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DESLIGAMENTO DA TRANSMISSÃO* A INTERNET E A CRISE DO CONTROLE SOCIAL GENE YOUNGBLOOD O seguinte artigo é uma adaptação de uma palestra em 1º de Novembro de 2012, na Universidad Nacional de Tres de Febrero em Buenos Aires,, Argentina, na ocasião de sua primeira Bienal da Imagem em Movimento (BIM). ---------------------------------------------------------------------------------------- A saída é pela porta. Por que é que ninguém desejaria utilizar este método? Confúcio NVOQUE A IMAGEM DESLUMBRANTE da multidão jorrando pelas ruas e praças ao redor do mundo aos milhões para manifestar-se contra a tirania. Agora imagine se ao invés disso estivessem exigindo uma internet livre e aberta. A probabilidade de algo assim é quase zero, concordamos. Mas porque é assim? O que precisaria acontecer para tornar este espetáculo utópico realidade? Que algoritmo insurgente nos levaria daqui para lá? Este é o assunto desta palestra. Dizemos que a vida não é medida pelo número de nossas respirações, mas pelos momentos em que perdemos o fôlego. Não preciso dizer que vivemos em um momento assim. Um momento histórico realmente deslumbrante que pode literalmente nos tirar o fôlego. Vivemos em futuros que se realizaram, caso ainda não tenham notado. Apocalipse e utopia. Apocalipse que não era esperado para tão cedo, utopia completamente inesperada. I

Palestra "Secessão da Transmissão", Gene Youngblood - Universidad Tres de Febrero,Buenos Aires 2012

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Adpatação de palestra na 1ª Bienal da Imagem em Movimento em Buenos Aires. O texto trata da urgência de uma revolução na comunicação, em face da catastrofe iminente conduzida pelo terceiro estágio do capitalismo, usando uma internet livre e aberta como ferramenta para o desligamento coletivo da mídia de estado.

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DESLIGAMENTO DA TRANSMISSÃO* A INTERNET E A CRISE DO CONTROLE SOCIAL

GENE YOUNGBLOOD

O seguinte artigo é uma adaptação de uma palestra em 1º de Novembro de 2012, na Universidad Nacional

de Tres de Febrero em Buenos Aires,, Argentina, na ocasião de sua primeira Bienal da Imagem em Movimento (BIM).

----------------------------------------------------------------------------------------

A saída é pela porta. Por que é que ninguém desejaria utilizar este método? Confúcio

NVOQUE A IMAGEM DESLUMBRANTE da multidão jorrando pelas ruas e praças ao redor do mundo aos milhões para manifestar-se contra a tirania. Agora imagine se ao invés disso estivessem exigindo uma internet livre e aberta. A

probabilidade de algo assim é quase zero, concordamos. Mas porque é assim? O que precisaria acontecer para tornar este espetáculo utópico realidade? Que algoritmo

insurgente nos levaria daqui para lá? Este é o assunto desta palestra.

Dizemos que a vida não é medida pelo número de nossas respirações, mas pelos momentos em que perdemos o fôlego. Não preciso dizer que vivemos em um momento assim. Um momento histórico realmente deslumbrante que pode literalmente

nos tirar o fôlego. Vivemos em futuros que se realizaram, caso ainda não tenham notado. Apocalipse e utopia. Apocalipse que não era esperado para tão cedo, utopia completamente inesperada.

I

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Apocalipse: o holocausto ecológico e o fim da democracia, ambos conduzidos

pelo terceiro estágio do capitalismo e criado pelas instituições que supostamente deveriam evitá-lo. Por 40 anos eu tenho chamado isto de a crise global eco-social. Sabemos há muito tempo que representa um desafio de proporções civilizacionais – o desafio de criar na mesma escala em que podemos destruir.1 Desde sempre nos deparamos com este desafio. Mas a escala da real e potencial destruição hoje está além de qualquer coisa que os humanos tenham imaginado – ou possam imaginar, mesmo

quando se desenrola diante de seus olhos.

A crise é radicalmente não-trivial, e qualquer coisa parecida com uma resposta adequada irá requerer que seja mantida conversação criativa entre os povos do mundo. Nenhum problema pode ser resolvido pela mesma consciência que o criou, de forma

que a conversação deve estar aberta a todos para a mais abrangente escala de consciência possível. A única contra-força igual à escala de destruição é a escala com que todas as pessoas podem comunicar-se. O problema é que não podemos chegar até o problema porque não conseguimos chegar uns aos outros.

Para isso precisamos de uma revolução na comunicação, e o aparato que pode proporcionar isso já está à mão, todos sabemos. Utopia, neste contexto, é a possibilidade tecnológica, e apenas a possibilidade, de uma revolução na comunicação. Provavelmente não é como se pensa em utopia, como mero potencial técnico para alguma coisa. De qualquer forma, provavelmente se pensa que uma revolução na comunicação já

aconteceu. Retornarei a isso mais tarde.

Enquanto isso considere a deslumbrante coincidência histórica de, por um lado, o fracasso da democracia ao redor do mundo mesmo com o holocausto ecológico correndo em câmera-lenta em direção aos seus pontos de ruptura; e por outro lado, o

surgimento simultâneo, como se sob demanda, de algo que poderia permitir um esforço mundial para evitar que a crise se transforme em catástrofe. Ou pelo menos que a catástrofe não seja tão grande quanto está garantida a ser.

Se a internet não existisse, teríamos que inventá-la até mesmo para começar a

imaginar o que significa criar em larga escala. Então graças a Deus ela está aqui. Mas existe um problema. A revolução na comunicação não pode ser permitida, porque é uma ameaça mortal aos controles sociais que precipitaram a crise eco-social em primeiro lugar.

Chamo o componente cultural destes controles de “a transmissão” (“the broadcast” no original em inglês. N. do T.). Daí que o desligamento da transmissão – deixando a cultura sem deixar o país – é o primeiro passo necessário rumo a criar na mesma escala em que podemos destruir. O fato de tirar o fôlego é que a internet realmente permite desligamento nesta escala, e é por isso que sua própria existência atira a civilização em uma crise.

A separação da cultura dominante em larga escala agora possível, significa o colapso do controle social que conhecemos como democracias liberais. Precisamos que

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entre em colapso porque desencadeou a crise, mas isto cria outra crise que compõe o

apocalipse. A outra crise não é a perda de controle social. Pelo contrário. É o surgimento de um estado policial de vigilância, um Panopticon 2 cibernético sem lei, com terríveis poderes de controle totalitário. É a segunda razão pela qual a internet lança a civilização em uma crise.

Uma coisa é certa: a internet pública, livre e aberta de que necessitamos para evitar a tirania e confrontar o caos que está por vir não existirá a menos que geração deste milênio se erga para exigi-la. É uma faca-de-dois-gumes apocalíptica, porque precisamos de uma internet livre e aberta para cultivar a vontade radical de exigir uma internet livre e aberta. A faca de dois gumes é que o único pré-requisito para a liberdade é a liberdade é o verdadeiro apocalipse, não as mudanças climáticas. 3

Como os milenianos confrontarão o legado trágico que foi deixado para eles? Como poderão inaugurar A Compilação (“The Build”, no original. N. do T.) para destruição criativa do sistema-mundo que ameaça perigosamente seu futuro? Esta é a

questão transcendente do nosso tempo: que cultura irá definir a internet, a cultura da morte ou a cultura da liberdade? É uma corrida entre a derrocada e A Compilação, e não resta muito tempo.

The Broadcast (“A Transmissão”)

Ofereço linguagem, porque novas palavras e novos sentidos para velhas palavras são essenciais para novas compreensões e entendimentos que crises desta magnitude demandam. Palavras não expressam o que pensamos, elas nos dizem o que pensamos. O pensamento é feito na boca. Precisamos pensar diferentemente, então tento falar

diferentemente.

Vamos começar com a transmissão. Por a transmissão, quero dizer toda a mídia estatal, sua infra-estrutura institucional, sua economia política, a cultura que criam e o controle social que a cultura serve através da socialização que administra. Repetirei e

explicarei isso:

A transmissão é toda a mídia estatal...

Você diria mídia corporativa, mas vamos ser consistentes: vivemos em um estado corporativista e mídia corporativa é mídia estatal. Isso tem sido entendido desde o início do Séc. XX. Em uma democracia, o governo deve contar com a mídia corporativista ao invés dos ministérios do estado para disseminar propaganda de estado. 4

Mídia corporativista é mídia estatal assim como o cartel de bancos conhecido como a Reserva Federal (o “Banco Central” norte-americano. N. do T.) é um banco estatal. É mídia estatal assim como a Exxon Mobil é uma companhia petrolífera estatal. E sabemos que mídia estatal privatizada é mais eficiente que mídia nacionalizada exatamente porque não parece mídia estatal. Então nunca diga mídia corporativa. Sempre diga mídia estatal quando estiver falando sobre este componente da transmissão. É mais do que

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simplesmente mídia, então vamos continuar a definição: A transmissão é toda mídia

estatal...

...sua infra-estrutura institucional...

Que são as corporações que a opera [a mídia estatal] para o estado, e não um Quarto Estado.

...sua economia política...

Que são serviços ao capitalismo transnacional corporativo e a classe dominante transnacional. Os donos da riqueza das nações.

...a cultura que cria...

Cultura de consumo, que é anti-cultura. A cultura de que ninguém gosta ou precisa, exceto os mais lesados Americanistas entre nós. Realmente, a América não tem cultura porque cultura é o que nutre pessoas.

...e o controle social que a cultura serve...

Controle social em uma democracia requer nossa colaboração inconsciente em nossa

opressão. Tem que ser desse jeito. Ou se tem totalitarismo ostensivo ou as pessoas devem oprimir a si mesmas. É por isso que Edward Bernays, o pais das relações públicas, propôs em 1928 que o controle mental de massa é a verdadeira essência do processo democrático. Dificilmente é uma ideia nova. Você pode rastreá-la até Platão. O povo é a fonte de todo o poder, então o poder do opressor deve vir dos oprimidos. Deve partir de nós com nosso consentimento.

O filósofo político italiano Antonio Gramsci de maneira célebre denominou a isto hegemonia cultural. Poucos anos depois de Bernays, no início da década de 1930, Gramsci fez uma distinção entre hegemonia coerciva e consensual. Na hegemonia consensual uma classe domina outra ganhando seu consentimento ativo em ser

dominada. Walter Lippmann chamou isto de “consentimento fabricado”. Lippman é conhecido também por seu dito de que o público não deve ser de atores políticos, mas de “espectadores de ação interessados”. Chamo a isto de a nação-platéia.

A nação-platéia dá seu consentimento em ser dominada porque internaliza os

valores, códigos de conduta e a visão de mundo da classe dominante. Ou seja, a nação-platéia internaliza a lógica do sistema de dominação. Auto-opressão se torna senso comum e damos nosso consentimento espontâneo para a direção imposta sobre nossa vida pela hegemonia disfarçada. É o truísmo de que não estamos presos contra nossa vontade; nossa vontade que nos prende aqui. Que ninguém está mais desesperançosamente escravizado do que aqueles que falsamente acreditam que são

livres.

Isto é velharia. Estou apenas lembrando que esta é a mais importante tarefa que fazemos em uma democracia – colaborar com os dominadores na reprodução

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interminável da realidade deles e de nós mesmos à sua imagem. Não estamos conscientes

de que fazemos isso, e não nos sentimos necessariamente oprimidos. Hegemonia cultural trabalha por condicionamento interior, então parece ser liberdade. O maior êxito da propaganda é a crença de que não é propaganda.

Há outro nome para este tipo de controle social: totalitarismo invertido, um

entendimento poderoso do historiador Sheldon Wolin em seu livro Democracy Incorporated. Wolin traz a hegemonia cultural de Gramsci a uma varredura analítica dos controles político-econômicos nos estados corporativos proto-facistas que conhecemos como democracias liberais.

Sheldon Wolin: “Totalitarismo invertido é a ascendência política do poder corporativo em relação simbiótica com o poder de estado. Não mais confinado ao empreendimento privado doméstico, o poder corporativo evolui em uma co-parceria globalizante com o estado. Há uma dupla transmutação: a corporação se torna mais política, o estado se torna mais orientado pelo mercado. Economia, historicamente

subordinada à política, agora domina a política. Com esta dominação surgem formas de crueldade diferentes de suas formas clássicas.”5

A co-parceria da Mídia Americana e o Estado é um triunfo do totalitarismo invertido. Somos a demonstração de como a democracia pode ser administrada sem que

pareça que foi suprimida. O povo americano é vítima da mais bem-sucedida operação psicológica jamais infligida em uma população nacional, a mais sofisticada campanha de propaganda que nenhum regime jamais empregou contra seus próprios cidadãos. Então nunca diga que mídia não está fazendo seu trabalho. Eles estão fazendo seu trabalho. Nós não estamos fazendo o nosso. O trabalho deles é ter certeza disso.

O controle social que a transmissão serve é baseado em controlar a construção social de realidades. Mais precisamente, a transmissão controla os contextos em que as realidades são socialmente construídas e culturalmente afirmadas, como Hebert Marcuse diria, eu enfatizo controlando os contextos em que ocorre porque controle de contexto é controle da realidade. Contexto é tudo. Tudo é contexto e a transmissão é o meta-

contexto para tudo. Possui o poder de definir, para a maioria das pessoas a maior parte do tempo, as quatro dimensões básicas da realidade – existência, prioridades, valores e relações. Existência (o que é real e o que não é), prioridades (o que é importante e o que não é), valores (o que é bom ou ruim, certo ou errado) e como estão relacionados. 6

Quem consegue definir estas coisas em uma escala politicamente relevante? Quem está de fora de conversações que estabelecem compreensões e entendimentos nesta escala? Porque não há poder maior do que este. Como todas as culturas, a transmissão é uma tecnologia do eu. 7 Tudo o que pensamos, sentimos, desejamos e fazemos (ou não fazemos) resulta de nossa vivência nela. Somos quem somos – e portanto a civilização é o que é – porque internalizamos essas compreensões e

entendimentos. Tornamos-nos o lugar em que vivemos. Não nascemos no mundo. É o mundo que nasce em nós.

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Aqui está o último pedaço – a socialização que a cultura administra, através da

hegemonia cultural da transmissão. Seu discurso imperial é unívoco: muitos canais, uma voz. Muitas vozes, um côro. Muitas estórias, uma mensagem. Muitas visões do mundo, uma visão de mundo. Sufocamos na singularidade opressiva da transmissão. Nos sentimos claustrofóbicos em suas palavras. Apenas um propósito existe aí, e não é o nosso. Toda a sabedoria da história nos conta que onde quer que uma única voz fale, onde quer que uma única estória seja contada, não é um lugar saudável para se estar.

Mas não é apenas a singularidade da transmissão que é tão importante para o controle social; é também a repetição de suas estórias. A repetição essencial que estabiliza a cultura. A repetição normatiza. Solidifica a crença. O que é repetido torna-se verdade; o que não é repetido desaparece da consciência. Então as estórias de qualquer cultura

devem ser contadas de novo e de novo, sem nunca parar. O côro deve ser repetido sem fim. De novo e de novo, interminável e imersiva repetição. Vivemos em oceanos de redundância.

Existe uma falha fatal neste tipo de controle social: só funciona se a nação-platéia estiver ouvindo. Só funciona se estivermos presentes e prestando atenção, participando da conversação que chamamos de América. Nossa participação é mais ou menos garantida apenas se não houver conversações alternativas de magnitude equivalente, nenhuma contra-narrativa disponível na mesma escala. Totalitarismo invertido funciona apenas se não houver saída de seu imperium cultural, apenas se não for possível para a

nação-platéia parar de ser uma platéia, separar-se da transmissão, abandonar a cultura sem deixar o país.

Isso havia sido estruturalmente impossível até agora, e se não houver nenhum outro lugar para ir, a nação-platéia permanecerá naquele relacionamento parassocial

disfuncional. Continuaremos voltando para mais exploração e abuso. De fato, a maioria da nação-platéia não sairá do imperium mesmo se houver algum outro lugar para ir – pelo menos não de primeira. Testemunhe os 24 milhões de vítimas de Americanismo que ainda se entregam à transmissão toda noite em suas primeiras horas para seu treinamento em consumo consciente.

Alguns fazem isso porque são Americanistas. Internalizaram a transmissão. A identificação é completa. Mas a maioria das pessoas está simplesmente imobilizada pela sedimentação do hábito. Socialização nunca é de 100%, de fato nem mesmo chega perto disso, e essa é a sua fraqueza. Falta de alternativas costumavam compensar essa fraqueza, mas agora temos alternativas ilimitadas em escala global. Não estamos mais presos contra

nossa própria vontade. Não estamos mais aprisionados dentro do sinal. Estamos livres do encarceramento cognitivo.

O que significa dizer que o braço cultural do controle social na América – o braço cultural de controle, existem outros tipos, é claro – está agora baseado

exclusivamente em uma identificação de massa que não é exeqüível. A própria existência deste aparato que permite a milhões sistematicamente desidentificar-se com o Imaginário

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Americano, estrangeirar-se completamente por conta própria do significador mestre –

Esta é uma nova ameaça ao controle social.

É de deixar o queixo caído perceber em que castelo de cartas o imperium se tornou, quão tênue é a base para o controle social na América de hoje, quão doentias são suas amarras, o quanto precariamente descansa sobre uma aposta de que a nação-platéia

não irá mudar de ideia. Bem, talvez não iremos mudar. Mas a possibilidade existe, numa escala que deve aterrorizar os dominadores, e exatamente o quê eles podem fazer a respeito disso não é nada óbvio.

A Corrente Sem Fim

Expliquei os componentes da transmissão individualmente; o que importa é como estão conectadas. Então façamos um experimento mental. Vamos entrar na TV como Alice pela toca do coelho, no que poderíamos chamar de a ecologia profunda da transmissão. O que há por detrás da tela?

A primeira coisa que encontraremos, já disse, é sua infra-estrutura institucional – a corporação que opera a transmissão para o estado, com sua rede global de mesas diretoras interlocadas. Um membro diretor de uma corporação de mídia senta nas mesas

de várias corporações inteiramente diferentes em que cada uma das quais possui membros que sentam em múltiplas outras mesas, cujos membros sentam em... e daí em diante, interminavelmente, circundando o planeta. È um regime de censura global, um poder regulatório privado que disciplina a mídia estatal a não comprometer os interesses de seus proprietários incorporados e para manter o mundo seguro para o capitalismo.

Há trinta anos, em seu livro The Media Monopoly, o distinto editor do Washington Post, Ben Bagdikian chamou a isso de a corrente sem fim. 8 Esta aí uma figura icônica se nunca houve uma antes. Então vamos seguir a corrente sem fim até o próximo nível, a economia política da transmissão. Ou seja, aquilo em que o capitalismo se tornou em seu terceiro estágio. Os três estágios, ao longo de 500 anos, são mercantil,

corporativo nacional e corporativo transnacional – que é promovido ao redor do mundo como democracia. Então, vamos dar uma olhada na democracia, o mais utópico de todos os sonhos.

Existem duas democracias – democracia utópica, com um “d” minúsculo, a que

todos nós queremos, aquela que os pais fundadores (“the founding fathers”, no original. N. do T.) supostamente criaram e em que os Americanistas ainda pensam que vivem. Então há a democracia que realmente existe, com um “d” maiúsculo, Democracia capitalista, a que derrotou o experimento Americano.

É preciso estar cego pela transmissão para não perceber que a América finalmente fracassou, como alguns diziam que sempre pretendeu fracassar. Diziam que “o grande experimento” nunca teve como alvo a auto-gestão e a liberdade individual; tinha como alvo uma democracia gerenciada. Tornar o mundo seguro para a democracia significava que a democracia tinha que ser segura para o mundo. Seu potencial revolucionário precisava ser esvaziado. Isto foi conseguido logo no começo, no próprio

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desenho do sistema. O grande experimento em democracia gerenciada tinha sido um

sucesso inigualável. Vivemos hoje em um simulacro de democracia. É chamada de poliarquia. 9

Não foi o império Americano que fracassou, pelo menos ainda não. Quer dizer, você ouve falar disso, mas estou com Noam Chomsky e Michael Parenti – não foi o império que fracassou, foi a república. Vivemos no novo feudalismo, regido por uma plutocracia oligárquica. O escritor Arundhati Roy coloca desta maneira: “A democracia

tem sido usada, esvaziada, esgotada de significado. Suas instituições têm metastaseado em algo perigoso. Democracia e o livre mercado fundiram-se em um único organismo predatório que se revolve inteiramente em torno de consolidar poder e maximizar lucro.”10

A corrente sem fim liga a economia política da transmissão ao oligopólio das tiranias privadas que cooperam na dominação mundial – O complexo-Banco Mundial-FMI-OMC-Wall Street que contem o complexo militar-industrial. Unem-se no projeto de globalização capitalista, onde a corrente sem fim se torna a cadeia de comando no triângulo de ferro do militarismo, negócios e política, cujos punhos de ferro estão agora tirando as luvas para impor a estabilidade que chamam de democracia.

Nosso acorrentamento na corrente sem fim está refletido na interminável cadeia de modificadores embutidas na expressão “complexo militar-industrial”. A cadeia se torna cada vez mais longa com a nossa crescente consciência dela: complexo corporativo-financeiro-prisional-educacional-agricultor-farmacêutico-midiático-parlamentar-judicial-

policial-militar-industrial... e daí em diante, interminavelmente, até que a corrente sem fim se torna a rede sem fim da globalização neo-liberal, a rede em que o capital predatório captura o planeta Terra e tudo que há nele. Aqui a corrente sem fim se torna a corrente de carbono que leva ao colapso da cadeia de sustentação, e do sistema eco-social inteiro.

O sistema eco-social é o sistema-mundo, 11 a integração das ecologias humanas e naturais em uma escala planetária. Uso esta expressão para enfatizar a natureza sistêmica da totalidade eco-social. Para indicar que biosfera e civilização constituem uma única estrutura planetária. Dificilmente é uma ideia nova, também, exceto que agora somos forçados a levá-la a sério.

A integração das ecologias humanas e naturais ocorre em pontos da produção industrial. A biotecnologia a leva ao nível molecular, de maneira que o meio-ambiente natural se torna um meio-ambiente construído, e, no caso dos transgênicos, por exemplo,

organismos tornam-se estruturas ideológicas. É a expressão definitiva do que Jürgens Habermas chama de colonização capitalista do mundo da vida. 12

A nanotecnologia estende a integração ao mundo inorgânico, transformando a

realidade material de maneiras que são agora inimagináveis. Sabemos de uma coisa: a

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transmutação do mundo físico é apocalipticamente perigosa se for orientada pelos tolos

fósseis que agora dominam o mundo.

O que nos leva de volta ao apocalipse, onde cada componente do sistema eco-social global, em ambos os lados, o humano e o natural (como se não fôssemos naturais), está em gradual, porém inexorável, desintegração. O estável avanço em câmera-lenta do

aquecimento planetário, a crise alimentar, energética e hídrica, extinções em massa, zonas oceânicas mortas, derretimento ártico, superpopulação, a mega-urbanização e a poluição de tudo... e daí em diante.

O capitalismo voraz que conduz tudo isso não tem país nem lealdades políticas e

apenas um propósito – fazer mais de si mesmo. É por isso que Karl Marx o chamava de “uma máquina de demolir limites”. Estamos encurralados perante limites eco-sociais para onde quer que olhemos, mas a auto-propelente circulação do capital não reconhece limites. É um engenho de cerco que deve pôr abaixo quem quer e o que quer que esteja em seu caminho, avançando imprudentemente em seu impulso suicida para acumular.

E agora o capitalismo parece ter entrado em sua fase catabólica, mais próximo do que nunca de canibalizar a si mesmo e o seu hospedeiro, levando a todos nós junto. Considere a suprema ironia aqui: para o capitalismo o fim do crescimento é a morte, mas agora a morte é continuar crescendo. Crescimento e seu oposto são ambos a morte para

o capitalismo. Fredric Jameson captura o paradoxo desta maneira: “O capitalismo é uma máquina peculiar cuja evolução acompanha sua quebra, sua expansão acompanha seu mau-funcionamento, seu crescimento acompanha seu colapso. A quebra do sistema está dada na expansão do sistema.”13 A única coisa que se pode criar de cima para baixo é um buraco.

Costuma-se dizer que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo. Agora imaginamos o fim do capitalismo imaginando o fim do mundo. 14 O fim da história foi substituído pelo fim do futuro. E uma vez que a globalização do capital é sinônimo de promoção da democracia ao redor do mundo, poderemos imaginar, juntamente com Arundhati Roy, se a Democracia capitalista é o fim de jogo para a raça

humana.

Mas a corrente sem fim não pára nesta junção potencialmente terminal; ela gira perpetuamente em um círculo vicioso tornando-se uma corrente cerebral. Um círculo nos leva de volta para onde começamos, a nós mesmos, portadores da cultura, sentados

lá diante daquela tela estupefatamente vidrados na transmissão, interminavelmente reproduzindo a nós mesmos à sua imagem. A cultura somos nós. Somos a transmissão. Nossas mentes foram colonizadas. Daí a familiar sentença de que o Grande Irmão não está nos vigiando, o Grande Irmão somos nós vigiando, colaborando com a nossa opressão.

Dado o que está por detrás da tela, penso que podemos dizer de maneira legítima que a colaboração é um ato de duplo suicídio mutuamente assistido com o ecocídio planetário como efeito colateral. É por isso que permitir que seu olhar vidrado

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recaia sobre aquela tela ou aquelas páginas mesmo que seja por um segundo é uma

traição a todos nós. Serei mais claro: permitir que seu olhar vidrado recaia sobre o Daily Show ou o New York Times, no contexto deles é cumplicidade em crimes potencialmente terminais contra a humanidade e o resto do mundo natural. 15

De tudo isto, podemos tirar apenas uma conclusão: Mande pro inferno esta

cultura o mais rápido que puder e nunca olhe para trás. Minha tese é de que pela primeira vez na história humana podemos realmente fazer isso em uma escala que mina o controle social. Milhões de nós podem desligar-se da transmissão agora mesmo se desejarmos. Apenas a nossa falta de vontade radical poderá evitar que possamos cometer esse definitivo ato de desobediência civil, deixando a cultura sem deixar o país.

Vontade Radical

O holocausto ecológico e a crise da democracia são quebras sistêmicas radicais que exigem resposta radical – transformação na raiz. Isto é reconhecível no mundo

inteiro. A menos que se viva exclusivamente na transmissão, ouve-se em todo lugar hoje em dia o clamor para uma mudança fundamental, para transformação na raiz. É isto o que radical significa – do latim, radix, raiz. E é tudo o que significa. Não significa extremo. É claro que é preciso ser igualado ao extremismo para o controle social. A última coisa que querem são pessoas olhando para causas na raiz.

Mudança radical requer vontade radical – a vontade de transformar a raiz – e as instituições que derrotaram a democracia e criaram o holocausto planetário não têm vontade radical. Possuem apenas vontade política. Vontade política quer manter o status quo, vontade radical quer transformá-lo. Governos e corporações são incapazes de

vontade radical. Não possuem poder algum para transformar a raiz de suas próprias existências.

Apenas o povo pode fazer isso. Vontade radical pertence apenas ao povo. E é melhor estarmos prontos para mobilizá-lo, porque mudança fundamental nunca é

conquistada democraticamente. É alcançada apenas pela força – a greve geral, a revolta contra os impostos – incluindo força violenta ou a crível ameaça dela. A sangrenta história trabalho organizado é o exemplo padrão. É o truísmo de que a liberdade não é de graça; que as liberdades não são concedidas, são vencidas.

Sabemos que não poderia ser de outra maneira. A classe bilionária não tem a intenção de nos dar sua riqueza e poder para tornar a todos iguais só porque a Grande Bêsta diz que deveriam. O poder não faz concessões sem exigências, e nem mesmo assim. Prefere a morte ao comprometimento; Irão escurecer os céus antes de ceder à democracia. Como o economista John Kenneth Galbraith coloca: “Pessoas privilegiadas irão sempre arriscar sua completa destruição em lugar de abrir mão de qualquer parte

material de seus privilégios.” 16

Então nós, o povo da nação-platéia nos defrontamos com um desafio para o qual nada em nossa experiência no passado nos preparou. Sabemos disso há décadas, então alguém razoável perguntaria: somos nós realmente aqueles a quem estávamos

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esperando? Possuímos a vontade radical que pode vir apenas de nós? Não há muitas

evidências disso. Vivemos na terra do olhe-para-o-outro-lado. T. S. Eliot disse que o mundo não irá terminar com uma explosão, mas com um gemido. Se apenas pudesse ser assim tão dramático. Dado o nível de distração da América, parece mais que o último instante da história passará sem ser notado. 17

Assim vem a ser que a crise eco-social é antes de tudo uma crise de vontade e de ideia, uma crise de confiança e imaginação – o resultado esperado de nossa socialização na transmissão. O significado de criar na mesma escala em que podemos destruir começa com recriar a nós mesmos – ressocializando a nós mesmos para que nos tornemos o tipo de pessoas que seriam capazes de mobilizar a vontade radical na escala necessária. Como fazemos isso? Como despertamos a vontade radical que dorme dentro de nós? A

resposta a esta questão imemorial pode ser encontrada no que chamo de “o mito utópico de uma revolução na comunicação”. Antes que eu explique isto, precisamos entender algumas coisinhas a respeito de utopia.

Utopia

Dispense de antemão qualquer noção boba sobre utopia como algum tipo de mundo ideal, algum tipo de projeto para o conforto burguês, um mapa para a felicidade. Enquadrar isto desta forma é irresponsável e contra-revolucionário. Isto joga diretamente

para dentro do controle social. Que afirma que o desejo chamado utopia – o desejo por libertação da hierarquia, e a tudo que implica – é desesperadamente ingênuo e não deve ser levado a sério.

Bem, eu acredito que isto é uma traição a todos nós. É colaboração em nossa

opressão. Nunca enquadre o desejo utópico de maneira negativa. As únicas soluções possíveis para as crises que encaramos são soluções utópicas. Utopia tornou-se imperativa. Se não é utópico, não é radical o bastante. Então temos que recuperar a palavra e re-imaginar a ideia. Começando por levá-la a sério – utopia não é um lugar, é um desejo. O desejo por mudança radical, por transformação na raiz. O que é algo que jamais será permitido pelo poder, que é precisamente por que o clamor ao redor do

mundo restaurou a figura radical da utopia na moeda política.

Gire os ponteiros de volta a maio de 1968 em Paris, e ao famoso slogan “seja realista, exija o impossível”, onde impossível significa não permitido. Em outras palavras, fazer uma exigência que, se fosse concedida, traria o sistema abaixo. Como uma internet livre e aberta.

Nos anos que se seguiram àqueles dias inebriantes da contracultura dos anos 60, a utopia perdeu sua potência. Tornou-se desacreditada com o surgimento de estudos culturais e políticas identitárias, e sua rejeição do imperialismo cultural do qual julgavam

que a utopia fazia parte. Mesmo assim, em 1999, desafiando esta tendência, Russel Jacoby publicaria seu corajoso lamento The End of Utopia, que para ele significava a atrofia da vontade radical em nosso tempo. 18 Mas, meros seis anos depois, em 2005, Fredric Jameson proclamaria em Archaeologies of the Future que a utopia havia

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recuperado sua posição na vanguarda do pensamento político. “Recuperou sua

vitalidade”, ele observara, “como um slogan político e uma perspectiva politicamente energizante. É levada a sério como um projeto social e político.” 19

Utopianismo é teoria política. Altera a conversação público sobre utopia para além do conteúdo – um mundo ideal – para o que é representado pela ideia de utopia

como tal. Utopia não é mais compreendida como não possível porque é ideal demais, mas como não permitida por que é radical demais. A luta por liberdade substitui a velha preocupação utópica com a felicidade.

Utopia é hipotética. Ela pergunta e se? Ela seduz e acena. Diz “venha me

pegar”. Uma população inflamada com vontade radical iria aguardar no horizonte e dizer à nação-platéia, “Somos a distância entre o que vocês são e o que vocês deveriam ser para encarar o desafio. Venham nos pegar. O que vocês precisam para ser nós?”.

Em narrativas utópicas padrão este pequeno detalhe é ignorado. Simplesmente

estamos na utopia, neste mundo revolucionário, sem nenhuma explicação de como chegamos lá. A luta está faltando, e é por isso que utopias padrão não são convincentes. Não há base verídica nenhuma sob elas. “O agenciamento que realizou a condição utópica é omitido”, Jameson observa. “A narrativa passa por cima da própria revolução e postula uma sociedade pós-revolucionária já existente. O momento axial, o rompimento

com a história, a transformação em agência simplesmente não está lá”. 20

Esta notável ausência implora pela pergunta, e nos lembra que utopia é sempre e unicamente apenas uma coisa – a luta por liberdade em larga escala. Por favor, entendam: o que é utópico é a escala de uma demanda impossível, não a luta em si. E a

imagem utópica que invoquei no início. Aquela utopia é realmente universal; defini-la de qualquer outra maneira é uma traição a todos nós.

Assim, partimos de utopia como não possível para utopia como não permitida. O que não é permitido acima de tudo é a formação de um algoritmo utópico: As pessoas

não devem ver como chegar daqui até lá. O que nos leva ao mito utópico da revolução na comunicação.

O Mito Utópico

Lembre-se que o totalitarismo invertido está baseado em controlar a construção social de realidades. Uma revolução na comunicação inverte a maneira como é feita, de cima para debaixo para cima. Descentraliza e pluraliza a construção social de realidades. Repito: uma revolução na comunicação é a descentralização e a pluralização da construção social de realidades. Ponto. O que significa que não tem nada a ver com

tecnologia. É claro que precisa de tecnologia para acontecer, mas a revolução não está na tecnologia como a música não está em um piano, assim como a inteligência não está em um cérebro. Tecnologia nunca é o condutor, sempre o promotor. Não é a tecnologia que é transformadora mas a cultura que forma ao seu redor. E como eu disse no começo, qual a cultura que define a internet é a grande questão de nosso tempo.

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Gene e o Editor Administrativo, Ted Zatlyn, no

Los Angeles Free Press, 1967

Já era a questão no início dos anos 1970, quando uma série de tecnologias

emergiram nos Estados Unidos que tornaram uma revolução na comunicação teoricamente possível – TV a cabo, difusão por satélite, gravação de vídeo portátil, publicação em videocassete e disco a laser e computação em rede compartilhada. Vendo em retrospectiva, reconhecemos este mix de como um tipo de proto-internet.

O início dos anos 1970 foram também o começo do fim do momento da contra-cultura na América. Eu estava bem no centro disso. De 1967 a 1970, eu era editor associado e colunista para o Los Angeles Free Press, o primeiro e maior dos jornais underground que floresceram nos EUA àquela época. Então eu estava em posição de compreender a contra-cultura como uma revolução na comunicação. Não que você precise se colocar na minha posição. Quero dizer que todos nós estávamos vivendo

aquilo. Estávamos vivendo a primeira e única revolução na comunicação que já acontecera nos Estados Unidos, por mais breve e limitada que possa ter sido.

Para entender aquilo, pense em comunicação como não como um verbo mas como um nome. Não alguma coisa que você faz, mas um lugar que você ocupa, uma condição à qual você

chega. A palavra tem duas raízes no latim: communis actio, ações comuns; e

communare, um espaço compartilhado. Ações comuns chamadas conversações que levaram a um espaço compartilhado de entendimentos sobre uma compreensão – em nosso caso, compreensão de existência, prioridades, valores e relações. Humberto Maturana chama a isso de domínio

consensual. 21

Foi isso que fizemos nos anos 1960. Construímos um domínio consensual chamado contra-cultura e nos alojamos lá. Deixamos a cultura sem deixar o país, e nossa côrte inverteu a construção social de realidades. Fizemos isto em uma escala

politicamente ameaçadora, então é claro que era preciso lidar com isso. A contra-cultura tinha que ser neutralizada e assimilada. Ou seja, tinha que ser mercantilizada. A mercantilização da marginalidade já havia começado nos anos 1950 – Rebelde sem Causa, O Selvagem da Motocicleta, Jack Kerouac nos primórdios da televisão – era assim que os anos sessenta estavam de facto nos servindo diretamente ao capital. A transmissão

administrou uma dose mortal de publicidade e o fim estava próximo. 22

Era uma questão de autonomia. A contra-cultura não podia sustentar-se dentro de uma contra-cultura-de-consumo. Não poderíamos viver em um enclave utópico circunscrito por uma transmissão imperial. Estávamos procurando maneiras de

permanecer no auto-exílio e quando emergiu uma tecnologia que teoricamente poderia

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Extraído de Radical Software, edição no. 1, Verão de

1970.

permitir isto em larga escala, ficamos alertas a ela. Víamos isto porque acreditávamos

nisto, e acreditávamos nisto, porque vivíamos isto.

Enquanto a transmissão penetrava a vida onírica da nação-platéia, sonhávamos com uma saída. Hegemonia cultural pode dominar os nossos dias, mas não tem que ser o nosso destino. Pensamos que poderíamos ser capazes de sustentar no espaço virtual a

autonomia cultural que estávamos perdendo no espaço físico. Sabíamos que não seria suficiente. A luta não poderia ser vencida ou perdida no reino da representação, mas é sempre aí que precisa começar. Era o começo do ativismo midiático. Entendemos que se mudássemos a mídia mudaríamos o mundo. Refiro-me ao meu chamado às armas, “A Mídia Deve Ser Libertada” no jornal Radical Software em 1970. 23

Ativistas de mídia viram uma oportunidade utópica para criar uma comunidade de mídia democrática através da inversão operacional da transmissão, de

comunicação de massa para comunicação de grupo. Uma mudança de paradigma era tecnicamente possível – do modelo dominador para um modelo de parceria, de hierarquia para heterarquia, de comunicação para conversação, de

controle para coerência.

Conversação, do latim conversari, convergir, é generativa. Ela engendra mundos. É como construímos realidades.

Nós podemos falar sobre coisas porque geramos as coisas sobre as quais falamos ao falarmos sobre elas. 24 Nos tornamos uma comunidade-realidade. E a proximidade, a circularidade de convergir sela nossa autonomia cultural. Nos tornamos uma comunidade-realidade autônoma.

Agora, esta é uma expressão realmente redundante porque não há outro tipo de comunidade. Toda comunidade é uma comunidade-realidade autônoma. Isto é, toda comunidade é uma conversação conspiradora que gera as realidades que a definem como uma comunidade. Palavra da boca se torna um mundo da boca, o nascimento de uma noção.

Eu uso esta expressão deveras desnecessária para nos tornar conscientes de que somos o que estamos fazendo hoje. Para tornar explícito o fato de que, em nossa migração para a internet, nós estamos descentralizando e pluralizando a construção social de realidades em uma escala politicamente desestabilizante. Cada website, blog ou micro-blog; cada plataforma de rede ou de compartilhamento; cada serviço de hospedagem ou streaming; cada mundo virtual é também uma comunidade-realidade ou uma plataforma que suporta conversações que as constituem. Toda conexão do LinkedIn ou do

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Palestra “National Information Utility”, Univ.

de Michigan, Ann Arbor, 1974.

Facebook, toda micro-postagem com marcação do Tweeter, todo canal do YouTube ou

Vimeo, toda imagem postada no Flickr, toda playlist compartilhada no Spotify e todo agrupamento em cada uma deles cria a possibilidade de uma conversação que coerge uma comunidade em um realidade.

A fibra ótica estava no horizonte no

começo dos anos 1970 o que nos permitiu imaginar sistemas de comunicação além das limitações da TV a cabo. Ao invés das migalhas de “acesso público” atiradas a nós pela indústria da TV a cabo, imaginamos instalações públicas socializadas, baseadas em redes de fibra ótica re-

direcionadas, operadas pelas companhias telefônicas. Recomendo a vocês meu vídeo convocando uma Instalação Nacional de Informação em 1974. 25

Eu exigia o impossível, e este era o ponto. Impossível porque uma instalação é um portador comunitário, aberto a qualquer um igualitariamente. O que subverteria o controle social. As pessoas teriam que exigir isso. Elas não

exigiriam algo que não seriam capazes de visualizar, então eu ofereci uma visão de uma instalação de comunicação pública com largura de banda emocional, que na época seria a largura de banda de seis megahertz da transmissão de TV analógica. Em outras palavras, vídeo bi-direcional seria a plataforma para conversação pública em larga escala.

Arquivamento e recuperação de informação, embora essencial, era vista como uma característica acessória do sistema de comunicação que os mídia-ativistas imaginavam. Ninguém pensava no computador como um dispositivo de comunicação. Era apenas uma biblioteca em uma caixa. Era acesso à informação, e uma revolução na comunicação não se trata de acesso à informação, pelo menos não principalmente. Trata-

se de acesso às pessoas. Trata-se de acesso a conversações através das quais realidades são socialmente construídas.

A inversão operacional da transmissão proporcionaria liberação a plenos pulmões do grito que chamamos de silêncio. Estávamos em confinamento solitário.

Havia uma necessidade urgente de dizer o que não havíamos sido capazes de dizer, para uma platéia que nunca tivemos – nós mesmos. Fibra escura acenderia rapidamente. Canais de agitação e desejo se multiplicariam exponencialmente, tornando a nação-platéia em uma república democrática de comunidades-realidades autônomas no espaço virtual. Elas seria atopias – formações sociais sem fronteiras ou limites, definidas não pela geografia mas pela consciência, ideologia e desejo.

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Seria necessário escolher entre elas. Você não poderia recebê-las passivamente.

Você teria que operar nelas. A partir do sempre-em-expansão universo das comunidades-realidades, você teria que montar o universo particular de sentido em que viveria. Seria seu mundo da vida midiático. Mundo da Vida é um termo sociológico que significa nossa experiência subjetiva da vida cotidiana. Compartilhamos o mundo da vida com os outros, mas experimentamos nosso próprio mundo da vida particular de momento a momento. O mundo da vida é seu mundo, o mundo em que você habita. É o seu habitat.

Então você tem que montar seu habitat midiático, seu mundo da vida particular de comunidades-realidades autônomas. Entende-se que um dos possíveis mundos da vida que você poderia construir para si poderia ser o que chamamos de contra-cultura – um mundo cujos sentidos, valores e definições de realidade são exatamente contrários

àqueles da transmissão. Você poderia gradativamente viver a vida daquele mundo a media em que A Compilação progredisse, e isto te levaria até o limiar do desligamento.

A Crise do Controle Social

As implicações do mito serão melhor compreendidas observando onde estamos hoje. Três eventos mundialmente históricos convergem: holocausto ecológico, globalização capitalista, o surgimento da internet. Qualquer um deste lançaria a civilização em uma crise; juntos constituem um desafio que podem ser insuperáveis. O destino da

internet decidirá isso. A internet permite a liberdade utópica ou a tirania totalitária; a última é inevitável se não nos levantarmos para impedi-la. Neste caso todas as apostas serão perdidas: o apocalipse estará garantido. Se por algum milagre conseguirmos libertar a internet, poderemos ao menos ter uma chance de descobrir o que criar em larga escala pode significar.

Usufruir do milagre não está completamente fora de questão. A condição digital está além dos sonhos mais loucos do ativismo midiático do Séc. XX. Ela criou um oitavo continente que não é mais imaginário do que a própria América é. É um meta-meio social revolucionário, e milhões de comunidades-realidades estão surgindo em sua topologia fantasma. Estão multiplicando-se exponencialmente e estamos ocupados

escolhendo entre elas, montando nossos mundos da vida.

Como resultado, a revolução da comunicação não que não poderia ter sido permitida está acontecendo de alguma maneira. O mito utópico quase se tornou realidade. A infra-estrutura tecnológica está aí. Operacionalmente, a internet é o inverso

da transmissão. Conversação em grupo está substituindo a comunicação de massa, e a construção social de realidades está sendo descentralizada e pluralizada.

A transmissão está implodindo sob a supervisão corporativa. Seu discurso imperial está se dissolvendo em uma constelação de conversações onde não há

mainstream, apenas ilhas na correnteza. É o fim da mídia de massa e o controle social que está baseado nela. Estamos lentamente desmantelando a legitimidade do regime em nossas mentes. A hegemonia consensual teve sua vez: o retorno ao totalitarismo clássico começou. A arquitetura da tirania está aí. A boa hegemonia foi desmascarada, a difusão

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da verdade e a dissidência são criminalizadas, a polícia é militarizada, julgamentos

espetáculos são encenados, o Panopticon se ergue sobre o oitavo continente.

O potencial para democracia radical nunca esteve tão próximo, e, por esta razão, tão distante. Ainda assim, na Compilação existe razão para bem-guardado otimismo.

A Era Paleocibernética

Há oitenta anos, em seu livro Technics and Civilization, Lewis Mumford referia-se a revolução industrial do Séc. XVIII como a era paleotécnica. 26 Há quarenta e três

anos, em meu livro Expanded Cinema, caracterizei as tecnologias eletrônicas emergentes como a era paleocibernética. 27 Hoje a condição digital inaugura uma nova história. É ano zero e a era paleocibernética recomeça.

Vivemos na era paleocibernética e no estágio de banda estreita da era

paleosocial de evolução da internet. Paleocibernética e banda estreita porque a internet na América não é uma utilidade pública socializada com a largura de banda emocional que precisamos para cultivar a vontade radical em larga escala. Paleosocial porque a rede social em seu atual estágio evolucionário trata de organizar, e não de cultivar. Organização de vontades e idéias que já existem, e não sistematicamente cultivando a vontade radical

de que necessitamos tão desesperadamente.

A Compilação

A compilação que poderia permitir isto já começou, mas é inconsciente, desfocada, caótica. Estamos fazendo-a sem uma visão unificada, sem uma causa comum. Desligamento é a visão e a causa que pode nos unir a todos. Precisamos despertar e perceber isso. Estamos construindo um ambiente de desligamento; Se dissermos a nós mesmo o que estamos fazendo, faríamos isto melhor. Para entender alguma coisa, precisamos primeiro nomeá-la, então a compilação deve se tornar A Compilação (“The Build”, no original em inglês. N. do T.)

Significa a criação de um ambiente que torne o desligamento e a re-socialização possíveis em larga escala. Significa aperfeiçoar as comunidades para a descolonização das mentes e o cultivo da vontade radical. Significa produzir conteúdo para mundos da vida

contra-culturais como tecnologias do eu, habitats que permitam contra-socialização estratégica. Significa sistematicamente subverter os imperativos do controle social.

Nada além de indiferença pode nos impedir de fazer isso. Podemos desvencilhar a corrente no cérebro e começar uma faxina cultural massiva. Estamos

contaminados pela transmissão, mas podemos nos desinfetar, purgar-nos, fazer nossa higiene mental, remover a escória. Podemos conspirar para sistematicamente desidentificar com o Imaginário Americano, para voluntariamente nos estrangeirar do significador mestre. Podemos derrubar o suporte de que a América depende para sua existência: nossa crença nela.

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Não obstante o encarceramento corporativo e a vigilância governamental, a

única questão relevante é, “O que eu posso colocar na minha tela?”. Todos nós sabemos que não há limites para os mundos da vida que podemos montar da mídia legada e da infinita cardinalidade do ciber-Aleph. 28 Pode haver uma crise do jornalismo, mas não nenhuma crise da conscientização. Graças às testemunhas amadoras, estamos mais conscientes do que nunca.

Somos o que nossa atenção é. Um imperativo central do controle social é o de que a atenção da nação-platéia deve estar sempre focada nos dominadores, não em nós. Controle mental é controle da atenção – não o que pensar, mas sobre o quê pensar. Com a nossa atenção ao poder somos invisíveis. Somo não-pessoas que vivem uma não-história, que ocupam o lugar de lugar nenhum. A Compilação pode reverter isso.

Podemos voltar o nosso olhar vidrado do poder em direção a nós mesmos e começar a pregar para o côro em larga escala. Este é um privilégio reservado apenas para os dominadores, para incutir a conformidade. Para quem, afinal, a transmissão fala? “Um grande jornal é uma nação falando para si mesma”, disse o dramaturgo Arthur Miller. A transmissão prega interminavelmente para a sua congregação de consumidores, e a nação-

platéia obedientemente conspira no cântico. Somos capturados nos invariáveis laços de um clamor calamitoso e da resposta que não pode ser conhecida.

No interesse do controle social, a própria idéia de pregar para os convertidos em larga escala deve ser desacreditada. Esta dinâmica essencial da infusão de uma crença

deve ser dispensada como desnecessária, uma perda de tempo; deve ser vista como evangelização mal-aplicada, como exortação mal dirigida. Bem, se pregar para o côro é tanta perda de tempo assim, os dominadores deveriam encorajar isso. Se apenas cria uma falsa sensação de realização, eles deveriam nos dar todo o espaço para nos iludirmos.

Quando eu era um jovem adolescente nos anos 1950, rebeldes inconformistas eram ridicularizados por se conformarem ao não-conformismo. Como se isso fosse algum tipo de contradição irônica, quando de fato é o ponto central. Devemos ser tão desorientados a se conformar ao não-conformismo como subversivos enquanto secessão. Então deixe-nos pregar para nosso côro separatista na mesma escala em que a transmissão prega para a nação-platéia, e veremos se é perda de tempo.

Separatistas entendem que pregar aos convertidos não é persuasão desnecessária, é essencial para a coesão. Não se trata de criar, trata-se de sustentar. Não convece a quem já acredita, afirma a crença. Não fazemos isso para recrutamento, mas para auto-reconhecimento. Sela nossa autonomia e nos torna visíveis para nós mesmos.

Eis aí a grande ameaça ao poder: repetição imersiva de idéias insurgentes em permanente, auto-validadas comunidades-realidade. A ameaça ao poder é a larga escala de tenaz contra-recursão, uma robusta reiteração do radical. É o espectro do êxodo em massa de seu regime de laços ideológicos que o cancele; desligamento do oceano de

redundância semântica para nadar em uma contra-corrente. A Compilação possibilita isso. Podemos bater a porta da câmera de eco da transmissão e escancarar um milhão de ressonadores radicais para substituí-la. Podemos fazer o que os dominadores fazem

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conosco: ignorá-los até a morte. O Desligamento é o definitivo aplicativo matador(“killer app”, no original. N. do T.). Então coloque sua mídia separatista em repetição interminável e deixe-a rodar.

O Desligamento não é enterrar sua cabeça na areia ou vendar os olhos. Pelo contrário, abandonar a cultura é ver pela primeira vez o que estava invisível para você,

porque o que está em toda a parte não está em lugar nenhum. Você tem que sair disso para poder enxergá-lo, e ver realmente é ver o que não está lá, perceber a presença de uma ausência.

O Desligamento revela a ecologia do não-visto. Restaura os apagamentos que

mantém a coerência da transmissão. Você dá um passo para fora da aflição para ver o que a cultura sistematicamente exclui. Você espia para dentro do vazio do significador mestre e percebe que a América nunca foi Americana. É uma desilusão libertadora. Você deixa de ser abusado por ilusões que são necessárias para o controle social. Você vê o falso como falso, e você se envergonha do que vê. Algo se perde, e isto traz uma tristeza

que leva ao estranhamento e encoraja o pensamento crítico. Neste ponto, você desligou-se. Você está descolonizado. É claro que ninguém está completamente limpo. A mancha é indelével. Mas, e daí? Você já está limpo o bastante.

Isto não é teoria; é a minha vida. Desliguei-me da Transmissão América há

vários anos e tenho vivido desde então em um mundo que a renega. Tudo que tenho dito sobre o holocausto ecológico, sobre capitalismo e o fim da democracia, sobre o destino da América, aprendi em meu mundo da vida midiático. Se você vivesse lá por todos esses anos, teria as mesmas compreensões, o mesmo desejo flamejante de desligar-se. Desligamento para um é desligamento para todos.

A certa altura, depois de ter saído do teatro da nação-platéia, percebi que poderia fazer mais que separar-me, eu podia desligar-me. Poderia devolver o ingresso com um floreio desafiador. Melhor ainda, poderia rasgá-lo em pedaços e atirar na cara deles – poderia usar meu habitat insurgente como uma incubadora para a vontade radical de fechar o teatro. Construindo o estranhamento intrínseco ao desligamento, poderia

começar uma prática diária de ajustamento da atitude. Poderia conceber uma rigorosa disciplina, como uma prática de meditação, para invocar o desejo selvagem. Tudo o que eu precisava fazer era me conscientizar sobre o que eu estava levando adiante. Revelaram-se seis estratégias:

1. Magoar-se repetidamente.

2. Cultivar sentimentos de impotência e futilidade.

3. Ultrajar-se, encher-se com furiosa indignação.

4. Enfrentar seu medo.

5. Libertar-se da esperança.

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6. Transformar o ultraje em uma fúria de vontade radical e canalizá-la para A

Compilação. Você está aguardando e acendendo a faísca em uma situação incendiária – a crise eco-social global. As táticas para implementar estas estratégias serão o assunto de nosso seminário amanhã. Que mundos da vida nos permitirão negociar a passagem não-trivial dessas manobras radicalizadoras? O que colocaremos em nossas telas para magoar nossos corações e mantê-los magoados? Que visões poderemos exibir para enfurecer nossos espíritos? Como nossos mundos da vida podem nos encorajar a enfrentar nosso

medo? Que táticas podemos empregar para nos tornar livres da esperança? Como podemos desencandear a combustão espontânea na multidão?

Ofereço minha práxis como um modelo, meu mundo da vida como um modelo. Estou tentando inspirar vocês, encorajá-los, alistá-los na campanha não-trivial

para tornar o desligamento trivial. Se trabalharmos duro, outros não terão que fazê-lo. Eles apenas irão inicializar mundos da vida estratégicos e cerimoniosamente alienar-se desta nação alienígena até que a Transmissão América seja um rumor distante.

A arte e os artistas são centrais para A Compilação. Poderíamos imaginar o surgimento de curadores legendários reinvestidos com o poder de seus mundos da vida, ao mesmo tempo exaltados e repugnantes. O eu que você constrói a partir daquela largura de banda emocional pode não ser uma obra de arte, mas você seria um pedaço da obra - na mira do Panopticon, é claro, mas, e daí? Não haverão celas suficientes se você fizer isso em larga escala.

Trabalho nisso dez horas por dia, sete dias por semana, e estou largando isso no seu colo.29 Estou te passando o algoritmo para o desligamento. Estou reclamando seu blefe, te empurrando contra o muro da sua apatia e indiferença, porque o desligamento não é opcional. Não separar-se, agora que você pode, é hipocrisia terminal. Você não

admite que a cultura é letal e então se recusa a sair dela quando algo assim impossível torna-se possível. Quando uma oportunidade como esta se apresenta, uma pessoa de consciência não hesita. Dada a tirania e o caos no horizonte, a única resposta aceitável e atirar-se para dentro da Compilação com dedicação feroz. Qualquer coisa menos que isso é uma traição a todos nós.

Não temos escolha a não ser usar a internet paleocibernética de faixa estreita em seu atual estágio de aprisionamento e vigilância para inaugurar A Compilação. Precisamos usar a internet privatizada para cultivar a demanda por uma internet socializada. A única maneira de fazer isso acontecer é através de uma greve geral em uma escala de parar o mundo que a condição digital torna possível. Tudo começa com isso. Não podemos falar

insignificantemente sobre algo assim sem antes demonstrar a nós mesmos que somos capazes disso. O “mundo” que paramos talvez seja apenas a América, mas seria um evento axial que poderia galvanizar o globo. Temos o precedente do protesto global que invoquei no começo. O que precisamos agora é o oposto: ruas vazias nos sete continentes, tráfico furioso no oitavo.

Sim, a probabilidade de tudo isto é perto de zero; não obstante, acredito que deve acontecer se criarmos na mesma escala em que podemos destruir. Se as chances

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caem para zero, deixemos o registro mostrar que esta oportunidade deslumbrante esteve

diante de nós e nós demos de ombros. Seja qual for o caminho que escolhermos, não será uma jornada agradável. Mesmo assim, a luta pela liberdade é sempre inspiradora e enobrecedora; se não conseguirmos, pelo menos iremos ter lutado a batalha que, se fosse bem-sucedida, teria sido a maior virada na história humana. O mínimo que podemos fazer é garantir para nós mesmos esta dignidade. Nos a devemos para nós mesmos, para nossas crianças, para todas as coisas vivas, a audácia utópica de exigir o

impossível.

* no original em inglês, “Secession from the broadcast: The internet and the crisis of social control” .

A expressão “Secession”( Secessão ), será traduzida ao longo do texto como separação, secessão e desligamento, uma vez que são termos equivalentes e não fogem aos contextos de “separatismo virtual” –

abandonar uma cultura como se esta fosse um “país” - e “desligamento do aparato midático” (a transmissão), evocados pelo autor.

Tradução: Luciano José de Freitas, Junho de 2014.

© Copyright 2013 por Gene Youngblood. Todos os direitos reservados.

Notas:

1 "Devemos aprender a criar na mesma escala que podemos destruir" é o credo de Kit Galloway e Sherrie Rabinowitz (1950 - 2013), pioneiros visionários de redes sociais de telepresença que influenciaram a minha vida e meu pensamento profundamente. Sherrie cunhou o credo em 1979. Esta conferência é dedicada à sua memória.[voltar] 2 Um Pan-óptico é um tipo de prisão em que todas as partes do interior são visíveis a partir de um único ponto. Projetado pelo filósofo Inglês e teórico social Jeremy Bentham no final do Séc. XVIII, o Panopticon permite que os guardas da prisão observem os presos de uma “casa de inspeção" elevada, sem que os prisioneiros saibam se estão sendo observados ou não. Bentham descreveu o Panopticon como "um novo modo de obtenção de poder da mente sobre a mente, em uma quantidade até então sem exemplo." [voltar] 3 "O único pré-requisito para a liberdade é a liberdade" vem do meu amigo Ted Zatlyn, um poeta e filósofo cuja sabedoria inspirou-me por muitas décadas, começando com Expanded Cinema em 1969. É de seu poema Meditação sobre a Meditação, Julho de 2011. [voltar] 4 Vinte e seis anos atrás, Michael Parenti perguntou em Inventing Reality (1986) o quanto a mídia dos EUA era diferente do Pravda ou Isvestia nos últimos anos da União Soviética. O serviço de propaganda que nossa mídia estatal fornece hoje é funcionalmente equivalente, mas muito mais sofisticado. [voltar] 5 Sheldon S. Wolin Democracy Incorporated: Managed Democracy and the specter of Inverted Totalitarianism. Princeton: Princeton University Press, 2008. [voltar] 6 Eu adaptei as quatro dimensões de George Gerbner de "message system analysis", como minhas quatro dimensões da realidade socialmente construída. Veja George Gerbner, Larry P. Gross e William H. Melody, editores: Communication Technology

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and Social Policy: Understanding the New Cultural Revolution (New York: Wiley-Interscience, 1973), pp 564-567. [voltar] 7 "Tecnologia do eu" vem da crítica das relações de poder de Michel Foucault. Refere-se às maneiras como as pessoas apresentam e policiam seus "eus" (ou, como os teóricos colocam, como os sujeitos constituem a si mesmos) no âmbito dos sistemas de poder (discursos) que viabilizam e constrangem o que Foucault chamou "O zelo do eu". Veja, por exemplo, Technologies of the Self: A Seminar with Michel Foucault. University of Massachusetts Press, 1988. [voltar] 8 O Washington Post é um dos pilares da transmissão, mas Bagdikian publicou os Pentagon Papers. Para a corrente sem fim, consulte: Ben H. Bagdikian. The Media Monopoly. Boston: Boston Press, 1983, pp. 3-26. [voltar] 9 O cientista político Robert A. Dahl introduziu o termo "poliarquia" (em oposição à monarquia) em 1972 para distinguir a democracia a partir da forma de governo americano, que é formalmente, não realmente, uma democracia. Em uma democracia, o poder é investido no povo. Mas votar contra os interesses do poder não deve ser possível; a democracia deve ser gerenciada para preservar o domínio da elite. Poliarquia é a combinação de tomada de decisão da elite e ratificação pública. "A cidadania é reduzida a um eleitorado", escreve Sheldon Wolin, "semelhante a um sistema de resposta automática, cujo papel é validar os candidatos da elite. Os cidadãos não são mobilizados, somos apenas periodicamente animados... totalitarismo invertido não quer ou precisa de cidadãos ativos, apenas periodicamente. Ele precisa de uma cidadania de plantão." Para uma análise de poliarquia em escala transnacional, consulte Promoting Polyarchy: Globalization, US intervention, and Hegemony, por William I. Robinson (Cambridge University Press, 1996) [voltar] 10 Arundhati Roy. Field Notes on Democracy: Listening to Grasshoppers. Chicago: Haymarket Books, 2009. [voltar] 11 Minha hifenização de "sistema-mundo" não é uma referência à teoria do sistema-mundo, que surgiu na década de 1970 através do trabalho de Samuel Wallerstein, com sua ênfase na interação de nações-estados "núcleo" e "periferia". A teoria contemporânea da globalização se separa dessa tradição, removendo o hífen do sistema capitalista mundial que analisa. Os estudos da globalização reconhecem a estrutura de centro-periferia, mas focaliza as forças que transcendem a interação nação-estado. Desde que eu não tenho nenhuma participação nesse jogo, eu me sinto livre para hifenizar a frase como uma espécie de licença poética fora de moda, dizendo: o mundo é um sistema e "o sistema" é um mundo. Se você quiser saber como o mundo funciona, recomendo Critical Globalization Studies, editado por Richard P. Appelbaum e William I. Robinson (Routledge, 2005). [voltar] 12 A obra de Jürgen Habermas sobre a esfera pública e a teoria da hegemonia de Antonio Gramsci são fundamentais para qualquer crítica política econômica do controle social em geral, e ao papel da cultura e meios de comunicação, em particular. Veja The Structural Transformation of the Public Sphere(1962), de Habermas e Prison Notebooks (1929-1935), de Gramsci. [voltar]

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13 Frederic Jameson citando seu livro Representing Capital (Verso, 2011) em uma entrevista com Aaron Leonard no rabble.ca jornal online canadense, 9 de fevereiro de 2012. [voltar] 14 Esta é uma paráfrase de Fredric Jameson: "Alguém disse uma vez que é mais fácil imaginar o fim do mundo, do que imaginar o fim do capitalismo. Agora podemos rever isso e testemunhar a tentativa de imaginar o capitalismo de maneira a imaginar o fim do mundo ". Em "Future City",New Left Revisão 21, maio-junho de 2003, pp. 65-79. [voltar] 15 A propaganda não deve ser vista como propaganda, então a transmissão deve ter a aparência de um viés liberal. Não deve ser sustentada a crítica do governo. Não predominantemente, apenas regularmente. Os programas menos óbvios, os aparentemente mais críticos do regime, são os mais importante para o controle social. Court Jesters é o modelo. O Humor político oficial torna o establishment divertido, mas não é anti-establishment. É meramente desiludido, que é onde começa e termina a comédia. Piadas são queixas. Humoristas liberais, como Jon Stewart e Stephen Colbert são agentes de controle social, cuja função é evitar que a desilusão se torne raiva. Eles antecipam e neutralizam a raiva. Eles contêm a rebelião, criando uma falsa sensação da mesma. Isso só funciona com uma população cega. É para pessoas que não vêem crianças assadas diariamente. Humoristas não podem brincar com a crueldade revoltante em Gaza. E você não vai ver estas imagens nos shows de comédia. [voltar] 16 John Kenneth Galbraith. The Age of Uncertainty. Boston: Houghton Mifflin, 1977. [voltar] 17 A proposição irônica de que o último instante da história vai passar despercebido é outra jóia de Ted Zatlyn, em um e-mail em 17 de agosto de 2012, com o adendo "Como foi o primeiro." [voltar] 18 Russell Jacoby. The End of Utopia: Politics and Culture in An Age of Apathy. New York: Básico Books, 1999. [voltar] 19 Fredric Jameson. Archaeologies of the Future: The Desie Called Utopia and Other Science Fictions. London & New York: Verso, 2005, p. xii. [voltar] 20 Jameson, op. cit. [voltar] 21 Tive o privilégio na década de 1970 e 80 de ter como mentores os três principais arquitetos do que veio a ser chamada de teoria da cognição Construtivista – os neurocientistas chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela, e o epistemólogo e ciberneticista Heinz von Foerster. Maturana fala de domínios consensuais inúmeras vezes em seus volumosos escritos sobre a teoria de autopoeisis. Ver, por exemplo, Autopoiesis and Cognition: The Realization of the Living Com Francisco Varela. Boston Studies in The Philosophy of Science, 1979). [voltar]

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22 A maravilhosa expressão "doses mortais de publicidade" é de Jean Baudrillard em For a Critique of the Political Economy of the Sign (1992). [voltar] 23 Gene Youngblood. "The Media Must be Liberated" Radical Software, (Verão 1970), p. 16. Eu não estava sozinho. Há inúmeros relatos sobre as origens do ativismo da mídia nos anos 1960. Ver, por exemplo, a edição dupla especial do Jornal de Cinema e Vídeo da UFVA, Vol. 64, N ° 1-2, Primavera / Verão 2012, pp 1-95 (University of Illinois Press.); e de uma perspectiva diferente, The Emergence of Video Processing tools: Television Becoming Unglued, editado por Kathy alta, Sherry Miller Hocking e Mona Jimenez (Intellect Books, 2013). [voltar] 24 "Podemos falar sobre as coisas, porque geramos as coisas de que falamos falando sobre elas" é de Maturana, op. cit. Comunidade-realidade é como nomeio a conseqüência ou resultado de conversções generativas. [voltar] 25 Gravado em vídeo por Michael Naimark para a série de palestras Future Worlds, que ele co-produziu na Universidade de Michigan, Ann Arbor, 1973-1975. Um clipe da palestra, que foi chamado The National Information Utility, está incluído em Secession From the Broadcast: Gene Youngblood and the Communication Revolution, o título provisório de um documentário em andamento, Bryan Konefsky. Veja um trecho de 25 minutos em http://vimeo.com/15435334[voltar] 26 Lewis Mumford. Technics e Civilization. London: Routledge & K. Paul, 1931. [voltar] 27 Gene Youngblood. Expanded Cinema . New York: EP Dutton & Company, 1970. [voltar] 28 Aleph é a primeira letra do alfabeto hebraico. Cardinalidade é o número de elementos em um conjunto. Na teoria dos conjuntos, o glifo aleph é o símbolo para a cardinalidade de conjuntos infinitos. É por isso que Jorge Luis Borges escolheu O Aleph como o título para seu conto descrevendo um ponto no espaço que contém todos os outros pontos no espaço - um conjunto com elementos infinitos, assim como a internet. "Cyber-Aleph" é minha homenagem a Borges, em sua cidade natal; além do que, eu acho que é uma figura evocativa para a internet e seu imaginário, o oitavo continente. [voltar] 29 Minha esposa, Jane Youngblood, é um co-conspiradora fiel neste empreendimento; suas críticas e contribuições para esta palestra e sua adaptação foram de extrema importância. [voltar]