhon, ligam seus heróis às famílias mais

bem situadas, reservando aos personagens populares os papéis mais desprestigiados.

A rebeldia à estrutura canônica estabelecida, além dos rígidos modelos sociais de

educação, não permitia o estabelecimento de um padrão de personagem que revelasse os

traços heróicos de uma humanidade sofrida e digna existente nos trabalhadores braçais,

muito menos de mulheres que rompessem as normas da tradição familiar.

Nesse aspecto, identifico a singularidade trazida por Cesário Verde, cujos versos

destacam a força, a vitalidade e o sofrimento dos trabalhadores e das trabalhadoras braçais.

A força física da mulher é comentada por Cesário que a localiza nas floristas, nas

costureiras, nas verdureiras, nas varinas e em outras damas que atuam num movimento

117 FRAGA, Cid Seixas. Camilo: desatino romântico e consciência crítica. Revista Estudos. Salvador, n. 15, 1992.

Page 164: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

163

contínuo. E é essa continuidade que assusta e atrai o poeta que às trabalhadoras atribui um

poder inesperado.

Essa força parece, aos olhos do poeta, fomentar transformações e mudanças. As

trabalhadoras trazem consigo a semente da revolução. Por um lado, tais figuras femininas

são, na óptica do poeta, vítimas de males presentes, oriundos da cidade contaminada e

apodrecida pela injustiça. Por outro, suas presenças extravasam os limites do mundo atual,

pois elas demonstram-se naturalmente credenciadas a vencer, com sua resistência, os

obstáculos.

A movimentação das trabalhadoras não se limita ao centro da cidade. Elas circulam

com a mesma desenvoltura por diversos ambientes, ocupando assim todos os espaços

citadinos; do mais central ao mais afastado.

Vazam-se os arsenais e as oficinas;

Reluz viscoso o rio, apressam-se as obreiras;

E num cardume negras, hercúleas, galhofeiras,

Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Vêm sacudindo as ancas opulentas!

Seus troncos varonis recordam-me pilastras;

E algumas, à cabeça, embalam nas canastras

Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

Descalças! Nas descargas do carvão,

Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;

E apinham-se num bairro aonde miam gatas,

E o peixe podre gera focos de infecção!

(CV. O Sentimento dum Ocidental, p. 142)

Page 165: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

164

As dificuldades encontradas no desempenho de suas profissões representam

obstáculos a serem superados. Tais entraves fortalecem a condição de lutadoras que elas

adquirem e imprimem-lhes acentuada autonomia e combatividade.

A paisagem urbana tem sua negatividade suavizada pela febril sensualidade que

permite às trabalhadoras manter seu poder de atração, de acordo com a óptica fascinada do

poeta. Não estão enfatizados apenas seus traços maternais – “E algumas à cabeça, embalam

nas canastras/ Os filhos que depois naufragam nas tormentas”. (CV. p. 142) – mas

principalmente a sua sensualidade – “Vem sacudindo as ancas opulentas!” (CV. p. 42). As

varinas galhofeiras tocam a emoção do eu enunciador que, mesmo melancólico, é atraído

pela visão dinâmica que elas proporcionam, no fim de tarde em Lisboa.

No poema “Num Bairro Moderno”, vimos a atração que sofre o homem pela ação

desenvolta da verdureira que, frágil e debilitada, guarda consigo, em latência, as forças do

mundo natural. Essa força de trabalho feminina ajudou a construir as grandes cidades,

trazendo ao mesmo tempo novos interesses também para o comércio, já que as mulheres

afirmam seu papel importante nas atividades de consumo.

Desdobram-se tecidos estrangeiros;

Plantas ornamentais secam nos mostradores;

Flocos de pós de arroz pairam sufocadores

E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.

(CV. O Sentimento dum Ocidental, p. 154)

Page 166: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

165

Em todo caso, ao menos aos olhos do poeta Cesário Verde, a presença das

trabalhadoras retira do homem um poder absoluto. Por isso, ainda que ele manifeste

profunda e sincera admiração por essas mulheres firmes, ele não conseguiu ver nelas uma

possibilidade de correspondência afetiva. Trata-se de mais uma figura associada à cidade e,

em decorrência à Modernidade, elementos com os quais o poeta não conseguiu entrar em

completa simetria.

Assim, a trabalhadora, mesmo louvada em sua força, comporá com a dama pé-de-

cabra o panorama que frustra, em termos afetivos. O que resulta dessa constatação da

cidade como deserto afetivo é a demanda ansiosa pelas ruas de Lisboa e mais o desejo que

o observador tem de evadir-se, de desistir desse ambiente inóspito.

E como é necessário que eu me afoite

A perder-me de ti por quem existo,

Eu fui passar ao campo aquela noite

E andei léguas a pé pensando nisto.

(CV. Noitada, p. 128)

O campo torna-se, então, o local onde esse “personagem” depõe suas esperanças,

seus desejos de realização, como nos versos de “De Verão”118: “No campo; eu acho nele a

musa que me anima” (CV. p. 158). Mesmo em poemas que têm a cidade como cenário, esse

desejo está expresso. Os jardins distantes, os lugares ermos, becos são espaços intervalares

entre cidade e campo, são ninhos que possibilitam amores passageiros, fadados a morrer,

quando os amantes retornam aos centros movimentados das cidades.

118 VERDE, Cesário. De Verão, op. cit., p. 158-162.

Page 167: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

166

4.3 A DAMA DOS SUAVES PÉS

Falar apenas da Lisboa feita de “prédios sepulcrais” seria excluir do comentário a

representação de alguns espaços específicos que, mesmo de forma reduzida, o poeta

registrou nos seus versos. Através de uma demanda furtiva por certos locais de Lisboa,

Cesário Verde expressou ânsia de aquietar seu espírito. Para escapar das formas tradutoras

de um tempo que parecia conduzi-lo celeremente para a morte, o poeta buscou um sossego

que, paradoxalmente, exclui a vida, território dos conflitos e das ações. Esse específico

movimento contempla principalmente uma angustiada busca de saída para o impasse

histórico configurado nas formas contraditórias da cidade.

Assim, se o poeta associou o espaço central de Lisboa a uma imagem de mulher – a

dama pé-de-cabra – natural que encontre, nesses caminhos de fuga, outras imagens

femininas; essas outras imagens de mulher avizinham-se de personificações da morte.

Enquanto as ruas eram constantemente tomadas pelos transeuntes, uns em direção

ao trabalho, outros no diletante prazer da flanerie, alguns espaços – “o pátio velho de um

canteiro”, “os jardins agrestes” e os “mimosos jardins” – se abriam para aquele que buscava

fugir do burburinho dos centros.

Algumas mulheres acompanharam as personas nesses trajetos. Seduzidas por todos

os tipos que as acompanharam, as personas poéticas de Cesário Verde procuraram

aproximar as amadas – mais vibrantes ou mais melancólicas – das paisagens que pareciam

oferecer alguma resistência aos “prédios sepulcrais”.

Page 168: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

167

Poemas como “Eu e Ela”119, “Flores Velhas” e “Noitada”120, ainda que tragam

especificidades, expõem, em conjunto, referências a esses espaços de Lisboa aos quais o

poeta atribuiu resistência às transformações. Eles exibem marcas de uma natureza domada,

represada.

4.3.1 Flores Velhas

Em “Flores Velhas”, o “jardinzinho agreste” é revisitado para que o homem que

conduz a reflexão lírica possa reviver um momento do passado que não voltará. No

presente, a amada é reminiscência, ausência, saudade. No passado, ela está presente, mas,

por isso mesmo, o passado surge associado às formas harmoniosas e, para o poeta,

perdidas.

Os elementos naturais são aproximados da mulher recordada e fisicamente ausente.

O “néctar”, bebida mítica dos deuses e fluido adocicado das flores, advém dos “mimos”

dessa amada que compartilhava o idílio.

119 Ibid., p. 46. 120 O poema “Cantos de Tristeza” aproxima-se dos anteriormente citados, mas se distingue deles, pois seu cenário é rural, ainda que próximo da cidade, de onde os amantes se deslocam.

Page 169: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

168

Em larga medida, o poema confirma o olhar carregado de cultura que as personas

de Cesário Verde voltam aos elementos que compõem seus espaços. A presença das

abelhas em torno da alfazema – e das borboletas, dos pássaros, das flores e do rio – dialoga

com a poesia bucólica. A lembrança do encontro pessoal, perdido no tempo, traz consigo o

eco de uma poesia, possível no passado, quando se davam “idílios imortais” em “paisagens

amenas”; segundo Curtius, “lugares adequados ao amor”. O poema traz ecos de Poe, com a

insistência da expressão “Nunca mais” e também nele ecoa a voz de Baudelaire.

Fui ontem visitar o jardinzinho agreste

Aonde tanta vez a Lua nos beijou,

E em tudo vi sorrir o amor que tu me deste,

Soberba como um sol, serena como um vôo.

Em tudo cintilava o límpido poema

Com ósculos rimado às luzes dos planetas;

A abelha inda zumbia em torno da alfazema;

E ondulava o matiz da leves borboletas.

Em tudo eu pude ver ainda a tua imagem,

A imagem que inspirava os castos madrigais;

E as virações, o rio, os astros, a paisagem,

Traziam-me à memória, idílios imortais.

(CV. Flores Velhas, p. 86)

Dirigindo-se a uma mulher específica, Clarisse, o poeta vai aos poucos aclarando as

razões da ruptura daquela harmonia, que agora só pode voltar como recordação: “Mas tu

agora nunca, ai, nunca mais te sentas/ Nos bancos de tijolo em musgo atapetados,” (CV. p.

Page 170: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

169

87) E, de fato, tal como ele as apresenta, as raízes do problema encontram-se em si; a

persona que fala localiza em si algumas falhas.

A primeira concerne à sua vivência das mudanças como uma penalidade. O poeta

apresenta uma imagem sugestiva dessa vivência problemática da passagem temporal: “E

tudo enfim passou, passou como uma pena/ Que o mar leva no dorso exposto aos

vendavais,” (CV. p. 88). Esses versos, além de imprimir no leitor essa idéia, sugerem

também, através da homonímia do termo “pena”, o resquício de uma saudade da vida

“doce” e “amena” que o amado penalizado insiste em resgatar.

A segunda falha está em sua assimetria com a pureza de Clarisse; a terceira é

assinalada por um “riso mau” e diz respeito à sua consciência dos desalentos e das

decepções. Essa consciência, que é ciência da dor, cria uma inadequação entre o ser que

fala e as “harmonias mudas” das estrofes mais ideais. Assim, se, em “Ironias do Desgosto,”

a consciência de morte impossibilita o encontro com a mulher apegada às formas

provisórias do presente; aqui, em “Flores Velhas”, essa consciência é em princípio

consciência da dor e impossibilita o encontro com a mulher que remete a valores ideais e

harmoniosos; observe-se:

E, ó pálida Clarisse, ó alma ardente e pura,

Que não me desgostou nem uma vez sequer,

Eu não sabia haurir do cálix da ventura

O néctar que nos vem dos mimos de mulher.

(CV. Flores Velhas, p. 86)

Eu, por não ter sabido amar os movimentos

Da estrofe mais ideal das harmonias mudas,

Eu sinto as decepções e os grandes desalentos

Page 171: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

170

E tenho um riso mau como o sorrir de Judas.

(CV. Flores Velhas, p. 88)

Aos poucos, o vazio do presente vai-se impondo, de modo que se percebem na

paisagem elementos que não são mais da pura natureza. Surge um banco de tijolo em

musgo atapetado e mais um tanque. É interessante notar que tais elementos aparecem

exatamente quando a fala contempla o caráter negativo do presente: o banco está vazio e o

poeta é quem se debruça sobre o tanque, onde antes se debruçara a mulher.

Parecendo resistir a essas evidências de sua perda, a persona poética volta-se

novamente para o passado, descrevendo-o a partir de uma natureza ativa e libertadora:

Eu tinha tão impresso o cunho da saudade

Que as ondas que formei das suas ilusões

Fizeram-me enganar na minha soledade

E as asas ir abrindo às minhas impressões.

(CV. Flores Velhas, p. 88)

À medida que o discurso contempla o conteúdo recordado descrito em imagens

idealizantes, uma visão de mulher também se vai compondo:

Cuidei até sentir, mais doce que uma prece,

Suster a minha fé, num véu consolador,

O teu divino olhar que as pedras amolece

E há muito me prendeu nos cárceres do amor.

(CV. Flores Velhas, p. 89)

Page 172: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

171

Novamente, a mulher é definida pelos pés. Todavia, ao contrário da atriz que circula

no centro tumultuado, Clarisse tem pés pequenos e suaves; um homem pode mesmo

esconde-los entre as mãos:

Os teus pequenos pés, aqueles pés suaves,

Julguei-os esconder por entre as minhas mãos,

E imaginei ouvir ao conversar das aves

As célicas canções dos anjos teus irmãos.

(CV. Flores Velhas, p. 84)

Personificação de uma ausência, Clarisse representa, de fato, uma natureza que, nos

jardins citadinos, também é mera lembrança. Mais uma vez, Cesário recorre ao jogo entre

luz e sombra. Nesses versos fortemente líricos, a luz é interior e advém da recordação; o

exterior é crepuscular. Confirma-se o padrão que marca “O Sentimento dum Ocidental”, em

que a passagem para a noite é vivida como um ingresso na morte:

E como na minh’alma a luz era uma aurora,

A aragem ao passar parece que me trouxe

O som da tua voz metálica, sonora,

E o teu perfume forte, o teu perfume doce.

Agonizava o Sol gostosa e lentamente,

Um sino que tangia, austero e com vagar,

Vestia de tristeza esta paixão veemente,

Esta doença, enfim, que a morte há-de curar.

(CV. Flores Velhas, p. 89)

Page 173: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

172

Quando desce a noite, também aqui se expandem imagens que ecoam uma

negatividade associada à dor da perda e à morte. O poeta vai revelando sua aversão à vida e

a inadequação radical entre a sua consciência e os prazeres vitais. Obedecendo a um

princípio que busca construir a solidariedade entre amada e amante, o poeta passa a

descrever Clarisse a partir da sua face pálida:

E quando me envolveu a noite, noite fria,

Eu trouxe do jardim duas saudades roxas

E vim a meditar em quem me cerraria

Depois de eu me morrer, as pálpebras já frouxas.

[...]

Page 174: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

173

Portanto, eu, que não cedo às atrações do gozo,

Sem custo hei-de deixar as mágoas deste mundo.

E, ó pálida mulher, de longo olhar piedoso,

Em breve te olharei calado e moribundo.

(CV. Flores Velhas, p. 90)

Finalmente, o encontro com a mulher ocorre dentro de uma perspectiva de morte; o

pacto solidário dá-se como pacto letal; esse é o conteúdo do desejo que o poeta explicita.

Mas quero só fugir das coisas e dos seres

Só quero abandonar a vida triste e má

Na véspera do dia em que também morreres,

Morreres de pesar, por eu não viver já!

(CV. Flores Velhas, p. 90)

Associada a um sossego estranho à vida e aos seus prazeres sensuais, Clarisse só

pode mesmo ser encontrada na morte. Diante dessa natureza harmoniosa e angélica, o

“jardinzinho agreste,” que desencadeara as recordações, revela a sua face de natureza

degenerada, feita de “rústicos tapetes” e “plantações ruins”. Por isso, ali, a mulher

idealizada deverá continuar sendo apenas uma reminiscência:

E não virás, chorosa, aos rústicos tapetes,

Com lágrimas regar as plantações ruins:

E esperarão por ti, naqueles alegretes,

As dálias a chorar nos braços dos jasmins.

(CV. Flores Velhas, p. 90)

Page 175: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

174

Em “Eu e Ela”, poema publicado em 1873, todo o ambiente descrito, assim como a

atitude dos amados, difere do de “Flores Velhas”. O jardim aqui é mimoso, e os bancos de

mármore à sombra dos arbustos são locais escolhidos pelo amado para a passagem de dias

vindouros.

Contudo, também esse poema escrito num tempo futuro expressa desejo de sossego

avesso às ações da vida. Já aquietados os impulsos passionais dos primeiros encontros –

“Nós havemos de estar ambos unidos, sem gozos sensuais, sem más idéias” (CV. p. 46) –

os amantes leriam sossegadamente “romances galhofeiros”. O projeto meticulosamente

planejado – “O teu braço ao redor do meu pescoço/ O teu fato sem ter um só destroço, / O

meu braço apertando-te a cintura” (CV. p. 46) – incide muito mais sobre o comportamento

dos amantes que sobre o local do encontro, dando-nos, através dos versos iniciais, no uso

do indefinido, a convicção de que esse ambiente está fora do mundo e da vida: “Num

mimoso jardim, ó pomba mansa,” (CV. p. 46).

A paz que transmite o ambiente descrito equipara-se a uma passividade que o poeta

deseja e admira. Poema de traços fortemente românticos, “Eu e Ela,” que se distingue da

inquietante paixão de outros encontros, descreve um espaço sem riqueza de atributos

propositadamente idealizados para refletir o sossego e a paz que seria quebrada pela

presença excitante dos pássaros, abelhas ou borboletas.

Observamos que a busca por jardins, pátios e canteiros segue uma trajetória na obra

do poeta, atravessando uma fase de idealização, mais contemplativa (1873), para um

momento de dolorosa ironia (1879), na qual o poeta “magoado” tem a consciência da

impossibilidade, implícita na dolorosa certeza de que o tempo passado não pode retornar.

“E aquela doce vida, aquela vida amena,/ Ah! nunca mais virá...” (CV. p. 88)

Page 176: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

175

O abandono conferido a esses espaços de jardins e parques represados aproxima-se,

por vezes, daquele que atinge os desafortunados. Essa relação de proximidade é obtida

através de descrições carregadas de negatividade; a ausência de luz e de cor, em alguns dos

jardins e parques, lembra os rostos pálidos e os trajes maltrapilhos dos pobres que se

encontram à margem das movimentadas ruas da cidade.

A lua dava trêmulas brancuras.

Eu ia cada vez mais magoado;

Vi um jardim com árvores escuras,

Como uma jaula todo gradeado!

(CV. Noitada, p. 127)

Conforme vimos, há, nesses poemas que trazem esses passeios pelos jardins

gradeados, uma relação entre o modo como Cesário qualifica esses espaços urbanos e a

postura da mulher que, juntamente com a persona do poeta, para lá se dirige. Esses jardins,

como acontece em “Flores Velhas”, são circundados por sombras. Em “Noitada”, o jardim

tem “árvores escuras” o que o torna impenetrável. Assim como a amada, ele impede a visão

da sua verdade íntima.

4.4 A ALMA POPULAR

De acordo com Antonio Pires, a geração de 70 estava preocupada com a crise que se

vinha arrastando no país, desde uma Restauração que só aconteceu nas formas externas da

diplomacia e do poder político “de trono e bastidor palaciano”121, esses mesmos intelectuais

121 PIRES, António Machado op. cit., p. 268.

Page 177: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

176

tinham ânsias de cosmopolitismo e interessavam-se por uma literatura estrangeira. Via de

regra, o grupo chegava a conclusões pessimistas sobre Portugal, enfatizando os defeitos da

sociedade portuguesa que habitava um “país ínfimo”, às portas de uma “Europa culta e

devotada ao progresso”.

Dentro dessa óptica, cabia também a visão de que o espírito da decadência, em

Portugal, manifestava-se a partir de uma falta de originalidade, de força, de caráter para

criar um modelo próprio. A “República Portuguesa, por exemplo, não passou de servil

imitação política da República Francesa”, lamentava Ramalho Ortigão122, que via o país

sendo conduzido para uma desnacionalização.

Crítico dessa sociedade, Eça de Queiroz direcionou o seu olhar para uma cidade que

perdera a sua originalidade e para uma sociedade que se esvaziava em seu vigor. Em seus

últimos escritos, Eça concluiu que as ambições de cosmopolitismo enfraqueceram e

confundiram os intelectuais de sua Geração: “[...] nos tínhamos tornado fatalmente

franceses no meio de uma sociedade que se afrancesava...” Dizia ainda: “Quem passeia

pelas ruas de Lisboa vê que nas vitrinas dos livreiros só há livros franceses; e quando se

sobe às casas, [...] leituras francesas, admirações francesas, frases francesas. [...] estamos

colados às saias da França, como às duma velha amante”123.

É inegável que esse registro da presença da cultura francesa também exista na

poesia de Cesário. Ela faz parte dos quadros citadinos, descritos através da observação

cuidadosa do poeta nos seus passeios pelas ruas de Lisboa. O gosto na decoração dos

interiores das residências mais requintadas, a moda no traje das damas e cavalheiros de

classe alta, as mercadorias importadas vendidas nos balcões das principais lojas, tudo isso é

122 ORTIGÃO, Ramalho apud PIRES, António Machado, op. cit., p. 252.

Page 178: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

177

ricamente descrito através dos seus versos. Acresce-se a esses francesismos, a influência

dos estrangeirismos utilizados fartamente pelo próprio poeta na sua poesia; basta lembrar as

expressões: rez-de-chaussée, chansonnette, coupé, trottoir, mignonnes, toilettes, verve,

cocottes, char-à-bancs, coterie, réclame e tantas outras que se misturam às expressões

portuguesas da época; com função irônica ou não. A própria convicção filosófica

confessada nos versos – “A crítica segundo o método de Taine/ Ignoram-na.” (CV. p. 106)

– demonstra que Cesário compartilhou essa atitude, comum aos homens de sua época.

Oliveira Martins buscou explicar a suposta decadência portuguesa através do

conceito de raça. Cito Helder Macedo: “Ao conceito naturalista de raça, Oliveira Martins

acrescentou um elemento espiritualista derivado do organicismo hegeliano, o gênio da

nação”124. O gênio português, que se tinha exprimido organicamente nas Descobertas,

ecplipsara-se em 1580, data em que, segundo Oliveira Martins, “Portugal atingiu o seu fim

natural como uma entidade orgânica”125. Assim, consta no prefácio a 2ª edição do “Portugal

Contemporâneo”: “Eu vejo uma decadência de caráter e uma desnacionalização na

cultura.”126

Contudo, o mesmo Oliveira Martins não deixou de exaltar as qualidades tenazes e

astutas do beirão, denominador comum da unidade nacional. A sua teoria estende-se ainda

para as qualidades da mulher do Minho que considera audaz e decidida. Por considerar

também a existência de um gênio messiânico do português, as teses de Oliveira Martins não

deixam de conter um apelo, um grito revolucionário.

123 QUEIROZ, Eça de. O Francesismo. In: ______. Obras completas de Eça de Queiroz. v. 3. Rio de Janeiro: Aguilar, 2000. p. 2107. Organização, introdução, fixação dos textos, autógrafo e notas Beatriz Bernne. 124 MACEDO, Helder, op. cit., p. 31. 125 MARTINS, Oliveira apud MACEDO, Helder, op. cit., p. 31. 126 Id. op. cit., p. 30.

Page 179: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

178

Através de uma interpretação filosófico-histórica de Portugal, ele enuncia no

“Portugal Contemporâneo” algumas idéias sobre as características do português, baseadas

na aliança entre história e raça, ação e modo de ser, fazendo uma crítica ao Portugal saído

do Liberalismo. “O modo de ser influencia em algumas situações, o agir histórico”127, diz o

historiador. As duas linhas, “rácica” e “histórica,” estão de certo modo refletidas na poesia

de Guerra Junqueiro e nos romances de Eça de Queiróz. E ainda mais significativamente, a

idéia de decadência nacional marca as reflexões de Antero de Quental, que, em sua

conferência sobre a decadência dos povos peninsulares em 1871, apresenta poderosas

sugestões.

De todo modo, as teses raciais difundiram-se; observe-se: “Falta de solidez de raça,

por motivos fisiológicos, inadaptação para o trabalho que restaura, explicavam essa

decadência dos sucessores de uma plêiade de guerreiros e valentes”128.

Atingido por todo o complexo de idéias que agitava as últimas décadas do século

XIX, em Portugal, Cesário Verde conseguiu ver, na gente simples e trabalhadora, os males

da humilhação e da dominação, mas, sobretudo, ele conseguiu também ver força,

dinamismo e disposição para o trabalho.

O poeta ilustrou muitas vezes, com cenas e episódios, os contrastes entre os traços

físicos e morais dos trabalhadores braçais da cidade e a ociosidade burguesa. Parecendo

egressos das ruas de Lisboa, homens e mulheres, trabalhadores de classe baixa, impõem as

suas presenças nos versos de Cesário, em cujos quadros se destacam pelas atividades que

praticam. Eles impõem uma autenticidade que serve de contraste aos dândis e às cocottes,

aos padres e às burguesinhas, aos fidalgotes, aos ministros que circulam sem compromisso.

127 Ibid., loc. cit. 128 QUEIRÓS, Teixeira. D. Agostinho. Lisboa: [s.n.], 1849 apud PIRES, António Machado, op. cit. p. 252.

Page 180: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

179

Algumas desses contrastes entre classes sociais são feitos para revelar e para caracterizar a

miséria em que vive o assalariado, vítima de uma sociedade que ao mesmo tempo o explora

e despreza.

Em Cesário, há o reconhecimento dos males da classe dominante. Ele absorve esses

traços negativos, situando-os em suas personas. O burguês que fala em “Cristalizações”

bem poderia situar-se como personagem de um romance de Eça. No entanto, o poeta não

ignora, e mesmo destaca, pondo em primeiro plano, a dinâmica dos calceteiros, abrindo

caminhos, e os movimentos das varinas com seu trabalho insalubre. Integram os seus

quadros, os ajudantes de pedreiro, que perdem a vida caindo dos andaimes inseguros,

“Desastre” e ainda as dispostas verdureiras, como a que está descrita detalhadamente no

poema “Num Bairro Moderno”.

Essas mulheres e homens, que seguramente não tinham acesso às novidades

estrangeiras como os personagens de maior prestígio social, representantes da classe

burguesa, figuram nos poemas e são observados na obra de Cesário.

Distanciando-se da maioria dos escritores de sua época, Cesário Verde aproxima-se

de uma heroicização dos trabalhadores braçais, mostrando que a aventura da sua

sobrevivência na Lisboa finissecular demanda uma força comparável àquela suscitada pelas

aventuras marítimas.

Abalado em suas tradições, o país necessitava de força para restaurar-se, força que

Cesário não localizou na burguesia abastada e nem nos intelectuais. Embora aprisionado,

esse poder vital foi sentido pelo poeta que o localizou no meio da gente simples, com quem

ele aprendeu a partilhar as ruas, ou no campo, através do olhar atento que lançava sobre os

camponeses.

Page 181: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

180

Na zona rural, o poeta também registrou obstáculos que deveriam ser diuturnamente

enfrentados e que demandavam resistência:

Mas nem tudo são descantes.

Por esses longos caminhos,

Entre favais palpitantes,

Há solos bravos, daninhos,

Que expulsam seus habitantes!”

(CV. Provincianas, p. 185)

Em “Petiz”, Cesário traz as recordações do campo da sua infância, distinguindo os

temores infantis da consciência crítica desenvolvida na idade adulta. Aos olhos do menino,

os pobres pareciam perigosos. A vaquinha preta que tanto assustou a sua prima, não o

assustara como faziam os miseráveis. Sete quadras do poema são dedicadas à descrição das

misérias e das enfermidades dos pobres mendigos que ficaram gravadas na sua memória. A

repulsa física causada pelas feridas, pelos sons e cheiros da pobreza e o pavor causado na

criança pela totalidade da situação revelam-se numa poderosa descrição.

Outros pedincham pelas cinco chagas

E no poial, tirando as ligaduras,

Mostram as pernas pútridas, maduras,

Com que se arrastam pelas azinhagas!

(CV. Em Petiz, p. 132)

No poema, escrito em três seções, o homem tem, mais uma vez, atitude diversa à da

companheira. O bravo rapazinho é destemido e familiarizado com o espaço do campo, e a

Page 182: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

181

prima é uma frágil menina. Contudo, apesar do destemor que o faz enfrentar a vaquinha, o

rapaz teme os pobres.

Hoje entristeço. Lembro-me dos cochos,

Dos surdos, dos manhosos, dos manetas,

Socavam as calçadas, as muletas;

Cantavam, no pomar, os pintarroxos!

(CV. Em Petiz, p. 135)

Aqueles que o menino conheceu de perto – os velhos, cegos, mendigos, mutilados, a

Ratana, o bêbado zarolho e outros – continuaram a fazer parte da sua vida, não mais como

os monstros temidos, mas como vítimas da sociedade desumana. Nessa perspectiva, os

receios expressos na infância adquirem uma nova dimensão. No poema, o susto da criança

dimensiona para o adulto que o recupera por força da memória lírica, o horror da

deformação social: o povo forte deforma-se, tornando-se defeituoso e fraco.

A presença de um povo martirizado em qualquer dos espaços – cidade ou campo –

anuncia a solidariedade do poeta a uma das suas principais figuras, a alma popular, ao

tempo em que também denuncia a injustiça social como um elemento de base da sociedade

moderna, pondo em questão a própria noção do progresso por ela perseguido.

Contrariando a direção tomada por muitos dos seus contemporâneos, Cesário não

atribui aos pobres uma fraqueza advinda de fatores raciais, fatalidade orgânica que, todavia,

ele vai absorver, quando se refere a si mesmo e a outros representantes de uma classe

burguesa. Via de regra, as fraquezas dos pobres representados em seus poemas são situadas

como socialmente produzidas, resultam da miséria. Pelo contrário, ele descreve o físico dos

camponeses, como naturalmente fortes. Caracterizados como “terrosos e grosseiros”,

Page 183: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

182

muitos deles apresentam os dorsos largos que o poeta costuma associar aos tipos da

província.

Cesário retrata a insensibilidade da classe abastada através da altivez de uns, da

indiferença de outros, da exploração econômica dos poderosos, e a pouca ou nenhuma

solidariedade diante dos males sociais.

Na obra de Cesário Verde, sentimos a presença do tema social, mesmo quando ele

não toma o centro do poema. “Desastre”, “O Sentimento dum Ocidental” e “Num Bairro

Moderno” são exemplos que podem apresentar a visão de uma estrutura ideológica, na

medida em que seus elementos inequivocamente sociais e políticos estão implícitos na

caracterização da cidade. “A noturna vingança dos povos humilhados terá de envolver a

libertação dos trabalhadores explorados por uma oligarquia privilegiada...” disse Helder

Macedo129 ao falar das implicações políticas da confrontação social presentes em alguns

poemas de Cesário.

Nos versos de “Num Bairro Moderno”, o poeta demonstra claramente a sua

simpatia pelos humildes e desprotegidos. Lembro que, nesse poema, a sua percepção

sensorial é ativada numa evocação de imagens sinestésicas ligadas ao trabalho: o pão

produzido com seu delicioso sabor, a umidade e o colorido da verdura fresca trazida no

cesto que a verdureira carrega. Esse processo constrói, também no leitor de Cesário, uma

imediata empatia com as figuras descritas, tipos trabalhadores, que pelas ruas trafegam na

sua lida diária exercendo as suas profissões. Vejam-se os versos: “Bóiam aromas, fumos de

cozinha,/ E o padeiro com seu cabaz nas costas” (CV. p. 117). O poeta aproxima

diretamente o padeiro ao sabor e ao cheiro agradável que o pão exala.

129 MACEDO, Helder, op. cit., p. 84.

Page 184: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

183

Tal técnica não é utilizada em relação ao servente, empregado doméstico que

compra legumes na mão da verdureira. Esse, ainda que não pertença à classe dominante,

assimila os seus valores e humilha a verdureira, atirando-lhe o cobre, com desprezo. Em

relação ao padeiro, Cesário diz, com seleção lexical cuidadosa: “Com o cabaz às costas, e

vergando” (CV. p. 117). Enfatiza-se o esforço; o que entra em choque com a descrição do

criado da casa burguesa: “muito descansado”. Retomo o poema para demonstrar a forma

como o tema social permeia os quadros do poeta.

Em “Cristalizações”, o eu enunciador destaca os calceteiros macadamizando as ruas

de Lisboa, sugerindo, conforme já observei, a construção dos novos rumos que o país

seguiria. Ao retrata-los, Cesário enaltece-os “Homens de carga”!, que carregam a bandeira

nas camisas, na imagem simbólica da cruz de malta, e por ela “sofrem”, “bebem”,

“agonizam”. Nessa imagem da luta, que emerge por todos os cantos da cidade, no centro,

nos lugares públicos e nas periferias, nas calçadas e nos andaimes dos prédios em

construção, está sempre enaltecido o esforço laborioso.

Segundo consta foi inspirado num fait-divers, que Cesário Verde escreveu

“Desastre”. O acontecimento foi publicado pela imprensa em 30 de janeiro de 1875. Nesta

data, o Diário Ilustrado noticiava o acidente de dois pedreiros. Como outros, esse poema

mostra um quadro trágico. Elementos do ambiente físico colaboram para suavizar o

sofrimento do miserável operário que, após a queda de peito nuns tapumes, já se encontra

deitado e ensopado de sangue numa maca. Mas a compaixão de cortinados que balançam,

como se fizessem carícias para aliviar a dor, não tem correspondência, em termos de

solidariedade, no plano humano. O desespero só é partilhado pelos companheiros de

trabalho, que procuram reanimar o acidentado. A tragédia não sensibiliza os transeuntes;

vale dizer que a cidade não se detém por compaixão, como também não se compadecem

Page 185: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

184

tantas das mulheres presentes nos versos de Cesário Verde. Lembro a passagem de

“Desastre”:

E antes, ao soletrar a narração do facto,

Vinda numa local hipócrita e ligeira,

Berrara ao empreiteiro, um tanto estupefacto:

“Morreu? Pois não caísse! Alguma bebedeira!”

(CV. Desastre, p. 102)

Organismo independente, autônomo, que segue seu próprio caminho, a história

cristalizava-se, aos olhos do poeta, nas formas de Lisboa, indicando perdas, mudanças que

precipitavam o fim.

Mesmo quando comenta as assimetrias das ruas, as irregularidades das habitações, o

crescimento dos subúrbios, dos becos, das travessas, Cesário está fazendo alusões às

assimetrias sociais e ao confinamento de uma alma popular.

A aliança entre a poesia e a causa social foi aconselhada a Cesário, pelo estimado

amigo Silva Pinto. Este tinha claramente dificuldade em aceitar uma arte cujo fim fosse a

sua própria existência. Contudo, Cesário, ao menos em princípio, procurou o equilíbrio

social na visão de um Portugal que, voltado à sua tradição agrária, chegasse a um tempo de

fartura accessível a todos. Já vimos que, nos versos do poema “Nós”, surge a dolorosa

constatação das dificuldades de um pacto entre as classes, mesmo em torno de princípios

nacionais.

Se “Sentimento dum Ocidental” revela centralmente o confinamento e o

subseqüente esgotamento da vida, nas formas da cidade finessecular, em “Provincianas”, a

migração dos trabalhadores e as assimetrias sociais assumem papel central na cena poética.

Page 186: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

185

O texto ficou inconcluso, mas seu esboço leva a supor que o comentário social iria

desenvolver-se na poesia de Cesário, não tivesse sido ele, como tanto temia, celeremente

levado para a morte.

Page 187: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

186

5 CONCLUSÃO

Talvez que nem usasse tinta, somente água clara, aquela água de vidro que se vê percorrer a Arcádia. Certo não escrevia com ela, Ou escrevia lavando: Relavava, enxaguava Seu mundo em sábado de banho. Assim chegou aos tons opostos das maçãs que contou rubras dentro da cesta de quem no rosto as tem sem cor. João Cabral de Melo Neto

Os versos que Cabral dedica a Cesário Verde ajudam-me a iniciar uma conclusão,

comentando o “processo” criativo do poeta português. João Cabral destaca o ponto de

partida de Cesário, dado pelos parâmetros da escola realista: as tintas do mundo objetivo, as

cores das maçãs contadas, os dados mensuráveis da realidade. Mas o brasileiro observa no

processo criativo de Cesário a interferência de “águas” que o conduziam a um ponto de

chegada surpreendente. Esse último também era real, mas em tons opostos aos que

ocasionaram a partida; Cesário parte das cores rubras das maçãs contidas na cesta, para

chegar à palidez de outras maçãs, aquelas que compõem o rosto da mulher que as vende.

Lendo implicitamente “Num Bairro Moderno”, Cabral observa que o processo de

Cesário constitui principalmente uma migração pela multiplicidade da realidade, ficando

ainda estabelecido que, nessa migração, interferem semelhanças sonoras, associações

semânticas, jogos de cores; ele constata uma busca de analogias que, concernentes a uma

Page 188: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

187

ordem poética – a da Arcádia – desordenam e ferem as continuidades do mundo. No

entanto, a escolha de Cabral evidencia também a sua compreensão de que a visão do artista

Cesário Verde será sempre guiada por um sentimento da história e da necessidade de saneá-

la; a “lavagem” imposta aos dados mensuráveis e quotidianos tem, em seus versos, um

sentido social e humanitário.

Vou agora tomar de empréstimo à leitura de Cabral apenas a sua consideração sobre

as cores; a migração feita por Cesário, do tom rubro à palidez, irá ajudar a condução de um

comentário que incidirá, não mais sobre o processo criativo do escritor, mas sobre a sua

trajetória poética.

Analisando, em primeiro lugar, “Num Bairro Moderno”, iniciei com a visão de uma

persona que, fascinada pela profusão de formas e cores existentes na Lisboa tocada pela

Modernização, reconhece na figura da verdureira a presença de um mundo desfalcado,

privado do vigor que lhe seria próprio. Em reação, o artista propõe-se a interferir na

história, no sentido de que o vigor das verduras e das frutas encerre a apatia burguesa e a

desloque do seu pólo de poder. Sem dúvida, o poema é conduzido por uma voz poética

ainda portadora de uma revolta esperançada; quero dizer, de uma revolta que julga ser

possível que a visão do artista seja catalisadora de uma ação a favor da vida contida nas

maçãs. Ao poeta – e à sua arte – é lançado o desafio de estabelecer uma aliança com

poderes vitais, capazes de vencer os erros sociais e a sua seqüência de dores.

A partir desse ponto que enfatizei na minha leitura de “Num Bairro Moderno”, as

outras análises descortinaram a luta travada pelo poeta, no sentido de manter a crença nessa

possibilidade de aliança a ser estabelecida entre a consciência que analisa a paisagem e as

formas e figuras que nela representam uma vida confinada, mas capaz de libertação.

Page 189: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

188

Num pólo distante de “Num Bairro Moderno”, estão “Em Petiz” e “Nós”, poemas

em enfatizam os problemas que dificultam essa aliança. Na curta trajetória do poeta, cresce

a ciência dos elementos que dificultam o estabelecimento desse pacto. Tal crescimento

terminou por conduzir Cesário à noção de que o laço do intelectual burguês com as

potências vitais tende à impossibilidade. Essa constatação o faz deslocar a si e às suas

personas, de uma filiação à cor rubra das maçãs, na direção da palidez causada pelo

confinamento e sintomática da decadência.

Em decorrência, quando triunfarem as forças vitais, a consciência analítica, que o

poeta transporta para suas personas, estará do lado de um mundo morto e historicamente

ultrapassado. No poema “Em Petiz”, o poeta descobre na memória seu pavor diante da

miséria e dos pobres, pavor que se traduzia, na companheira complementar da infância,

como medo dos animais e de toda a natureza. No segundo – “Nós” – o poeta reconhece em

si, e nos seus, uma fragilidade que determina afinidade com as forças contrárias a uma

natureza vital e alheia a todo idealismo e a toda ética que alicerça a cultura do Ocidente.

No âmbito da poética de Cesário, a tensão entre vida e morte é configurada a partir

das relações tensas entre “campo” e “cidade” envolvendo associações que englobam

revolução social e decadência histórica. Superada uma herança romântica, na qual o campo

é território de perfeição posto em contraste com as fissuras do real, Cesário traz a antinomia

entre as duas ordens: urbana e rural. A cidade, eivada de erros, poderá em princípio ser

saneada pela irrupção do campo. Tal esperança contempla também o triunfo da tradição

agrícola portuguesa que, assim, seria incorporada ao projeto modernizador. Como já vimos,

essa síntese demonstra-se problemática em demasia e o poeta, não conseguindo filiar-se

completamente às potências do campo, vê-se arrastado pelo movimento de declínio.

Page 190: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

189

Vimos como “O Sentimento dum Ocidental” evidencia a correspondência entre a

melancolia do poeta e o crepúsculo da paisagem, ainda que dessa mesma paisagem surjam

as ações, as cores e os aromas que emanam do trabalho autêntico produzido pelos

operários. A despeito de toda essa atividade, a vida, na cidade, encontra-se confinada e

destinada a caminhar para “um mar sinistro”. Dominada por um ânimo melancólico, a

persona que fala nesse poema descreve o seu percurso num intervalo de tempo marcado

entre o poente e o adensamento da noite.

Durante um período significativo, Cesário é seduzido pelo ambiente citadino,

tornando-se o poeta de Lisboa; por isso, procurei demonstrar os modos como o observador

interpretou a vida cotidiana e o caráter fugidio das coisas e dos valores, numa época em que

a cidade se transformava. A profusão de novidades nas formas urbanas parece ter

provocado, em Cesário, um atordoamento perceptivo. Assim, suas personas olham

episódios e objetos em movimento, “deambulando” por uma cidade que se agita com a

variedade das mercadorias expostas nos balcões das lojas e com a sua multiplicidade de

sons, de aromas e de cores. Essas imagens, que não se fixam na memória, pois são

transitórias e efêmeras, ficam registradas nos versos, às vezes com um fascínio que beira o

entusiasmo; mesmo que o poeta não se despoje do julgamento social e, em decorrência, não

perca completamente a amargura. Para representar essa Lisboa do seu tempo, Cesário

Verde utilizou uma técnica própria, que envolve a análise do conjunto e a exposição dos

detalhes.

Ao examinar as figuras que povoam a cidade ou o campo, o poeta faz um contraste

entre a força física dos trabalhadores e a apatia da burguesia ociosa. Há em Cesário a

constatação de que a vida da Lisboa finissecular demandava um reconhecimento das classes

trabalhadoras.

Page 191: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

190

Em síntese, o cenário privilegiado dos poemas é mesmo a cidade; o campo surge

sempre em diálogo com essas formas tradutoras de uma Modernidade que, aos olhos do

poeta, seduz com seus apelos, mas não oferece filiação ou abrigo. Em meio a todas as

figuras que povoam os quadros citadinos, destaca-se a mulher que a personifica e que

ameaça o poeta com uma desenvoltura inesperada. Como uma contraposição a essa mulher

ativa surge a dama dos pés suaves, com quem o poeta espera encontrar-se no sossego e na

inércia da morte.

Sabe-se pouco sobre Cesário Verde, menos ainda sobre as circunstâncias em que foi

escrita a sua poesia. O desaparecimento de originais de seus poemas e cartas, além do

incêndio que destruiu o seu espólio, contribuiu para ocultar aspectos da sua vida. Mas o

fato da biografia conhecida refletir-se na obra de maneira tão inconfundível leva à

suposição de que os dados desconhecidos, suas paixões e pulsões, também encontram nos

versos alguma revelação. Talvez por isso seus poemas constituam até hoje um desafio

lançado à crítica, que continuamente busca na obra as marcas de uma existência oculta.

Até mesmo as condições da composição e impressão do Livro de Cesário Verde,

feita pelo seu amigo Silva Pinto, oito dias após a sua morte, são questionadas. Silva Pinto,

de posse de poemas impressos em jornais e manuscritos, encontrados entre papéis,

trabalhou apaixonadamente no Livro composto de 20 poesias, coligidas incompletamente e

dividiu o material em duas partes: Crise Romanesca e Naturais. O amigo fez correções e,

em seguida, publicou uma edição de apenas 200 exemplares distribuídos entre admiradores,

conhecidos e familiares. O fato de não terem existido exemplares postos à venda muito

contribuiu para aumentar o desconhecimento da obra de Cesário.

O desdém dado à sua poesia pelos seus contemporâneos só terminaria nos idos do

Modernismo, a partir da 3ª edição em 1912 com o reconhecimento de Mário de Sá

Page 192: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

191

Carneiro, em 1915, e com Álvaro de Campos invocando o nome de Cesário na sua “Ode

Marítima”. Mas é a partir da 5ª edição, em 1926, quando surge o movimento da Presença,

que o autor está definitivamente consagrado.

Após a edição, no ano do centenário do seu nascimento, ilustrado por Bernardo

Marques e prefaciado por Vitorino Nemésio, surge uma outra, a de Joel Serrão incluindo,

correspondência e biografia, edições que vêm aumentar essa consagração, tornando-o cada

vez mais apreciado pelos leitores e críticos.

Cesário não se fez entender pelos homens do seu tempo talvez porque a matéria de

seus poemas estivesse por demais entranhada nesse mesmo tempo. Todavia, apesar de sua

face enigmática e do esquecimento que o atingiu, ele projetou-se. Densa e talvez

inconclusa, sua obra foi-se completando na escrita de seus pósteros. São nítidas suas

marcas em Bernardo Soares, o semi-heterônimo de Fernando Pessoa; no Brasil, elas são

nítidas em Mário de Andrade. Mas a análise desse rastro é ainda um trabalho por fazer.

Page 193: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

192

REFERÊNCIAS

ARGAN, Giuglio Carlo. Cidade ideal e cidade real. In: ______. História da arte como história da cidade. Tradução Pier Luige Cabra. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

BARTHES, Roland. Semiologia e Urbanismo. In: ______. A aventura semiológica. Tradução Maria de Santa Cruz. Lisboa: Edições 70, 1987.

BAUDELAIRE, Charles. Obras Completas. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.

BAUDELAIRE, Charles. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. Tradução José Carlos Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989.

BENJAMIN, Walter. Paris capital do século XX. In: LIMA, Costa (Org.). Teoria da Literatura e suas fontes. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983.

BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas de Baudelaire. In: ______. A modernidade e os modernos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975.

BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. Tradução Carlos Felipe Moisés, Ana Maria Iovialti e Marcelo Macca. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.

BOM, Laurinda; AREIAS, Laura. Subitamente que visão de artista! Cesário Verde uma proposta de trabalho. Lisboa: Livros Horizonte, 1998.

BOSI, Alfredo. A intuição da passagem em um soneto de Raimundo Correia. In: ______. Leitura de Poesia. São Paulo: Ática, 1996. p. 222.

BRUNEL, P. Dicionário de Mitos Literários. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997.

CALENDER, Pierret; CALENDER, Gerard. Haverá um erotismo da humilhação em Cesário Verde? Letras & Letras, Porto, n. 34, p. 7-8, 1990.

CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. Tradução Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. 2. ed. Tradução Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

CAMÕES, Luís Vaz de. Obras de Luís de Camões. Porto: Lello & Irmãos. 1970.

Page 194: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

193

CÂNDIDO, Antônio. Tese e antítese: ensaios. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

CANEVATTI, Massino. A cidade polifônica: ensaio sobre a antropologia da comunicação urbana. São Paulo: Studio Nobel, 1986.

CARVALHO, Sergio Lage T. Dossiê sociedade de massa e identidade. Revista da USP, São Paulo, n. 32, mar./maio 1989.

CAVALCANTE, Raíssa. O casamento do sol com a lua. São Paulo: Cultura, 1993.

COELHO, Jacinto do Prado. (Org.) Dicionário de Literatura Portuguesa, Brasileira, Galega, Estilística Literária. 3 v. Porto: Figueirinhas, 1976.

COMPAGNON, Antoine. O demônio da Teoria. Literatura e senso comum. Belo Horizonte: UFMG, 1999.

DE JESUS, Maria Saraiva. Alguns estereótipos sobre a mulher na Segunda metade do século XIX. Veredas. Revista da Associação Internacional de Lusitanistas. v. 1. Coimbra, p. 158, 1998. Direção Helder Macedo.

DE JESUS, Maria Saraiva. Alguns esteriótipos sobre a mulher na segunda metade do século XIX. Veredas. Revista da Associação Internacional de Lusitanistas, Porto, n. 1, p. 153-154, 1998.

FARIA, Regina Lúcia de. Cesário Verde: um pintor da vida moderna. Lavra Palavra, Rio de Janeiro: PUC, p. 128, 1993.

FERRARA, Lucrécia D’Aléssio. As máscaras da cidade. Revista da USP, São Paulo, mar./abr./maio. 1990.

FERREIRA, David-Mourão. A vida de Cesário Verde. Lisboa: Editorial Presença, 1986.

FERREIRA, Vergílio. Relendo Cesário. Colóquio/Letras, Lisboa, n. 31, p. 49-58, 1976.

FIGUEIREDO, João Pinto de. A vida de Cesário Verde. Lisboa: Editorial Presença, 1986.

FONSECA, Rubem. A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro. In: ______. Romance Negro e outras histórias. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

FRAGA, Cid Seixas. Camilo: desatino romântico e consciência crítica. Revista Estudos. Salvador, n. 15, 1992.

GOMES, Renato Cordeiro. Cartografias urbanas: representações da cidade na literatura. Semear, Rio de Janeiro, NAU, v. 1, n. 1, 1997. Organizadores: Cleonice Berardinelli, Isabel Margato, Renato Cordeiro Gomes.

Page 195: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

194

GOMES, Renato Cordeiro. Fotogramas, vozes e grafias: Lisboa e Rio de Janeiro. Semear, Rio de Janeiro, NAU, v. 3, 1999. Organizadores: Cleonice Berardinelli, Isabel Margato, Renato Cordeiro Gomes.

GOMES, Renato Cordeiro. Todas as cidades, a cidade: literatura e experiência urbana. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

GOMES, Renato Cordeiro. Um jogo de analogias, a cidade ou: tentativas de escrever sutilezas. Semear, Rio de Janeiro, NAU, v. 2, 1998. Organizadores: Cleonice Berardinelli, Isabel Margato, Renato Cordeiro Gomes.

HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. Tradução Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Loyola, 1992.

HERCULANO, Alexandre. Lendas e narrativas. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1971.

LUBISCO, Nídia M. L; VIEIRA , Sônia Chagas. Manual de estilo acadêmico. 2. ed. Salvador: EDUFBA, 2003.

LOBO, Francisco Rodrigues. Formoso Tejo meu. In: ______. Antologia da Poesia Portuguesa. v. 2. Porto Lello & Irmãos, 1977. p. 32.

LOURENÇO, Eduardo. Os dois Cesários. Estudos portugueses: homenagem a Luciana Stegagno-Picchio. Lisboa: Difel, 1991. p. 971.

LUCKÁS, Georg. As civilizações fechadas. In: ______. Teoria do Romance. Lisboa: Presença, 1993.

MACEDO, Helder. Nós; uma leitura de Cesário Verde. Lisboa: Presença, 1999.

MARGATO, Isabel. A (i)legibilidade de Lisboa n’A capital de Eça de Queirós. Semear, Rio de Janeiro, NAU, v. 1, n. 1, 1997. Organizadores: Cleonice Berardinelli, Isabel Margato, Renato Cordeiro Gomes.

MARGATO, Isabel. A primeira vista é dos cegos. Semear, Rio de Janeiro, NAU, v. 3, 1999. Organizadores: Cleonice Berardinelli, Isabel Margato, Renato Cordeiro Gomes.

MARGATO, Isabel. No Trajeto da Modernidade: Lisboa, uma Cidade Inventada. Semear, Rio de Janeiro, NAU, v. 2, 1998. Organizadores: Cleonice Berardinelli, Isabel Margato, Renato Cordeiro Gomes.

MARTINS, Cabral. Cesário Verde ou a transformação do mundo. Lisboa: Editorial Comunicação, 1988.

MATOS, Olegária C. F. Os arcanos do inteiramente outro: a escola de Frankfurt a melancolia e a revolução. São Paulo: Brasiliense, 1989.

Page 196: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

195

MELLO NETO, João Cabral. Paisagens com figuras. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956.

MINÉ, Elza. Da transformação fantasiosa à explosão onírica: Archinboldo, Cesário, e Aníbal Machado. Letras & Letras, Porto, ano 3, n. 34, p. 9, out. 1990.

MONTEIRO, Adolfo Casais. Cesário Verde. In: SIMÕES, João Gaspar (Dir.) Perspectiva da Literatura portuguesa do século XIX. Lisboa: Ática, [1948?].

MOURÃO-FERREIRA, David. Notas sobre Cesário Verde. In: ______. Hospital das Letras. Lisboa: 1966.

OSAKABE, Haquira. Nem Deus nem a Humanidade. In: ______. Fernando Pessoa: resposta à decadência. Curitiba: Criar, 2002. p. 30-32.

PEIXOTO, Nelson Brissac. É a cidade que habita os homens ou são eles que moram nela? Revista da USP, São Paulo, n. 15, set./out./nov. 1992.

PEREIRA, José Carlos Seabra. Do fim-de-século ao modernismo. In: REIS, Carlos (Coord.). História crítica da literatura portuguesa. v. 7. Lisboa: Editorial Verbo, 2000. p. 79-123.

PESSOA, Fernando. Obra Poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1976.

PIRES, António Machado. A idéia de decadência na Geração de 70. Lisboa: Vega, 1992.

PIRES, José Cardoso. Lisboa, vistas da cidade. In: ______. Um olhar português. Lisboa: Círculo de Leitores, 1991.

POE, Edgar Allan. O homem da multidão. In: ______. Ficção Completa, Poesia e Ensaios. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1981. p. 392.

QUEIROZ, Eça de. Obras completas de Eça de Queiroz. v. 3. Rio de Janeiro: Aguilar, 2000. p. 2107. Organização, introdução, fixação dos textos, autógrafo e notas Beatriz Bernne.

RAMOS, Rui. História de Portugal. A segunda fundação (1890-1926). Direção de José Mattoso. Lisboa: Editorial Estampa, 2000.

REMÉDIOS, Mendes dos. História da Literatura Portuguesa. 6. ed. Coimbra: Atlântida, 1930.

SANTOS, Boaventura de Souza. Onze teses por ocasião de mais uma descoberta de Portugal. São Paulo: Novos Estudos: CEBRAP, 1992. p. 136.

SCHORSKE, Carl E. A cidade segundo o pensamento europeu: de Voltaire a Spengler. Espaço e Debates, Curitiba, ano 9, n. 27.

SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. Tradução Lygia Araújo Watanabe. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

Page 197: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

196

SERRÃO, Joel. O essencial sobre Cesáreo Verde. Lisboa: INCM,1986.

SILVEIRA, Jorge da. Cesário, duas ou três coisas. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1995.

SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In: VELHO, Otávio Guilherme. (Org.). O fenômeno urbano. 4. ed. Tradução de Sérgio Marques dos Reis. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.

SOUZA, Eneida Maria de. Nacional por abstrato. Semear, Rio de Janeiro, NAU, v. 3, 1999. Organizadores: Cleonice Berardinelli, Isabel Margato, Renato Cordeiro Gomes.

TELES, Gilberto Mendonça. A Belle Epoque. In: ______. Vanguardas Européias e Modernismo Brasileiro. Rio de Janeiro: Vozes, 1972.

VASCONCELOS, Pedro de Almeida. Os socialistas revolucionários. In: ______. Dois séculos de pensamento sobre a cidade. Ilhéus: Editus, 1999.

VELHO, Otávio Guilherme. (Org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.

VERDE, Cesário. Obra Completa. Prefácio, organização e notas de Joel Serrão. 7. ed. Lisboa: Livros Horizonte, 1999.

VICENTE, Gil. Farsa chamada Auto da Lusitânia. In: ______. Obras de Gil Vicente. Porto: Lello & Irmãos, 1965. p. 422.

VIEIRA, Pe. Antônio. Sermão. O amor menino. In: ______. Os Sermões. v. 4. Porto: Lello & Irmãos, 1951.

WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. Tradução Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

Page 198: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

ANEXOS

Page 199: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

Índice

1. “Cantos de Tristeza” Fevereiro de 1874

2. “Esplêndida” Março de 1874

3. “Deslumbramentos” Fevereiro de 1875

4. “Ironias do Desgosto” Setembro de 1875

5. “Desastre” Outubro de 1875

6. “A Débil” Novembro de 1876

7. “Humilhações” Novembro de 1876

8. “Num Bairro Moderno” ––––––––– de 1878

9. “Cristalizações” Maio de 1879

10. “Noitada” Agosto de 1879

11. “Em Petiz” Setembro de 1879

12. O Sentimento dum Ocidental” Junho de 1880

13. “Nós” Setembro de 1884

14. “Flores Velhas” Dezembro de 1887

15. “Provincianas” Póstuma

Page 200: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

9. / Cantos da Tristeza *

Talvez já te não lembres, triste Helena, Dos passeios que dávamos sozinhos, À tardinha, naquela terra amena, No tempo da colheita dos bons vinhos.

5 Talvez já te não lembres, pesarosa, Da casinha caiada em que morámos, Nem do adro da ermida silenciosa, Onde nós tantas vezes conversámos.

Talvez já te esquecesses, ó bonina, 10 Que viveste no campo só comigo, Que te oscu1ei a boca purpurina, E que fui o teu sol e o teu abrigo.

Que fugiste comigo da Babel, Mulher como não há nem na Circássia, 15 Que bebemos, nós dois, do mesmo fel, E regámos com prantos uma acácia

* Esta poesia, amputada de 9 quadras, que se assinalarão, foi publicada em O Livro de Cesário Verde com o título Setentrio- nal. Acontece que todas as quadras dadas a lume por Silva Pinto - e só essas - haviam sido já transcritas num artigo da autoria do organizador de O Livro sob o título de «Cesário Verde», estampado em Diário da Tarde (20'3-1874), ou seja, pouco mais de um mês 'após a publicação integral dessa poesia no mesmo jomal. Em suma: em 14 de Fevereiro de 1874, Cesário publica a poesia Cantos da Tristeza tal como agora se reproduz; em 20 de Março do mesmo ano, sem qualquer menção a esse respeito, Silva Pinto exemplifica a poesia do seu amigo com as mesmíssimas quadras que 13 anos depois haveriam de aparecer em O Livro.

Na edição de Silva Pinto: 1 a 8 Quadras suprimidas.

59

Page 201: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

Talvez já te não lembres com desgosto Daquelas brancas noites de mistério, Em que a lua sorria no teu rosto E nas lajes campais do cemitério.

5 Talvez já se apagassem as miragens Do tempo em que eu vivia nos teus seios, Quando as aves cantando entre as ramagens O teu nome diziam nos gorjeios.

Quando, à brisa outoniça, como um mamo, 10 Os teus cabelos de âmbar, desmanchados, Se prendiam nas folhas dum acamo,

Ou nos bicos agrestes dos silvados.

E eu ia desprendê-los, como um pajem Que a cauda solevasse aos teus vestidos, 15 E ouvia murmurar à doce aragem

Uns delírios de amor, entristecidos.

Quando eu via, invejoso, mas sem queixas, Pousarem borboletas doudejantes Nas tuas formosíssimas madeixas,

20 Daquela cor das messes lourejantes,

Na edição de Silva Pinto: . 4 E nas lajes que estão no cemitério. 5 a 8 Quadra suprimida. 10 Os teus cabelos d'âmbar desmanchados, 12 Ou nos bicos agrestes dos silvados, 14 Que a cauda solevasse aos teus vestidos; 16 Uni delírios d'amor, entristecidos;

60

Page 202: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

E no pomar, nós dois, ombro com ombro, Caminhávamos sós e de mãos dadas, Beijando os nossos rostos sem assombro, E colorindo as faces desbotoadas.

5 Quando, Helena, bebíamos, curvados, As águas nos ribeiros remansosos, E, nas sombras, olhando os céus amados, Contávamos os astros luminosos.

Quando, uma noite, em êxtases caímos

10 Ao sentir o chorar dalgumas fontes, E os cânticos das rãs que sobre os limos

Quebravam a solidão dos altos montes.

E assentados nos rudes escabelos, Sob os arcos de muna e sobre as relvas,

15 Longamente sonhámos sonhos belos, Sentindo a fresquidão das verdes selvas.

Quando ao nascer da aurora, unidos ambos Num amor grande como um mar sem praias, Ouvíamos os meigos ditirambos

20 Que os rouxinóis teciam nas olaias.

Na edição de Silva Pinto:

E colorindo as faces desbotadas; Quadras suprimidas. Ouvíamos os meigos ditirambos,

Que os rouxinóis teciam nas o/aias,

61

61

Page 203: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

E, afastados da aldeia e dos casais, Eu contigo, abraçado como as heras, Escondidos nas ondas dos trigais, Devolvia-te os beijos que me deras.

5 Quando, se havia lama no caminho, Eu te levava ao colo sobre a greda,

E o teu corpo nevado como arminho Pesava menos que um papel de seda.

* Talvez já te esquecesses dos poemetos,

10 Revoltos como os bailes do Casino, E daqueles byrónicos sonetos Que eu gravei no teu peito alabastrino.

De tudo certamente te esqueceste, Porque tudo no mundo morre e muda, 15 E agora és triste e só como um cipreste, E como a campa jazes fria e muda.

Esqueceste sim, meu sonho querido, Que o nosso belo e lúcido passado Foi um único abraço comprimido,

20 Foi um beijo, por meses, prolongado.

Na edição de Silva Pinto: 4 Devolvia-te os beijos que me deras; 8 Pesava menos que um papel de seda ... 9 a 20 Quadras suprimidas.

62

Page 204: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

E foste sepultar-te, ó serafim, No claustro das Fiéis emparedadas, Escondeste o teu rosto de marfim No véu negro das freiras resignadas.

5 E eu passo tão calado como a Morte Nesta velha cidade tão sombria, Chorando aflitamente a minha sorte E prelibando o cálix da agonia.

E, tristíssima Helena, com verdade, 10 Se pudera na terra achar suplícios, Eu também me faria gordo frade

E cobriria a came de cilícios.

Porto, Diário da Tarde, 14 de Fevereiro de 1874.

Na edição de Silva Pinto:

5 E eu passo. tão calado como a Morte,

63

Page 205: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

11.2. / Esplêndida

Ei-la! Como vai bela! Os esplendores Do lúbrico Versailles do Rei-Sol Aumenta-os com retoques sedutores. É como o refulgir dum arrebol

5 Em sedas multicores.

Deita-se com languor no azul celeste Do seu landau forrado de cetim; E os seus negros corcéis, que a espuma veste, Sobem a trote a rua do Alecrim,

10 Velozes como a peste.

É fidalga e soberba. As incensadas Dubarry, Montespan e Maintenon Se a vissem ficariam ofuscadas. Tem a altivez magnética e o bom tom

15 Das cortes depravadas.

É clara como os pós à marecbala. E as mãos, que o Jock Club embalsamou, Entre peles de tigres as regala; De tigres que por ela apunhalou,

20 Um amante, em Bengala. -

É ducalmente esplêndida! A carruagem Vai agora subindo devagar; Ela, no brilhantismo da equipagem, Ela, de olhos cerrados, a cismar

25 Atrai como a voragem!

Os lacaios vão firmes na almofada; E a doce brisa dá-lhes de través Nas capas de borracha esbranquiçada, Nos chapéus com roseta, e nas librés

30 De forma aprimorada.

71

Page 206: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

E eu vou acompanhando-a, corcovado, No trottoir, como um doido, em convulsões, Febril, de colarinho amarrotado, Desejando ° lugar dos seus truões,

5 Sinistro e mal trajado.

E daria, contente e voluntário, A minha independência e o meu porvir, Para ser, eu Poeta solitário, Para ser, ó princesa sem sorrir,

10 Teu pobre trintanário.

E aos almoços magníficos do Mata Preferiria ir, fardado, aí, Ostentando galões de velha prata, E de costas voltadas para ti,

15 Formosa aristocrata!

Lisboa.

Lisboa, Diário de Notícias, 22 de Março de 1874.

11 João da Mata, proprietário dum restaurante situado na Rua do

Page 207: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

16. / Deslumbramentos * s.

Milady, é perigoso contemplá-la Quando passa aromática e normal, Com seu tipo tão nobre e tão de sala, Com seus gestos de neve e de metal.

5 Sem que nisso a desgoste ou desenfade, Quantas vezes, seguindo-lhe as passadas, Eu vejo-a, com real solenidade,

Ir impondo toilettes complicadas!

Em si tudo me atrai como um tesoiro: 10 O seu ar pensativo e senhoril,

A sua voz que tem um timbre de oiro E o seu nevado e lúcido perfil!

Ah! Como me estonteia e me fascina ... E é, na graça distinta do seu porte,

15 Como a Moda supérflua e feminina, E tão alta e serena como a Morte! ...

Eu ontem encontrei-a, quando vinha, Britânica, e fazendo-me assombrar; Grande dama fatal, sempre sozinha,

20 E com firmeza e música no andar!

* Esta poesia foi enviada, a 25 de Janeiro de 1875,'a Macedo Papança, para publicação na revista Mosaico; (V. adiante, carta n.? 1 a Macedo Papança.) Isto não demonstra, como é evidente, que tivesse sido escrita nessa data. Por estes indícios, e pela sua temática, supomos ser possível asseverar que ela foi redigida entre fins de 1874 e princípios de 1875. Na edição de Silva Pinto foi retirada a abreviatura S.

Na edição de Silva Pinto: 1 Milady, é perigoso contemplá-la,

93

Page 208: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

o seu olhar possui, num jogo ardente, Um arcanjo e um demónio a iluminá-Io.. Como um florete, fere agudamente, E afaga como o pêlo dum regalo!

5 Pois bem. Conserve o gelo por esposo, E mostre, se eu beijar-lhe as brancas mãos, O modo diplomático e orgulhoso Que Ana de Áustria mostrava aos cortesãos. E enfim prossiga altiva como a Fama,

10 Sem sorrisos, dramática, cortante; Que eu procuro fundir na minha chama Seu ermo coração, como a um brilhante. Mas cuidado, milady, não se afoite, Que hão-de acabar os bárbaros reais;

15 E os povos humilhados, pela noite, Para a vingança aguçam os punhais . E um dia" ó flor do Luxo, nas estradas, Sob o cetim do Azul e as andorinhas, Eu hei-de ver errar, alucinadas,

20 E arrastando farrapos - as rainhas! Coimbra, Mosaico, n.º 6, Fevereiro de 1875 e Porto, A Folha Nova, 22 de Setembro de 1886.

Na edição de Silva Pito:

12 Seu ermo coração, como um brilhante.

Page 209: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

18. / Ironias do Desgosto

«Onde é que te nasceu» - dizia-me ela às vezes - «O horror calado e triste às cousas sepulcrais? «Porque é que não possuis a verve dos franceses «E aspiras em silêncio os frascos dos meus sais?

5 «Porque é que tens no olhar, moroso e persistente, «As sombras dum jazigo e as fundas abstracções, «E abrigas tanto fel no peito, que não sente

«O abalo feminil das minhas expansões?

«Há quem te julgue um velho. O teu sorriso é falso; 10 «Mas quando tentas rir parece então, meu bem, «Que estão edificando um negro cadafalso

«E ou vai alguém morrer ou vão matar alguém!

«Eu vim - não sabes tu? - para gozar em maio, «No campo, a quietação banhada de prazer!

15 «Não vês, ó descorado, as vestes com que saio, «E os júbilos, que abril acaba de trazer?

«Não vês como a campina é toda embalsamada «E como nos alegra em cada nova flor? «E então porque é que tens na fronte constemada

20 «Não sei que de tocante e de entemecedor?»

E eu só lhe respondia: - «Escuta-me. Conforme «Tu vibras os cristais da boca musical, «Vai-nos minando o tempo, o tempo - o cancro enorme «Que te há-de corromper o corpo de vestal.

Na edição de Silva Pinto:

4 «E aspiras, em silêncio, os frascos dos meus sais? 20 «Um 1140 sei quê tocante e enternecedor?

Na edição original:

15 «Não vês, ó descarado, as vestes com que saio Adoptou-se a versão de Silva Pinto.

98

Page 210: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

«E eu calmamente sei, na dor que me amortalha, «Que a tua cabecinha ornada à Rabagas, «A pouco e pouco há-de ir tomando-se grisalha «E em breve ao quente sol e ao gás alvejará!

5 «E eu que daria um rei por cada teu suspiro, «Eu que amo a mocidade e as modas fúteis, vãs, «Eu morro de pesar, talvez, porque prefiro «o teu cabelo escuro às veneráveis cãs!»

Lisboa, 1874.

Lisboa, A Tribuna, 26 de Setembro de 1875, e Porto, A Folha Nova, n.O 100,22 de Setembro de 1886.

99

Page 211: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

19. / Desastre

Ele ia numa maca, em ânsias, contrafeito, Soltando fundos ais e trémulos queixumes; Caíra dum andaime e dera com o peito, Pesada e secamente, em cima duns tapumes.

. 5 A brisa que balouça as árvores das praças, Como uma mãe erguia ao leito os cortinados, E dentro eu divisei o ungido das desgraças, Trazendo em sangue negro os membros ensopados.

Um preto, que sustinha o peso dum varal, 10 Chorava ao murmurar-lhe: «Homem não desfaleça!»

E um lenço esfarrapado em volta da cabeça Talvez lhe aumentasse a febre cerebral.

Flanavam pelo Aterro os dândis e as cocottes, Corriam char-à-bancs cheios de passageiros

15 E ouviam-se canções e estalos de chicotes, Junto à maré, no Tejo, e as pragas dos cocheiros.

Viam-se os quarteirões da Baixa: um bom poeta, A rir e a conversar numa cervejaria, Gritava para alguns: «Que cena tão faceta!

20 Reparem! Que episódio!» Ele já não gemia.

Findara honradamente. As lutas, afinal, Deixavam repousar essa criança escrava, E a gente da província, atónita, exclamava: «Que providências! Deus! Lá vai para o hospital!»

9 Aquilo que se lê no fac-símile publicado por Alberto Moreira em Cesârio Verde e a «Cidade Heróica», Porco, 1963, p. 22, é « ..• o peso duma vara», mas a rima com cerebral impõe varal. Deve tratar-se de gralha.

100

Page 212: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

Por onde o morto passa há grupos, murmurinhos; Mornas essências vêm duma perfumaria, E cheira a peixe frito um armazém de vinhos, Numa travessa escura em que não entra o dia!

5 Um fidalgote brada a duas prostitutas: «Que espantos! Um rapaz servente de pedreiro!» Bisonhos, devagar, passeiam uns recrutas E conta-se o que foi na loja dum barbeiro.

Era enjeitado, o pobre. E, para não morrer, 10 De bagas de suor tinha uma vida cheia; Levava a um quarto andar cochos de cal e, areia,

Não conhecera os pais, nem aprendera a ler.

Depois da sesta, um pouco estonteado e fraco, Sentira a exalação da tarde abafadiça;

15 Quebravam-lhe o corpinho o fumo do tabaco E o fato remendado e sujo da caliça.

Gastara o seu salário - oito vinténs ou menos -, Ao longe o mar, que abismo! e o sol, que labareda! «Os vultos, lá em baixo, oh! como são pequenos!»

20 E estremeceu, rolou nas atracções da queda.

O mísero a doença, as privações cruéis Soubera repelir - ataques desumanos! Chamavam-lhe garoto! E apenas com seis anos Andara a apregoar diários de dez-réis.

25 Anoitecia então. O féretro sinistro Cruzou com um coupé seguido dum correio, E um democrata disse: «Aonde irás, ministro! Comprar um eleitor? Adormecer num seio?»

101

Page 213: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

E eu tive uma suspeita. Aquele cavalheiro, - Conservador, que esmaga o povo com impostos-, Mandava arremessar - que gozo! estar solteiro! - Os filhos naturais à roda dos expostos ...

5 Mas não, não pode ser ... Deite-se um grande véu ... De resto, a dignidade e a corrupção ... que sonhos! Todos os figurões cortejam-no risonhos E um padre que ali vai tirou-lhe o solidéu.

E o desgraçado? Ah! Ah! Foi para a vala imensa; 10 Na tumba, e sem o adeus dos rudes camaradas:

Isto porque o patrão negou-lhes a licença, O inverno estava à porta e as obras atrasadas.

E antes, ao soletrar a narração do facto, Vinda numa local hipócrita e ligeira,

15 Berrara ao empreiteiro, um tanto esrupefacto: «Morreu!? Pois não caísse! Alguma bebedeira!»

Lisboa.

Porco, O Poria, 30 de Outubro de 1875; reproduzido em Alberto Moreira, ob. cit. .

102

Page 214: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

21. / A Débil *

Eu, que sou feio, sólido, leal, A ti, que és bela, frágil, assustada, Quero estimar-te, sempre, recatada Numa existência honesta, de cristal.

5 Sentado à mesa dum café devasso, Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura, Nesta Babel tão velha e corruptora, Tive tenções de oferecer-te o braço.

E, quando deste esmola a um miserável, 10 Eu, que bebia cálices de absinto,

Mandei ir a garrafa, porque sinto Que me tomas prestante, bom, saudável.

«Ela aí vem!» disse eu para os demais; E pus-me a olhar, vexado e suspirando, 15 O teu corpo que pulsa, alegre e brando, Na fresquidão dos linhos matinais.

Via-te pela porta envidraçada; E invejava - talvez que o não suspeites! - Esse vestido simples sem enfeites,

20 Nessa cintura tenra, imaculada.

Ia passando, a quatro, o patriarca. Triste, eu deixei o botiquim, à pressa; Uma turba ruidosa, negra, espessa, Voltava das exéquias dum monarca.

* Título inicial desta poesia segundo autógrafo enviado ao Conde de Monsaraz: Na Cidade.

Na edição de Silva Pinto:

9 E, quando socorreste um miserável, 16 Na frescura dor linhos matinais. 22 Triste eu sai. Doia-me a cabeça;

111

Page 215: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

Adorável! Tu, muito natural, Seguias a pensar no teu bordado; A vultava, num largo arborizado, U ma estátua de rei num pedestal.

5 Sorriam, nos seus trens, os titulares; E ao claro sol, guardava-te, no entanto, A tua boa mãe, que te ama tanto, Que não te morrerá sem te casares!

Soberbo dia! Impunha-me respeito 10 A limpidez do teu semblante grego; E uma família, um ninho de sossego, Desejava beijar sobre o teu peito.

Com elegância e sem ostentação, Atravessavas branca, esvelta e fina, 15 Uma chusma de padres de batina, E de altos funcionários da nação.

«Mas se a atropela o povo turbulento! Se fosse, por acaso, ali pisada!» De repente, paraste embaraçada

20 Ao pé dum numeroso ajuntamento.

E eu, que urdia estes fáceis esbocetos, Julguei ver, com a vista de poeta, Uma pombinha tímida e quieta

Num bando ameaçador de corvos pretos.

Na edição de Silva Pinto:

Adorável! Tu muito natural

Sorriam nos seus trem ar titulares;

No autógrafo: Atravessavas branca, esbelta e fina, Mar re t'esmaga o povo turbulento!

De repente paraste, embaraçado,

112

Page 216: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

E foi, então, que eu, homem varonil, Quis dedicar-te a minha pobre vida, A ti, que és ténue, dócil, recolhida, Eu, que sou hábil, prático, viril.

Lisboa, IR75.

Coimbra, A Evolução, 11." I, Novembro de 1876.

Na publicação original e na edição de Silva Pinto: E foi, então, que eu homem varonil,

No autógrafo:

. 1 E foi, então, que eu homem varonil

113

Page 217: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

22. / Humilhações De todo o coração - a Silva Pinto

Esta aborrece quem é pobre. Eu, quase Job, Aceito os seus desdéns, seus ódios idolatro-os; E espero-a nos salões dos principais teatros,

Todas as noites, ignorado e só.

5 Lá cansa-me o ranger da seda, a orquestra, o gás; As damas, ao chegar, gemem nos espartilhos, E enquanto vão passando as cortesãs e os brilhos, Eu analiso as peças no cartaz.

N a representação dum drama de Feuillet, 10 Eu aguardava, junto à porta, na penumbra, Quando a mulher nervosa e vã que me deslumbra Saltou soberba o estribo do coupé.

Como ela marcha! Lembra um magnerizador. Roçavam no veludo as guamições das rendas; 15 E, muito embora eu, burguês, me não emendas, Fiquei batendo os dentes de terror.

Sim! Porque não podia abandoná-la em paz!

minha pobre bolsa, amortalhou-se a ideia De vê-Ia aproximar, sentado na plateia, 20 De tê-la num binóculo mordaz!

Eu ocultava o fraque usado nos botões; Cada contratador dizia em voz rouquenha: - Quem compra algum bilhete ou vende alguma senha? E ouviam-se cá fora as ovações.

114

Page 218: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

Que desvanecimento! A pérola do Tom! As outras ao pé dela imitam de bonecas; Têm- menos melodia as harpas e as rabecas,

Nos grandes espectáculos do Som.

5 Ao mesmo tempo, eu não deixava de a abranger; Via-a subir, direita, a larga escadaria

E entrar no camarote. Antes estimaria Que o chão se abrisse para me abater.

Saí; mas ao sair senti-me atropelar. 10 Era um municipal sobre um cavalo. A guarda Espanca o povo. Irei-me; e eu, que deresto a farda, Cresci com raiva contra o militar.

De súbito, fanhosa, infecta, rota, má, Pôs-se na minha frente uma velhinha suja, 15 E disse-me, piscando os olhos de coruja:

- Meu bom senhor! Dá-me um cigarro? Dá?

Lisboa, O livro de Cesário Verde, 1887.

Até agora, não se encontrou qualquer versão anterior. Silva Pinto em Controvérsias e Estudos literários, Porco, 1878, p. 162, afirma: «Cesário Verde, o poeta dos Cantos de Tristeza, das Humilhações e de Num Bairro Moderno [ ... ]». Logo, uma datação aproximada.

115

Page 219: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

23. / Num Bairro Moderno A Manuel Ribeiro

Dez horas da manhã; os transparentes Matizam uma casa apalaçada; Pelos jardins estancam-se as nascentes, E fere a vista, com brancuras quentes,

5 A larga rua macadamizada.

Rez-de-chaussée repousam sossegados, Abriram-se, nalguns, as persianas, E dum ou doutro, em quartos estucados, Ou entre a rama dos papéis pintados,

10 Reluzem, num almoço, as porcelanas.

Como é saudável ter o seu conchego, E a sua vida fácil! Eu descia, Sem muita pressa, para O meu emprego, Aonde agora quase sempre chego

15 Com as tonturas duma apoplexia.

E rota, peque nina, azafamada, Notei de costas uma rapariga, Que no xadrez marmóreo duma escada, Como um retalho de horta aglomerada,

20 Pousara, ajoelhando, a sua giga.

E eu, apesar do sol, examinei-a: Pôs-se de pé; ressoam-lhe os tamancos; E abre-se-lhe o algodão azul da meia, Se ela se curva, esgadelhada, feia,

25 E pendurando os seus bracinhos brancos.

Na edição de Silva Pinto:

3 Pelos jardins estancam-se os nascentes, que, aliás, repete a primitiva publicação.

Na 3ª edição de O Livro, o verso é o seguinte: Pelos jardins estacam-se os nascentes,

6 Rez-de-chaussée repousam sossegados, 22 Pôs-se de pé: ressoam-lhe os tamancos; 24 Se ela se curva, esguedelbada, feia,

116

Page 220: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

Do patamar responde-lhe um criado: «Se te convém, despacha; não converses. Eu não dou mais.» E muito descansado, Atira um cobre ignóbil, oxidado,

5 Que vem bater nas faces duns alperces.

Subitamente, - que visão de artista! - Se eu transformasse os simples vegetais, A luz do sol, o intenso colorista, Num ser humano que se mova e exista

10 Cheio de belas proporções carnais?!

Bóiam aromas, fumos de cozinha; Com o cabaz às costas, e vergando, Sobem padeiros, claros de farinha; E às portas, uma ou outra campainha

15 Toca, frenética, de vez em quando.

E eu recompunha, por anatomia, Um novo corpo orgânico, aos bocados. Achava os tons e as formas. Descobria U ma cabeça numa melancia,

20 E nuns repolhos seios injectados.

As azeitonas, que nos dão o azeite, Negras e unidas, entre verdes folhas, São tranças dum cabelo que se ajeite; E os nabos - ossos nus, da cor do leite,

25 E os cachos de uvas - os rosários de olhos.

Na edição de Silva Pinto:

. 4 Atira um cobre lívido, oxidado,

117

Page 221: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

Há colos, ombros, bocas, um semblante Nas posições de certos frutos. E entre As hortaliças, túmido, fragrante, Como de alguém que tudo aquilo jante,

5 Surge um melão, que me lembrou um ventre.

E, como um feto, enfim, que se dilate, Vi nos legumes carnes tentadoras, Sangue na ginja vívida, escarlate, Bons corações pulsando no tomate

10 E dedos hirtos, rubros, nas cenouras.

o sol dourava o céu. E a regateira, Como vendera a sua fresca alface E dera o ramo de hortelã que cheira, Voltando-se, gritou-me, prazenteira:

15 «Não passa mais ninguém! ... Se me ajudasse?! ... »

Eu acerquei-me dela, sem desprezo; E, pelas duas asas a quebrar, Nós levantámos todo aquele peso Que ao chão de pedra resistia preso,

20 Com um enorme esforço muscular.

«Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!» E recebi, naquela despedida, As forças, a alegria, a plenitude, Que brotam dum excesso de virtude

25 Ou duma digestão desconhecida.

Na edição de Silva Pinto:

li Sangue na ginja vivida, escarlate, A emenda de vivida para vivida, de Cabral du Nascimento, é pertinente.

14 Voltando-se, gritou-me prazenteira:

118

Page 222: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

E enquanto sigo para o lado oposto, E ao longe rodam umas carruagens, A pobre afasta-se, ao calor de agosto, Descolorida nas maçãs do rosto,

5 E sem quadris na saia de ramagens.

Um pequerrucho rega a trepadeira Duma janela azul; e, com o ralo Do regador, parece que joeira Ou que borrifa estrelas; e a poeira

10 Que eleva nuvens alvas a incensá-lo.

Chegam do gigo emanações sadias, Oiço um canário - que infantil chilrada! - Lidam ménages entre as gelosias, E o sol estende, pelas frontarias,

15 Seus raios de laranja destilada.

E pitoresca e audaz, na sua chita, O peito erguido, os pulsos nas ilhargas, Dum? desgraça alegre que me incita, Ela apregoa, magra, enfezadita,

20 As suas couves repolhudas, largas.

E, como as grossas pernas dum gigante, Sem tronco, mas atléticas, inteiras, Carregam sobre a pobre caminhante, Sobre a verdura rústica, abundante,

25 Duas frugais abóboras carneiras.

Lisboa, Verão de 1877. Lisboa, Brinde aos Senhores Assinantes do Diário de Noticias em 1877. Publicado, portanto, em 1878.

Na edição de Silva Pinto: . 21 E como as grossas pernas dum gigante,

119

Page 223: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

26. / Cristalizações A Bettencourt Rodrigues, meu amigo *

Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiros,

Vibra uma imensa claridade crua. De cócaras, em linha, os calceteiros, Com lentidão, terrosos e grosseiros, 5 Calçam de lado a lado a longa rua.

Como as elevações secaram do relento, E o descoberto sol abafa e cria!

A frialdade exige o movimento; E as poças de água, como um chão vidrento,

10 Reflectem a molhada casaria.

Em pé e perna, dando aos rins que a marcha agita, Disseminadas, gritam as peixeiras;

Luzem, aquecem na manhã bonita, Uns barracões de gente pobrezita,

15 E uns quintalórios velhos, com parreiras.

Não se ouvem aves; nem o choro duma nora! Tomam por outra parte os viandantes; E o ferro e a pedra - que união sonora! - Retinem alto pelo espaço fora,

20 Com choques rijos, ásperos, cantantes.

Na edição de Silva Pinto: * Embora a poesia continue dedicada a Bettencourt Rodrigues, meu amigo não existe.

3 De côcaras, em linha os calceteiros, 5 Calcam de lado a lado a longa rua. 9 E as poças d'água, como em chão vidrento,

14 Uns barracões de gente pobrezita. 15 E uns quintalórios velhos com parreiras.

122

Page 224: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

Bom tempo. E os rapagões, morosos, duros, baços, Cuja coluna nunca se endireita,

Partem penedos. Voam-lhe estilhaços. Pesam enormemente os grossos maços,

5 Com que outros batem a calçada feita.

A sua barba agreste! A lã dos seus barretes! Que espessos forros! Numa das regueiras Acamam-se as japonas, os coletes; E eles descalçam com os picaretes,

10 Que ferem lume sobre pederneiras.

E nesse rude mês, que não consente as flores, Fundeiam, como esquadra em fria paz, As arvores despidas. Sóbrias cores! Mastros, enxárcias, vergas! Valadores 15 Atiram terra com as largas pás.

Eu julgo-me no Norte, ao frio - o grande agente! –

Carros de mão, que chiam carregados, Conduzem saibro, vagarosamente; Vê-se a cidade, mercantil, contente:

20 Madeiras, águas, multidões, telhados!

Negrejam os quintais; enxuga a alvenaria; Em arco, sem as nuvens flutuantes,

. O céu renova a tinta corredia; E os charcos brilham tanto que eu diria

25 Ter ante mim lagoas de brilhantes!

Na edição de Silva Pinto:

3 Partem penedos; cruzam-se estilhaços. 8 Acamam-se as japonas, os coletes:

12 Fundeiam, como a esquadra em fria paz, 21 Negrejam os quintais, enxuga a alvenaria; 24 E os charcos brilham tanto, que eu diria

123

Page 225: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

E engelhem muito embora, os fracos, os tolhidos, Eu tudo encontro alegremente exacto.

Lavo, refresco, limpo os meus sentidos, E tangem-me, excitados, sacudidos,

'5 O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto!

Pede-me o corpo inteiro esforços na friagem

De tão lavada e igual temperatura!

Os ares, o caminho, a luz reagem; Cheira-me a fogo, a sílex, a ferragem;

10 Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura.

Mal encarado e negro, um pára enquanto eu passo;

Dois assobiam, altas as marretas Possantes, grossas, temperadas de aço; E um gordo, o mestre, com ar ralasso

15 E manso, tira o nível das valetas.

Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas! Que vida tão custosa! Que diabo! E os cavadores descansam as enxadas, E cospem nas calosas mãos gretadas,

20 Para que não lhes escorregue o cabo.

Povo! No pano cru rasgado das camisas

Uma bandeira penso que transluz!

Com ela sofres, bebes, agonizas: Listrões de vinho lançam-lhe divisas,

25 E os suspensórios traçam-lhe uma cruz!

De escuro, bruscamente, ao cimo da barroca, Surge um perfil direito que se aguça;

E ar matinal de quem saiu da toca, U ma figura fina desemboca,

30 Toda abafada num casaco à russa.

Na edição de Silva Pinto:

3 Lavo, refresco, limpo os meus sentidos. 14 E um gordo, o mestre, com um ar ralasse 18 E os cavadores pousam as enxadas,

29 Quer na impressão original quer em O Livro de Cesário Verde: Uma figura fina, desemboca,

124

Page 226: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

Donde ela vem! A actriz que eu tanto cumprimento; E a quem, à noite, na plateia, atraio

Os olhos lisos como polimento! Com seu rostinho estreito, friorento,

5 Caminha agora para o seu ensaio.

E aos outros eu admiro os dorsos, os costados

Como lajões. Os bons trabalhadores! Os filhos das lezírias, dos montados: Os das planícies, altos, aprumados;

10 Os das montanhas, baixos, trepadores!

Mas fina de feições, o queixo hostil, distinto, Furtiva a tiritar em suas peles,

Espanta-me a actrizita que hoje pinto,

Neste dezembro enérgico, sucinto, 15 E nestes sítios suburbanos, reles!

Como animais comuns, que uma picada esquente,

Eles, bovinos, másculos, ossudos, Encaram-na sanguínea, brutamenre; E ela vacila, hesita, impaciente

20 Sobre as botinas de tacões agudos.

Porém, desempenhando o seu papel na peça,

Sem que inda o público a passagem abra,

O demonico arrisca-se, atravessa Covas, entulhos, lamaçais, depressa,

25 Com seus pezinhos rápidos, de cabra!

Lisboa, Inverno de 1878.

Coimbra, Revista de Coimbra, n.? 1, Maio de 1879; republicada em Correspondência de Coimbra, 17 de Junho de 1879.

Na edição de Silva Pinto: 1 Donde ela vem! A actriz que tanto cumprimento 2 E a quem, à noite na plateia, atraio

18 Encaram-na sa11guinea, brutamente: 20 Sobre as botinhas de tacões agudos.

125

Page 227: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

27. / Noitada *

Lembras-te tu do sábado passado, Do passeio que demos, devagar, Entre um saudoso gás amarelado E as carícias leitosas do luar?

5 Eu lembro bem as altas ruazinhas, Que ambos nós percorremos, de mãos dadas; As janelas palravam as vizinhas; Tinham lívidas luzes as fachadas.

Não me esqueço das causas que disseste, 10 Ante um pesado templo com recortes;

E os cemitérios ricos, e o cipreste Que vive de gorduras e de mortes!

Nós saíramos próximo ao sol-posto, Mas seguíamos cheios de demoras;

15 Não me esqueceu ainda o meu desgosto Nem o sino rachado que deu horas.

Tenho ainda gravado no sentido, Porque tu caminhavas com prazer, Cara rapada, gordo e presumido,

20 O padre que parou para te ver.

Como uma mirra a cúpula da igreja Cobria parte do ventoso largo; E essa boca viçosa de cereja, T areia risos com sabor amargo.

* Título em O Livro de Cesârio Verde: Noite Fechada. Ali, entre o título e o texto, há uma abreviatura: (L)

Na edição de Silva Pinto:

5 Bem me lembro das altas ruazinhas, . 6 Que ambos nós percorremos de mãos dadas:

126

Page 228: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

A lua dava trémulas brancuras. Eu ia cada vez mais magoado; Vi um jardim com árvores escuras, Como uma jaula todo gradeado!

5 E para te seguir entrei contigo Num pátio velho que era dum canteiro, E onde, talvez, se faça inda o jazigo Em que eu irei apodrecer primeiro!

Eu sinto ainda a flor da tua pele, 10 Tua luva, teu véu, o que tu és!

Não sei que tentação é que te impele Os pequeninos e cansados pés.

Sei que em tudo atentavas, tudo vias! Eu por mim tinha pena dos marçanos, 15 Como ratos, nas gordas mercearias, Encafurnados por imensos anos!

Tu sorrias de tudo: os carvoeiros Que aparecem ao fundo dessas ruínas, E à crua luz os pálidos barbeiros

20 Com óleos e maneiras femininas!

Fins de semana! Que miséria em bando! O povo folga, estúpido e grisalho! E os artistas de ofício iam passando, Com as férias, ralados do trabalho.

25 O quadro interior, dum que à candeia, Ensina a filha a ler, meteu-me dó! Gosto mais do plebeu que cambaleia, Do bêbado feliz que fala só!

Na edição de Silva Pinto: 17 Tu sorriras de tudo: Os carvoeiros,

Mas logo na L' reedição do poema (A ILustração, Julho de 1887) sorriras é emendado para somas.

18 Que aparecem ao fundo dumas minas,

127

Page 229: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

De súbito, na volta de uma esquina, Sob um bico de gás que abria em leque, Vimos um militar, de barretina E dourados galões de pechisbeque.

·5 E enquanto ele falava ao seu namoro, Que morava num prédio de azulejo, Nos nossos lábios retiniu em coro Um vigoroso e estrepitoso beijo!

E assim ao meu capricho abandonada, 10 Errámos por travessas, por vielas,

E passámos por pé duma tapada E um palácio real com sentinelas.

E eu que busco a moderna e fina arte, Sobre a umbrosa calçada sepulcral,

15 Tive a rude intenção de violentar-te Imbecilmente como um animal!

Mas ao rumor dos ramos e da aragem, Como longíquos bosques muito ermos, Tu querias no meio da folhagem

20 Um ninho enorme para nós vivermos.

E ao passo que eu te ouvia abstractamente, grande pomba tépida que arrulha, Vinham batendo o macadam fremente, As patadas sonoras da patrulha.

Na edição de Silva Pinto;

4 E galões marciais de pechisbeque, 7 Nos nossos lábios retiniu sonoro 8 Um vigoroso e formidável beijo!

24 As patadas sonoras da patrulha,

128

Page 230: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

E através a imortal cidadezinha, Nós fomos ter às portas, às barreiras, Em que uma negra multidão se apinha De tecelões, de fumos, de caldeiras.

5 Mas a noite dormente e esbranquiçada Era uma esteira lúcida de amor;

jovial senhora perfumada, terrível criança! Que esplendor!

E ali começaria o meu desterro! .,. 10 Lodoso o rio, e glacial, corria;

Sentámo-nos, os dois, num novo aterro Na muralha dos cais de cantaria.

Nunca mais amarei já que não amas, E é preciso, decerto, que me deixes! 15 Toda a maré luzia como escamas, Como alguidar de prateados peixes.

E como é necessário que eu me afoite A perder-me de ti por quem existo, Eu fui passar ao campo aquela noite

20 E andei léguas a pé pensando nisto.

E tu que não serás somente minha, As carícias leitosas do luar, Recolheste-te, pálida e sozinha, A gaiola do teu terceiro andar!

1879.

Lisboa, Novidades, 24 de Agosto de 1879, sob o pseudónimo de Cláudio.

Na edição de Silva Pinto:

13 Nunca mais amarei,já que não amas, 15 Toda a maré luzida como escamas, 20 E andei léguas a pé, pensando nisto. 23 Recolheste-te, pálida e sozinha

Quer na primeira impressão quer na versão de Silva Pinto, não há vírgula após sozinha.

129

Page 231: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

29/ Em Petiz

I De tarde

Mais morta do que viva, a minha companheira Nem força teve em si para soltar um grito; E eu, nesse tempo, um destro e bravo rapazito, Como um homenzarrão servi-lhe de barreira!

5 Em meio de arvoredo, azenhas e ruínas, Pulavam para a fonte as bezerrinhas brancas; E, tetas a abanar, as mães, de largas ancas, Desciam mais atrás, malhadas e turinas.

Do seio do lugar - casitas com postigos - 10 Vem-nos o leite. Mas baptizam-no primeiro.

Leva-o, de madrugada, em bilhas, o leiteiro, Cujo pregão vos tira ao vosso sono, amigos!

Nós dávamos, os dois, um giro pelo vale: Várzeas, povoações, pegos, silêncios vastos! 15 E os fartos animais, ao recolher dos pastos, Roçavam pelo teu «costume de percale».

Já não receias tu essa vaquita preta, Que eu segurei, prendi por um chavelho? Juro Que estavas a tremer, cosida com o muro,

20 Ombros em pé, medrosa, e fina, de luneta!

No original impresso: 1 . Mais morta do que viva, a minha companheira,

12 Cujo pregão vos tira o vosso sono, amigos.' Adaptou-se, nos dois casos, a versão de Silva Pinto.

131

Page 232: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

II Os irmãozinbos

Pois eu, que no deserto dos caminhos, Por ti me expunha imenso contra as vacas; Eu, que apartava as mansas das velhacas, Fugia com terror dos pobrezinhos!

5 Vejo-os no pátio, ainda! Ainda os ouço! Os velhos que nos rezam padre-nossos; Os mandriões que rosnam, altos, grossos; E os cegos que se apoiam sobre o moço.

Ah! Os ceguinhos com a cor dos barros, 10 Ou que a poeira no suor mascarra, Chegam das feiras a tocar guitarra, Rolam os olhos como dois escarros!

E os pobres metem medo! Os de marmita, Para forrar, por ano, alguns patacos,

15 Entrapam-se nas mantas com buracos, Choramingando, a voz rachada, aflita.

Outros pedincham pelas cinco chagas; E no poial, tirando as ligaduras, Mostram as pernas pútridas, maduras,

20 Com que se arrastam pelas azinhagas!

Querem viver! E picam-se nos cardos; Correm as vilas; sobem os outeiros; E às horas de calor, nos esterqueiros, De roda deles zumbem os moscardos.

Na edição de Silva Pinto:

2 Por ti me expunha imenso, contra as vacas; 6 Os velhos, que nos rezam padre- nossos;

132

Page 233: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

Aos sábados, os monstros que eu lamento, Batiam ao portão com seus cajados; E um aleijado com os pés quadrados, Pedia-nos de cima de um jumento.

5 O resmungão! Que barbas! Que sacolas! Cheirava a migas, a bafio, a arrotos; Dormia as noites por telheiros rotos, E sustentava o burro a pão de esmolas.

*

Ó minha loura e doce como um bolo! 10 Afável hóspeda na nossa casa,

Logo que a tórrida cidade abrasa, Como um enorme fomo de tijolo!

Tu visitavas, esmoler, garrida, U mas crianças num casal queimado; 15 E eu, pela estrada, espicaçava o gado, Numa atitude esperta e decidida.

Por lobisomens, por papões, por bruxas, Nunca sofremos o menor receio. T emíeis vós, porém, o meu asseio,

20 Mendigazitas sórdidas, gorduchas!

Vícios, sezões, epidemias, furtos, Decerto, fermentavam entre lixos; Que podridão cobria aqueles bichos! E que luar os teus farinhos curtos!

Na edição de Silva Pinto:

1 Aos sábados, os monstros, que eu lamento, 7 Dormia as noutes por telbeiros rotos,

24 E que luar lias teus fatinhos curtos.'

133

Page 234: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

* Sei de uma pobre, apenas, sem desleixos, Ruça, descalça, a trote nos atalhos, E que lavava o corpo e os seus retalhos No rio, ao pé dos choupos e dos freixos.

5 E a douda a quem chamavam a «Ratada» E que falava só! Que antipatia!

E se com ela a malta contendia, Quanta indecência! Quanta palavrada!

Uns operários, nestes descampados, 10 Também surdiam, de chapéu de coco,

Dizendo-se, de olhar rebelde e louco, Artistas despedidos, desgraçados.

Muitos! E um bêbedo - o Camões - que fora Rico, e morreu a mendigar, zarolho,

15 Com uma pala verde sobre um olho! Tivera ovelhas, bois, mulher, lavoura.

E o resto? Bandos de se1vagenzinhos: Um nu que se gabava de maroto; Um, que cortada a mão, coçava o coto,

20 E os bons que nos tratavam por padrinhos.

Pediam faros, botas, cobertores! Outro jogava bem o pau, e vinha Chorar, humilde, junto da cozinha: «Cinco-reizinhos! ... Nobres benfeitores! ... »

Na edição de Silva Pinto:

23 Chorar, humilde, junto da cozinha!

134

Page 235: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

E quando alguns ficavam nos palheiros, E de manhã catavam os piolhos; Enquanto o sol batia nos restolhos E os nossos cães ladravam, rezingueiros!

5 Hoje entristeço. Lembro-me dos coxos, Dos surdos, dos manhosos, dos manetas. Socavam as calçadas, as muletas; Cantavam, no pomar, os pintarroxos!

III

Histórias

Cismático, doente, azedo, apoquentado, 10 Eu agourava o crime, as facas, a enxovia,

Assim que um besuntão dos tais se apercebia Da minha blusa azul e branca de riscado.

Mináveis-me, ao serão, a cabecita loira, Com contos de província, ingénuas criaditas: 15 Quadrilhas assaltando as quintas mais, bonitas, E pondo a gente fina, em postas, de salmoira!

Na noite velha, a mim, como tições ardendo, Fitavam-me os olhões pesados das ciganas; Deitavam-nos o fogo aos prédios e arribanas;

20 Cercava-me um incêndio ensanguentado, horrendo.

Na edição de Silva Pinto:

2 E de manhã catavam os piolhos: 7 Sulcavam as calçadas, as muletas;

Esta versão tem sido repetida até hoje. 12 Da minha blusa azul e branca, de riscado. 13 Mináveis, ao serão, a cabecita loira,

135

Page 236: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

E eu que era um cavalão, eu que fazia pinos, Eu que jogava a pedra, eu que corria tanto; Sonhava que os ladrões - homens de quem me espanto - Roubavam para azeite a carne dos meninos!

5 E protegia-te eu, naquele outono brando, Mal tu sentias, entre as serras esmoitadas, Gritos de maiorais, mugidos de boiadas, Branca de susto, meiga, e míope, estacando!

Linda-a-Pastora, 1878.

Lisboa, Diário de Notícias, 29 de Setembro de 1879.

Na edição de Silva Pinto: 8 Branca de susto, meiga e míope, estacando!

136

Page 237: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

31.2. / O Sentimento dum Ocidental

A Guerra Junqueiro *

I Ave-Manas **

Nas nossas ruas, ao anoitecer, Há tal soturnidade, há tal melancolia, Que as sombras, o bulício, o T ejo, a maresia Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

5 O céu parece baixo e de neblina, O gás extravasado enjoa-me, perturba; . E os edifícios, com as chaminés, e a turba Toldam-se duma cor monótona e londrina.

Batem os carros de aluguer, ao fundo, 10 Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!

Ocorrem-me em revista exposições, países: Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros, As edificações somente emadeiradas:

15 Como morcegos, ao cair das badaladas, Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.

Voltam os calafates, aos magotes, De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos; Embrenho-me, a cismar, por boqueirões, por becos, 20 Ou erro Pelos cais a que se atracam botes.

* Nas duas publicações anteriores à recolha em O Livro de Cesário Verde (in Portugal a Camões e A Ilustração) não existe a dedicatória. ** Este subtítulo aparece, pela primeira vez, na edição de Silva Pinto,

Na primitiva publicação:

4 Despertam um desejo absurdo de sofrer. 6 O gás extravasado enjoa-nos, perturba;

11 Ocorrem-me em revista, exposições, países:

149

Page 238: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

E evoco, então, as crónicas navais: Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado! Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado! Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

5 E o fim da tarde inspira-me; e incomoda! De um couraçado inglês vogam os escaleres; E em terra num tinir de louças e talheres Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.

Num trem de praça arengam dois dentistas; 10 Um trôpego arlequim braceja numas andas;

Os querubins do lar flutuam nas varandas; As portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

Vazam-se os arsenais e as oficinas; Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras; 15 E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras, Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Vêm sacudindo as ancas opulentas! Seus troncos varonis recordam-me pilastras; E algumas, à cabeça, embalam nas canastras

20 Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

Descalças! Nas descargas de carvão, Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;

E apinham-se num bairro aonde miam gatas, E o peixe podre gera os focos de infecção!

Na edição de Silva Pinto: 3 Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!

tal como na impressão original. Na segunda edição de O livro de Cesário Verde (1901) e na terceira (1911): Luta Camões no mar, salvando um livro, a nado!

20 Os filhos que depois naufragam nas tormentas,

150

Page 239: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

II Noite Fechada *

Toca-se às grades, nas cadeias. Som Que mortifica e deixa umas loucuras mansas! O Aljube, em que hoje estão velhinhas e crianças, Bem raramente encerra uma mulher de «dom»!

5 E eu desconfio, até, de um aneurisma, Tão mórbido me sinto, ao acender das luzes; A vista das prisões, da velha Sé, das Cruzes, Chora-me o coração que se enche e que se abisma.

A espaços, iluminam-se os andares, 10 E as tascas, os cafés, as tendas, os estancas

Alastram em lençol os seus reflexos brancos; E a lua lembra o circo e os jogos malabares.

Duas igrejas, num saudoso largo, Lançam a nódoa negra e fúnebre do clero:

15 Nelas esfumo um ermo inquisidor severo, Assim que pela História eu me aventuro e alargo.

Na parte que abateu no terremoto; Muram-me as construções rectas, iguais, crescidas; Afrontam-me, no resto, as íngremes subidas,

20 E os sinos dum tanger monástico e devoto.

* Este subtítulo aparece, pela primeira vez, na edição de 'Silva Pinto.

Na edição de Silva Pinto: Toca-se as grades, nas cadeias. Som tal como na primeira impressão. Este erro de concordância repetiu-se em todas as reedições. Não é admissivel que Cesário o tivesse cometido. Deve ter havido gralha, de origem, que

transformou «às» em «as». / 3 e 7 «O aljube», «da velha sé», «das cruzes»,

O que se tem repetido, com excepção de «sé» que se tem maiusculado. - Ora, a/jube e cruzes estão no mesmo caso. Sugestão muito pertinente de Armindo Rodrigues.

Na primitiva publicação:

18 Muram·se as construções rectas, iguais, crescidas;

151

Page 240: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

Mas, num recinto público e vulgar, Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras, Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras, Um épico doutrora ascende, num pilar!

5 E eu sonho o Cólera, imagino a Febre, Nesta acumulação de corpos enfezados; Sombrios e espectrais recolhem os soldados; Inflama-se um palácio em face de um casebre.

Partem patrulhas de cavalaria 10 Dos arcos dos quartéis que foram já conventos;

Idade Média! A pé, outras, a passos lentos, Derramam-se por toda a capital, que esfria.

Triste cidade! Eu temo que me avives U ma paixão defunta! Aos lampiões distantes, 15 Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes, Curvadas a sorrir às montras dos ourives.

E mais: as costureiras, as floristas Descem dos magasins, causam-me sobressaltos; Custa-lhes a elevar os seus pescoços altos

20 E muitas delas são comparsas ou coristas.

E eu, de luneta de uma lente só, Eu acho sempre assunto a quadros revoltados: Entro na brasserie; às mesas de emigrados, Ao riso e à crua luz joga-se o dominó.

Na primitiva publicação:

7 Sombrios e espectrais recolhem os soldados, 15 Enlutam-me, alvejando, as tuas elegantes 23 Entro na brasserie; às mesas de emigrados 24 Joga-se, alegremente e ao gás, o dominó!

152

Page 241: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

III Ao Gás *

E saio. A noite pesa, esmaga. Nos Passeios de lajedo arrastam-se as impuras. Ó moles hospitais! Sai das embocaduras Um sopro que arripia os ombros quase nus.

5 Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso Ver círios laterais, ver filas de capelas, Com santos e fiéis, andares, ramos, velas, Em uma catedral de um comprimento imenso.

As burguesinhas do Catolicismo 10 Resvalam pelo chão minado pelos canos;

E lembram-me, ao chorar doente dos pianos, As freiras que os jejuns matavam de histerismo.

Num cutileiro, de avental, ao tomo, Um forjador maneja um malho, rubramente;

15 E de uma padaria exala-se, inda quente, Um cheiro salutar e honesto à pão no fomo.

E eu que medito um livra que exacerbe, Quisera que o real e a análise mo dessem; Casas de confecções e modas resplandecem; 20 Pelas vitrines olha um ratoneiro imberbe.

Longas descidas! Não poder pintar Com versos magistrais, salubres e sinceros, A esguia difusão dos vossos reverberas, E a vossa palidez romântica e lunar!

*Este subtítulo aparece, pela primeira vez, na edição de Silva Pinto.

Na primitiva publicação:

9 As burguesinhas do catolicismo 13 Num cuteleiro, de avental, ao tomo, 17 E eu, que medito um livro que exacerbe, 18 Quisera que o real e a análise mo dessem:

153

Page 242: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

Que grande cobra, a lúbrica pessoa, Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo! Sua excelência atrai, magnética, entre luxo, Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.

5 E aquela velha, de bandós! Por vezes, A sua traîne imita um leque antigo, aberto, Nas barras verticais, a duas tintas. Perto, Escarvam, à vitória, os seus mecklemburgueses.

Desdobram-se tecidos estrangeiros; 10 Plantas ornamentais secam nos mostradores;

Flocos de pás de arroz pairam sufocadores, E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.

Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco; 15 Da solidão regouga um cauteleiro rouco; Tomam-se mausoléus as armações fulgentes.

«Dó da miséria! .,. Compaixão de mim! ... » E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso, Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso, 20 Meu velho professor nas aulas de latim! .

IV Horas Mortas *

O tecto fundo de oxigénio, de ar, Estende-se ao comprido, ao meio das trapeiras; Vêm lágrimas de luz dos astros com olheiras, Enleva-me a quimera azul de transmigrar.

*Aparece, pela primeira vez, na edição de Silva Pinto.

Na primitiva publicação:

3 Sua excelência atrai, magnética, entre o luxo, 13 Mar tudo cama! Apagam-se, nas frentes, 19 Pede-nos sempre esmola um homenzinho idoso,

154

Page 243: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

Por baixo, que portões! Que armamentos! Um parafuso cai nas lajes, às escuras: Colocam-se taipais, rangem as fechaduras, E os olhos dum caleche espantam-me, sangrentos.

5 E eu sigo, como as linhas de uma pauta A dupla correnteza augusta das fachadas; Pois sobem, no silêncio, infaustas e trinadas, As notas pastoris de uma longíqua flauta.

Se eu não morresse, nunca! E eternamente 10 Buscasse e conseguisse a perfeição das cousas! Esqueço-me a prever castíssimas esposas,

Que aninhem em mansões de vidro transparente!

Ó nossos filhos! Que de sonhos ágeis, Pousando, vos trarão a nitidez às vidas!

15 Eu quero as vossas mães e irmãs estremecidas, Numas habitações translúcidas e frágeis.

Ah! Como a raça ruiva do porvir, E as frotas dos avós, e os nómadas ardentes, Nós vamos explorar todos os continentes

20 E pelas vastidões aquáticas seguir!

Mas se vivemos, os emparedados, Sem árvores, no vale escuro das muralhas! ... Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas E os gritos de socorro ouvir estrangulados.

Na primitiva publicação:

3 Colocam-se taipais, ringem as fechaduras, 8 As notas pastoris de uma longinqua flauta. 24 E os gri tos de socorro ouvir, estrangulados.

155

Page 244: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

E nestes nebulosos corredores Nauseiam-me, surgindo, os ventres das tabernas; Na volta, com saudade, e aos bordos sobre as pernas, Cantam, de braço dado, uns tristes bebedores.

5 Eu não receio, todavia, os roubos; Afastam-se, a distância, os dúbios caminhantes; E sujos, sem ladrar, ósseos, febris, errantes, Amareladamenre, os cães parecem lobos.

E os guardas, que revistam as escadas, 10 Caminham de lanterna e servem de chaveiros;

Por cima, as imorais, nos seus roupões ligeiros, Tossem, fumando sobre a pedra das sacadas.

E, enorme, nesta massa irregular De prédios sepulcrais, com dimensões de montes,

15 A Dor humana busca os amplos horizontes, E tem marés, de fel, como um sinistro mar!

Lisboa, O Livro de Cesârio Verde, 1887.

Na primitiva publicação:

. 15 A dor humana busca os amplos horizontes,

156

Page 245: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

34. / Nós (a A. de S. e v.) *

I

Foi quando em dois verões seguidamente a Febre E o Cólera também andaram na cidade, Que esta população, com um terror de lebre" Fugiu da capital como da tempestade.

5 Ora meu pai, depois das nossas vidas salvas, (Até então nós só tivéramos sarampo) Tanto nos viu crescer entre os montões das malvas Que ele ganhou por isso um grande amor ao campo!

Se acaso o conta, ainda a fronte se lhe enruga: 10 O que se ouvia sempre era o dobrar dos sinos; Mesmo no nosso prédio, os outros inquilinos Morreram todos. Nós salvámo-nos na fuga.

Na parte mercantil, foco da epidemia, Um pânico! Nem um navio entrava a barra, 15 A alfândega parou, nenhuma loja abria

E os turbulentos cais cessaram a algazarra.

Pela manhã, em vez dos trens dos baptizados, Rodavam sem cessar as seges dos enterros. Que triste a sucessão dos armazéns fechados!

20 Como um domingo inglês na «city» que desterros!

* A menina Sousa e Vasconcelos? V. Luís Amaro de Oliveira, Cesârio Verde (Novos Subsídios ... ), p. 23, e José Duarte, revista Momento, Janeiro de 1934.

Na edição de Silva Pioro:

1 Foi quando em dois verões, seguidamente, a Febre 5 Ora, meu pai, depois dar nossas vidas salvar, 6 (Até então nós só tivéramos sarampo), 7 Tanto nos viu crescer entre uns montões de malvas

15 A alfândega parou, nenhuma loja abria, 20 Como um domingo inglês na «city», que desterros!

163

Page 246: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

Sem canalização em muitos burgos ermos, Secavam dejecções cobertas de mosqueiros. E os médicos ao pé dos padres e coveiros, Os últimos fiéis, tremiam dos enfermos!

5 U ma iluminação a azeite de purgueira, De noite amarelava os prédios macilentos. Barricas de alcatrão ardiam; de maneira Que tinham tons de inferno outros arruamentos.

Porém, lá fora, à solta, exageradamente, 10 Enquanto acontecia essa calamidade,

Toda a vegetação, pletórica, potente, Ganhava imenso com a enorme mortandade!

Num ímpeto de seiva os arvoredos fartos, Numa opulenta fúria as novidades todas,

15 Como uma universal celebração de bodas, Amaram-se! E depois houve soberbos partos.

Por isso, o chefe antigo e bom da nossa casa, Triste de ouvir falar em órfãos e em viúvas, E em permanência olhando um horizonte em brasa,

20 Não quis voltar senão depois das grandes chuvas.

Ele, dum lado, via os filhos achacados, Um lívido flagelo e uma moléstia horrenda! E via, do outro lado, eiras, lezírias, prados, E um salutar refúgio e um lucro na vivenda!.

Na edição de Silva Pinto:

1 Sem canalização, em muitos burgos ermos, 3 E os médicos, ao pé dos padres e coveiros,

No manuscrito:

21 Ele, dum lado, via os filhos enfezados, Logo, alteração aquando da revisão das provas.

164

Page 247: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

E o campo, desde então, segundo o que me lembro, É todo o meu amor de todos estes anos! Nós vamos para lá; somos provincianos Desde o calor de maio aos frios de novembro!

11

5 Que de fruta! E que fresca e temporã, Nas duas boas quintas bem muradas, Em que o sol, nos talhões e nas latadas, Bate de chapa, logo de manhã!

o laranjal de folhas negrejantes, 10 (Porque os terrenos são resvaladiços) Desce em socalcos todos os maciços,

Como uma escadaria de gigantes.

Das courelas, que criam cereais, De que os donos - ainda! - pagam foros,

15 Dividem-no fechados pitosporos, Abrigos de raízes verticais.

Ao meio, a casaria branca assenta À beira da calçada, que divide Os escuros pomares de pevide,

20 Da vinha, numa encosta soalhenta!

Entretanto não há maior prazer Do que, na placidez das duas horas, Ouvir e ver, entre o chiar das noras, No largo tanque as bicas a correr!

Na edição de Silva Pinto:

3 Nós 'I/amos para lá; somos provincianos, 21 Entretanto, não há mai?r prazer

165

Page 248: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

Muito ao fundo, entre ulmeiros seculares, Seca o rio! Em três meses de estiagem, O seu leito é um atalho de passagem, Pedregosíssimo, entre dois lugares.

5 Como lhe luzem seixos e burgaus Roliços! Marinham nas ladeiras Os renques africanos das piteiras, Que como áloes espigam altos paus!

Montanhas inda mais longiquamente, 10 Com restevas, com combros como baças, Lembram cabeças estupendas, grossas, De cabelo grisalho, muito rente.

E, a contrastar, nos vales, em geral, Como em vidraça duma enorme estufa, 15 Tudo se atrai, se impõe, alarga e entufa, Duma vitalidade equatorial!

Que de frugalidades nós criamos! Que torrão espontâneo que nós somos! Pela outonal maturação dos pomos,

20 Com a carga, no chão pousam os ramos.

E assim postas, nos barros e areais, As maceiras vergadas fortemente, Parecem, duma fauna surpreendente, Os pólipos enormes, diluviais.

Na edição de Silva Pinto: 1 Muito ao fundo, entre olmeiros seculares, 6 Roliços! Marinham nas ladeiras

Por motivos de métrica, Cabra! do Nascimento propôs se emen- dasse este verso para: Roliços! E marinham nas ladeiras

8 No manuscrito e em Silva Pinto, áloes. A palavra (do latim aloe, es) teria chegado ao português pelo francês aloês, donde a forma, hoje, corrente, aloés.

10 Com restevas, e combros como baças,

166

Page 249: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

Contudo, nós não temos na fazenda Nem uma planta só de mero ornato! Cada pé mostra-se útil, é sensato, Por mais finos aromas que rescenda!

5 Finalmente, na fértil depressão, Nada se vê que a nossa mão não regre: A florescência dum matiz alegre Mostra um sinal - a frutificação!

*

Ora, há dez anos, neste chão de lava 10 E argila e areia e aluviões dispersas, Entre espécies botânicas diversas,

Forte, a nossa família radiava!

Unicamente, a minha doce irmã, Como uma ténue e imaculada rosa, 15 Dava a nota galante e melindrosa Na trabalheira rústica, aldeã.

E foi num ano pródigo, excelente, Cuja amargura nada sei que adoce, . Que nós perdemos essa flor precoce, 20 Que cresceu e morreu rapidamente!

Ai daqueles que nascem neste caos, E, sendo fracos, sejam generosos! As doenças assaltam os bondosos E - custa a crer - deixam viver os maus!

9 «Há dez anos», ou seja, cerca de 1872, ano em que a irmã morreu. (V., adiante, «Cartas a João de Sousa Araújo»), Parece, pois, poder datar-se de 1882 o início da redacção destes versos.

13 Sua irmã Júlia, vitimada pela tuberculose aos 19 anos.

No manuscrito: 14 Ames de se fixar em «tênue», o autor escrevera «nobre».

167

Page 250: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

*

Fecho os olhos cansados, e descrevo Das telas da memória retocadas, Biscates, hortas, bata tais, latadas, No país montanhoso, com relevo!

5 Ah! Que aspectos benignos e rurais Nesta localidade tudo tinha, Ao ires, com o banco de palhinha, Para a sombra que faz nos parreirais!

Ah! Quando a calma, à sesta, nem consente 10 Que uma folha se mova ou se desmanche,

Tu refeita e feliz com o teu «lunch», Nos ajudavas, voluntariamente! ...

Era admirável- neste grau do Sul! - Entre a rama avistar teu rosto alvo,

15 Ver-te escolhendo a uva diagalvo, Que eu embarcava para Liverpool.

A exportação de frutas era um jogo: Dependiam da sorte do mercado O boal, que é de pérolas formado

20 E o ferral, que é ardente e cor de fogo!

Em agosto, ao calor canicular, Os pássaros e enxames tudo infestam; Tu cortavas os bagos que não prestam Com a tua tesoura de bordar.

Na edição de Silva Pinto:

11 Tu, refeita e feliz com o teu «luncb», 19 O boal, que é de pérolas formado,

168

Page 251: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

Douradas, pequeninas, as abelhas E negros, volumosos, os besoiros Circundavam, com ímpetos de toiros, As tuas candidíssimas orelhas.

5 Se uma vespa lançava o seu ferrão Na tua cútis - pétala de leite! - Nós colocávamos dez réis e azeite Sobre a gala me, a rósea inflamação!

E se um de nós, já farto, arrenegado, 10 Com O chapéu caçava a bicharia,

Cada zângão voando, à luz do dia, Lembrava o teu dedal arremessado.

*

Que de encantos! Na força do calor Desabrochavas no padrão da bata,

15 E surgindo da gola e da gravata, Teu pescoço era o caule duma flor!

Mas que cegueira a minha! Do teu porte A fina curva, a indefinida linha, Com bondades de herbívora mansinha,

20 Eram prenúncios de fraqueza e morte!

À procura da libra e do «shilling», Eu andava abstracto e sem que visse Que o teu alvor romântico de «miss», Te obrigava a morrer antes de mim!

Na edição de Silva Pinto:

1 Douradas, pequeninas, as abelhas, 2 E negros, volumosos, os besoiros, 15 E, surgindo da gola e da gravata. 23 Que o teu alvor romântico de «miss»

169

Page 252: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

E antes tu, ser lindíssimo, nas faces Tivesses «pano» como as camponesas; E sem brancuras, sem delicadezas,

Vigorosa e plebeia, inda durasses!

5 Uns modos de carnívora feroz

Podias ter em vez de inofensivos; Tinhas caninos, tinhas incisivos, E podias ser rude como nós!

Pois neste sítio, que era de sequeiro,

10 Todo o género ardente resistia, E à larguíssima luz do Meio-Dia, Tomava um tom opálico e trigueiro.

*

Sim! Europa do Norte, o que supões Dos vergéis que abastecem teus banquetes, Quando às docas, com frutas, os paquetes Chegam antes das tuas estações?!

Oh! Os ricos «primeurs» da nossa terra E as tuas frutas ácidas, tardias, No azedo amoniacal das queijarias Dos flegmáticos «farmers» de Inglarerra!. ..

Ó cidades fabris, industriais, De nevoeiros, poeiradas de hulha, Que pensais do país que vos atulha Com a fruta que sai de seus quintais?

Na edição de Silva Pinto: 11 E, à larguíssima luz do Meio-dia,

17 Oh! Ai ricas «primeurs» da nossa terra

20 Daí fleugmâtico: «farmers» d'lnglaterra!

170

Page 253: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

Todos os anos, que frescor se exala! Abundâncias felizes que eu recordo! Carradas brutas que iam para bordo! Vapores por aqui fazendo escala!

5 U ma alta parreira moscatel Por doce não servia para embarque! Palácios que rodeiam Hyde-Park, Não conheceis esse divino mel!

Pois a Coroa, o Banco, o Almirantado, 10 Não as têm nas florestas em que há corças, Nem em vós que dobrais as vossas forças, Pradarias dum verde ilimitado!

Anglos-Saxónios, tendes que invejar! Ricos suicidas, comparai convosco! 15 Aqui tudo espontâneo, alegre, tosco, Facílimo, evidente, salutar!

Oponde às regiões que dão os vinhos Vossos montes de escórias inda quentes! E as febris oficinas estridentes

20 Às nossas tecelagens e moinhos!

E ó condados mineiros! Extensões Carboníferas! Fundas galerias! Fábricas a vapor! Cutelarias! E mecânicas, tristes fiações!

Na edição de Silva Pinto: 6 Por doce não servia para embarque:

No manuscrito: 21 Antes de se fixar em «Extensões», o autor escrevera «Regiões».

171

Page 254: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

Bem sei que preparais correctamente O aço e a seda, as lâminas e o estofo: Tudo o que há de mais dúctil, de mais fofo, Tudo o que há de mais rijo e resistente!

5 Mas isso tudo é falso, é maquinal, Sem vida, como um círculo ou um quadrado, Com essa perfeição do fabricado, Sem o ritmo do vivo e do real!

E cá o santo sol, sobre isto tudo, 10 Faz conceber as verdes ribanceiras; Lança as rosáceas belas e fruteiras Nas searas de trigo palhagudo! .

U ma aldeia daqui é mais feliz, Londres sombria em que cintila a corte! ... 15 Mesmo que tu, que vives a compor-te, Grande seio arquejante de Paris! ...

Ah! Que de glória, que de colorido Quando por meu mandado e meu conselho, Cá se empapelam «as maçãs de espelho»

20 Que Herbert Spencer talvez tenha comido.

Para alguns são prosaicos, são banais Estes versos de fibra suculenta; Como se a polpa que nos dessedenta Nem ao menos valesse uns madrigais!

Na edição de Silva Pinto:

,9 E cá o santo sol, sobre isso tudo, 14 Londres sombria, em que cintila a corte! 20 Que Herbert Spencer talvez tenha comido!

172

Page 255: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

Pois o que a boca trava com surpresas

Senão as frutas tónicas e puras! Ah! Num jantar de carnes e gorduras A graça vegetal das sobremesas! ...

5 Jack, marujo inglês, tu tens razão Quando, ancorando em portos como os nossos, As laranjas com cascas e caroços Comes com bestial sofreguidão! ...

*

A impressão doutros tempos, sempre viva, 10 Dá estremeções no meu passado morto,

E inda viajo, muita vez, absorto, Pelas várzeas da minha' retentiva.

Então recordo a paz familiar, Todo um painel pacífico de enganos! 15 E a distância fatal duns poucos de anos É uma lente convexa, de aumentar.

Todos os tipos mortos ressuscito! Perpetuam-se assim alguns minutos! E eu exagero os casos diminutos

20 Dentro dum véu de lágrimas bendito.

Pinto quadros por letras, por sinais, Tão luminosos como os de Levante, Nas horas em que a calma é mais queimante, Na quadra em que o verão aperta mais.

Na edição de Silva Pinto:

22 Tão luminosos como os do Levante,

173

Page 256: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

Como destacam, vivas, cercas cores, Na vida externa cheia de alegrias! Horas, vozes, locais, fisionomias, As ferramentas, os trabalhadores!

5 Aspiro um cheiro a cozedura, e a lar E a rama de pinheiro! Eu adivinho O resinoso, o tão agreste pinho Serrado nos pinhais da beira-mar.

Vinha cortada, aos feixes, a madeira, 10 Cheia de nós, de imperfeições, de rachas,

Depois armavam-se, num pronto, as caixas Sob uma calma espessa e calaceira!

Feias e fortes! Punham-lhes papel A forrá-las. E em grossa serradura

15 Acamava-se a uva prematura Que não deve servir para tonel!

Cingiam-nas com arcos de castanho Nas ribeiras cortados, nos riachos; E eram de açúcar e calor os cachos,

20 Criados pelo esterco e pelo amanho!

Ó pobre estrume, como tu compões Estes pâmpanos doces como afagos! «Dedos-de-dama»: transparentes bagos! «Tetas-de-cabra»: lácteas carnações!

Na edição de Silva Pioro: 10 Cheia de nós, d'imperfeições, de rachas; 11 Depois armavam- se, num pronto as caixas 13 Feias e fortes! Punham-lhes papel,

No manuscrito:

5 Antes de se fixar em «Aspiro», o autor teria escrito «Aprecio»? 21 Antes de se fixar em «pobre», o autor escrevera «triste».

174

Page 257: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

E não eram caixitas bem dispostas Como as passas de Málaga e Alicante; Com sua forma estável, ignorante, Estas pesavam, brutalmente, às costas!

5 Nos vinhatórios via fulgurar, Com tanta cal que toma as vistas cegas, Os paralelogramos das adegas, Que têm lá dentro as domas e o lagar!

Que rudeza! Ao ar livre dos estios, 10 Que grande azáfama! Apressadamente Como soava um martelar frequente, Véspera da saída dos navios!

Ah! Ninguém entender que ao meu olhar Tudo tem certo espírito secreto!

15 Com folhas de saudades um objecto Deita raízes duras de arrancar!

As navalhas de volta, por exemplo, Cujo bico de pássaro se arqueia, Forjadas no casebre duma aldeia,

20 São antigas amigas que eu contemplo!

Elas, em seu labor, em seu lidar, Com sua ponta como a das podoas, Serviam probas, úteis, dignas, boas, Nunca tintas de sangue e de matar.

Na edição de Silva Pinto: 9 Que rudeza! Ao ar livre dos estios.

Porém, o manuscrito revela a gralha, já da L' impressão.

No manuscrito:

13 Antes de se fixar em «meu olhar» o autor escrevera «nosso olhar».

19 Forjados 114 barraca duma aldeia, Logo, a substituição de «barraca» por «casebre» ocorreu aquando da revisão das provas tipográficas.

175

Page 258: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

E as enxós de martelo, que dum lado Cortavam mais do que as enxadas cavam, Por outro lado, rápidas, pregavam, Duma pancada, o prego fasquiado!

5 O meu ânimo verga na abstracção, Com a espinha dorsal dobrada ao meio, Mas se de materiais descubro um veio Ganho a musculatura dum Sansão!

E assim - e mais no povo a vida é coma - 10 Amo os ofícios como o de ferreiro,

Com seu fole arquejante, seu braseiro, Seu malho retumbante na bigorna!

E sinto, se me ponho a recordar Tanto utensílio, tantas perspectivas, 15 As tradições antigas, primitivas,

E a formidável alma popular!

Oh! Que brava alegria eu tenho quando Sou tal qual como os mais! E, sem talento, Faço um trabalho técnico, violento,

20 Cantando, praguejando, batalhando!

*

Os fruteiros, tostados pelos sóis, Tinham passado, muita vez, a raia, E espertos, entre os mais da sua laia, - Pobres campónios - eram uns heróis.

Na edição de Silva Pinto:

6 Com a espinha dorsal dobrada ao meio; 23 E, espertos, entre os mais da sua laia,

No manuscrito:

9 Antes de se fixar em «E assim», o autor escrevera «E eu amo». 10 Antes de se fixar em «Amo os ofícios», o autor escrevera «Certos oficias» . 13 Antes de se fixar em «E sinto», o autor tentara duas outras

palavras (ilegíveis).

176

Page 259: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

E por isso, com frases imprevistas, E colorido e estilo e valentia, As «haciendas» que há na «Andalucia» Pintavam como novos paisagistas.

5 De como, às calmas, nessas excursões, Tinham águas salobras por refrescos; E amarelos, enormes, gigantescos, Lá batiam o queixo com sezões!

Tinham corrido já na adusta Espanha, 10 Todo um fértil plató sem arvoredos, Onde armavam barracas nos vinhedos Como tendas alegres de campanha.

Que pragas castelhanas, que alegrão Quando contavam cenas de pousadas!

15 Adoravam as cintas encamadas E as cores, como os pretos do sertão!

E tinham, sem que a lei a cal obrigue, A educação vistosa das viagens! Uns por terra partiam e estalagens,

20 Outros, aos montes, no convés dum brigue!

Só um havia, triste e sem falar, Que arrastava a maior misantropia, E, roxo como um fígado, bebia O vinho tinto que eu mandava dar!

No manuscrito:

3 «As bacendas ... »

Corrigido para «As baciendas ... » nas provas tipográficas. 11 Antes de se fixar em «barracas», o autor escrevera «cabanàs».

177

Page 260: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

Pobre da minha geração exangue De ricos! Antes, como os abrutados, Andar corri uns saparas ensebados, E ter riqueza química no sangue!

*

5 Mas hoje a rústica lavoura, quer Seja o patrão, quer seja o jornaleiro, Que inferno! Em vão o lavrador rasteiro E a filharada lidam, e a mulher!

Desde o princípio ao fim é uma: maçada 10 De mil demónios! Toma-se preciso

Ter-se muito vigor, muito juízo Para trazer a vida equilibrada!

Hoje eu sei quanto custam a criar As cepas, desde que eu as podo e empo. 15 Ah! O campo não é um passatempo Com bucolismos, rouxinóis, luar.

A nós tudo nos rouba e nos dizima: O rapazio, o imposto, as pardaladas, As osgas peçonhentas, achatadas,

20 E as abelhas que engordam na vindima.

É o pulgão, a lagarta, os caracóis, E há inda, além do mais com que se ateima, As intempéries, o granizo, a queima, E a concorrência com os espanhóis.

Na edição de Silva Pinto: 4 E ter riqueza quimica no sangue! 8 E a filharada lidam, e a mulher! ... 21 E o pulgão, a lagarta, os caracóis,

No manuscrito: «É o pulgão ... » A gralha insinuou-se na primeira impressão e foi repetida por Silva Pinto.

No manuscrito:

.4 Antes de se fixar em «E», o autor escrevera «Mas».

178

Page 261: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

Na venda, os vinhareiros de Almeria Competem contra os nossos fazendeiros. Dão frutas aos leilões dos estrangeiros, Por uma cotação que nos desvia!

5 Pois tantos contras, rudes como são, Forte e teimoso, o camponês destrói-os! Venham de lá pesados os comboios E os «buques» estivados no porão!

Não, não é justo que eu a culpa lance 10 Sobre estes nadas! Puras bagatelas!

Nós não vivemos só de coisas belas, Nem tudo corre como num romance!

Para a Terra parir há-de ter dor, E é para obter as ásperas verdades,

15 Que os agrónomos cursam nas cidades, E, à sua custa, aprende o lavrador.

Ah! Não eram insectos nem as aves Que nos dariam dias tão difíceis, Se vós, sábios, na gente, descobrísseis

20 Como se curam as doenças graves.

Não valem nada a cava, a enxofra, e o mais! Dificultoso trato das searas! Lutas constantes sobre as jornas caras! Compras de bois nas feiras anuais!

No manuscrito: 13 e 14 A primeira versão destes versos foi a seguinte:

Para obter da terra o fruto e a flor, Para aprender as ásperas verdades,

20 Antes de se fixar em «se curam», o autor escrevera «se tratam»,

179

Page 262: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

o que a alegria em nós destrói e mata, Não é rede arrastante de escalracho, Nem é «suão» queimante como um facho, Nem invasões bulbos as de erva-pata.

5 Podia ter secado o poço em que eu Me debruçava e te pregava sustos, E mais as ervas, árvores e arbustos Que - tanta vez! - a tua mão colheu.

«Moléstia negra» nem «charbon» não era, 10 Como um archote incendiando as parras!

Tão-pouco as bastas e invisíveis garras, Da enorme legião do filoxera!

Podiam mesmo com o que contêm, Os muros ter caído às invernias!

15 Somos fortes! As nossas energias Tudo vencem e domam muito bem!

Que os rios, sim, que como touros mugem, Trasbordando atulhassem as regueiras! Chorassem de resina as laranjeiras!

20 Enegrecessem outras com ferrugem!

As turvas cheias de novembro, em vez Do nateiro subtil que fertiliza, Fossem a inundação que tudo pisa, No rebanho afogassem muita rês!

12 Quer no manuscrito quer na edição de Silva Pinto encontra-se "do filoxera". Dizia-se assim, então.

180

Page 263: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

Ah! Nesse caso pouco se perdera, Pois isso tudo era um pequeno dano, A vista do cruel destino humano Que os dedos te fazia como cera!

5 Era essa tísica em terceiro grau, Que nos enchia a todos de cuidado, Te curvava e te dava um ar alado Como quem vai voar dum mundo mau.

Era a desolação que inda nos mina 10 (Porque o fastio é bem pior que a fome)

Que a meu pai deu a curva que o consome, E a minha mãe cabelos de platina!

Era a clorose, esse tremendo mal, Que desertou e que tomou funesta

15 A nossa branca habitação em festa Reverberando a luz meridional.

Não desejemos, - nós os sem defeitos, - Que os tísicos pereçam! Má teoria, Se pelos meus o apuro principia,

20 Se a Morte nos procura em nossos leitos!

A mim mesmo, que tenho a pretensão De ter saúde, a mim que adoro a pompa Das forças, pode ser que se me rompa U ma artéria, e me mine uma lesão!

Na edição de Silva Pinto:

10 (Porque o fastio é bem peior que a fome)

No manuscrito:

14 Antes de se fixar em «desertou», Cesário escrevera «entristeceu» e ainda outra forma verbal ilegível.

24 Antes de «lesão», Cesário escrevera e riscara outra palavra. .

181

Page 264: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

Nós outros, teus irmãos, teus companheiros, Vamos abrindo um matagal de dores! E somos rijos como os serradores! E positivos como os engenheiros!

5 Porém, hostis, sobressaltados, sós, Os homens arquitectam mil projectos De vitória! E eu duvido que os meus netos Morram de velhos como os meus avós!

Porque, parece, ou fortes ou velhacos 10 Serão apenas os sobreviventes;

E há pessoas sinceras e clementes, E troncos grossos com seus ramos fracos!

E que fazer se a geração decai! Se a seiva genealógica se gasta!

15 Tudo empobrece! Extingue-se uma casta! Morre o filho primeiro de que o pai!

Mas seja como for tudo se sente, Da tua ausência! Ah! como o ar nos falta, Ó flor cortada, susceptível, alta,

20 Que assim secaste prematuramente!

Eu que de vezes tenho o desprazer De reflectir no túmulo! E medito No eterno Incognoscível infinito, Que as ideías não podem abranger!

Na edição de Silva Pinto:

17 Mas seja como for, tudo se sente

No manuscrito:

18 Antes de se fixar em «Da tua ausência'», o autor escrevera «E a tua ausência'», Nesse verso há mais duas emendas de muito difícil leitura.

Na edição original:

23 No eterno lncogniscícel infinito, Assim escreveu Cesário e assim foi impresso. Silva Pinto corrigiu-o na sua edição.

182

Page 265: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

Como em paul em que nem cresça a junca

Sei de almas estagnadas! Nós absortos, Temos ainda o culto pelos Mortos, Esses ausentes que não voltam nunca!

5 Nós ignoramos, sem religião, Ao rasgarmos caminho, a fé perdida, Se te vemos ao fim desta avenida Ou essa horrível aniquilação! ,,'

E ó minha mártir, minha virgem, minha 10 Infeliz e celeste criatura,

Tu lembras-nos de longe a paz futura, No teu jazigo, como uma santinha!

E enquanto a mim, és tu que substituis Todo o mistério, toda a santidade

15 Quando em busca do reino da verdade Eu ergo o meu olhar aos céus azuis!

III

Tínhamos nós voltado à capital maldita, Eu vinha de polir isto tranquilamente, Quando nos sucedeu uma cruel desdita;

20 Pois um de nós caiu, de súbito, doente,

Uma tuberculose abria-lhe cavernas! Dá-me rebate ainda o seu tossir profundo! E eu sempre lembrarei, triste, as palavras temas, Com que se despediu de todos e do mundo!

No manuscrito: 11 Primeira redacção: Tu és perpetuamente a paz futura, 20 Seu irmão Joaquim Tomás, falecido em 1882, com 24 anos.

183

Page 266: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

Pobre rapaz robusto e cheio de futuro! Não sei dum infortúnio imenso como o seu! Viu o seu fim chegar como um medonho muro, E,sem querer, aflito e atónito, morreu! ...

5 De tal maneira que hoje, eu desgostoso e azedo Com tanta crueldade e tantas injustiças, Se inda trabalho é como os presos no degredo, Com planos de vingança e ideias insubmissas.

E agora, de tal modo a minha vida é dura, 10 Tenho momentos maus, tão tristes, tão perversos,

Que sinto só desdém pela literatura, E até desprezo e esqueço os meus amados versos!

Lisboa. Paris, A Ilustração, 5 de Setembro de 1884.

Na edição de Silva Pinto: 4 E, sem querer, aflito e atônito, morreu!

Este poema foi cotejado pelo seu original manuscrito (existente na Biblioteca Nacional), pela sua primeira impressão em A Ilustração e pela versão de Silva Pinto em O Livro de Cesário Verde.

184

Page 267: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

14.2. / Flores Velhas

Fui ontem visitar o jardinzinho agreste, Aonde tanta vez a lua nos beijou, E em tudo vi sorrir o amor que tu me deste, Soberba como um sol, serena como um voa.

5 Em tudo cintilava o límpido poema Com ósculos rimado às luzes dos planetas; A abelha inda zumbia em tomo da alfazema; E ondulava o matiz das leves borboletas.

Em tudo eu pude ver ainda a tua imagem, 10 A imagem que inspirava os castos madrigais;

E as virações, o rio, os astros, a paisagem, Traziam-me à memória idílios imortais.

Diziam-me que tu, no flórido passado, Detinhas sobre mim, ao pé daquelas rosas, 15 Aquele teu olhar moroso e delicado,

Que fala de languor e de emoções mimosas;

E, ó pálida Clarisse, Ó alma ardente e pura, Que não me desgostou nem uma vez sequer, Eu não sabia haurir do cálix da ventura

20 O néctar que nos vem dos mimos da mulher.

Na publicação original:

3 E em tudo eu vi sorrir o amor que tu me deste, 8 E via-se o matiz das leves borboletas.

13 Na edição de Silva Pinto: florido, em vez de florido. A emenda deve-se a Cabra I do Nascimento e é pertinente.

Na publicação original:

20 O néctar que nos vem nos mimos da mulher!

86

Page 268: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

Falou-me tudo, tudo, em tons comovedores, Do nosso amor, que uniu as almas de dois entes; As falas quase irmãs do vento com as flores E a mole exalação das várzeas rescendentes.

5 lnda pensei ouvir aquelas coisas mansas No ninho de afeições criado para ti,

Por entre o riso claro, e as vozes das crianças, E as nuvens que esbocei, e os sonhos que nutri.

Lembrei-me muito, muito, ó símbolo das santas, 10 Do tempo em que eu soltava as notas inspiradas, E sob aquele céu e sobre aquelas plantas Bebemos o elixir das tardes perfumadas.

E nosso bom romance escrito num desterro, Com beijos sem ruído em noites sem luar,

15 Fizeram-mo reler, mais tristes que um enterro, Os goivos, a baunilha e as rosas-de-toucar.

Mas tu agora nunca, ah! nunca mais te sentas Nos bancos de tijolo em musgo atapetados, E eu não te beijarei, às horas sonolentas,

20 Os dedos de marfim, polidos e delgados ...

Na publicação original:

3 As falas quase irmãs das auras com as flores 4 E a mole exalação dos campos rescendentes. 14 Beijos sem ruído, em noites sem luar,

17 Mas tu agora nunca, ai, nunca mais te sentas

87

Page 269: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

Eu, por não ter sabido amar os movimentos Da estrofe mais ideal das harmonias mudas, Eu sinto as decepções e os grandes desalentos E tenho um riso mau como o sorrir de Judas.

5 E tudo enfim passou, passou como uma pena, Que o mar leva no dorso exposto aos vendavais, E aquela doce vida, aquela vida amena,

Ah! nunca mais virá, meu lírio, nunca mais!

Ó minha boa amiga, ó minha meiga amante! 10 Quando ontem eu pisei, bem magro e bem curvado,

A areia em que rangia a saia roçagante, Que foi na minha vida o céu aurirrosado,

Eu tinha tão impresso o cunho da saudade, Que as ondas que formei das suas ilusões 15 Fizeram-me enganar na minha soledade

E as asas ir abrindo às minhas impressões.

Soltei com devoção lembranças inda escravas, No espaço construí fantásticos castelos, No tanque debrucei-me em que te debruçavas,

20 E onde atuar parava os raios amarelos.

Na publicação original:

.5 E tudo enfim passou, passou como uma pena 6 Que o mar teve no dorso exposto aos vendavais, 8 Ah! nunca mais virá, Clarisse, nunca mais!

1 I A areia em que rugiu a saia roçagante, 1.5 Fizeram-me cismar na minha soledade

88

Page 270: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

Cuidei até sentir, mais doce que uma prece, Suster a minha fé, num véu consolado r, O teu divino olhar que as pedras amolece, E há muito me prendeu nos cárceres do amor.

5 Os teus pequenos pés, aqueles pés suaves, Julguei-os esconder por entre as minhas mãos, E imaginei ouvir ao conversar das aves

As célicas canções dos anjos teus irmãos.

E como na minha alma a luz era uma aurora, . 10 A aragem ao passar parece que me trouxe

O som da tua voz, metálica, sonora, E o teu perfume forte, o teu perfume doce.

Agonizava o sol gostosa e lentamente, Um sino que tangia, austero e com vagar,

15 Vestia de tristeza esta paixão veemente, Esta doença, enfim, que a morte há-de curar.

Na publicação original:

4-5 Entre o verso 4 e o verso 5, foi suprimida a seguinte quadra dada a lume na publicação original:

E cheio das visões em que a alma se dilata Julguei-me no teu peito, ó coração que dormes! E foram embalar-me as águas da cascata De búzios naturais e conchas multiformes.

7 E imaginei ouvir no conversar das aves 11 O som da tua voz metálica, sonora,

89

Page 271: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

E quando me envolveu a noite, noite fria, Eu trouxe do jardim duas saudades roxas, E vim a meditar em quem me cerraria, Depois de eu me morrer, as pálpebras já frouxas.

5 5 Pois que, minha adorada, eu peço que não creias Que eu amo esta existência e não lhe queira um fim; Há tempos que não sinto o sangue pelas veias E a campa talvez seja afável para mim.

Portanto, eu, que não cedo às atracções do gozo,

10 Sem custo hei-de deixar as mágoas deste mundo, E, pálida mulher, de longo olhar piedoso,

Em breve te olharei calado e moribundo.

Mas quero só fugir das coisas e dos seres, Só quero abandonar a vida triste e má

15 Na véspera do dia em que também morreres, Morreres de pesar, por eu não viver já!

E não virás, chorosa, aos rústicos tapetes, Com lágrimas regar as plantações ruins; E esperarão por ti, naqueles alegretes,

20 As dálias a chorar nos braços dos jasmins!

Lisboa, O livro de Cesârio Verde, 1887.

Na publicação original:

1 E quando me envolveu a noute, noute fria, 5 Porém, minha Clarisse, eu peço que não creias 6 Que eu ame esta existência e não lhe queira um fim;

11 . E, ó pálida mulher de longo olhar piedoso, 17 a 20 Esta quadra não existia na primitiva publicação e só é publicada,

pela primeira vez, em O livro de Cesârio Verde.

90

Page 272: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

35. / Provincianas

I

Olá! Bons dias! Em março Que mocetona e que jovem A terra! Que amor esparso Corre os trigos, que se movem

5 Às vagas dum verde garço! .

Como amanhece! Que meigas As horas antes de almoço! Fartam-se as vacas nas veigas E- um pasto orvalhado e moço

10 Produz as novas manteigas.

Toda a paisagem se doura; Tímida ainda, que fresca! Bela mulher, sim senhora, Nesta manhã pitoresca,

15 Primaveral, criadora!

Bom sol! As sebes de encosto Dão madressilvas cheirosas Que entontecem como um mosto. Floridas, às espinhosas

20 Subiu-lhes o sangue ao rosto.

Cresce o relevo dos montes, Como seios ofegantes; Murmuram como umas fontes Os rios que dias antes

25 Bramiam galgando pontes.

Na edição de Silva Pinto: 12 Tíbida ainda, que fresca!

A palavra tíbida não existe; é de aceitar a emenda proposta por Cabral do Nascimento, que se adopta. Curiosamenre, esta gralha repetiu-se até à 3" edição e está ainda presente na edição da Atica (1945).

185

Page 273: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

E os campos, milhas e milhas, Com povos de espaço a espaço, Fazem-se às mil maravilhas; Dir-se-ia o mar de sargaço

5 Glauco, ondulante, com ilhas!

Pois bem. O inverno deixou-nos. É certo. E os grãos e as sementes Que ficam doutros outonos Acordam hoje frementes

10 Depois duns poucos de sonos.

Mas nem tudo são descantes; Por esses longos caminhos, Entre favais palpitantes, Há solos bravos, ma ninhos,

15 Que expulsam seus habitantes!

É nesta quadra de amores Que emigram os jornaleiros, Ganhões e trabalhadores! Passam clans de forasteiros

20 Nas terras de lavradores,

Tal como existem mercados Ou feiras, semanalmente, Para comprarmos os gados, Assim há praças de gente

25 Pelos domingos calados!

Na edição de Silva Pinto: 11 Mas nem tudo são descontes

Na 2ª' edição (1901): Mas nem tudo são descantes; afigura-se a pontuação mais correta.

12 Por esses longos caminhos 16 E nesta quadra d'amores 17 Que emigram os jornaleiros

Introduziu-se a vírgula. 22 Ou feiras, semanalmente 23 Para comprarmos os gados

Nos dois casos anteriores, manteve-se a vírgulação da 2a edição.

186

Page 274: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

Enquanto a ovelha arredonda, Vão tribos de sete filhos, Por várzeas que fazem onda, Para as derregas dos milhos

5 E molhadelas da monda.

De roda pulam borregos; Enchem então as cardosas As moças desses labregos, Com altas botas barrosas

10 De se atirarem aos regos!

Ei-las que vêm às manadas, Com caras de sofrimento, N as grandes marchas forçadas! Vêm ao trabalho, ao sustento,

15 Com fouces, sachos, enxadas!

Ai, o palheiro das servas Se o feitor lhe tira as chaves! Elas chegam às catervas, Quando acasalam as aves

20 E se fecundam as ervas! ...

II

Ao meio-dia na cama, Branca fidalga, o que julga Das pequenas da su'ama?! Vivem minadas da pulga,

25 Negras do tempo e da lama.

Na edição de Silva Pinto: 8 As moças desses labregos 16 Ai o palheiro das servas

Na 2ª edição: Ai.' o palheiro das servas 22 Adoptou-se a versão da 3ª edição de O Livro. Na 1ª e na

2ª edições: Branca fidalga o que julga 24 Vivem minadas da pulga

187

Page 275: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras:

Não é caso que a comova Ver suas irmãs de leite, Quer faça frio, 'quer chova, Sem uma mamã que as deite

5 N a tepidez duma alcova?!

Lisboa, O Livro de Cesârio Verde, 1887. «Incompleta esta poesia. Foram os últimos versos do poeta» (Nota de Silva Pinto).

Na edição de Silva Pinto:

5 Na tepidez d'um. ateava? O verso foi corrigido na 2." e na 3.' edições.

188

Page 276: PAISAGENS COM FIGURAS: UM ESTUDO DA OBRA DE CESÁRIO VERDE Sallenave... · Bibl iotec a Cen tra l Re itor Macedo Costa - UFBA C174 Cambeses, Angela Sallenave . Paisagens com figuras: