15
Eneida Souza Cintra Panela Furada Primeira Edição São Paulo 2012

Panela Furada - perse.com.br · Minha tia Tereza, um pouco mais estudada, descreveria como sendo um momento de letargia muito comum na adolescência. Meu avô, médico clínico, daqueles

  • Upload
    ngonhi

  • View
    216

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Eneida Souza Cintra

Panela Furada

Primeira Edição

São Paulo

2012

Eneida Souza Cintra

2

Panela Furada

3

PANELA FURADA

PENSO. RELEMBRO.

Estou cansada mas não descanso. Estou com sono mas não durmo. Não quero pensar mas penso... Agitada, vou para o terraço. Sento. Levanto. Finalmente me ajeito na rede e consigo relaxar mas a cabeça não pára ... Fico um tempão ali, aparentemente sem nada fazer e permito que pouco a pouco indolência tome conta, indolência essa acompanhada de um turbilhão de pensamentos; será que conseguimos dominar este tipo de comportamento ou somos dominados por ele? Minha mãe diria “que preguiça é esta?” Minha tia Tereza, um pouco mais estudada, descreveria como sendo um momento de letargia muito comum na adolescência. Meu avô, médico clínico, daqueles inflexíveis, formado há seis décadas atrás, que nunca acreditou nas modernices, principalmente na psicologia, refletiria: trata-se de um quadro de depressão, que pode ser encarado como .... e por aí vai ... Finalmente chegaria meu pai: “oh garota, levanta daí e vai ajudar sua mãe ... “ com voz de pouco comando e completaria: “que dengo é este, menina?” Enquanto me balanço ouvindo o nhec, nhec da rede, numa distância de muitos e muitos anos, brinco com as lembranças. Enxergo este panorama e o desenrolar de episódios. Se era letargia, indolência, preguiça ou dengo, até hoje não sei ... Quem menos acertou, foi o único formado de toda essa turma: meu avô. Com certeza, deprimida, nunca fui. Malandra, um tanto manipuladora, que na época sequer sabia que isto existia, ah ... lá isto eu era, vim saber mais tarde. É claro que os fatos não ocorreram exatamente

Eneida Souza Cintra

4

assim mas, transpondo as figuras para um quadro, conhecendo-as como as conhecia, era isto que diriam. Se o episódio está sendo criado agora, os personagens são reais. Agora cá estou, repetindo o mesmo comportamento tão criticado por todos. A diferença é que no passado não sabia argumentar. Vestia o rótulo, entendia-me como errada, a auto censura me empurrava e lá ia eu estudar ou trabalhar ou obedecer o que o mundo adulto achava que eu tinha que fazer, mesmo resmungando e contestando. Se minha moleza é a mesma, a reação é bem outra. Aprendi a me defender, a bater forte, a devolver na mesma moeda e agora, manter-me na estagnação, gera muito prazer. Descobri que preciso de tempo para pensar, refletir, equacionar as coisas, por mais atividades que abrace. Num movimento de trás pra frente, volto às minhas origens e recordo. Afinal até para relembrar temos que ter tempo, ora bolas ... Se antes eram devaneios, futurizando situações repletas de magias, agora estavam voltados ao passado com reais vivências e um outro sentir. Eu renomeava meus irmãos mediante as características de cada um, incluindo a própria família que eu enxergava como sendo uma grande panela onde todos depositavam ingredientes e que de vez em quando furava. Como minha infância foi mais prolongada, talvez pela época, talvez por temperamento, talvez pela soltura que a fazenda propiciava, fui molecona até quase meus catorze anos. Até esta idade, quando algum problema surgia agitando a família, lá vinha eu correndo, pulando e gritando: “ ... a panela furou lá, lá, lá ... põe solda, põe solda, põe solda ... lá, lá, lá...” endoidando vô, vó, mãe que gritavam: “... Bel, sai daqui, sua peste ... vai, vai porque se te pego, você vai ver só ...”; meu pai, em compensação, queria ficar bravo mas no fundo, no fundo achava graça; adulto pensa que a gente é boba mas não é não; eu

Panela Furada

5

percebia direitinho que meu pai até gostava do meu jeito; ouvi uma vez ele dizer para um amigo que eu era uma capeta esperta, com tom de aprovação. Nasci no interior paulista e cresci morando na fazenda até meus 14 anos. Como não deu tempo da parteira chegar, conheci o sol dentro do quarto mesmo, às 5 e meia da manhã, com uma das minhas tias ajudando e a outra rezando para a Nossa Senhora do Bom Parto!! Se foi a rezação da Tia Marlene ou a perícia da tia Tereza, não vamos saber nunca; cada uma puxava para si o bom resultado do nascimento enquanto minha avó só exclamava que minha mãe é que era boa parideira. Todos contentes menos meu pai: queria um filho menino, filho homem, um machinho. Com o tempo se conformou e tratou de produzir outro para ver se dava certo pela quinta vez. Não que já não tivesse um filho homem mas, queria pelo menos mais um “... pra não ficar muita mulher...” Como naquela época quem fazia filho era o marido, à minha mãe só cabia aceitar. Antes de mim haviam duas meninas e um menino; o encerra fila veio menino homem para alegria do meu pai que, se não conseguiu empatar com as mulheres, pelo menos já estava três a dois. Meu avô, aborrecido com a sorte que lhe havia presenteado só com o sexo feminino, (quatro no total: as duas tias que moravam junto conosco, solteironas, uma que morreu quando nasceu e minha mãe, como raspa do tacho), abriu uma garrafa de vinho para comemorar o nascimento do quinto que acabou apelidado de Quintinho. Além de numericamente ser o quinto, era também o caçula e, como todo filho mais novo parece que nunca cresce, fica sempre pequenininho, até no nome expressava esta condição. Ai que raiva que me dava! E, com mais raiva ainda fiquei, quando soube que quando nasci, com nada brindaram além do horroroso chá de frutas. Soube disto pelas falas das tias e pela

Eneida Souza Cintra

6

repetição da rotina que acompanhei tantas e tantas vezes; enquanto minha avó se deliciava em tomar a tal efusão, tia Marlene se orgulhava de ter passado a tarde inteira espremendo laranja, misturando suco disto e mais aquilo até sair “no ponto” ... !!! Como a cozinha nunca me atraiu, uma das queixas conclusivas da minha ilustre família quanto ao meu não desempenho, era a de que eu realmente, era preguiçosa! Nunca vi muito sentido naquilo: tanto trabalho pra beber tudo rapidinho e depois virar xixi ... Bah!! Que coisa mais sem graça. Isto quando se tratava de beberagem porque quando o milharal resolvia que era chegada a hora de ser colhido ... ai Jesus, Maria, José ninguém via mais nada na frente além de curau, curau e mais curau ou, pra variar, pamonha, pamonha e mais pamonha. Ou bem era um, ou bem era outro; o mais duro é quando todo mundo resolvia ajudar (menos eu, claro) e acabava saindo os dois! São fatos que mobilizam minha memória, me afagam por saber ter pertencido a esta família tão comum, tão igual a tantas outras, mas que era exatamente esta mesmice constituída de arraigados hábitos, que nos sustentavam. Como sempre dava imagem às coisas, via minha família com muitos ramos parecida com uma grande árvore: em cada galho havia um alguém importante: o compadre que por ser muito amigo, fez as rezas do batismo, a vizinha, tarefeira, que se embriagava pelo comentário da minha mãe – “ah ... a sra quando morrer vai pro céu ...”, o guloso padre que além de tomar o tradicional cafezinho, alisava a vaidade feminina da casa aceitando um licor de sei lá do que. Também tinham os mais importantes, como o prefeito que vinha, naturalmente, sondar com quanto meu pai poderia ajudar para reformar, construir, acabar, esta ou aquela necessidade da cidade. Muito esperto, quando percebia um

Panela Furada

7

regatear, perguntava pelo meu avô (sempre embrenhado no mato vigilante à colheita) que aparecia todo empertigado, logo depois de ser chamado por um de nós. A partir daí o prefeito recomeçava a negociação com todas as lamúrias de um político nato. Evidentemente o visitante sempre saia satisfeito; o orgulhoso patriarca, ou vôtriarca como eu o havia apelidado, jamais deixaria de dar sua contribuição; como a notícia saia da prefeitura e chegava na igreja, não poderia dispensar os comentários que alimentavam sua imagem. Alguém disse que o valor das coisas só aparece quando as perdemos. Parece ser verdade. Vejo o desfile do entra e sai e sinto saudades. Formávamos um grupo que respeitava regras, apesar da minha primeira tentativa ser de desafiar e não acatar prontamente, era uma vivência afetuosa. Mesmo nas broncas ou nos desabafos “sai daqui ... pára com isso ... você não tem jeito mesmo ...” havia muito calor mesmo porque, sempre alguém contrabalançava: “ ... deixa ela ... é criançona ... depois que crescer conserta ...” Realmente, acho que “me consertei”, além de passar a sentir a vida de outra maneira. Até então, eu corria, fugia das obrigações, odiava bordado e batia na tecla do piano com muita raiva; ao contrário disto, adorava ficar encarrapitada numa árvore ou olhando o trabalho das formigas. Lembrava da fábula que eu tinha lido, que despertou minha gula pela leitura, diferentemente dos livros que eu era obrigada a ler; me identificava muito mais com a cigarra do que com a formiga. A vida não pode ser só trabalho, pensava. Como também conhecia um pouco a história dos romanos, desejava ter nascido naqueles tempos onde as mulheres não faziam nada e só ficavam meio deitadas. Pouco me lembrava do povo sofrido e nem dos escravos mal tratados; ao contrário, quando ouvia referência a esta parte da

Eneida Souza Cintra

8

história, quando alguém comentava que o homem tinha melhorado porque não mais havia tanta judiaria, dava de ombros e dizia: “isto não me interessa; queria era ser uma daquelas mulheres lindas, que não faziam nada e que viviam nos palácios ...”. A estes comentários seguiam-se outros: “ ... não é possível ... esta menina além de bicho-preguiça é também insolente, metida! ” – Por acaso, você não tem pena dos outros, não? E, lá se vinham os sermões. Dizer que eu gostava deste blá, blá, blá, não é verdade, mas, preferia ouvir tudo aquilo e me deliciar com a irritação do mundo adulto. Eu pensava assim mesmo mas, o exagero fazia parte da estratégia provocativa principalmente, no que dizia respeito às roupas ou ao luxo pois não ligava para nada disto. O que invejava era a possibilidade de ser preguiçosa, de acordo com a concepção familiar. No ano que ia completar 14 anos (nasci em junho), deram-me um cheque-mate: eu devia ir para o colégio interno, seguindo o modelo das irmãs mais velhas, e segundo a regra que se impunha para as famílias mais abastadas. Minha primeira irmã que tinha uma “cabeça velha” conforme minha opinião (era assim que eu a chamava também) não só aceitou quando foi para aquele lugar horroroso onde só tinha mulher – Colégio de Freiras – como fez questão de caprichar no enxoval e arrumar a mala umas trinta vezes: conferia, olhava para ver se nada faltava, tirava tudo, estendia na cama, dobrava tudo mais uma vez; era quase um namoro com aquele bando de roupa!! Parecia que até o nome combinava com ela: se chamava Maria do Carmo, nome para homenagear as duas bisas, uma Maria e a outra Do Carmo. Fazia cara de santa e, o pior, é que se orgulhava muito disto. Eu pensava: “ ... se ela fosse isto que mostra podia ser até que virasse freira, de saia comprida, toda coberta; com essa cabeça velha ia virar uma boa rezadeira ...” Mas como eu não acreditava, achava que era uma

Panela Furada

9

fingida, achava também que nunca iria abrir mão das coisas que prezava: boas roupas, etiquetas sociais muito bem aplicadas, etc... Apesar desta cara de Jesus/mulher, era toda empinada, só gostava do bom e do melhor, tinha postura imponente, um ar orgulhoso. Bah ... e eu é que era considerada a metida quando provocava falando das belas romanas; tava tudo errado: eu devaneava, ela vivia; eu imaginava, ela incorporava. Conceição era a segunda filha cujo nome era outra cópia: uma irmã da minha mãe havia morrido ainda bebê do chamado “mal do umbigo” ou “mal de sete dias” que, traduzido para os dias de hoje, seria o tétano. Como era tradição da família esse negócio de nome, também essa minha tia foi assim batizada por conta de outra parenta que, segundo meu avô deveria também ser homenageada. Sempre pensava como devia ser chato ter nome de defunta. Quando brigávamos, o que era raro pelo jeito dela ser, era assim que eu a chamava berrando: Defunta! Defunta! Defunta! Maldosamente havia me apropriado da origem do seu nome e unido com suas características: era cordata demais, compreendia todo mundo, nunca discordava de nada. Coitada ... depois eu ficava até com um pouco de remorso mas, quem mandava ela ser tão boba? Nunca ficava brava, sempre dizia “tá bom”. Suas atitudes no geral, quase sempre reforçavam meu atrevimento e eu concluía: o apelido que eu tinha dado combinava direitinho com ela. Quando foi avisada que ia para o colégio dois anos antes, nem brigou, nem exigiu, nem chorou, nem se alegrou; simplesmente aceitou. Se a Carmo concordava, era outra coisa: se resplandecia de orgulho, se achava linda, estudiosa e a filha exemplar; aliás, tudo que fazia era impecável. Sempre achei que essa coisa de perfeita combinava com alguém que tinha cabeça além de velha, meio vazia e se segurava na aparência; mais ainda: sendo parabenizada

Eneida Souza Cintra

10

pelo bom comportamento e pelo porte altivo mostrando estar convencida de que os elogios lhe faziam jus, tentava melhorar cada vez mais. A coitada da Defunta, não! Era diferente: ela não concordava ou discordava; ela se sujeitava. Não ia nem pra cá e nem pra lá. O belo, o rico, o perfeito combinava com a Carmo; o esquisito, o diferente, o estranho combinava comigo; o impassível, o “deixa que ela faz”, a concordância pareava com a Conceição. Irritava ter duas irmãs tão idiotas!! Ficava brava mas logo me conformava porque logo acima de mim tinha meu irmão Genaro. Este sim, eta companheirão! Imaginávamos coisas juntos, construíamos histórias que pareciam verdadeiras, corríamos e apostávamos quem subia mais depressa na árvore, sempre um tentando trapacear o outro; nossas brigas sempre terminavam em risadas pois nada apostávamos de verdade; quem perdia acabava devolvendo o ganho; a cumplicidade na enganação era dos dois. Só o nome era estranho e desta vez foi homenagem à Itália, conforme contava meu avô que tinha ficado incumbido de dar a idéia; deveria ser um nome que simbolizasse a pátria mãe e como metade dos italianos se chama Genaro, assim foi escolhido e, mais ainda: falava-se com sotaque, bem gritado, e com acento forte na sílaba do meio, (principalmente quando fazia alguma travessura), Genaaaaaaro, honre seu nome! Este também ganhou minha maldade e também recebeu um apelido: “ei Nomehonrado, vamos brincar?” A primeira vez que falei isto, toda a sisudez familiar e toda bronca que eu esperava tomar, foi trocada por uma gargalhada de todos. Estávamos na mesa almoçando e meu avô acabava de dar uma explicação daqueeeeeeelas para seu nome, com toda a pompa de um verdadeiro letrado; era médico mas se dizia conhecedor de vários assuntos. Tão logo dei a última garfada, soltei esta. E pior: este nome pegou e quando chegava alguém de fora e escutava, era preciso detalhar a explicação pois

Panela Furada

11

de bate pronto, ninguém entendia. Como estou falando da irmandade e já apresentei o Quintinho, completo dizendo apenas que era um chato chorão. Como ainda não me apresentei, aqui vai: Isabel Piorenni Pereira. Vários nomes foram cogitados: os que homenageariam alguém ou outro nome italiano. Desta vez, felizmente para mim, minha mãe bateu o pé: queria um nome brasileiro, sem nenhum vínculo com nenhuma morto. “Chega, basta!” Sua veemência foi tão grande, que ninguém discutiu. Quando lhe perguntaram qual o nome escolhido, o meu avô deu risada, respirando aliviado. Comentou: - “Olha só, que bonito nome. Pensei que fosse ter uma neta chamada Lua, Bartira, Jurema; estes é que são nomes brasileiros. Isabel é espanhol!!” Logo em seguida, com medo que minha mãe mudasse de opinião (ela também era “meio defunta” naquela época), enfatizou: - “Muito bem escolhido, ótimo mesmo!” Como sabia que seu pai iria questionar, saiu-se muito bem: “ O senhor pensa que sabe tudo mas desta vez errou; antes de virar espanhol era hebraico; aprendi isso porque fui conversar com o padre que sabe muito “. Sentiu-se vitoriosa e quando contava e recontava este episódio, sempre enchia o peito rememorando o arrasta pé que deu no pai. Concluía contando a fala do meu avô: “ ... é ... parabéns ... desta vez eu perdi; aprendi mais uma”

Eneida Souza Cintra

12

VERDADE: UMA COLEÇÃO DE INVERDADES

Todo o capricho, quase excitação da Do Carmo quando foi ao colégio e toda a obediência recatada da Conceição, foram contrastadas com a minha displicência quando chegou a minha vez, adiada por quase dois anos; depois de muita insistência tinham concordado em me manter no vai e volta da escola onde eu estudava e onde minhas irmãs estudaram antes de inaugurarem este tal “Colégio das Irmãs”. Aliás, decisão esta palpitada por todos: família grande, cinco filhos e ainda com os agregados (avós e tias), qualquer mudança, mesmo sem serem consultados, todo mundo opinava; punham na minha imaginária panela, todos os temperos e ingredientes. Eu me aproveitava da situação se o assunto me incluía, para ficar bajulando por um tempo quem me dava razão e irritando quem não estivesse do meu lado; foi assim que consegui ganhar mais estes dois anos. Na ocasião da inauguração, nós três tivemos a matrícula reservada mas pedi tanto, implorei, chorei, seduzi que, cansados, adiaram um ano e depois mais um com a promessa juramentada de que do ano seguinte eu não mais resistiria; assim, sem poder argumentar, preparava-me para ficar naquela jaula que chamavam de colégio. Como não podia mais falar no assunto, fazia questão de demonstrar de todas as maneiras a minha enorme má vontade. Meu pai dava o dinheiro, minha mãe comprava as roupas determinadas pelas freiras e eu socava na mala tentando trancar junto meu choro e minha braveza. Meu irmão se mantinha na mesma escola e podia ir e voltar no começo da noite. No caso das “meninas” não podia. Tinham que ter uma educação mais aprimorada e a liberação era apenas uma vez por mês, para passar o final de semana; era assim e pronto. Como não concordava com

Panela Furada

13

aquilo, meu desabafo era ouvido pelo meu irmão e pela Conceição que tentavam me consolar, cada um a seu modo. Nomehonrado me dava razão, também não entendia porque homem/mulher tinham que ser educados de forma tão diferente se todos somos iguais: afinal não era isso que o padre falava na missa? Descobri a primeira mentira oficial! Percebia esta incoerência, algo me incomodava, causava-se estranheza, mas pela idade não conseguia me expressar além desta questão que me atingia diretamente; a sensação era verdadeira mas acreditava na época tratar-se de algo atrelado à minha irritação; atribuía o argumento ligado à birra infantil. Criança quando mente e a mãe descobre, aliás, sempre descobre, forma aquele sururu danado; quando adulto mente, nada acontece. Só bem mais tarde, depois de adulta fui me dar conta do quanto a sociedade é baseada em distorções e mentiras; vieram à tona tantos outros disfarces ... Engraçado, né? Pensando e rememorando agora, a presença da contradição na vida do homem fica tudo muito claro: para mim, um momento bem difícil e bastante doloroso, foi encarar que a verdade nada mais é do que uma coleção de inverdades! A Conceição com seu jeito meio apamonhado, sempre concordando com as ordens estabelecidas, tentava a seu modo passar sua experiência e me explicar como era bom ficar lá, com muitas amigas, todas comendo juntas num grande refeitório. Ela tinha ido para esta “gaiola” como eu chamava, junto com a Do Carmo tão logo o colégio foi aberto, cada uma na série correspondente à idade ; tinha completado quinze anos em janeiro e a Do Carmo, que já tinha 16 não se dava ao luxo de se aproximar do meu chororô; apenas se deliciava em ter uma família que podia pagar; ela queria ficar cada vez mais esmerada para ter um casamento à sua altura.

Eneida Souza Cintra

14

Com os anos fui entendendo e me aproximando mais desta minha irmã Conceição, que maldosamente chamava de “defunta”; ela queria apenas dar sentido às coisas que nos rodeavam e assim foi vida afora. Acabei por admirá-la pela sabedoria. Aquilo que eu condenava e caçoava nada mais era, que um exercício para viver com calma, lutar apenas com aquilo que era possível. Desde nova percebeu o que eu não entendia – há pessoas mais fortes que nós e nada há para se fazer; “ ... é luta sem ganho ... é assim que tem que ser ... a família manda e nós obedecemos ...” Quando escutei isto, gritei o mais alto que pude: “Defunta!! Defunta!! Defunta” ...” e fui pra cima dela; Nomehonrado separou, como sempre fazia quando me via perder a paciência. Fui entender anos e anos depois, o quanto ela estava certa. Início de fevereiro. Chegou o tal do dia. Não conseguia entender como Conceição aceitava pacificamente e mais admirada ainda quando me lembrava da alegria da Carmo. Eu estava irada, ao mesmo tempo triste e chorosa, sem conseguir identificar que lá no fundo devia estar era muito amedrontada; medo de perder minha liberdade que eu prezava tanto, medo de ficar trancafiada num lugar, medo daquele silêncio sepulcral. Como nenhum dos meus argumentos anteriores e minhas intempestivas crises de raiva, deram resultados, além de ter protelado minha matrícula por dois anos, lá fui eu de mala e cuia, carregando um grande bico. A caravana familiar foi toda me acompanhar; acho que queriam ter certeza de que eu seria entregue à tal Superiora sem tentar manipular mais nada. Realmente, nada mais tentei; não programei nenhuma armadilha. A única coisa que jurei para mim mesmo é que preservaria a minha vontade de manifestação, evidentemente adequando-me à nova situação pois

Panela Furada

15

burra, com certeza, eu não era e sabia que meus instrumentos estavam diminuídos. Com essa idéia cheguei ao tal do colégio que para mim representava uma cadeia, com guardas de saia e um chapéu na cabeça que tinha mais goma que o colarinho do meu pai. Além deste esquisito chapéu, embaixo daquele vestido comprido devia ter outro tanto de roupa dura porque para falar com um ou com outro, precisavam se virar inteiramente como se estivessem dentro de uma forma. Isto confirmou a minha impressão: eram como soldados que para cumprimentar o superior tinham que parecer engessados e se virarem sobre os calcanhares, duros como tábuas. Minha observação inicial não foi tão cruel como aqui descrevo; achei que a primeira que nos recebeu, devia estar com torcicolo no corpo todo e cochichei com meu irmão. Ele riu baixinho e disse que isto não existia; torcicolo dava só no pescoço!! Quase morri de vergonha da minha ignorância e fiz Nomehonrado prometer que não ia contar isso pra ninguém. Os homens ficaram no jardim e a ala feminina, mãe, avó, tias, podiam entrar para ver meu quarto. Juntei as regras do colégio com a minha promessa de manifestação: entrei muda e saí calada. Não transgredi nenhuma lei interna mas também não ia fingir contentamento só para agradar parentes que escolheram por mim e muito menos para aquelas Irmãs engessadas. Pensava mas não perguntei: porque o nome “Irmãs”? Irmã para mim era a Conceição e a do Carmo. Fiquei quieta para não ser impertinente mas, que eu ia descobrir, ah, lá isso eu ia; minha cabeça não cansava de fazer planos; evidentemente sempre meio diabólicos. Mamãe aceitou minha boa conduta mas seu olhar desconfiado sabia que tinha algo por trás da minha quietude. Sabia que eu não