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Onde está o gato preto? Filosofia Acadêmica, Filosofia Clínica e Coaching Ontológico para líderes e educadores Prof. Dr. Marcello Árias Dias Danucalov

para líderes e educadores - marcelloarias.com.brmarcelloarias.com.br/wp-content/uploads/2019/10/1-Introdução.pdf · uma pequena parte da complexidade da vida e do comportamento

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  • Onde está o gato preto?

    Filosofia Acadêmica, Filosofia Clínica e Coaching Ontológico

    para líderes e educadores

    Prof. Dr. Marcello Árias Dias Danucalov

  • Introdução

    “O truque da filosofia é começar por algo tão simples que ninguém ache digno de nota

    e terminar por algo tão complexo que ninguém entenda”

    Bertrand Russell

    Encontros Filosóficos

    Este livro foi gestado nos últimos seis anos e confesso que tive certa dificuldade

    para terminá-lo, pois sempre me parecia faltar algo, abordar mais um tema, desenvolver

    as ideias de outro autor, inserir um novo capítulo, etc. Meu orientador de mestrado, Dr.

    Antonio Carlos da Silva, costumava me chamar de “antibiótico de largo espectro” -

    termo utilizado em medicina para denominar medicamentos que combatem muitos tipos

    de bactérias -, e com isso ressaltava a minha dedicação e inclinação para estudar vários

    assuntos. Se por um lado obter vários conhecimentos para mim era bom, por outro,

    dificultaria o estabelecimento do foco necessário para construir uma carreira acadêmica;

    - meu objetivo naquele momento. Mesmo para escrever um livro, dizia Antonio, é

    necessário ter capacidade de síntese e objetividade. Umberto Eco também fala a mesma

    coisa em seu livro Como se faz uma tese: “é preciso parar de escrever em algum

    momento!” (ECO, 2000). Contudo, essa “antibiotiquice de largo espectro” não foi

    suficientemente contida, e acabei transitando por distintos campos do saber em minha

    trajetória profissional. No início de minha vida produtiva exerci a carreira de surfista

    profissional, e confesso que hoje ainda pego minhas ondinhas. Trabalhei como

    mergulhador profissional em plataformas de petróleo. Graduei-me em educação física.

    Atuei ao lado de pedagogos no ensino de crianças em fase pré-escolar. Ministrei aulas

    de musculação, natação, ginástica, yoga, meditação e de capoeira. Coordenei centros

    esportivos e academias de ginástica. Especializei-me em fisiologia humana e do

    exercício e trabalhei como fisiologista e preparador físico de atletas de maratona, surfe,

    triátlon, karatê, entre outros, inclusive de paratletas - Jogos Paraolímpicos de Atlanta em

    1996, na Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP/EPM. Concluí um mestrado no

    Departamento de Farmacologia e um Doutorado em Ciências no Departamento de

    Psicobiologia. Atuei também com biofeedback e gerenciamento do estresse. Atualmente

  • sou professor universitário, atividade que exerço há trinta anos, tanto nos cursos

    atrelados às ciências naturais: - medicina, fisioterapia, enfermagem, educação física -,

    como naqueles ligados às ciências sociais: - administração, processos gerenciais, entre

    outros. Nos últimos doze anos também venho atuando como consultor da área

    corporativa, desenvolvendo trabalhos nas áreas do Coaching Ontológico, comunicação,

    mediação de conflitos e Ética. Logo, os conselhos do professor Antônio Carlos não

    foram seguidos com muito esmero. Pois, admito que, minha trajetória profissional é um

    tanto quanto generalista para quem, supostamente, buscava especializar-se em um

    determinado assunto. Todavia, há alguns anos entendi que me especializei - mesmo sem

    saber - na área de comportamento humano. Percebi que apesar de ter realizado muitas

    atividades distintas, grande parte delas esteve relacionada com o desenvolvimento e

    aprendizagem de pessoas. Lidar com o ser humano pressupõe entender seus desejos,

    frustrações, anseios, expectativas, assim como os sempre desafiadores exercícios de

    convivência com aqueles que nos cercam. Hoje percebo que esta experiência em

    múltiplos campos do saber me auxiliou na montagem de um quebra cabeças que retrata

    uma pequena parte da complexidade da vida e do comportamento dos seres humanos.

    No entanto, de todas as áreas que visitei, uma delas é especialmente cara para mim, pois

    foi por meio da mesma que aprendi a perspectivizar meu próprio pensar. Esta área é a

    Filosofia.

    A palavra Filosofia é originária do verbo grego philosophein, que significa amar

    - philia - a sabedoria - sophia - ou ainda, a busca amorosa pela verdade, dependente da

    corajosa reflexão e do pensar acerca da vida, do mundo, do universo, das relações, das

    interseções entre distintas consciências. Na concepção de Buzzi (1983, p.11), “Pensar,

    na significação etimológica do termo, quer dizer sopesar, pôr na balança para avaliar o

    peso de alguma coisa”. Filosofar é, em suma, aprender a pensar. É responsabilizar-se

    pelas atitudes deliberadas, mas com certa subserviência intelectual, tão comum àquele

    ser que coexiste com a dúvida, e tão rara aos propagadores das verdades imperativas

    que garantem sucesso em toda e qualquer circunstância. O filósofo nutre admiração

    pelas incongruências da realidade e enfrenta as com autonomia, ponderando o reflexo

    de suas ações na coletividade, pensando como sua tarefa impacta a sua vida e a vida

    sistêmica que está ao seu redor.

    O termo autonomia é proveniente do grego e composto por duas palavras, autós

    e nómos. A primeira nos remete à ideia de independência e a segunda faz referência à

  • norma, regra. Sendo assim, um ser autônomo estabelece por si só as regras e

    metodologias que fará uso para conceder sentido para sua existência. Um ser autônomo

    constrói seus próprios saberes. Cria suas trajetórias. Contudo, essa criação não é feita a

    partir do nada. Filósofos partem do que se sabe sobre a realidade para, posteriormente,

    analisar os fundamentos dessa mesma realidade, criticá-la e colocá-la em dúvida por

    meio de perguntas importunas, abrindo assim as portas para futuras possibilidades

    interpretativas. A Filosofia tem sido edificada com base nos questionamentos das

    práticas políticas, das conquistas da Ciência, da aplicação das novas tecnologias, dos

    dilemas enfrentados pela Ética, dos desafios econômicos, entre outros. Em suma, como

    afirmam Pacheco e Nesi (2007), a Filosofia é uma disciplina criativa:

    [...] A criatividade está relacionada com a nossa capacidade de gerar novas

    explicações e realidades, de criar o novo. É a atitude ou atividade criadora. A

    criatividade representa um passo posterior em relação à crítica. Se, ao criticar,

    questionamos e julgamos as explicações sobre o nosso mundo, então, agora estamos

    preparados para desenvolver a criatividade, ao propor uma ‘nova’ explicação sobre o

    mundo (PACHECO E NESSI, 2007, p. 25).

    A criatividade necessita de um tempo dilatado para se manifestar, uma vez que,

    mudanças demandam tempo. Não se aprende um novo idioma em dois dias, não se

    conquista uma nova profissão em um mês, não se absorve uma nova competência em

    quatro horas de informações superficiais, mesmo que sejam embaladas pelas pirotecnias

    das, cada vez mais comuns, palestras motivacionais, tão conhecidas dentro do universo

    corporativo e do segmento da autoajuda, tentando vender propostas milagrosas não nos

    concedendo tempo de colocá-las à prova com um pensamento mais crítico e abalizado.

    A Filosofia tem esta incumbência. Sendo ela mais formal, seu compromisso está

    voltado para um pensar que se afasta do senso comum. Ampara-se na lógica dos

    discursos e na validade dos argumentos apresentados por aquele que defende certo

    ponto de vista. Sendo assim, para que um pensamento possa ser chamado de filosófico,

    é necessário que ele satisfaça uma sequência de reivindicações. Saviani (2002) aponta

    três:

  • A radicalidade: a Filosofia necessita que o assunto a ser considerado seja

    colocado em termos radicais. Isso significa que é preciso que se atinjam as raízes da

    questão. É necessário o exame apurado de seus fundamentos;

    A rigorosidade: deve-se refletir com exatidão e rigor, de forma sistemática,

    segundo métodos definidos;

    A totalidade: espera-se que a questão não seja abordada de modo parcial, e sim

    em uma perspectiva sistêmica, complexa, relacionando-a com os demais aspectos do

    contexto em que está inserida. Somente procedendo desta forma é que teremos uma

    maior probabilidade de atingir um conhecimento que transcenda o ponto de vista inicial.

    Meus primeiros contatos com a Filosofia datam de minha infância, tendo sido

    meu pai o maior responsável por este encontro. A partir daí fui, de maneira autodidata,

    realizando leituras esporádicas e ocasionais. Somente voltei a ter um contato mais

    próximo e organizado com a Filosofia há dez anos, quando conheci as bases teóricas da

    Ontologia da Linguagem, que amparam as práticas daquilo que ficou conhecido como

    Coaching Ontológico. Os doutores Fernando Flores e Rafael Echeverría são os

    responsáveis pelo desenvolvimento e solidificação de parte das ideias que apresentarei

    no decorrer desta obra. Todavia, cabem aqui alguns comentários. O Coaching

    Ontológico é uma prática bastante conhecida no mundo corporativo, principalmente nos

    países de língua espanhola. Seu objetivo principal é auxiliar líderes e gestores a tomar

    melhores decisões em seu dia a dia, ainda que nos últimos anos essa escola tenha sido

    procurada por pessoas advindas de outras áreas, como a da saúde, do esporte e da

    educação. O facilitador do processo de Coaching Ontológico - comumente chamado de

    coach -, deve se abster de vários comportamentos enquanto conduz suas sessões ou

    encontros com seu cliente - também chamado de coachee. Ele não deve aconselhar,

    orientar, conduzir raciocínios, opinar etc. Sua tarefa principal é ajudar seu cliente a

    pensar melhor suas questões, e isso é feito por meio de perguntas provocativas dirigidas

    ao seu cliente com responsabilidade, comedimento, parcimônia e em circunstâncias

    adequadas. Tenho atuado com Coaching Ontológico há bastante tempo, inclusive

    conduzido muitas pós-graduações nesta área. Sendo assim, as referências que são feitas

    aos processos de Coaching nesta obra, dizem respeito a essa escola em particular, pois é

    a única que faz uso da Filosofia para amparar seus pressupostos. Entretanto, meu

  • contato com a Filosofia não se resumiu a esses dois aspectos. Enquanto trabalhava em

    meu doutorado, cursei paralelamente um bacharelado em Filosofia, e meu último, e

    talvez mais profícuo flerte com o pensamento filosófico, veio do meu encontro com a

    Filosofia Clínica.

    A utilização da Filosofia com intuitos terapêuticos não é novidade, e muitas

    pessoas têm procurado auxílio de um filósofo clínico, pois creem que o pensamento

    filosófico possa auxiliá-las a conjecturar sobre suas questões pessoais e,

    consequentemente, ajudá-las a refletir sobre a maneira como lidam com seus problemas.

    O filósofo brasileiro Lúcio Packter foi um dos precursores daquilo que hoje

    compreendemos como Filosofia Clínica. Todavia, meu contato com essa área se deu por

    intermédio de uma de suas alunas, a Dra. Monica Aiub. Packter, juntamente com outros

    profissionais que utilizam a Filosofia de maneira terapêutica pelo mundo a fora, criou

    uma metodologia e resgatou o conceito de clínica como possibilidade da Filosofia. A

    Filosofia Clínica afirma ter valor terapêutico, ainda que não seja uma psicoterapia. Na

    clínica filosófica o que se almeja é tornar acessível a metodologia e o conhecimento

    filosófico ao público leigo, ajudando-o a utilizar o potencial prático da Filosofia como

    recurso para expandir sua capacidade reflexiva com vistas a solucionar suas questões

    existenciais.

    Grande parte do trabalho do filósofo clínico é provocar a reflexão, palavra

    oriunda do verbo latino reflectere, cujo significado é voltar atrás. Logo, não se pode

    filosofar – nem academicamente, nem tampouco em clínica, sem que haja abertura para

    rever pontos de vistas, sem estar disposto a se colocar em diferentes patamares de

    observação dos fenômenos investigados. É necessário reconsiderar os dados

    disponíveis, revisar, reanalisar, buscar novos dados ou mesmo reinterpretar velhos

    conceitos à luz de novas articulações. Para isso é necessário dar vazão à crítica, palavra

    oriunda do idioma grego e que deriva de krisis, cujo significado é purificação,

    desenvolvimento. Logo, deve-se purificar o pensamento para desenvolver novas

    maneiras de fruir o mundo.

    Minhas conversas filosóficas com papai, certo grau de autodidatismo, a Filosofia

    Acadêmica, o Coaching Ontológico e a Filosofia Clínica, produziram o que há de

    Filosofia em mim, assim como algumas crenças que nutro, como a ideia de que ajudar a

    pensar a vida com radicalidade, rigorosidade e totalidade seja um dos principais

    diferenciais dos grandes professores ou dos líderes mais inspiradores. Acredito que

  • muito mais do que ensinar o passo a passo do sucesso ou vender propostas

    pasteurizadas do bem agir e bem viver; provocar criticamente a reflexão no seu

    interlocutor ainda é uma conduta atraente e que pode fazer a diferença na vida de muitas

    pessoas.

    Autoajuda: Simplificações em Demasia?

    Nutro a opinião que nos últimos trinta anos temos sido vítimas de uma

    gigantesca quantidade de propostas simplificadoras da complexidade da vida, como

    aquelas advindas das literaturas de autoajuda que, em minha opinião diminuem a

    capacidade reflexiva do ser humano. Nutro também a crença de que parte do nosso

    sucesso individual depende da habilidade de conceder sentido e significado ao mundo

    que nos rodeia, assim como aos encontros e às conjunturas que determinam nossa

    estrutura de pensamento, mesmo que cheguemos à conclusão de que a vida não tem

    sentido. Creio também, que esta significação, ainda que singular, não se conquiste tão

    facilmente. Propostas existenciais que garantam certezas, deveriam ser vistas com um

    pouco mais de cautela e ressalva, pois elas parecem ser um tanto quanto ingênuas,

    quando não charlatanescas e infantilizadas. Entretanto, assumo que já me deixei seduzir

    por algumas dessas pospostas, e não foram poucas as ocasiões em que me converti de

    corpo e alma. Em meu caminhar não faltaram palpiteiros, gurus, adivinhos,

    conselheiros, profetas, magos, e toda a sorte de cidadãos propagadores de certezas e

    professadores da verdade. Sinto também que em momentos cruciais da minha vida,

    faltou-me alguém que me auxiliasse a refletir com mais profundidade e vigor as

    potenciais consequências de minhas condutas, de minhas possibilidades alternativas, de

    minhas escolhas. Minhas decisões mais insensatas e que mais me envergonham foram

    tomadas na mais profunda solidão deliberativa ou impelidas por assentir cegamente aos

    conselhos de pessoas que, provavelmente, não sabiam que suas falas poderiam, ao

    serem levadas em consideração, produzir consequências tão devastadoras. Aprendi a

    pensar tardiamente.

    Pelos motivos explicitados acima, pode ser que, o contato com as ideias

    filosóficas, a participação em processos de Coaching Ontológico, ou os encontros de

    Filosofia Clínica, se bem conduzidos, podem ajudar muitas pessoas a determinar o que;

  • onde, como, e quando gostariam de realizar em suas vidas, auxiliando-as a viver a vida

    boa, mas nunca garantindo o atingir dessa vida boa; a vida que vale a pena viver, sem

    grandes arrependimentos e sem grandes amarguras. Cada uma dessas atividades tem

    peculiaridades e alcances distintos, e um dos objetivos do livro que agora você tem em

    mãos é tentar esclarecer algumas dessas peculiaridades, indicando os pontos de

    convergência, assim como momentos em que esses saberes tendem a se distanciar uns

    dos outros. Também tenho como meta deixar claro que o contato com os autores que

    dão suporte à Filosofia Acadêmica, assim como as bases teóricas e práticas do

    Coaching Ontológico e da Filosofia Clínica podem ser úteis até mesmo para aqueles

    indivíduos que não querem atuar como filósofos acadêmicos, coaches ontológicos ou

    filósofos clínicos, mas intencionam especializar-se nessas áreas com vistas a adquirir

    um alargamento de suas capacidades reflexivas que possa beneficiá-los em suas

    atividades de docência ou liderança.

    A Filosofia Acadêmica, a Filosofia Clínica e o Coaching Ontológico guardam -

    cada um à sua maneira -, o potencial de serem dinamizadores do pensamento ético que,

    como veremos, nos auxilia na deliberação da melhor das vidas a ser vivida e,

    consequentemente, convivida. Todavia, com relação ao Coaching é preciso certa

    cautela, pois, nem todas as práticas atualmente descritas como Coaching tem sintonia

    com os pressupostos do exercício filosófico, onde se respeita o livre pensar e a livre

    escolha. Conselhos advindos de “gurus” do mundo corporativo, algumas formas de

    consultorias, práticas “new age”, e até afirmações advindas da física quântica são

    comumente embaladas no mesmo pacote do que hoje se denomina de Coaching. Nesses

    casos, o Coaching pouca ou nenhuma relação guarda com a Filosofia.

    Em suas origens, a Filosofia foi ensinada nas ruas, discutida nos salões, atrelada

    ao dia a dia das pessoas. No entanto, na medida em que o pensamento filosófico foi

    sendo desenvolvido, suas questões passaram a ser respondidas de forma cada vez mais

    elaborada, impondo grande desafio àqueles que almejassem compreendê-las.

    Paralelamente a isso, os países que foram vitimados por governos ditatoriais sofreram

    com a extinção das disciplinas de Filosofia e Sociologia dos currículos escolares e

    universitários, bem como, as corrosivas políticas de censura ao livre pensar. Isso

    dificultou o encontro com grandes pensadores, impedindo que muitas pessoas

    aprendessem a pensar com mais radicalidade. É possível que isso tenha colaborado para

    o surgimento do interesse na literatura de autoajuda? Talvez.

  • A literatura de autoajuda não é necessariamente ruim. Conheço algumas pessoas

    que deram os primeiros passos em direção a boas mudanças na vida tendo como ponto

    desencadeador dessas mudanças obras de autoajuda. Eu as li em inúmeros momentos de

    minha vida, e em alguns deles a leitura foi salutar. Todavia, é necessário certo

    comedimento quando lidamos com ideias que muitas vezes podem simplificar em

    demasia a complexidade das relações humanas, colocando em risco nossos processos

    deliberativos e gerando resultados muitas vezes negativos em termos existenciais. Em

    um mundo onde a mudança é a regra, certezas podem ser armadilhas.

    Certa noite eu jantava com uma amiga filósofa e ela me perguntou: “Você quer

    ouvir uma piadinha de filósofo?”. Depois de ouvir a piadinha - que de fato tem maiores

    chances de ser compreendida por filósofos - fui tomado pelo desejo de escrever um livro

    sobre gatos pretos. O livro materializou-se. Está em suas mãos. E você, já encontrou

    gatos pretos?

    A Ética estuda os princípios e as condutas humanas destinadas a alcançar a vida boa e a

    convivência pacífica entre os diferentes. A Metafísica almeja responder às seguintes

    questões: O mundo teve ou não um começo? O mundo sempre existiu ou foi criado? A

    alma humana é imortal ou mortal? Já a Teologia, todos devem saber, devota-se ao estudo

    de Deus e das doutrinas religiosas. Sabendo isso, responda: Qual é a diferença entre a

    Ética, a Metafísica e a Teologia?

    A Ética é uma pessoa, dentro de um quarto escuro, procurando um gato preto, e o gato

    ESTÁ lá.

    A Metafísica é uma pessoa, dentro de um quarto escuro, procurando um gato preto, e o

    gato NÃO está lá.

    A Teologia é uma pessoa, dentro de um quarto escuro, procurando um gato preto, o

    gato NÃO está lá, e a pessoa brada alegre e saltitante: “Eu encontrei! Eu encontrei!”.

    Pois é, no palco da autoajuda, e infelizmente também no campo do Coaching,

    encontramos os mais diversos tipos de artistas, desde profissionais bem intencionados,

  • até tiranos da fé alheia. Todavia, algo em comum pode ser apreciado nos últimos: a

    crença em “propostas milagrosas” que asseguram sucesso, na medida em que divinizam

    suas metodologias, afirmando que o gatinho preto está no quarto, e alguns mais

    delirantes garantem tê-lo encontrado, ainda que o bichano esteja vagando distante

    pelos telhados da vida. O que esses autores e profissionais se esquecem de inserir em

    suas equações da boa vida, são as variáveis do acaso; da pluralidade dos contextos em

    que a existência se legitima; da complexidade das relações humanas e da singularidade

    de cada ser pensante. Graças às personagens que atuam no campo das certezas,

    propagaram-se, como fala Clóvis de Barros Filho - um professor que muito prezo e

    admiro -, as literaturas de aeroporto e seus títulos engraçados: Dez lições para ser feliz!;

    Liderança eficaz em cinco passos!; Os dez hábitos universais dos vencedores!; O abc

    da realização afetiva do casal!; Leia o livro, mude sua vida e seja feliz!; O poder do

    agora!; O poder da intuição;! O poder do silêncio;! O poder da PNL!; O poder da

    coragem!; O poder dos quietos!; O poder da escolha!; O poder de delegar!; O poder

    do hábito!; Isso sem falar das famosas sequências do tipo: O segredo desvendado; O

    segredo do segredo desvendado, e; Compreendendo o segredo do segredo desvendado.

    A Filosofia Morreu?

    É quase certo que buscamos a mesma coisa: sermos felizes. Mas temos que

    enfrentar desafios para encontrar esses fugazes momentos de alegria e satisfação.

    Dilemas existenciais têm estado sempre presentes em nossa vida, ainda que imersos em

    uma camada singular de verniz cultural. Mas, ao final da equação, o que quase todos

    nós buscamos é a felicidade mesmo, quer na família; no trabalho; na sociedade ou

    mesmo dentro de uma caverna, meditando na imensidão do Himalaia. Entretanto, qual a

    estratégia mais adequada para ser feliz? Existirá uma única, como o filme O Segredo

    nos propõe? A Filosofia tem sido um pouco mais parcimoniosa perante tais

    prerrogativas, pois muitas são as propostas para o atingimento da vida boa, mas muitos

    também são os obstáculos encontrados sobre da autoestrada que nos promete conseguir

    tal façanha. Filosofar pressupõe certa submissão intelectual, comum aos que coexistem

    com a dúvida, e rara àqueles que se vangloriam do encontro com o gatinho preto e

    propagam verdades divinizadas na forma de imperativos que garantem sucesso em toda

    e qualquer circunstância. Mas há quem discorde deste meu ponto de vista. Muitas

  • pessoas afirmam que a Filosofia morreu. Outras tantas acreditam que, ainda que viva, o

    saber filosófico não nos é mais útil, pois outros saberes - como aqueles advindos das

    Ciências -, o substituíram, tornando-o desnecessário e ultrapassado. Todavia, apesar

    dessas afirmações, e da invasão dos pensamentos rasos e não abalizados em nossa

    sociedade, nos últimos anos é possível notar certo movimento de retorno e

    popularização da Filosofia. Muitos pensadores têm feito esforços para reconciliar a

    Filosofia com o grande público. Arthur Meucci; Clóvis de Barros Filho; Lúcio Packter;

    Monica Aiub; Mario Sérgio Cortela; Luiz Felipe Pondé; Julio Pompeu; Lou Marinoff;

    Allain de Botton; Jule Evans; Jostein Gaarder; Luc Ferry; Michael J. Sandel; José

    Maurício de Carvalho; César Mendes da Costa e Marc Sautet são alguns exemplos. Este

    último nos convida a refletir sobre a necessidade do pensar filosófico em seu livro Um

    café para Sócrates:

    Pode ser que a filosofia tenha ficado estéril. Mas estará por isso morta? E será que a

    esterilidade é fatal? Fala-se muito, ultimamente, em ética e moral, deplora-se a

    corrupção dos políticos e dos homens de negócio, fica-se assustado com a extensão da

    miséria excludente, do tráfico de drogas, da selvageria das guerras interétnicas e do

    fanatismo religioso, invoca-se a solidariedade, o dever de intervenção, fica-se inquieto

    com os trabalhos laboratoriais no campo das armas químicas e no da genética... Acima

    de tudo, tenta-se não perder a cabeça e conservar o sangue frio. E, para consegui-lo, que

    é que se faz? Acaso se faz astrofísica, microbiologia? Antropologia, sociologia,

    psicopatologia? Economia política? Ou será que fazemos filosofia? Quando procuramos

    descobrir o que não funciona bem na cidade, o que destrói a democracia, o que

    compromete a justiça, a liberdade, a igualdade, em suma, as relações entre os cidadãos,

    aquilo que impele os homens a se odiarem e a se matarem uns aos outros, quando

    estendemos esse exame ao conjunto das nações, a ponto de considerar o destino da

    humanidade inteira, que é que estamos fazendo? Na verdade, teremos algum dia tantas

    razões para filosofar? (SAUTET, 2012, p.10).

    Para um bom observador é possível notar grande movimentação em núcleos

    culturais e livrarias no desenvolvimento de cafés filosóficos, ou seja, encontros

    populares onde se discutem temas relativos às questões existenciais mais prementes.

    Fora isso, a inegável necessidade de pensar a vida e as relações intersubjetivas também

  • tem influenciado o universo das grandes corporações, que começa a admitir a presença

    de filósofos em seus corpos administrativos, quer seja como palestrante, consultor ou

    mesmo membro de conselhos diretivos.

    Passamos a vida deliberando, fazendo escolhas. Viver é escolher. A necessidade

    de escolher bem, tem sido uma peça fundamental para o motor do pensamento

    filosófico. Assim nasceu a Filosofia no ocidente. Esta ambição genuinamente humana

    de decodificar o Cosmos, a coletividade e a si próprio não é somente uma mera

    veleidade. Em nós, curiosidade e necessidade andam juntas. O ser humano não

    consegue viver pautado apenas em seus instintos. Ele tem uma gigantesca necessidade

    de criar-se a si mesmo a cada instante. O ser humano não nasce plenamente constituído.

    Como nos dizia Sartre: precisamos viver para nos construir gradativamente uma vez que

    “a existência precede a essência”. Esta fragilidade é o que diferencia o homem dos

    animais e, por mais contraditório que possa parecer, é esta fragilidade a nossa maior

    fortaleza. O homem pode ser mais. Ele quer abarcar a vida, realizá-la. O ser humano é

    um ser por fazer-se, um vir a ser, um recriar-se a cada dia. Para tanto, se vê

    invariavelmente frente a dúvidas que o impelem a realizar escolhas. Viver é escolher.

    Todavia leitor/a, quais têm sido as suas escolhas mais singulares? Nos últimos anos

    muitas pessoas afirmam que estamos passando por uma crise Ética, ou seja, uma crise

    de escolhas. Mas, admirando a contemporaneidade com olhos mais atentos podemos

    perceber a quantidade de deliberações pessoais que muitos de nós têm delegado a

    terceiros. O personal trainer delibera por nós e para nós qual melhor exercício a fazer; o

    nutricionista delibera o que devemos colocar em nosso prato; o designer de interiores

    escolhe os quadros com o quais devemos decorar a nossa casa; os críticos de cinema

    decidem quais filmes deveremos assistir; a mídia e a classe dominante escolhem o

    padrão estético que devemos considerar como belo; o professor de visão estreita decide

    o livro que devemos ler; a tecnologia delibera sobre os celulares e computadores mais

    adequados para suprir nossas necessidades; a astrologia afirma como devemos conduzir

    nosso dia; o profissional de feng shui decide em qual posição devem ficar nossas

    estantes, nossas cômodas e nossa escrivaninha; e os autores de autoajuda deliberam

    sobre os passos que devemos dar para sermos líderes eficazes, amantes bem sucedidos,

    pais alinhados com as mais recentes propostas educacionais desenvolvidas por doutores

    em pedagogia, entre outros assuntos da pauta desses sábios gurus. Sobra pouco para

    nós! Eu, você, toda a humanidade, somos frutos das nossas escolhas, e muitas vezes

    escolhemos não escolher. Decidimos delegar a outrem a responsabilidade que muitas

  • vezes poderia ser nossa. É óbvio que nem todas as nossas escolhas poderão ser

    conscientes e livremente deliberadas. Nossa liberdade tem as dimensões das nossas

    possibilidades e probabilidades de efetuar escolhas. Deliberamos com consciência

    quando pensamos, ponderamos, interpretamos nossas emoções, nossos afetos.

    Escolhemos com consciência quando nos colocamos no lugar do outro, quando levamos

    em consideração as alegrias e tristezas que produziremos no outro como resultado de

    nossas condutas morais. Ter consciência é condição imperativa para ser responsável;

    para falar na primeira pessoa e responsabilizar-se por seus afetos. O ser humano pode

    agir com o intuito de compreender e transformar o mundo. Ao menos o seu mundo, e

    isso é denominado em Filosofia de práxis, que é a unidade entre reflexão e ação, tão

    cara para aquele ser que pensa, como para aquele que ajuda a pensar: profissionais de

    Coaching com base ontológica, filósofos acadêmicos, filósofos clínicos, professores e

    líderes com inclinações e propensões ao pensar filosófico. Pensar a vida torna-se, então,

    um imperativo para aumentar a probabilidade de tê-la bem sucedida e para evitar

    arrependimentos tardios por ter se deixado levar pela vida ao embalo dos pagodes de

    Zeca Pagodinho, “[...] deixa a vida me levar, vida leva eu...”.

    O esmero com a vida deveria acompanhar o ser humano, pois na sua ausência

    corremos o risco de ver manifestos os arrependimentos; o desmazelo; a negligência e a

    indiferença, potentes deflagradores da melancolia, contemporaneamente chamada de

    depressão. O desleixo em pensar a vida é o oposto da atitude filosófica. A indiferença é

    o depauperamento da Ética. Caçar-se a si mesmo com liberdade deliberativa é o que nos

    diferencia dos seres que conseguem sobreviver tendo como único instrumento seus

    instintos, e a Filosofia pode ser uma grande parceira nesta jornada de caça pela vida

    boa.

    Caçador de Mim

    Por tanto amor

    Por tanta emoção

    A vida me fez assim

    Doce ou atroz

    Manso ou feroz

    Eu caçador de mim

    Preso a canções

    Entregue a paixões

    Que nunca tiveram fim

    Vou me encontrar

  • Longe do meu lugar

    Eu, caçador de mim

    Nada a temer senão o correr da luta

    Nada a fazer senão esquecer o medo

    Abrir o peito a força, numa procura

    Fugir às armadilhas da mata escura

    Longe se vai

    Sonhando demais

    Mas onde se chega assim

    Vou descobrir

    O que me faz sentir

    Eu, caçador de mim.

    Letra e música de Sérgio Magrão e Luis Carlos Sá. Interpretação imortalizada na voz de Milton

    Nascimento.

    Será Possível Encontrar o Gato Preto?

    Como não poderia deixar de ser, meus objetivos com esta obra são múltiplos,

    ainda que tenha me esforçado por conter minha já comentada “antibiotiquice de largo

    espectro”. Almejo discorrer sobre as relações entre a Filosofia Acadêmica, a Filosofia

    Clínica e o Coaching Ontológico, pontuando suas aproximações e seus distanciamentos

    circunstanciais. No decorrer do texto apontarei para alguns aspectos dessas abordagens

    que podem auxiliar líderes e professores em geral a exercer suas importantes atividades

    profissionais com mais prudência, ampliando suas percepções dos temas abordados e

    afim de ajudá-los a desenvolver um pensamento ainda mais crítico e abalizado, para que

    possam responder por conta própria a questão mais premente deste livro: Será que é

    possível encontrar o gato preto?

    É imperativo que fique claro a você leitor/a que este não é um livro sobre a

    história da Filosofia. Também não é um livro técnico sobre Filosofia Clínica e nem

    tampouco um manual de Coaching Ontológico. Contudo, esta obra poderá servir como

    uma pequena introdução a todas essas áreas, norteando o estudo daqueles que se

    interessam por elas. Outro ponto que deve ser entendido é que evitarei utilizar o termo

    filósofo para identificar os líderes e os professores que tenham “postura filosófica”,

    pois, parto do pressuposto que as atividades de um filósofo acadêmico transcendem a

    utilização do pensar filosoficamente o nosso cotidiano. Também não os chamarei de

    coaches ontológicos e muito menos de filósofos clínicos, pois estas são denominações

    utilizadas para definir profissionais que atuam com esses saberes de maneira formal e

    rigidamente estruturada, o que definitivamente, também não é o caso. Sendo assim,

  • sempre que minha intenção for, fazer alusão a um profissional, seja ele um professor ou

    um líder que se ampare no pensamento filosófico para exercer sua função com mais

    comedimento e de maneira abalizada e crítica, farei uso do termo filósofo coach, com

    intuito de diferenciá-los dos filósofos acadêmicos, dos coaches profissionais, dos

    filósofos clínicos e também dos líderes, professores e gestores que, em seu dia a dia,

    não têm o hábito de amparar suas condutas profissionais no pensamento filosófico.

    Logo, a designação de filósofo coach será utilizada para definir aquele profissional que

    entrou em contato com os pensamentos dos filósofos acadêmicos, ou com a Filosofia

    Clínica, ou ainda com as bases teóricas da Ontologia da Linguagem e do Coaching

    Ontológico, com vistas a fazer uso de parte de seus saberes sempre que tenha a intenção

    de patrocinar em si, em outro sujeito ou em grupos e equipes, posturas que facilitem a

    livre reflexão, a abertura para o diálogo, o pensamento crítico, e a argumentação sólida,

    e o pensamento complexo.

    As Subdivisões da Filosofia

    No decorrer do texto apresentarei a você, leitor/a, algumas das áreas da

    Filosofia, tais como a Antropologia Filosófica, que tem como função tentar responder

    a clássica pergunta “O que é o homem?”. É inegável que a visão que o homem faz de si

    está presente na complexa equação que origina suas crenças e que orienta suas escolhas.

    Assim, o conhecimento dos pressupostos da Antropologia Filosófica pode colaborar e

    ser de grande valia aos filósofos coaches que lidam com os modelos mentais dos

    indivíduos que compõem grupos e equipes diversas.

    A História da Filosofia nos auxiliará nos estudos dos seus distintos momentos;

    de seus proponentes, de seus temas e das dificuldades que tentou resolver; das

    afinidades e distanciamentos entre o pensamento filosófico e as condições políticas,

    econômicas, sociais e culturais de uma sociedade; das transformações de concepção do

    que seja a Filosofia e de sua função. Para o nosso filósofo coach, mergulhar no universo

    da História da Filosofia é alimentar-se de informações sistêmicas e que desnudam parte

    do gênio investigativo e do pensamento humano. Os fatos e personagens desta história

    podem nutrir sua capacidade de investigar a maneira como as pessoas que lidam

    observam o mundo.

    A Metafísica investiga o que está além do mundo físico. Originou-se na tradição

    clássica, mais precisamente com Aristóteles, que a designava Filosofia Primeira, algo

  • parecido ao que hoje se entende por Ontologia, que é o estudo da origem dos seres, de

    suas essências. Esta área filosófica abarca os conceitos sobre a realidade, o ser, o

    imutável, a verdade suprema, bem como as ponderações filosóficas e teológicas sobre a

    causa primeira. Fique atento/a leitor/a, pois este assunto norteará grande parte das

    reflexões que estão por vir.

    A Lógica tem interesse na formulação de argumentos que atinjam resultados

    válidos. Para isso, diversos pensadores trabalharam na análise das estruturas dos

    raciocínios, organizando-os, interpretando-os e classificando-os. A análise lógica das

    construções do pensamento e da fala ilumina potenciais falhas do processo de

    investigação e explicitação da realidade e das crenças, e pode ser uma ferramenta útil ao

    nosso filósofo coach.

    Intimamente associada à Lógica está a Filosofia da Linguagem que tem como

    objeto de estudo a manifestação da linguagem do homem, seus signos, seus

    significados, seus alcances, suas limitações. Desde o início do século XX, a Filosofia da

    Linguagem é uma das principais áreas da Filosofia. Sua importância para nosso filósofo

    coach pode ser resumida nas ideias contidas na filosofia de Wittgenstein. Ele afirma que

    muitas das questões e proposições dos filósofos provêm de não entendermos a lógica de

    nossa linguagem. Segundo ele, não é de admirar que os problemas mais profundos não

    sejam propriamente problemas.

    A Teoria do Conhecimento e a Epistemologia embora difiram em alguns

    aspectos quanto as suas intenções, - não me aprofundarei nesta questão - investigam

    quais são os problemas oriundos da relação entre o sujeito e o objeto do conhecimento,

    bem como as condições do conhecimento verdadeiro e os tipos de conhecimento.

    Preocupam-se com as maneiras com as quais o sujeito tenta conhecer o mundo que o

    cerca, apropriando-se dele. Em uma sociedade cada vez mais pautada em certezas

    advindas das já citadas “fórmulas mágicas” de resolução de problemas, questionar a

    maneira como nos apropriamos do mundo que nos cerca, pode ser uma ação eficaz para

    expandir nossa capacidade perceptiva, transformando-nos em observadores mais atentos

    às múltiplas possibilidades de interpretar aquilo que julgamos ser a “verdade do

    mundo”.

    A Filosofia Política estuda muitos assuntos que permeiam o universo do

    filósofo coach: a relação entre a política do cotidiano e o exercício do poder; os limites

    da autoridade; a violência efetiva ou velada; a coerção social e as imposições morais; a

    origem das normas morais, das ideias conservadoras ou mesmo revolucionárias. Foram

  • os filósofos que investigaram as forças que geram, mantém e destroem o Estado e,

    consequentemente, as relações entre seus cidadãos. Ao procurar entender a política,

    conjecturando sobre a luta pelo poder, assim como sobre as instituições por meio das

    quais se conquista e exerce este mesmo poder, pensadores como Platão, Locke, Hume,

    Hobbes, Maquiavel, Spinoza, produziram colossais tratados sobre a natureza humana,

    que ainda hoje podem ser de grande utilidade quando o assunto é a liderança.

    De todas as áreas da Filosofia, a Ética ou Filosofia Moral será nosso eixo

    norteador em busca da resposta para a questão que dá nome a este livro. Segundo

    Danilo Marcondes, a Ética é:

    [...] Uma das áreas que maior interesse desperta no campo da filosofia, sobretudo

    porque diz respeito diretamente a nossa experiência cotidiana, levando-nos a uma

    reflexão sobre os valores que adotamos, o sentido dos atos que praticamos e a maneira

    pela qual tomamos decisões e assumimos responsabilidade em nossa vida

    (MARCONDES, 2007, p.9).

    Etimologicamente, a palavra “ética” origina-se do termo grego ethos, que significa o

    conjunto de costumes, hábitos e valores de uma determinada sociedade ou cultura. Os

    romanos o traduziram para o termo latino mos, moris (que mantém o significado de

    ethos), dos quais provém moralis, que deu origem à palavra moral em português

    (MARCONDES, 2007, p.9).

    Logo, Ética e Moral são a mesma coisa? Sim e não. Apesar dos termos serem

    sinônimos, aos poucos foi se estabelecendo na sociedade uma diferenciação entre eles.

    Veja o que nos ensina Roger-Pol Droit em seu pequeno, mas elucidativo livro Ética:

    uma primeira conversa:

    Na época moderna, considerou-se com frequência que o termo “moral” pudesse estar

    reservado ao tipo de normas e valores herdados do passado e da tradição, ou então da

    religião. “Moral” especializou-se mais ou menos no sentido daquilo que “é

    transmitido”, como código de comportamentos e juízos já constituídos, mais ou menos

    cristalizados. Nesse sentido, aceitamos ou rejeitamos a moral de uma família ou de um

  • meio, seguimos os preceitos que a caracterizam ou os transgredimos. A moral parece

    constituir um conjunto fixo e acabado de normas e regras.

    Hoje, ao contrário, o termo “ética” é empregado principalmente para os campos em que

    as normas e regras de comportamento estão por ser construídas, inventadas, forjadas por

    meio de uma reflexão que é geralmente coletiva.

    [...] Em resumo, se nós quisermos distinguir os dois termos, “moral” seria referente às

    normas herdadas, “ética”, às normas em construção. “Moral” designaria principalmente

    os valores existentes e transmitidos; “ética”, o trabalho de elaboração ou de ajuste

    necessário em face das mudanças em curso (DROIT, 2012, p.18-19).

    Neste livro, utilizarei os termos Ética e Moral como sinônimos, mas em algumas

    ocasiões será necessário assumir a diferença pontuada acima por Roger-Pol Droit.

    Todavia, deixarei claro a você leitor quando isso for necessário.

    A Ética somente poderá ser definida como tal se houver possibilidade de

    deliberação livre. Quando houver repressão, coerção, coibição ou medo envolvido no

    ato da decisão, não se poderá classificá-la como Ética. O professor Clóvis de Barros

    Filho costuma exemplificar isto em suas aulas usando como exemplo a utilização de

    câmeras de fiscalização no trânsito ou àquelas colocadas em salas de aula. Seus

    defensores afirmam que as primeiras, moralizam o tráfico, e as segundas ajudam a

    moralizar o comportamento dos alunos. O já citado professor Clóvis - assim como

    muitos outros pensadores da Ética - discorda, pois, sempre que uma ação for realizada

    tendo como referência o medo de uma punição futura, ela não será livre, e não sendo

    livre, Ética também não o será. Câmeras de trânsito podem melhorar o tráfego e evitar

    acidentes, isso é indiscutível, mas, em contrapartida, desmoralizam-no. O mesmo se

    pode afirmar das câmeras colocadas em salas de aula. Com esta ação, abstém-se do

    diálogo e da problematização da convivência, privando os alunos de uma educação

    Moral sólida em detrimento da atitude menos trabalhosa: a punição do estudante. O

    resultado é sempre desanimador, pois a ação estimula um comportamento cínico,

    dissimulado. Comporta-se de uma maneira na frente das câmeras e de outra quando se

    está atrás dela. Estimula-se o engodo e a trapaça. Nada pior para uma sociedade tão

    carente de educação, mas que caminha no sentido avesso às suas premissas mais

    básicas.

  • Qual Vida Vale Mais?

    Talvez não seja errado afirmar que sempre que temos mais de uma opção de

    escolha, tendemos a optar por aquela que nos é a melhor, ou seja, a de maior valor. Por

    exemplo, sempre que aplico uma prova aos meus alunos tenho o desafio de valorá-las, e

    faço isso atribuindo a eles uma nota - geralmente entre zero e dez pontos. Todavia, a

    nota que concedo aos meus alunos não é aleatória, pois me amparo em alguns critérios

    pré-estabelecidos. No momento da correção levo comigo um gabarito perfeito. A prova

    nota dez está em minhas mãos, e em posse dela posso decidir o valor das provas de

    meus alunos. Com isso meu trabalho de escolha fica amplamente facilitado. No entanto,

    nem toda tomada de decisão é tão simples assim. Quando a coisa complica entraremos

    no complexo mundo da Axiologia.

    A Axiologia é a área da Filosofia que estuda os valores quando os

    compreendemos no sentido Ético ou Moral, ainda que muitos estudiosos creiam ser

    equivocado afirmar que a Axiologia seja uma área da Filosofia, uma vez que a Ética já

    se ocuparia do estudo dos valores. Controvérsias à parte, o estudo dos valores é

    imprescindível para o nosso filósofo coach, não pelo fato de ter que atribuir notas a

    alunos, mas por um motivo mais sofisticado: caberá a ele atribuir nota às diferentes

    vidas que poderá viver, e caberá a ele, também, ajudar pessoas a pensar com mais

    sagacidade esta intrigante questão. Coaches, filósofos clínicos e filósofos coaches lidam

    diariamente com desafios éticos. Conjecturam sobre o comportamento humano e as

    noções que tecemos sobre o bem e o mal, o certo e o errado, o justo e o injusto.

    Presenciamos o desenrolar da Ética e do estudo dos valores quando, por exemplo, um

    aluno escolhe sua futura carreira na fase pré-vestibular; um cliente toma uma decisão

    difícil durante um processo de Coaching; ou uma equipe de trabalho decide enfrentar

    um desafio corporativo lançando mão de uma, dentre dezenas de estratégias possíveis.

    Em todas essas situações estaremos escolhendo vidas supostamente mais valorosas e

    deixando de viver inúmeras outras que julgamos ter valor menor. Logo, estaremos no

    coração da Ética quando fazemos as seguintes perguntas: Qual escolha é a mais

    adequada neste momento?; O que ganho se decidir trilhar o caminho A e não o B?; O

    que perco indo em direção de A ou de B?; Como o sistema no qual estou inserido será

    afetado pela minha escolha?; O que este sistema poderá perder?; O que poderá ganhar?;

    Como esta escolha afetará a minha vida nos próximos anos? Porém, nem sempre nos

    fazemos essas perguntas nos momentos de deliberação, e o preço por agir desta maneira

  • pode ser amargo. Arrependimentos, amarguras, remorsos e melancolias são comuns

    àqueles que agem por impulso. Sendo assim, a Ética ou a Filosofia Moral pode nos

    ajudar em pelo menos dois aspectos. O primeiro diz respeito às conjecturas que faz

    sobre os códigos e sistemas morais elaborados ao longo de nossa história, assim como

    seus impactos em nossa trajetória existencial. O segundo relaciona-se à organização dos

    princípios de vida ou valores de conduta capazes de nos orientar para uma ação

    eticamente correta durante processos deliberativos - ainda que isso seja discutível e

    complexo. Se levarmos em consideração a diferenciação dos termos comentada mais

    acima, o primeiro aspecto estaria relacionado à Moral, e o segundo a Ética.

    Independente da cultura em que se esteja inserido, sempre será possível

    encontrar ideias que definem o que é considerado importante, válido e desejável para

    uma dada comunidade. Tais ideias refletem os princípios ou valores transmitidos de

    geração em geração, ou seja, os códigos morais que concedem sentido e direção aos

    agentes sociais que compõe essa comunidade e ajudam a erigir uma determinada

    cultura. A monogamia é um exemplo de valor encontrado na maioria das sociedades

    ocidentais (GIDDENS, 2005, p.39). Sendo assim, as normas de conduta instituem

    comportamentos que refletem os valores de uma cultura. Na sociedade, os valores dão

    origem às normas e essas estabelecem a maneira pela qual se espera que os membros de

    uma comunidade se comportem. Por exemplo, a maioria dos alunos na Grã-Bretanha se

    sentiria ofendida ao encontrar um colega “colando” em uma avaliação qualquer, pois

    em sua cultura copiar a resposta de outro aluno fere os valores da igualdade de

    oportunidade, respeito às regras e trabalho duro para atingimento de metas. Por sua vez,

    estudantes russos ficariam surpresos diante do sentimento dos colegas britânicos, pois

    amparar outro colega para que seja bem sucedido em um exame são ações que refletem

    o valor que os russos dão à solução coletiva de problemas (GIDDENS, 2005, p.39).

    Porém, nem sempre os valores de uma sociedade - Moral - refletem os valores

    do indivíduo - Ética, e nutro a opinião de que investigar com profundidade nossos

    valores é um passo imprescindível para que possamos escolher a vida que mais vale a

    pena vivermos. A vida boa tem que fazer sentido para o vivente, e para mais ninguém.

    Por isso, quero convidá-lo/a investigar os termos “significado” e “propósito”. Pense em

    você sentado/a em um restaurante com um cardápio em mãos. Agora responda: Qual o

    seu propósito neste momento? Arrisco a dizer que é ter uma boa refeição. Correto? E

    qual o significado do cardápio que tem em mãos? Auxiliá-lo/a na escolha da refeição.

  • Todavia, imagine-se abrindo o cardápio e percebendo que ele está escrito em um idioma

    que você desconhece. Imediatamente o cardápio perderá o significado, mas seu

    propósito permanecerá com você. Posso hipotetizar outra situação. O cardápio pode

    estar escrito em português, e você pode perceber o significado dele, ainda que este

    significado não esteja a serviço de nenhum propósito, pois agora você não deseja uma

    refeição, uma vez que esta somente acompanhando um amigo ao restaurante. Logo,

    significados podem ser ações que nos auxiliam no atingimento de metas, na realização

    de propósitos. Percebemos que determinadas ações que fazemos são significativas para

    que possamos atingir nossos propósitos, mas também temos a capacidade de identificar

    ações significativas para a conquista de metas que não sejam as nossas. Por isso somos

    seres empáticos. Como coach ontológico tenho atendido uma grande quantidade de

    clientes que se mostram angustiados com a falta de propósito em suas vidas. Muitos

    parecem confundir “significados” com “propósitos”. Se voltarmos ao nosso restaurante,

    o exemplo bizarro que simbolizaria isso seria você devorando o cardápio ao invés de

    degustar uma refeição. Você já se perguntou qual propósito de sua vida? Já analisou

    com parcimônia “os porquês” de suas ações no mundo? Saberia dizer com clareza a

    qual propósito suas ações estão a serviço? Infelizmente, muitos de nós não temos

    resposta para essas questões, e outros tantos, principalmente com o passar dos anos,

    angustiam-se com esta situação. Um antídoto possível para isso é filosofar. Pensar

    propósitos de ações é função de profissionais que orientam suas condutas por meio da

    Filosofia. Ajudam a estabelecer estratégias, pensar em ações adequadas, valorar

    condutas. Significado, estratégia e valores meios passam a ser sinônimos nesta

    complexa equação do bem viver. Atingir propósitos torna-se dependente da adequação

    das condutas, e para adequá-las é prudente investigar os valores que as nortearão.

    Valores meios a serviço de um valor fim, de um propósito maior, de uma missão de

    vida, do atingimento de uma identidade singular.

    Quais valores têm norteado suas condutas com vistas ao atingimento da vida

    boa? Respeito; Lealdade; Companheirismo; Amizade; Dinheiro; Resultado; Prazer;

    Obediência; Disciplina; Comiseração; Ternura; Generosidade; Consumo; Força;

    Aprendizagem Contínua; Sexo; Responsabilidade; Segurança; Liberdade; Fé; Família;

    Perseverança; Transparência; Honestidade; Perdão; Fidelidade; Individualidade;

    Igualdade; Meritocracia; Paz; Diversão; Conexão; Não Violência; Tolerância;

    Laicidade; Religiosidade; Sinceridade; Esperança; Cooperação; Foco; Competição;

  • Comprometimento; Amor; Criatividade; Bondade; Empatia; Partilha; Tradição; Alegria;

    Doação; Serenidade; Gratidão; Esperança; Humildade; Orgulho; Identidade;

    Crescimento; Serviço; Carinho; Abertura; Comunicação; Repouso; Misericórdia;

    Altruísmo; Transcendência; Estima; Desprendimento; Acolhimento; Justiça; Confiança;

    Entusiasmo; Cuidado; Diálogo; Flexibilidade; Imparcialidade; Vontade; Determinação;

    Coragem; Assertividade; Agilidade; Conhecimento; Compreensão; Entusiasmo;

    Compromisso; Inovação; Maturidade; Humor; Organização; Beleza; Equilíbrio;

    Parcimônia; Comedimento etc. A lista vai ao infinito. Todavia, é preciso escolher, pois

    somente por meio desta escolha estaremos afirmando para o mundo, e para nós mesmos,

    quem somos, quem queremos ser, quem não somos e quem não queremos ser.

    A Complexidade dos Valores

    A complexidade e suas decorrências são os alicerces do chamado “pensamento

    complexo” ou “teoria da complexidade”, exposto e parcialmente desenvolvido por

    autores como Warren Weaver, Gaston Bachelard, Anthony Wilden e Edgar Morin, que

    vê o mundo como um todo indissociável e sugere uma abordagem multidisciplinar e

    multirreferenciada para a construção do conhecimento. A complexidade contrapõe-se

    aos pensamentos simplistas amparados em uma causalidade linear, ou seja, “isso é

    assim por causa daquilo”. A complexidade tem uma visão orgânica do mundo e

    investiga as redes de acontecimentos que dão origem ou fim aos fenômenos observados.

    Esta forma de investigação tem influenciado muitos campos do saber, tais como a

    Matemática, a Física, a Biologia, a Sociologia, a Meteorologia, a Medicina, entre outras.

    A Filosofia também tem sido fortemente impactada pelo pensamento complexo, e a

    Ética não poderia ficar de fora desta investigação. Segundo Edgar Morin “Quando se

    trata de obedecer a um dever simples e evidente, o problema não é ético, mas ter a

    coragem, a força e a vontade de realizar seu dever. O problema ético surge quando dois

    deveres antagônicos se impõem” (MORIN, 2011, p.47). Ou seja, escolher entre um bem

    e um mal é fácil, o problema se instaura quando temos que decidir entre dois bens ou

    dois males. A contradição está sempre presente no pensamento complexo, e a Ética não

    escapa a este dilema. Por mais que desejemos, não há - como querem os autores de

    autoajuda -, soluções categóricas e simplistas que possam ser adequadas em todas as

    circunstâncias. Imperativos éticos antagônicos surgem frequentemente em nossa vida,

  • determinando conflitos de deveres que podem nos levar a situações angustiantes. “As

    grandes dificuldades éticas estão menos numa insuficiência do que num excesso de

    imperativos” (MORIN, 2011, p.47). Acompanhe:

    Existem contradições éticas entre dois “bens” a promover e entre dois males sem que se

    saiba qual é o pior. Indiquei que podia haver antagonismo entre a ética para o indivíduo

    e a ética para a sociedade. Deve-se destacar também, como mostra o teorema de Arrow,

    a impossibilidade de harmonizar completamente o bem individual e o bem coletivo, a

    impossibilidade de agregar um interesse coletivo a partir de interesses individuais,

    assim como de definir uma felicidade coletiva a partir do conjunto de felicidades

    individuais. Em geral, podemos concluir pela impossibilidade de estabelecer um

    algoritmo de otimização nos problemas humanos, ou seja, pela impossibilidade de

    conceber e garantir um bem soberano. Com efeito, a busca de otimização ultrapassa

    todo potencial de investigação disponível e, finalmente, otimiza a busca de otimização.

    Devemos limitar-nos a elaborar soluções “satisfatórias”, as do mal menor? (MORIN,

    2011, p.48).

    Como vimos, é muito comum entre as literaturas simplistas os títulos que

    apregoam “o poder” de determinados valores, como o poder do amor; da generosidade;

    do hábito; da paciência; da persuasão; da meditação; do perdão; do silêncio; do agora;

    da tolerância etc. Contudo, a maneira como tais livros são escritos faz vistas grossas às

    contradições inerentes a toda complexidade do existir. “Há contradição na tolerância.

    Até que ponto se deve tolerar aquilo que pode destruir a tolerância? Quando a

    democracia esta em perigo, a tolerância pode tornar-se suicida” (MORIN, 2011, p.47).

    O sociólogo Max Weber afirma que estamos todos submetidos a uma multiplicidade de

    deveres e passamos a vida reféns de um forçoso politeísmo de valores - uns entrando em

    conflito com outros (MORIN, 2011, p.48). Desfruta-se da segurança de um emprego

    público, mas reclama-se da falta de liberdade para gerenciar uma agenda diária flexível.

    Logo, responda: Qual valor vale mais, liberdade ou segurança? Defende-se com unhas e

    dentes o valor transparência, mas luta-se pela manutenção da privacidade individual e

    coletiva. Os conflitos éticos vão ao infinito: respeito versus prazer; disciplina versus

    diversão; inovação versus tradição; confiança versus desconfiança. Eu sei, você está se

    perguntando se a desconfiança é um valor. Sim! É óbvio que sim. A Filosofia não é

  • hipócrita nem tampouco está a serviço daquilo que Luiz Felipe Pondé chama de “a

    praga do politicamente correto” (PONDÉ, 2012). Logo, abdique da desconfiança em sua

    vida e perceba como ela se transformará em uma vida muito mais trabalhosa,

    desafiadora e potencialmente entristecedora. É somente uma questão de bom senso.

    Morin continua:

    [...] Enfim, há um conflito inerente e muito profundo no seio da finalidade ética, pois a

    realidade humana comporta três instâncias: indivíduo, sociedade, espécie; finalidade

    ética é, então, trinitária. Assim, necessitamos de um dever egocêntrico para viver pelo

    qual cada um é para si mesmo centro de referência e de preferência. Temos um dever

    genocêntrico pelo qual – genitores, prole, família, clã – constituem o centro de

    referência e de preferências. Temos um dever sociocêntrico pelo qual nossa sociedade

    se impõe como centro de referência e de preferência (MORIN, 2011, p.48).

    [...] Esses deveres são complementares, mas embora surjam ao mesmo tempo, tornam-

    se antagônicos (MORIN, 2011, p.48).

    O filme A missão do gerente de recursos humanos representou Israel no Oscar

    2010. Na película, um gerente de RH da maior empresa panificadora de Jerusalém vive

    uma sucessão de conflitos em sua vida. Ele se separou da sua mulher e, apesar de gostar

    muito de sua filha, sabe que tem sido um pai ausente e deseja reverter esta situação.

    Todavia, depois de mais uma promessa de resgate de proximidade com sua filha, uma

    de suas funcionárias morre em um atentado terrorista, e ele é designado para

    acompanhar o cadáver da moça até sua terra natal, a Rússia. Contudo, o cumprimento

    deste dever profissional, cívico e humano pressupõe o descumprimento da promessa

    feita à sua filha. A complexidade da Ética se impõe soberana produzindo a angústia

    existencial tão comum àqueles que gozam da liberdade deliberativa, mas que necessitam

    pagar o preço das escolhas que realizam. Edgar Morin nos alerta:

    A incerteza ética depende não somente da ecologia da ação (uma boa intenção não pode

    produzir o mal?), das contradições éticas, das ilusões do espírito humano, mas também

    do aspecto trinitário pelo qual a autoética, a socioética e a antropoética são, ao mesmo

  • tempo, complementares, concorrentes e antagônicas. Deve-se em cada ocasião

    estabelecer uma prioridade e fazer uma escolha (aposta) (MORIN, 2011, p.57).

    [...] Onde está a justiça? (A cada um conforme seus méritos? A cada um conforme as

    suas necessidades?) Onde está a verdade ética superior? Lei? Castigo? Misericórdia?

    Perdão? (MORIN, 2011, p.58). [...] Onde está verdadeiramente o bem? Na obediência à

    lei (moral bíblica)? Na virtude (moral aristotélica)? No amor (moral paulina)? Na

    insubmissão? (MORIN, 2011, p.58).

    Todas essas perguntas têm sido balizadoras de parte do pensar filosófico, e

    espero que você não tenha esquecido de que iniciei esta introdução pontuando um dos

    objetivos deste livro. Sendo assim, acrescento às perguntas acima, aquela que deu

    origem ao título deste livro: Onde está o gato preto?

    Marcello Árias Dias Danucalov

    Santos, XX, de XXXXXXX, de 2017

    Referências bibliográficas

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    GIDDENS, A. Sociologia. 4ª Edição. Porto Alegre: Artmed, 2005.

    MARCONDES, D. Textos básicos de Ética: de Platão a Foucault. Rio de Janeiro:

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    MORIN, E. O método 6: Ética. Porto Alegre: Editora Sulina, 2011.

    PACHECO, L.K & NESI, M.J. Filosofia. Palhoça: Unisul Virtual, 2007.

    PONDÉ, L.F. Guia politicamente incorreto da Filosofia: ensaio de ironia. São Paulo:

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    SAUTET, M. Um café para Sócrates: como a Filosofia pode ajudar a compreender o

    mundo de hoje. 8a Edição. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 2012.

  • SAVIANI, D. Educação: do senso comum à consciência filosófica. São Paulo: Autores

    Associados, 2002.