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impulso nº 29 83 UM PANORAMA DA MODERNIDADE: ORIGENS, FORMAÇÃO E PERSPECTIVAS * 0 A View of Modernity: origins, evolution and perspectives Resumo Pós-modernidade é definida como a tentativa de superação da modernidade, em busca de novos caminhos, enquanto a modernidade propriamente dita é consi- derada a herança provinda de alguns acontecimentos históricos, acompanhados de suas implicações políticas e culturais. Rastreia-se esses acontecimentos fundadores de forma resumida, ao mesmo tempo em que se procura vinculá-los às manifestações ex- pressas da pós-modernidade, à maneira de um inventário, ao longo do qual se perfila aquilo que de mais decisivo se julgou ter sido estabelecido mediante a influência da modernidade, como um processo de formação. Conclui-se que as características do mundo pós-moderno devem ser, por sua vez, modificadas de modo a sair do impasse em que atualmente se encontra, notadamente no campo cultural das humanidades. E que essa modificação tem maior probabilidade de sucesso caso os intelectuais que aí operam voltem-se mais decididamente a incorporar em suas análises os conhecimen- tos revolucionários tornados disponíveis com as novas descobertas científicas, em es- pecial aquelas derivadas das ciências biológicas, que podem perfeitamente se transfor- mar na base das futuras investigações ou formulações culturais humanísticas. Palavras-chave MODERNIDADE PÓS- MODERNIDADE CRÍTICA CULTURAL CI- ÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS IMPACTO SOCIAL DAS CIÊNCIAS BIOLÓGICAS. Abstract Postmodernity is defined as an attempt to overcome modernity, to find new ways, while modernity is considered the legacy of some historical occurrences, associated with their political and social implications. All these occurrences were bri- efly tracked and at the same time were linked to the expressed manifestations of post- modernity, as an inventory, along which they’ve been organized according to what is believed to have been established by the influence of modernity as a development process. In short, the characteristics of the postmodern world should be changed in a way to escape the present impasse, mainly in the cultural field of humanities; this change is more capable of succeeding if the professionals who work in that area de- cide to incorporate in their analyses the revolutionary knowledge that became avai- lable through the scientific discoveries, mainly those derived from the biological sci- ences, which can be transformed in the basis for future investigations or cultural hu- manistic formulations. Keywords MODERNITY POSTMODERNITY CULTURAL CRITICISM SOCIAL AND HUMAN SCIENCES SOCIAL IMPACT OF THE BIOLOGICAL SCIENCES. Este artigo faz parte do projeto “Implicações Filosóficas do Desenvolvimento da Biologia”, desenvolvido no DTAi SER do CCA/UFSCar. ANTONIO CELSO GEMENTE Doutor em filosofia e história da educação pela Unicamp, professor no Departamento de Tecnologia Agroindustrial e Socioeconomia Rural do Centro de Ciências Agrárias da UFSCar [email protected] *

Panorama Da Modernidade

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um panorama basico da modernidade

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ANTONIO CELSO GEMENTE

Doutor em filosofia e história daeducação pela Unicamp,

professor no Departamento deTecnologia Agroindustrial e

Socioeconomia Rural do Centrode Ciências Agrárias da UFSCar

[email protected]

UM PANORAMA DA MODERNIDADE: ORIGENS, FORMAÇÃO E PERSPECTIVAS* 0

A View of Modernity: origins, evolution and perspectives

Resumo Pós-modernidade é definida como a tentativa de superação da modernidade,em busca de novos caminhos, enquanto a modernidade propriamente dita é consi-derada a herança provinda de alguns acontecimentos históricos, acompanhados desuas implicações políticas e culturais. Rastreia-se esses acontecimentos fundadores deforma resumida, ao mesmo tempo em que se procura vinculá-los às manifestações ex-pressas da pós-modernidade, à maneira de um inventário, ao longo do qual se perfilaaquilo que de mais decisivo se julgou ter sido estabelecido mediante a influência damodernidade, como um processo de formação. Conclui-se que as características domundo pós-moderno devem ser, por sua vez, modificadas de modo a sair do impasseem que atualmente se encontra, notadamente no campo cultural das humanidades. Eque essa modificação tem maior probabilidade de sucesso caso os intelectuais que aíoperam voltem-se mais decididamente a incorporar em suas análises os conhecimen-tos revolucionários tornados disponíveis com as novas descobertas científicas, em es-pecial aquelas derivadas das ciências biológicas, que podem perfeitamente se transfor-mar na base das futuras investigações ou formulações culturais humanísticas.

Palavras-chave MODERNIDADE – PÓS-MODERNIDADE – CRÍTICA CULTURAL – CI-ÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS – IMPACTO SOCIAL DAS CIÊNCIAS BIOLÓGICAS.

Abstract Postmodernity is defined as an attempt to overcome modernity, to findnew ways, while modernity is considered the legacy of some historical occurrences,associated with their political and social implications. All these occurrences were bri-efly tracked and at the same time were linked to the expressed manifestations of post-modernity, as an inventory, along which they’ve been organized according to what isbelieved to have been established by the influence of modernity as a developmentprocess. In short, the characteristics of the postmodern world should be changed ina way to escape the present impasse, mainly in the cultural field of humanities; thischange is more capable of succeeding if the professionals who work in that area de-cide to incorporate in their analyses the revolutionary knowledge that became avai-lable through the scientific discoveries, mainly those derived from the biological sci-ences, which can be transformed in the basis for future investigations or cultural hu-manistic formulations.

Keywords MODERNITY – POSTMODERNITY – CULTURAL CRITICISM – SOCIAL ANDHUMAN SCIENCES – SOCIAL IMPACT OF THE BIOLOGICAL SCIENCES.

0 Este artigo faz parte do projeto “Implicações Filosóficas do Desenvolvimento da Biologia”, desenvolvido noDTAiSER do CCA/UFSCar.*

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INTRODUÇÃO

odernidade, neste texto, é definida como um con-ceito geral que abarca os acontecimentos culturaissignificativos ocorridos na mentalidade ocidental,em termos da superação dos conhecimentos anti-gos e medievais, a partir da revolução copernicana,em finais do século XVI, na Europa. Pós-moderni-dade define-se em relação a esse conceito comouma tentativa de sua superação, valendo-se do pre-

tenso desgaste de seus valores, que imprecisamente se torna crucial na Euro-pa da década de 1930 e se consolida, em escala mundial, nos anos 70, movi-mento capitaneado pela hegemonia norte-americana do pós-guerra. Essemovimento ganha importância, mais especificamente, com o advento da mo-dernização trazida pela informática, que contribui para a globalização, aomesmo tempo em que ocorre a derrocada da Guerra Fria, com o colapso daURSS em 1989.

Veja-se que o período abrangido é extenso, pois se está falando de umamudança profunda em termos de valores humanos. Nesse vasto painel quese descortina, alguns surtos menores ou mais restritos de ruptura têm de serdestacados em virtude de sua importância: em primeiro lugar, a revolução ci-entífica, no século XVII, que se segue à nova cosmologia inaugurada por Ni-colau Copérnico; e, em seguida, o iluminismo do século XVIII, com a Revo-lução Francesa; o romantismo do século XIX, especialmente nos países ouculturas ligadas à Alemanha; e a Revolução Industrial, nos séculos XVIII eXIX, levada a cabo notadamente pela Inglaterra. Por fim, no século XX, a Re-volução Russa de 1917, as duas vertentes científicas (Teoria da Relatividade,em 1905 e 1916, e Teoria Quântica, em 1900 e 1927), o Círculo de Viena (po-sitivismo lógico/epistemologia), a Escola da Frankfurt (Teoria Crítica), no fi-nal dos anos 20 e começo dos anos 30, o surrealismo (cujo nome emblemá-tico, acusado por todos, mas de sucesso, é o de Salvador Dalí) e outros mo-vimentos artísticos de vanguarda, mais ou menos na mesma época que os jácitados, de antes da 2.ª Guerra Mundial, e a pop art, personificada em AndyWarhol.

Nessa relação faltou propositadamente a Teoria da Seleção Natural, deCharles Darwin, publicada no livro A Origem das Espécies, em 1859, e suassucessivas confirmações pela genética mendeliana, no início do século XX, epela descoberta do código genético, em 1953. Tal descoberta dá origem à bi-ologia molecular, disciplina mais promissora relativamente às tecnologias fu-turas e que presentemente está obrigando a uma revolução nos valores tra-dicionais, quer em termos éticos quer nos potencialmente comportamentais,dadas as novidades formidáveis que vem trazendo ao nosso cotidiano.1

FILOSOFIA E CIÊNCIATêm-se expostas as raízes ou fontes da modernidade, sem que se pre-

tenda entrar no mérito da contribuição de cada um desses momentos assi-

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nalados, entre outros que nem sequer receberammenção, dada a magnitude do amplo painel esboça-do. No entanto, algumas considerações devem serexplicitadas para que se possa acompanhar o tipoparticular de análise que se tentará fazer, necessaria-mente uma análise interpretativa.

Quanto à revolução científica que demarca oinício da era moderna, muito já se tem afirmado;porém, vale lembrar em especial as ponderações fei-tas por Arendt,2 que dessa ótica pessoal parece ofe-recer um resumo bastante convincente. A análisedessa pensadora, em poucas palavras, repousa emque a hipótese de Copérnico permitiu que, pela pri-meira vez, o homem dispusesse de um ponto “ar-quimediano” com base no qual conseguiu contem-plar do exterior a sua própria existência. Isso ocor-reu na medida em que a linha de visada pôde ser fei-ta de uma posição que colocava o planeta Terra emperspectiva, com o auxílio do telescópio, instru-mento aperfeiçoado por Galileu. Desde então, o ho-mem começou de fato a se enxergar do ponto devista cosmológico moderno, dando início àquiloque se convenciona designar como consciência mo-derna, cujo traço mais característico viria a ser a frag-mentação e, conseqüentemente, o relativismo. Ela oobrigou a renunciar aos principais valores herdadosda tradição anterior da Antigüidade, e mesmo datradição veiculada pelo cristianismo, que a tinhasubstituído durante a Idade Média. A imagem usualé de que aí se começou a demolir a segurança hu-mana quanto ao seu papel de ator principal no uni-verso, a qual se seguiriam sucessivamente a decep-ção ao ser desbancado do centro da criação, com aTeoria da Seleção Natural, tornando-o mais um en-tre os animais, e, finalmente, o desmonte sugeridopor Freud ao solapar-lhe a segurança quanto ao seupróprio equilíbrio psíquico, expondo-o à escuridãoda inconsciência.

Tudo isso é bastante conhecido, bem como asimplicações paralelas derivadas da filosofia moder-na, cujo início remonta a Descartes e a seu cogito,que inaugura uma visão absoluta e ironicamentecentrada na razão humana, erigindo-a como a únicabase de apoio. O que lhe seria subtraído, posterior-mente, pelo avanço mesmo do método preconiza-do nas premissas cartesianas, levando ao solipsismoe ao descrédito a construção racionalista pura, gra-ças às suas bases que se revelariam demasiadamentefrágeis, porque, primeiro, o método científico é co-letivo, e não individual (o desconhecido é desmesu-radamente vasto para qualquer mente), e, segundo,a própria razão encontraria o seu juiz, com Kant, fi-lósofo do iluminismo que acreditava ter desmistifi-cado a metafísica. Enquanto isso acontecia no planodas idéias (ciência e filosofia), a vida material (eco-nomia e política) tinha seu prosseguimento. Em ter-mos políticos, a Idade das Luzes produz a Revolu-ção Francesa, ao mesmo tempo em que anuncia ofuturo glorioso da razão, destinada a gerir sem in-terferências o destino humano, com poucas vozescontrárias – a mais importante delas é a de Rous-seau, que proclama o primado dos sentimentos. Noâmbito da economia, a ciência encontra sua utilida-de na Revolução Industrial, que muda completa-mente a forma com que a produção é realizada, des-tinada a espraiar-se mundo a fora ao longo do séculoXIX e prosseguindo sua marcha até os dias atuais.

Ecoando as teses de Rousseau, o movimentoromântico tenta, sem sucesso (do ponto de vistaprático), criticar os novos valores, e o faz tão viru-lentamente que produz efeitos relevantes (do pontode vista teórico), haja vista que muitos de seus ata-ques à nova ordem encontram ampla receptividadeentre os espíritos cultivados da época. O problemaé que tal reação volta-se não somente contra os as-pectos concretos do progresso material (em queproduz poucos resultados), mas também, e sobre-tudo, contra os valores estabelecidos, levando deroldão algumas das certezas mais tradicionais, espe-cialmente as da tradição religiosa. “Deus está mor-to” não é apenas uma frase de efeito de Nietzsche;mais do que isso, significa a quase completa secula-rização dos valores espirituais, que no longo prazoirá se transformar na situação caótica e fragmentária

1 Tal destaque dado às descobertas no âmbito das ciências biológicas temsuas razões, porque se acredita que esse será doravante o meio mais deci-sivo pelo qual se poderá agregar novas perspectivas ao entendimento sobreo humano. Nele se vislumbram as maiores possibilidades de revoluçõesculturais derivadas dos novos conhecimentos e tecnologias tornadas dis-poníveis, independentemente daquilo que vem sendo afirmado até o pre-sente pela tradição cultural, incluída aqui a própria pós-modernidade –trata-se de uma abertura para o futuro, um preâmbulo apenas para que sevolte adiante ao tema com maior detalhamento.2 ARENDT, 1997.

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do mundo pós-moderno, a despeito da recuperaçãoatual de alguns ideais religiosos, ainda que em gran-de parte restrita à massa menos crítica da sociedade.

A secularização é acompanhada, portanto, deuma massificação de tal magnitude que atualmentese torna difícil analisar o que ocorre, em razão da cli-vagem cada vez maior entre os intelectuais ou pen-sadores e o restante da população. Simultaneamen-te, o crescimento populacional extravasa qualquersenso, trazendo problemas aparentemente insupe-ráveis à sociedade contemporânea, cujo aspectomais visível é a preocupação com o meio ambiente,o que dá origem ao radicalismo muitas vezes exces-sivo dos movimentos ecológicos. Estes, todavia,proliferam juntamente com a tecnologia, cada vezmais presente, exigida e ainda distante de resolversuas contradições com a necessidade crescente deuma maior consciência ecológica. Não obstante apertinência dessa questão, avançou-se agora muitono inventário da modernidade, tocando o futuro desua superação, além até da chamada pós-moderni-dade – é preciso retornar um pouco mais àquelascircunstâncias responsáveis pela presente situação,de maneira a tentar entendê-la melhor. Falta, pois,adentrar no século XX propriamente dito, e emboraeste tenha sido um período de muitas transforma-ções, acredita-se que elas foram simplesmente umdos resultados possíveis dos acontecimentos que vi-emos a acompanhar, incluindo os efeitos das duasgrandes teorias científicas forjadas no seu início (Te-oria da Relatividade e Teoria Quântica), com os des-dobramentos culturais que, por vezes, se fizeramsentir independentemente delas.

As novas teorias científicas referidas simples-mente terminaram o trabalho que vinha sendo rea-lizado, porém, numa direção insuspeita, já que sig-nificaram o desmoronamento completo da visão demundo há muito instituída, porque praticamentedestruíram com a própria racionalidade conformeera compreendida desde os gregos clássicos. Cum-pre entender o problema: enquanto experimental-mente se obtinham mais e mais evidências a propó-sito das hipóteses teóricas por elas levantadas, emcontrapartida, os resultados contrastavam de tal ma-neira com o senso comum que só podiam ser en-tendidos no plano abstrato das suas formulações

matemáticas, desvinculando-as da realidade a queestamos acostumados. No geral, a Teoria da Relati-vidade afeta muito pouco a vida cotidiana, e umpouco mais a vida acadêmica ou científica, pois in-terfere basicamente com fenômenos de dimensõescósmicas. Afinal, a cosmologia tem pouco alcancepara a maioria esmagadora das pessoas; porém, a in-fluência da Teoria Quântica é aterrorizante por em-baralhar aquelas questões muito mais próximasconcernentes à estrutura da matéria e às relações decausa e efeito com que estávamos acostumados – éuma teoria probabilística que apenas muito remota-mente atende a nossos ferrenhos apegos materiaisde concretude.

A resultante líquida é que os leigos a ignoram,sem entendê-la, ao passo que os cientistas a aceitamapenas por suas evidências empíricas, sem poderdar-lhes explicações verossímeis. Tanto que o pró-prio Einstein disse a seu respeito, céptico, que“Deus não joga dados”, e o gato de Schrödinger as-sombra aqueles, cientistas na maioria, que enten-dem ao menos teoricamente a formulação desseproblema. Com isso, somando-se o fracasso doprojeto do neoempirismo do Círculo de Viena(construção de uma linguagem científica livre dascontradições da linguagem usual, apoiada que esta-ria na base empírica, os chamados protocolos), le-vou-se a epistemologia, ramo da filosofia que bemou mal se mantinha promissor, a um impasse, nãoobstante os esforços do falseacionismo de Popper,que, por fim, parece ter sido ultrapassado pelas tesesrelativistas que o criticaram no plano da teoria da ci-ência. Assim, presentemente, a teoria do conheci-mento vive também de contribuições esparsas, sematingir uma abordagem majoritariamente consensu-al entre os epistemologistas, que, desse modo, sevêem reduzidos a elaborar questões de detalhes, àparte os poucos refinamentos lógicos que ainda per-sistem nessa área, aos quais, na maioria das vezes, aciência ou a tecnologia propriamente dita dão im-portância apenas marginal, ou nenhuma.3

POLÍTICA E FILOSOFIAAs maiores implicações desses acontecimen-

tos ocorreram mesmo nas áreas da política e da cul-tura, de um lado, e da tecnologia, de outro. Na po-

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lítica, há que mencionar o final da Guerra Fria, coma débâcle dos regimes que se diziam baseados nosfundamentos socialistas ou comunistas, grande uto-pia que animou as gerações desde Karl Marx até aqueda do Muro de Berlim, em 1989, passando pelaRevolução Russa de 1917, primeiro aceno de suapossibilidade histórica. Enquanto o Império Sovié-tico ou a China de Mao Tsé-Tung ofereciam uma al-ternativa revestida de plausibilidade aos demais paí-ses do mundo, havia esperança de um embate aoqual se aferravam as correntes ideológicas que se en-frentavam, mas o recuo e o desmoronamento da an-tiga URSS levou a termo essa longa disputa, daíemergindo o domínio absoluto dos EUA e de seusaliados4 (quase todos, hoje em dia, ungidos pela paxamericana, cuja única ameaça são os fundamentosdo american way of life, que ninguém sabe até quan-do se sustentará econômica ou moralmente). Al-guns episódios pontuaram essa caminhada: as duasGuerras Mundiais, a da Coréia, a do Vietnã e mes-mo as manifestações de maio de 1968 na Europa,especialmente na França; no entanto, nenhuma lo-grou alterar o fato de, com o fim da Guerra Fria e ovirtual domínio americano, poder se ter atingido umponto no qual as grandes disputas ideológicas nãomais se reproduzam.5

O núcleo “duro” da questão encontra-semesmo na área cultural, em que irá se cristalizar oconceito de pós-modernismo, após sofrer todas asinjunções até aqui descritas, além do impacto tecno-lógico, que será tratado adiante, já que a tecnologiaé, por assim dizer, o corolário de tudo quanto se es-tabeleceu por conta desse desenvolvimento. Emtermos filosóficos, a influência é da linha direta dafenomenologia de Husserl e da obra de Heidegger,que, por sua vez, influi sobremaneira no existencia-lismo sartreano. Já se falou da epistemologia e, porextensão, da filosofia da linguagem (aqui se contamos “dois” Wittgenstein), que desemboca na filosofiaanalítica contemporânea; esta última ocupa um ni-cho bem determinado no panteão filosófico e, emgeral, interessando a uma categoria reduzida de es-pecialistas. Portanto, o que conta nesse século comofilosofia é, primeiro, a fenomenologia que, depoisde usufruir uma fase de ascensão e apogeu, pareceno momento ter arrefecido bastante em número deadeptos. Isso porque, notadamente, se revelou im-praticável o seu objetivo básico, pelo menos doponto de vista de seu criador original: a possibilida-de de fazer com os argumentos e sensações mentaispuros o mesmo tipo de análise empreendido no âm-bito da ciência, mas utilizando uma metodologia es-pecificamente filosófica. Tal objetivo sem dúvidafracassou, a despeito de muitos ainda serem entusi-astas da metodologia husserliana, porém com umaambição bem mais modesta, um tipo apenas deabordagem, entre outros.

Em contrapartida, a influência de Heideggerpermanece inalterada, e, ao contrário da anterior-mente descrita, ganha cada vez mais respeito no âm-bito da filosofia. No entanto, acontece que a pro-blemática atacada por sua filosofia bate de frentecom os valores modernos, já que a proposição cen-tral heideggeriana se envolve a fundo com a questãodo Ser, algo que remete a uma busca de princípiosde modo a aproximá-la dos padrões originais gre-gos. Além disso, toda a ênfase dessa filosofia dirige-se a uma crítica acerba do modo moderno de vida,moldada em torno da inevitabilidade da descaracte-rização completa do homem enquanto ele estiverpreso pelas amarras de suas necessidades atuais. Ali-ás, esse virá a ser o aspecto compartilhado por quase

3 WHITEHEAD (1985) sintetizou bem a frustração que tomaria contados pensadores quando viessem a constatar que a ciência nada mais é doque um conjunto de relações que vinculam conceitualmente tantos obje-tos com muitos outros, sem nada dizer ontologicamente do mundo. Doponto de vista existencial, é como estar constantemente sobressaltadopelas imagens fugazes de sonhos perturbadores que pouca relação têmcom a realidade interna dos indivíduos, além de não oferecer algo palpávelcom que se orientar no cotidiano, afora os benefícios materiais, que emsuma não são sucedâneos tranqüilizantes para a angústia, pois não respon-dem às perguntas básicas. Tal sentimento tornou-se o prato comum que amaioria dos pensadores modernos e contemporâneos acostumou-se adeglutir, freqüentemente indispondo-se com perturbações digestivas, paraas quais a única solução é a procura de ervas medicinais que mitiguem odesconforto estomacal e usualmente têm servido para a sua escamoteação.Essa é a posição de Bertrand Russell, de Karl Popper e de tantos outrosque seguiram pela mesma senda, estabelecendo em síntese alguma formade idealismo, de convencionalismo ou de relativismo. Trata-se fundamen-talmente do desmonte da razão, da renúncia ao absoluto, a ausência platô-nica da medida, sensação que irá trespassar todo o século XX, a destruirvalores, ideais e utopias, e estar na base das aflições pós-modernas.4 A China, desde a assunção de Deng Xiaoping, após Mao, recolheu-se aomutismo e a sua definitiva incorporação ao sistema prevalecente é apenasuma questão de tempo, a despeito das possíveis decorrências sociais funes-tas desse fato.5 A tese mais amplamente conhecida a esse respeito está emFUKUYAMA, 1992.

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todo conjunto das formas culturais modernas – ainvestida crítica contra as características mais rele-vantes ou mesmo prosaicas da contemporaneidade–, jogando numa vala comum todas essas manifes-tações, uma vez que há um descompasso abismalentre as reivindicações culturais e o modo concretode vida da massa das pessoas, criando uma tensãoinsustentável.

A Escola de Frankfurt talvez sintetize de ma-neira eloqüente o conluio entre a filosofia e suas ra-cionalizadas tentativas de eliminar o ressentimentocausado pela falência das promessas iluministas deconstruir um mundo elevado de idealizações. O ful-cro da crítica dos pensadores integrantes dessa in-fluente escola dirige-se não mais aos fundamentosda infra-estrutura (material) da tradição marxista,base das relações econômicas que, pelas suas contra-dições, aplainaria o caminho para o admirável mun-do novo do regime político a vigorar na terra pro-metida do comunismo sem classes e sem injustiçassociais. Dirige-se, isso sim, às superestruturas insti-tucionais dela derivadas, diretamente às determina-ções culturais emanadas do modo capitalista de pro-dução, caso sua evolução avassaladora – e destinadaa destruir todas as demais formas humanas de con-vívio – não seja detida por outros valores mais altos.

É sintomático que o ataque aos males da mo-dernidade já não dependa apenas do determinismohistórico, que, de um modo ou de outro, alcançariasua realização, uma vez que o solapamento dos va-lores atingiria aparentemente um ponto próximo dairreversibilidade. Nesse caso, seria importante que acrítica a essa górgona se fizesse de forma contun-dente, antes que o seu olhar petrificador pusessetudo definitivamente a perder, inclusive a promessasocialista. Sem dúvida, a proporção de acertos comque os pensadores dessa escola de pensamento ana-lisaram os aspectos mais sombrios e ameaçadoresdo modernismo é impressionante, dado que a lâmi-na de suas críticas foi aparentemente dotada de cor-te com um alto grau de premonição, em especialquanto ao veredicto da massificação cultural e suasseqüelas, que encontram ecos perfeitos nas caracte-rísticas atuais manifestas dos eventos culturais, aolado das visões apocalípticas que pressagiavam oonipresente pântano cultural contemporâneo. Infe-

lizmente, parece que nada impediu a concretizaçãodo vaticínio dessas cassandras, que em vão nos aler-tavam contra as funestas conseqüências do grandemovimento da modernidade em direção ao esgarça-mento.6

Essa é uma das diferenças fundamentais entreo pós-modernismo e o modernismo. Este está eiva-do de otimismo, haja vista a esperança de Locke edos iluministas, chegando especialmente até Kant eHegel, que, não obstante terem sido consideradosconservadores, possuíam uma visão muito condes-cendente com o seu tempo. E também Descartes,Leibniz e Spinoza, grandes racionalistas modernos,excetuando, é claro, o cepticismo de Montaigne e deHume, mas que também se ajusta a seu tempo, poisdificilmente consegue ultrapassar, por exemplo, ode Condorcet. Já as produções inspiradoras do pós-modernismo colocam-se invariavelmente contra oseu próprio tempo. Assim se dá com os românticosradicais (tendo Nietzsche à frente), com Heidegger(Husserl à parte) e com seu herdeiro Jean-Paul Sar-tre, mentor da filosofia mais encampada do século,o existencialismo.

O existencialismo parte de uma situação de-sesperadora, a do “eu” completamente despojado eperplexo diante da existência, o “nada”, como diriaSartre, para sofregamente agarrar-se a uma promes-sa de liberdade, engajando-se por fim na política,conforme as últimas posições do filósofo. Porém,fica claro para todos quantos o lêem que o apelo aosideais políticos é meramente um sucedâneo provi-sório ao desespero, desde que os ideais foram sepul-tados após maio de 1968, juntamente com o movi-mento hippie. Os esforços de Sartre de se integrar àesquerda francesa exigiram-lhe malabarismos queele exaustivamente, e em vão, tentou explicar. Issoporque, antes das agitações de 68, a esquerda dividi-ra-se já no ataque das forças do Pacto de Varsóvia àHungria, em 1956, e com a invasão da Tchecoslová-quia no mesmo ano de 1968, que sufocou a Prima-vera de Praga, de Dubcek. Sartre morreu em 1980;porém, o entusiasmo com a sua filosofia declinouacentuadamente desde o final dos anos 60, tornan-

6 Para se inteirar do espírito da Escola de Frankfurt, ler tambémADORNO & HORKHEIMER, 1985.

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do-se hoje uma espécie de relíquia nos museus filo-sóficos. Resta talvez, em termos de filosofia, umarevigoração do pragmatismo americano de James eDewey, tarefa que vem sendo realizada, com o viésda “grande conversação”, por Richard Rorty nostempos atuais.

A par disso, pode se considerar as produçõesaglutinadas em torno dos mestres franceses MichelFoucault, Jacques Derrida e Jacques Lacan, formu-ladores principais da ideologia pós-modernista navisão sobre a história, na interpretação da literaturae na nova maneira de encarar os problemas psicana-líticos, respectivamente. Não nos aprofundaremosnesses ícones intelectuais, bastando lembrar que elestiveram sua cota suficiente de reconhecimento, oqual principiou por se desmantelar há algum tempo.A propósito, não é demais recordar a denúncia, ain-da que eivada de preconceitos, levada a cabo porSokal & Bricmont,7 cuja tentativa de desmistificaralguns dos principais expoentes da escola pós-mo-dernista representou forte golpe na reputação demuitos deles. Ela demonstrava que os conhecimen-tos ditos científicos, por eles manejados, eram mui-tas vezes baseados em imperfeitos e, às vezes, equi-vocados conceitos, utilizados assim sem critérios,insinuando um comprometimento de todo o con-junto da obra, o que caracteriza, é óbvio, uma fla-grante injustiça. Não obstante, o resumo da ópera éque paira uma forte suspeição sobre a produção fi-losófica pós-modernista, dada a sua dissonância emespecial com as conquistas científicas, independen-temente de sua justeza ou não, e é mais ou menosesse o ambiente de mal-estar no qual parece vicejaro pós-modernismo, em quase todos os aspectos re-levantes.

ARTES E HUMANIDADESNão há dúvida, no entanto, que o conceito de

pós-modernismo encarnou-se definitivamente, sobas influências mencionadas, nas manifestações artís-ticas recentes, herdeiras do surrealismo e do van-guardismo. Nessa seara, ficam mais visíveis as tesespós-modernistas, como que cristalizadas pelo efeitodas influências sofridas. Mas ironicamente a sua

bandeira nada mais é do que a de descartar-se de to-das as influências para fundar uma nova relação nocampo cultural, livrando-se do peso da tradição eatendendo às críticas da modernidade. De fato, to-dos os movimentos culturais insurgem-se contraalgo ao propor mudanças radicais, e o mesmo ocor-re com o movimento pós-moderno – no entanto,torna-se difícil saber contra o que exatamente ele sesubleva, tendo sido a crítica já realizada sob outrasbandeiras. Há um certo cansaço nessa nova tentati-va, visto que aparentemente todas as rupturas pos-síveis parecem já terem sido realizadas. Não há sa-tisfação com que se comprazer no ambiente predo-minante, nem para onde voltar suas armas, pois to-dos os alvos foram atingidos, sem muitos resultadosa comemorar. Além disso, o cânone estabelecidocoloca-se num nível muito difícil de ser superado, eexatamente por essa constatação tenta-se desespe-radamente enveredar por novos caminhos à procurade uma saída libertadora.

Comparem-se os casos mais gritantes. Co-mecemos com a música. A grande novidade nessaárea, podendo ser cotejada com a música clássica, éa música dodecafônica ou atonal, de Schönberg, dofinal do século passado. Porém, a sua apreciação re-serva-se a um grupo seleto de adeptos, na verdademuito mais entusiasmados com a ousadia técnica ea genialidade ou complexidade dessa nova vertentedo que propriamente extasiados no sentido prosai-co do termo. O gosto popular afasta-se dessa versãomuito mais do que das clássicas, quando não estáexclusivamente interessado nas formas mais gros-seiras, em termos de sofisticação musical, como orock’n roll e as demais manifestações abundantes damúsica pop. Esta última, dependendo da época e dasinjunções de mercado, incursiona por sons regio-nais buscados no mundo todo, incluindo as cançõesfolclóricas africanas, asiáticas ou mesmo européias,as de raízes sul-americanas e caribenhas – bossa no-va, merengue, salsa, tango, mambo, reggae – e tantasoutras das quais não cabe notícia, sem falar dos aflo-ramentos nitidamente nacionais – samba, sertanejoe pagode. Em escala mundial, a música popular demaior impacto no século XX tenha sido talvez a mú-sica negra norte-americana – o jazz –, que exerceu eexerce enorme influência. 7 Cf. SOKAL & BRICMONT, 1999.

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De qualquer modo, é de se registrar que a di-versidade e a proliferação de tantas manifestaçõespopulares configuram um caso exemplar de pujançacultural, não encontrando paralelo nas outras áreas,conforme se verá mais à frente. Entretanto, isso nãopode servir de consolo ao apreciador das obras deBach, Vivaldi, Mozart, Beethoven e todos os demaisclássicos; ele sempre irá lamentar o fim desse ciclode ouro, que parece não mais se repetir.8 Em poucaspalavras, há uma nítida nostalgia musical ao se com-parar a situação atual, da pós-modernidade, com aanterior, da modernidade, enquanto os novos cami-nhos “sérios” não se solidificam (a música atonal ouos experimentos da música concreta, ambos rejeita-dos pelo gosto popular) e um espaço cada vez maioré cedido sem apelações à música pop, muito mais li-mitada tecnicamente.

No campo das artes plásticas – pintura, gra-vura, escultura – a situação é ainda mais caótica, namedida em que as possibilidades tornam-se maisrestritivas. O caso da pintura é emblemático. De-pois das revoluções do Renascimento, com Miche-langelo, da Vinci e Rafael, inovadores em termos deperspectiva e do uso das cores, obtendo uma liber-dade muito maior para a criação (não nos esqueça-mos, antes, de Fra Angelico e Brueghel, e, depois, deRembrandt e Velázquez, entre tantos outros gran-des pintores), houve, no final do século XIX, umgrande surto com o impressionismo francês (Mo-net, Renoir), que alterou para sempre os rumos dapintura (cite-se também Van Gogh). Seguiu-se en-tão o expressionismo, cujos grandes vultos foram ofrancês Chagall, os americanos Pollack e Kline e oinglês Francis Bacon, falecido recentemente.9 Mas,sem dúvida, o maior nome da pintura contemporâ-nea é Picasso, ícone do artista eternamente gravadona mente pós-moderna, com “Guernica” e “De-moiselles d’Avignon”, que passou do cubismo aquase todas as correntes modernas da pintura, sem-pre com preeminência, tanto pela qualidade de suaobra quanto pelo seu estilo de vida. Picasso é verda-deiramente reputado digno de emulação e de invejasadia pela possibilidade plena de realização artística e

pessoal, afora o fato de ter sido definitivamente acla-mado em vida, o que é o máximo de satisfação a queaspira o espírito pós-moderno – um caso de sucessoinequívoco, sob quaisquer considerações ou critéri-os.

Não obstante a pintura apresentar-se comtantos trunfos no desfile cultural contemporâneo, oque se seguiu após esses grandes nomes foi decep-cionante. A pintura abstrata e a ânsia por subvertertodos os padrões atingiram o paroxismo, a ponto deatualmente mal se reconhecer qualquer artista plás-tico que encontre ressonância entre a grande massapotencialmente apreciadora da sua criatividade. Osabusos cometidos em nome de todos os movimen-tos que ergueram a bandeira da pós-modernidade(cujas raízes remontam ao surrealismo e ao van-guardismo) foram tais que confinaram suas expres-sões a salões e exposições freqüentados pelo públicocom maldisfarçada incompreensão e impaciência.Ao mesmo tempo, os marchands e demais agentescomerciais vivem num mundo absolutamente do-minado por sutilezas de experts, tornando esse umambiente de leilão que guarda incestuosa semelhan-ça com o jogo mercadológico praticado nas bolsasde valores.

Reproduz-se aqui, mais uma vez, o que pare-ce ser a marca registrada da pós-modernidade – a se-paração entre, de um lado, uma reduzida categoriade especialistas que se fecham sobre si mesmos, dei-xando a massa ou o público à margem, e de outro la-do, esse mesmo público (que, aliás, pouco se impor-ta com os especialistas às voltas com a sua esterili-dade frente aos cânones tradicionais, ou com suasloucuras, que a poucos afetam). O público diverte-se como lhe apraz, independentemente de seus crí-ticos, e apenas vez ou outra abre-se francamente àsmanifestações artísticas de vanguarda, a não ser nasexceções consagradas da pop art, como a serigrafiainfinitamente reproduzível de Andy Warhol – suasMarylins e latinhas de sopa Campbell ou Coca-Co-la, afinal toleradas pelo gosto popular. Novamentetem-se o quadro dos especialistas, desesperados eapartados num mundo de confinamento, e a massapopular, entregue a seus próprios devaneios e sorte,manipulados sistematicamente por interesses co-merciais. Essa situação é inequivocadamente causa-

8 Para uma vasta tomada geral sobre o assunto, especialmente em relaçãoaos clássicos, cf. MASSIN & MASSIN, 1998.9 Uma obra de referência, nesse caso, é o clássico GOMBRICH, 1993.

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dora de um grande mal-estar, de um e de outro lado,com todas as conseqüências indesejáveis.

Na área da literatura, poesia e teatro, a situa-ção basicamente não se altera, com a agravante deque aqui o açambarcamento por outras formas ar-tísticas, mais dominadas pela possibilidade de con-trole econômico, especialmente o cinema e a televi-são, faz com que o quadro se afigure como extre-mo. Quanto à poesia, ela é encarada como uma cu-riosidade de antanho, sobrevivendo de um ou deoutro verso consagrado, quase como um hai-kai ja-ponês, para consumo de saraus literários e outrosanacronismos, salvo quando pinçada para uma epí-grafe jornalística, sempre de cunho eminentementeepisódico. O máximo a que se aspira em termos deelaboração é o acróstico, mas as rimas e o formatode sonetos, por exemplo, ou as redondilhas e outrasregras e perfumarias, tão aclamadas no passado,tudo isso deu lugar ao verso livre, que mal mantémo ritmo, ou a musicalidade, importando muito maisa sua visibilidade estrutural, a poesia concreta con-forme é desenhada na página ou no tablóide, oupendurada na parede. Uma esquisitice, cultivadaapenas por aficcionados pedantes, quase varrida doconvívio social, um ranço que ainda é de bom-tomtolerar, entre os cultivados de sempre – eis a imagemque dela se tem.

O teatro, sim, conserva um pouco de sua an-tiga solenidade, todavia cada vez mais elitizado,mantido à custa de subvenções governamentais oureservado aos espetáculos nas grandes casas das ca-pitais do mundo. São grandiosas produções (musi-cais, na maioria das vezes, bem ao gosto norte-ame-ricano, ou com grandes cenários e uma legião de co-adjuvantes, em escala industrial, para o gáudio de tu-ristas deslumbrados), nada comparável às grandestragédias gregas ou ao gênio de Shakespeare, semprerepresentadas, mas que não oferecem o novo – aquiainda a última palavra é a do engajamento políticode Brecht, do teatro do absurdo de Ionesco e donon sense de Beckett. Diga-se: o frescor das peças deIbsen, de Tchecov ou mesmo dos dramaturgosamericanos que tanto sucesso fizeram no século XX(Tennessee Williams, Eugene O’Neil, Arthur Milleretc.) já não exibem a mesma exuberância, dando aimpressão de estarem um tanto quanto datadas, ain-

da que possam conservar traços apreciáveis. O pro-blema é que não há continuidade, dado que o públi-co parece não se identificar ou se interessar, restrin-gindo-se a encenações ocasionais destinadas a umaplatéia reduzida. Assim, tudo se perde em fragmen-tos de fato irrelevantes no panorama cultural abran-gente da modernidade (e da pós-modernidade,cujas arremetidas nessa área não são significativas).

Do mesmo modo que ocorre no teatro, aprópria literatura, antes constituída por um caleidos-cópio do que de essencial ocorria em sua época, es-pécie de repositório que dava organicidade e visibi-lidade às imprecisas impressões que campeavam nasociedade, parece hoje ter perdido esse papel eluci-dador. E se transformado em depoimentos esparsosde vivências extraordinárias, em esoterismo baratoque cativa a mente dos muitos interessados no sim-plesmente exótico, excêntrico ou “diferenciado”, ouem tramas romanescas, cheias de suspenses e intri-gas, constituindo os best sellers transpostos para o ci-nema, com efeitos especiais variados e formidáveis.O destino da literatura promete seguir o dos folhe-tins ou o dos romances de cavalaria de antigamente,fadados a sair de moda diante do frenesi da era mo-derna. Aqui só há espaço para o visual (no sentidode virtual), de extrema rapidez, e sem nenhum com-promisso de síntese ou de novas perspectivas, sim-plesmente porque tais ideais se tornaram obsoletose, portanto, inúteis a essa pós-modernidade frag-mentária.10

Nada parecido com o painel monumental damodernidade, visto, por exemplo, na tentativa de Ja-mes Joyce (um dos principais responsáveis e influ-enciadores da desconstrução da literatura, utilizan-do todos os gêneros, tentando fazer a síntese supre-ma, abarcando nela todo o mundo e as tradições co-nhecidas, à maneira genial da paródia) e, depois, dosgrandes painéis burgueses de Balzac, do virtuosismode Flaubert, das reminiscências obsessivas de Proust(ao expor o fútil modo de vida da elite francesa defin de siècle), do psicologismo penetrante de Dos-toievski (que auscultou as profundezas da alma hu-mana), do épico de Tolstoi, da tumultuada e esteti-

10 São interessantes e pertinentes, a esse propósito, as colocações deGLEICK, 2000.

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camente elevada visão de Thomas Mann, da finurade Valéry, da atormentada e turbulenta aridez e le-veza de Céline e da desesperança de Kafka. Enfim,o inventário é infindável.11

Tem-se, nesse caso, um problema típico dagrande dificuldade em atingir o padrão constituído,o cânone, além do fato já referido de a literatura co-locar-se atualmente como um gênero esgotado, seassim se permite falar – na verdade, um gênero ul-trapassado de manifestação cultural, ao que tudo in-dica. Naturalmente, sempre existirão aficcionados;porém, a exemplo dos outros casos anteriores men-cionados, eles são cada vez mais uma minoria, en-quanto a grande preferência se dirige a outros gêne-ros mais palatáveis. Aliás, aqui se dá ensejo à impor-tante colocação de que esse fenômeno de decrésci-mo no nível de exigência requerido parece fazerparte do ambiente pós-moderno, o que requer umaqualificação no sentido de poder ser apenas umaconseqüência natural da evolução da cultura: na me-dida em que mais e mais pessoas são incorporadasaos ditames usuais da sociedade de mercado, tão-so-mente uma fração diminuta delas mostra-se com ogosto apurado dos clássicos.

Esse fato encontra explicação na própria dis-tribuição de freqüência que haverá sempre de se ma-nifestar quando se trata de distribuição de caracte-rísticas, sem dúvida, puro elitismo, mas que pareceintegrar uma longa tendência histórica que apenasse desejou ou se acalentou não existir. Em outras pa-lavras, quando se trata de apuro, ele é algo necessa-riamente elitista, ao contrário da crença sempre cul-tuada dos iluministas e dos otimistas contumazes,ainda que sem nenhuma contrapartida real. Comose pode exigir qualidade quando a preferência incli-na-se (ou é inclinada, por várias razões, que de fatopouco importam) em outra direção? A sofisticadapresunção dos grandes escritores não encontra econa massa dos novos leitores, até por uma questãológica, pois mesmo que por hipótese fosse possível

elevar o padrão, rapidamente voltar-se-ia a reprodu-zir o nível contemporaneamente inatingível do câ-none, obstáculo difícil de ultrapassar, a menos quese enveredasse por novos caminhos (e isso estariadistante do que entendemos hoje em dia por litera-tura) ou então que se alterasse (geneticamente?) anatureza humana (ainda assim as alternativas imagi-náveis seriam as mesmas).

Desse modo, não há que se estranhar quandoa diversificação parte para soluções não cabíveis nospadrões “internos” (do ponto de vista tecnicamenteliterário, vale dizer, dos próprios pares), a exemplodo esoterismo já citado, das biografias de persona-lidades populares (artistas e outras celebridades),dos eternos romances açucarados para senhoras deontem, hoje e amanhã, dos casos escabrosos que,uma vez ou outra, sensibilizam a população, e assimpor diante, mas já distantes da grande literatura. Osescritos permanecerão ainda na forma de best sellersou roteiros a serem utilizados nos filmes e soap ope-ras (novelas) da televisão, o que é quase a mesmacoisa; porém, é esse o grande filão que resta aos es-critores remanescentes, desejosos de projeção, aci-ma da categoria dos aficcionados, e, nesse caso, aspossibilidades ainda são bastante viáveis, tendendoao crescimento. Cinema e televisão cada vez maisíntimos, e tome-se, de um lado, scripts de aventurase entrechos extravagantes beirando o infantilismo,resultando numa filmografia que privilegia quaseexclusivamente os efeitos especiais e as grandes ca-tástrofes, tratadas ao modo do videoclipe, repleto decortes (até o limite da percepção do olho humano)e de imagens delirantes, o mais das vezes desconec-tadas, e, de outro, programas de auditórios que nãose cansam de explorar a baixeza humana, talk showsem que são passadas a limpo as últimas intrigas e fo-focas, rígidos e cansativos documentários (nas TVseducativas), concursos fabulosos e outros fenôme-nos menos dignos.

Sucesso mesmo, no caso da mídia, são osacontecimentos esportivos (campeonatos mundiaisa cada semana), os musicais (na forma de músicapopular, é claro) e os programas de entretenimento(de auditório do tipo “a-vida-como-ela-é” e talk sho-ws), sem esquecer os noticiários que tratam dos ca-sos pitorescos, da grande política de fachada, da so-

11 Para uma enumeração das obras literárias significativas, cf. BLOOM,1995. Embora de forma personalista, esse livro fornece uma visão suficien-temente ilustrada, além de seus já célebres comentários pouco convencio-nais, dirigidos especialmente contra algumas tendências pós-modernistas,entre elas o politicamente correto multiculturalismo. Academicamente,para um enquadramento mais teórico da literatura, ver o clássico brasileiroCANDIDO, 2000.

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lidariedade, dos bons exemplos, do serial killer, doamor, das festividades, dos acontecimentos, dasguerras locais, da tecnologia, das descobertas cientí-ficas, das curas milagrosas, dos acontecimentos, docirco, do bode expiatório, do colunismo social, dosgrandes sentimentos, da ternura, das catástrofes, dascampanhas de ajuda, da conquista do espaço, dasameaças ao meio ambiente, das denúncias, da pro-paganda, da economia, do comércio, da indústria,dos acontecimentos etc. É preciso ainda acrescentarque se está diante de uma pasteurização cultural quereduziu ao mínimo a possibilidade de um desfruteaproveitável, por quaisquer critérios pertinentes quese determine?12

PERSPECTIVAS

Resta uma projeção para o futuro, necessari-amente especulativa. O que se irá elaborar nessesentido, da perspectiva pessoal, tem a ver com asconsiderações anteriormente feitas. Viu-se como asraízes sustentadoras ou embasadoras da situaçãoatual são complexas e contraditórias, mas acredita-se que tenham um fio condutor, sobretudo em vir-tude do sucesso desse modo de desenvolvimentoque levou às características condicionadoras da pós-modernidade, a saber, a tecnologia e o crescimentopopulacional. Em termos de tecnologia, não hácomo negar que as facilidades proporcionadas porela contribuíram sobremaneira para inclusive alcan-çar a tremenda expansão populacional hoje obser-vada, o que dá uma medida cabal da eficiência doscaminhos trilhados, ao menos do ponto de vista daespécie, ainda que o nível atingido traga ameaçastangíveis (a questão ambiental avulta nesse caso, en-tre outras).

Em todo caso, períodos demasiadamente am-plificados pouca influência exercem sobre a menta-lidade e as condições imediatas, por mais que osarautos do catastrofismo se insurjam e vociferem,como de fato o fazem sistematicamente, emboracom uma utilidade limitada. O número excessivo dehabitantes neste planeta pode vir a ser um problemasério, porque o desmonte da bomba populacional

pode demorar gerações, algo arriscado quando asmedidas necessárias se tornam urgentes, a ponto dehaver enormes dificuldades ou mesmo impossibili-dade de reverter a situação na iminência de implica-ções catastróficas. Essa é uma questão sem dúvidaimportante, mas de difícil equacionamento, sujeitaàs opiniões mais variadas, inclusive as técnicas, razãopela qual não se vai além de sua colocação, e, para to-dos os efeitos, considera-se que o cenário mais pes-simista não irá ocorrer. Em outras palavras, de ummodo ou de outro, a situação será resolvida, ao me-nos dentro do médio prazo ou no prazo que o ho-rizonte dessa análise contempla.

Contando que o ritmo ao qual estão vincula-das as possíveis mudanças continue a ser o mesmoque tem sido até o momento, o quadro que se apre-senta é de um divórcio cada vez mais acentuado en-tre as pretensões intelectuais, de um lado, e as pre-ferências da imensa maioria da massa despersonali-zada, de outro, tendo-se ao meio desse alargamentoum espaço ponderável sendo ocupado pelo modode vida ditado pela produção tecnológica com todasas suas implicações. O que pode ser verdadeiramen-te novo nesse processo é a atual possibilidade de en-cará-lo como natural, no sentido de que se trata dealgo relativamente autônomo. Ou seja, do ponto devista retrospectivo, já é possível aceitá-lo como algointrínseco à cultura, ao invés de visualizá-lo comoum progresso linear em direção a qualquer objetivodefinido da maneira como tem sido percebido portodas as utopias históricas, especialmente a iluminis-ta e, antes ainda, a racionalista dos gregos antigos.

Em outras palavras, há atualmente condiçõesde aceitá-lo como algo inerente à natureza humana,por parte dos intelectuais, que renunciariam assim àpossibilidade de alterar esse estado de coisas medi-ante idealizações tornadas obsoletas. Tal postura,apesar de ancorada numa lógica férrea, é de muitodifícil aceitação a todos, menos ainda aos própriosintelectuais, para não dizer impossível. De forma al-ternativa, pode-se pensar que o reclamo dos intelec-tuais encontrará apoio suficiente da sociedade, aponto de convencê-la da necessidade das mudanças,partindo-se, nesse caso, para uma reformulação to-tal, mas cujo consenso afigura-se como extrema-mente improvável. Ainda outra possibilidade seria

12 Um comentário corrosivo a respeito desse tema encontra-se em BAU-DRILLARD, 1985.

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que a própria sociedade, por si mesma, escolhesse oque aqui denominamos um tanto imprecisamentecomo o caminho dos intelectuais (por hipótese con-siderado o mais adequado), mas uma escolha deli-berada, com base em seus próprios anseios, e nãopor influência “externa”, o que novamente parecemuito difícil ou improvável. Plausível seria esperarque as coisas permanecessem como estão, e, nessecaso, que os intelectuais continuassem constituindoutopias e criticando as formas sociais existentes(contudo, essa parece uma solução que, nos dias dehoje, se apresenta como extenuada, sem força e cri-atividade suficientes para realizar a tarefa). Tambémseria de se esperar que os motivos para as críticascontinuassem proliferando e a massa das pessoaspersistisse na alienação, atendendo às suas necessi-dades vitais (mas sem lograr uma solução aceitável,já que quase todos estariam prontos a admitir que asituação atual necessita ser alterada).

A saída que se vislumbra é a possibilidade dea ciência – a mais alta produção cultural que se lo-grou atingir – vir a ser chamada a realizar ao menosparte da tarefa, por ser ela a principal responsávelpor grande parte do problema, ao menos pelo su-cesso da espécie (questão populacional) e pelomodo de vida presente (questão tecnológica). Umadas maneiras dessa realização é mediante as con-quistas científicas, especialmente aquelas oriundasda biologia, que dizem respeito mais proximamenteàs questões aqui citadas. A investida das pesquisasbiológicas no campo da genética moderna e da bio-logia molecular, balizada pelas teses evolucionistas,tem propiciado perspectivas encorajadoras com opropósito de melhor esclarecer aspectos do com-portamento humano. Ela parte das descobertas so-bre o funcionamento do cérebro, com suas substân-cias específicas agindo sobre os impulsos básicos(neurotransmissores cerebrais, por exemplo), deforma nunca antes imaginada, e acena com a possi-bilidade de avaliar posturas comportamentais à luzdas novas teorias psicológicas fundadas na confir-mação da Teoria da Evolução, entre outras determi-nações já estabelecidas pela moderna biologia.Abre-se, assim, o caminho para que novos paradig-mas sejam construídos, podendo levar a mudanças

revolucionárias sobre como temos visto a nós pró-prios até o momento.13

Utilizando como suporte tais verificaçõesproporcionadas pela ciência, é possível realizar a ta-refa de modificar conceitualmente muitos dos fal-sos mitos que dominam e dominaram o pensamen-to por muito tempo, criando-se a oportunidade detransformá-los em algo mais condizente com a re-alidade, e, conseqüentemente, fundando novas ba-ses para futuras investigações. Em resumo, trata-sede dar um choque de realismo nas crenças há muitoacalentadas pelos pensadores, que deverão forçosa-mente se dobrar às evidências e se municiar dessesoutros aparatos técnicos agora disponíveis para for-jar suas novas elaborações. Em poucas palavras, tra-ta-se de uma atualização, ainda que tardia, das hu-manidades, que deverão se colocar em sintonia comos avanços científicos. Com essa nova possibilidade,abre-se uma vereda interessante pela qual seremosobrigados a revisar nossos conhecimentos de acor-do com o avanço científico, tendo então a oportu-nidade concreta de sair em busca de novas estrutu-ras e qualificar de outra ótica tudo aquilo já realiza-do. E, especialmente, deixar para trás uma herançaque, embora nos tenha trazido contribuições valio-sas, deve ser agora abandonada, para que não fique-mos paralisados diante dos aparentes paradoxos en-frentados presentemente, quase sem perspectivasfuturas do ponto de vista intelectual.

Eis a oportunidade de nos livrarmos dos gri-lhões aos quais temos estado inconscientemente pre-sos, e que nos levam à situação atual de paralisação (daperspectiva racional) ou de perplexidade (da perspec-tiva civilizatória), com todas as suas conseqüências fu-nestas, a saber, as decorrentes da extrema pulverizaçãoda vida moderna e pós-moderna, sem nenhum proje-to no qual ancorar as aspirações, dividindo-se daí aoinfinito em fragmentos desconexos. Poderíamos, en-tão, contar com a probabilidade de reconciliar as fac-ções apartadas, mas sobretudo reconstruir em termospotenciais uma agenda com visibilidade e factibilidadesuficientes para permitir que continuemos vivendo aomenos com uma possível reprogramação da pauta –idealista, sonhadora ou ilusionista que seja –, só que

13 Cf., a esse respeito, DENNETT, 1998; PINKER, 1998; e WILSON,1999.

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agora dotados de um instrumental capaz de nos tor-nar mais uma vez entusiasmados e, sobretudo, muni-dos de nova perspectiva, com condições de nos man-ter ocupados de maneira útil, impedindo o império dabarbárie ou da banalidade.

Uma palavra final sobre esse panorama. A si-tuação de paroxismo a que somos ou fomos (demodo justo, crê-se) levados a enfrentar fez com queautomaticamente quase sempre déssemos razão àscríticas provindas da intelectualidade. Sem dúvida,tais críticas muitas vezes revestem-se de toda auto-ridade moral, uma vez que a situação as comportasobejamente; entretanto, a despeito de sua pertinên-cia, não devemos esquecer dois aspectos fundamen-tais. O primeiro é que as aspirações ou sonhos sem-pre terão de existir e de colidir com a realidade – issoé inescapável, é o nosso habitat, de que não devemosapenas desesperadamente lamentar, mas entenderque faz parte de nossa condição, e sempre o fará, se-não como viver? O segundo é que muitas vezes setende a esquecer as próprias realizações, em meio àsdesesperanças genéricas; no entanto, isso tambémnão corresponde à realidade, já que, igualmente,muito foi conquistado, muito se avançou – isso éinegável; existencialmente, pode-se deplorar atémesmo o paraíso, quanto mais a decadência, a ruína,a destruição e a morte; todavia, o trajeto humano étudo, menos decadente, ao menos até o momen-to.14 Ele é simples e indefinivelmente imperfeito,sempre a solicitar mudanças.

CONCLUSÃO

O que se está propondo como solução doproblema – posta ultimamente por pensadores egrupos de pesquisa de muitas fontes – parece, na

verdade, transferi-lo simplesmente a outras esferastão ou mais complicadas do que a enfrentada nomomento. De certa forma, esbarra-se na esfinge danatureza humana. Aparentemente, está-se diante deuma solução idiossincrática, uma vez que as con-quistas já dadas garantem ampla possibilidade aqualquer um de recusá-la, contrapondo-lhe apenassuas próprias preferências pessoais, o que é o bas-tante para desqualificar qualquer proposta feita in-telectualmente ou racionalmente, amparada no rela-tivismo do conhecimento. Será que, do ponto devista moral, a ciência acabou por nos enredar numaarmadilha inescapável?

Mas, com efeito, houve época que tenha seconvencido de que existiria uma solução final? Éevidente que não, o sentido é sempre para frente, asolução final é indubitavelmente a morte, fato ina-ceitável. A idéia de uma solução final não é sequerconcebível pela ou para a imaginação humana, poisqualquer solução seria provisória, a menos que seeliminasse o tempo, que se eliminasse o mundocomo o podemos conceber. Daí a conclusão de quenos resta prosseguir com as tentativas possíveis – ea alternativa apresentada pode vir a se constituir umprojeto exeqüível; por que não? Realmente, ela temtodas as condições de prosperar, de se livrar dos pre-conceitos existentes. E não é exatamente isso quesempre se pretendeu: ter novas alternativas à dispo-sição, desde que livres das impraticabilidades (lou-curas inconseqüentes ou algo parecido), e que supe-rem as dificuldades das condições presentes? Podealguém negar que as dificuldades, nas circunstânciasatuais, não estejam repletas de idéias preconcebidase gastas? Pensa-se, enfim, que a humanidade tentouhá muito construir ideais hoje em dia sabidamenteinalcançáveis; porém, nunca tentou decisivamenteassumir algumas das imperfeições que atingem nãoa todos indistintamente, nem em todas as circuns-tâncias, mas que seguramente molda a sua natureza,cuja estrutura começa agora a ser identificada.

Encampando tal alternativa, teríamos entãomais um lance de dados no jogo infinito das possi-bilidades, algo que, sem dúvida, não foi ainda tenta-do com vigor e determinação. O filósofo Karl Jas-pers disse uma vez que a filosofia perturba a pazpois aspira à verdade total, que o mundo não quer,

14 HERMAN (1999) faz um levantamento sobre as principais fontes queinspiraram a idéia de decadência na história ocidental, fornecendo uma boavisão de como ela tem sido forte na nossa tradição. A propósito, cabe aquiuma consideração geral sobre as ciências humanas, especialmente a socio-logia, no sentido de que a sua influência tem sido substancial desde mea-dos do século XIX. Na verdade, as ciências humanas são o sucedâneo doque fôra a filosofia clássica anterior ao desenvolvimento da ciênciamoderna (em sua versão “dura”, isto é, a física, sobretudo, mas também aquímica, e mais recentemente a biologia, com as subdivisões daí decorren-tes). Seu fracasso em emular a filosofia, ou as ciências “duras”, seja talvez arazão de sua atual crise de identidade, ainda que, em seus primórdios, elastivessem um programa promissor. Em todo caso, é nítido o impasse quepresentemente enfrentam [quem?], a despeito de sua persistente influên-cia como formadora de opinião, até porque não existem outras instânciaspara realizar o trabalho, afora a própria filosofia, que, no entanto, sofre domesmo mal.

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e esse é o problema crucial. Argumentamos que asolução final não existe, e o mesmo poderíamos di-zer da verdade total, e talvez seja esse o caso, o dealgo impossível de ser realizado. Entretanto, não sepode deixar de buscá-lo, o que faz de toda filosofiauma utopia. A novidade nessa utopia inédita é queestamos ao lado do melhor instrumento de que ohomem até agora dispôs para superar seus limites –

a ciência. É dela que deveríamos fazer uso na tenta-tiva de ultrapassar esse que é o maior desafio, a pos-sibilidade de desvendar a natureza humana, tornan-do-nos, com isso, capazes de compreender melhoros nossos comportamentos. Mesmo que essa atitu-de nos obrigue a abrir mão de umas tantas fantasias,que, até o presente, mais não fizeram senão nosconfundir e alimentar nossa vaidade e hipocrisia.

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