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4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016 PAMPULHA: atualização simbólica de uma paisagem modernista FERNANDES, P. KU LEUVEN. OSA / UFMG. NPGAU Agripa Vasconcelos, 140 - Belo Horizonte, MG [email protected] RESUMO A recente inclusão do conjunto da Pampulha à lista de monumentos da UNESCO apresenta-se como momento oportuno para uma atualização simbólica do mesmo, que parte da sua criação e dá enfoque à contemporaneidade. Como parte de pesquisa de doutoramento em curso, propõe-se uma reflexão, sob uma lente semiótica, que inclua não somente os valores e significados que permearam a gênese de arquitetura, arte e paisagismo tão singulares no passado, mas sobretudo a significância da lagoa hoje como importante elemento da paisagem cultural e espaço de diversidade e encontro da cidade. O trabalho deve ser introduzido por breve levantamento do contexto cultural, econômico e políticos nos quais sua gênese se insere, a partir de revisão bibliográfica, literária e arquivo- documental. Tal revisão deve contextualizar a criação da Pampulha em especial momento histórico, em que o temos o Estado Novo e Juscelino Kubitschek como atores fundamentais para a advento da modernidade no Brasil, esta por sua vez amplamente traduzida em artefatos urbanos. Em seguida, o trabalho analisa e expõe os diversos papéis exercidos pela Pampulha nos âmbitos culturais e simbólicos, considerando a região tanto como pólo turístico, recreativo e esportivo, atuando como referência simbólica no estado de Minas Gerais e no Brasil, mas também como espaço quotidiano de lazer e moradia na cidade. Esta seção se apóia em, além de revisão bibliográfica e literária, entrevistas e observações em campo. A análise é importante não somente para avaliar e comparar a Pampulha de hoje e a do passado, elucidando seus processos de transformação e re-significações, mas também como importante documentação da Pampulha atual no exato momento que antecede a implementação do grau máximo de proteção de seu patrimônio a fim de melhor guiar políticas de planejamento, gestão e proteção do Conjunto da Pampulha. Palavras-chave: Pampulha; modernismo; história; paisagem; semiótica

PAMPULHA: atualização simbólica de uma paisagem modernista · arquiteto Oscar Niemeyer, mas sobretudo pelo conjunto que é formado com sua represa. Neste momento, ... paisagem

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4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

PAMPULHA: atualização simbólica de uma paisagem modernista

FERNANDES, P.

KU LEUVEN. OSA / UFMG. NPGAU

Agripa Vasconcelos, 140 - Belo Horizonte, MG

[email protected]

RESUMO

A recente inclusão do conjunto da Pampulha à lista de monumentos da UNESCO apresenta-se como momento oportuno para uma atualização simbólica do mesmo, que parte da sua criação e dá enfoque à contemporaneidade. Como parte de pesquisa de doutoramento em curso, propõe-se uma reflexão, sob uma lente semiótica, que inclua não somente os valores e significados que permearam a gênese de arquitetura, arte e paisagismo tão singulares no passado, mas sobretudo a significância da lagoa hoje como importante elemento da paisagem cultural e espaço de diversidade e encontro da cidade. O trabalho deve ser introduzido por breve levantamento do contexto cultural, econômico e políticos nos quais sua gênese se insere, a partir de revisão bibliográfica, literária e arquivo-documental. Tal revisão deve contextualizar a criação da Pampulha em especial momento histórico, em que o temos o Estado Novo e Juscelino Kubitschek como atores fundamentais para a advento da modernidade no Brasil, esta por sua vez amplamente traduzida em artefatos urbanos. Em seguida, o trabalho analisa e expõe os diversos papéis exercidos pela Pampulha nos âmbitos culturais e simbólicos, considerando a região tanto como pólo turístico, recreativo e esportivo, atuando como referência simbólica no estado de Minas Gerais e no Brasil, mas também como espaço quotidiano de lazer e moradia na cidade. Esta seção se apóia em, além de revisão bibliográfica e literária, entrevistas e observações em campo. A análise é importante não somente para avaliar e comparar a Pampulha de hoje e a do passado, elucidando seus processos de transformação e re-significações, mas também como importante documentação da Pampulha atual no exato momento que antecede a implementação do grau máximo de proteção de seu patrimônio a fim de melhor guiar políticas de planejamento, gestão e proteção do Conjunto da Pampulha.

Palavras-chave: Pampulha; modernismo; história; paisagem; semiótica

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Introdução

O Conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte, recebeu recentemente o título de Patrimônio

Mundial Cultural da Unesco, não somente pelas obras arquitetônicas ali projetadas pelo

arquiteto Oscar Niemeyer, mas sobretudo pelo conjunto que é formado com sua represa.

Neste momento, torna-se de extrema importância relembrar e refletir acerca da formação de

tal paisagem. Como paisagem cultural, acrescenta-se às características fisico-

geomorfológicas do local dadas pela natureza aquelas as que são sobrepostas pelo homem

(Corner, 1999). Esse contribui em primeiro lugar na conformação do espaço físico, com

obras de terraplanagem, barragem e arquitetura, mas sobretudo acrescenta à paisagem

símbolos e significados próprios de seu tempo. Assim, a Pampulha não nasce apenas com

suas obras, mas é todo o resultado das conjunturas sociais e políticas que a precedem. Da

mesma maneira, as transformações na cidade e na sociedade implicam em transformações

na paisagem que alteram suas características visuais e simbólicas, tornando palimpsesto

(Corboz, 1983). O artigo pretende portanto trazer à tona tal sobreposições espaço-temporais

de maneira a refletir sobre qual é a Pampulha que deve ser preservada pela Unesco,

quantas das suas camadas devem ser preservadas e quantas ainda podem, e devem,

emergir.

Antecedentes da Pampulha: A Belo Horizonte dos anos 20 e 30

Em Belo Horizonte, a década de 1930 - aquela que antecede a construção da Pampulha -

pode ser caracterizada por sentimentos paradoxais que oscilam entre a euforia e as

expectativas de uma cidade e sociedade em processo de amadurecimento, modernização e

expansão e as decepções e insatisfações sobre uma cidade ainda incompleta e vazia. `

Às sensações dúbias de otimismo e decepção, acrescentam-se percepções contrastantes

sobre a materialização da cidade que, por um lado, crescia desordenadamente nos

subúrbios e, por outro, parecia ainda esvaziada no seu centro que se encontrava ao mesmo

tempo ainda em construção e já parcialmente em ruínas com seus canteiros de obras

abandonados (Salgueiro, 2001).

Se de um lado o governo de Belo Horizonte criava, já em 1934, a “Comissão Técnica

Construtiva da Cidade” com o objetivo de levantar seus problemas - amplamente

relacionados à descontrolada expansão suburbana - e eventualmente suscitar propostas; de

outro ainda havia um sentimento generalizado de incompletude.

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Em 13 de outubro do mesmo ano a Revista Bello Horizonte publica uma coluna de autor

identificado como Malzarte com o título “Ruas sem História” que exemplifica bem este

sentimento no seguinte trecho:

“Em Bello Horizonte havia ruas bonitas, no tempo do Curral d’El Rey - informa-nos o ex-senador Modestino Gonçalves. Hoje, senador, nem ruas antigas, nem modernas. O que há por aqui são longas filas de árvores só (apenas os bungalows do Santo Antonio se insinuam, atrevidos, na paysagem, enquanto as casinhas tipo b e c procuram ocultar-se mais no seio da maltaria”. (MALZARTE, 1943)

Nesta passagem fica clara a comparação que o autor faz entre as casas que se insinuam na

paisagem no bairro Santo Antônio, nas bordas do plano original de Aarão Reis, e as casas

inseridas nas ruas geométricas do plano (provavelmente no bairro dos Funcionários),

devidamente tipificadas segundo a posição que ocupava seu proprietário (Lemos, 1998),

que ainda apresentavam-se timidamente detrás da protuberante vegetação plantada ao

longo das novas novas ruas. Tanto o texto quanto as fotografias da época testemunham a

preponderância da vegetação sobre as construções neste período em que a cidade ainda se

encontrava parcialmente vazia. Vê-se ainda deste texto a angustia do Belo Horizontino dos

anos 30 que se encontra no limbo entre o antigo e o moderno, no saudosismo do antigo que

já não há - se foi com a demolição do arraial - e da modernidade que ainda não veio.

Figura 1: Vista da Avenida Afonso Pena, 1947. Fonte. APCBH, Coleção José Goes

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Ainda sobre a preponderância da vegetação sobre a urbanização cabe citar Pedro Nava

que, em suas memórias, registra uma Belo Horizonte dos anos 20 - a da sua infância e

adolescência - que é quase que só natureza, cheia de árvores e de ruas sem calçamento

com sintetizado por Luciana Andrade (2004). Em seu estudo sobre a Belo Horizonte dos

modernistas ela cita uma passagem de Nava na qual descreve a vista da varanda da casa

dos pais, na Serra:

“Via-se seu amontoado de casas depois dum intervalo cheio de folhas. Primeiro a vegetação do terreno fronteiro a nossa casa, depois os arvoredos do Dr. Aleixo, dos Gomes Pereira, adiante os do Estevão Pinto, mais embaixo a arborização urbana, espessa naquele tempo como floresta.”

(1976, p.291, citado por Andrade, 2004, p. 144)

O desenvolvimento urbano da Capital em suas primeiras décadas, da sua inauguração em

1897 até o fim da década de 1920, é frequentemente retratado como um período de

estagnação e lenta construção (Lemos, 1998; (Castriota e Passos, 1998) Salgueiro, 2001;

(Plambel, 1979)), principalmente se comparado às décadas seguintes nas quais houveram

grandes transformações formais e estruturais dentre as quais podemos citar a construção da

Pampulha e o crescimento da indústria. Tal “estagnação” refere-se tanto à falta de

investimentos da administração pública na construção da cidade quanto à lenta

consolidação de seu centro, ainda despovoado. Todavia, o mapa cadastral de 1928 nos

Figura 2: Planta Geral da Cidade de Belo Horizonte, 1928. Fonte: APM

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revela que esta situação remete somente às áreas centrais, enquanto as áreas suburbanas

estavam em plena expansão - que ocorria desde a inauguração da Capital - ocupando nesta

data área equivalente ou maior do que a Zona Urbana inicialmente projetada.

Reconhecido o crescimento da cidade, várias ações foram direcionadas, na década de 30, à

tentativa de controlar o expansão suburbana que se desenrolava de forma desordenada e

precária, acarretando em graves problemas à população, incluindo falta de abastecimento

d’água. Dentre as medidas podemos citar o Decreto n. 54 de 1935 que, ao criar ônus

financeiros e técnicos às novas subdivisões de terrenos, visava limitá-las. Em seu relatório

administrativo referente aos anos 1935-1936 o então prefeito Octacílio Negrão de Lima

dedica uma seção à questão da aprovação das Vilas no qual ele argumenta que

“O número excessivo de vilas, aprovadas sem ônus alguma para os proprietários, estendeu de tal forma a área povoada de Belo Horizonte que criou, para a administração pública os mais graves e sérios problemas. Sente-se, (…) a necessidade de pôr um dique às aprovações e percebe-se de outro lado, o receito dos Prefeitos em abrir luta franca com os interessados na sua maioria homens de recursos.

Muitas fortunas particulares, em Belo Horizonte, fizeram-se à custa da vilas, enriqueceram-se os seus proprietários, criando, para os cofres públicos, problemas de saneamento, conforto, policia e assistência que custarão dezenas e dezenas de milhares de contos de réis.” (Belo Horizonte, 1937).

Como é sabido, tal ação não somente foi incapaz de “pôr um dique” às subdivisões de

terreno mas agravou a situação, uma vez que a partir de então a ilegalidade da prática

aumentou seu grau de precariedade.

O relatório de Negrão de Lima abordou também duas importantes ações que mudariam o

percurso de Belo Horizonte daquele momento em diante. A primeira é a criação do Parque

Industrial e a segunda é a construção da Barragem da Pampulha. Neste momento a

barragem é apresentada como solução necessária ao abastecimento de água da cidade, em

amplo crescimento físico e demográfico. Enquanto dois parágrafos são dedicados às

justificativas técnicas de tal empreendimento, duas pequenas frases determinarão o futuro

da Pampulha, como pólo de turismo, lazer e também o surgimento de urbanismo e

arquiteturas únicas na cidade e no país, quando dizem: “Em torno do lago, constrói-se uma

avenida com extensão de 14 quilômetros. A acumulação prestar-se-á a prática de esportes

aquáticos.” (Belo Horizonte, 1937, p. 54)

Nasce portanto, a partir da conjunção da avenida e do corpo d’água a paisagem que se

tornará um conjunto único. No mesmo período, o prefeito discursa na Câmara divulgando a

“edificação de um novo e pitoresco bairro de lazer” na Pampulha (Anais da Câmara

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Municipal de Belo Horizonte, 1936, citado por (Ferreira, 2007), prevendo assim a futura

construção um bairro que adicionar-se-á à prática de esportes.

A criação de um bairro na Pampulha é contrária ao plano de Lincoln Continentino, elaborado

durante a administração do Prefeito José Osvaldo de Araújo (1938-1940) que preconiza a

consolidação e o aumento da densidade da ocupação de Belo Horizonte, aconselhando a

não aprovação de novos projetos de subdivisão de terrenos fora do perímetro de então

(Castriota e Passos, 1998). Data, porém, da mesma administração o Decreto n.55 de 1939

que ministra sobre a divisão dos lotes e as construções nos terrenos marginais à represa.

Destaca-se nessa legislação o papel a ser desempenhado pela administração municipal,

tornando-se o principal agente de urbanização na região, todavia em terrenos privados, com

ônus ao proprietário. Em seu primeiro artigo o decreto determina que:

“Os projetos, levantamentos e nivelamentos de subdivisão dos terrenos marginais à represa da Pampulha, numa faixa de quinhentos metros para cima da avenida Getúlio Vargas, serão feitos pela Prefeitura, a requerimento dos proprietários, (…)

Parágrafo Único ‐ Projetados pela Prefeitura o arruamento e a subdivisão em lotes, será a planta entregue ao proprietário para completa‐ la com as indicações prescritas do artigo 4º do mencionado decreto, sendo facultado articular com ela a subdivisão do terreno acaso restante.”

O segundo artigo, ao prescrever 20 metros de frente e 1.000 metros quadrados de área

como dimensões mínimas do lote, estabelece nas margens da Pampulha um caso

excepcional no município - firmando exceção em relação ao decreto 54/1935 que regia

sobre a subdivisão de lotes - ao mesmo tempo que determina que tipo de uso, e portanto

que tipo de padrões e classe social, se estabeleceria naquele local.

O decreto determina também, ainda em exceção à regra para o restante do território

municipal, parâmetros urbanísticos e arquitetônicos a serem adotados dos quais se destaca

o item a) do artigo quarto que prevê: “estilo colonial, néo‐ colonial, missões ou normando,

não se admitindo, em caso algum, estilo que destoe do ambiente campestre; as pinturas

externas deverão ser de cores claras, não se permitindo o revestimento de cimento

penteado ou côr equivalente;”

Fica claro na década seguinte que tanto o urbanismo quanto a arquitetura da Pampulha,

sabidamente revolucionários e inovadores no contexto de Belo Horizonte e do país, só

foram possíveis dado um certo grau de desobediência aos padrões vigentes. Quando o

paradigma era densificar e concentrar no centro, a construção da Barragem, à doze

quilômetros do marco zero se mostrou como uma nova oportunidade para escapar às

restrições da malha estritamente ortogonal imposta pelo plano, formando uma nova cidade

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em paisagem totalmente nova, construída e moldada à vontade do homem, uma vez que o

“centro antigo” já se deteriorava e popularizava antes mesmo de ser acabado. Como bem

explica a historiadora Thais Pimentel ((Pimentel, 1997), em Belo Horizonte “o que surge

como radicalmente novo, seja em termos de idéias, posturas, realizações, parece ficar velho

no momento seguinte quando se advoga a sua substituição. Foi assim no início, continua

assim até hoje.”

É sob o paradigma da novidade, sempre iminente, que nos anos 1940 a inauguração dos

novos bairros e complexos de lazer na Pampulha significa um recomeço para esta nova-

velha cidade. A arquitetura de Niemeyer também rompe barreiras com o antigo instaurando

nas margens da represa tons de modernidade que foram fundamentais não somente para a

construção de uma nova paisagem mas sobretudo de novas práticas sociais e tipos de

urbanidades a ali também se instalarem.

A ocupação da Pampulha se deu portanto de forma completamente distinta dos bairros

operários que vinham surgindo na zona suburbana de Belo Horizonte, resultantes de

processos mais ou menos espontâneos de urbanização - loteamentos ou urbanização de

colônias agrícolas - combinados à expansão demográfica. A Pampulha seria o resultado de

intervenções estatais motivadas pelo ideário modernista, associada à criação de topografias

artificiais e à formação de novos enclaves sociais, como veremos a seguir.

Figura 3: Vista aérea da Pampulha, 1948. Fonte. APCBH, Coleção José Goes

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A construção da paisagem modernista

As contradições próprias da modernidade vistas nas primeiras décadas de Belo Horizonte

evidenciam caráter ambivalente na medida em que se celebra a cidade moderna e

racionalista mas ao mesmo tempo a ressente. A cidade que nos anos 20 é vazia, tediosa e

monótona para muitos, parece se tornar densa, cosmopolita e agitada menos de duas

décadas depois. Isso ocorre na medida em que ela começa a se verticalizar e também em

que as mazelas dos subúrbios começam a se tornar mais aparentes e presentes na vida

quotidiana. Entre 1920 e 1930 sua população dobrou, passando de 55.563 habitantes para

116.981.

Este sentimento de ambivalência foi capturado por Luciana Teixeira Andrade ao analisar a

Belo Horizonte dos modernistas sob a luz das obras de Carlos Drummond de Andrade, Cyro

dos Anjos e Pedro Nava. Segundo a autora, “o que iremos encontrar em suas obras são

percepções muito ambivalentes, seja em relação à organização geométrica do espaço, seja

no que tange aos novos valores e formas de interação social que começavam a se difundir

nos centros urbanos.” (de Andrade, 2004, p. 16). Ainda na análise de Andrade, tal

ambivalência “trata-se (…) de um problema geral e não apenas regional ou idiossincrático, e

intimamente ligado à modernidade” (ibid, p. 17). Assim, contestava-se a tradição, o

provincialismo e a moralidade ao mesmo tempo em que demonstrava-se apego a formas

tradicionais de relação social. Em relação à cidade, ainda segundo a autora, nota-se uma

“tensão entre uma cidade tradicional claustrofóbica e uma cidade moderna agorafóbica”

(ibid. p.17). Portanto, a construção da Pampulha é fruto dessa claustrofobia à cidade

“antiga” e quadriculada; mas sua difícil e lenta consolidação é resultado também da

resistência agorafóbica ao vazio do novo. A região foi - e talvez ainda seja na memória de

alguns - por muito tempo considerada como “fora da cidade”. É comum ouvir na fala dos

moradores da Pampulha relatos que informam que eles “vão à cidade” para esta ou aquela

atividade. Pode se tratar de fato de um velho costume mineiro de se referir ao centro como

“a cidade” ou pode ser ainda retrato de uma memória da Pampulha que é fora dela.

O Prefeito Juscelino Kubitschek, em seu relatório administrativo de 1940-1941 se refere à

Pampulha como a “Cidade Satélite”, denominação dada pelo urbanista Agache em visita à

Belo Horizonte à época. Preocupado com as disparidades sociais vistas em Belo Horizonte,

Agache havia sugerido a criação de uma Cidade Satélite para abrigar trabalhadores no

entorno da lagoa (Segre, 2012). Porém, Kubitschek tinha objetivos diferentes para a

Pampulha, onde ele já havia imaginado bairros luxuosos beirando a lagoa que iriam não

somente perpetuar a imagem de uma cidade moderna mas também garantir rendas

advindas de impostos e da indústria turística. Neste relatório, no qual quinze páginas de

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texto e numerosas fotografias são dedicadas às obras na Pampulha, fica clara a importância

e a dedicação que Kubitschek as dá. Porém, são difusas e ambíguas as justificativas e

intenções da Administração quanto às obras. O relatório relembra a necessidade da

barragem para o abastecimento de água potável em vista do crescimento recente da cidade

como já argumentado pelos prefeitos anteriores. Todavia Juscelino dá destaque maior ao

papel da Pampulha como atração turística, sobretudo para justificar os gastos direcionados

à construção dos equipamentos que, segundo ele, compensariam as inversões de capital

feitas nas obras. (Belo Horizonte, 1941). Tais equipamentos se tratam, além da barragem e

estação de tratamento de águas, de obras arquitetônicas contratadas ao arquiteto Oscar

Niemeyer, das quais trataremos mais adiante.

Assim, fica claro o oportunismo (no bom sentido da palavra) de Jucelino ao se aproveitar

das já encaminhadas obras de engenharia para acrescentar uma série de valores e

significados à paisagem em formação criando tanto uma desejada atração turística para

Belo Horizonte, quanto uma vantajosa valorização para o local, esta última mencionada

diversas vezes no relatório. Apesar do texto invocar algumas vezes o nome “Cidade

Satélite” e fazer menção ao bairro residencial que ali se formava, a função residencial da

Pampulha é apenas um detalhe dentro de um grande projeto urbanístico voltado ao turismo,

à cultura, à monumentalidade, e é claro, ao aumento dos tributos. Quanto ao urbanismo,

Juscelino o descreve: “a Pampulha está sendo edificada dentro de um plano inteiramente

diverso do traçado para a capital, lançando-se alicerces de um bairro residencial em moldes

completamente diferentes, mas de acordo com a paisagem que oferecem o lago e as

construções ali levadas em diante pela Administração Municipal com o apoio decisivo do Sr.

Governador do Estado.” (Belo Horizonte, 1941, p. 38)

Tal plano, por ele descrito, não se trata de um plano no sentido do traçado, do desenho da

forma urbana como é característico da disciplina, mas de um conjunto de ações pontuais e

fragmentadas que fazem parte de uma ideia geral um tanto abstrata. Assim, não houve

desenho holístico que incluísse os edifícios ao projeto da malha viária. Sua concepção foi

separada, ainda que concomitante, às obras arquitetônicas. Depois das experiências no

centro da cidade já eram reconhecidas as dificuldades, tanto financeiras quanto práticas de

se elevar um plano, visto que a construção da cidade perdurou por mais de quarenta anos.

Isso se torna ainda mais pertinente no início dos anos 40 vistas as dificuldades financeiras e

de aquisição de material em virtude do conflito mundial, também mencionadas por

Kubitschek na introdução de seu relatório administrativo. Como já introduzido na sessão

anterior, os loteamentos nas margens da represa foram realizados de acordo com o

interesse dos proprietários, às custas dos mesmos, mas com parâmetros especiais

determinados por lei e projeto e execução por parte da Prefeitura.

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Os equipamentos, edificados para servir ao o turismo e ao lazer - o Cassino, a Casa do

Baile, o Iate, e posteriormente a Igreja - encontram mais pertencimento ao conjunto que

formam entre si e a lagoa do que à um plano urbanístico. Ao voltarem-se para si, tendo o

corpo d’agua e a avenida marginal como elementos de ligação e síntese, formam um

conjunto independente, elemento externo aos bairros que os circundam.

A genialidade de Oscar Niemeyer, contribuiu, sem sombra de dúvida, para a composição

desta paisagem. A feliz parceria estabelecida na Pampulha se deu em função de Oscar ter

sido anteriormente convidado pelo governador Benedito Valadares para desenhar um

cassino a ser construído no Acaba Mundo, que não se concretizou. O arquiteto foi então

convidado por Juscelino, com influência de Rodrigo Melo Franco de Andrade, do IPHAN e

Gustavo Capanema, então ministro de Educação e Saúde (Bojunga, 2001).

Além de sabida inovação dos padrões arquitetônicos - os quais, apesar de importantes não

fazem parte do foco principal deste artigo - as obras da Pampulha trouxeram inovação

também quanto às praticas sociais da sociedade de Belo Horizonte. Isso se dá

principalmente em relação ao Cassino, peça fundamental, ao ver de Juscelino, para o

turismo. Sua intenção era “antes de tudo, dar a Belo Horizonte uma obra que não só

refletisse o seu vertiginoso progresso, como ainda tomasse um espelho da cultura mineira”

(Belo Horizonte, 1941, p.42), donde nota-se mais uma vez a ambivalência entre o progresso

e a tradição mineira.

A Revista Bello Horizonte de Julho de 1934, 9 anos antes da inauguração do Cassino da

Pampulha, publicou uma nota, assinada pelo jornalista J. Guimarães Menegale, a respeito

da inauguração do Cassino Montanhês, à rua Guaycurus, 648, no centro de Belo Horizonte,

em que dizia haver escutado uma conversa que dizia: “Nós aqui - continuou a espevitada

mineirinha - não podemos, à cara e a descoberto, irmos a um casino assim, porque

seriamos julgadas injustamente mal” Menegale (Menegale, 1934). Uma década depois se

tornaria então comum à sociedade mineira - tanto homens como mulheres - frequentar o

Cassino e jantar no “grill-room” sem serem julgados por isso, seguindo finalmente um

modelo de Cassino cosmopolita que havia se fixado desde a instalação do Cassino da Urca,

no Rio de Janeiro, em 1932 (Bojunga, 2001).

Os usos das novas obras da Pampulha não são assim tão diferentes do que já havia na

cidade de Belo Horizonte. Nessa época, já funcionava o mencionado Cassino Montanhês; já

havia sido inaugurado em 1939 o Parque Santo Antonio (atual Minas Tênis Clube); o Clube

Belo Horizonte e os diversos cafés na rua da Bahia exerciam o mesmo papel da Casa do

Baile que era o de festas populares. O que difere a Pampulha portanto, além da arquitetura

totalmente nova de Niemeyer e do aspecto do moderno que flutuava sobre ele, é, sobretudo,

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esta paisagem criada artificialmente a partir do represamento do córrego Pampulha. Ela se

define portanto como uma paisagem construída pelo homem, diferenciando-se daquela que

é natural e dada, mas é construção cultural (CORNER, 1999).

Assim, a Pampulha não é somente seu conjunto arquitetônico mas também o conjunto de

água e avenida, uma paisagem devidamente domesticada, usada para contemplação,

esportes aquáticos (para os privilegiados) ou mesmo para aqueles que lá iam fazer picnics e

assistir às corridas de carros.

Sua arquitetura, sem dúvida, contribuiu imensamente dentro de contexto de construção da

identidade nacional através da arquitetura à época, que começou na Pampulha e depois deu

prosseguimento em Brasilia. Suas aspirações estão, obviamente, inseridas dentro de um

contexto nacional de formação da identidade brasileira através de arte e arquitetura

moderna, que inicia com a Semana de 22 em São Paulo e dá prosseguimento, a nível local,

com a “Semaninha de arte moderna” promovida também por JK em 1944.

Em 31 de maio de 1944 José Lins do Rego publicou no jornal Estado de Minas um artigo de

nome “Kubitschek” no qual ele diz:

Figura 4: Revista Bello Horizonte, 1943. Fonte: APM

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“Pampulha é como Ouro Preto, dois tempos que se conjugam. Para os que imaginavam a arquitetura como qualquer coisa que não pode mudar, como se as próprias pedras não mudassem, seria um crime permitir que o povo mineiro fosse além de Vila Rica. Tudo já estava feito. Só restava ao mineiro fazer-se zelador de museu. Kubitschek, neto de eslavo entalhador, seria em minas o batedor de uma nova civilização arquitetônica. Vive em Ouro Preto o Aleijadinho como o gênio de seu tempo. Com ele ninguém pode. Mas existe a Pampulha, que é outra grandeza de Minas. Rio de Janeiro, como Kubitschek te faz falta.” (BOJUNGA, 2001)

Transformações na paisagem ao longo das décadas: usos e

significância

A vida social almejada para as obras de Niemeyer não durou tanto quanto seu legado

arquitetônico. Graças às suas formas ousadas, a igreja só foi consagrada em 1959, apesar

de ter sido preventivamente tombada em 1947. Depois de causar uma revolução nos

costumes sociais locais e atraído muitos visitantes para a região, o Cassino encerrou suas

atividades três anos após sua inauguração, com a proibição do jogo no país. Com seu

fechamento, a Casa do Baile acabou também ficando esquecida. Apesar da Pampulha ter

se tornado claramente um destino de lazer e turismo, poucas casas foram construídas nas

primeiras décadas. Muitos ainda desconfiavam de seu sucesso mesmo tendo Kubitschek

construído ali sua própria casa de fim-de-semana, com projetos de Niemeyer e Burle Marx.

Em 1954, a ruptura da barragem pareceu anunciar o início do fim. Diante da ameaça,

iniciou-se uma grande mobilização de esforços para a recuperação da região. A partir então

a barragem foi reparada, a igreja foi consagrada e restaurada, o Museu de Arte da

Pampulha foi instalado no antigo Cassino e a Universidade Federal de Minas Gerais iniciou

sua construção com a desapropriação da Fazenda Dalva, ao sul da lagoa. Portanto, já na

primeira década de desenvolvimento, a Pampulha começa a apresentar suas primeiras

fissuras físicas e conceituais, quando seu sucesso é interrompido em primeiro lugar por

subversões às funções e posteriormente por rupturas físicas.

A partir da década de 1950 e principalmente na década de 1960 a Pampulha começa

portanto a receber equipamentos institucionais e recreativos de grande porte. Se não

construídos pelo próprio Estado ou Prefeitura, eram por influência dos mesmos. Enquanto

vários terrenos foram doados para clubes recreativos e clubes de futebol, o governo investiu

ali na construção da Universidade, dos estádios esportivos hoje conhecidos como ‘Mineirão

e Mineirinho’ (1965), do Zoológico (1957) e na ampliação do aeroporto. Havia na Pampulha

disponibilidade de grandes terrenos a baixos custos e já conectados ao centro de Belo

Horizonte pela Avenida da Pampulha (hoje Avenida Antônio Carlos), cuja construção é

contemporânea à barragem. Além disso, é obvia a intenção dos governantes em

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estabelecer na Pampulha um pólo de lazer e turismo, atingida através de grandes

investimentos.

Como pretendido, a Pampulha exerce desde seu nascimento seu papel de ‘playground’ de

Belo Horizonte, não somente pela paisagem e possibilidades oferecidas pelo grande corpo

d’água - em uma cidade que está 400 quilômetros distante da costa - mas devido aos

constantes investimentos públicos em nome do lazer. Os esforços na aplicação da imagem

de “paraíso na terra” na Pampulha, através do lazer privilegiado, podem ser interpretados

como as “heterotopias de ilusão” de Foucault, por sua vez típicas da Telle Cittá, a cidade

pós-industrial descrita por Grahame Shane. (Shane, 2008)

Em entrevista, uma moradora da Pampulha desde o fim da década de 70 afirma que, antes

mesmo de se mudar para lá, frequentava a Pampulha para fazer picnics na beira do lago ou

frequentar o bar das Mangueiras (defronte à Igrejinha). Segundo ela, naquele momento o

Parque Municipal, no centro, já havia “popularizado demais” - no sentido de ser

frequentando pelas classes mais populares - e então as pessoas (de elite) se dirigiam à

Pampulha aos domingos. A ida à Pampulha, facilitada pelo acesso através de bondes,

significava portanto uma fuga da cidade, uma vida cosmopolita que se instala fora dela

ainda que sob motivações elitista e segregacionistas.

Foi somente ao fim do “milagre brasileiro” que a Pampulha começou a se consolidar não

somente como destino de lazer, mas também como lugar de moradia. Os enclaves

passaram de residências de fim-de-semana para residências permanentes, enquanto outros

bairros de classe média surgiram concomitantemente à outros assentamentos informais,

estendendo a mancha urbana não somente no entorno da lagoa mas por toda a região norte

da cidade, alcançando os limites com os municípios de Contagem e Venda Nova. A intensa

ocupação ao longo dos vales dos córregos que deságuam na lagoa resultaram em na sua

grave poluição e assoreamento, um problema sério já nos anos 1980 e um constante

desafio.

Como já demonstrado na sessão anterior, os parâmetros urbanísticos e posteriormente os

equipamentos de sociabilidade e práticas ali instalados instauraram na Pampulha uma

ocupação de caráter elitista a partir do momento em que a lagoa era circundada por um

grande cinturão formado por mansões e clubes privados. Porém, os interstícios entre a

lagoa e os grandes lotes - a orla em si - e aqueles formados entre um bairro e outro - como

por exemplo a Avenida Fleming e a Rua Coronel Dias Bicalho - acabaram por se

transformar, ao longo das décadas, em espaços alternativos de sociabilidade e urbanidade

mais inclusivos, onde diversas camadas sociais se encontram e onde o comércio é

permitido. Ademais, as sucessivas as intervenções na região - aos equipamentos das

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primeiras décadas acrescenta-se o Parque Ecológico (2005) e graduais obras de

melhoramentos das calçadas e pistas de corrida - contribuíram para a popularização e

democratização dos usos ao redor da lagoa. (Alvares e Bessa, 2010).

Apesar do crescimento físico e demográfico, os enclaves da Pampulha e seus

assentamentos ‘periféricos’ permaneceram longo tempo sem seu próprio centro. A maioria

dos entrevistados, moradores do primeiro e parcialmente do segundo anel de ocupação que

tem a lagoa em seu centro, relatou ter sido somente na última década que “a Pampulha

melhorou bastante”, no sentido de agora tornar-se (quase) completamente independente do

centro principal, contando com bancos, supermercados, clínicas de saúde, boutiques e

outros serviços. Esta nova urbanidade inserida na Pampulha ocorre principalmente ao longo

dos espaços que se formaram de maneira mais ou menos espontânea, nos interstícios entre

bairros e no segundo anel de ocupação, com usos mais permissivos.

Desde a lei de zoneamento 1976, sucessivas regulações urbanas reforçaram o modelo

residencial unifamiliar no entorno da lagoa enquanto eram mais permissivas nos bairros

periféricos. “Assim, sob a égide da proteção ambiental, com uso e ocupação altamente

restringidos, os bairros à volta da lagoa reforçaram o enclave urbano de lotes grandes e de

alto valor, distintos daqueles que se verificavam na ocupação do Vetor Norte” (Carsalade,

2007)

O primeiro zoneamento de Belo Horizonte, o de 1976, define os bairros no entorno da lagoa

como ZR1 - Zona Residencial 1 - permitindo, além deste uso, somente os usos institucional

local como escolas, hospitais, auditórios, bibliotecas, clubes, estádios e museus, até no

máximo dois pavimentos (Belo Horizonte, 1976). A partir de 1996 a Lei 7166 de Uso e

Ocupação do Solo de Belo Horizonte define a área como ZP2 - Zona de Proteção 2 (Belo

Horizonte, 1996) - sob justificativa do crescimento demográfico na região, sobretudo na

forma de assentamentos informais ao longo dos córregos, contribuindo para o

Figura 5: Mapas interpretativos da LUOS 1976 e 1996, identificando a a ZR1, ADE da Pampulha e as áreas comerciais (em vermelho. Elaborado pela autora com base da PRODABEL e informações das LUOS 1976 e1996.

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assoreamento e poluição da lagoa, mas, de fato, reforçando o caráter de enclave como

observado por Carsalade. Sobrepõe-se, entretanto, ao zoneamento a ADE Pampulha, área

de diretrizes especiais, que, no seu artigo 90, restringe o uso ao exclusivamente residencial.

O que se observou a partir desta lei, foi a consolidação de áreas de comércio e serviços nas

áreas externas à ADE, tangenciando-a. Isto é visível sobretudo nas já mencionada Avenidas

Fleming no Bairro Ouro Preto e Rua Col. Dias Bicalho no Bairro São José, além na margem

norte da Avenida Portugal no Bairro Jardim Atlântico. Tanto o bairro Ouro Preto, quando o

bairro Jardim Atlântico - em sua porção norte - estão inseridos em Áreas de Adensamento

Restrito onde os parâmetros de uso e ocupação são menos restritivos.

Em 2005, a Lei 9037 institui o plano de ação PROPAM - Programa de Recuperação e

Desenvolvimento ambiental da Bacia da Pampulha - e regulamenta a ADE da Bacia da

Pampulha, da Pampulha e do Trevo, com os objetivos tanto de recuperação e proteção

ambiental quanto de promover um desenvolvimento urbano e econômico para a região, por

meio de:

“ a) requalificação urbana das áreas integrantes da Bacia, de modo a propiciar realização de potenciais econômicos, ampliar oferta e condições de apropriação de espaços públicos e acentuar atratividades da Pampulha como espaço de lazer, cultura e turismo de âmbito metropolitano

b ) definição de parâmetros de ocupação e uso do solo adequados à recuperação ambiental e ao desenvolvimento urbano e econômico da referida Bacia.” (Belo Horizonte, 2005)

Figura 6: Mapa interpretativos da Lei 9037/2005, identificando ADE da Pampulha e as áreas comerciais (em vermelho. Elaborado pela autora com base da PRODABEL e informações das Lei 9037/2005

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Nota-se nesta lei uma significativa abertura e flexibilização quanto aos usos na ADE da

Pampulha, ainda de maneira minuciosamente seletiva. A lei distingue basicamente três tipos

de vias - ou espaços - para as quais define atividades e usos desejáveis ou não. São elas:

(1) as áreas predominantemente residenciais; (2) Avenida Otacilio Negrão de Lima; e (3)

Avenida Fleming; Rua Expedicionário Celso Racioppi; avenidas Alfredo Camarate e Santa

Rosa; Praça Alberto D. Simão; avenidas Francisco Negrão de Lima, Atlântida/Heráclito

Mourão de Miranda, Antônio Francisco Lisboa, Professor Clóvis Salgado, Braúnas, Chaffir

Ferreira e Orsi Conceição Minas e ruas Xangrilá, Versília e Ministro Guilhermino de Oliveira.

Observa-se que tais avenidas são, sobremaneira, aquelas que margeiam os bairros

pioneiros de 43, os aprovados por Juscelino, e também aquelas que situam sobre os vales

dos córregos que desembocam na lagoa, hoje transformados em avenidas sanitárias.

O anexo XXV (substituindo o anexo VII) desta lei apresenta quadro com distinção dos usos

permitidos e proibidos para cada uma dessas áreas. Em suma, grande gama de atividades

de comércio local são permitidos para as avenidas enquanto para a orla apenas alguns usos

específicos são permitidos, como por exemplo o que artigos de bomboniere e semelhantes,

tabacarias, objetos de arte, plantas e flores, papelaria e livraria, souvenirs e artesanatos,

equipamentos para escritório e informática. corretoras de câmbio, caixas eletrônicos, bares,

cantinas, sorveterias, hotéis, produções artísticas de toda espécie, cinemas, casas de

festas, ensino de esporte, biblioteca, museus, centros culturais, dentre outros. Do contrário,

enquanto na orla são tolerados ambulantes de alimentação e bares especializados em

bebidas, esses são proibidos nas demais áreas, evidenciando que atividades de turismo

devem ficar restritas àquela área.

Para as áreas residenciais ficam permitidos padarias, laticínios, comercio de flores, livros,

jornais, sorveterias, academias, laboratórios fotográficos, atividades de artistas plásticos,

clinicas geriátricas e asilos, creche e pré-escolas somente. Ou seja, são tolerados apenas

Figura 7: Bairro São Luís (esq.) e Bairro Ouro Preto (dir). Em vermelho usos não-residenciais e tipologias diferentes da uni-familiar. Elaborado pela autora com base da PRODABEL.

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aqueles de uso estritamente dos moradores dos bairros e algumas poucas atividades de

“fundo de quintal”, desde que artísticas, restringindo ao máximo a frequência de não-

moradores excluindo também outras atividades de uso quotidiano porém um pouco mais

abrangentes tais como cabeleireiros, farmácias, papelarias, chaveiros e lavanderias.

Conclusões

O que ficou evidente na Pampulha nas últimas décadas foi um aumento significativo das

atividades tanto de lazer quanto de uso quotidiano na região podendo finalmente, depois de

seis décadas, ser independente do centro tradicional da cidade, oferencendo serviços tais

como bancos e comercio em diversos níveis de especificação, bem como escolas, clinicas

médicas, restaurantes, etc.

Enquanto isso, porém, o que se observa no interior dos bairros, onde as leis são mais

restritivas e onde os lotes grandes e mansões já não fazem mais parte da realidade sócio-

econômicas de seus herdeiros, é um triste abandono e esvaziamento. Esta situação provoca

problemas de segurança e assim, um aumento da aversão ao outro nesses bairros, quando

o que lhes falta seria justamente “os olhos da rua” como já exaustivamente defendido por

Jacobs e seus adeptos. A flexibilização e democratização dos usos na Pampulha nas

últimas décadas, resultou em movimentos que visavam retomar os parâmetros altamente

restritivos já vistos na lei de 1996. O resultado dessa luta é visto na recente candidatura - e

posterior titulação - da Pampulha junto à Unesco, recebendo seu grau máximo de proteção.

Cabe-nos agora questionar, portanto, quais os graus de proteção mais adequados à

Pampulha, que podem garantir tanto a proteção de seu patrimônio arquitetônico e paisagem

cultural estabelecida ao redor da lagoa, mas que possa também garantir a permanência dos

demais usos e públicos que lhe foram acrescidos, mesmo nas margens e nos interstícios,

mas que hoje lhe dão vida.

Observamos através das sucessões de legislações que ora restringem e ora flexibilizam,

que na Pampulha, e em Belo Horizonte, ainda é possível reconhecer as ambivalências entre

modernidade e tradição na medida em que se deseja buscar o novo mas ainda se atém ao

passado, às tradições mesmo sendo elas intrinsecamente novas elas mesmas.

A Pampulha se abre, flexibilizando os usos ao reconhecer os ganhos sociais e econômicos

e turísticos da diversidade adicionada à Pampulha ao longo das décadas. Porém, isso

aparentemente pode se tornar uma ameaça ao patrimônio, à lagoa mas, na realidade, à

homogeneidade e hegemonia estabelecidas naqueles bairros pioneiros, garantidas graças

às proteções patrimoniais em diversas instâncias.

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Referência

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