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Para citar esse documento: VALVERDE, Isabel Maria de Cavadas. Fado Dança: que portuguesidade?: para uma abordagem estética-artística somático-tecnológica transcultural. Anais do V Encontro Científico Nacional de Pesquisadores em Dança. Natal: ANDA, 2017. p. 20-35. www.portalanda.org.br

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Para citar esse documento:

VALVERDE, Isabel Maria de Cavadas. Fado Dança: que portuguesidade?: para uma abordagem estética-artística somático-tecnológica transcultural. Anais do V Encontro Científico Nacional de Pesquisadores em Dança. Natal: ANDA, 2017. p. 20-35.

www.portalanda.org.br

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FADO DANÇA: QUE PORTUGUESIDADE?:

PARA UMA ABORDAGEM ESTÉTICA-ARTÍSTICA SOMÁTICO-TECNOLÓGICA TRANSCULTURAL

Isabel Maria de Cavadas Valverde (UFBA)*

RESUMO: A abordagem Fado Dança é um desdobramento do projeto de Pós-Doutoramento “Danças somáticas tecnológicas: processos coreográficos e configurações inovadoras no aprofundamento da intermedialidade com sistemas interativos de visualização e multi-modais inteligentes” em curso (2016-2017) no Programa de Pós-Graduação em Dança da UFBA, no Laboratório Mocap sob a supervisão da Profa. Dra. Lenira Peral Rengel. Enfatizo o processo criativo colaborativo transcultural inter e transdisciplinar em curso. Em questionamento da própria abordagem e escrita desta estética, os procedimentos metodológicos agem em uma atitude crítica pós-colonial (BHABHA, 1994) e autoetnográfica a partir da prática e observação de danças e os procedimentos coreográficos somático-tecnológicos em emergência na atual instância do projeto. Desejo contribuir para o conhecimento e interesse nesta área da dança-tecnologia, tomando a somática como novo campo epistemológico, com referências, incluindo as abordagens, prática como pesquisa somática-performativa (FERNANDES, 2015), e somaestética, (SHUSTERMAN, 2000).

PALAVRAS-CHAVE: Fado Dança. Sistema Motion Capture. Corporealidade Somático-tecnológica. Prática como Pesquisa. Transculturalidade.

FADO DANCE: WHAT PORTUGUESITY?:

FOR AN APPROACH AESTHETIC-ARTISTIC APPROACH SOMATIC-TECHNOLOGICAL TRANSCULTURAL

ABSTRACT: The Fado Dance approach it is an unfolding of the post-doctoral project “Somatic technological Dances: innovative choreographic processes and

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configurations towards deepening the intermediality with intelligent interactive visual and multi-modal systems”, ongoing (2016-2017) at the Post-Graduate Dance Program of UFBA, at the Laboratório Mocap, supervised by prof. dr. Lenira Peral Rengel. I empathize the ongoing transcultural, inter and transdisciplinary creative process. Questioning the very approach and it’s writing, the methodological procedures perform in a postcolonial (BHABHA, 1994) and self-ethnographic critical attitude departing from the dance practice and observation and the emerging somatic-technological choreographic procedures in present instance of the project. I wish to contribute to the knowledge and interest in this research field of dance-technology, taking somatics as new epistemological field, with references, including, practice as research somatic-performative (FERNANDES, 2015) and somaesthetics (SHUSTERMAN, 2000).

KEYWORDS: Fado Dance. Motion Capture System. Somatic-technological Corporealities. Practice as research. Transculturality.

Abordagem e contextos

Quero iniciar por referir a pertinência do desenvolvimento do projeto Fado

Dança, como portuguesa no contexto de um pós-doutorado intitulado “Danças

somáticas tecnológicas: processos coreográficos e configurações inovadoras no

aprofundamento da intermedialidade com sistemas interativos de visualização e

multi-modais inteligentes” no PPGDança da Escola de Dança da UFBA. Por um

lado, o momento presente de transição política geral resultante do aumento de

estudantes de graduação, pós-graduação e professores, assim como a presença

atuante do movimento identitário afro-brasileiro e sua consequente afirmação e

empoderamento no ambiente universitário tradicionalmente branco ou eurocentrado.

Por outro lado, o fato do pós-doutoramento implicar a implementação de um

Laboratório de Captura de Movimento (Mocap) no engajamento da Escola de Dança

e do PPGDança em continuar a incentivar e investir na pesquisa em dança-

tecnologia.

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Perante a situação de aparente ausência de relação e até contradição entre

essas duas agendas presentes é abordada em Fado Dança, uma atitude

autoetnográfica e pós-colonial forjando a aceitação mútua e sintonia das diferenças

e afinidades entre agendas culturais. A incorporação neste projeto de pesquisa em

dança somática-tecnológica transcultural de dinâmicas por e entre

grupos/comunidades aparentemente distintas, mas que efetivamente se implicam é

uma forma inclusiva de processar essas diferenças e afinidades na prática criativa

colaborativa. A pesquisa se volta a contribuir para a circularidade da partilha

somática-cultural, em um dar e receber recíproco agora ampliado para incluir o

mundo virtual em rede.

Transculturalidade

A transculturalidade resulta das muitas partilhas, assimilações e

consequentes transformações experienciadas ao longo do tempo pelas culturas

envolvidas. Nas suas expressões de música, dança e canto se tentam revelar e

entender pela prática os vários percursos entrelaçados percorridos pelo(s) fado(s) a

partir de diferentes culturas e lugares.

O método autoetnográfico transcultural que utilizo segue a perspectiva de

Michael Taussig (1999), cujo estudo das figuras-esculturas do povo sul-americano

de Cuna constituiu, segundo ele, o momento histórico do confronto pelos ocidentais

do seu estudo antropológico por outros povos, considerados até aí apenas objetos

de estudo no processo de afirmação da superioridade eurocêntrica. Esta

superioridade colonial foi principalmente baseada em diferenças raciais criadas, com

o intuito de inferiorizar outros povos, justificando o seu estatuto de animais e, por

conseguinte, a sua comercialização como escravos. Assim, estudantes

afrodescendentes tentam desenvolver e validar o seu trabalho com influência de

autores nacionais ou não ocidentais e das próprias práticas populares, tradicionais e

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ancestrais, continuando a postura pós-colonial e descolonial desconstrutivas da

resiliência do domínio eurocêntrico sob a forma de conhecimento acadêmico.

O Laboratório (Motion Capture) Mocap do PPGDança/UFBA

O Laboratório Mocap pertence ao Programa de Pós-Graduação em Dança da

Escola de Dança, tendo sido criado em agosto de 2016 no contexto do projeto de

Pós-Doutoramento 2016-2017 que então iniciei. A atividade do Laboratório Mocap

integra-se nas Linhas de Pesquisa Dança, Corpo e Cognição e Processos e

Configurações Artísticas em Dança. Tem tido a participação de estudantes de pós-

graduação e pesquisadores/professores, assim como o apoio e acompanhamento

por parte do serviço técnico da UFBA1. Vem desenvolvendo colaborações com o

Grupo de Estudos Corponectivos: Dança/Artes/Interseções e o Grupo Elétrico de

Estudos em Ciberdança. Buscamos ainda parcerias na UFBA com o Grupo de

Pesquisa Ecoarte/IHAC/UFBA, a Escola Politécnica, o NITRE (Núcleo Interdisciplinar

de Tecnologias, Redes e Sistemas Complexos) e Cinema/UFRB. Realizamos ações,

também em parcerias com pesquisadores/instituições internacionais, que incluem

Todd Cochrane, desenvolvedor NMIT (Nelson Marborough Institute of

Technology/Nova Zelândia), a CIAC/UAberta (Centro de Investigação em Artes e

Comunicação/Universidade Aberta de Lisboa) e o GAIPS/INESC-ID/IST (Grupo de

Agentes Inteligentes e Personagens Sintéticas/Instituto Nacional de Engenharia de

Sistemas e Computadores - Investigação e Desenvolvimento/Instituto Superior

1 Os integrantes do Laboratório Mocap PPGD/UFBA em 2016/17 foram/são respetivamente: Pesquisadores: Natália Ribeiro (Mestre Dança, PPGDança/UFBA), Israel Souza (Mestre Dança, PPGDança/UFBA), Enrique Franco (Doutorando, IHAC/UFBA), Daniela Amoroso (Profa. UFBA), Denny Neves (Prof. UFBA), Marta Bezerra (Doutoranda, PPGAC/UFBA), Sol Tapia (Doutoranda, PPGAC/UFBA), Andrea Sampaio (Mestranda, PPGDança/UFBA), Caio Araújo (Mestrando, PPGAV/UFBA), Emanoel Magalhães (Mestrando, PPGDança/UFBA), Giorrdani Gorki (Mestrando, PPGDança/UFBA), Natália Vasconcelos (Mestranda, PPGDança/UFBA), Ryan Lebrão (Mestrando, PPGDança/UFBA), Jadiel Santos (Mestrando, PPGDança/UFBA), Guilherme Fraga (Mestre Dança, PPGDança/UFBA). Equipe Técnica: Ney Santana (Técnico administrativo, UFBA), Edileusa Santos (Profa. Dança, UFBA), Cynthia Sadoyama (Bolsista Escola de Dança), Nícolas Fernandes (Bolsista Escola de Dança), Ailton Pancho (Técnico audiovisual, Escola de Dança UFBA).

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Técnico, Portugal). O Laboratório Mocap está também aberto a colaborações com a

comunidade artística, científica, tecnológica e popular incidindo em Salvador.

Os processos colonizadores têm sido alvo de profundas críticas na Escola de

Dança da UFBA e em outras Escolas como um todo. Esta abordagem à formação e

pesquisa em dança tem sido alvo de subsequente esforço pós-colonial de

descolonização pela integração de outras abordagens teóricas críticas assim como a

abertura a orientações de pesquisa com influência de práticas e filosofia/mitologia de

danças tradicionais e populares nacionais, regionais e locais de origem afro-

brasileira e indígena. Por outro lado, a consciência do processo de globalização

também pós-colonial pela dominância da tecnologia importada e sua ideologia de

mercado, como é o caso do sistema Mocap, tem levado a sua utilização pela dança

demandando uma atitude crítica e inclusiva de questionamento na sua aplicação

pela dança, principalmente voltada para a pesquisa de possibilidades de abordagem

à interface humano-máquina, aos processos criativos e configurações estéticas daí

resultantes.

O sistema Mocap Optitrack/Motive instalado neste laboratório é um sistema

ótico constituído por 18 câmeras infravermelhas dispostas em um volume

tridimensional e, através de refletores dispostos nas articulações de uma pessoa,

permite o rastreio ou captura do movimento por um processo de fotometria e a sua

representação em 3D por um personagem virtual ou avatar, extraindo a aparência

física.

A pesquisa tem como base a experimentação artística inter e transdisciplinar

em dança-tecnologia no desenvolvimento de projetoações e atividades tomando

uma abordagem somática-tecnológica à dança e corporealidades pós-humanas,

envolvendo pesquisa em criação e produção artística-tecnológica-científica prático-

teórica, formação, organização/promoção de eventos e publicações acadêmico-

profissionais.

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O Laboratório Mocap valoriza a pesquisa pela aprendizagem e

aprofundamento de processos criativos experimentais em dança com a utilização

crítica do sistema Mocap e configuração de métodos coreográficos híbridos. Envolve

por um lado, princípios e práticas de improvisação somática, incluindo sistemas

como, Contato Improvisação, Movimento Autêntico, Butoh, Body-Mind Centering,

Yoga, Tai Chi, Continuum Movement, Técnicas Alexander e Release, Bartenieff

Fundamentals, assim como aberto a todos os gêneros de danças populares e

tradicionais afro-brasileiras, indígenas e de diferentes culturas. Por outro lado, para

além da tecnologia Mocap, inclui também pesquisa com outros sistemas interativos

visuais de motion tracking e progressiva conjugação com outros aplicativos e

sistemas de interface inter e transmodais já implementados e a desenvolver, tais

como ambientes virtuais e de realidade mista no metaverso e interfaces biométricas

pessoa-ambiente.

A reflexão, análise crítica e teorização continuada é orientada, acompanha e

incorpora a atividade prática, incluindo, abordagens filosóficas, das ciências

humanas e ciências cognitivas/neurociências, visando contribuir para o

conhecimento artístico, tecnológico e científico deste domínio em formação.

Os procedimentos técnicos para realização da captura de movimento no

aplicativo Motive, incluem: Setup, calibração das câmeras e espaço (wanding); setup

dos marcadores na vestimenta mocap; setup do esqueleto 3D e gravação de dados

mocap (takes) simples por interação ao vivo. A edição tem diferentes possibilidades

de visualização 3D do espaço e do personagem, representado como, esqueleto 3D,

avatar, pontos representando os marcadores nas articulações e traços do

movimento dos marcadores selecionados.

Os procedimentos coreográficos com Mocap envolvem as possibilidades

destes modos de registrar, visualizar e editar os movimentos físicos corporalizados

por avatares em ambientes virtuais e de realidade mista. É possível a criação, entre

outras, de filmes/dança de animação, peças cênicas e instalações/ambientes

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interativos com interfaces humano-máquina pelo movimento. Esta oportunidade de

utilização do sistema Mocap e suas aplicações em outros aplicativos e sistemas

interativos, como a interface webcam pessoa-avatar já implementada, tem se

revelado de extrema importância para o desenvolvimento de procedimentos

estéticos de outra ordem, implicando a expansão corporal/somática e a

conceitualização/desenho da interatividade pessoa-avatar.

Assim, a experimentação que tem sido levada a cabo com a mocap, junto à

aprendizagem contínua das possibilidades do sistema, é focada na captura e edição

de animações para a sua aplicação no que denominamos de projetoações, como

Lugares Sentidos/Senses Places e Fado Dança, os quais fazem também parte,

como desdobramento, do projeto de pós-doutoramento. As animações são inseridas

em interfaces visuais de movimento pessoa-avatar no ambiente virtual de múltiplos

usuários, como o Second Life® através de objetos virtuais (HUD) criados pelo

colaborador desenvolvedor Cochrane da Nova Zelândia. A experiência com esses

elementos e procedimentos codificados e criados vêm gerando novos modos de

coreografar/improvisar incluindo a interface câmera web pessoa-avatar trazida no

processo criativo em curso com Fado Dança.

A Biblioteca de Dança Mocap PPGDança/UFBA

A Biblioteca de Dança Mocap (BDM) é um projetoação de desdobramento do

pós-doutoramento iniciado em abril de 2016. Tem como propósito a criação de uma

base de dados ou arquivo digital de danças virtuais em 3D obtidas com o sistema

Mocap. Reúne uma diversidade de gêneros de dança corporalizadas por

personagens virtuais ou avatares mediante convite à participação de dançarin@s,

performers, estudant@s, pesquisador@s e professor@s da Escola de Dança da

UFBA e extensivo à comunidade local, regional e nacional. Deseja principalmente

registar a diversidade de danças afro-brasileiras populares e indígenas, sua

presença, diversidade e processo de permeação com culturas/danças

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contemporâneas. Este repertório virtual de danças em construção tem o intuito

principal de promover a pesquisa artística, educativa, técnica, inter e transdisciplinar

entre outras.

Os gêneros de dança integrantes da BDM são o forró, samba de roda, samba

chula, capoeira, Hip-Hop, flamenco, improvisação e dança contemporânea. Os

colaboradores que contribuíram para o arranque inicial da BDM e iniciam projetos de

pesquisa integrando este recurso e campo de estudos, incluem, o Grupo X de

Improvisação (coordenação da Profa. Dra. Fátima Daltro e Prof. Ms. Edu Oliveira),

os mestres Israel Souza e Natália Ribeiro, o mestrando Jadiel Santos, a Profa. Dra.

Daniela Amoroso, o prof. Denny Neves, a mestre Marta Bezerra, e o coreógrafo

Clyde Morgan (esta captura e criação também é parte do “Projeto Memorial Escola

de Dança com coordenação da Profa. Dra. Maria Sofia Guimarães).

O projetoação Fado Dança, em dança somático-tecnológica transcultural,

surgiu junto com a Biblioteca de Dança Mocap no seu desejo e necessidade de

aprender e registrar em mocap danças afro-brasileiras populares e tradicionais para

integrar na experimentação em curso, junto com outras já utilizadas, como a dança

folclórica portuguesa (fandango, malhão e vira), o tango, o Tai Chi, o flamenco e a

nova dança/pós-moderna/contemporânea e/ou performativa. Após refletir melhor

como esta aplicação experimental que implicaria a colaboração de

dançarin@s/performers praticantes ou profissionais pesquisador@s, pensamos que

alargando o âmbito deste arquivo, repertório ou biblioteca de animações para

gêneros de dança virtualizada de todo o tipo, poderia constituir um projetoação bem

valioso para e envolvendo a contribuição de toda a comunidade da dança da UFBA

e, em geral, para novas formas de conhecimento em dança em pesquisas futuras de

vários âmbitos.

Fado Dança: histórico e conceitos-base do projeto

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Fado Dança é um projeto de longa duração iniciado em 2003 nos Estados

Unidos e vem sendo desenvolvido de forma periódica variável, com a realização de

12 performances em progresso em Riverside, Los Angeles, Paris, Porto e Lisboa.

Fado Dança elabora instanciações possíveis para uma dança mutante transcultural

de personas que habitam física e virtualmente múltiplos somas ancestrais e

futuristas do fado. A sua postura performativa crítica e inclusiva ou aberta, valoriza e

parte do foco no processo criativo, na adaptabilidade do seu formato a lugares

específicos e contexto sociocultural, assim como, a variabilidade do número de

performers. Inicialmente caracterizou-se por dança solo e com o envolvimento de

interação com som e imagens com interfaces pessoa-máquina.

Em inter-corporealidades inclusivas, @s performers revelam e desconstroem

as camaleônicas influências musicais, culturais e principalmente corporais

somáticas, que o vêm compondo e/ou foram invisibilizadas e desapareceram. As

interações diretas e mediadas estabelecidas entre os vários intervenientes, incluindo

os membros da audiência, articulam comentários incontornáveis aos conceitos de

fado que remetem à herança colonial e (e)migrante, assim como à recente moldura

econômico-político-cultural europeia e ao fenômeno da globalização (pós-

colonização) nele refletidos como performance musical tradicional.

Em uma crítica à falsa fricção entre culturas e abordagens popular, urbana,

tradicional e contemporânea, também em Salvador/BA, Fado Dança deseja encarnar

possíveis miscigenações e hibridações do fado a partir de múltiplas apropriações e

assimilações entre culturas/danças, cantos, músicas portuguesas, africanas, afro-

brasileiras, sul-americanas, orientais e asiáticas e sua repetida transformação. Ou

seja, quer realçar a influência e, por sua vez, a constituição histórica de culturas

identitárias, como a portuguesa, com aspetos dos muitos povos que passaram pelo

território e por onde “viajaram”, até então desconhecidos entre si, ou a brasileira,

com a multiplicidade de povos que aqui vivia, que para aqui foram trazidos à força e

os muitos que mais recentemente aqui escolheram viver.

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Com uma nova perspectiva do fado, fruto do conhecimento desenvolvido dos

múltiplos encontros, partilhas e transformações entre muitos povos, em uma

circularidade transcultural, um argumento é o de que o fado como música-dança-

canto vem evoluindo de diferentes modos e linguagens em diferentes lugares para

além de Lisboa e Portugal. E este é o caso da primeira referência escrita ao fado

como uma dança brasileira (NERY, 2004).

A apresentação da palestra “Viagens pela História do Fado com Rui Vieira

Nery”, no CCB com coprodução com EGEAC - Museu do Fado, dia 28 de janeiro de

2017 é resumida em um breve histórico que inclui referência à sua diversidade de

origem e percurso:

Da Lisboa oitocentista à atualidade, dos bairros castiços às grandes salas de concerto do mundo inteiro, Nery dá a conhecer as histórias e os percursos da canção de Lisboa. O Fado é um género performativo que integra música e poesia, desenvolvido em Lisboa no segundo quartel do século XIX, como resultado de um processo de fusão multicultural que envolveu danças afro-brasileiras recém-chegadas à Europa, uma herança de géneros locais de canção e dança, tradições musicais de zonas rurais trazidas por vagas sucessivas de imigração interna e os padrões cosmopolitas da canção urbana do início do século XIX. No século XX o Fado converteu-se no mais popular género de canção urbana em Portugal e é reconhecido pela maioria das comunidades portuguesas como um símbolo da identidade cultural nacional, no seu conjunto. A sua disseminação através da emigração portuguesa para a Europa e para as Américas, e mais recentemente através do circuitos da World Music, tem vindo também a reforçar, no plano internacional, a percepção desse seu papel identitário, conduzindo ao mesmo tempo a um processo crescente de trocas interculturais com outros géneros musicais (NERY, 2017).

Referindo uma conferência por Nery em 2006 intitulada "O Fado: da Dança

Afro-Brasileira à Saudade Portuguesa", Gifalli descreve como o

musicólogo explicou que a história do fado português é um longo processo de trocas interculturais: "No contexto multicultural do Brasil colonial, os ritmos e os padrões de dança africanos combinam-se

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com as harmonias e as formas européias para gerar uma dança cantada de forte sensualidade. Essa música atravessa o Atlântico e se implanta nos bairros populares do porto de Lisboa” (GIFALLI, 2013 apud NERY, 2006).

De acordo com Nery, a interação entre o modelo brasileiro e as tradições

locais da canção portuguesa levaram gradualmente ao desaparecimento do

elemento de dança e à atenuação do ritmo sincopado original, que deram lugar a

uma atmosfera nostálgica e lamentatória, com um forte rubato (alteração do tempo)

na declamação do poema.

Quando a aristocracia boêmia e as classe médias urbanas 'redescobriram' o gênero, nas décadas de 1860 e 70, o fado passou a ter lugar no teatro musical ligeiro, começou a ser publicado em edições de folhetos para uso doméstico e acabou por se tornar um dos gêneros favoritos da indústria fonográfica nascente. Ao mesmo tempo, no seu contexto original operário, o fado foi usado como uma canção de luta associada ao arranque do movimento sindical e socialista (NERY, 2006 apud COTO, 2013).

Alinhado com a perspectiva de Nery mas avançando com um entendimento

mais transcultural em vez de apenas intercultural pelas transformações

experienciadas pelas culturas envolvidas, Fado Dança experimenta o

desenvolvimento de uma dança para o fado ou o resgate da dança com este nome

que se perdeu no Brasil no período colonial. Ou será que ainda existe? Que relações

entre o fado, samba, a morna e o lundu? Fado Dança combina influências das

paragens dos portugueses no mundo e suas aculturações variadas na música,

dança e canto. Deste modo ao contrário das histórias e mitos criados sobre a sua

origem e desenvolvimento bem português, a contribuição desta pesquisa, a partir do

desenvolvimento desta prática, junto com outros pesquisadores, é a de que o fado

se desenvolveu de modos diferentes atribuído a diferentes lugares e pessoas em

Portugal e no mundo.

Tradicionalmente as manifestações do fado, das tabernas às casas de fado

de Lisboa, são tipicamente cantadas por uma ou um cantor chamado fadista e

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acompanhadas à guitarra portuguesa e viola. As cantoras, principalmente,

acompanham normalmente o seu canto com subtis gestos e envolvimentos

corporais ou estados de "dança" bem contidos, comparados com a sua

expressividade vocal. Mas já se bateu o fado (LEITÃO, 2005). Que relações com o

fandango, flamenco, danças ciganas populares e folclóricas? Mais recentemente

está a tornar-se um terreno/campo não apenas para a tradição da música fado, mas

também incluindo vários gêneros de dança, como no filme “Fados” de Carlos Saura,

em uma tentativa de resgate das suas danças originárias?

O projeto questiona também a situação de acesso global pela rede, utilizando

essa tecnologia como estratégia de comparação entre o domínio ou colonização

terrena do mundo pelos mares, o atual domínio virtual global ou pós-colonial pela

tecnologia e culturas digitais e a ideologia de mercado capitalista neoliberal

intrínsecas. As principais consequências têm sido a instalação da dependência

econômica e social destes meios de informação e comunicação, e o poder de

rapidamente mudarem hábitos de comportamento físico (e cognitivo como um todo)

já comprovados prejudiciais à saúde. Este impacto das TIC reflete o conceito inicial

de pós-humano pela cibernética e o seu resgate posterior pela teoria de

corporalização pós-humana de Katherine Hayles (1999). Hayles reclama a

importância do corpo para a interação com o digital e a necessidade de manter a

sua homeostase, o seu equilíbrio e, se possível, melhorar evolutivamente com as

interfaces em vez de passarmos a prescindir da somática e tudo o que tem a ver

com a corporalidade.

Em Fado Dança, gêneros de dança (técnicas e práticas) tão diferentes como

Tai Chi, dança folclórica, flamenco, tango, grotesca, e nova dança/contemporânea,

oferecem outra abordagem à tradição de performance musical e mesmo de dança.

Diferente das interpretações usuais neoclássicas e de tango, Fado Dança questiona

a tradição do fado na dança, comparando-a com a atitude colonizadora na sua

origem em relação com outras culturas. No seu percurso, o projeto vem tomando

características de formato bem diversas que variam entre trabalho a solo e

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colaboração de grupo, integrando música gravada, karaokê e músicos ao vivo,

assim como realizada em interatividade com vídeo e personagens virtuais em

ambiente de realidade mista. #10 Fado Dança, realizado em 2010, no Instituto

Superior Técnico, com a colaboração de Ana Moura, Theo Jonsgma e Clara Gomes,

foi a primeira experiência de ampliar a pesquisa desta(s) dança(s) a uma casa de

Fados virtual no MUVE Second Life® com avatar cantora e projeção de transmissão

vídeo ao vivo a partir do lugar físico, constituindo uma performance em realidade

mista.

Figura 1 - #10 Fado Dança. Primeira performance em realidade mista, a partir de casa de Fados no Second Life® com projeção em tela transmissão ao vivo d@s dançarin@s no IST/ULisboa em 2010.

Fonte: Ana Maria Fontes.

Daí, Fado Dança cria expressões do fado como uma forma de performance

que inclui dança, fala, canto, música, resultante da permeação de culturas em

contato terreno e expandida virtualmente em interações mediadas (interfaces

telemática e câmera web pessoa-avatar a partir de animações mocap) entre

performers e avatares em um mundo virtual.

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Fado Dança com Mocap: Processo criativo em curso

Tendo essa instância do trabalho em perspectiva no presente

desenvolvimento permite a dança interativa com @s avatar@s, graças à

oportunidade de utilizar a tecnologia Mocap. Enfatizo especificamente o período de

trabalho colaborativo mais recente, que continua a explorar as miscigenações, agora

debruçadas nos entrelaçamentos com as danças e músicas africanas e afro-

brasileiras, incluindo o samba, o lundu e a morna. Deste modo, quer por um lado,

expandir e integrar a experiência de sintonia a partir do movimento subjetivo,

intersubjetivo e grupal àquela desenvolvida entre guitarristas e cantor@s. E por

outro lado vem-se tornando um complexo terreno de pesquisa não apenas da

tradição musical, mas integrando diferentes gêneros de dança, como deixou

evidente o filme "Fados" por Carlos Saura, em 2007.

A utilização do Mocap na criação de danças como a Fado Dança, inclui

processos coreográficos audiovisuais como a acumulação, distorção ou outras

formas de edição e modificação das animações de movimento. Junto a isso, permite

a experimentação das animações mocap com interfaces corporalizadas para a

criação das danças interativas em realidade mista. O processo de experimentação,

análise, reflexão e sistematização em configurações coreográficas pelo Fado Dança

resulta no aprofundamento do campo somático-tecnológico transcultural da

pesquisa. Daí que no interesse pela expansão perceptiva pelo movimento, a

pesquisa é voltada por um lado para uma prática interativa híbrida entre físico e

virtual, desenhando interfaces como novas estruturas tecno-coreográficas a partir de

procedimentos interfaciais codificados em interações semi-aleatórias e

improvisações estruturadas. Por outro, resultante de processo coreográfico de

entrelaçamento de gêneros de dança e música com afinidades com o fado, de

origem tradicional, popular e contemporânea, reverberando as suas culturas e

ambientes de origem, e sua potência pela integração ou expansão em plataformas

tecnológicas de comunicação em rede.

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Ao permitir a ativação combinada de animações das partes do corpo de forma

aleatória, esta interface contribui grandemente para a dança emergente que

buscamos da combinação de uma multiplicidade de movimentos/danças

(principalmente afro-brasileiras populares e indígenas). Em conjunto com o foco

relacional entre pessoas e o ambiente comunitário e de partilha que caracteriza o

projeto, queremos demonstrar o valor crucial dedicado à congruência de processos

e instâncias performativas com a atitude estética-artística forjada pela dança

somática-tecnológica, contribuindo para uma integração de todos os aspetos da

experiência complexa do ser transcultural em comunidade.

REFERÊNCIAS

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* Isabel Valverde é performer, coreógrafa e investigadora, doutora em História e Teoria da Dança pela UCRiverside. Realiza pós-doutoramento em dança somática e tecnológica (PPGD/UFBA, CAPES/PNPD 2016/17). Pesquisadora dos grupos Corponectivos/UFBA, CIAC/UAberta e associada ao GAIPS/INESC-ID, Lisboa. Completa dois pós-docs pelo IHCI no VIMMI/INESC-ID (BPD FCT/POTCI, 2005/08 e 2008/11). Mestre em Interartes (IAC/SFSU). Fundadora e das Corporealidades pós-humanas: rede festival simpósio. [email protected]