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Para a minha avó, Edna Clark - Booksmile das Pequenas Joaninhas — Devo dizer que não estou a achar graça nenhu-ma — diz a educadora Cherry, franzindo o sobrolho para as quatro

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Para a minha avó, Edna Clark

Creche das Pequenas Joaninhas

— Devo dizer que não estou a achar graça nenhu-

ma — diz a educadora Cherry, franzindo o sobrolho

para as quatro meninas sentadas à chinesa diante

dela. — Como já vos disse, não me agrada que brin-

quem aos piratas mal-educados. Não te rias, Pearl.

Mostrar as cuequinhas não são maneiras de pira-

ta, e de certeza que não são maneiras de Joaninha.

Kat, Betty, sentem-se sossegadas, se faz favor. Ago-

ra, enquanto eu passo o leite, quero que todas pen-

sem muito bem como é que os piratas simpáticos se

portam. Bea, não comas isso: é para o coelho.

9

1

Dez anos, quatro sutiãs

e uma grande discussão depois…

Está uma pessoa pequenina e sem roupa a dar-

-me lambidelas. Não me aflijo — acontece muito.

A pessoa pequenina começa a beijar-me na cara.

Cheira-me a panquecas e banana e… espera lá…

a pessoa não está completamente sem roupa. Tem

umas galochas. Galochas? Isto é novidade. E com-

pletamente inaceitável.

Agarro no telemóvel… 5h34.

5h34 da manhã!

10

— Bea! — grita a Emma. — Parabéns!

— Vai-te embora, eu não faço anos. — Tento em-

purrá-la para fora da cama, mas ela resiste e come-

çamos à bulha. Erro crasso. Para quem tem apenas

3 anos, a minha irmã é uma lutadora feroz. Ainda

me ocorre armar-me em adulta mas, antes de dar

por isso, já estamos em pleno combate.

— Tenho uma prenda pa’ ti! — A voz abafada da

Emma chega-me algures dos meus pés.

— Prenda depois, ok?! — Se calhar, até consigo

dormir com ela ali. Não é nada mau, até aconchega e…

— prenda, agora! — berra ela.

Está claramente num daqueles dias especialíssi-

mos, portanto digo o que sempre digo quando pre-

tendo vê-la pelas costas.

— Ouviste aquilo, Emma?

— O quê?

— Ouvi a voz do Papá… Já chegou! O Papá

chegou!

(Não chegou nada. Está no México.)

— Papá! — Ela lança-se da minha cama e desce

as escadas, deixa-me virar para o outro lado e ani-

nhar a cara em qualquer coisa quente e fofa. Um

bocado de banana esquecido, talvez?

Cheiro. Não é banana.

11

Duas horas mais tarde, a Emma vem à porta para

se despedir de mim, vou para a escola. Dá-me uma

cabeçada na barriga e grita:

— Adoro-te, nariz de sapo!

Saem pássaros a voar do telhado do vizinho.

— Adoro-te, bafo de pum — digo eu, empur-

rando-a com firmeza para dentro de casa. Desço o

carreiro. Agora é que a timidez se apodera de mim

e deixo a Verdadeira Bea em casa e levo a Bea Tími-

da para a escola.

A caminho da paragem do autocarro, já a Bea

Tímida me faz encolher os ombros e olhar fixa-

mente para o chão. Quanto mais me afasto de casa,

com o escorrega partido da Emma naquele pedaço

de relvado gasto, e a nossa porta da frente encarna-

da, menos me sinto eu mesma.

— Embora pequena, ela é feroz! — digo, num

sussurro, ao aproximar-me dos do 11.º ano, que se

encostam ao muro da cooperativa. Sento-me no sítio

do costume, longe dos outros, e saco do telemóvel.

Um dos rapazes atira-me um M&M. Ressalta-me na

cabeça e aterra-me no colo. Ele ri-se e fica a ver o que

eu vou fazer. Olho para o chocolatito. É azul.

12

Embora pequena, ela é feroz, penso.

Come o M&M, Bea! Vá lá, come!

Sacudo-o para o chão. Não foi dos meus mo-

mentos mais ferozes, realmente.

Já praticamente me fiz invisível por alturas da

chegada do autocarro e, quando me deixo cair no

assento ao lado da Kat, ela nem sequer levanta a

cabeça. Está a olhar para um espelhinho que traz

sempre consigo. Ao princípio, acho que ela está só

a mirar a perfeição do seu cabelo muito, muito lou-

ro, mas, nisto, ela pega-me num braço e puxa-me

para mais perto, sussurrando:

— Olha para trás de nós!

Espreito para trás, investigando o autocarro.

— O que é?

— É ele: Ollie «Abraço» Matthews. Oh, Deus,

não olhes! Olha! Não. Não olhes. Está bem. Olha

agora. Perdido de bom!

Olho para ela de lado. Tal como desconfiava, está

com a boca meio aberta e os olhos estão enormes,

estilo cachorrinha. Está a fazer a «Cara Sexy». Mais

parece a Emma quando está a fazer um «presente»

no bacio.

— Não olhes para mim — ordena. — Olha para

ele.

13

Por conseguinte, olho. Por uma vez que

seja, consigo perceber o que ela quer dizer.

O Ollie Matthews tem olhos castanhos fofos,

cabelo assim pró despenteado e ombros que pare-

cem um bocadinho ombros de homem e as mãos

são…

— Bean, estás a ouvir? — A Kat fecha o espelho

com um estalido. — Acho que tenho de ser mais

realista e esquecer-me do 11.º ano e concentrar-me

no 10.º ano. Além disso, bem, se calhar ele é o tal?

Afinal, houve «O Abraço».

— O quê? Ele disse que isso foi sem querer.

A Kat tem de resfolegar.

— Não me pareceu nada um «acidente»!

— Ele achou que eras a irmã dele. Tens o mes-

mo casaco… aquele com os pássaros.

— Ele é tão perdido de bom, não achas? — per-

guntou a Kat, ignorando a minha pequena fatia de

realidade.

O Abraço está a ouvir o iPod e a olhar pela janela,

tipo, sabes, perdidamente, com os olhos, que estão

abertos (sexy), a olhar para as árvores… árvores per-

didas de boas cobertas de folhas verdes sexy.

— Pois, Kat — digo eu. — O Ollie parece…

— Diz! — A Kat está rejubilante. — Vá lá, diz.

14

Diz que o Ollie Matthews é perdido de bom. — Fico

de boca bem calada. — Diz, diz, diz!

— Pronto. Estou a ver, na tua perspetiva, que ele

pode ser considerado… perdido de bom.

— Sim! É completamente. — Ela agarra-me no

braço. — Agora conta-me tudo o que sabes!

Tenho uma memória excelente.

— 10.º ano.

— Já sei.

— Entrou no Bugsy Malone no ano passado.

— Fez de quem?

— De Bugsy.

— Isso é bom, não é?

— É.

— Mais — exige, avidamente.

— Equipa de râguebi.

— Nham.

— Capitão da equipa de râguebi.

— Nham.

— Cantou aquela canção no Sarau de Comemo-

ração com a banda dele.

— Qual canção?

— Do ya think I’m sexy? — começo a cantarolar

baixinho.

— Bean. Não.

15

— Pronto, desculpa.

— Mais?

Olho para trás, para O Abraço.

— Ele está sempre a arregaçar as mangas, sabes,

sempre, e os braços dele são… — Calo-me. Recuso-

-me a usar essa palavra outra vez.

A Kat mira-me com os olhos ligeiramente

franzidos.

— Preciso do teu livro de Matemática. Esqueci-

-me de fazer os trabalhos de casa.

Torna a recostar-se, um sorriso na cara.

A Kat está sempre a «esquecer-se» de fazer

os trabalhos de casa, e eu deixo-a sempre copiar

os meus. Acho que é uma cena de amigas do pei-

to. Começo a remexer na mochila mas, em vez do

livro de Matemática, tiro uma coisa dura, cabeluda

e plástica.

— Mas o que é isso? — A Kat parece enojada.

Eh lá! Estou a pegar numa Barbie nua pela

cabeça. Digo nua, mas o «pipi» — como a Emma

insiste em chamar a essa parte — foi cuidadosa-

mente pintado com marcador azul e embelezado

com purpurina e, vendo bem, serão folhas de chá?

— É o Ralph! — digo, a rir-me.

— O Ralph? — Ela não se ri.

16

— A boneca da Emma. Ela disse que tinha uma

prenda para mim e deve ser isto. O Ralph chama-se as-

sim por causa do Lobo da Alsácia dos nossos vizinhos.

— Quero lá saber de onde é que veio o nome da

boneca da tua irmã esquisita. Livra-te disso!

— Olha. — Mostro-lhe a zona da colagem. A Kat

encolhe-se toda. — Tão giro. É para se parecer com

a Mamã… não é que a Mamã tenha purpurinas

— Mas, neste momento, o autocarro faz uma curva

apertada e a subir e o Ralph foge-me da mão e rebo-

la pelo corredor fora.

— Bea, sua croma, apanha-a!

Começo logo a procurar aos pés e junto das mo-

chilas do pessoal.

— Bean! — Ouve-se uma voz vinda do fundo do

autocarro. — Perdeste a tua Barbie?

Olho para cima. Oh, não. Isto é muito, muito

mau. A Pearl Harris tem o Ralph. Ela está recostada

na última fila — a mirar o seu império —, as pernas

infindáveis e morenas deitadas no colo de um rapaz.

O Ralph está pendurado entre duas unhas azuis que

estão agora cheias de purpurina e folhas de chá.

Começo a andar na direção dela. Só de pensar

que cheguei a trocar cuecas com aquela rapariga

(da Disney, Ariel… no tempo das Joaninhas).

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— Jelly Bean, porque é que trouxeste a tua bone-

ca para a escola?

A fila de trás desata à gargalhada, em unísso-

no, perante o espantoso sentido de humor da Pearl.

Foi ela quem primeiro me chamou afetuosamente

«Bean» e depois, muitos anos mais tarde, o trans-

formou numa alcunha cruel, que guinchava, «Ela

abana como um jelly beaN!», em Educação Física.

Que seca. Os Jelly Beans não abanam. Até são bas-

tante firmes.

— Então? É a tua amiguinha? — Ela dá um

beijo repenicado no Ralph e depois debruça-se,

tentando enfiar-me a boneca na boca. Empurro-a,

desequilibrando-me quando o autocarro ganha

velocidade. — Oh, Deus, — diz a Pearl, olhando

melhor para a «arte» da Emma. — Embonecaste-

-lhe as cuecas!

Resisto à tentação de experimentar tirar-lhe a

boneca e, em seguida, a Pearl empurra os pés do

Ralph para as minhas narinas. O gangue cacareja

e depois fica a olhar em silêncio, à espera que o

espetáculo continue. Não digo nem faço nada. Fico

ali, a rezar para que ela se farte.

— Então, queres ou não?

— É da minha irmã — respondo.

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Passa-se um momentinho em que até vejo a

Pearl pensar, Tu tens uma irmã? Desde quando? Mas

depois ela recompõe-se e diz:

— Claro que é!

— AH, AH, AH — faz o gangue.

— Tem um cabelo lindo — acrescenta, fazendo

festas no cabelo grosso e empastado da boneca. —

É tal e qual o teu, Bean.

De repente, ela debruça-se toda no assento da

frente — o assento do Ollie — e segura a boneca do

lado de fora da janela. O Ollie vira-se para ver o que

se passa e, lentamente, tira um dos auriculares das

orelhas. A Pearl empurra o Ralph ainda mais para

fora, com um sorriso enorme naquela cara estúpida.

Agora é que eu tenho de dizer alguma coisa:

a Emma adora o Ralph mais do que me adora a

mim. Tento agarrar na boneca.

— Dá cá, Pearl. É a preferida da minha irmã!

Mas ela empurra a boneca ainda mais para fora.

— Ahh. É a tua Barbie pefeída com que dómes na

caminha?

Lentamente — ele faz tudo devagar — o Ollie es-

tica a mão, tira a boneca à Pearl e atira-a na minha

direção. Claro que não a consigo apanhar e tenho

de voltar ao chão para a procurar.

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Quando me levanto, o Ollie está a dividir os fo-

nes com a Pearl. Têm as caras tão juntas que custa

a perceber onde acaba a orelha do Ollie e começam

os lábios da Pearl. Felizmente, fiquei esquecida.

— Foi uma vergonha — diz a Kat, quando torno

a afundar-me no assento, com a cara a arder. — Tu

és uma vergonha, Bean.

— Eu sei. Desculpa. — Enfio o Ralph na mochila

e continuamos em silêncio até chegarmos à escola.

Quando entramos no auditório, estou noventa e

nove por cento perdoada e a Kat até enfia o braço

no meu. A stora Pollard, a diretora, lança-se logo no

tema dos caixotes do lixo. A mulher é obcecada por

caixotes do lixo.

— Além de ser anti-higiénico enfiar lá dentro

os alunos do 7.º ano — diz ela —, é também uma

maldade.

Ela vai pairando sobre o computador portátil,

a fazer «tss, tss» e a bufar e a ventar e a teclar até

aparecer no projetor a fotografia de um contentor

do lixo com uma cruz encarnada sobre ele. No meio

da cruz está uma cara pequenina a representar um

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aluno de Ashton Park. A boca da stora descontrai-

-se num sorriso.

— Portanto, alunos do 9.º ano — continua ela

—, não se esqueçam de que os caixotes do lixo es-

tão interditos. Mais alguma coisa?

— Apenas uma — diz alto a stora Hewitt, profe

de dança, que vem a correr até à frente. — Pronto.

9.º ano, tenho grandes notícias… — Pausa dramá-

tica. — Vocês podem todos aparecer na televisão!

— Ouvem-se murmúrios de interesse. — Envia-

ram-me informações sobre um novo programa de

televisão chamado Guerra de Estrelas. É um con-

curso de talentos para adolescentes. Vai haver uma

série para cantores, outra para atores, para come-

diantes, estão a ver a ideia. Seja como for, a boa no-

tícia é que o primeiro é… adivinhem… dançarinos!

Iupii!

Enquanto a stora Hewitt imita o andar do

Michael Jackson para comemorar, ouvem-se res-

mungos, principalmente dos rapazes, mas há

montes de algazarra, até um barulhinho meu, e eu

não sou nada de algazarras. As raparigas do nosso

ano são loucas por dança e, na segurança do meu

quarto (porta fechada, cortinados fechados, telemó-

veis entregues à porta), eu adoro dançar.

21

— O que é que se ganha? — Ouve-se uma voz

lá atrás.

A stora P respira fundo, mas a stora Hewitt

adianta-se.

— Durante o verão, os vencedores fazem forma-

ção numa escola profissional. Depois atuam num

musical no West End. Ah, e passa na televisão,

claro. — Os sussurros aumentam pela sala fora.

— Para passar na televisão, é preciso fazer uma

audição e vai haver uma em Brighton na próxima

quinta-feira. Qualquer pessoa pode entrar. Podem

dançar sozinhos ou em grupo, qualquer estilo,

qualquer tipo de música. Venham ter comigo se

precisarem de mais detalhes.

Agora toda a gente desata a falar ao mesmo

tempo.

— Acalmem-se, acalmem-se! — grita a stora P,

a voz cada vez mais alta por não lhe ligarem nenhu-

ma. Eu nem pio, obviamente.

— Ouve, Bea — sussurra a Kat. — Vamos ali-

nhar! Vou perguntar à Pearl se podemos ficar com

ela. Ela é brutal a dançar!

Há tanta coisa errada nesta ideia que nem sei

por onde começar mas, antes de poder dizer algu-

ma coisa — do tipo, «Está aí alguém? Não somos

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amigas desde os 7 anos» — a Kat debruça-se para a

frente e fala com a Pearl.

A Pearl abana a cabeça e depois vira-se para

olhar para mim. Eu olho a direito, mas ainda sinto

aqueles olhos azuis perturbantes a estudarem-me,

a assimilarem tudo. Fico corada e a Pearl sorri an-

tes de se virar para a frente, o cabelo preto perfeita-

mente ajeitado, o perfume a chegar-me como um

sortilégio. A stora P grita um calUda! decisivo e

toda a sala fica em silêncio.

A Kat ainda diz baixinho:

— Não te rales, Bean, eu resolvo ao almoço. Va-

mos fazer o primeiro ensaio no ginásio!

— Beatrice Hogg, de pé! — A stora P estica um

dedo na minha direção e duzentos pares de olhos

seguem o dedo. Eu ponho-me de pé, o Weetabix

e as sultanas a trampolinarem-me no estômago.

— Vai ter comigo à hora de almoço para recolheres

lixo… — Ela faz uma pausa, tentando dominar a

raiva. Não consegue. — E podes ficar de pé até ao

fim da assembleia-geral.

Não. Não. Não.

Tenho de ficar de pé, cabeça baixa, enquanto

o capitão da equipa de netball faz um relato deta-

lhado, incluindo a repetição em câmara lenta do

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remate vencedor, seguido do stor Higgs a orientar-

-nos nos «18 Passos para uma Utilização Segura da

Internet».

Ele responde a montes de perguntas. A primeira

do Carl Fisher:

— Stor, se eu estiver no chat com uma miúda

jeitosa, como é que sei que não é o stor?

Resposta certeira do stor Higgs:

— Posso muito bem ser eu, Carl!

Passa-me ao lado da cabeça uma bola de futebol.

— Manda-a para cá — berra um rapaz. Fin-

jo que não o ouço — e ao insulto que se segue —

e arrasto-me para a frente, apanhando metade de um

pãozinho com a única luva de plástico que a stora P

me deu. Avisto a Kat que atravessa o campo, na minha

direção. Encontramo-nos na jaula: Zona de Humilha-

ção em Educação Física/Área de Fumadores Ilícita.

— Desculpa lá isto, Bea.

— Sim, deixa lá, também estou quase a acabar.

— Mostro o saco do lixo preto já bem cheio.

— Não é do que aconteceu na assembleia-geral

que estou a falar — diz ela, olhando para a jaula

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e não para mim. — É que as outras miúdas todas

acham que quatro é melhor do que cinco, e a Pearl

não acha que tu gostes muito de dança e cenas

assim.

— O que é que queres dizer?

— Tu sabes… o concurso de dança. A Pearl acha

que deve ser só ela, eu, a Holly e a Lauren.

— Não gosto de dança? Nós estamos sempre a

dançar! Passamos metade da vida enfiadas no quar-

to a inventar coreografias. — Sinto que os meus

olhos vão desatar a chorar. Encolho os dedos dos

pés dentro dos sapatos (um truque para parar de

chorar que a Mamã me ensinou — resulta mesmo).

— Além disso, Bea, tu não tens a figura certa…

mais baixinha e, bom, menos magrinha.

— O que é que isso tem que ver? — pergunto,

agarrando bem no saco do lixo.

— A Pearl acha que o júri deve querer um certo

visual — diz a Kat, mordendo o lábio e mexendo

no telemóvel. — Tu és toda curvas e cenas e tens

esse cabelo todo. Olha, Bea, não podias simples-

mente — Ela cala-se e começa a fungar. Vai chorar?

Vai fingir que chora para se safar disto? — Cus-

ta-me muito, sabias? — Fitamo-nos e ela acha que

é bom sinal e sorri… corajosamente. — Se calhar

25

podes entrar com a Betty? Vocês costumavam andar

juntas.

Isto é o eufemismo da década. Nós andávamos

sempre juntas: eu, a Kat, a Betty e a Pearl. Éramos

um gangue. Éramos as Joaninhas! Éramos insepa-

ráveis mas, com o passar dos anos, fomo-nos sepa-

rando e, quando chegámos à escola secundária…

as coisas já não eram bem a mesma coisa.

A Kat ainda é a minha melhor amiga mas, de

vez em quando, faz uma coisa mesmo mazinha, que

magoa mesmo. Só me apetece esfregar-lhe o pãozi-

nho de atum na cara… mas também preciso que ela

seja a minha melhor amiga. Por conseguinte, faço

um sorrisinho e digo:

— Não te rales com isso. Eu também não queria.

— Fixe, obrigada, Bea — diz ela, com os ombros

a descontraírem-se. — Eu sabia que não te ralavas.

A Pearl disse que te ias passar. Até parece. Tu és

espetacular, sabias?

É patético, mas parte de mim anima-se com

estas palavras.

— Está bem — respondo. — Agora tenho de

levar isto à stora P.

— Falamos mais logo? — Ela parece um bocadi-

nho encabulada.

26

— Sim… claro. — Lá vou eu pelo campo fora,

meio coxa, a encolher os dedos dos pés com todas

as minhas forças.

Depois das aulas, fico à espera da Kat nos cacifos.

Não tarda a ficar tudo tão vazio que até mete medo

e os stores a lançarem-me olhares condoídos. São

horas de ir embora.

Cinco minutos depois, recebo um SMS: Desculpa,

n vou d’atcarro :’( ensaio dança!! Kat bjs

Estes beijos tresandam a sentimento de culpa.

Quando chego a casa, corro para o quarto, bato

com a porta, e atiro-me para cima da cama, admitin-

do finalmente que quero mesmo entrar na Guerra

de Estrelas. Nunca diria à Kat mas, no momento

em que a stora Hewitt falou nisso, comecei logo

a imaginar-nos às duas numa coreografia, nada

de espampanante, mas algo um pouco diferente.

Iríamos às audições e claro que não passaríamos,

mas as outras miúdas do nosso ano gostariam e, de

repente, a timidez ia desaparecer e eu ficaria «in»

com aquele grupo mágico do 9.º ano onde é tudo

tão fácil e divertido.

27

Ora, isto nunca iria acontecer.

Adoro dançar, mas não nasci para isso, ao con-

trário da Kat e da Pearl. Não me pareço com elas

nem com as outras. Ela tem razão. Eu tenho a figura

errada. Sabes as calças de ganga justinhas? Nunca,

jamais, em tempo algum, me hão de servir. Achei

que a Guerra de Estrelas pudesse mudar este facto.

Viro-me de lado. O meu quarto geralmente

deixa-me feliz. A alcatifa é espessa e cor-de-rosa

escura e a colcha tem o toque mais fino e macio

de sempre. Além disso, estou rodeada de flores.

A minha Avó dá-me revistas de jardinagem anti-

gas e eu recorto as flores e colo-as nas paredes.

Ao princípio, a Mamã chateava-se, mas desistiu

quando as flores começaram a subir pelo teto e a

sair pela porta.

Os meus olhos vagueiam até à mesa de cabecei-

ra onde larguei o telemóvel. Está atulhada de ca-

netas, figuras da Playmobil (não são minhas), uma

pilha de livros e… O que é aquilo? Sento-me na

cama e agarro no copo de água que tenho sempre

ao lado da cama.

Tem qualquer coisa lá dentro. Qualquer coisa

cor-de-rosa e branca. Devagar, aquilo roda na água

de frente para mim, ou devo dizer que sorri para

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mim? São dentes. Estou a olhar para uma dentadu-

ra enorme!

— Olá, fofa! — diz uma voz conhecida à porta.

Oh.

Parece que a minha avó se mudou para o meu

quarto.

— Viva, Avó — digo eu, abarcando rapidamen-

te todas as provas espalhadas por ali: uma pilha

de revistas de celebridades, as cuecas do tamanho

de fronhas a secar no radiador, o cheiro a Chanel

n.º 5, o cobertor elétrico na minha cama (logo vi que

se estava mesmo muito bem). — O que estás aqui a

fazer… de camisa de dormir?

Ela devia estar a ver televisão na residência para

idosos do outro lado da cidade.

— Surpresa! — diz, ciciando — custa-lhe falar

sem dentes. Parece que ela se apercebe disso por-

que os tira de dentro do copo de água e os mete na

boca. — Não bebas isso, fofa. Houve uma inunda-

ção no meu quarto. A Doreen do andar de cima pôs

um bolo na máquina de lavar e aquilo lavou e es-

coou água o dia todo. Parecia uma festa de espuma

na sala comum. A tua mãe teve de lá ir salvar-me.

Ela encosta-se à minha cómoda e começa a pôr

rolos azuis no cabelo.

29

— Então o que é que se passa contigo, minha

rabugenta?

— As aulas foram péssimas — respondo,

encolhendo os dedos dos pés até me doerem. De-

pois conto-lhe o dia desastroso que tive. Enquanto

ela ouve, põe pó de arroz no decote e começa a

limar as unhas. Quando a Mamã me chama para

o lanche, ela já pôs duas camadas de «Tangerina

Suculenta».

— Não te rales, Bea, fofa — diz ela. — Tenho

uma ideia perfeita para dar uma lição a essas

raparigas horrorosas.

Ai, ai… no momento em que vai começar a ex-

plicar, a Mamã chama-me para ir pôr a mesa. A Avó

senta-se na minha cama, derrubando miniaturas

de peluches pelo chão, e começa a tamborilar no

seu iPhone.

— Vai lá ajudar a tua mãe — diz ela, à medida

que eu saio do quarto. — A Avó vai resolver tudo!

No corredor, encontro a Emma, que tem es-

parguete seco colado às bochechas com fita-cola,

uma sultana em cada narina e um par de collants

da Mamã metido na parte de trás das cuecas. Está

praticamente nua, embora tenha pintado grande

parte do corpo com caneta de feltro verde.

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— Sou uma gata verde — informa ela, e depois

começa a esfregar-se nas minhas pernas e a rebo-

lar-se no chão. — Festinhas! — ordena.

Faço-lhe festas na barriga e, mesmo quando es-

tou a pensar no fixe que é ter uma irmãzinha gata,

ela morde-me na mão. Tento sacudi-la mas, quanto

mais sacudo, mais ela ferra o dente.

Entro na cozinha a arrastá-la atrás de mim.

A Mamã está a mexer no frigorífico.

— Há um postal do Papá em cima da mesa —

diz ela, trazendo um queijo na mão. — Conseguiu

o autógrafo!

Pego no postal.

— Não conseguiu nada.

— Conseguiu o autógrafo do Robert Pattinson…

Diz, «Para a Bea com beijinhos do Robert Pattinson».

— Bem, foi autografado por um Robert Patting-

stone, que desconfio seja um dos amigos do Papá a

passar-se pelo Robert Pattinson porque o Papá se

esqueceu de fazer a úNica coisa que lhe pedi para

fazer em Tijuana.

— Ora, bendito seja por tentar — diz ela,

interrompendo o que fazia para se agachar e fa-

zer festinhas na sua filha gata. O Papá faz ade-

reços para filmes: cones de gelado gigantescos,

31

extraterrestres, essas cenas. É um daqueles esqui-

sitos das barbas que se vê nos documentários dos

filmes em DVD. Um daqueles cotas que não se

calam com as oito semanas de trabalheira a fazer

uma espada de elfo em pasta de papel e pelo de ca-

bra, quando nós só queremos ver os takes cómicos.

Há três meses que está no México a fazer capacetes

para gnomos.

Neste momento, a Mamã tem um ar ligeiramen-

te tresloucado e eu não a chateio por ter um Papá

aldrabão e uma Avó (mãe dele) instalada no meu

quarto, nem sequer lhe falo da viagem do Ralph

até à escola. A Mamã é enfermeira nas urgências e

fica bastante stressada por salvar vidas e NUNca ver

o marido. Por isso, recosto-me na cadeira e desfru-

to do ovo estrelado com «cabelo» de feijões em mo-

lho de tomate, cara sorridente de ketchup e barba

de puré de batata. É para imitar o Papá.

A Emma está autorizada a lamber a gema de ovo

como os gatos fazem. Que nojo!

— Está tudo resolvido, amor — diz a Avó, entran-

do nessa noite no quarto, brandindo o telemóvel

32

num gesto triunfante. — Estás a ver aquele teu pro-

blema de dança?

Nesse momento, paro de encher a cama insu-

flável.

— Estás a falar de quê?

— Bem, acabei de ter uma conversinha com a

Lulu, a minha antiga instrutora de dança, e ela tem

partenaire para ti! Vai dar-te um curso intensivo

para ficares pronta para as audições de quinta-feira.

— Curso intensivo? De quê?

— Jive… rock and roll… tu sabes, como no filme

Grease. — A Avó mostra-se mesmo felicíssima con-

sigo própria.

Jive? Rock and roll? As próprias palavras, por si

só, já me parecem trágicas.

— Olha, Avó — começo eu. — Não posso fazer

esse tipo de dança no concurso. Tem de ser mais do

tipo que se vê em vídeos de música.

— Mas isso é pornográfico, Beatrice. Eu bem

sei. Seja como for, e como tu própria disseste, po-

dem fazer qualquer tipo de dança. — Fico sem

fala, em parte porque estou horrorizada, e também

porque ainda estou a tentar encher a cama insuflá-

vel. — Está decidido, pronto. Vais fazer uma bela

dança jive no concurso e não precisas de estar num

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grupo com essas raparigas feias. Quando te virem

na quinta-feira, vão ficar sideradas.

Sim, sideradas. Deliciadas também, mas não pe-

las razões que a Avó possa pensar. Mas ela quer que

eu morra de humilhação?

— Sabes, Avó — digo, em desespero, — as aulas

são caras e não me parece que a Mamã e o Papá

possam pagar.

— Pago eu, fofa. Seja como for, tenho desconto

porque fiz os fatos da Lulu e do Rockin’ Ray para o

Campeonato Nacional de Jive do ano passado.

— Mas quem é que vai ser o meu parceiro? —

Decerto não iria ser o Rockin’ Ray? — Toda a gente

que entra no concurso tem de ter menos de 16 anos.

— Ela sabe disso. Diz que ele é um jovem amo-

roso. Não te aflijas. Vais conhecê-lo amanhã.

— Amanhã! — Isto é pavoroso…

— Marquei a primeira aula para logo depois da

escola. Agora, se não te importas, querida, tenho

mesmo de voltar ao meu livro. — Com isto, a Avó

ajeita-se na minha cama, emborca um golaço de

gin tónico e abre o romance. — A Sunset foi atraí-

da para um celeiro cheio de feno por um milionário

malvado e estou louca para saber o que irá aconte-

cer a seguir!