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A10 DOMINGO, 5 DE JULHO DE 2015 O ESTADO DE S. PAULO Internacional Rumo à presidência Republicanos lotam e dispersam disputa por vaga nos EUA. Pág. A15 Microcosmo Vídeo. Veja vídeo sobre a Curva do Diabo, na Bolívia BUENOS AIRES J orge nasceu em uma ca- sa alugada pela família Bergoglio no número 268 da Rua Varela, bairro de Flores, saída oeste de Buenos Aires, em 1936. Na região em que ficou conhecido como um perna de pau para o fute- bol, havia sítios misturados àsprimeiras casas. Multiplica- vam-se imigrantes atraídos por emprego, essencialmen- te espanhóis e italianos, como seus pais, Mario e Regina. Nas décadas seguintes, ju- deus, paraguaios, bolivianos e peruanos encorparam a área de classe média, na qual hoje came- lôs africanos vendem relógios e cintos falsos. Se a pregação de tolerância e respeito à mistura cultural e religiosa característi- ca de Francisco tem origem em sua infância, o DNA de Flores é o responsável. Moradores lem- bram que a região melhorou quando Bergoglio estava nas zo- nas mais pobres e incentivava os chamados “curas villeros”, pa- dres envolvidos diretamente com os mais pobres. O curioso é que a região evo- luiu também quando Bergoglio a abandonou repentinamente. Desde que adotou o nome Fran- cisco, ele não voltou ao país. Sabe doqueaconteceemFlorestelefo- nando do Vaticano, principal- mente para o pároco da Basílica de San José, que frequentava quando criança. Surpreendeu-se ao saber que agora há turistas en- treascasasdeclassemédiaeruas de paralelepípedo. “Não acredi- tou quando disseram que vinha gente de outros países ver onde tinha nascido, jogado bola, estu- dado”, afirma o guia Daniel Vega, que por duas horas faz o roteiro por Flores,às quintas-feiras,às 15 horas. Nas últimas semanas, jor- nalistas equatorianos e bolivia- nos estavam entre os turistas. Os visitantes atraíram mais policiamento e estabelecimen- tos comerciais tentam se equili- brar entre a homenagem ao vizi- nho e o lucro com a fé alheia. Em geral, limitam-se a imagens de Francisco nas vitrines, mas há inovadores. A cinco quadras da casa em que nasceu Francisco, fica a Habemus Pizza & Pasta. “Es- tamos em Flores e tínhamos que dar um nome. Os clien- tes acham engraçado”, diz um dos donos, Federico Ho- chmam, de 40 años. Referên- cia à expressão em latim dita quando a fumaça branca anuncia um novo pontífice, “habemus papa”, o letreiro é alvo comum das câmaras. Outros são a casa em que nasceu, o colégio primário, a residência em que cresceu e a pracinha onde jogava bola antes dizer à mãe que seria médico. Indagado por ela anos depois sobre as bíblias no quarto, corrigiu-se. “Serei médico de almas”, disse à mãe, segundo Vega. / R.C. estadao.com.br/e/CurvadoDiabo Papa da periferia, Francisco começa viagem a Equador, Bolívia e Paraguai RODRIGO CAVALHEIRO/ESTADÃO NA WEB VISITA PAPAL. Entre os pobres NO BAIRRO NATAL, OS VALORES DE JORGITO Flores tem diferenças econômicas e culturais Rodrigo Cavalheiro ENVIADO ESPECIAL / QUITO A afeição do papa Francisco por lugares fora do eixo do po- der e do conforto, cultivada desde quando era só Jorge Bergoglio nas áreas miserá- veis de Buenos Aires, estará à vista a partir de hoje no Equa- dor, primeira parada de sua visita de 166 horas à América Latina. Aos 78 anos, o primei- ro papa jesuíta escolheu ain- da visitar Bolívia e Paraguai em uma viagem de oito dias, sete voos e 22 discursos. EspecialistasligadosaFrancis- coidentificamumroteiroemsin- tonia com os movimentos con- cretos e simbólicos que ele fez até agora. Desde o começo de seu papado, em março de 2013, arrastou milhares de turistas, bem como o olhar de telespecta- dores,ouvinteseleitores,parare- giões associadas à miséria, seja ela material ou espiritual. Esta é sua nona viagem internacional – a primeira, ao Brasil, em 2013, fa- zia parte da agenda de Bento 16. “Francisco faz uma clara op- ção pela periferia. Não esqueça- mos que ele foi a Albânia, Bós- nia, Lampedusa e Filipinas”, dis- se ao Estado, de Roma, Sergio Rubin, coautor da biografia El Jesuita, antes de embarcar com Francisco no voo de 13 horas pa- ra o Equador, onde chegaria na manhã de hoje. Os dois primei- ros países citados por Rubin pas- saram por guerra na divisão da Iugoslávia. A Ilha de Lampedu- sa, ao sul da Itália, é destino dos imigrantes que escapam de con- flitos no Norte da África. Atingi- dos pelo Tufão Hayan em de- zembro de 2013, os filipinos con- taram 5 mil mortos. “O papa aposta em uma geo- política da periferia emergente. Equador, Bolívia e Paraguai são países com passado de guerra com vizinhos, estigmatizados como perdedores de território. São lugares com instituições vo- láteis no passado, mas com cres- cimento recente e certa estabili- dade”, avalia Andrés Beltramo, jornalista argentino autor de La Reforma en Marcha que convi- via com o cardeal Bergoglio. Embora vá cumprir compro- missos de chefe de Estado em gabinetes, Francisco impôs áreas marginais no roteiro, o que de alguma maneira sur- preendeu os próprios anfitriões. Equatorianos ainda ontem fa- ziam mutirão para limpar ruas e aparar a grama das calçadas por onde passará o pontífice. Na Bolívia, ele irá a Palmaso- la, uma das prisões mais violen- tas do continente, reformada em parte com dinheiro dos pró- prios detentos. Em Santa Cruz, onde fica a prisão, haverá lei se- ca. No trajeto de La Paz a El Al- to, onde está o aeroporto, operá- rios tiraram esta semana oferen- das rituais do caminho de um papa criticado pela ala conserva- dora do catolicismo argentino por estimular o convívio com outras crenças. No Paraguai, Francisco irá ao Bañado Norte, uma das áreas mais miseráveis de Assunção, onde o pavimento das ruas recebe reforço. Raiz. Outra conexão entre os três países é a representativida- de da população de origem indí- gena. As missões erguidas na América do Sul pelos jesuítas fo- ram alvo predileto de estudo de Bergoglio. “O papa fala da inte- gração dos povos, defende o res- peito das diferenças. Toda vez que encontrou povos originá- rios, falou de um Deus como uma força, não o Deus católi- co”, diz Federico Wals, que foi secretário de Bergoglio em Bue- nos Aires durante seis anos e co- nhece seus hábitos. “Ele não usa computador, não tem celu- lar e não olha TV, por uma pro- messa nos anos 90, mas sabe que são tecnologias podero- sas”, afirma, ressaltando o uso dessas ferramentas por reli- giões para as quais o Vaticano perdeu seguidores. “Não está er- rado dizer que o crescimento evangélico nesses países preo- cupou. É paradoxal, pois a Igre- ja Católica, que se caracteriza pela palavra, estava perdendo fiéis – por não poder se comuni- car – para grupos evangélicos que utilizam todos os meios de comunicação”, avalia Wals. A América Latina tem 42% dos católicos do mundo, segundo o Vaticano. Uma pesquisa de 2013 do Pew Research coloca o Para- guai como o país latino-america- no que mais se identifica como tal (89%). No Equador o porcen- tual é de 79% e na Bolívia, de 77%. O Brasil é o 12.º, com 61%, embora seja a maior nação cató- lica – 163 milhões. Na Argentina, o grupo Haga- mos Lío (façamos bagunça, em tradução livre), liderado por um sobrinhodeBergoglio,tentatrans- formaressafrase,ditaporFrancis- co, em prática, com distribuição deroupaecomida.“Elequerespa- lhar esse espírito de ação para o continente. Sua mensagem é pro- vocadora”, avalia Beltramo. Isso não significa revisar dogmas. Francisco tem prevista uma reunião com um representante da comunidade gay no Paraguai, mas não há sinais de que se apro- xima uma aceitação do matrimô- nio homossexual. Essa foi a ra- zão de uma briga violenta do en- tão arcebispo Bergoglio com os Kirchners na aprovação da lei ar- gentina em 2010. “Sua visão é nãojulgar, mas ele considera ma- trimônio a união entre homem e mulher”, diz Beltramo, para quem o papa equilibra o cerne conservador da instituição com um viés revolucionário. “Só após dois anos ele foi aos EUA. Na França, ficou poucas horas. São sinais. Isso sem con- tar a nomeação de cardeais de países fora do centro de poder no último consistório. Com mais duas reuniões de cardeais como essa, ele moldará a Igreja a sua própria visão”, prevê Wals. Com chegada de pontífice a Quito, hoje, jesuíta confirma predileção por lugares fora do eixo do poder e do conforto – após ter ido a locais como Albânia, Bósnia, Lampedusa e Filipinas; no giro pela América Latina, o líder religioso de 78 anos deve fazer 7 voos e 22 discursos A Igreja e a tradição pagã. Pág.12 } Origens. Bairro de Flores, onde o papa nasceu e cresceu Preparação. Lojas de La Paz mostram imagens do papa Francisco: líder católico visita Bolívia, Equador e Paraguai DAVID MERCADO/REUTERS-1/6/2015 PAPA NA AMÉRICA DO SUL INFOGRÁFICO/ESTADÃO/GN Equador 1 População Católicos População indígena Duração da visita IDH 15,7 milhões 74% (12 milhões) 7% 69 horas 0,724 (2014) Bolívia 2 População Católicos População indígena Duração da visita IDH 10,6 milhões 77% (8 milhões) 20% 45 horas 0,675 (2014) Paraguai 3 População Católicos População indígena Duração da visita IDH 6,7 milhões 90% (6 milhões) 2% 52 horas 0,669 (2014) Destaques da viagem: Brasil Quito La Paz Assunção 1 2 3 Pontífice viaja por Equador, Bolívia e Paraguai e passará 166 horas nos 3 países 5 de julho: Chega em Quito, Equador 6 de julho: Vai ao santuário em Guayaquil. Celebra uma missa no parque Los Samanes. Visita o presidente Rafael Correa no Palácio Carondelet, em Quito 7 de julho: Celebra uma missa no Parque Bicentennial, em Quito 8 de julho: Voa para a Bolívia. Se reúne com o presidente Evo Morales no Palácio do Governo em La Paz 9 de julho: Celebra uma missa na Praça Cristo Redentor em Santa Cruz 10 de julho: Visita a prisão Palmasola, em Santa Cruz. Viaja para Assunção, Paraguai, e visita o presidente Horacio Cartes no Palácio Lopez 11 de julho: Vai ao hospital pediátrico Niños de Acosta Ñu, em Assunção 12 de julho: Visita a Catedral de São João Batista no povoado de Bañado Norte. Celebra uma missa aberta no Parque Ñu Guazu, em Assunção. Retorna para Roma

Papadaperiferia,Franciscocomeça viagemaEquador ......Igreja do que dentro dela. OpapaFranciscoé assimtão progressista? Ele não vem do primeiro mundo,dessatradiçãoprinci-pescaedalinguagemteológi-ca

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A10 DOMINGO, 5 DE JULHO DE 2015 O ESTADO DE S. PAULO

Internacional Rumo à presidênciaRepublicanos lotam edispersam disputa porvaga nos EUA. Pág. A15

Microcosmo

Vídeo. Veja vídeosobre a Curva doDiabo, na Bolívia

BUENOS AIRES

J orge nasceu em uma ca-sa alugada pela famíliaBergoglio no número

268 da Rua Varela, bairro deFlores, saída oeste de BuenosAires, em 1936. Na região emque ficou conhecido comoum perna de pau para o fute-bol, havia sítios misturadosàsprimeiras casas.Multiplica-vam-se imigrantes atraídospor emprego, essencialmen-

te espanhóis e italianos, comoseus pais, Mario e Regina.

Nas décadas seguintes, ju-deus, paraguaios, bolivianos eperuanos encorparam a área declasse média, na qual hoje came-lôs africanos vendem relógios ecintos falsos. Se a pregação detolerância e respeito à misturacultural e religiosa característi-ca de Francisco tem origem emsua infância, o DNA de Flores éo responsável. Moradores lem-bram que a região melhorou

quando Bergoglio estava nas zo-nas mais pobres e incentivava oschamados “curas villeros”, pa-dres envolvidos diretamentecom os mais pobres.

O curioso é que a região evo-luiu também quando Bergoglio aabandonou repentinamente.Desde que adotou o nome Fran-cisco,elenão voltou aopaís. SabedoqueaconteceemFlorestelefo-nando do Vaticano, principal-mente para o pároco da Basílicade San José, que frequentavaquando criança. Surpreendeu-seao saber que agora há turistas en-treascasasdeclassemédiae ruasde paralelepípedo. “Não acredi-tou quando disseram que vinhagente de outros países ver ondetinha nascido, jogado bola, estu-dado”, afirma o guia Daniel Vega,que por duas horas faz o roteiro

porFlores,àsquintas-feiras,às15horas. Nas últimas semanas, jor-nalistas equatorianos e bolivia-nos estavam entre os turistas.

Os visitantes atraíram maispoliciamento e estabelecimen-

tos comerciais tentam se equili-brar entre a homenagem ao vizi-nho e o lucro com a fé alheia.Em geral, limitam-se a imagensde Francisco nas vitrines, mashá inovadores.

A cinco quadras da casa emque nasceu Francisco, fica aHabemus Pizza & Pasta. “Es-tamos em Flores e tínhamosque dar um nome. Os clien-tes acham engraçado”, dizum dos donos, Federico Ho-chmam, de 40 años. Referên-cia à expressão em latim ditaquando a fumaça brancaanuncia um novo pontífice,“habemus papa”, o letreiro éalvo comum das câmaras.

Outros são a casa em quenasceu, o colégio primário, aresidência em que cresceu ea pracinha onde jogava bolaantes dizer à mãe que seriamédico. Indagado por elaanos depois sobre as bíbliasno quarto, corrigiu-se. “Sereimédico de almas”, disse àmãe, segundo Vega. / R.C.

estadao.com.br/e/CurvadoDiabo

Papa da periferia, Francisco começaviagem a Equador, Bolívia e Paraguai

RODRIGO CAVALHEIRO/ESTADÃO

NA WEB

VISITA PAPAL. Entre os pobres

NO BAIRRO NATAL, OSVALORES DE JORGITOFlores tem diferenças econômicas e culturais

Rodrigo CavalheiroENVIADO ESPECIAL / QUITO

A afeição do papa Franciscopor lugares fora do eixo do po-der e do conforto, cultivadadesde quando era só JorgeBergoglio nas áreas miserá-veis de Buenos Aires, estará àvista a partir de hoje no Equa-dor, primeira parada de suavisita de 166 horas à AméricaLatina. Aos 78 anos, o primei-ro papa jesuíta escolheu ain-da visitar Bolívia e Paraguaiem uma viagem de oito dias,sete voos e 22 discursos.

EspecialistasligadosaFrancis-coidentificamumroteiroemsin-tonia com os movimentos con-cretos e simbólicos que ele fezaté agora. Desde o começo deseu papado, em março de 2013,arrastou milhares de turistas,bem como o olhar de telespecta-dores,ouvinteseleitores,parare-giões associadas à miséria, sejaela material ou espiritual. Esta ésua nona viagem internacional –a primeira, ao Brasil, em 2013, fa-zia parte da agenda de Bento 16.

“Francisco faz uma clara op-ção pela periferia. Não esqueça-mos que ele foi a Albânia, Bós-nia, Lampedusa e Filipinas”, dis-se ao Estado, de Roma, SergioRubin, coautor da biografia ElJesuita, antes de embarcar comFrancisco no voo de 13 horas pa-ra o Equador, onde chegaria namanhã de hoje. Os dois primei-ros países citados por Rubin pas-saram por guerra na divisão daIugoslávia. A Ilha de Lampedu-sa, ao sul da Itália, é destino dosimigrantes que escapam de con-flitos no Norte da África. Atingi-dos pelo Tufão Hayan em de-zembro de 2013, os filipinos con-taram 5 mil mortos.

“O papa aposta em uma geo-política da periferia emergente.Equador, Bolívia e Paraguai sãopaíses com passado de guerracom vizinhos, estigmatizadoscomo perdedores de território.São lugares com instituições vo-láteis no passado, mas com cres-cimento recente e certa estabili-dade”, avalia Andrés Beltramo,jornalista argentino autor de LaReforma en Marcha que convi-via com o cardeal Bergoglio.

Embora vá cumprir compro-

missos de chefe de Estado emgabinetes, Francisco impôsáreas marginais no roteiro, oque de alguma maneira sur-preendeu os própriosanfitriões.Equatorianos ainda ontem fa-ziam mutirão para limpar ruas eaparar a grama das calçadas poronde passará o pontífice.

Na Bolívia, ele irá a Palmaso-la, uma das prisões mais violen-tas do continente, reformadaem parte com dinheiro dos pró-prios detentos. Em Santa Cruz,onde fica a prisão, haverá lei se-ca. No trajeto de La Paz a El Al-to, onde está o aeroporto, operá-rios tiraram esta semana oferen-das rituais do caminho de umpapa criticado pela ala conserva-dora do catolicismo argentinopor estimular o convívio comoutras crenças. No Paraguai,Francisco irá ao Bañado Norte,uma das áreas mais miseráveisde Assunção, onde o pavimentodas ruas recebe reforço.

Raiz. Outra conexão entre ostrês países é a representativida-de da população de origem indí-gena. As missões erguidas naAmérica do Sul pelos jesuítas fo-ram alvo predileto de estudo deBergoglio. “O papa fala da inte-gração dos povos, defende o res-peito das diferenças. Toda vezque encontrou povos originá-rios, falou de um Deus comouma força, não o Deus católi-co”, diz Federico Wals, que foisecretário de Bergoglio em Bue-nos Aires durante seis anos e co-nhece seus hábitos. “Ele nãousa computador, não tem celu-lar e não olha TV, por uma pro-messa nos anos 90, mas sabeque são tecnologias podero-sas”, afirma, ressaltando o usodessas ferramentas por reli-giões para as quais o Vaticanoperdeu seguidores. “Não está er-rado dizer que o crescimentoevangélico nesses países preo-cupou. É paradoxal, pois a Igre-ja Católica, que se caracterizapela palavra, estava perdendofiéis – por não poder se comuni-car – para grupos evangélicosque utilizam todos os meios decomunicação”, avalia Wals.

A América Latina tem 42% doscatólicos do mundo, segundo oVaticano. Uma pesquisa de 2013do Pew Research coloca o Para-guaicomo opaís latino-america-no que mais se identifica comotal(89%). No Equadoro porcen-tual é de 79% e na Bolívia, de77%. O Brasil é o 12.º, com 61%,embora seja a maior nação cató-lica – 163 milhões.

Na Argentina, o grupo Haga-

mos Lío (façamos bagunça, emtradução livre), liderado por umsobrinhodeBergoglio,tentatrans-formaressafrase,ditaporFrancis-co, em prática, com distribuiçãoderoupaecomida.“Elequerespa-lhar esse espírito de ação para ocontinente. Sua mensagem é pro-vocadora”, avalia Beltramo. Issonão significa revisar dogmas.

Francisco tem prevista umareunião com um representanteda comunidade gay no Paraguai,mas não há sinais de que se apro-ximaumaaceitaçãodo matrimô-nio homossexual. Essa foi a ra-zão de uma briga violenta do en-tão arcebispo Bergoglio com osKirchners na aprovação da leiar-gentina em 2010. “Sua visão énãojulgar, maseleconsidera ma-trimônio a união entre homem emulher”, diz Beltramo, paraquem o papa equilibra o cerneconservador da instituição comum viés revolucionário.

“Só após dois anos ele foi aosEUA. Na França, ficou poucashoras. São sinais. Isso sem con-tar a nomeação de cardeais depaíses fora do centro de poderno último consistório. Commais duas reuniões de cardeaiscomo essa, ele moldará a Igreja asua própria visão”, prevê Wals.

Com chegada de pontífice a Quito, hoje, jesuíta confirma predileção por lugares fora do eixo do poder e do conforto – após ter ido a locaiscomo Albânia, Bósnia, Lampedusa e Filipinas; no giro pela América Latina, o líder religioso de 78 anos deve fazer 7 voos e 22 discursos

A Igreja e a tradição pagã. Pág.12 }

Origens. Bairro de Flores, onde o papa nasceu e cresceu

Preparação. Lojas de La Paz mostram imagens do papa Francisco: líder católico visita Bolívia, Equador e Paraguai

DAVID MERCADO/REUTERS-1/6/2015

PAPA NA AMÉRICA DO SUL

INFOGRÁFICO/ESTADÃO/GN

Equador1População

Católicos

População indígena

Duração da visita

IDH

15,7 milhões

74% (12 milhões)

7%

69 horas

0,724 (2014)

Bolívia2População

Católicos

População indígena

Duração da visita

IDH

10,6 milhões

77% (8 milhões)

20%

45 horas

0,675 (2014)

Paraguai3População

Católicos

População indígena

Duração da visita

IDH

6,7 milhões

90% (6 milhões)

2%

52 horas

0,669 (2014)

Destaques da viagem:

Brasil

Quito

La Paz

Assunção

1

2

3

● Pontífice viaja por Equador, Bolívia e Paraguai e passará 166 horas nos 3 países

● 5 de julho: Chega em Quito, Equador

● 6 de julho: Vai ao santuário em Guayaquil. Celebra uma missa no parque Los Samanes.Visita o presidente Rafael Correa no Palácio Carondelet, em Quito

● 7 de julho: Celebra uma missa no Parque Bicentennial, em Quito

● 8 de julho: Voa para a Bolívia. Se reúne com o presidente Evo Morales no Palácio do Governo em La Paz

● 9 de julho: Celebra uma missa na Praça Cristo Redentor em Santa Cruz

● 10 de julho: Visita a prisão Palmasola, em Santa Cruz. Viaja para Assunção, Paraguai, e visita o presidente Horacio Cartes no Palácio Lopez

● 11 de julho: Vai ao hospital pediátrico Niños de Acosta Ñu, em Assunção

● 12 de julho: Visita a Catedral de São João Batista no povoado de Bañado Norte. Celebra uma missa aberta no Parque Ñu Guazu, em Assunção.Retorna para Roma

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A8 SEGUNDA-FEIRA, 6 DE JULHO DE 2015 O ESTADO DE S. PAULO

Internacional Negociação nuclearKerry diz que houveavanços, mas ainda hádificuldades. Pág. A10

Vídeo. Conheça olocal onde nasceuo papa Francisco

QUITO

Ex-deputado da Alianza País,grupo que mantém há oitoanos Rafael Correa no poder,Fernando Vega é uma das vo-zes que busca a moderação emum país que tende à polariza-ção. Ordenado em 1973, ele foidiretor da Pastoral Social deCuenca, no centro do país, du-rante 16 anos. Hoje é pesquisa-dor da universidade local.

● Como a chegada do papa Fran-cisco ao Equador está ligada àcrise pela qual passa o governodo presidente Rafael Correa?De várias formas. Correa temdestacado a necessidade de dis-tribuição de renda, em conso-nância com o papa, mas escon-de o que tornou Francisco ain-

da mais famoso ultimamente,a encíclica em que defendeuma nova ordem ecológica.

● Os protestos contra o presiden-te crescem, depois de ele tentaraprovar leis com taxação sobreherança e lucros. Não são temasmuito específicos para colocarum governo em problemas?Essas leis foram a gota que en-cheu o copo, após anos de me-didas autoritárias. O ambienteestá muito polarizado. O regi-me tenta capitalizar a passa-gem do papa conforme seus in-teresses. A oposição mais à di-reita, por sua vez, aderiu a umacausa ecológica que nunca foisua também para usar politica-mente a passagem dele.

● A Igreja pode ser um media-dor?Quando a Igreja se afastou daTeologia da Libertação, umdos reflexos foi abandonarem certa medida a causa daigualdade social e focar em te-mas familiares. A Igreja nãotocou em temas contemporâ-

neos e por isso a figura papalagora é usada. A Igreja local étão despreparada que o sonhode bispos equatorianos não édiscutir ideias, mas “pegar namão de Francisco”. Isso fez afigura do papa cair nas mãosdos políticos, que são os gran-des protagonistas de sua passa-gem por aqui. São o presidenteCorrea e os prefeitos de Quitoe Guayaquil (a capital econô-mica do país, onde Franciscoreza sua primeira missa noEquador hoje de manhã), estesda oposição, que descarada-mente querem usar a visita emseu favor.

● Correa seria capaz de escutaro papa sobre uma nova maneirade tratar presos e perseguidospolíticos?O papa sempre prega o diálo-go, mas Correa só conversacom ele mesmo. Ele cria umdiscurso, repetido por seus mi-nistros até o infinito e usa umapublicidade oficial que entraem meio à programação e con-segue irritar quase todos.

● A que se deve sua queda depopularidade?Seu governo é ambíguo, comelementos sociais interessan-tes, que melhoraram a vida demuitos. Mas a estrutura de fun-do não foi tocada. O governofoi financiado por extração mi-neral e petróleo. Com dinheiroem caixa, sacrificou todo o res-tante.

● Em que medida isso é reversí-vel?O Estado, para Correa, já temum estilo monárquico. Não háuma desinstitucionalização.Há uma nova institucionaliza-ção feita por decreto, contra oespírito da Constituição, queatinge o Congresso, a Justiça ea imprensa.

● Há tendência de mudança napróxima eleição, em 2017?Não sou otimista. Há um pac-to tácito entre Correa e a direi-ta para que não surja uma ter-ceira via que aproveite o queele fez de bom no início e de-volva ao país a separação de po-deres. Aos dois grupos convéma polarização.

● A encíclica sobre meio ambien-te pode mudar essa mentalida-de?Deve ter mais efeito fora daIgreja do que dentro dela.

● O papa Francisco é assim tãoprogressista?Ele não vem do primeiromundo, dessa tradição princi-pesca e da linguagem teológi-ca. É um homem de ação. Fa-la do cotidiano, se conecta

muito facilmente e se movi-menta como um líder, comtraços de uma estrela midiáti-ca. Mas não se espera que elevenha mudar dogmas que elemesmo sempre defendeu. /

R.C.

estadao.com.br/e/bairrodopapa

No Equador, papa Francisco pede odiálogo e participações sem exclusão

ENTREVISTA

NA WEB

DIVULGAÇÃO

‘Correa se aproxima de umestilo de governo monárquico’

RODRIGO BUENDIA/AFP

Fernando Vega, ex-deputado correista e professor da Universidade de Cuenca

Rodrigo CavalheiroENVIADO ESPECIAL / QUITO

O papa Francisco chegou às14h44 de ontem ao Equador efoi recebido pelo presidenteRafael Correa, um anfitriãopressionado por protestos ca-da vez mais amplos e a popula-ridade mais baixa de seus oi-to anos no poder. Indireta-mente, a própria visita dopontífice alimentou a polari-zação local. Entre as primei-ra palavras do pontífice este-ve um pedido por diálogo.

Correa é acusado pela oposi-ção de tirar de contexto frasespapais sobre desigualdade so-cial e usá-las para impor proje-tos de taxação a heranças e aolucro que motivaram manifesta-ções na semana passada e termi-naram em confronto. Pela pri-meira vez, o presidente, apesarde dominar o Congresso e a Jus-tiça, recuou diante da repercus-são internacional.

Segundo o movimento con-trário ao líder equatoriano, Cor-rea cita o papa no que lhe con-vém, mas ignora a encíclica de18 de junho, em que Franciscoalertou para a destruição do pla-neta. O governo equatoriano é

financiado pela exploração depetróleo e minérios, uma das ra-zões para o distanciamento deCorrea dos indígenas, 7% da po-pulação do país.

Após descer do avião, sem osolidéu levado pelo vento assimque colocou o rosto para fora,Francisco foi cumprimentadopor integrantes do governo na-cional e de Quito, que pertenceà oposição. Seu primeiro mila-gre, ironizaram alguns, foi colo-car os políticos lado a lado.

Após citar alguns santos doEquador, o papa chamou o paísa “enfrentar os desafios atuaisvalorizando as diferenças, fo-mentando o diálogo e a partici-pação sem exclusões para queas conquistas que se estão ob-tendo garantam um futuro me-lhor para todos”. Ele asseguroua Correa que, para isso, “poderácontar com o compromisso e acolaboração da Igreja”.

Em seu discurso de boas-vin-das, Correa primeiro brincou:“O papa pode ser argentino, apresidente Dilma Rousseff cos-tuma dizer que Deus é brasilei-ro, mas asseguro que o paraísoestá no Equador”. Logo, salien-tou que seu país “protege a vidadesde a concepção”, uma men-sagem contra o aborto, e dedi-cou a maior parte de sua fala jus-tamente à defesa da igualdadesocial. “Sua Santidade nos disseque a política não deve se sub-meter à economia. Citou quequalquer propriedade privadadeve ter função social”, afir-mou Correa.

Ciente da divisão local e doefeito político de sua visita – naúltima semana, a Organizaçãodos Estados Americanos(OEA) pediu formalmente queFrancisco mediasse o conflito –o papa agradeceu tantas men-ções a textos seus. “A desigual-dade é realmente um problemade toda a América Latina. Esta-mos em consonância em mui-tas coisas”, afirmou o pontífice,antes de começar o trajeto paraa Nunciatura Apostólica, nocentro de Quito, onde passou anoite.

Milhares de equatorianos es-peravam sob chuva esparsa etemperatura de 22ºC em estra-das e ruas ver um papa, 30 anosapós a visita de João Paulo II. Aameaça de marchas política nãose concretizou, na medida emque governo e oposição se com-prometeram com uma trégua.Ainda assim, grupos com faixascontra Correa estiveram na ro-ta papal.

Um deles se referia à explora-ção desregulada do Arquipéla-go de Galápagos. Entre seus in-tegrantes, estava um dos líde-res dos protestos iniciados emjunho, Milton Castillo. “Soucrente, convencido da doutrinada Igreja e admirador da simpli-cidade do papa. As manifesta-

ções opositoras são resultadodesse cansaço com a corrupçãoe a detenção de presos políti-cos, pelo menos dez. Persegui-dos por pensar diferente são cer-ca de 200”, reclamou Castillo,advogado que chegou a concor-rer à prefeitura de Quito na últi-ma eleição.

Ele acusa o governo de ter do-minado o Congresso, a Justiça ea maior parte dos meios de co-municação. “Como se não bas-tasse, usaram o rosto do papano logotipo do governo, razãopela qual tiveram de se descul-par com a Igreja local. “O gover-no usa uma máquina de propa-ganda que poderia perfeitamen-te dizer ‘bem-vindo papa Fran-cisco, a um lindo país onde He-

rodes poderia parecer um pedia-tra’”, comentou.

Correa foi vaiado após a pas-sagem do papamóvel pela Ave-nida 6 de dezembro. Cruzescom imagens de Francisco queeram vendidas a US$ 1 subirampara US$ 3 quando se espalhouentre a multidão a notícia deque o pontífice passaria pelo lo-cal em 5 minutos.

O deputado governista Virgi-lio Hernández defendeu o presi-dente. “De nenhuma maneiratentamos politizar a visita do pa-pa, mas sim resgatamos suamensagem contra a globaliza-ção”, disse.

De acordo com Polibio Cór-dova, presidente da consultoriaCentro de Estudos e Dados, a

aprovação de Correa atingiu42% no último mês, a menor emoito anos de governo. Segundoele, as manifestações do últimomês mobilizaram no total 600mil pessoas. A principal preocu-pação da população é a econo-mia. “Passamos por um momen-to de alto endividamento exter-no, baixa no preço do petróleo epouco investimento estrangei-ro”, diz.

Mensagem. Em seu discurso no aeroporto de Quito, o pontífice disse que o país precisa enfrentar os desafios atuais valorizando asdiferenças; pressionado por protestos, presidente é acusado pela oposição de tirar do contexto frases papais sobre desigualdades sociais

A polícia equatoriana flagrou durante o fim de semana a venda de in-gressos para a missa que Francisco comandará hoje em Guayaquil, nosul do Equador. A participação é gratuita.

● Comparação

US$ 70 por uma missa grátis

Ex-parlamentar ligado aopresidente equatoriano vêum país em crise, em quea polarização convém aogoverno e à oposição

“O governo usa umamáquina de propagandaque poderia perfeitamentedizer ‘bem-vindo papaFrancisco a um lindo paísonde Herodes poderiaparecer um pediatra’”Milton Castillo MaldonadoLÍDER DE PROTESTOS CONTRA CORREA

Boas-vindas. Papa Francisco é recebido no aeroporto de Quito por crianças e o presidente Rafael Correa, alvo de protestos

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O ESTADO DE S. PAULO TERÇA-FEIRA, 7 DE JULHO DE 2015 A7

Internacional Negociação nuclearChanceler do Irãexige fim de embargode armas. Pág. A9

www.estadao.com.br/e/fieis

QUITO

Sob o forte sol do meio-dia ouensopados pelo temporal quecaiu de tardezinha em Quito,não parecia haver mau humorentre os fiéis nas barracas arma-das em fila, à espera da aberturados portões do Parque Bicente-nário, onde Francisco reza hojea última missa no país às 10h30.Os primeiros chegaram na noi-te de domingo ao lugar para verum papa de perto, 30 anos apósa passagem de João Paulo II pe-lo país.

Olivo Padilla e María Florestinham 41 e 36 anos então e esta-vam lá, com os cinco filhos. Sau-daram o pontífice polonês, san-tificado pelo atual. “Lembroque minha filha mais nova tinhasó 3 meses e a levei. Ela não lem-bra de nada, mas se orgulhaquando vê as fotos”, comentaMaría.

A passagem de João Paulo IIocorreu na presidência León Fe-bres-Cordero (1984-1988) e dis-tendeu em parte a situação polí-tica local. O país estava envolvi-do numa luta antiterrorista queresultou em denúncias de viola-ções de direitos humanos con-tra Febres-Cordero. Ele termi-nou seu mandato desestabiliza-do por escândalos de corrup-ção, preços baixos do petróleo eexportações afetadas por umterremoto.

Discute-se se Francisco é ca-paz de também aproximar o go-verno de Rafael Correa de mani-festantes que há um mês protes-tam contra ele. Na chegada dopapa ao país, no domingo, osaplausos ao papamóvel eram se-guidos de vaias a Correa. “Comele, as coisas melhoraram em60% a 70%”, disse Padilla, quechegou aos 71 anos sem aposen-tadoria, consertando bicicletas

depois de abandonar a agricul-tura. “O que ele não conseguiufoi unir o país. Essa disputa polí-tica deve acabar”, afirmou.

Sentado ao lado da mulher,ele observava sorridente o am-biente com uma imagem de ges-so de um Cristo no colo. Ao ladodireito, tinha os dois coberto-res com os quais passariam anoite – um para cortar o frio dosolo e outro para aquecer o cor-po. “Sou do campo, não faz dife-rença.” María segurava uma gar-rafa com sete tipos de grãoscuja tampa é uma moeda, espé-

cie de amuleto para não faltarcomida em casa. “Gosto tantodesse papa quanto de João Pau-lo. Pelo Bento, eu não tinha mui-ta simpatia”, confidenciou.

Alguns metros atrás, bemmais preparada contra a intem-périe, com uma barraca para cin-co pessoas, estava uma famíliado sul da Colômbia, de Pasto. Olíder da expedição que durou oi-to horas em carro era o advoga-do Daniel Botina, de 30 anos.Animado, ele prometia não dor-mir até a hora da missa, em ra-zão da vigília que seria seguidapor uma Oração do Rosário às 4horas de hoje.

Seu filho, Juan José, exibiaum cartaz em que se lia “Deus éamor, minha Igreja é amor. Tedigo eu, que tenho 8 anos”.“Gosto do papa porque ele égente boa”, afirmou. “E tam-bém é a pessoa mais importan-te do mundo”, completou.“Mais do que o seu pai?”, foiquestionado. “Sim”, respondeuo menino, arrancando gargalha-das da família. / R.C.

NA WEB

Francisco defende ‘solução concreta’da Igreja para família não tradicional

Após 30 anos de espera por umpapa, humor para 40 horas de fila

Vídeo. Fiéis noEquador acampamà espera do papa

● A missa que Francisco reza-rá hoje em Quito, sua segundano Equador, será no antigo aero-porto da cidade, no centro,adaptado como área de lazerdesde a inauguração do novo,em 2013. O lugar mantém salasde embarque e desembarque,assim como torres de observa-ção. Uma cruz de 18 metros foierguida para garantir um ar desantuário. Amanhã o papa vaipara a Bolívia. / R.C.

MARTIN BERNETTI/AFP

RODRIGO CAVALHEIRO/ESTADÃO

Tolerância. Na primeira missa de seu giro de oito dias pela América Latina, papa pede no Equador oração por ‘aquele que pareçaimpuro, escandalize ou espante‘, mas mantém a ambiguidade sobre o tema da união entre homossexuais e dos casamentos informais

Antigo aeroportofoi transformadoem campo santo

Visita. Francisco acena durante visita à Catedral de Quito após missa para 600 mil fiéis

Frio. Olivo Padilla e a mulher levaram dois cobertores

Padilla e María, que viramJoão Paulo II em 1985,chegaram no domingo aoParque Bicentenário paraver Francisco de perto

Rodrigo CavalheiroENVIADO ESPECIAL / QUITO

Em sua primeira missa na via-gem de oito dias pela AméricaLatina, o papa Francisco foienfático ao pedir soluçõesconcretas para os “desafiosda família”, mencionando umpedido de oração por aquele“que pareça impuro, escanda-lize ou espante”.

As palavras diante de 600mil fiéis em Guayaquil foram in-terpretadas como um chamadoà tolerância e até um recado aopresidente Rafael Correa, quejá foi criticado por difundir pia-das homofóbicas.

Embora tenha ganhado proje-ção por suas ideias progressis-tas na defesa da igualdade so-cial e de países e pessoas distan-tes dos centros de poder, Fran-cisco sempre foi rígido em te-mas morais. Sua maior desaven-ça com o governo argentino deCristina Kirchner foi em razãoda aprovação, em 2010, do casa-mento gay. Francisco disse en-tão que toda criança mereciater um pai e uma mãe. “Ele éinflexível nisso, não se deve es-perar que mude um dogma daIgreja”, diz Andrés Beltramo,

autor de La reforma en Marcha,sobre as ideias do papa.

Mas essa rigidez não impediuFrancisco de defender a convi-vência com homossexuais. NoParaguai, ultima escala da via-gem pela América Latina, eletem agendada uma reuniãocom um representante da co-munidade gay local. “O papa éambíguo sobre temas que paramuitas pessoas são muito sensí-veis. Parece-me que ele abre es-paço para o diálogo com o Vati-cano. As famílias devem ser di-versas como é o mundo”, avaliaEfrain Soria, coordenador daFundación Equatoriana Equi-dad, que defende os direitos GL-BTI.

Depois de chamar à oração pe-lo “impuro”, Francisco pediuque “Deus possa transformá-loem milagre”. “Não acho que te-nha com isso se referido a tor-nar heterossexual um gay, poisele nasceassim, essa é sua condi-ção. O ‘milagre’ pode ser a trans-formação do homofóbico, poisisso é cultural e pode ser muda-do”, completa Soria.

Em agosto de 2014, paresequatorianos de mesmo sexopassaram a ter os mesmos direi-tos que casais convencionais ga-

rantidos pela Constituição. Opresidente Correa saudou o fa-to como um avanço social, mas,católico de linha conservadora,disse ser contra o casamentogay e a adoção por esses casais.

“Esse papa tenta fazer algu-mas mudanças na Igreja, rom-

per crenças muito arraigadas,como a exclusão de divorciadose gays. Mas eles falam de formaatravessada. Francisco podetambém ter mandado um reca-do a Correa, um esquerdistaconservador em temas morais,conhecido por suas piadas ho-

mofóbicas”, diz o coordenadorem Quito no núcleo de ciênciaspolíticas da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais(Flacso), Simón Pachano.

O temadamissapapaldeGua-yaquil está ligado ao sínodo so-bre família marcado para outu-

bro, no Vaticano, quando os bis-pos devem discutir temas comoa acolhida aos gays, divorciadose casais unidos informalmente.

Para a doutora em antropolo-gia cultural María Amelia Vite-re, investigadora da Universida-de de San Francisco de Quito, osdesafios familiares aos quais sereferiu o papa são também a de-sagregação causada por fatoreseconômicos. “Não é coincidên-cia que ele tenha feito esse dis-curso em um país com 3,4 mi-lhões de emigrantes. As famíliasde composição tradicional noEquador, como em outros paí-ses da região, são minoria”, ava-lia a especialista.

Mãe solteira, Magerly Lópezera uma das primeiras na fila defiéis que esperavam ontem aabertura das portas do ParqueBicentenário, onde às 10h30 dehoje(12h30em Brasília) Francis-co faz sua segunda e última mis-sa no país, em Quito. Ela era daspoucas sem barraca. “Se chover,peço para entrar em alguma dosvizinhos”, disse. Sua metaera es-tar o mais perto do papa, paraconseguir“uma bênção bemfor-te” para a menina de 3 meses, aquem amamentava, e para ela,de 15 anos.

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O ESTADO DE S. PAULO QUARTA-FEIRA, 8 DE JULHO DE 2015 A9

Internacional Questão nuclearPrazo para conclusãode negociação com Irã éestendido. Pág. A11

● O ESTADO NO EQUADOR

Penitência

A família Ortiz amanhe-ceu ontem encharca-da, assim como todos

os fiéis que resolveram dor-mir no Parque Bicentenário,tivessem ou não barraca. “Pe-lo teto até que não entravaágua, mas por baixo ficouinundado. Às 5 horas caiu atégranizo”, relatou sem perdero bom humor a dona de casaCecilia Ortiz.

Ela chegou ao parque nanoite de segunda-feira, de-pois de caminhar três horas.Não estava só. Levava as cin-

co filhas e “Menina”, de 3 me-ses, que entrou escondida emuma mochila.

Mascotes estavam proibidosde ver o papa. “Ela se molhoucom a gente e agora está sofren-do com o sol”, explicava Eliza-beth, uma das filhas de Cecilia,agarrada à vira-lata.

Depois de cinco horas de chu-va forte da madrugada, sob 10ºC, o sol reapareceu na hora damissa e os guarda-chuvas vira-ram sombrinhas. Cecília estavafeliz com o discurso do pontífi-ce. “Quando disse a palavra dita-

dura, todos aqui aplaudiram”,afirmou, referindo-se aos vizi-nhos de barraca. “Falou dos ri-cos e do autoritarismo. Tem aver com o que estamos viven-do”, resumiu.

Petrona Soto, de 64 anos, rela-

tivizou críticas ao governo. “Elefezcoisas boas, aumentouo salá-rio dos trabalhadores, mas tam-bém ruins. Perdi a bolsa que medavam. Disseram que como já ti-nha aposentadoria (US$ 175)não precisava”. Aposentada por

invalidez, ela tem próteses nosdois joelhos e problema de colu-na. Com uma bengala na mão di-reita, mancava ao levar às cos-tas, envolta em um lençol, a netade 1 ano, Belén.

A variação do clima foi encara-da por Petrona como uma pro-vação. O Parque Bicentenário éo antigo aeroporto de Quito, nocentro, adaptado como área delazer. O papa oficiou a missa emum palco armado na frente dosprédios de embarque e desem-barque e sua mensagem chega-va aos fiéis na pista de pouso. Omesmo concreto que à noite in-duziu a água sob as barracas, aomeio-dia, com 17º C, teve o efei-to de uma chapa que secou osfiéis, até fazê-los suar.

Carlos Rengel chamava aten-ção de camisa de manga compri-da e gravata. “Sou contador evim direto do trabalho ontem(segunda-feira) de tarde”, justi-

ficou-se, como se a profissãoexigisse a roupa sob qual-quer circunstância. Ele carre-gava a barraca molhada emque dormiu com a mãe.

Espremido pela multidãoque saía vagarosamente apósFrancisco encerrar o atocom seu clássico “rezem pormim”, o pedreiro Cesar Peral-ta, que também chegou nanoite anterior, protegia coma mão esquerda a mulher grá-vida de seis meses. Com a di-reita, agarrava o binóculousado para ver o papa. “Devese chamar Francisco”, disse,referindo-se ao bebê. / R.C.

estadao.com.br/e/Quitomissa

NA WEB

Diante de Correa, papa sugere ‘riquezado pluralismo’ contra tentação ditatorial

● O papa Francisco voltou a abor-dar ontem o tema ecológico, cen-tro de sua última encíclica, publi-cada em 18 de junho, e cobrou apreservação da Amazônia peloEquador e pelos países vizinhos.Após a missa no Parque Bicente-nário, ele teve um encontro à tar-de com acadêmicos na PontifíciaUniversidade Católica, em Quito,no qual falou de aquecimentoglobal e consumismo.

“Não podemos continuar dan-do as costas à nossa realidade, anossos irmãos, à nossa mãe Ter-ra. Já não é uma mera recomen-dação, mas uma exigência quenasce pelo dano que provoca-mos em razão do uso irresponsá-vel e do abuso dos bens queDeus pôs no planeta.”

Os países visitados por Francis-co, Equador, Bolívia e Paraguai,não poluem em larga escala, pe-lo baixo nível de industrialização,mas sofrem efeitos como o des-congelamento de geleiras. “ATerra que recebemos como pre-sente, como queremos deixá-la?”, questionou Francisco.

À noite, o papa foi à igreja SanFrancisco, no centro histórico deQuito, falar para grupos sociais eempresários. Ele ressaltou a bio-diversidade da Amazônia e a res-ponsabilidade dos países de pre-servá-la. Ao fim do encontro,uma fiel entrevistada pela TV es-tatal – cuja programação é favo-rável ao presidente Rafael Cor-rea – reclamou dos guarda-cos-tas do papa, que não a deixaramser abençoada. Irritada, mandouum recado para o presidente:“Deixe de ser um ditador”. / R.C.

Vídeo. Veja ocomércio antesda missa

RODRIGO CAVALHEIRO /ESTADAO

ALESSANDRO BIANCHI/REUTERS

Em discurso,Francisco cobradefesa da Amazônia

‘MENINA’ ESCAPA DETEMPORAL E VÊ PAPAChuva castigou quem dormiu na rua por missa

Em Quito. Papa celebra missa no Parque Bicentenário

Versões. Declaração de Francisco foi festejada por adversários do presidente, que no último mês lideraram atos de protesto contraintenção do governo de taxar heranças e grandes fortunas; situação, porém, tem outra interpretação e exalta crítica ao individualismo

Missa. Elizabeth e sua cadela Menina, que entrou escondida

Rodrigo CavalheiroENVIADO ESPECIAL / QUITO

O papa Francisco fez ontemde sua última missa no Equa-dor um manifesto políticoem que o autoritarismo foi oalvo central, mas não o único.No Parque Bicentenário, emQuito, ele lembrou o proces-so de independência da Amé-rica Latina, iniciado há doisséculos, para denunciar a in-justiça social, o individualis-mo, a exploração e os podero-sos.

“A imensa riqueza do pluralis-mo nos afasta da tentação depropostas mais próximas de di-taduras, ideologias e sectaris-mos”, afirmou o pontífice. A de-claração foi saudada pela oposi-ção como um alerta ao governode Rafael Correa, que domina oCongresso, o Judiciário e tentaaprovar reeleições ilimitadas –ele governa desde 2006 e a pró-xima votação será em 2017.

“Essa missa foi uma facada nocoração do governo. Ainda quebusquem outras interpreta-ções, o resumo é: ‘O papa conde-na a tirania e a intolerância’.Francisco falou de como as dita-duras afetam a sociedade e a vi-da dos fiéis”, afirmou ao Estadoo deputado opositor AndrésPáez, que ganhou notoriedadeaoliderar no último mês atos an-tigoverno que reuniram 600 milmanifestantes nas duas princi-pais cidades, Quito e Guayaquil.

O presidente manteve ao lon-go de nove anos aprovação mé-dia de 55% a 60%. Em junho, elacaiu para42%, segundo o institu-to Cdatos. Nas aparições com opapa, gritos de “fora Correa” su-peraram os aplausos. Católicopraticante, ele esteve na missa enão foi vaiado.

Seu grupo político, a AlianzaPaís,viu no trecho em queo papaopinou sobre a origem das guer-ras um aval parasua forma de go-vernar. “Seria superficial pensarque a divisão e o ódio só provo-cam tensões entre os países e osgrupos sociais. Na realidade, sãoas manifestações desse ‘indivi-dualismo difuso’ que nos sepa-ram e nos confrontam”, disseFrancisco.

“A mensagem central do pa-pa é a dos excluídos, de crítica aum modelo econômico que pro-duz seres descartáveis. Dizer

que não dialogamos é uma ten-tativa de minar nossa credibili-dade”, respondeu a deputadagovernista Ximena Ponce.

De linha bolivariana, o gover-no equatoriano usa a crítica aoindividualismo e os apelos pa-pais à “inclusão de todos os ní-veis”, termo mencionado nova-mente ontem, para justificarprojetos de lei como os que ta-xam heranças e limitam lucrosdo mercado imobiliário.

A repercussão dos protestosantes da visita do papa fez Cor-rea congelar sua aprovação, al-go inédito. Embora esses itenstenham revelado a insatisfação,as maiores queixas passam por

reajustes na cesta básica, pelocorte de subsídios e da suspen-são do aporte estatal a aposenta-dorias. O baixo preço do petró-leo afeta programas sociais eobras.

Consenso. No início de seu dis-curso, Francisco referiu-se à in-dependência dos países latino-americanos como “um gritonascido da consciência da faltade liberdades, de estar sendo sa-queados e submetidos a conve-niências circunstanciais dos po-derosos”. O trecho agradou tan-to a opositores, por mencionara censura, quanto ao governo,por referir-se à exploração pe-

los colonizadores.Na avaliação do analista polí-

tico Luis Verdesoto, da Univer-sidade Complutense de Madri,a leitura “interesseira” feita pe-los grupos é simplória. “Não sepode dizer que, se o papa falacontra o neoliberalismo, apoiao governo, ou, se fala de liberda-de, apoia a oposição. Ele sofreucom autoritarismo e seu discur-so foi a favor da democracia.”

AcorretoraJulia Guerrerodei-xou a missa impressionada. “Eledeu elementos aos dois bandos.Sou anti-Correa, mas não queroque ele seja removido do poder.Quero que mude a forma de go-vernar até a próxima eleição.”