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Lilian Solá Santiago: a cineasta da diáspora negra no Brasil Pablo Villaça discute Argo, a nova produção de Ben Afleck para o cinema Insônia: resgate do cinema de rua na Fcad Ano 1 - Novembro de 2012 - 1ª Edição Uma nova perspectiva sobre o Cinema Ano 1 - Novembro de 2012 - 1ª Edição Uma nova perspectiva sobre o Cinema Panorâmica

Panoramica (1ª edição)

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1ª edição - Novembro/2012 Revista de cinema que envolve também cultura, artes, audiovisual e fotografia. Trabalho realizado junto a equipe Plano Sequência, na agência experimental do Ceunsp.

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Lilian Solá Santiago:a cineasta da diáspora

negra no Brasil

Pablo Villaça discute Argo, a novaprodução de Ben Afleck

para o cinema

Insônia: resgate do

cinema de rua na Fcad

Ano 1 - Novembro de 2012 - 1ª Edição

Uma nova perspectiva sobre o CinemaAno 1 - Novembro de 2012 - 1ª Edição

Uma nova perspectiva sobre o CinemaPanorâmica

Page 2: Panoramica (1ª edição)

Arte: Luciene Agassi

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Panorâmica 3

Pablo Villaça comenta “Argo”, recente produção de Ben Afleck

pág.20

A máfia no Cinema: a estilização da violência

pág.10

1ª edição do Insônia é sucesso na Fcad

pág. 8

4 EditorialAs muitas faces do cinema

5 Expediente6 Reportagem Uma viagem aos tempos do cinema de rua

8 Agitos Insônia estreia com sucesso na Fcad

A geração “teen” que invadiu as telas de cinema

10 Clássicos A trajetória da máfia no cinema

14 Entrevista Lilian Solá Santiago, cineasta-professora do Ceunsp fala

sobre o cinema da diáspora negra no Brasil

17 AudiovisualDe música e de cinema

18 Making ofCinema experimental: o significado das imagens

20 Crítica Argo - o novo filme de Ben Afleck - por Pablo Villaça

22 VanguardaComo financiar seu filme pela internet

24 Ensaio Ensaio sobre a cegueira: se tiver olhos, veja!

26 Dissertando A telenovela e o imaginário: a influência de “Avenida Brasil”

no comportamento

Lilian Solá Santiago: a primeira cineasta negra do Brasil

pág.14

Foto: Gordon Willis (The Godfather - EUA - 1972)

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Foto: Rodrigo Prieto - www.argothemovie.warnerbros.com

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4 Panorâmica

As muitas faces do cinema

Quando fomos convidados pela professora Fernanda Cobo para produzir a revista de Cinema, bateu o frio na barriga. O fascínio pela sétima arte iria virar agora, também, uma grande responsabilidade, pois já sabíamos que não iríamos apenas “fa-lar” sobre o tema, mas, especialmente sentir, respirar o clima do universo audiovisual.

A primeira terefa foi a de formar uma boa equipe – daí nasceu o “Plano Sequência”. Após algumas conversas, as ideias gan-haram forma – que deram origem ao blog de mesmo nome. As contribuições vieram de estudantes de diferentes níveis do curso de Cinema, com ensaios, críticas, sinopses e vídeocasts. Para reforçar o time contamos com a valiosa colaboração de futuros jornalistas, publicitários e fotógrafos.

As primeiras páginas da revista são dedicadas ao cinema de rua, aquele que reunia os familiares e amigos, e significava um momento lúdico na vida cotidiana. Para resgatar esse clima, o grupo criou o “Insônia”, que proporcionou uma verdadeira virada cinematográfica, inédita na unversidade. O sucesso foi absoluto e ganhou espaço especial na revista. Falando nisso, a próxima edição do “Insônia” já tem data marcada, e o tema: a máfia – que recebeu também um artigo que fala de sua tra-jetória na telona e as principais produções do gênero.

Conversamos com a cineasta e professora do Ceunsp, Lilian Solá Santiago, sobre sua incrível experiência na produção de filmes que abordam a cultura africana. Entre as participações especiais, está a de Pablo Villaça, que discute “Argo”, a nova produção de Ben Afleck, e de Larissa Padron, falando sobre como financiar seu filme na internet. Nosso primeiro número também traz ensaio e artigos sobre cinema experimental, os grandes músicos retratados pela sétima arte e a influênca da telenovela no comportamento.

O cinema é uma arte extremamente coletiva. Uma obra possui diversas facetas. Assim, podemos dizer que a revista Panorâmica tem diversos autores – nós, vocês, eles e elas. O espaço estará sempre aberto para sugestões, textos e opiniões - é o “fazer e comunicar o cinema” sob novas perspectivas.

Boa experimentação!

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Panorâmica 5Gloria Swanson, vivendo ‘Norma Desmond’ em “Crepúsculo dos Deuses” (1950)

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ExpedienteRevista Panorâmica - Ano I - Novembro 2012 - 1ª Edição (virtual)

Editorial - Adriana Brumer Lourencini, Antonio Caju LopesTextos - Adriana B. Lourencini, Caio Felipe Fré, Caroline Liberal Rivieri, Melissa VassalliColaboradores - Filipe Salles, Fina Tranquilim, Larissa Padron, Pablo Villaça, Paulo Aranha Arte - Adriana B. Lourencini, Caio Felipe Fré, Caroline L. Rivieri, Luciene AgassiCapa - Muro de Berlim - mostra interativa alemã (foto: Markus Schreiber/AP - portal G1)Diagramação - Adriana B. LourenciniFotos/Imagens - Caio Felipe, Caroline L. Rivieri, Google imagens Supervisão - Fernanda Cobo

A revista virtual Panorâmica é um projeto da equipe Plano Sequência da agência experimental da Faculdade de Comunicação, Artes e Design (Fcad) do Centro Universitário Nossa Senhora do Patrocínio (Ceunsp), Salto-SP.

Contato: [email protected] Plano Sequência: www.planosequencia.com

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6 Panorâmica

Cinemas de ruaOs cinemas de rua marcaram gerações, porém estão desparecendo - hoje, as salas dos shoppings domi-nam as cidades.

Caroline Liberal Rivieri

Antigamente as pessoas tinham o fascínio de ir ao cine-ma e se emocionar com os filmes românticos, rir com os grandes comediantes da época, fixar o olhar nos filmes de ação ou se assustar com as cenas de terror. Os casais e as crianças da época tinham o prazer de frequentar salas de cinema, sejam elas em locais adaptados ou não. Em Itu, interior de São Paulo, havia espaços improvisa-dos para a exibição de produções que ficaram na história. Entre as gerações mais antigas é comum ouvir a frase: ‘’Que saudade eu tenho do cineminha do Carmo’’, que ainda hoje está gravado na lembrança de muitos ituanos que se divertiam ao assistir filmes, principalmente os fa-mosos seriados exibidos naquela época. Muitos meninos e jovens trabalhavam nas bombonières ou vendiam balas e doces nas antigas salas de cinema ituanas.

Em 1957, os filmes de Charles Chaplin eram exibidos ao ar livre, além dos célebres “O gordo e o Magro”, “Marce-lino pão e vinho” e “Tarzan”. Esse trabalho pioneiro era realizado por ambulantes cinematográficos que viajavam de cidade em cidade. O cinema adaptado era feito com barracas de lona quadriláteras, armadas no estilo de circo, e eram adquiridos filmes americanos e europeus para as exibições por todo o interior de São Paulo.

Inaugurado em 1965, o Cine Boni, no bairro de Vila Nova, foi a primeira sala em Itu a oferecer poltronas almofada-das (eram 650 lugares). Como a projeção era feita direta-mente na parede do cinema, quando as cenas continham bastante luz, a qualidade da projeção era maior. Porém, em cenas mais escuras, a imagem ficava comprometida.Depois do Cine Boni surgiram outros cinemas de rua, como o Marrocos, que marcou época. Inaugurado em 1952, no centro de Itu, o Cine Marrocos exibiu o musical “Paraiso Tropical”, e teve casa cheia durante os quinze dias de exibição do épico “Os Dez Mandamentos”. O Cine Marrocos encerrou suas atividades em 1998 – o pré-dio continua lá, mas o sabor da pipoca e as poltronas cor

de vinho se foram para sempre.

‘’Frequentei apenas o Cine Marrocos, onde vi a estreia de “O Rei Leão”. Era muito novo, tinha uns quatro anos, mas lembro de algumas coisas: da minha mãe comprando o ingresso na bilheteria, depois comprando um saco de pipoca... Mas foi só. Logo depois disso, o Marrocos fe-chou e nós ituanos ficamos reféns do Cine Plaza.’’ André Felipe Constante Roedel, 21 anos.

Perguntamos ainda se ele acredita que, quando o cinema é localizado em um shopping, ele perde o valor que teria se estivesse em outro local, e ele respondeu: “O shop-

ping surgiu da necessidade do ho-mem moderno fazer várias coisas em um curto período de tempo. Vários serviços, de lojas de roupa a bancos,

André Roedel: o cinema foi criado para ser apreciado

Foto: Carol Rivieri

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Panorâmica 7

Cine Ritz, em Florianópolis (SC) - acervo de George Richard Daux (década de 1940) Fonte: Blog Cine Luz

minha filha lá para assistir ‘Rei Leão’”, conta ela.

Atualmente os ituanos contam apenas com o Cine Plaza Itu, que funciona no Plaza Shopping desde 2001. São três salas com 300 lugares cada uma.

Não restou qualquer lembrança daquele cinema de rua que encantava pessoas de todas as idades. Hoje as salas de cinemas estão todas localizadas em shoppings. É comum pagar caro pela pipoca, enfrentar longas filas, comprar o ingresso pela internet, colocar os óculos 3D e assistir o filme de cartaz mais chamativo. Muitas pessoas não vão mais ao cinema pelo filme – elas vão aos centros de con-sumo, o filme é só uma opção de entretenimento.

com uma enorme praça de alimentação para saciar a fome desses ávidos em consumir. Já o cinema foi criado pra ser apreciado. Por isso, não condiz que uma forma de arte seja posta ao lado de um grande centro de consumo. Tudo bem, o cinema virou um grande negócio, mas ainda há espaço para a cultura dentro dele. E, como qualquer outra loja de um shopping, o intuito de um cinema dentro do mesmo é vender. Nos cines de rua a coisa é diferente. É privilegiada a experiência, em detrimento do consumis-mo desenfreado. Você vai para assistir a um filme, e não “comer um lanche no McDonald’s e, se der, pegar a ses-são das 19h”.

Adriana Liberal, 42 anos, também tinha o hábito de fre-quentar o cinema. “Lembro-me do Cine Boni, onde as-sisti ‘Marcelino, pão e vinho’, era em preto e branco; lá eu vi também ‘Embalos de sábado à noite’ e ‘Os trapalhões’. Do Cine Marrocos, lembro-me de que o cinema era gran-de, maior que uma sala de cinema de shopping, o chão era plano, e o telão era bem menor do que estamos acostuma-dos hoje. Antes, podia até fumar dentro do cinema. Levei

Prédio do antigo cine Marrocos, rua Paula Souza, centro de Itu

Foto: Carol Rivieri

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8 Panorâmica

‘Insônia’ é sucesso Em sua primeira edição, o evento surpreendeu com inovações e público lotou as sessões no auditório da Faculdade de Comunicação, Artes e Design (Fcad) do Ceunsp.

Caio Felipe Fré

Sabe quando você não consegue dormir de forma nenhuma? E tudo que mais quer é ligar a televisão e passar o resto da noite vendo filmes e mais filmes? Ou talvez ouvir uma boa música em meio ao silêncio da madrugada? Para completar só um bom café para acabar de vez com a falta de sono, certo? É exata-mente isso que a primeira edição do ‘Insônia’ trouxe para o público presente.

Com o slogan ‘cinema, música e café’, o evento ficou conhecido como “viradão de cinema”, que começou às 22h30 de sexta-feira, 14 de setembro, e só terminou na manhã de sábado, por volta das 7h30. A temática da pri-meira edição do ‘Insônia’ foi “a primeira vez”, com expo-sições dos primeiros filmes da carreira de três diretores renomados. Apesar de pouco conhecidos do público par-ticipante, o auditório ficou lotado. Quem assistiu aos fil-mes também ficou surpreso com a qualidade das imagens.

“Cara, o Tarantino é um gênio. Eu só conhecia ele a partir de ‘Grande Hotel’, ‘Kill Bill’, nunca tinha visto ‘Cães de Aluguel’. Foi genial. O jeito que ele ironiza é demais.” – disse a estudante Camila, 19 anos. Sucesso absoluto entre os presentes, o filme ‘Cova Rasa’ rendeu alguns minutos de aplausos e uma sensação de satisfação nos rostos das pessoas. “Filmão. Só isso. Filmão. Onde tava esse filme todo esse tempo sem eu conhecer?” – deliciou-se Fabio Luiz, 21 anos.

Além dos longas-metragens, o ‘Insônia’ também trouxe a as bandas Satans Of Swing e Hellgrass – esta última, da gravadora Trama, arrancou gritos histéricos das garotas com seu som “folk rock” e seu violoncelista Jeff Novaes. Durante as apresentações, cenas de conhecidos filmes como ‘Harry Potter’ e ‘Alice’ podiam ser vistas no telão lateral.

No salão principal foram colocados pufes, sofás, tapetes e cobertas, criando um ambiente aconchegante, onde as pessoas puderam se acomodar e até tirar um cochilo. A descontração ficou por conta de alguns jovens que vieram fantasiados de personagens dos filmes. Puderam ser encontrados “Mr. Pink” (personagem de Steve Bus-cemi) de ‘Cães de Aluguel’ e “Alex” (personagem de Evan McGregor) de ‘Cova Rasa’. Para preencher o vazio no estômago não faltaram mesinhas com guloseimas doces e salgadas, além de cafez-inho e a tradicional pipoca. A decoração cinematográfica completou o cenário.

A última sessão se iniciou às 6h30 da manhã, com ‘O El-emento do Crime’, do delirante Lars Von Trier. Apesar do remanescente público que não ultrapassava 40 pessoas — a maioria dos espectadores estava no saguão apreciando um delicioso café da manhã. O filme terminou ao som de aplausos.

Surgiam os primeiros raios de sol; luzes apagadas e sat-isfação de um bom trabalho realizado. Assim terminou a primeira edição do ‘Insônia’, deixando o gostinho de quero mais.

O projeto surgiu a partir da ideia de cinema de rua, na tentativa de resgatar o clima de reunião com amigos, um bom filme e, claro, muita pipoca! E, parece que deu certo!

Agora, é só aguardar a segunda noite de ‘Insônia’, porque na Fcad, cinema, música e café são mais legais!

Com sessão cheia, público espera pelo início do filme ‘Cova Rasa’Foto: Carol Rivieri

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da Bynes o título de ‘teen queens’ – rainhas dos adoles-centes.

Se você tem mais de 17 anos com certeza presenciou a enxurrada de longas protagonizados por essas atrizes entre 2002 e 2006. Títulos como “A nova Cinderela”, “Meninas mal-vadas” e “Tudo o que uma garota quer” foram sucessos de bilheteria e disputados em video loca-doras. Mas, o que fez essa geração de garotas conquistar tanta fama e respeito? O pioneirismo pode ser conside-rado o maior fator de sucesso. Até então existia apenas animações para crianças e temáticas um tanto machistas para garotos do ensino médio. O mercado cinematográ-fico era carente desse tipo de filme considerado ‘para meninas’, mas que tam- bém atraiu meninos sem precon-ceitos.

O grande talento delas aliado às trilhas sonoras e princi-palmente, a publicidade em torno do lançamento nas sa-las de cinema fizeram com que as novas estrelas tivessem seus nomes gravados no imaginário do público.

Atualmente, a maioria dessas produções são exibidas na tv aberta, porém, permanecem rendendo lucro e audiên-cia, tornando-as ainda mais memoráveis.

O fator proximidade com o real também teve influência na identificação das jovens atrizes com o público adoles-cente. Hilary Duff e Amanda Bynes, por exemplo, nunca apresentaram padrões de beleza impossíveis de se alcan-çar - elas possuem a aparência típica de meninas da sua idade. Lindsay Lohan, por sua vez, surgiu como a garota ruiva cheia de sardas em meio ao mar de loiras esculturais do cinema americano.

A vida de suas personagens segue o mesmo conceito, ou seja, são pessoas normais, de carne e osso, que têm con-flitos familiares e sentimentais, nem sempre ganham; al-gumas vezes estão felizes, em outras, tristes. Temas como “bullyng”, homossexualidade e drogas também per- meiam a realidade dessas garotas, transformando-as em ícones de uma geração e referenciais de compor- tamento.

Realeza adolescenteO segredo das atrizes que marcaram os filmes juve-nis da década de 2000

Caio Felipe Fré

Elas são bonitas, doces e sempre encontram o amor ver-dadeiro aos 16 anos. Em contrapartida, não têm muitos amigos, não são populares e sempre tendem a enfrentar o mundo para serem apenas quem são.

Basicamente, essa é a formula de sucesso dos filmes ado-lescentes que ficaram famosos nos anos 2000 e deram a alguns nomes como Hilary Duff, Lindsay Lohan e Aman-

Hilary Duff - ícone dos filmes adolescentes

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A trajetória da máfia

no cinema

Marlon Brando dá vida a ‘Vito Corleone’ em “O poderoso chefão” (1972)

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Ação, violência, glamour e

valores familiares

completam o cenário de

enredos marcantes sobre

o crime organizado

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Panorâmica 11

Adriana Brumer Lourencini

Nos filmes de gangster vemos uma sequência bem mon-tada, com frases e roteiros pomposos, e a violência é exposta de forma quase estética. Os gestos escancara-damente latinos e os cabelos emplastados com gel dos protagonistas misturam-se a uma atitude machista galan-teadora e armas dos mais diversos calibres, que despertam no espectador o desejo de adentrar aquele universo secre-to envolto em códigos e condutas másculas. Por causa do Cinema, podemos dizer que a imagem de um mafioso nos remete à ideia de alguém ligado ao poder, que estampa uma vida glamourosa, tem os bolsos cheios de dinheiro e bala na agulha.

A máfia se consolidou como gênero cinematográfi-co com a trilogia “O poderoso chefão” (The godfather – 1 e 2-1972, 3-1974). Francis Ford Coppola nos brin-da com uma engenharia estética sofisticada em seus tre-chos, e mostra Marlom Brando bochechudo e com voz gutural, sem parecer caricato – comandando o “modus operandi” da máfia italiana na tentativa de ocupar postos de comando político e econômico no novo mundo. O patriarca Don Vito Corleone aparece como uma figura benevolente e sábia, que compreendia a alma de seus fa-miliares e inimigos e demonstrava seus sentimentos atra-vés de gestos brandos, porém implacáveis. Coppola dá ênfase ao drama que lembra as grandes óperas, em que os personagens sofrem com as reviravoltas da vida. A cultu-ra italiana é exposta por meio das danças e costumes, e a máfia recebe um tratamento simpatizante e legitimador. A música, composta por seu pai, Carmine Coppola, merece destaque, assim como a cena na qual Michael Corleone (Al Pacino) batiza o filho, considerada a mais bonita dos filmes do gênero, e a sequência dos guerrilheiros do gue-to assassinando seus rivais em momentos de sofisticação. Esse era o modo simples e direto da máfia resolver seus problemas. Um tiro na cabeça durante um jantar, ou uma saraivada de balas enquanto o rival está recebendo uma massagem no outro lado da cidade. Se as duas sequências de “O poderoso chefão” ocupa até hoje a liderança na modalidade, o terceiro lugar no pódio pertence a “Scarface, a vergonha de uma nação”, de Ho-ward Hawks, 1932. O primeiro filme retrata a forma com que a máfia da Chicago dos anos 1930 se comportava e como era vista pelo cidadão americano da época. Reche-ado de metáforas que abordam de homossexualidade a incesto, o primeiro “Scarface” foi inspirado na vida de Al Capone, que realmente tinha uma cicatriz, porém, no

pescoço e não no rosto, como o protagonista do longa. Hawks declarou que chegou a consultar mafiosos de ver-dade sobre o projeto, e que Capone quis uma cópia da pe-lícula para ele. Exagero ou mentira do diretor, o fato é que “Scarface” contém vários incidentes inspirados em histó-rias reais. Foi uma empreitada complicada, pois naquele tempo havia forte rejeição às produções de Hollywood que pareciam endeusar os gangsteres, a exemplo de “Alma no lodo” (“Little Caesar”, 1931) e “O inimigo público número um” (“The public enemy”, 1931). A censura tam-bém implicou com o filme de Hawks, que chegou a rodar finais alternativos, mais moralistas, eliminou sequências inteiras e referências raciais, além de ter que deixar vago o tema do incesto.

Em 1983, Brian de Palma produz um “remake” de “Scar-face”, com roteiro de Oliver Stone – que transfere o en-redo para os anos 1980 e ambienta a trama para a bada-lada Miami. Al Pacino encarna Tony Montana, líder de uma quadrilha de traficantes na cidade, que comete o erro de se viciar em drogas. O longa também revela Michelle Pfeiffer, que vive Elvira Hancock, a paixão de Montana.

No final da mesma década, de Palma lança outra produ-ção contextualizada no crime organizado. “Os intocá-veis” (“The untouchables”, 1987) mostra o período da lei Seca em Chicago, nos anos 1930, e o mote narrativo é a atuação de Al Capone (Robert de Niro) no Estado, desafiando as forças do bem, representadas pelo corretís-simo Elliot Ness (Kevin Costner). Aqui, o poder da máfia é tratado sob uma ótica realista, mostrando a corrupção político-social presente no cotidiano. Seguindo o estilo

“Scarface” (1932) - ingredientes da vida real e cenas barradas pela censura

Foto: Lee Garmes e L. William O’Connell

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“Os intocáveis” (1988) - mocinhos e bandidos na Chicago dos anos 1930

americano, “Os intocáveis” deixa clara a questão das di-ferenças sociais e traz consigo a moral de que o crime não compensa, e o bem sempre vence o mal. Um dos momentos mais tensos é a cena da escadaria na estação de trem – uma referência à emblemática tomada de Eiseins-tein em “O encouraçado Potemkin” (1925).

A última obra de Brian de Palma sobre o gênero veio nos anos 1990, com “O pagamento final” (“Carlito’s way”, 1993). Al Pacino retorna como protagonista, dividindo sua atuação com Sean Penn (que interpreta o advogado Dave Kleinfeld). O enredo é sobre Carlito (Pacino), ex-gangster que sai da prisão e quer se manter limpo para fugir com sua namorada para as Bahamas. Até aqui, trata--se apenas de mais do mesmo, porém, de Palma consegue ir um pouco além do tema já batido e repetitivo. “O pa-gamento final” é um momento de maturidade do diretor. De Palma se interessa por seus personagens, por aquilo que fazem e aquilo que são. Junto com seu roteirista, Da-vid Koepp, o diretor nos oferece o outro lado da moeda, mostrando que um gangster americano também possui alguém a quem ama, tem amigos e metas que não sejam apenas o crime e assassinatos.

Na mesma década, “Os bons companheiros” (“The go-dfellas”, 1990) e “Cassino” (“Casino”, 1995), ambos de Martin Scorsese, estão entre as grandes produções e trazem personagens quase idênticos. “Os bons compa-nheiros” tem ação intensa e conta a história do irlandês Henry Hill (Ray Liotta) que cresce entre a máfia italia-na do Brooklin, em Nova Iorque, é protegido por James Conway (Robert de Niro) e acaba se envolvendo em gol-pes cada vez maiores. Em “Cassino” Scorsese se inspi-ra no terceiro filme da trilogia de Coppola, mostrando famílias italianas que tentam expandir sua influência no

noroeste americano por meio de um polo de jogo e pros-tituição na Las Vegas dos anos 1970. A história é baseada na vida do chefe de cassino Frank “Lefty” Rosenthal.

Mais tarde, Scorsese lança “Os infiltrados” (“The depar-ted”, 2006), tratando com maestria a relação entre a máfia e seus subordinados. Enquanto o jovem policial Billy Cos-tigan (Leonardo di Caprio) é infiltrado no grupo mafioso liderado por Frank Costello (Jack Nicholson), ganhando sua confiança, o criminoso Colin Sullivan (Mat Damon) se torna o espião da máfia na polícia. Na trama não há um lado certo para ficar: policiais e criminosos têm a moral comprometida.

Sam Mendes também contribuiu para a saga do crime organizado nos cinemas com “Estrada para a perdição” (“Road to perdition”, 2002), que tem como plano central a relação entre pai e filho nos conflitos com a máfia irlan-desa. A atuação brilhante fica por conta de Tom Hanks no papel de Michael Sullivan, que tenta salvar o filho das garras dos criminosos.

No reino dos gangsteres, arte e vida se inspiram mutu-amente. Porém, não tenhamos ilusões - a crueldade real da máfia supera a ficção. John Dickie, em seu livro “Cosa Nostra - História da máfia siciliana” (Edições 70, 2004-EUA / 2006-Portugal) diz que os Estados Unidos, por in-termédio de Hollywood, vêm apresentando a máfia como fenômeno seu, e revela: “Seria ao mesmo tempo presun-çoso e incorreto dizer que a máfia apresentada em obras de ficção é pura e simplesmente falsa — ela é estiliza-da. O glamour do cinema não consegue sobreviver a um confronto com a terrível realidade da Cosa Nostra. [...] enquanto a história de Michael Corleone lida com os pe-rigos morais do poder ilimitado, os verdadeiros mafiosos sicilianos preocupam-se obsessivamente com as regras de honra que restringem as suas ações.”

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“Os bons companheiros” (1990) - a máfia nos guetos

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Lilian Solá Santiago

Pioneira do cinema dadiáspora negra no Brasil

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Panorâmica 15

Caroline Liberal Rivieri

Muitas produções de Hollywood se fixaram na mente dos fãs de cinema como obras que retratam muito bem a vida dos negros, como no filme “A cor púrpura” (“The color purple”, 1985, Steven Spielberg). Porém, há ainda muito a ser revelado sobre a cultura africana, especialmente a que foi disseminada pelos escravos no Brasil e na América Latina.

A paulista Lilian Solá Santiago, cineasta e professora do curso de Cinema e Audiovisual do Ceunsp vem realizando, desde 2007, um trabalho pioneiro no cinema da diáspora negra – expressão que designa as produções inspiradas por questões ou personagens negras. Em seu currículo estão os documentários: “Eu tenho a palavra”, que levou o prêmio Etnodoc de 2009, e “Balé de pé no chão”, pro-duzido em 2005 – entre os vários prêmios conquistados, está o de melhor documentário no I Hollywood Brazilian Film Festival, também em 2009. Assinou o “doc-ficção” “Graffiti” (2008), que faturou o Prêmio Estímulo ao Curta-Metragem; e “Uma Cidade chamada Tiradentes” (2007), além do filme-documentário “Família Alcântara” (2005), com Daniel Santiago, exibido nos cinemas e na TV e ganhador de diversos prêmios.

Lilian nos conta um pouco de sua experiência com pro-dução e direção de documentários no País. Confira a en-trevista.

Panorâmica: Por que você decidiu ingressar na área de cinematografia?

Lilian Solá: Foi o trabalho que me apareceu, demorei em decidir o que ia fazer, fiz teste vocacional e o resultado foi para a área de Comunicação. Tenho um irmão produtor que me chamou para participar como figurante – fiz o pa-pel de uma moça de outra época. Vi a atriz principal sen-tada com outras pessoas do filme e ela disse um palavrão, aí então eu pensei: quero ser assim, uma mulher linda e que pode falar palavrão. Na época que fui fazer vestibular queria ser Ministra da Cultura, um professor meu de his-tória indicou o curso de História, que eu fiz na USP.

Panorâmica: Quando começou esse seu fascínio pela

cultura popular africana?

Lilian Solá: Desde que eu nasci. A cultura popular africa-na é um universo muito rico e pouco representado.

Panorâmica: Como surgiu a ideia para o roteiro do docu-mentário “Batuque de graxa”, que será lançado este ano?

Lilian Solá: Li a frase de um jornalista: “Com muitos timbres é a riqueza da música brasileira”, e fui pesquisar, descobri um personagem que tinha sido engraxate – seu Antonequim batuqueiro – e comecei o projeto em 2009. Ele faleceu e tive que mudar o roteiro. “Batuque de gra-xa” representa o berço do samba em São Paulo nos anos 1950 - os engraxates que ficavam na Praça da Sé usavam seus instrumentos de trabalho para fazer samba.

Panorâmica: Como foi o processo de desenvolvimento do roteiro de “Eu tenho a palavra”?

Lilian Solá: “Eu tenho a palavra” é um patrimônio da cultura negra. Foi filmado em Minas gerais, e eu fui lá atrás da única personagem que sabia um dialeto de Ango-la; o projeto era levar Dona Fiota para a Angola e trazer um angolano para Minas, mas não deu certo. Dona Fiota não queria ir para a Angola, pois tinha medo de avião.

Panorâmica: O que você quis enfatizar nos seus docu-mentários?

Lilian Solá: A permanência do imaginário, como as pes-soas mantêm essa tradição, o poder da oralidade, mostrar o trabalho de quem está por trás, as pessoas e as con-dições de vida. No documentário “Balé de pé no chão” conto a história de uma dançarina negra que fez uma co-reografia misturada com o candomblé para mostrar para o público como foi o início da dança moderna.

Panorâmica: Você tem planos para um futuro filme?

Lilian Solá: Tenho um projeto, mas é embrião ainda,

“A cultura popular africana é um Universo muito rico e pouco representado.”

“Batuque de graxa” representao berço do samba em

São Paulo.”

Page 16: Panoramica (1ª edição)

16 Panorâmica

Documentário “Eu tenho a palavra”. Da direita para a esquerda: Lilian Solá, o personagem Chitacumula, o fotógrafo Valnei Nunes e o microfonista Artur (foto: www.liliansantiago.blogspot.com.br)

prefiro não falar sobre isso agora. Só posso dizer que é inspirado em poesia.

Panorâmica: Como você vê o mercado de cinema hoje?

Lilian Solá: O cinema começou no século XIX, hoje não é tão valorizado, não existe mais aquele ritual em que as pessoas se arrumavam para ir com a família assistir a um filme. Hoje todos passeiam no shopping e, se sobrar tem-po vão ao cinema. Outro dia presenciei um casal de ido-sos que estava andando pelo shopping e viu um cinema 6D. Eles nem queriam saber qual filme estava sendo exi-bido – só queriam sentar um pouco. O cinema está num momento de transição, e acredito que no futuro existirão filmes com um formato menor. O cinema lá fora tem um público para classe média, aqui no Brasil temos uma ques-tão histórica – como o “Cinema novo”, que ficou conhe-cido internacionalmente. Os diretores no Brasil acham que faz mais sucesso lá fora mostrar nossa periferia nas produções. Meus filmes sobre cultura negra nunca vão fazer tanto sucesso nas bilheterias como “Tropa de elite”, por exemplo. As empresas sofrem, pois quem produz não tem poder de mercado – são os distribuidores que man-dam no cinema; eles escolhem o que vai para o público. O exibidor é obrigado a mostrar isso no seu cinema, fa-zendo sucesso de bilheteria ou não. O cinema brasileiro procura prêmios e títulos e não público e bilheteria. Meu professor falava que a política cinematográfica é assim: “Dá incentivo para ganhar prêmios e não um público”. Não temos mais uma identidade nacional – essa ideia pre-cisa ser incentivada para não acabar com os novos filmes.

Panorâmica: Ainda é muito difícil conseguir incentivo/patrocínio para rodar um longa no Brasil?

Lilian Solá: É difícil, mas não é impossível. Os alunos me falam “Só quem é rico faz cinema”. Lógico que para quem tem grana é mais fácil. Meu pai era motorista de

táxi e minha mãe era doméstica, e eu consegui! Tem que acreditar e ir atrás.

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A Prefeitura municipal de Salto realiza, entre os dias 10 e 21 de novembro de 2012, a semana da consciência negra, com o tema “O valor da identidade negra”.

Lilian Solá irá apresentar o documentário “Meio século”, como coordenadora do curso de produção de vídeo. A exibição será no dia 21, às 19h30, na sala Giuseppe Verdi, - rua José Galvão, 104 - Centro- Salto.

O evento tem o apoio das Secretarias da Educação, Cul-tura e Turismo, e parceria com o Ceunsp.

Informações e programação: http://www.salto.sp.gov.br/

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Lilian Solá Santiago é graduada e mestre pela USP, com passa-gens pela UFSCar e Cásper Líbero. Atualmente é docente do curso de Cinema no Ceunsp e conta com extensa filmografia, além de premiações em festivais nacionais e internacionais.

“Vi a atriz principal sentada com outras pessoas do filme e

ela disse um palavrão, aí então eu pensei: quero ser assim,

uma mulher linda e que pode falar palavrão. ”

Page 17: Panoramica (1ª edição)

Panorâmica 17

Uma das minhas lembranças mais remotas de profunda emoção ao sair de uma sessão de cine-ma foi quando assisti, em 1986, ao épico biográ-fico de Mozart, o festejado filme de Milos For-man Amadeus. Um dos filmes mais expressivos já produzidos pela indústria cinematográfica (ainda que sendo uma co-produção tcheca/americana), foi baseado na peça homônima de Peter Shaeffer, e, além de tudo, uma das únicas vezes que vi a Academia de Ciências Cinematográficas de Los Angeles premiar merecidamente um filme. Levou nada menos que 8 oscars, deixando, surpreenden-temente, filmes favoritos na lanterna.Ninguém esperava aquele espetáculo, em todos os senti-dos: cenografia impecável, direção de fotografia das mais belas, interpretações magníficas: uma mis-en-scène qua-se sem defeitos.

Entretanto, foi um filme que acabou sendo aos poucos esquecido, em parte por conta da opinião não de cine-astas, mas dos músicos. Como era um filme que supos-tamente contava a vida de Mozart, a imprensa em geral foi colher mais informações da classe musical, e acabou tendo uma certa decepção. A maioria dos músicos des-denhou o filme, pela justa razão de que, como biografia, o filme não era fiel à vida de Mozart. E aí é que perdura o grande equívoco, que reside numa análise meramente formal, e não do sentimento que o filme propõe.

Em outras palavras, o filme não é uma biografia de Mo-zart (tal como a peça de Sheaffer propõe), e sim uma fan-tasia sobre o contraste do gênio e do medíocre. O que é um gênio? o que é um medíocre? Como se comporta o ser humano diante do desejo de ser genial, e ao mesmo tempo tendo que reconhecer-se medíocre, frente a outro exemplo, este sim considerado (por ele mesmo) genial?

Um assunto de densidade psicológica, filosófico, até. Quem define o que é o gênio? Genialidade é uma dádiva divina, um privilégio de poucos? Estas são algumas das perguntas que o filme suscinta, sendo que, para revestir estes elementos de ação, o autor escolheu, entre muitos exemplos possíveis, a conhecida rivalidade entre Mozart e Salieri. Esta richa é, inclusive, anterior a Shaeffer, já ten-do sido tema de um livro de Puchkin e uma ópera de Rimsky-Korsakov.

Curiosamente, ao escolher como pano de fundo a história de Mozart e Salieri, ele acaba por ser muito mais fiel à per-sonalidade de Mozart do que outros filme-biografias, que, mesmo sendo fiéis historicamente, não traduzem com tanta intensidade a psique de Mozart.

Exemplo contrário é a biografia de Beethoven, Minha Amada Imortal, (My Immortal Beloved, 1994), dirigida por Bernard Rose. Apesar de ser um filme absolutamente perfeito em reprodução historica, é frio enquanto descri-ção de personalidade, e propõe que toda a inspiração de Beethoven tenha vindo de uma paixão não correspondi-da, o que me parece muito mais inverossímil que achar que Salieri tenha encomendado o Requiem. Ademais, toda a história é contada pela visão de Salieri, o que torna as supostas “inverdades” históricas verossímeis, podendo ser justificadas por uma avançada neurose senil.

Apesar de tudo, nenhum filme que eu tenha visto faz des-filar com tanta precisão os contrastes das personalidades gênio e medíocre, traduzindo assim uma das caracteriza-ções de Mozart que eu considero mais fiéis, num filme que, paradoxalmente, é tido como uma falácia histórica. Coisas que só são possíveis no cinema. E, ainda além, uma aula de direção e de interpretação, um filme para re-ver sempre.”

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Filippe Salles é fotógrafo e cineasta, formado em Cinema pela FAAP e Mestre e Doutor pela PUC/SP. Atualmente coordena e leciona nos cursos de Comunicação e Artes do Ceunsp.

De música e de cinemaFilipe Salles

Foto: Google imagens (autor desconhecido) - Fonte: www.cinema10.com.br

Page 18: Panoramica (1ª edição)

18 Panorâmica

Cinema Experimental:O significado das imagens Paulo Aranha

A leitura da imagem é um ponto de partida para esta-belecer um diálogo: compartilhar o prazer de descobrir significados ao interagir com o universo da arte. Para des-pertar realmente o interesse do conceito imagético nos fotogramas e no cinema, é necessário perceber que os conteúdos explorados podem adquirir sentido próprio e que essas descobertas podem ter repercussões práticas na vida presente e futura. Na arte podemos visualizar e nos expressar através das imagens, e em cada fragmento do fotograma descobrimos novos significados no contexto expressivo da criação.

Conduzir a criação de uma obra experimental é garan-tir a possibilidade de apresentar idéias e compartilhá-las através das imagens criadas por condições psicológicas do conhecimento, na integração do objeto, na relação com a obra, nas referências de idéias e na maneira consciente de sua elaboração. É conectar-se ao pensamento do ar-tista, com o fazer artístico no mundo contemporâneo e criar diálogos com os diferentes modos de representação, trazendo a interdisciplinaridade. É sociabilizar questiona-mentos e inquietações do indivíduo com o coletivo na expressão artística, aguçar os sentidos, estabelecer uma criação e realizar imagens através dos vários suportes de captação imagética. Experimentalismo é a criação de um pensamento artístico, de simples sonho, de pinturas sobre a película, das memórias dos significados em lembranças ou até mesmo de objetos que fazem uma elaboração esté-tica e concreta da imagem.

A fotografia sempre foi um campo de experimentação desde o seu surgimento e o cinema fez parte deste pro-cesso com as fotografias em movimento, dando início a criação de linguagem, inovação e expansão da imagem. Esta é uma experiência do olhar e dos sentidos, vivemos num mundo visual. Sobre os olhos não é preciso cogitar a sua ausência no processo de formação, de apreciação, de percepção e aceitação de uma obra fílmica experimental. É possível registrar muitas imagens, sendo características fundamentais para marcar os momentos do passado e do presente. O importante é o fato de que o momento re-

gistrado vai durar por longos tempos e contribuir para eternizar memórias. “Todos os filmes começam com me-mórias, todos os filmes são também uma soma de muitas memórias. Por outro lado, muitas memórias nascem atra-vés dos filmes”. (WENDERS, 1990, p. 57). No conceito da subjetividade, podemos definir através das palavras do cineasta poético Luiz Rosemberg Filho que o “cinema é significação de subjetividades, que ultrapassa o próprio homem. E sua riqueza é a experimentação permanente”. (ROSEMBERG FILHO, 2011, p. 1). Podemos concluir que o registro de uma imagem, abre um leque de idéias na forma de abordagem de uma única: a luz. Em cada horário almeja o tempo na composição estética da obra de arte, “pois cinema ou fotografia nada mais é do que o trabalho de moldar imagens através do contraste entre a luz e a sombra existentes na natureza”. (SALLES, 2009, p. 73).

O cinema experimental abrange tanto o seu aspecto histó-rico quanto o seu aspecto estético e pode ser encontrado em obras individuais, homogêneas, correntes e nas fases do cinema de vanguarda, dos filmes surrealistas, filmes undergrounds, filmes superoitentistas (bitola super-8), ci-nema expanded ou cinema expandido (forma de intera-ção), cinema marginal, found footage (utiliza de imagens de arquivo), documental, vídeo arte e animação.

O cinema experimental é um objeto de difícil fixação. Ci-

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nema experimental, que, por definição ambígua, é um ci-nema, ainda e sempre, para (e por) se descobrir. (ADRIA-NO, 2007, p. 15).

O cinema experimental se entrega a uma estética, des-construindo o tempo e o espaço num processo sempre de inovação pessoal no tratamento do sistema ótico, da to-nalidade imagética, experimentar através da poesia, sons, imagens, significados e da vida.

Referências bibliográficasADRIANO, Carlos. Um guia para as vanguardas cinema-tográficas. Trópico, São Paulo, 2003.FERREIRA, Jairo. Cine de invenção. 2ª edição. São Paulo: Limiar, 2000. FILHO, Luis Rosemberg. Quatro x Resnais. Rio de Janei-ro: Via política, 2011. MACDONALD, Scott. Avant-garde film. Boston: Cam-bridge, 2003.

RENAN, Sheldon. Uma introdução ao cinema/under-ground. Rio de Janeiro: Lidador, 1970.SALLES, Filipe. Apostila de cinematografia: iluminação para cinema e vídeo. São Paulo: Mnemocine, 2009.WENDERS, Win. A lógica das imagens. Rio de Janeiro: Edições 70, 1990.

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Paulo Aranha é formado em Fotografia pela Faculdade de Co-municação, Artes e Design (Fcad)-Ceunsp. Cineclubista, ex-vi-ce-presidente da Federação Paulista de Cineclubes, responsável pela construção do Cineclube Ceunsp. Trabalha com perfor-mance arte, vídeo arte, colagem, fotografia, vídeo instalação, cinema, artes visuais e as artes multimídias. Em 2009 foi jurado do 10 Festival de Super-8 de Campinas, pesquisador de cinema e das artes. Atualmente trabalha com cinema, artes visuais e fotografia ex-perimental, e é diretor dos curtas: “Sapatógrafo”, “Memórias Fotográficas” e “Palavras para Glauber”.

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ArgoPablo Villaça

Filme: Argo (Argo)Ação – 2012 – Estados UnidosDireção: Ben Affleck. Com: Ben Affleck, Alan Arkin, John Goodman, Bryan Crans-ton, Clea DuVall, Kyle Chandler, Zeljko Ivanek, Tate Donovan, Victor Garber, Bob Gunton, Chris Messina, Philip Baker Hall, Michael Parks, Richard Kind.

Em 4 de novembro de 1979, um revolução iraniana chega a seu auge. Militantes chegam à embaixada americana em Teerã e fazem 52 reféns americanos. Mas, no meio do caos, seis americanos encontram uma maneira de fugir e se refugiar na casa do embaixador canadense. Sabendo que apenas uma questão de tempo até que os seis sejam encontrados e assassinados, um especialista em resgate da CIA, Tony Mendez (interpretado por Affleck) aparece com um plano arriscado para tira-los do país

Hollywood corroeu tanto a própria credibilidade ao pro-duzir obras “inspiradas em fatos reais” que nada têm a ver com a realidade que, ao final deste Argo, o diretor Ben Affleck sente uma clara necessidade de exibir na tela parte do material de pesquisa utilizado para recriar os inciden-tes narrados em seu filme a fim de convencer o especta-dor de que tomou o menor número possível de liberdades criativas – e até mesmo um áudio do ex-presidente Jimmy Carter discutindo os acontecimentos é incluído pelo ci-neasta.

É compreensível. Além da já citada tendência do Cinema ao exagero (um eufemismo para “mentira”), a história re-

contada pelo roteiro de Chris Terrio a partir de um artigo de Joshuah Bearman traz elementos absurdos demais para que não duvidemos de sua veracidade: ambientado em 1979, quando manifes-tantes iranianos invadiram a embaixada norte-americana em Teerã (o que torna o lon-ga atualíssimo, consideran-do os eventos recentes na Líbia), Argo acompanha os esforços do agente da CIA Tony Mendez (Affleck) para resgatar seis funcionários que escaparam durante os

ataques, escondendo-se na casa do embaixador canaden-se Ken Taylor (Garber). Ciente de que será apenas uma questão de tempo até que a inteligência iraniana descubra onde os foragidos se encontram, Mendez tem aquela que seria descrita como a “melhor má ideia” para resolver a situação, empregando a ajuda do maquiador John Cham-bers (Goodman) e do produtor Lester Siegel (Arkin) para simular a existência de uma produção de ficção científica interessada em usar o Irã como locação, o que justificaria sua entrada no país e a posterior fuga com os seis norte--americanos, que assumiriam os papéis de integrantes do projeto cinematográficos. O nome da tal produção? Argo.

Esforçando-se para evitar uma postura ufanista tão co-mum em produções do tipo (lembrem-se do repulsivo ‘Falcão Negro em perigo’), o filme contextualiza a inva-são à embaixada ao explicar o papel fundamental desem-penhado pelos Estados Unidos na queda do presidente Mohammad Mosaddeq e sua substituição pelo sádico xá Reza Pahlevi, que prendia e torturava dissidentes e levou o país à miséria enquanto esnobava sua opulência – e o roteiro chega a exagerar ao trazer funcionários da CIA fazendo uma improvável autocrítica com relação às ações no Irã. A partir daí, o filme salta de Teerã a Los Ange-les com fluidez enquanto acompanha os preparativos do protagonista, que ainda é obrigado a enfrentar não apenas disputas internas em sua própria agência, mas também a natureza implacável de Hollywood.

Neste sentido, Argo parece se dividir em dois filmes com atmosferas radicalmente diferentes: de um lado, há a ur-

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gência e a tensão das sequências no Irã, que lidam com as dúvidas e receios dos foragidos; de outro, a leveza e as piadas envolvendo as passagens em Los Angeles (uma di-ferença ressaltada pela boa fotografia de Rodrigo Prieto, que oscila entre a paleta dessaturada e fria de Teerã e as cores quentes e intensas da Califórnia). Aliás, é admirá-vel observar a segurança com que Ben Affleck conduz a narrativa, continuando a se solidificar como um diretor excepcionalmente talentoso ao mesmo tempo em que ex-pande seu universo, que até então se limitava a histórias ambientadas em sua Boston natal. Por outro lado, é inevi-tável que o longa perca um pouco de seu peso dramático em função do humor presente nas cenas em Hollywood, o que é uma pena.

Contando com um elenco coeso (e carregado de figuras vindas da televisão, como Bryan Cranston, Tate Dono-van, Kyle Chandler e Richard Kind, entre outros) que Affleck explora com eficiência, Argo cria uma narrativa ambiciosa e complexa ao lidar com um grande número de personagens sem criar muita confusão na mente do espectador – e é lamentável, portanto, que algumas ideias acabem sendo mal exploradas, como o óbvio alcoolismo

do protagonista ou a relação entre os personagens de Goodman e Arkin, que parecem apenas oferecer alívio cômico ao filme (algo que fazem admiravelmente bem).

Eventualmente se entregando aos exageros dramáticos que parece tão ansioso para negar,Argo tropeça também na artificialidade do clímax, que atira uma série de obstá-culos improváveis no caminho do herói apenas para acen-tuar a tensão - mas quando isto ocorre, o filme já ofereceu tantos bons momentos que se torna fácil perdoar o equí-voco de seu cada vez mais promissor realizador.

_____________________________________ Pablo Villaça é crítico de cinema desde 1994 e colaborou com publicações nacionais como ‘MovieStar’, ‘Sci-Fi News’, ‘Sci-Fi Cinema’, ‘Replicante’ e ‘Set’. Atualmente, além de diretor do Cinema em Cena, criado em 1997, é também professor de Linguagem e Crítica Cinemato-gráficas em curso ministrado em mais de dez cidades em todas as regiões brasileiras ao longo de 30 edições.

Foto: Rodrigo Prieto - www.argothemovie.warnerbros.com

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Como financiar seu filme pela internetLarissa Padron

Você sabe o que é crowdfunding? Traduzindo ao pé da le-tra, crowdfunding significa “fundo de multidão”, ou seja, é um financiamento coletivo, pessoas físicas e jurídicas doando dinheiro por alguma causa. Vulgo “vaquinha”. E por mais que esse sistema já exista há décadas, ele tem sido bastante utilizado no âmbito da internet, especial-mente a partir de 2008, quando doações online feitas por mais de um milhão de pessoas ajudaram na campanha e eleição de Barack Obama, atual presidente dos Estados Unidos.Crowdfunding também significa que você pode realizar velhos sonhos a partir do um real dos outros. Mas o que isso tem a ver com cinema? Tem a ver que para conseguir colocar na tela aquele seu velho roteiro você não precisa sair lendo editais ou procurando empresas patrocinado-ras. Claro, isso ainda é necessário dependendo do caso, mas hoje você já pode concluir seu filme usando apenas o seu Facebook.Para esta edição da coluna Que Cinema é Esse? conver-samos com Diego Reeberg, sócio-fundador do Catarse, e Bruno Beauchamps, sócio-diretor do SIBITE. Eles são responsáveis por dois dos principais sites do sistema de crowdfunding no Brasil.

Como funciona?Para inscrever um projeto nesses sites você precisa ter um plano bem estruturado do que pretende fazer com o investimento, ter uma explicação do projeto como um todo, o valor que precisa (que será a sua meta) e oferecer as contrapartidas, que é o que você oferece em troca das doações. Por exemplo, quem doar acima de R$ 20 pode ganhar um ingresso para a pré-estreia do filme; quem doar acima de R$40 ganha ingresso para a pré-estreia e mais um cartaz autografado, e por aí vai. Normalmente, quanto mais criativas as contrapartidas, maiores as chan-ces de sucesso.Para ambos os sites você também precisa criar um vídeo explicando o projeto. A partir disto, a curadoria de cada site vai avaliar o seu projeto e verificar se ele é viável, se as contrapartidas são interessantes, se o benefício é realmen-te para um projeto cultural, e não para ações individuais, e estabelecer um tempo para a meta ser atingida. Projetos

mais caros normalmente requerem um tempo maior para arrecadação.Por exemplo: se você está sem dinheiro para realizar a so-norização de seu filme e orçou o valor necessário em R$ 8 mil, você elabora uma descrição e um vídeo para explicar o seu filme como um todo, envia o vídeo para o site junto como uma justificativa de onde será aplicado o dinheiro, e o site vai definir se o projeto é viável e determinar o tempo (o que pode ser semanas, meses, um ano...) em que ele ficará disponível para doações.Os valores variam muito e podem ser doados tanto por pessoas físicas, o que é mais comum, quanto por pessoas jurídicas. No caso do SIBITE, também existe uma rede de investidores e o site realiza a mediação, podendo en-contrar uma empresa patrocinadora para o seu projeto.Com o projeto no ar, uma porcentagem do valor arreca-dado fica para o site como taxa de manutenção. No caso do Catarse, a taxa é de 7,5% do montante, mas apenas para os projetos bem sucedidos, que conseguem atingir a meta no tempo estipulado. Aqueles que não conseguem não perdem nada, pois a inscrição no site é gratuita e o dinheiro arrecadado é devolvido aos investidores nesse caso.Mas além de possibilitar o financiamento de projetos cul-turais, os sites de crowdfunding são principalmente um espaço de troca entre pessoas engajadas culturalmente. O SIBITE, por exemplo, possui uma rede social dentro do próprio site, na qual você pode entrar em contato dire-to com uma rede de investidores e ainda mobilizar mais pessoas para divulgar seu projeto. No Catarse você pode fazer login com a sua própria conta do Facebook, mas Reeberg explica que a interação pode ir mais além: “O Catarse é mesmo um espaço de trocas. O financiamento é o cerne, mas por ali rolam discussões, algumas pessoas oferecem serviços de ajuda aos realizadores, o realizador pode criar uma comunidade a partir de quem apoiou o projeto, e por aí vai”.

E como fazer funcionar?Quanto mais bem divulgado o seu projeto for, mais chan-

Foto: Google imagens (autor desconhecido)

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Panorâmica 23

ces ele terá de ser bem sucedido - e, para isso, as diversas redes sociais existentes são grandes aliadas. As redes so-ciais são tão importantes para o sistema de crowdfunding que até mesmo pelo próprio Facebook você pode montar uma página para angariar os fundos dos quais necessita. O aplicativo Mobilize foi criado especificamente para isso.Os próprios nomes dos sites dizem da essência do siste-ma de crowdfunding. “Catarse”, no dicionário, é “palavra pela qual Aristóteles designa a ‘purificação’ sentida pelos espectadores durante e após uma representação dramá-tica”. É realizar um desejo seu através da realização dos outros. Já o nome “SIBITE” vem da importância da insis-tência para realizar um projeto cultural no Brasil. Segundo Beauchamps, “Sibite é um tipo de passarinho do nordeste brasileiro, um passarinho mirrado, mas muito persistente, que não desiste nunca. Nosso movimento cultural é bem por aí também. Temos que criar uma cultura de investi-mento”.As vantagens desse método de financiamento são menos burocracia, maior facilidade de divulgação, aproximação com o público e menos risco financeiro. Mas não é só isso. Segundo Reeberg, “em geral, é caro fazer cinema. Então é muito comum um projeto entrar no site para fa-zer parte da captação só para a edição, só para a sonoriza-ção, só a montagem. Essa é uma oportunidade bem baca-na pra captar aquela grana final para o projeto acontecer, além de deixar o público mais perto. E o fato de que as pessoas podem contribuir a partir de muito pouco, né? R$10 todo mundo tem!”Beauchamps conclui: “O sistema de crowdfunding de-mocratiza o acesso dos pequenos ao mercado cultural. Quando alguém coloca um projeto numa plataforma de

crowdfunding, ele está pré-vendendo alguma coisa que ainda não saiu do papel, que não aconteceu. Isso gera um boca a boca, uma campanha na internet antes de o proje-to realmente acontecer”.

Mas... Dá mesmo certo?Em apenas um ano de funcionamento, o Catarse já teve 278 projetos finalizados, uma média de cinco por sema-na. Mais da metade desses projetos foram bem sucedidos, arrecadando ao todo R$ 1,36 milhão de mais de 15 mil pessoas, de todas as regiões do país. Cerca de 15% desse montante arrecadado foi para a área Cinema & Vídeo, a segunda mais bem sucedida no site (a primeira é Música). O projeto que mais deu certo no site é um projeto de cinema. O documentário Belo Monte – Anúncio de Uma Guerra arrecadou R$ 140 mil reais para a sua finalização.Já no SIBITE, a série de animação em rotoscopia O Men-sageiro da Galáxia foi o segundo projeto a bater sua meta no site, conseguindo mais de R$ 10 mil para fazer o seu episódio piloto. Quer saber mais se fazer um filme (ou ajudar um) com di-nheiro de vaquinha online vale a pena? Na segunda parte desta edição da coluna, você vai conhecer o lado de quem tem um projeto cadastrado em um site de crowdfunding e o de quem investe nesses projetos.________________________________________Larissa Padron escreve para a coluna ‘Que cinema é esse?’ do site Cinema em Cena – www.cinemaemcena.com.br.

Foto: Google imagens (autor desconhecido) - Fonte: httos://m

ais.al (Fest. Cinema Univ. Alagoas)

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Ensaio sobre a cegueira: Se tiver olhos veja

Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.

José Saramago.

Melissa Vassali

O escritor português José Saramago, morto em 2010, dis-se que um dia, sentado à espera do almoço, lhe veio uma dúvida à cabeça: e se ficássemos todos cegos? E tão súbita quanto a dúvida, veio a resposta: mas nós estamos todos cegos. Porque para estar cego é preciso muito menos que enxergar tudo negro.

Assim surgiu a inspiração para escrever Ensaio Sobre a Cegueira, uma de suas obras mais conhecidas, em que uma epidemia de cegueira branca se espalha incontro-lavelmente. Os primeiros contagiados são levados para quarentena em um antigo manicômio, mas mesmo assim o mal não para de se propagar, colocando à prova as bases que sustentam a civilização. Nesse mundo caótico, apenas uma mulher, esposa de um médico, ainda é capaz de en-xergar.

O próprio autor definiu essa cegueira como uma ceguei-ra da razão – não que o homem seja irracional, ao con-trário. O problema é que utiliza sua razão para destruir outros homens. Irracionais são os animais, que matam por instinto. O homem mata por prazer. Ainda que esse tenha sido o sopro de ideia que deu vida ao livro, quando lançado ao mundo as possibilidades de interpretação se abriram, como acontece como qualquer obra de arte. E assim, Ensaio Sobre a Cegueira ganhou suas dimensões políticas, sociológicas, filosóficas.

Freud disse que para o homem viver em sociedade foi ne-cessário abrir mão de seus instintos mais primitivos: a vio-

lência e o desejo sexual. E para inibir esses instintos, criou o sentimento de culpa. É possível fazer um paralelo com o livro: quando a humanidade perde a visão (um possível mecanismo regulador do sentimento de culpa), logo os dois instintos já mencionados afloram. Mas o livro tam-bém fala sobre medo, sobre dominação e poder, enfim, o leque é infinito. O leitor parece receber um material bruto e precisa tirar dele suas próprias conclusões.

A adaptação dirigida por Fernando Meirelles (2008) é ex-tremamente fiel ao livro. Não que a fidelidade ao original seja algo realmente importante, muitas vezes as adapta-ções ganham quando vão em direção oposta. Mas no caso de Ensaio Sobre a Cegueira, que se propõe a ser justa-mente isso, um ensaio, um tratado sobre a condição hu-mana, o filme cresce ao expor os fatos exatamente como são narrados.

Se durante o filme recebemos tantas informações que fica até difícil pensar, ao final a reflexão é inevitável. Meirelles não tenta encontrar explicações para o inexplicável e abre um espaço para que o público se questione. É possível dividir o filme em três partes: um prólogo, que mostra como os principais personagens ficam cegos; as sequên-cias no manicômio e a parte final, quando os cegos ga-nham as ruas. Na abertura, quando o primeiro homem fica cego, é interessante observar as luzes do semáforo, que são enquadradas e se apagam como olhos que deixam de ver.

A já tão comentada fotografia superexposta, os enqua-dramentos tortos e as imagens desfocadas, usados para retratar nas telas a cegueira branca, são destaques do fil-me. Mas outros recursos ajudam a mostrar os horrores desse mundo caótico, uma iluminação fria, a direção de arte também em tons frios, sobretudo durante as cenas do manicômio.

Assim como no livro, os personagens não têm nomes. São identificados por suas condições: o médico, a mulher do médico, o velho da venda preta, etc. Isso, somado à

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violência da história, é sempre um risco, pois atrapalha a identificação do público com os personagens. O próprio diretor reconhece que precisou fazer algumas concessões nas cenas de estupro, por exemplo. Mas quando se assiste ao filme, não dá para imaginar que elas ainda poderiam ser mais violentas. Se já é difícil lidar com toda essa in-tensidade no livro, nas telas os horrores crescem expo-nencialmente.

Quando José Saramago assistiu ao filme, disse que final-mente pôde conhecer os rostos de seus personagens. E a escolha dos atores, cada um representando uma etnia diferente, mostra que o mal de que a história fala é um mal de toda a humanidade.

Certamente, Ensaio Sobre a Cegueira não é um filme para ser assistido num sábado à noite. Ou talvez seja, mas é preciso estar preparado psicologicamente. Quem estiver preparado, que veja e repare.

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A telenovela e o imaginárioA influência transformadora de “Avenida Brasil”

Fina Tranquilin

Ao se analisar qualquer produto de TV é sempre necessário levar em conta que os receptores são ati-vos, independe de qualquer classificação social como geração, faixa etária, grau de escolaridade ou de nível econômico. Estamos falan-do de seres humanos, portanto de gente que pensa, age, sonha, deseja e ra-ciocina – por mais que isso desiluda aqueles que acreditam que quanto menos favorecidos economicamente os indivíduos são, menos serão sujeitos de sua própria história e da história social. Portanto, estou aqui deixando claro que não compartilho da ideia de manipulação de forma alguma, principalmente a manipulação advinda da indústria cultural, como afirma a Escola de Frank-furt, por mais que o produtor a deseje.

Outra coisa que precisa ficar muito clara quando analisamos a recepção é que os produtos culturais, como a telenovela, vêm ao encontro daquilo que somos como seres humanos: Somos 100% natureza e 100% cultura ao mesmo tem-po, o que significa dizer que a relação existente entre nosso cérebro complexo e a realidade que vivemos é sempre caótica, pois a cultura existe para impedir, regrar, normatizar a nossa natureza Sapien-Demens – como bem analisa Mo-rin. Não podemos esquecer que o ser humano é o único animal que mata por prazer, assim como salva pelo mesmo motivo.

Ao analisar o impacto da telenovela “Avenida Brasil”, pensando na recepção podemos dizer que foi uma telenovela que se aproximou da camada popular de forma maravilhosamente bem, ou seja, o núcleo rico, normalmente muito forte em telenovelas – como podemos ver em Salve Jorge – foi minimizado no folhetim, e o que ganhou força foi o núcleo da camada popular. Isso pode ser analisado tanto pelo olhar na produção quanto pela recepção. Vou trabalhar aqui somente o da recepção. Ainda assim, essa análise poderia ser elaborada por vários aspectos, mas vou trabalhar aqui, somente dois deles: Os mecanis-mos de identificação e projeção existentes no imaginário humano.

A proximidade com o modo de vida das camadas populares gerou uma grande identificação com os indivíduos a ela pertencentes, aliás, o grande público da rede Globo hoje são as classes C e D. De qual identificação estou falando? Daquela que faz parte dos nossos mecanismos imaginários. O mecanismo de identificação faz com os indivíduos incorporem o meio ambiente no seu pró-prio eu e o integrem afetivamente. Dessa forma, ao se identificar com as per-sonagens (Nina, por exemplo), com as relações que se dão nos determinados ambientes sociais (como as refeições na casa do Tufão), com os estilos de vida (as relações no Divino), com o figurino (Suelen, Muricy etc.), com a música, enfim, os receptores trazem esses elementos identificatórios para a vida real e para seu próprio imaginário, e isso faz com que todos queiram acompanhar a telenovela, que queriam postar elementos da narrativa nas redes sociais, que

consumam os produtos que as personagens con-somem etc. E por que a identificação foi tão pro-funda? Porque os elementos culturais e imaginá-rios presentes na narrativa de “Avenida Brasil” são muito próximos da vivência real e imaginária dos receptores das camadas populares – não somente delas, pois independente da classe social, os bra-sileiros sabem que o Brasil é o pais da diversidade cultural, da desigualdade social, mas também da alegria contagiante, da sensualidade etc.

Outro ingrediente que levou à grande audiência pode-se dizer que foi o mecanismo imaginário de projeção. A projeção é um processo universal (existe em toda a espécie humana) e multiforme (se manifesta de várias maneiras). As nossas ne-cessidades, aspirações, desejos, obsessões, receios individuais, projetam-se, não só nos nossos so-nhos e imaginação, mas também sobre todas as coisas e todos os seres – as projeções imaginárias estão ligadas àquelas coisas que normalmente são proibidas socialmente de acontecer e por isso são reprimidas pela nossa natureza. Quem de nós não sente vontade de fazer muitas coisas que a Carmi-nha fez? E a Nina, quem não gostaria de planejar uma vingança como a que ela planejou? Que ho-mem não gostaria de ter o físico do Leleco, com aquela idade e ainda ter duas mulheres lindas, sendo uma delas bem jovem? Poderíamos dizer que imaginariamente muitos possuem essa von-tade, mas quase tudo isso é moralmente proibido – alias, é bom que o seja. Quando admiramos uma personagem e seus atos ilícitos passamos a nos projetar imaginariamente, ou seja, a personagem faz por nós aquilo que não podemos fazer e isso nos dá prazer, alivia as nossas tensões e, assim, passamos a admirá-la e, obviamente, que isso am-plia a audiência dos produtos culturais. Por isso que no caso de “Avenida Brasil”, a vilã (Carmi-nha), o cafajeste (Cadinho) e a vulgar (Suelen) passam a ser também amados quando deveriam ser odiados pelos receptores.

Não devemos esquecer nunca que qualquer o consumo, e principalmente o consumo cultural, é sempre uma troca instigante e interessante entre Natureza e Cultura._____________________________

Fina Tranquilin é graduada em Ciências Sociais pela PUC-SP, onde também realizou mestrado e doutorado em Antropologia. É pesquisadora de grupos vinculados ao CNPQ e ao Observatório Ibero Americano de Teledramaturgia e docente em Sociologia e Pesquisa no Ceunsp.

Imagem: Google (autor desconhecido)

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