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Trabalho Final de Graduação apresentado à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo sob orientação do Prof. Dr. Luís Antônio Jorge em junho de 2011. Paisagens com figuras João Cabral de Melo Neto Juliana Fernandes Silveira

TFG João Cabral de Melo Neto: Paisagens com figuras

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Projeto de exposição sobre João Cabral de Melo Neto no Museu da Língua Portuguesa.

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Trabalho Final de Graduação apresentado à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo sob orientação do Prof. Dr. Luís Antônio Jorge em junho de 2011.

Paisagens com figurasJoão Cabral de Melo Neto

Juliana Fernandes Silveira

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Não sou um diamante natonem consegui cristalizá-lo:se ele te surge no que façoserá um diamante opacode quem por incapaz do vagoquer de toda forma evitá-lo,senão com o melhor, o claro,do diamante, com o impacto:com a pedra, a aresta, com o açodo diamante industrial, barato,que incapaz de ser cristal rarovale pelo que tem de cacto.

Resposta a Vinícius de Moraes

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14João Cabral de MeloNeto e sua obrapoética

16Premissas

Museu da LínguaPortuguesa

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Apresentação08

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Poetaarquiteto

64

Sevilhizaro mundo90

18Morte e vida

severina

108Obras

referenciais

Agradecimentos112

O cãosem

plumas52

Intimidade40

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Restituer l’émotion poétique à volonté, en dehors des conditions naturelles, où elle se produit spontanément et au moyen des artifices du langage, telle est l’idée attachée au nom de poésie.

Paul Valéry

(Epígrafe de João Cabral de Melo Neto: Obra completa, 1994)

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O presente trabalho é um exercício de projeto expográfico, partindo da escolha de um tema relevante a ser abordado por uma exposição – a obra poética de João Cabral de Melo Neto – e de um lugar perti-nente para realizar tal mostra – a sala de exposições temporárias do Museu da Língua Portuguesa em São Paulo.Por tal sala, passaram exposições dedicadas a escritores consagrados da Literatura lusófona, como Grande sertão: Veredas, baseada no romance homônimo de Guimarães Rosa, Clarice Lispector: A hora da estrela, Machado de Assis: Mas este capítulo não é sério e Fernando Pessoa: Plural como o universo. E também exposições com temas linguísticos, tais como Palavras sem fronteiras: Mídias convergentes, O francês no Brasil em todos os sentidos e Menas: O certo do errado, o errado do certo.Como são dois os tipos de exposição sobre a Língua, linguística ou literária, e o que me era mais insti-gante era o segundo tipo, passei primeiro a pensar no hall dos meus escritores preferidos, que tivessem apelo junto ao grande público, cuja obra era produzida em português. Clarice Lispector foi homenage-ada quando se completavam os 30 anos de sua morte em 2007, Machado de Assis ganhou sua exposição em seu centenário de morte (2009). Mas a exposição sobre a grande obra de Guimarães Rosa teve um motivo mais alegre: os 50 anos da publicação de Grande sertão: Veredas, que inaugurou o Museu em 2006. Fernando Pessoa também seria um dos escolhidos, mas também já honrou sua exposição.Dentre outros que ainda não foram homenageados, poderia citar José Saramago, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira. Mas talvez o fato de João Cabral de Melo Neto ser chamado “poeta enge-nheiro” ou “poeta arquiteto”, tenha sido uma provocação maior para escolher, entre escritores que já me eram familiares, este poeta tão racional e metódico. Um poeta arquiteto.

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A exposição do Museu da Língua Portuguesa se localiza na ala leste do edifício (lado esquerdo do corte acima), ocupando os três pavimentos acima do térreo. Seções administrativas do Museu estão na ala oeste.A entrada do público é feita pela Praça da Luz, em frente à Pinacoteca do Estado. A bilheteria e o guarda-volumes estão logo no nível térreo, mas a partir daí os visitantes tomam dois elevadores que os levam para qualquer um dos três pisos de exposição. Os mesmos elevadores os trazem de volta à saída. O Museu da Língua pretende promover e difundir o idioma, valorizando este aspecto do patrimônio imaterial a fim de afirmar a Língua como elemento fundamental e fundador da cultura brasileira; apro-

Museu da Língua Portuguesa

Edifício, objetivos e público

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Corte longitudinal do edifício da Estação da Luz que abriga o Museu da Língua Portuguesa. A visão é desde o Parque da Luz para a direção da avenida Cásper Líbero. A gare é vista ao fundo.

ximar o visitante à língua materna, como usuário cotidiano e agente modificador; tratar a Língua de forma interativa e tecnológica, evitando a abordagem por vezes maçante da educação formal e chaman-do a atenção do público para aspectos interessantes e inusitados do idioma; complementar a educação formal, de forma a diversificar e intensificar o aprendizado.O público do Museu é constituído principalmente por escolares que já sejam alfabetizados, com idades entre 6 e 17 anos, e seus eventuais acompanhantes adultos, sejam pais, familiares ou professores. Há, evidentemente, uma visitação espontânea constituída por pessoas das mais variadas idades, interessa-das em conhecer curiosidades, aprofundar aspectos da língua, celebrar escritores homenageados.Nesse aspecto, há que se considerar que as exposições temporárias recebam uma gama muito variada de visitantes, de diferentes idades, origens, classes econômico-sociais, contando também com portadores de necessidades especiais. Por isso, os textos e as instalações devem conter linguagem o mais acessível quanto seja possível.

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A sala de exposições temporárias do Museu da Língua está localizada no primeiro andar do edifício, contando com uma altura de pé-direito de mais de 4,50m. Como dito, o acesso dos visitantes é feito por dois elevadores que se abrem num mesmo espaço da sala, onde há seis pilares distribuídos sime-tricamente no eixo longitudinal (ver planta ao lado). Essa primeira clareira com pilares se espelha no eixo transversal para o fundo da sala. Aproximada-mente no centro, está o bloco de escadas e sanitários que serve esta ala.Assim, fica estipulado um circuito de visitação circular pela conformação da sala de exposições temporárias. Em primeira análise, há duas possibilidades nesse circuito: 1. os visitantes saem dos elevadores e se espraiam na primeira seção, vão até a lateral esquerda (tendo os elevadores às costas), passam para a segunda seção com pilares, estreitam-se pelo longo corredor que permite acesso aos sanitários e, por fim, voltam ao lugar de origem, junto aos eleva-dores; 2. partem da mesma sala dos elevadores, mas desta vez percorrendo o estreito corredor lateral até o fundo da sala de exposições temporárias, então passando para a lateral mais generosa e dando novamente no largo dos elevadores.A maior parte das exposições já realizadas ali - se não todas - escolheram uma das duas opções de percurso acima, sobretudo a primeira. É possível tentar outros circuitos, ou mesmo fazer com que o visitante vá e volte exatamente pelo mesmo caminho, mas estas são geralmente opções mais dificultosas, já que as dimensões da sala não são tão generosas e há muitas especificidades arquitetônicas, como as diferentes larguras dos espaços laterais ou a dúzia de pilares presentes no meio dos dois espaços mais nobres da sala.

O espaço dedicado às exposições temporárias

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Trecho da planta do primeiro pa-vimento da ala leste do edifício, exibindo a sala de exposições temporárias. À esquerda, os ele-vadores que são o único acesso de visitantes à sala.

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Foto: Bob Wolfenson. Feita em 1995 no Rio de Janeiro.

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João Cabral de Melo Neto e sua obra poética

João Cabral de Melo Neto nasceu em 1920 no Recife e faleceu aos 79 anos no Rio de Janeiro. Publica seu primeiro livro, Pedra do sono, em 1942, e entra para a carreira diplomática em 1945. Em 1969, toma posse na Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira 37, antes pertencente ao jornalista e empresário Assis Chateaubriand.João Cabral é considerado um dos maiores poetas brasileiros do século XX e tido como precursor da vanguarda brasileira da Poesia Concreta. Seu traba-lho foi bastante peculiar, já que se apoiava na racionalidade e se valia quase que exclusivamente de substantivos concretos e situações do cotidiano para a construção de imagens e atmosferas. Neste sentido, suas maiores influên-cias brasileiras foram, assumidamente, Carlos Drummond de Andrade e Mu-rilo Mendes. “Situado cronologicamente na geração de 45, dela se afasta por essa sua atitude diante do fazer poético, que diz não a todo tipo de confessio-nalismo, exigindo um tipo de verso que obrigue o leitor a despertar, fazendo apelo à sua razão e inteligência, não cedendo ao automatismo do surrealismo vigente, nem se deixando raptar por qualquer estado emocional ditado por aquilo que se chama inspiração”1.

1 Oliveira, 1994, p. 15-16.

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Premissas

Levando-se em conta o público primordial do Museu da Língua e grande parte dos que tomaram con-tato com a obra de João Cabral alguma vez, percebeu-se que a primeira ideia que vem à cabeça quando se fala deste poeta é a visão de um vasto sertão, com um Severino retirante fugindo da seca para a ca-pital. Então, decidiu-se por começar a mostrar sua obra pelo que o poeta se notabilizou mundialmente: Morte e vida severina. A partir de então, quando supostamente o visitante já pisou em solo conhecido, tudo o que estaria por vir causaria espanto. E o objetivo da exposição é justamente esse, mostrar um João Cabral menos conhecido, menos desbravado pela educação formal escolar.E, tendo em vista que a sala de exposições temporárias do Museu conforma um circuito circular de vi-sitação, os visitantes entram e saem pelos mesmos dois elevadores, ou seja, pela mesma seção do espaço expositivo. Assim, se a exposição João Cabral de Melo Neto: Paisagens com figuras começa com um ser-tão, ela termina do mesmo modo.A partir de então, tentou-se priorizar alguns períodos emblemáticos em que o poeta consagrou sua pes-quisa poética ou tenha inovado nela.O primeiro critério utilizado foi o cronológico, ou seja, fez-se um levantamento de toda a obra poética de João Cabral e foram criados agrupamentos segundo a cronologia com que as obras foram editadas. Este

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critério logo se mostrou insuficiente, já que o poeta elegera alguns temas em seus primeiros trabalhos e seguiu aprofundando-os durante toda a carreira1 .Então, acrescentou-se ao critério cronológico a análise das temáticas e formas de pesquisa de uma lin-guagem própria. Deste modo, O cão sem plumas (1949-1950) foi eleito para representar não só o grupo de obras em que João Cabral trata do rio Capibaribe e da realidade social pernambucana, mas também para demonstrar um primeiro patamar alcançado pelo poeta na busca por uma linguagem cabralina, tendo como degraus para este patamar suas quatro obras iniciais2.Depois da publicação de Duas águas (1956), coletânea que, para Barbosa, tem O cão sem plumas como poema articulador, sua obra poética alcançaria, nas décadas de 1960 e 70 o ápice do rigor com que “o nome de João Cabral passou a identificar-se na literatura brasileira”3. Aqui, tendo domínio absoluto de sua linguagem, Cabral teria feito, segundo Barbosa, a passagem, e não defasagem, do lúcido ao lúdico.Por fim, uma instalação aborda o que foi importante na Espanha para o poeta: reconhecer em outros fazeres o seu próprio fazer poético.

1 Tese defendida por João Alexandre Barbosa no ensaio escrito para a edição dos Cadernos de Literatura dedicada a João Cabral de Melo Neto.2 Também baseado em João Alexandre Barbosa. Na seção dedicada à instalação O cão sem plumas, esclarece-se melhor o argumento.3 Barbosa, 1996, p. 87. As referências a esse ensaio estarão indicadas assim.

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InstalaçãoMORTE E VIDA SEVERINA

A instalação leva o nome da obra que deu a João Cabral de Melo Neto reco-nhecimento internacional como poeta. De maneira geral, os últimos versos de Morte e vida severina pertencem ao imaginário brasileiro e, levando-se em conta que o público do Museu da Língua é formado primordialmente por escolares, é quase certo que a primeira imagem que venha à cabeça do visitante, ao se falar de João Cabral, seja uma paisagem de sertão, com sua secura e seus severinos.Por isso mesmo, esta instalação é o acolhimento da exposição e, dada a con-figuração da sala de exposições temporárias do Museu, é também a última.O visitante começa e termina no pedaço de sertão recriado a partir do quin-tal de uma casa sertaneja que, como a maioria delas, convive com dois senti-mentos antagônicos: a celebração da vida e o pesar da morte.A partir deste ambiente íntimo do quintal sertanejo, percebe-se a morte como figura central e cotidiana, repousando estática no centro da sala, por-

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que “só a morte é certa”. Seu duplo de caráter vago sobrevoa todo o terreiro: a vida com seus fios que tecem uma trama incerta, em que um caminho se cruza a outro e se separa, em que há mil possibilidades e não se pode prever nenhuma.O estranhamento da justaposição de vida e morte, festa e velório, esperança e resignação, é o que Severino encontra pelo caminho. A alternância de sen-timentos culmina na vontade de perguntar: “Seu José, mestre carpina, / que diferença faria / se em vez de continuar / tomasse a melhor saída: / a de saltar, numa noite, / fora da ponte e da vida?”. Ao que o sábio mestre contesta: “eu não sei bem a resposta / da pergunta que fazia, / se não vale mais saltar / fora da ponte e da vida; / nem conheço essa resposta, se quer mesmo que lhe diga; / é difícil defender, / só com palavras, a vida, / ainda mais quando ela é / esta que vê, severina; / mas se responder não pude / à pergunta que fazia, / ela, a vida, a respondeu / com sua presença viva. / E não há melhor resposta / que o espetáculo da vida”.

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Os dois elevadores do Museu são unidos por uma cobertura de palha, reme-tendo a uma varanda da casa de um sertanejo, o que diminui o pé-direito neste trecho e provê o acolhimento da exposição. Dois dos pilares existentes no espaço expositivo são pilares dessa varanda, e se cria outros quatro para que a varanda seja então conformada. O chão é de terra batida: terra e areia coladas a toda a área de 143 metros quadrados do piso desta seção da sala do Museu.Ao sair da varanda ao “céu aberto”, o visitante se depara com um ambiente de ambiguidade entre festa e pesar, vida e morte. Os outros quatro pilares existentes estruturam, como num baldaquino, o cortejo fúnebre para um Severino Lavrador, que é carregado embrulhado numa rede que, quando o visitante se aproxima, permite ouvir “Funeral de um lavrador”, trecho de Morte e vida sevrina musicado por Chico Buarque (ver DVD anexo).As duas paredes laterais são muros de pau-a-pique em construção, ou seja, a vida está em processo, sob quaisquer condições. Por detrás das estruturas ainda incompletas destes muros laterais, vê-se o céu estrelado que no sertão

Conceito e abordagem expográfica

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não tem limites, com sua escuridão pontilhada por pequenas lâmpadas in-candescentes.Pelo terreiro, há objetos do cotidiano sertanejo, de quem trabalha a terra incansavelmente de sol a sol. São latões, enxadas, cestos, dividindo espaço com galhos secos enfeitados com flores de papel.Segundo o próprio João Cabral, “a poesia não é uma coisa para ser lida com distração”. Assim, os pequenos folhetos de cordel que contêm os trechos se-lecionados do poema estão sobre uma mesa, em um canto, aguardando para serem levados embora pelos visitantes.Porém, agora contrariando o poeta, que dizia que sua poesia era para ser lida em voz baixa, surgem membros do serviço educativo que leem em voz alta algum trecho do poema. Leem - e não recitam - pois a poesia de João Cabral de Melo Neto já é suficientemente forte, pede a maior neutralidade possível para a voz. Assim, de tempos em tempos, os visitantes são surpreendidos pela audição do Auto de Natal pernambucano, mas com o perdão do poeta, já que ele foi escrito para o palco.

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Morte e vida severina: Auto de Natal pernambucano foi escrito a pedido de Maria Clara Machado, entre 1954 e 1955, para ser encenado.Narra a trajetória de Severino, retirante que sai do Sertão pernambucano a caminho da capital Recife, tendo o rio Capibaribe como guia.Cansado de ver só fome e miséria no Sertão, Severino resolve tentar a sorte na cidade grande, como tantos outros, para poder não só levar uma vida me-lhor, mas escapar da morte prematura que a tantos condena.Em sua jornada, o retirante se surpreende. Não só não escapa da morte, como ela o acompanha até seu destino final: as margens recifenses do Capi-baribe. Mas é ali, em meio ao lamaçal do mangue e avistando a mesma mi-séria e a mesma fome que via no seu Sertão, onde o último fio de esperança se arrebenta, Severino encontra a vida renovando seu ciclo numa pequena explosão, “mesmo quando é a explosão / de uma vida severina.”

Texto introdutório da instalação

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Trecho 01

A

O meu nome é Severino,não tenho outro de pia.Como há muitos Severinos,que é santo de romaria,deram então de me chamarSeverino de Maria;como há muitos Severinoscom mães chamadas Maria,fiquei sendo o da Mariado finado Zacarias.Mas isso ainda diz pouco:há muitos na freguesia,por causa de um coronelque se chamou Zacariase que foi o mais antigosenhor desta sesmaria.Mas isso ainda diz pouco:se ao menos mais cinco haviacom nome de Severinofilhos de tantas Mariasmulheres de outros tantos,já finados, Zacarias,vivendo na mesma serra

magra e ossuda em que eu vivia.

B

Somos muitos Severinosiguais em tudo na vida:na mesma cabeça grandeque a custo é que se equilibra,no mesmo ventre crescidoSobre as mesmas pernas finas,e iguais também porque o sangueque usamos tem pouca tinta.E se somos Severinosiguais em tudo na vida,morremos de morte igual,mesma morte severina:que é a morte de que se morrede velhice antes dos trinta,de emboscada antes dos vinte,de fome um pouco por dia(de fraqueza e de doençaé que a morte severinaataca em qualquer idade,e até gente não nascida).

C

Conteúdo

Poesia: Morte e vida severina: Auto de Natal pernambucano (1954-1955)

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Somos muitos Severinosiguais em tudo e na sina:a de abrandar estas pedrassuando-se muito em cima,a de tentar despertarterra sempre mais extinta,a de querer arrancaralgum roçado da cinza.Mas, para que me conheçammelhor Vossas Senhoriase melhor possam seguira história de minha vida,passo a ser o Severinoque em vossa presença emigra.

Trecho 02

A

Antes de sair de casaaprendi a ladainhadas vilas que vou passarna minha longa descida.Sei que há muitas vilas grandes,cidades que elas são ditas;sei que há simples arruados,

sei que há vilas pequeninas,todas formando um rosáriocujas contas fossem vilas,todas formando um rosáriode que a estrada fosse a linha.Devo rezar tal rosárioaté o mar onde termina,saltando de conta em conta,passando de vila em vila.

B

Não desejo emaranharo fio de minha linhanem que se enrede no pêlohirsuto desta caatinga.Pensei que seguindo o rioeu jamais me perderia:ele é o caminho mais certo,de todos o melhor guia.Mas como segui-lo agoraque interrompeu a descida?

C

Vejo que o Capibaribe,

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B

Penso agora: mas por queparar aqui eu não podiae como o Capibaribeinterromper minha linha?ao menos até que as águasde uma próxima inverniame levem direto ao marao refazer sua rotina?

C

Na verdade, por uns tempos,parar aqui eu bem podiae retomar a viagemquando vencesse a fadiga.Ou será que aqui cortandoagora a minha descidajá não poderei seguirnunca mais em minha vida?

Trecho 04

A

Bem me diziam que a terra

como os rios lá de cima,é tão pobre que nem semprepode cumprir sua sinae no verão também corta,com pernas que não caminham.Tenho de saber agoraqual a verdadeira viaentre essas que escancaradasfrente a mim se multiplicam.Trecho 03

A

Desde que estou retirandosó a morte vejo ativa,só a morte depareie às vezes até festiva;só morte tem encontradoquem pensava encontrar vida,e o pouco que não foi mortefoi de vida Severina(aquela vida que é menosvivida que defendida,e é ainda mais severinapara o homem que retira).

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se faz mais branda e maciaquanto mais do litorala viagem se aproxima.Agora afinal chegueinessa terra que diziam.Como ela é uma terra docepara os pés e para a vista.

B

Os rios que correm aquitêm a água vitalícia.Cacimbas por todo lado;cavando o chão, água mina.Vejo agora que é verdadeo que pensei ser mentira.Quem sabe se nessa terranão plantarei minha sina?

C

Não tenho medo de terra(cavei pedra toda a vida),e para quem lutou a braçocontra a pirraça da Caatingaserá fácil amansar

esta aqui, tão feminina.Por onde andará a genteque tantas canas cultiva?Feriando: que nesta terratão fácil, tão doce e rica,não é preciso trabalhartodas as horas do dia,os dias todos do mês,os meses todos da vida.

Trecho 05

A

- Esta cova em que estás,com palmos medida,é a conta menorque tiraste em vida.- É de bom tamanho,nem largo nem fundo,é a parte que te cabedeste latifúndio.

B

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- Não é cova grande,é cova medida,é a terra que queriasver dividida.- É uma cova grandepara teu pouco defunto,mas estarás mais anchoque estavas no mundo.

C

- É uma cova grandepara teu defunto parco,porém mais que no mundote sentirás largo.- É uma cova grandepara tua carne pouca,mas a terra dadanão se abre a boca.

Trecho 06

A

Nunca esperei muita coisa,digo a Vossas Senhorias.O que me fez retirarnão foi a grande cobiça;o que apenas busqueifoi defender minha vidada tal velhice que chegaantes de se inteirar trinta;se na serra vivi vinte,se alcancei lá tal medida,o que pensei, retirando,foi estendê-la um pouco ainda.

B

Mas não senti diferençaentre o Agreste e a Caatinga,e entre a Caatinga e aqui a Mataa diferença é a mais mínima.Está apenas em que a terraé por aqui mais macia;está apenas no pavio,ou melhor, na lamparina:pois é igual o queroseneque em toda parte ilumina,e quer nesta terra gordaquer na serra, de caliça,

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a vida arde sempre coma mesma chama mortiça.

C

Agora é que compreendopor que em paragens tão ricaso rio não corta em poçoscomo ele fez na Caatinga:vive a fugir dos remansosa que a paisagem o convida,com medo de se deter,grande que seja a fadiga.Sim, o melhor é apressaro fim desta ladainha,fim do rosário de nomesque a linha do rio enfia;é chegar logo ao Recife,derradeira ave-mariado rosário, derradeirainvocação da ladainha,Recife, onde o rio somee esta minha viagem se fina.

Trecho 07

A

Nunca esperei muita coisa,é preciso que eu repita.Sabia que no rosáriode cidade e de vilas,e mesmo aqui no Recifeao acabar minha descida,não seria diferentea vida de cada dia:que sempre pás e enxadasfoices de corte e capina,ferros de cova, estrovengaso meu braço esperariam.

B

Mas que se este não mudasseseu uso de toda vida,esperei, devo dizer,que ao menos aumentariana quartinha, a água pouca,dentro da cuia, a farinha,o algodãozinho da camisa,ou meu aluguel com a vida.E chegando, aprendo que,nessa viagem que eu fazia,

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sem saber desde o Sertão,meu próprio enterro eu seguia.Só que devo ter chegadoadiantado de uns dias;o enterro espera na porta:o morto ainda está com vida.

C

A solução é apressara morte a que se decidae pedir a este rio,que vem também lá de cima,que me faça aquele enterroque o coveiro descrevia:caixão macio de lama,mortalha macia e líquida,coroas de baronesajunto com flores de aninga,e aquele acompanhamentode água que sempre desfila(que o rio, aqui no Recife,não seca, vai toda a vida).

Trecho 08

A

- Seu José, mestre carpina,que habita este lamaçal,sabe me dizer se o rioa esta altura dá vau?sabe me dizer se é fundaesta água grossa e carnal?- Severino, retirante,jamais o cruzei a nado;quando a maré está cheiavejo passar muitos barcos,barcaças, alvarengas,muitas de grande calado.- Seu José, mestre carpina,para cobrir corpo de homemnão é preciso muita água:basta que chegue ao abdome,basta que tenha funduraigual à de sua fome.

B

- Severino, retirante,pois não sei o que lhe conte;sempre que cruzo este riocostumo tomar a ponte;

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quanto ao vazio do estômago,se cruza quando se come.- Seu José, mestre carpina,e quando ponte não há?quando os vazios da fomenão se tem com que cruzar?quando esses rios sem águasão grandes braços de mar?- Severino, retirante,o meu amigo é bem moço;sei que a miséria é mar largo,não é como qualquer poço:mas sei que para cruzá-lavale bem qualquer esforço.

C

- Seu José, mestre carpina,e que interesse, me diga,há nessa vida a retalhoque é cada dia adquirida?espera poder um diacomprá-la em grandes partidas?- Severino, retirante,não sei bem o que lhe diga:não é que espere comprarem grosso de tais partidas,

mas o que compro a retalhoé, de qualquer forma, vida.- Seu José, mestre carpina,que diferença fariase em vez de continuartomasse a melhor saída:a de saltar, numa noite,fora da ponte e da vida?

Trecho 09

A

- Atenção peço, senhores,para esta breve leitura:somos ciganas do Egito,lemos a sorte futura.Vou dizer todas as coisasque desde já posso verna vida desse meninoacabado de nascer:aprenderá a engatinharpor aí, com aratus,aprenderá a caminharna lama, com goiamuns,

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e a correr o ensinarãoos anfíbios caranguejos,pelo que será anfíbiocomo a gente daqui mesmo.

B

Cedo aprenderá a caçar:primeiro, com as galinhas,que é catando pelo chãotudo o que cheira a comida;depois, aprenderá comoutras espécies de bichos:com os porcos nos monturos,com os cachorros no lixo.Vejo-o, uns anos mais tarde,na ilha do Maruim,vestido negro de lama,voltar de pescar siris;e vejo-o, ainda maior,pelo imenso lamarãofazendo dos dedos iscaspara pescar camarão.C

- Outras coisas que estou vendoé necessário que eu diga:

não ficará a pescarde jereré toda a vida.Minha amiga se esqueceude dizer todas as linhas;não pensem que a vida delehá de ser sempre daninha.Enxergo daqui a planuraque é a vida do homem de ofício,bem mais sadia que os mangues,tenha embora precipícios.Não o vejo dentro dos mangues,vejo-o dentro de uma fábrica:se está negro não é de lama,é graxa de sua máquina,coisa mais limpa que a lamado pescador de maréque vemos aqui, vestidode lama da cara ao pé.

Trecho 10

A

- De sua formosurajá venho dizer:é um menino magro,

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de muito peso não é,mas tem o peso de homem,de obra de ventre de mulher.- Sua formosuradeixai-me que cante:é um menino guenzocomo todos os desses mangues,mas a máquina de homemjá bate nele, incessante.- Sua formosuraeis aqui descrita:é uma criança pequena,enclenque e setemesinha,mas as mãos que criam coisasnas suas já se adivinha.

B

- Severino, retirante,deixe agora que lhe diga:eu não sei bem a respostada pergunta que fazia,se não vale mais saltarfora da ponte e da vida;nem conheço essa resposta,se quer mesmo que lhe diga;é difícil defender,

só com palavras, a vida,ainda mais quando ela éesta que vê, severina;mas se responder não pudeà pergunta que fazia,ela, a vida, a respondeucom sua presença viva.

C

E não há melhor respostaque o espetáculo da vida:vê-la desfiar seu fio,que também se chama vida,ver a fábrica que ela mesma,teimosamente, se fabrica,vê-la brotar como há poucoem nova vida explodida;mesmo quando é assim pequenaa explosão, como a ocorrida;mesmo quando é uma explosãocomo a de pouco, franzina;mesmo quando é a explosãode uma vida severina.

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InstalaçãoINTIMIDADE

De toda a sala de exposições temporárias do Museu da Língua Portuguesa, não há espaço ou canto mais íntimo que os banheiros. Soma-se a isso o fato de que João Cabral de Melo Neto não era um praticante da poesia confes-sional, pelo menos não explicitamente, além de ser um homem muito reser-vado. Mesmo que o poeta fale sobre si mesmo, ainda assim não revela sua intimidade ou seu cotidiano sem alguma relutância. Prefere falar sobre suas leituras, sobre sua poesia, sobre fazeres poéticos. Para saber mais, há que se tomar depoimentos de amigos e familiares, ou mesmo do próprio João Cabral, em alguns raros momentos, principalmente na velhice. Foi o que conseguiu Bebeto Abrantes em seu Recife / Sevilha, mas principalmente nos depoimentos deixados de fora, nos extras. Este do-cumentário e a entrevista concedida pelo poeta aos Cadernos de Literatura Brasileira, cujo primeiro volume foi dedicado ao pernambucano, foram as bases para o desenvolvimento desta instalação: um interlúdio que ambiciona descobrir lados mais profundos e cotidianos daquele que foi chamado “ho-mem sem alma”.

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Ao sair da instalação anterior, Morte e vida severina, o visitante se depara com um corredor de aproximadamente 2 metros de largura em que terá con-tato mais estreito com a figura de João Cabral: o pai, o amigo, o poeta.No corredor vertido em uma espécie de área de estar, assinalando o parado-xo entre espaço de passagem e de permanência, estão colocados dois vídeos (ver DVD anexo) e dois bancos nos 7,50m que antecedem a entrada para os banheiros do edifício.Estes dois vídeos, editados a partir de Recife / Sevilha, falam de dois aspectos de João Cabral de Melo Neto: o primeiro traz a filha Inez, o poeta e amigo Lêdo Ivo e o biógrafo José Castello contando histórias, revelando manias e medos, falando da carreira diplomática, das dores de cabeça que acompa-nharam o poeta até o fim da vida. Já o segundo vídeo aborda a postura poé-tica, o racionalismo, as grandes influências de João Cabral: como sua poesia bebeu de várias águas.

Conceito e abordagem expográfica

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Além do corredor-estar, entrando-se para o acesso aos banheiros, uma pa-rede com declarações do poeta sobre os mais variados temas, extraídas da entrevista concedida aos Cadernos de Literatura Brasileira. E, finalmente, chegando-se à área de cabines e pias, está mais um vídeo (ver DVD anexo), idêntico para cada um dos sanitários, masculino e feminino. É uma compilação de imagens filmadas pela família Cabral durante férias ou passeios, que ilustram a narração de fatos curiosos familiares na voz da filha Inez. Este vídeo foi integralmente retirado dos extras de Recife / Sevilha.Como ambientação geral dos 50 metros quadrados de áreas intersticiais, tre-chos da fala do próprio poeta, transcritos pelos Cadernos de Literatura Brasi-leira, são colocados nas paredes. Aplica-se um filtro em tom sépia amarelado às luminárias para dar ao corredor e à área dos sanitários o aspecto de ima-gem antiga, que sofreu com a ação do tempo, enquanto o tom quente da luz de âmbar traz o calor das lembranças das pessoas queridas.

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João Cabral de Melo Neto foi um poeta que gostava da concretude. Aplicava substantivos concretos como pedra, faca, ferro, e ainda defendia que há ad-jetivos e verbos mais concretos que outros.Não gostava de música, gostava mesmo era de ver. Mais do que ver, ler. Di-zia que por isso foi ser poeta, por gostar de ler. Igualmente, considerava um castigo terrível o fato de ter perdido parcialmente a visão nos últimos anos de sua vida.Foi diplomata, serviu em vários países. Mas se apaixonou pela Espanha e, em particular, por Sevilha. Mas não gostava de viajar e tinha pânico de avião. A opção pela carreira diplomática veio do fato de que ela lhe dava tempo para escrever.Preferia ler ensaios de estética sobre pintura ou arquitetura aos ensaios sobre poesia. Admirava o arquiteto Le Corbusier e escreveu um ensaio respeitado sobre a obra do artista plástico Joan Miró, de quem era amigo.Tamanha admiração pela materialidade, principalmente da palavra, mon-tou uma gráfica em casa e se meteu a editar e imprimir seus próprios poemas e de alguns amigos. A palavra convertida em metal, para ser impressa sobre o papel, fascinava sobremaneira o poeta.

Texto introdutório da instalação

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Trecho 01

A situação era a seguinte: aquele grupo que eu frequentava no Recife era profundamente influenciado pelo surrealismo. Mas o surrealismo, na minha opinião, sempre foi o trauma-tismo da escrita. Como eu era absolutamente incapaz de fa-zer a tal escrita automática, com a qual eu não concordava e, ao mesmo tempo, desejava continuar fazendo parte do grupo do Café Lafayette, eu forjei um tipo de surrealismo, quer dizer, meu surrealismo era algo construído. Quando li o artigo de Antonio Candido, me senti encorajado a escrever desenvolvendo meu construtivismo.

Trecho 02

Eu não me lembro de nenhum poema, mesmo da fase inicial, que tenha vingado em sua primeira versão. Nunca escrevi um poema, digamos, espontaneamente, compreende?

Trecho 03

Eu parto de uma imagem, de um assunto, às vezes até de um ritmo. E aí fico trabalhando em cima. Assim, tenho poemas que demoram anos para serem escritos.

Trecho 04

O mundo interior para mim é fonte de tormento, acho uma chatice.

Trecho 05

Todo mundo sabe que sou o antimusical por excelência.

Trecho 06

Para mim, o inconsciente não tem nada de metafísico. Ele faz parte do ser humano, como qualquer outra parte do corpo, como um braço ou uma perna. Noutras palavras, eu tenho uma visão materialista do inconsciente.

Trecho 07

Eu não dei a contribuição original que os modernistas, Drummond ou os concretistas deram à poesia nacional.

Trecho 08

É verdade, eu sempre tive a sensação de que estava escreven-

Conteúdo

Entrevista: João Cabral de Melo Neto: Cadernos de Literatura Brasileira (1996)

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do meu último livro. Como é que eu vou explicar isso? Acho que foi porque, no fundo, eu nunca me senti vocacionado para a poesia. Para ser sincero, essa ideia de que eu estava escrevendo meu derradeiro trabalho nunca me abandonou. Eu nunca tive uma necessidade interior de me expressar, de forma que, ao escrever, isto me custa muito, dá muito traba-lho. Quando acabava, era um alívio enorme, compreende?Minha vocação, como já disse, era para crítico. A realidade, porém, e não um movimento subjetivo interior, me dava no-vos motivos para criticar, e então eu voltava a escrever poe-sia. Às vezes, podia ser também porque considerava que nem tudo a ser criticado numa determinada realidade havia se esgotado no livro que eu acabara de fazer. Então, fui conti-nuando a escrever. Deve ter sido isso, não tenho muita certe-za. É difícil explicar por que segui escrevendo.

Trecho 09

Eu fiz o que podia. Mas insisto, não era uma vocação pro-priamente dita, como você pode falar em vocação religiosa, por exemplo. E se esta obra vai sobreviver ou não, eu não tenho a menor ideia.

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Instalação O CÃO SEM PLUMAS

Enquanto viveu em Pernambuco, ou mesmo no Brasil, João Cabral jamais escrevera sobre sua terra. Seus primeiros livros Pedra do sono (1940-1941), Os três mal-amados (1943), O engenheiro (1942-1945) e Psicologia da composição (1946-1947) são escritos antes do poeta ser removido como vice-cônsul para o Consulado Geral de Barcelona em 1947. O último desses livros é editado e impresso já na pequena tipografia artesanal que adquire na capital da Ca-talunha.Segundo João Alexandre Barbosa, nesses trabalhos iniciais já está presente grande parte da temática e da “intensa reflexão sobre a própria condição da poesia e do poeta”. E afirma que o livro seguinte, O cão sem plumas (1949-1950), foi o que permitiu ao poeta encontrar “uma modulação própria para incluir em sua poesia os resíduos de uma experiência pessoal, social e históri-ca, cuja tradução poética vinha sendo preparada pelos livros anteriores”1.Mais adiante, em 1956, é publicada sua primeira coletânea: Duas águas, que inclui o citado O cão sem plumas, O rio (1953), Paisagens com figuras (1954-1955), Morte e vida severina (1954-1955) e Uma faca só lâmina (1955). A cole-tânea afirmaria, segundo Barbosa, “as tensões entre composição e expressão que passam a ser, mais explicitamente, os fundamentos da obra. (...) Mas o texto central de articulação entre as Duas águas é mesmo O cão sem plumas,

1 Barbosa, 1996, p. 64.

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(...) que deixa passar o que havia sido represado por uma pensada educação poética: um certo modo de olhar e ver o regional, buscando-se vincular a lin-guagem do mínimo”2. Barbosa explica essa importância defendendo que “se O rio ou Morte e vida severina retomam o tom dramático, mas agora regio-nalizado, de Os três mal-amados, Paisagens com figuras e Uma faca só lâmina voltam a insistir na estrita dependência entre arte e comunicação, bem na senda de O engenheiro e da Antiode3, respectivamente”4.Desse modo, optou-se por recriar a atmosfera densa e abafada do poema que é um dos marcos na obra de João Cabral e em que pela primeira vez o poeta retratou sua terra natal.O rio Capibaribe nasce no Sertão pernambucano e atravessa o Estado até sua foz na cidade do Recife. Através do que vê em suas margens, o poeta o define como um cão magro e sujo, desprovido de adornos ou belezas.Usando palavras como “lama”, “espesso” e “mucosa”, constrói sua crítica social e histórica a respeito de homens vivendo às margens do Capibaribe catando caranguejos no mangue. Uma “vida suja e abafada”, em que já não se pode discernir o que é lama, o que é o rio, o que é o homem.É essa sensação de viscosidade, de superfície lodosa, de espaço abafado que a instalação pretende recriar.

2 Barbosa, 1996, p. 73-74.3 A Antiode está incluída em Psicologia da composição.4 Idem, p. 79-80.

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O cão sem plumas se manifesta num rio canalizado, porém invertido, escuro e esverdeado. O piso e as paredes são revestidos de espuma para que pés e mãos afundem na simulação da maciez da lama ou do lodo, causando estra-nhamento tátil ao visitante. A partir de cima, uma retroprojeção de um rio acompanha o visitante do começo ao fim do canal invertido, dando a sensa-ção de que se está sob a água olhando para o céu entre árvores. Trechos do poemas são ouvidos em caixas de som colocadas pontualmente, ao longo do túnel, ajudando a fazer referência à atmosfera abafada e pegajosa do poema tratado.

Conceito e abordagem expográfica

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Foto: Rafael Craice. Foto em que foi baseado o piloto do vídeo (ver DVD anexo) exibido em re-troprojeção nesta instalação.

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Em 1950, João Cabral vivia em Barcelona (Espanha) como vice-cônsul bra-sileiro e leu num jornal que a expectativa de vida na Índia era de 29 anos, ou seja, os indianos, em média, viviam até os 29 anos de idade. Pior, descobriu que seu Recife possuía então uma expectativa de vida de 28 anos. “Eu fiquei tão impressionado com isso”, disse o poeta, “que escrevi O cão sem plumas. Aí Pernambuco não me largou mais.”A instalação a seguir tenta materializar a atmosfera de O cão sem plumas, longo poema que trata do rio Capibaribe, que nasce no Sertão pernambuca-no e tem foz no Recife, revelando a condição miserável da população ribei-rinha e a decadência e pobreza das paisagens em suas margens. Este poema pertence à seção da produção cabralina em que se pode notar claramente a crítica social e histórica que permeia quase toda a sua obra, apresentando inclusive tons de ironia e sarcasmo.

Texto introdutório da instalação

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Trecho 01

A cidade é passada pelo riocomo uma ruaé passada por um cachorro;uma frutapor uma espada.

O rio ora lembravaa língua mansa de um cão,ora o ventre triste de um cão,ora o outro riode aquoso pano sujodos olhos de um cão.

Trecho 02

Aquele rioera como um cão sem plumas.Nada sabia da chuva azul,da fonte cor-de-rosa,da água do copo de água,da água de cântaro,dos peixes de água,da brisa na água.

Sabia dos caranguejosde lodo e ferrugem.

Sabia da lamacomo de uma mucosa.Devia saber dos polvos.Sabia seguramenteda mulher febril que habita as ostras.

Trecho 03

E jamais o vi ferver(como ferveo pão que fermenta).Em silêncio,o rio carrega sua fecundidade pobre,grávido de terra negra.

Em silêncio se dá:em capas de terra negra.Em botinas ou luvas de terra negrapara o pé ou a mãoque mergulha.

Trecho 04

Seria a água daquele riofruta de alguma árvore?Por que parecia aquela

Conteúdo

Poesia: O cão sem plumas (1949-1950)

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uma água madura?Por que sobre ela, sempre,como que iam pousar moscas?

Aquele riosaltou alegre em alguma parte?Foi canção ou fonteem alguma parte?Por que então seus olhosvinham pintados de azulnos mapas?

Trecho 05

Entre a paisagem(fluía)de homens plantados na lama;de casas de lamaplantadas em ilhascoaguladas na lama;paisagem de anfíbiosde lama e lama.

Como o rioaqueles homenssão como cães sem plumas(um cão sem plumas

é maisque um cão saqueado;é maisque um cão assassinado.

Trecho 06

Mas ele conhecia melhoros homens sem pluma.Estessecamainda mais alémde sua caliça extrema;ainda mais alémde sua palha;mais alémda palha de seu chapéu;mais alématéda camisa que não têm;muito mais além do nomemesmo escrito na folhado papel mais seco.

Porque é na água do rioque eles se perdem(lentamente

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e sem dente).Ali se perdem(como uma agulha não se perde).Ali se perdem(como um relógio não se quebra).

Trecho 07

Na paisagem do riodifícil é saberonde começa o rio;onde a lamacomeça do rio;onde a terracomeça da lama;onde o homem,onde a pelecomeça da lama;onde começa o homemnaquele homem.

Difícil é saberse aquele homemjá não estámais aquém do homem;mais aquém do homemao menos capaz de roer

os ossos do ofício;capaz de sangrarna praça;capaz de gritarse a moenda lhe mastiga o braço;capazde ter a vida mastigadae não apenasdissolvida(naquela água maciaque amolece seus ossoscomo amoleceu as pedras).

Trecho 08

Um cão, porque vive,é agudo.O que vivenão entorpece.O que vive fere.O homem,porque vive,choca com o que vive.Viveré ir entre o que vive.

O que vive

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incomoda de vidao silêncio, o sono, o corpoque sonhou cortar-seroupas de nuvens.O que vive choca,tem dentes, arestas, é espesso.O que vive é espessocomo um cão, um homem,como aquele rio.

Trecho 09

Como todo o realé espesso.Aquele rioé espesso e real.Como uma maçãé espessa.Como um cachorroé mais espesso que uma maçã.Como é mais espessoo sangue do cachorrodo que o próprio cachorro.Como é mais espessoum homemdo que o sangue de um cachorro.Como é muito mais espesso

o sangue de um homemdo que o sonho de um homem.

Trecho 10

Porque é muito mais espessaa vida que se desdobraem mais vida,como uma frutaé mais espessaque sua flor;como a árvoreé mais espessaque sua semente;como a floré mais espessaque sua árvore,etc. etc.

Espesso,porque é mais espessaa vida que se lutacada dia,o dia que se adquirecada dia(como uma aveque vai cada segundoconquistando seu voo).

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Instalação POETA ARQUITETO

Depois de Duas águas (1956), João Cabral publica Quaderna (1960), Dois parlamentos (1961) e Serial em reunião com os dois anteriores, no volume intitulado Terceira feira (1961). Ainda publica A educação pela pedra (1966) e uma nova coletânea, Poesia completa (1968), fechando sua produção editada na década de 1960. Para Barbosa, “seria arriscado afirmar, tratando-se de um poeta como João Cabral, ser este o melhor conjunto de sua obra”, mas continua dizendo não ser exagero afirmar “que este conjunto de obras da década de 60 é o momento decisivo em que o poeta configura, de uma vez por todas, o domínio de sua linguagem. (...) É como se houvesse uma pas-sagem da linguagem da poesia, dominada, sobretudo, pelo exercício lúcido do poema, à poesia da linguagem, abrindo o poema para exercícios lúcidos e lúdicos”1.Museu de tudo (1975) é publicado muitos anos depois de A educação pela pedra e, juntamente com A escola das facas (1980), representam a passagem, e não a defasagem, do lúcido ao lúdico, segundo Barbosa. “A insidiosa, per-sistente e vitoriosa lucidez de seu projeto que vai até A educação pela pedra não deixa de ser o substrato desses numerosos poemas que reuniu em livros. Por outro lado, no entanto, é evidente (...) que agora a poesia não é mais um objeto que se constrói em termos de repetitivas variações, o que dava aos livros anteriores aquele sentido espiralado de um fazer perseguido. Lo-grado o projeto, pode-se deixar que a poesia se represente em poemas que já passaram pelo crivo de uma longa e conquistada poética: a do rigor, com

1 Barbosa, 1996, p. 79-80.

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que o nome de João Cabral passou a identificar-se na literatura brasileira pós-modernista”2. Assim, o universo ordenado e geométrico do poeta atinge tamanho grau de coesão que, a partir de então, João Cabral passa a descobrir o que de lúdico há nas palavras, em seus significados, em seus agrupamentos, na poesia. Os poemas se transformam em jogos, ainda que extremamente racionais e con-trolados.O poeta se propunha problemas, falava da “necessidade que sempre expe-rimentou de criar dificuldades para escrever”3, pois, segundo o próprio João Cabral, “os poetas que escrevem por escassez de ser, como eu, planejam os livros, têm um vazio a preencher. Os outros transbordam.”4 Por isso, segundo ele, um poema poderia levar anos para ser feito. “Para mim, a poesia é uma construção, como uma casa. Isso eu aprendi com Le Corbusier. A poesia é uma composição. Quando digo composição, quero dizer uma coisa construída, planejada - de fora para dentro. (...) Eu só entendo o poético neste sentido. Vou fazer uma poesia de tal extensão, com tais e tais elementos, coisas que eu vou colocando como se fossem tijolos. É por isso que eu posso gastar anos fazendo um poema: porque existe planejamento.”5

2 Idem, p. 87.3 Oliveira, 1994, p. 21.4 Trecho extraído da entrevista concedida aos Cadernos de Literatura Brasileira. p. 21.5 Idem.

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Multiplicação dos pilares existentes para propor uma estrutura arquitetô-nica que ressalta a ordem e a geometria espacial. Todos os 20 são idênticos, reafirmando o espaço perfeitamente ordenado em que se adentrou.Porém, à medida em que se aproxima de cada coluna, o visitante descobre que, nesse universo ordenado, há poesia que emerge escrita em luz em alguns dos grandes totens. Ou seja, os pilares feitos ou recobertos por chapa metáli-ca pintada de branco, recebem recorte para deixar as letras retroiluminadas, permitindo a leitura de uma distância um pouco menor que se se houvesse um contraste maior.Em outros pontos, pode-se ouvir poemas ou trechos falados, por meio de placas sonoras delgadas (panphonic) embutidas nos pilares. A posição dessas placas sonoras são marcadas por linhas horizontais retroiluminadas, acima e embaixo das placas, porque pedem uma aproximação do visitante devido à sua potência sonora.

Conceito e abordagem expográfica

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João Cabral de Melo Neto alcança na década de 1960 tamanho domínio de sua linguagem tão particular que, a partir de certo momento dessa maturi-dade poética, passa a inserir o lúdico em seus poemas.A racionalidade, o controle e a secura de sua poesia começam a caminhar lado a lado com brincadeiras semânticas. A memória do menino criado no engenho e a admiração do poeta pela arquitetura aparecem de formas im-pensadas até então, mas que consolidam uma incansável pesquisa poética que João Cabral manifesta desde sua primeira obra.Este é o momento de desbravar a poesia, palavra por palavra.

Texto introdutório da instalação

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Quaderna (1956-1959)

A mulher e a casa

Tua sedução é menosde mulher do que de casa:pois vem de como é por dentroou por detrás da fachada.

Mesmo quando ela possuitua plácida elegância,esse teu reboco claro,riso franco de varandas,

uma casa não é nuncasó para ser contemplada;melhor: somente por dentroé possível contemplá-la.

Seduz pelo que é dentro,ou será, quando se abra;pelo que pode ser dentrode suas paredes fechadas;

pelo que dentro fizeramcom seus vazios, com o nada;

pelos espaços de dentro,não pelo que dentro guarda;

pelos espaços de dentro:seus recintos, suas áreas,organizando-se dentroem corredores e salas,

os quais sugerindo ao homemestâncias aconchegadas,paredes bem revestidasou recessos bons de cavas,

exercem sobre esse homemefeito igual ao que causas:a vontade de corrê-lapor dentro, de visitá-la.

A palavra seda

A atmosfera que te envolveatinge tais atmosferasque transforma muitas coisasque te concernem, ou cercam.

E como as coisas, palavrasimpossíveis de poema:

Conteúdo

Poesia: Quaderna (1956-1959), A educação pela pedra (1962-1965), Museu de tudo (1966-1974) e A escola das facas (1975-1980).

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exemplo, a palavra ouro,e até este poema, seda.

É certo que tua pessoanão faz dormir, mas desperta;nem é sedante, palavraderivada da de seda.

E é certo que a superfíciede tua pessoa externa,de tua pele e de tudoisso que em ti se tateia,

nada tem da superfícieluxuosa, falsa, acadêmica,de uma superfície quandose diz que ela é “como seda”.

Mas em ti, em algum ponto,talvez fora de ti mesma,talvez mesmo no ambienteque retesas quando chegas

há algo de muscular,de animal, carnal, pantera,de felino, da substânciafelina, ou sua maneira,

de animal, de animalmente,de cru, de cruel, de crueza,que sob a palavra gastapersiste na coisa seda.

A palo seco

1.1

Se diz a palo secoo cante sem guitarra;o cante sem; o cante;o cante sem mais nada;

se diz a palo secoa esse cante despido:ao cante que se cantasob o silêncio a pino.

1.2

O cante a palo secoé o cante mais só:é cantar num desertodevassado de sol;

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é o mesmo que cantarnum deserto sem sombraem que a voz só dispõedo que ela mesma ponha.

1.3

O cante a palo secoé um cante desarmado:só a lâmina da vozsem a arma do braço;

que o cante a palo secosem tempero ou ajudatem de abrir o silênciocom sua chama nua.

1.4

O cante a palo seconão é um cante a esmo:exige ser cantadocom todo o ser aberto;

é um cante que exigeo ser-se ao meio-dia,

que é quando a sombra fogee não medra a magia.

2.1

O silêncio é um metalde epiderme gelada,sempre incapaz das ondasimediatas da água;

a pele do silênciopouca coisa arrepia:o cante a palo secode diamante precisa.

2.2

Ou o silêncio é pesado,é um líquido denso,que jamais colaboranem ajuda com ecos;

mais bem, esmaga o cantee afoga-o, se indefeso:a palo seco é um cantesubmarino ao silêncio.

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2.3

Ou o silêncio é levíssimo,é líquido sutilque se ecoa nas frestasque no cante sentiu;

o silêncio pacientevagaroso se infiltra,apodrecendo o cantede dentro, pela espinha.

2.4

Ou o silêncio é uma telaque difícil se rasgae que quando se rasganão demora rasgada;

quando a voz cessa, a telase apressa em se emendar:tela que fosse de água,ou como tela de ar.

3.1

A palo seco é o cantede todos mais lacônico,mesmo quando pareçaestirar-se um quilômetro:

enfrentar o silêncioassim despido e poucotem de forçosamentedeixar mais curto o fôlego.

3.2

A palo seco é o cantede grito mais extremo:tem de subir mais altoque onde sobe o silêncio;

é cantar contra a queda,é um cante para cima,em que se há de subircortando, e contra a fibra.

3.3

A palo seco é o cantede caminhar mais lento:

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por ser a contrapelo,por ser a contravento;

é cante que caminhacom passo paciente:o vento do silênciotem a fibra de dente.

3.4

A palo seco é o canteque mostra mais soberba;e que não se oferece:que se toma ou se deixa;

cante que não se enfeita,que tanto se lhe dá;é cante que não canta,cante que aí está.

4.1

A palo seco cantao pássaro sem bosque,por exemplo: pousadosobre um fio de cobre;

a palo seco cantaainda melhor esse fioquando sem qualquer pássarodá o seu assovio.

4.2

A palo seco cantama bigorna e o martelo,o ferro sobre a pedra,o ferro contra o ferro;

a palo seco cantaaquele outro ferreiro:o pássaro arapongaque inventa o próprio ferro.

4.3

A palo seco existemsituações e objetos:Graciliano Ramos,desenho de arquiteto,

as paredes caiadas,a elegância dos pregos,

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a cidade de Córdoba,o arame dos insetos.

4.4

Eis uns poucos exemplosde ser a palo seco,dos quais se retirarhigiene ou conselho:

não o de aceitar o secopor resignadamente,mas de empregar o secoporque é mais contundente.

A educação pela pedra (1962-1965)

A educação pela pedra

Uma educação pela pedra: por lições;para aprender da pedra, frequentá-la;captar sua voz inenfática, impessoal

(pela de dicção ela começa as aulas).A lição de moral, sua resistência friaao que flui e a fluir, a ser maleada;a de poética, sua carnadura concreta;a de economia, seu adensar-se compacta:lições da pedra (de fora para dentro,cartilha muda), para quem soletrá-la.

Outra educação pela pedra: no Sertão(de dentro para fora, e pré-didática).No Sertão a pedra não sabe lecionar,e se lecionasse não ensinaria nada;lá não se aprende a pedra: lá a pedra,uma pedra de nascença, entranha a alma.

Tecendo a manhã

Um galo sozinho não tece uma manhã:ele precisará sempre de outros galos.De um que apanhe esse grito que elee o lance a outro; de um outro galoque apanhe o grito que um galo antese o lance a outro; e de outros galosque com muitos outros galos se cruzemos fios de sol de seus gritos de galo,para que a manhã, desde uma teia tênue,se vá tecendo, entre todos os galos.

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E se encorpando em tela, entre todos,se erguendo tenda, onde entrem todos,se entretendendo para todos, no toldo(a manhã) que plana livre de armação.A manhã, toldo de um tecido tão aéreoque, tecido, se eleva por si: luz balão.

Catar feijão

Catar feijão se limita com escrever:jogam-se os grãos na água do alguidare as palavras na da folha de papel;e depois, joga-se fora o que boiar.

Certo, toda palavra boiará no papel,água congelada, por chumbo seu verbo:pois para catar esse feijão, soprar nele,e jogar fora o leve e oco, palha e eco.

Ora, nesse catar feijão entra um risco:o de que entre os grãos pesados entreum grão qualquer, pedra ou indigesto,um grão imastigável, de quebrar dente.Certo não, quando ao catar palavras:a pedra dá à frase seu grão mais vivo:

obstrui a leitura fluviante, flutual,açula a atenção, isca-a com o risco.

Num monumento à aspirina

Claramente: o mais prático dos sóis,o sol de um comprimido de aspirina:de emprego fácil, portátil e barato,compacto de sol na lápide sucinta.Principalmente porque, sol artificial,que nada limita funcionar de dia,que a noite não expulsa, cada noite,sol imune às leis de meteorologia,a toda hora em que se necessita delelevanta e vem (sempre num claro dia):acende, para secar a aniagem da alma,quará-la, em linhos de um meio-dia.

Convergem: a aparência e os efeitosda lente do comprimido de aspirina:o acabamento esmerado desse cristal,polido a esmeril e repolido a lima,prefigura o clima onde ele faz vivere o cartesiano de tudo nesse clima.De outro lado, porque lente interna,

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de uso interno, por detrás da retina,não serve exclusivamente para o olhoa lente, ou o comprimido de aspirina:ela reenfoca, para o corpo inteiro,o borroso de ao redor, e o reafina.

Museu de tudo (1966-1974)

O museu de tudo

Este museu de tudo é museucomo qualquer outro reunido;como museu, tanto pode sercaixão de lixo ou de arquivo.Assim, não chega ao vertebradoque deve entranhar qualquer livro:é depósito do que aí está,se fez sem risca ou risco.

A insônia de Monsieur Teste

Uma lucidez que tudo via,

como se à luz ou se de dia;e que, quando de noite, acendedetrás das pálpebras o dentede uma luz ardida, sem pele,extrema, e que de nada serve:porém luz de uma tal lucidezque mente que tudo podeis.

Retrato de poeta

O poeta de que contou Burgess,que só escrevia na latrina,quando sua obra lhe saíapor debaixo como por cima,volta sempre à lembrançaquando em frente à poesiameditabunda quese quer filosofia,mas que sem a coragem e o rigorde ser uma ou outra, joga e hesita,ou não hesita e apenas jogacom o fácil, como vigarista.Pois tal meditabúndiacerto há de ser escritaa partir de latrinase diarréias propícias.

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A escultura de Mary Vieira

dar a qualquer matériaa aritmética do metaldar lâmina ao metale à lâmina alumíniodar ao número ímparo acabamento do parentão ao número paro assentamento do quatro

dar a qualquer linhaprojeto a pino de retadar ao círculo sua retasua racional de quadrado

dar à escultura o limpode uma máquina de artepor sua vez capaz da artede dar-se um espaço explícito

No centenário de Mondrian

1 ou 2

Quando a alma já se dóido muito corpo a corpocom o sem volta confuso,sempre demais, amorfo,se dói de lutar contrao que é inerte e a luta,coisas que lhe resisteme estão vivas, se mudas,

para chegar ao poucoem que umas poucas coisasrevelem-se, compactas,recortadas e todas,

e chegar entre as poucasà coisa coisa e ao miolodessa coisa, onde ficaseu esqueleto ou caroço,

que então tem de arearao mais limpo, ao perfilasséptico e precisodo extremo do polir,

ou senão despoliraté o texto da estopaou até o grão grosseiroda matéria de escolha;

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pois quando a alma já ardeda afta ou da aziaque dá a lucidez brasa,a atenção carne viva,

quando essa alma já tempor sobre e sob a pelequeimaduras do solque teve de incender-se

e começa a ter cãibraspelo esforço de dentrode manter esse solque mantém o incêndio,

centrada na ideia fixade chegar ao que querpara o quê que ela fazseja o que deve ser:

então só essa pinturade que foste capazapaga as equimosesque a carne da alma traz

e apaga na alma a luz,ácida, do sol de dentro,ao mostrar-lhe o impossível

que é atingir teu extremo.

2 ou 1

Quando a alma se dispersaem todas as mil coisasdo enredado e prolixodo mundo à sua volta,

ou quando se dissolvenas modorras da música,no invertebrado vago,sem ossos, de água em fuga,

ou quando se empantananum alcalino demaisque adorme o ácido vivoque rói porém que faz,

ou quando a alma borrachatem os músculos lassose é incapaz de molaspara atirar-se ao faço:

então, só essa pinturade que foste capaz,de que excluíste até

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o nada, por demais,e onde só conservasteo léxico concisode teus perfis quadradosa fio, e também fios,

pois que, por bem cortados,ficam cortantes aindae herdam a agudezados fios que os confinam,

então, só essa pinturade cores em voz alta,cores em linha reta,despidas, cores brasa,

só tua pintura clara,de clara construção,desse construir clarofeito a partir do não,

pintura em que ensinastea moral pela vista(deixando o pulso mansodar mais tensão à vida),

só essa pintura pode,som sua explosão fria,

incitar a alma murcha,de indiferença ou acídia,

e lançar ao fazera alma de mãos caídas,e ao fazer-se, fazendocoisas que a desafiam.

O artista incofessável

Fazer o que seja é inútil.Não fazer nada é inútil.Mas entre fazer e não fazermais vale o inútil do fazer.Mas não, fazer para esquecerque é inútil: nunca o esquecer.Mas fazer o inútil sabendoque ele é inútil, e bem sabendoque é inútil e que seu sentidonão será sequer pressentido,fazer: porque ele é mais difícildo que não fazer, e dificil-mente se poderá dizercom mais desdém, ou então dizermais direto ao leitor Ninguémque o feito o foi para ninguém.

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Catecismo de Berceo

1Fazer com que a palavra levepese como a coisa que diga,para o que isolá-la de entreo folhudo em que se perdia.

2Fazer com que a palavra frouxaao corpo de sua coisa adira:fundi-la em coisa, espessa, sólida,capaz de chocar com a contígua.3Não deixar que saliente fale:sim, obrigá-la à disciplinade proferir a fala anônima,comum a todas de uma linha.

4Nem deixar que a palavra fluacomo rio que cresce sempre:canalizar a água sem fimnoutras paralelas, latente.

Resposta a Vinicius de Moraes

Não sou um diamante natonem consegui cristalizá-lo:se ele te surge no que façoserá um diamante opacode quem por incapaz do vagoquer de toda forma evitá-lo,se não com o melhor, o claro,do diamante, com o impacto:com a pedra, a aresta, com o açodo diamante industrial, barato,que incapaz de ser cristal rarovale pelo que tem de cacto.

A Quevedo

Hoje que o engenho não tem praça,que a poesia se quer mais que artee se denega a partedo engenho em sua traça,

nos mostra teu travejamentoque é possível abolir o lance,o que é acaso, chance,mais: que o fazer é engenho.

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O número quatro

O número quatro feito coisaou a coisa pelo quatro quadrada,seja espaço, quadrúpede, mesa,está racional em suas patas;está plantada, à margem e acimade tudo o que tentar abalá-la,imóvel ao vento, terremotos,no mar maré ou no mar ressaca.Só o tempo que ama o ímpar instávelpode contra essa coisa ao passá-la:mas a roda, criatura do tempo,é uma coisa em quatro, desgastada.

Anti-Char

Poesia intransitiva,sem mira e pontaria:sua luta com a língua acabadizendo que a língua diz nada.

É uma luta fantasma,vazia, contra nada;não diz a coisa, diz vazio;nem diz coisas, é balbucio.

Os pólos do branco (ou do negro)

O branco não é uma cor:é o que o carvão revela,o carvão tão branco, apesardo negro com que opera.Talvez o branco seja apenasforma de ser, ou sejaa forma de ser que só o podena mais dura pureza.E embora negro e branco semprenos opostos se vejam,a instabilidade dos doisé de igual natureza:ambos têm a limitação(se pólos na aparência)glandular, de só conseguiremviver na intransigência.

Metadicionário

Em qualquer idioma ela temmesmo e só nome que chamar-se,incapaz de não decifrar-selida ou entendida por ninguém.

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Nem mesmo Deus tem a faculdadede se chamar em qualquer língua:só a aspirina existe acimada geografia e seus sotaques.

Proust e seu livro

De certo modo o sabia, quem viveucom a vida e a obra emaranhadas,que viveu fazendo-as, refazendo-as,elastecendo-a em tempo e páginas,

que vestiu sua obra, por dentro,percorrendo-a, viajando em seu barco,decerto viu que um dia acabá-laera matar-se em livro, suicidá-lo.

Poema

Trouxe o sol à poesiamas como trazê-lo ao dia?

No papel mineral

qualquer geometriafecunda a pura floraque o pensamento cria.

Mas à floresta de gestosque nos povoa o dia,esse sol de palavraé natureza fria.

Ora, no rosto que, grave,riso súbito abria,no andar decididoque os longes media,

na calma segurançade quem tudo sabia,no contato das coisasque apenas coisas via,

nova espécie de soleu, sem contar, descobria:não a claridade imóvelda praia ao meio-dia,

de aérea arquiteturaou de pura poesia:mas o oculto calorque as coisas todas cria.

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A escola das facas (1975-1980)

Menino de engenho

A cana cortada é uma foice.Cortada num ângulo agudo,ganha o gume afiado da foiceque a corta em foice, em dar-se mútuo.

Menino, o gume de uma canacortou-me ao quase de cegar-me,e uma cicatriz, que não guardo,soube dentro de mim guardar-se.

A cicatriz não tenho mais;o inoculado, tenho ainda;nunca soube é se o inoculado(então) é vírus ou vacina.

Horácio

O bêbado cabal.Quando nós, de meninos,

vivemos a doençade criar passarinhos,

e as férias acabadaso horrível outra-vezdo colégio nos pôsna rotina de rês,

deixamos com Horácioum dinheiro meninoque pudesse manterem vida os passarinhos.

Poucos dias depoisas gaiolas sem línguaeram tumbas aéreasde morte nordestina.

Horácio não compraraalpiste; e tocar na águagratuita, para os cochos,certo lhe repugnava.

Gastou o que do alpistecom o alpiste-cachaça,alma do passarinhoque em suas veias cantava.

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O fogo no canavial

A imagem mais viva do inferno.Eis o fogo em todos seus vícios:eis a ópera, o ódio, o energúmeno,a voz rouca de fera em cio.

E contagioso, como outrorafoi, e hoje não é mais, o inferno:ele se catapulta, exporta,em brulotes de curso aéreo,

em petardos que se disparamsem pontaria, intransitivos;mas que queimada a palha dormem,bêbados, curtindo seu litro.

(O inferno foi fogo de vista,ou de palha, queimou as saias:deixou nua a perna da cana,despiu-a, mas sem deflorá-la.)

Autocrítica

Só duas coisas conseguiram(des)feri-lo até a poesia:

o Pernambuco de onde veioe o aonde foi, a Andaluzia.Um, o vacinou do falar ricoe deu-lhe a outra, fêmea e viva,desafio demente: em versodar a ver Sertão e Sevilha.

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Instalação SEVILHIZAR O MUNDONunca foi segredo a admiração que João Cabral nutria pela Espanha, em especial pela cidade de Sevilha. Em sua primeira temporada no país, entre 1947 e 1952, leu toda literatura espanhola a que teve contato, desde os me-dievais a seus contemporâneos, e confirmou que ela teve reflexo em sua obra a partir do longo poema O rio (1953). Em Paisagens com figuras (1954-1955), homenageia paisagens pernambucanas e espanholas, e, a partir daí, essas duas localidades sempre estiveram presentes na poesia cabralina.Além da literatura, que o poeta afirmava ser “a mais concreta do mundo”, João Cabral apreciava el arte del toreo e os bailes flamencos. O que atraía o pernambucano a esses espetáculos era o “fazer no extremo”: cantar no ex-tremo da voz, dançar no extremo do sentimento, colocar a si mesmo em um momento decisivo. Expor-se.João Cabral escreveu poemas dedicados às figuras do toureiro, da bailadora, e mesmo do ferreiro, identificando nesses fazeres o seu próprio fazer poético. O mesmo ocorreu quando escreveu o ensaio Joan Miró, sobre o artista plás-tico catalão, de quem foi amigo pessoal. O poeta enxergava convergências com sua poética na relação entre toureiro e touro, entre ferreiro e ferro, entre a bailadora e ela mesma. Para José Castello, biógrafo de Cabral, o poeta via nessas artes o embate com a realidade, que ele mesmo procurava: trabalhava a palavra à exaustão para alcançar a palavra última, insubstituível.Assim, a poesia dedicada aos elementos espanhois, com exceção das paisa-gens, é quase sempre metalinguística. Ou seja, João Cabral via, principal-mente nos motivos tipicamente andaluzes, motes ricos para falar de seu fazer poético, para fazer metapoesia.

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O visitante sai da sala branca com os pilares multiplicados e entra na sala cujas dimensões maiores estão revestidas por espelhos. O espelho é o ele-mento da reflexão: o visitante vê sua imagem ali, como parte da expografia. Para além do espelho, ou por trás deles, há vários videowalls formados por monitores LED sem bordas que apresentam bailes flamencos e touradas. Os poemas que João Cabral escreveu sobre as figuras da bailadora, do toureiro, do ferreiro e sobre Sevilha estão em monitores também.Esse artifício de colocar monitores atrás de espelhos, que na verdade são pla-cas de vidro cinza com uma película espelhada, é utilizado para que, quando acesos, os monitores revelem seu conteúdo. Além, é claro, de refletir o am-biente à frente. Por outro lado, se não há luz vinda de trás da placa de vidro espelhada, o que se vê é somente a imagem refletida de si mesmo.Desde o teto, pendem tecidos coloridos translúcidos, que remetem às saias das bailadoras e os panos com que os toureiros atiçam e desviam seus opo-nentes. A maioria fica somente sobre os visitantes, mas algumas dessas tiras de tecido descem e convidam o visitante a circundá-los, causando um movi-mento meio serpentiante pelo espaço.O som ambiente é o do baile flamenco que estiver sendo apresentado em al-gum canto da sala nos videowalls.Depois de assistir a touradas e bailes, o visitante chega novamente ao sertão da instalação inicial, Morte e vida severina.

Conceito e abordagem expográfica

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João Cabral de Melo Neto se sentia em casa em duas terras: Pernambuco e Andaluzia (sul da Espanha). Como diplomata, passou algumas temporadas no país ibérico, tratando de conhecer bem suas paisagens, seus costumes, suas artes.Conhecia profundamente a literatura espanhola, já que leu tudo que chegou às suas mãos. Além da literatura, João Cabral era fascinado pelos bailes fla-mencos e touradas. Também admirava o trabalho de artistas plásticos como Pablo Picasso e do amigo Joan Miró, a quem dedicou um respeitado ensaio de estética.Todas essas figuras espanholas eram interessantes por seus fazeres: o tourei-ro, a bailadora, o ferreiro chamavam a atenção do poeta porque dominavam artes que, em essência, eram como a dele. Isto é, João Cabral via que o tou-reiro combatia diretamente o touro, o ferreiro entrava em luta com o ferro para forjá-lo, a bailadora travava um duelo com ela mesma no baile. E se passava o mesmo com o poeta, mas a batalha dele era com a palavra, aquela a que não se poderia substituir, a palavra última.João Cabral retratou as paisagens de Sevilha e da Andaluzia em alguns poe-mas, mas foi através da metalinguagem que verdadeiramente retratou o que admirava em terras espanholas.

Texto introdutório da instalação

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Paisagens com figuras (1954-1955)

Alguns toureiros

Eu vi Manolo GonzálezE Pepe Luís, de Sevilha:precisão doce de flor,graciosa, porém precisa.

Vi também Julio Aparicio,de Madrid, como Parrita:ciência fácil de flor,espontânea, porém estrita.

Vi Miguel Báez, Litri,dos confins da Andaluzia,que cultiva uma outra flor:angustiosa de explosiva.

E também Antonio Ordóñez,que cultiva flor antiga:perfume de renda velha,de flor em livro dormida.

Mas eu vi Manuel Rodríguez,Manolete, o mais deserto,

o toureiro mais agudo,mais mineral e desperto,

o de nervos de madeira,de punhos secos de fibra,o de figura de lenha,lenha seca de caatinga,

o que melhor calculavao fluido aceiro da vida,o que com mais precisãoroçava a morte em sua fímbria,

o que à tragédia deu número,à vertigem, geometria,decimais à emoçãoe ao susto, peso e medida,

sim, eu vi Manuel Rodríguez,Manolete, o mais asceta,não só cultivar sua flormas demonstrar aos poetas:

como domar a explosãocom mão serena e contida,sem deixar que se derramea flor que traz escondida,

Conteúdo

Poesia: “Alguns toureiros” (Paisagens com figuras), “Estudos para uma bailadora andaluza” (Quader-na), “O ferrageiro de Carmona” (Crime na Calle Relator), Sevilha andando (1987-1993) e Andando Sevi-lha (1987-1989).

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e como, então, trabalhá-lacom mão certa, pouca e extrema:sem perfumar sua flor,sem poetizar seu poema.

Quaderna (1956-1959)

Estudos para uma bailadora andaluza

1

Dir-se-ia, quando aparecedançando por siquiriyas,que com a imagem do fogointeira se identifica.

Todos os gestos do fogoque então possui dir-se-ia:gestos das folhas do fogo,de seu cabelo, de sua língua;

gestos do corpo do fogo,de sua carne em agonia.

carne de fogo, só nervos,carne toda em carne viva.

Então, o caráter do fogonela também se adivinha:mesmo gosto dos extremos,de natureza faminta,

gosto de chegar ao fimdo que dele se aproxima,gosto de chegar-se ao fim,de atingir a própria cinza.

Porém a imagem do fogoé num ponto desmentida:que o fogo não é capazcomo ela é, nas siguiriyas,

de arrancar-se de si mesmonuma primeira faísca,nessa que, quando ela quer,vem e acende-a fibra a fibra,

que somente ela é capazde acender-se estando fria,de incendiar-se com nada,de incendiar-se sozinha.

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2

Subida ao dorso da dança(vai carregada ou a carrega?)é impossível se dizerse é a cavaleira ou a égua.

Ela tem na sua dançatoda a energia retesae todo o nervo de quandoalgum cavalo se encrespa.

Isto é: tanto a tensãode quem vai montado na sela,de quem monta um animale só a custo o debela,

como a tensão do animaldominado sob a rédea,que ressente ser mandadoe obedecendo protesta.

Então, como declararse ela é égua ou cavaleira:há uma tal conformidadeentre o que é animal e é ela,

entre a parte que domina

e a parte que se rebela,entre o que nela cavalgae o que é cavalgado nela,

que o melhor será dizerde ambas, cavaleira e égua,que são de uma mesma coisae que um só nervo as inerva,

e que é impossível traçarnenhuma linha fronteiraentre ela e a montaria:ela é a égua e a cavaleira.

3

Quando está taconeandoa cabeça, atenta, inclina,como se buscasse ouviralguma voz indistinta.

Há nessa atenção curvadamuito de telegrafista,atento para não perdera mensagem transmitida.

Mas o que faz duvidar

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possa ser telegrafiaaquelas respostas quesuas pernas pronunciam

é que a mensagem de quemlá do outro lado da linhaela responde tão sérianos passa despercebida.

Mas depois já não há dúvida:é mesmo telegrafia:mesmo que não se percebaa mensagem recebida,

se vem de um ponto do fundodo tablado ou de sua vida,se a linguagem do diálogoé em código ou ostensiva,

já não cabe duvidar:deve ser telegrafia:basta escutar a dicçãotão Morse e tão desflorida,

linear, numa só corda,em ponto e traço, concisa,a dicção em preto e brancode sua perna polida.

4

Ela não pisa na terracomo quem a propiciapara que lhe seja levequando se enterre, num dia.

Ela a trata com a durae muscular energiado camponês que cavandosabe que a terra amacia.

Do camponês de quem temsotaque andaluz caipirae o tornozelo robustoque mais se planta que pisa.

Assim, em vez dessa aveassexuada e mofina,coisa a que parece sempreaspirar a bailarina,

esta se quer uma árvorefirme na terra, nativa,que não quer negar a terranem, como ave, fugi-la.

Árvore que estima a terra

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de que se sabe famíliae por isso trata a terracom tanta dureza íntima.

Mais: que ao se saber da terranão só na terra se afincapelos troncos dessas pernasfortes, terrenas, maciças,

mas se orgulha de ser terrae dela se reafirma,batendo-a enquanto dança,para vencer quem duvida.

5

Sua dança sempre acabaigual que como começa,tal esses livros de iguaiscoberta e contra-coberta:

com a mesma posiçãocomo que talhada em pedra:um momento está estátua,desafiante, à espera.

Mas se essas duas estátuas

mesma atitude observam,aquilo que desafiamparece coisas diversas.

A primeira das estátuasque ela é, quando começa,parece desafiaralguma presença interna

que no fundo dela própria,fluindo, informe e sem regra,por sua vez a desafiaa ver quem é que a modela.

Enquanto a estátua final,por igual que ela pareça,que ela é, quando um estilojá impôs à íntima presa,

parece mais desafioa quem está na assistência,como para indagar quema mesma façanha tenta.

O livro de sua dançacapas iguais o encerram:com a figura desafiantede suas estátuas acesas.

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6

Na sua dança se assistecomo ao processo da espiga:verde, envolvida de palha;madura, quase despida.

Parece que sua dançaao ser dançada, à medidaque avança, a vai despojandoda folhagem que a vestia.

Não só da vegetaçãode que ela dança vestida(saias folhudas e crespasdo que no Brasil é chita)

mas também dessa outra floraa que seus braços dão vida,densa floresta de gestosa que dão vida e agonia.

Na verdade, embora tudoaquilo que ela leva em cima,embora, de fato, sempre,continue nela a vesti-la,

parece que vai perdendo

a opacidade que tinhae, como a palha que seca,vai aos poucos entreabrindo-a.

Ou então é que essa folhagemvai ficando impercebida:porque, terminada a dançaembora a roupa persista,

a imagem que a memóriaconservará em sua vistaé a espiga, nua e espigada,rompente e esbelta, em espiga.

Crime na Calle Relator (1985-1987)

O ferrageiro de Carmona

Um ferrageiro de Carmonaque me informava de um balcão:“Aquilo? É de ferro fundido,foi a forma que fez, não a mão.

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Só trabalho em ferro forjadoque é quando se trabalha a ferro;então, corpo a corpo com ele;domo-o, dobro-o, até o onde quero.

O ferro fundido é sem luta,é só derramá-lo na forma.Não há nele a queda-de-braçoe o cara-a-cara de uma forja.

Existe uma grande diferençado ferro forjado ao fundido;é uma distância tão enormeque não pode medir-se a gritos.

Conhece a Giralda em Sevilha?Decerto subiu lá em cima.Reparou nas flores de ferrodos quatro jarros das esquinas?

Pois aquilo é ferro forjado.Flores criadas numa outra língua.Nada têm das flores de formamoldadas pelas das campinas.

Dou-lhe aqui humilde receita,ao senhor que dizem ser poeta:o ferro não deve fundir-se

nem deve a voz ter diarreia.

Forjar: domar o ferro à força,não até uma flor já sabida,mas ao que pode até ser florse flor parece a quem o diga.”

Sevilha andando (1987-1993)

Verão de Sevilha

Verão, o centro de Sevilhase cobre de toldos de lona,para que a aguda luz sevilhaseja mais amável nas pontas,

e nele possa o sevilhano,coado a sol cru, ter a sombraonde conversar de flamenco,de olivais, de touros, donas,

e encontra a atmosfera de pátio,o fresco interior de concha,todo o aconchego e acolhimentodas praças fêmeas e recônditas.

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Comigo tenho agora o abrigo,a sombra fresca dessas lonas:eu os reencontrei, esses toldos,nos lençóis que hoje nos enfronham.

Cidade de nervos

Qual o segredo de Sevilha?Saber existir nos extremoscomo levando dentro a brasaque se reacende a qualquer tempo.

Tem a tessitura da carnena matéria de suas paredes,boa ao corpo que a acaricia:que é feminina sua epiderme.

E tem o esqueleto, essenciala um poema ou um corpo elegante,sem o qual sempre se deforma tudo o que é só de carne e sangue.

Mas o esqueleto não pode,ele que é rígido e de gesso,reacender a brasa que tem dentro:Sevilha é mais que tudo, nervo.

Andando Sevilha (1987-1989)

Sevilhizar o mundo

Como é impossível, por enquanto,civilizar toda a terra,o que não veremos, verão,de certo, nossas tetranetas,

infundir na terra esse alerta,fazê-la uma enorme Sevilha,que é a contra-pelo, onde uma vivaguerrilha do ser, pode a guerra.

Manolo González

Perguntavam muitos: “Por quetu toureias no extremo do ser,no limite entre a vida e a morte,como faz o toureiro pobre?

Não podes fingir o perigo,tourear buscando-se o tranquilo?

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Por que tourear como toureias,como se fosse a vez primeira?”

Se calava, quase menino,de cabelo louro de gringo,

menino vestindo ouro e prata,cores da morte celebrada.

Manolo Caracol

Cada cantador andaluzcantando trás a plena luz

uma ferida de nascença,como dentro de um ovo a gema.

Com a boca o cante pouco diz,é uma curada cicatriz,

curada só na superfíciee que quando quer pode abrir-se

para sangrar funda ferida(uma que nunca cicatriza)

que tem consigo toda de diae ele nem mesmo localiza:

Canta a partir de íntima fendae sempre pensa que uma fêmea

que com a navalha dos olhosabriu-lhe fundo com seu ódio

ferida que de dia escondepara que de noite ele sonde

onde é que se localiza(mas não quer curá-la, é seu guia).

Niña de los peines

Uma música, indago semprea quem de ouvido musical:pode uma música ser nítidasem fazer uso do metal?Se canta o flamenco quase sempreao som da guitarra, que é líquido,que é um líquido pingando no poçoum líquido do mesmo líquido.

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wSe faz sem metais o flamenco(exceção: o do martineteque se acompanha com marteloe bigorna, é seco e sem sede).

Se faz sem metal o flamenco.Há só uma garganta esfoladanesse cantar cru. Poderáser de metal essa garganta?

Se metal, não está em lingote:é um metal rouco, como roto,metal que dói, dilacerado,como um metal de nervo exposto.

Raro ele canta de punhais.Foge-os cantando flores vivas.Há muitas flores no que cantacomo em Frederico Garcia,

ou Lorca, que escreve do amore das mil flores que sabia.Mas no flamenco o amor apontacomo punhal entre margaridas.

O flamenco fala do amorcomo ele, também floralmente,mas no flamenco um punhal oculto

nesse canteiro cresce sempre.

Intimidade do Flamenco

O flamenco quer intimidade,assim no cante que no baile.

Aquele fazer de mais dentro,se quer de quem faz pôr-se ao centro,

centrarse, viver seu caroço,e a partir dele dar-se todo,

esse cante ou baile é monólogoque se funciona para o próximo,

quer um próximo coniventecapaz de centrar-se igualmente.

Não quer um palco que o dissolva,seu fazer se faz boca a boca.

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Obras referenciais

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CASTILLO, Sonia Salcedo del. Cenário da arquitetura da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

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LEÓN, Aurora. El museo: Teoría, praxis y utopía. Madrid: Ediciones Cátedra, 1995.

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LUPTON, Ellen; PHILLIPS, Jennifer C. Novos fundamen-

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OLIVEIRA, Marly de. João Cabral de Melo Neto: Obra com-pleta. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

RAMOS, Graciliano. Vidas secas: 70 anos. Rio de Janeiro: Record, 2008. Edição comemorativa ilustrada: fotografias Evandro Teixeira.

ROSA, João Guimarães. Correspondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizarri. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.

______. Grande sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fron-teira, 2001.

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RUBINO, Silvana; GRINOVER, Marina [org.]. Lina por es-crito: Textos escolhidos de Lina Bo Bardi. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

SEGRE, Roberto. Museus brasileiros. Rio de Janeiro: Viana & Mosley, 2010.

UNESCO. L´organisation des musées: Conseils pratiques. Pa-ris: Septiéme Imprimerie Union, 1959.

Teses, dissertações e trabalhos finais de graduação

CARDOSO, Helânia Cunha de Sousa. A poesia de João Ca-bral de Melo Neto e as artes espanholas. 2007. Tese de dou-torado apresentada à Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais.

MATOS, Diego Moreira. Curador e arquiteto em diálogo: Os casos das Bienais Internacionais de Arte de São Paulo de 1981 e 1985. 2009. Dissertação de mestrado apresentada à Facul-dade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.

RODRIGUES, Mayra. Exposições de Lina Bo Bardi. 2008. Trabalho Final de Graduação apresentado à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.

Revistas e periódicos

AGUIAR, Claudio. A Espanha e a poesia de João Cabral. Diário de Pernambuco, Recife, Caderno Especial dedicado a João Cabral de Melo Neto, 15 jun. 1994.

BERTUSSI, Lisana. João Cabral de Melo Neto: do regional ao universal, do Nordeste brasileiro à Espanha, da miséria à vitalidade. Revista Antares: Letras e Humanidades, Caxias do Sul, n. 1, jan./jun. 2009. Programa de Pós-Graduação em Letras e Cultura Regional da Universidade Caxias do Sul.

FREITAS FILHO, Armando. “Compreende?”. In: Revista Serrote, São Paulo, n. 6, nov 2010. pp. 120-123.

João Cabral de Melo Neto. Cadernos de Literatura Brasileira, Instituto Moreira Salles, São Paulo, n. 1, mar. 1996.

JORGE, Luís Antônio. Dois Joões, duas juntas de bois, e um carro. Revista Entretrópicos. No prelo.

Catálogos de exposições

As construções de Brasília. Catálogo da exposição realizada no Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro. Curadoria de Heloísa Espada. Abril a junho 2010.

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Grande sertão: Veredas. Catálogo da exposição realizada no Museu da Língua Portuguesa, São Paulo. Curadoria de Mo-nica Gama e Victor Borysow. Março a dezembro 2006.

Machado de Assis: Mas este capítulo não é sério. Catálogo da exposição realizada no Museu da Língua Portuguesa, São Paulo. Curadoria de Cacá Machado e Vadim Nikitin. Julho 2008 a março 2009.

Menas: O certo do errado, o errado do certo. Catálogo da exposição realizada no Museu da Língua Portuguesa, São Paulo. Curadoria de Ataliba de Castilho e Eduardo Calbucci. Março a julho 2010.

Stockinger: O descanso do guerreiro. Catálogo da exposição realizada no MASP, São Paulo. Curadoria de Maria Alice Milliet. Junho a agosto 2010.

Filmes e shows

Brasileirinho Ao Vivo. Show de Maria Bethânia disponível em DVD. Direção geral: Maria Bethânia e Kati Almeida Bra-ga. Direção do show: Bia Lessa. Cenografia: Gringo Cardia. Direção artística e de fotografia: André Horta. Realização: Quitanda Produções Artísticas, Biscoito Fino e Multishow (Globosat). Áudio Dolby 2.0 / Dolby 5.1 / DTS.

Morte e vida severina. Especial para televisão. Direção e ro-teiro: Walter Avancini. Realização: Globo Vídeo.

Recife / Sevilha: João Cabral de Melo Neto. Documentário. Brasil, 2003. Direção e roteiro de Bebeto Abrantes. Cor / NTSC. 52 min. Som mono. Realização: Giros Produções.

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Dizem que não se pode fugir de quem se é.Eu comecei este trabalho de outro modo, que não este, analisando museus e não projetando exposições, estu-dando uma arquiteta-escritora e não um poeta-arqui-teto. Mas, a certa altura, lá pelo meio do caminho, hou-ve uma bifurcação.Fico feliz de ter escolhido outro percurso. Neste, reco-nheço não só a mim mesma, mas cada pessoa que ou-viu, que opinou, que discutiu, que corrigiu, que suge-riu. Em cada pedacinho.Fui apresentada a João Cabral de Melo Neto pelo meu pai, Arnaldo, um filho de baiano que admira os escri-tores nordestinos sobremaneira. A edição de Morte e vida severina pertencia à minha mãe, Vera, professora de Língua Portuguesa na escola onde estudei. Minha irmã, Renata, é a terceira que confirma a aparente sina das caçulas na minha família: estuda Letras.Crescendo cercada de livros e leitores, não consegui fu-gir da Literatura. Mas decidi frequentar a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e, a certo tempo, trabalhar num escritório especializado em exposições e museus, meio que por acaso.Acho que foi assim que, depois da bifurcação, este tra-balho se tornou um estudo da obra poética de um dos meus escritores preferidos e, a partir dela, um exercício de tradução dessa obra, sob meu recorte temático, para expografia, para espaço.

Agradeço ao professor Luís Antônio Jorge por me apoiar na mudança de tema e, creio eu, ter gostado da troca. Ninguém melhor para ser o orientador de uma empreitada dessas.Digo isso porque não é um tema de TFG comum na FAU e, felizmente, tive mais professores que foram muito importantes no processo de desenvolvimento. Artur Rozestraten e Marcelo Bicudo concordaram em conhecer o trabalho, e acabaram contribuindo enorme-mente com ideias, com alternativas, com decisões, com conclusões, e mesmo com empolgação. Fico feliz de ter havido essa troca, obrigada aos dois.Agradeço também ao professor Agnaldo Farias, pela presença em vários momentos da minha vida acadêmi-ca. É alguém de quem pode se aprender sempre.Preciso agradecer ao professor Chico Homem de Mello também porque, apesar de ter sido duro com meu tra-balho, muitas das decisões que tomei depois de nossa conversa foram pautadas em observações dele. “Ficou mais João Cabral”, como disse o Luís num dos atendi-mentos a respeito do meu projeto expográfico. Ficou mais sintético, mais deserto.E nada como ter um “grupo de estudos” de TFG. Pude conhecer uma pessoa fantástica e me reaproximar de uma pessoa querida presente em toda a jornada FAU. A primeira, Sandra Javera, foi minha companheira de Literatura e de Joões, estudando comigo João Cabral

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e eu estudando com ela João Guimarães Rosa, falan-do de poesia prosaica e de prosa poética, de palavras, de universos. A segunda, Iara Pimenta, a companheira de projeto expográfico, discutindo espaços, técnicas, materiais, intenções, subversões. Vocês foram funda-mentais tanto para as coisas diretamente ligadas ao trabalho quanto para as que não eram dele, obrigada por tudo.Mas não foi propriamente na FAU que aprendi a pro-jetar exposições e onde me apaixonei por elas. Aqui, o membro da banca de avaliação que não era docente, foi o mais professor de todos. Agradeço enormemente ao Vasco Caldeira por todos os ensinamentos e opor-tunidades, bem como toda a equipe da Artifício: Fla-via D’Amico, Claudia Afonso, Natalia Matos, Maria-na Terra, Elaine Terrin, Rafaela Silva. E também aos ex-artífices Paulo Ayres, Valquiria Reducino, Mariana Chaves, e, em especial, Ana Lucia Filomeno Bortoletto. Vocês todos contribuíram muito para minha formação e ajudaram a trasformar trabalho em prazer.Mas nada seria igual sem os colegas de turma (ou não) que se tornaram amigos ao longo do caminho. Compar-tilhando a experiência do TFG ou não.Aqui, Julia Caio, Marilia Almeida e a já mencionada Iara Pimenta foram companhias fundamentais. Só posso agradecer a enormidade das sensações que me vêm quando penso no que já vivemos.

Amigos como Priscyla Gomes e Rafael Craice são im-prescindíveis, pois, além de darem suas contribuições para o trabalho, como empréstimos de câmeras, pro-dução de vídeos ou gravações de voz, não se pode viver sem o carinho sincero, sem a sinceridade carinhosa.Agradeço os companheiros de TFG que compartilha-ram angústias, alegrias, pré-bancas e informações so-bre gráficas, prazos e formatos. E várias outras pessoas que estiveram perto durante a graduação, igualmente dividindo alegrias e aflições. A Turma 58 e mais os inú-meros agregados foram incríveis, agradeço a todos.Minha família também merece agradecimentos, já que foi paciente e compreensiva com as ausências de final de TFG ou mesmo de fim cada semestre: minhas avós, meus tios, meus primos. Agradeço em especial minhas tias Telma e Ligia Fernandes, seja por ceder computa-dor para a produção deste trabalho, ou por comprar guloseimas para adoçar as longas horas de trabalho.Sobretudo, agradeço ao meu Vladimir Iszlaji, por estar sempre lá, não importando nada mais.

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Um galo sozinho não tece uma manhã:ele precisará sempre de outros galos.De um que apanhe esse grito que elee o lance a outro; de um outro galoque apanhe o grito que um galo antese o lance a outro; e de outros galosque com muitos outros galos se cruzemos fios de sol que seus gritos de galo,para que a manhã, desde uma teia tênue,se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,se erguendo tenda, onde entrem todos,se entretendendo para todos, no toldo(a manhã) que plana livre de armação.A manhã, toldo de um tecido tão aéreoque, tecido, se eleva por si: luz balão.

Tecendo a manhã

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Este trabalho utilizou as famílias

tipográficas Frutiger e Bodoni,

tanto nas instalações expográfi-

cas quanto neste caderno.