PARA LER VIEIRA

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    PARA LER VIEIRA: AS 3 PONTASDAS ANALOGIAS NOS SERMES

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    E como se para um mistrio to alto fosse pouco tempo um dia,e pouca celebridade uma festa,

    a torna hoje a celebrar com repetida venerao esta nossa igreja.(Antnio Vieira. Sermo da Santa Cruz, 1638).

    E no em outro dia seno hoje!Grandes suspeitas me d este Santo que vem ajudar-nos

    a celebrar a nossa festa,mais que desejoso de celebrarmos a sua.

    (Antnio Vieira. Sermo de So Roque, 1644).

    RESUMOO estudo considera as trs articulaes necessariamente presentes num sermo de modelo sacramentalno sculo XVII ibrico: ano litrgico, evangelho do dia, e circunstncias da pregao.

    PALAVRAS-CHAVE: Antonio Vieira. Oratria sacra. Sermes. Liturgia. Hermenutica.

    H tempos, formulei a hiptese de uma unidade teolgico-retrico-poltica dos sermes do

    Padre Antnio Vieira (1608-1697).2 Em termos restritos, ela est em oposio direta ao lugar comumda fortuna crtica do jesuta que entende sua obra como essencialmente contraditria. Em termosmais amplos, ope-se tese corrente da existncia da literatura brasileira como reflexo ourepresentao de certa brasilidade, cujos traos prefiguradores poderiam ser descobertos,isolados e conservados em diversos lugares da produo letrada colonial, considerada ainda portuguesaou internacional, at serem integrados, como sistema, ao capital intelectual do pas no sculo XIX.

    1 Professor livre-docente de teoria literria na Unicamp.2 Cf. Teatro do Sacramento. Campinas: Editora da Unicamp; So Paulo: Edusp, 1994.

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    Para ler Vieira: as 3 pontas das analogias nos sermes

    O ANO LITRGICO OU ECLESISTICO

    O ano eclesistico, como sabido, diz respeito srie de tempos e dias santos, definidos pelaIgreja, que comea com a Primeira Dominga do Advento e fecha na ltima semana depois de Pentecostes.A celebrao peridica dessas solenidades refere a memria, guarda e ensino dos mistrios e dogmas daIgreja, entendidos ortodoxamente como legados de Cristo. Assim, um pregador, quando diz o seu sermo,deve ajust-lo necessariamente aos significados doutrinrios da ocasio. Apenas a ttulo de lembrana,especificaria que o calendrio eclesistico compe-se basicamente de 3 tempos santos, a saber:

    1. tempo: do Advento Septuagsima.Os temas genricos dos sermes desse perodo so a promessa da vinda do Messias; o mistrio

    da Encarnao; o nascimento de Jesus, sua juventude e ministrio (portanto, a graa de Deus aoenviar seu filho terra); e, por ltimo, o chamado segundo advento, isto , a volta de Cristo comojuiz ao fim da histria. Todo o perodo adventcio significa catolicamente uma preparao para o

    Natal, e o seu primeiro Domingo contado quatro semanas antes dele (caindo, assim, em novembro).Nesse perodo, portanto, as principais solenidades so: o 1. Domingo de Advento (ou Dominga, como sedizia no XVII), que constitui justamente a abertura do calendrio litrgico; o Natal; e a Epifania, quetrata da manifestao divina como chamado (ou vocao, como se dizia) verdadeira religio, que secomemora no Dia de Reis, em 6 de janeiro.

    2. tempo: da Septuagsima Ascenso.Os temas tratam genericamente da redeno e misericrdia de Cristo. As principais datas a

    balizar esse perodo so: a Septuagsima, que conta os 70 dias faltantes para a Pscoa, quando se

    celebra a ressurreio de Cristo; a Sexagsima, que celebra os 60 dias antes dela e que, no caso deVieira, d nome ao mais conhecido de seus sermes (paradoxalmente, no tenho notcia, em toda aimensa fortuna crtica a respeito dele, de um s artigo em que a festa tenha sido seriamente consideradacomo capaz de trazer alguma elucidao aos argumentos e metforas ali empregados); a Qinquagsima,que est a 50 dias da Pscoa, ainda em fevereiro; a Quaresma, que nomeia o perodo de 46 dias que vaida 4. feira de Cinza(assim mesmo, no singular, como se diz no sculo XVII) e vai at o 1. Domingo daPscoa; e, ainda, a Semana Santa, que fecha esse perodo, contando-se do Domingo de Ramos(entrada deCristo em Jerusalm) ao Domingo de Pscoa. Este, por sua vez, conta-se como o primeiro domingodepois da lua cheia do equincio de maro. O perodo, como todos sabem, vai de fevereiro a finais de

    abril. Ainda neste segundo tempo santo, convm referir a Quinzena da Pscoa, perodo que inclui a SemanaSantamais a semana seguinte, que vai do Domingo de Pscoaao Domingo da Pascoela, ainda em abril.

    3. tempo: da Ascenso a Pentecostes.Nesse intervalo so celebrados basicamente os benefcios do Esprito Santo. Fazem parte dele

    as festas da Ascenso e de Pentecostes, que se do respectivamente a 40 e 50 dias depois da Pscoa,celebrando-se, nesta ltima, a descida do Esprito Santo sobre os Apstolos em lnguas de fogo.

    Tais referncias genricas dos tempos litrgicos, por sua vez, esto articuladas necessariamente,na composio dos sermes, aos passos dos Evangelhos previstos para serem lidos nas missas a cadadia do ano. Assim, quando o pregador faz o seu sermo, ele o apresenta justamente como um comentrio

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    apropriado, mais ou menos dilatado, leitura que se acabou de fazer do Evangelho do dia, ouvidapelos fiis presentes cerimnia da missa. Com base nesse texto, as tpicas mais gerais ditadas pelocalendrio litrgico subdividem-se ou especificam-se segundo novas linhas de ponderao ou deproliferao de analogias conceituosas.

    O EVANGELHO DO DIA

    Para que a exposio se torne menos bvia e mais demonstrativa, considere-se, por exemplo,um sermo do tempo adventcio, que justamente abre o calendrio litrgico. O Sermo da PrimeiraDominga do Advento, que Vieira refere ter pregado na Capela Real de Lisboa, no ano de 1650, estentre os mais celebrados e conhecidos dos duzentos e poucos que deixou registrados em sua editioprinceps. No se trata, porm, aqui, de examin-lo com mincia, mas de utiliz-lo como forma deapresentar essa chave de leitura, que considera prioritrias as relaes significativas propiciadas pelascategorias litrgicas.

    Como se viu j, os mistrios tpicos do Advento so: a promessa do Messias; a Encarnao; onascimento de Jesus; a sua juventude e ministrio; o Juzo Final. Antes de seguir adiante, segundo oeixo analgico de 3 pontas que mencionei, obrigatrio deter-me na considerao do Evangelho dodia. No caso, trata-se de Lucas 21, 25-33 cuja lembrana na Igreja justamente a do ltimo pontoreferido: o Juzo Final. Talvez parea excessiva a idia de se ler o Evangelho do dia to logo seconsidere determinado sermo, mas efetivamente no se trata aqui de propor nenhuma forma recicladade beataria. O que Vieira e os catlicos lem como ritual de f, considero-o aqui como articulao desentido prevista nas determinaes de gnero, nem mais, nem menos. Isto dito, na Vulgata, Lucas 21,25-33 reza o seguinte:

    LUK 21 25 et erunt signa in sole et luna et stellis et in terris pressura gentium prae confusionesonitus maris et fluctuumLUK 21 26 arescentibus hominibus prae timore et expectatione quae supervenient universoorbi nam virtutes caelorum movebunturLUK 21 27 et tunc videbunt Filium hominis venientem in nube cum potestate magna et maiestateLUK 21 28 his autem fieri incipientibus respicite et levate capita vestra quoniam adpropinquatredemptio vestraLUK 21 29 et dixit illis similitudinem videte ficulneam et omnes arbores

    LUK 21 30 cum producunt iam ex se fructum scitis quoniam prope est aestasLUK 21 31 ita et vos cum videritis haec fieri scitote quoniam prope est regnum DeiLUK 21 32 amen dico vobis quia non praeteribit generatio haec donec omnia fiantLUK 21 33 caelum et terra transibunt verba autem mea non transient 3

    3 Ou, na traduo portuguesa do Manual do Cristo, do Padre Leonardo Goffin, cuja primeira edio alem de 1690: Naquelle tempo,disse Jesus a seus discpulos: Haver signaes no sol, na lua e nas estrellas e na terra, consternao das gentes por causa da confuso do bramidodas ondas; mirrando-se os homens de susto na expectao do que vir sobre todo o mundo, porque as virtudes do co se abalaro. E ento,vero o Filho do Homem vindo sobre uma nuvem com grande poder e magestade. Quando, pois, estas cousas comearem a cumprir-se,olhae e levantae as vossas cabeas, porque se approxima vossa redempo. E propoz-lhe esta comparao: Vde a figueira e as mais arvores;quando comeam a produzir fructo, conheceis que est proximo o estio. Assim tambem quando virdes estas cousas cumprir-se, sabei queest proximo o reino de Deus, Em verdade vos digo que no passar esta gerao emquanto no se cumprirem todas estas cousas. Passaro

    o co e a terra, mas as minhas palavras no passaro.

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    Dentre os temas principais do Advento, portanto, o Evangelho em questo selecionou aquelerelativo ao tempo terrvel do Juzo Final, tendo em vista mover o auditrio penitncia e emendados costumes. Mas possvel ir bem alm disso e especificar alguns lugares de significaoparticularmente relevantes na tradio exegtica da passagem, disponvel na inveno retrica dosermo. Vale dizer, importa agora, sobretudo, levantar as tpicas do repertrio tradicional da parenticae da teologia bblica associadas ao tema do Juzo Final. Entre elas, a ttulo de exemplo, alguns lugarescomuns da teologia bblica empregados a propsito da categoria mstica do Juzo4 so:

    (1) A articulao semntica entre julgar e reinar.Tais termos, aparentemente distantes numa gramtica contempornea, aparecem estreitamente

    ligados na Bblia (por exemplo, em Jz 16, 17:Ento o Senhor fazia surgir juzes que os libertavamdos assaltantes.) Essa articulao est patente tambm no livro dos Juzes, cujo esquema geral,segundo Pesch, basicamente quaternrio: Israel peca/ Deus pune/ Israel se arrepende e suplica/Deus salva por meio de um juiz (que pode ser maior, isto , carismtico, inspirado; ou menor,

    tratando-se to somente de ocupar o posto de lder ou governante);(2) O alerta contra os abusos praticados pelos Juzes.Aos juzes cabe garantir a cada um o lugar que lhe devido segundo a vontade de Deus no

    corpo de seu povo; todo poder cuja fonte no se fundamente na justia, que reporta a Deus, vciodaquele que manda (por ex: Lev. 19,15: No cometais injustias em juzo [...] Julga o prximoconforme a justia);

    (3) A implicao de castigo e salvao, na ocasio do Juzo.A purificao do povo por meio do julgamento tem o propsito de reaproxim-lo de Deus e,

    portanto, deve ser compreendido no interior de uma economia salvfica;

    (4) O anncio da proximidade do Juzo.Tal proximidade, por sua vez, acentua a seriedade do julgamento e a exigncia de uma deciso

    imediata de emenda da vida (Mc 1, 15: Completaram-se os tempos, est prximo o reino de Deus,convertei-vos e crede no Evangelho);

    (5) A salvao para todos os que confessam na f.As decises que contam para a salvao j so tomadas durante esta vida, sobretudo na

    perspectiva joanina (Por exemplo, em J 3, 18: Quem cr nele, no julgado, e quem no cr, j estjulgado, porque no creu no nome do Filho).

    Todos os lugares referidos so conhecidos da tradio da leitura bblica associada ao tema do

    Evangelho em questo. Vieira, como qualquer pregador eficiente do perodo, domina perfeitamenteesses lugares; para diz-lo corretamente, eles j esto dados no repertrio possvel a ser selecionadoem seu sermo. Quer dizer, so lugares argumentativos que esto desenvolvidos ainda antes queVieira sequer comece a compor o sermo pela primeira vez. Mas antes de falar propriamente dasescolhas feitas pelo jesuta na produo desse Sermo da Primeira Dominga do Advento, que interessaaqui mais como exemplo de articulao disponvel ou provvel do que como andamento argumentativoespecfico, gostaria de considerar rapidamente a terceira ponta em jogo na produo das analogias debase de um sermo de matriz ibrica seiscentista.

    4

    Cf. PESCH, W. Juzo/Julgamento. In: BAUER, J. B. (Org.). Dicionrio de teologia bblica. So Paulo: Loyola, 1983.v. 2.

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    AS CIRCUNSTNCIAS DA ENUNCIAO

    Vieira, como sabido, chegou ele prprio a editar os seus sermes, aps reescrev-los nosltimos 18 anos de sua vida por ordem do Geral dos jesutas, Padre Giovanni Paolo Oliva, um finohomem de letras. Nesse caso, as circunstncias a considerar nos sermes compem um domnioverdadeiramente complexo. Em primeiro lugar, possvel falar em circunstncias diretas da pregao,que levam em conta a prpria atribuio do jesuta, ou de comentaristas, do local e data onde elateria sido efetuada oralmente no caso, a Capela Real lisboeta, com a presena na missa do prpriorei D. Joo IV e de alguns de seus principais conselheiros. Em segundo lugar, cabe falar emcircunstncias indiretas, ou seja, aquelas que atuaram no momento da reescrita do sermo. Porvezes, como aqui, ele est distante muitos anos do suposto ato original da pregao, com alteraesenormes na situao de sua produo. Apenas para dar uma breve idia do tipo de distncia envolvidaaqui, basta observar que, desde a data atribuda de pregao, 1650, at a data possvel de sua reescrituratendo em vista a edio ordenada pelo Geral, passaram-se mais de 30 anos, pois o sermo s

    publicado na Terceira Parte da editio princeps, em 1683. A considerar o local da pregao e o dareescrita, a distncia no se reduz. Houve deslocamento no apenas de cidade, mas de continente: daCapela do Pao Real da Ribeira, em Lisboa, ao Colgio da Companhia de Jesus, na cidade da Bahia,Provncia do Brasil.

    No preciso, aqui, esmiuar essas diferenas, mas apenas evidenciar as variveis complexasque elas envolvem. Em termos da situao em jogo nas circunstncias diretas do sermo, pode-selembrar, ao menos, dos 5 ou 6 anos anteriores a ele, nos quais Vieira ocupou-se com importantesmisses diplomticas nas cortes de Haia, Paris e Roma, que lhe foram confiadas pelo primeiro reiBragana, D. Joo IV. Nesse perodo, empenhara-se tambm na reforma dos estilos da Inquisio,

    que dava como necessria e decisiva para o retorno providencial dos cristos-novos a Portugal. Assuas atuaes nesses episdios, entre outros, como sabido, trouxeram-lhe inmeras amizades eobstculos naquela mesma corte que estaria assistindo abertura do ano litrgico no ano de 1650.

    J nas circunstncias indiretas do sermo, pode-se aludir a um Vieira septuagenrio, vivendona Bahia, sem mais nenhuma expectativa razovel de retorno ao conselho real de Lisboa. Agora, asua preocupao centrava-se, ao que consta, nas questes hermenuticas lanadas nos escritos aindaparcialmente inditos conhecidos como Clavis Prophetarum; nas disputas internas e externas daOrdem em relao aos negcios indgenas, e nas violentas desavenas, na cidade da Bahia, entre ogrupo poltico de sua famlia, os Vieira Ravasco, e o dos Sousa e Meneses. Diante dessas diferenas

    acentuadas, algumas perguntas acabam sendo inevitveis; por exemplo: de que modo as circunstnciasdiretas poderiam ser relidas pelas indiretas? Isto , de que modo 1650 apropriado por 1683?Qual a fala de 1650 que apenas se acaba de escrever em 1683? De que maneira as tpicaslitrgicas e bblicas determinantes do sermo permitiriam a (re)construo dessa fala?

    Seja como for, interessante notar que, se 1650 o tempo de disputa do Vieira valido embusca de proeminncia junto ao rei, 1683 o tempo de exlio definitivo da corte, quando a antigadisputa j estava definida contra o jesuta. Assim, no parece abstruso imaginar que, da superposiodos tempos nos sermes, resulte um Padre Vieira que j no tem a perder por escrito o que pleiteavana suposta situao original da prdica. Essa circunstncia poderia lev-lo, por exemplo, a tornarmais ousada ou mais dura a censura ao Rei e Corte na verso reescrita em comparao com a que

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    ele havia produzido na prdica diante deles? So questes que exigem o cotejo de outros papis e queficam aqui apenas para assinalar a complexidade desse jogo de duplos temporais presente nos sermes.

    Cabe considerar agora os argumentos efetivamente empregados no sermo de modo a amarraras trs pontas de significao analgica de que venho falando.

    OS ARGUMENTOS DO SERMO DO ADVENTO, 1650

    Assim, considerando finalmente o sermo produzido por Vieira, interessante notar que ele oinicia por uma ponderao misteriosa, como era prtica comum nos sermes engenhosos seiscentistas.Pergunta Vieira pela razo ocultasob o mistrio de caberem todos os homens de todas as pocas nomesmo Vale do Josaf, onde desceria o Cristo no tempo do Juzo Final; amplificao mistrio com acomparao irnica do vale do Juzo com a praa do Pao da Ribeira, onde os enormes squitos depoucos grandes do reino bastavam para tomar toda a sua extenso. Para apresentar a sua resposta aocaso, Vieira prope ao seu auditrio, maneira inaciana, uma imaginao ou composio de lugar5

    da cena do Juzo, de tal modo que as autoridades temporais e espirituais portuguesas, supostamenteali presentes, deveriam, ento, imaginar-se como rus na expectativa do seu julgamento final naqueledia sublime, em que podero salvar-se ou danar-se eternamente. Para o propsito particular destetrabalho, interessa apenas notar que, centrado na encenao do momento dramtico da separaoentre os bons e os maus, o sermo levado a afirmar trs aspectos decisivos do Juzo:

    (1) a ressurreio na f significar uma reparao, com arbtrio, da fortuna do nascimento;(2) no haver privilgio de estado, seja da nobreza, da realeza ou do eclesistico: a investidura

    no determinar a salvao ou a condenao, mas to somente as obras da vida;(3) reis e cortes sero objeto de juzo especialmente rigoroso, por incorrerem em dois pecados

    principais: o pecado da omisso, quando se deixa de fazer o que o cargo obriga e onde a ocasioexige ao decidida, e o pecado de conseqncia, quando a corrupo do voto ou de um atoinicial traz sucessivos desmazelos. Ou seja, governantes e ministros devero pagar com a prpriacondenao eterna os desastres em cascata causados pelas aes necessrias e justas que deixam defazer na hora certa e pelas errneas e injustas que fazem quando no deviam.

    Bem defendidos os pontos elencados acima, Vieira j pode ento revelar a razo oculta domistrio de caberem todos, vivos e mortos, a um s tempo, no estreito vale de Josaf. Prope entoque, na situao da vida presente, os homens que tm poder sentem-se imortais e incham de vaidadee soberba, ocupando grandes espaos com falsos bens, enquanto, no tempo do Juzo, esses mesmos

    outrora poderosos que, por isso mesmo, tinham muitos outros homens a sua conta, sem que tenhamsabido zelar por eles , em vez de inchar, encolhero, mirraro de tanto medo da sentena que seabater sobre eles. Cabero ento todos, facilmente, onde antes no cabiam uns poucos. Combina-se,pois, um andamento ameaador, acentuado pela composio cenogrfica do tempo fatal do Juzo, euma ponderao que se resolve, seno de maneira maldosa, ostensivamente irnica. Tal combinao certamente um dos trunfos dos sermes bem temperados de Vieira.

    Entretanto, o que mais me interessa notar que os lugares argumentativos destacados acima,ajustados ao desfecho da razo oculta, mostram que Vieira, durante todo o sermo, esteve operando

    5 Cf., por exemplo, o primeiro prembulo do primeiro exerccio de meditao dos Exerccios Espirituais: la composicin ser ver conla vista de la imaginacin el lugar corpreo donde se halla la cosa que quiero contemplar. In: LOYOLA, S. I. de. Obras. Madrid: B.A.C., 1997.Citao p. 236.

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    fortemente balizado pela trplice articulao semntica que referi. Evidncia ostensiva disso ametfora que finalmente decide o sermo, qual seja, mirrar de pavor. Se ainda cabe lembrana doincio deste texto, ela estava dada j no Evangelho de Lucas [...] arescentibus hominibus prae timore etexpectatione [...].6 O sermo determina, pois, uma espcie de razo de lugar na Repblica, que seilustra na comparao entre os antigos costumes virtuosos dos ministros, onde cada coisa era cabida,isto , decorosa, e as prticas dos seus pares contemporneos, nos quais ampliando a soberba j nocabem a honra, o decoro, a poltica e, enfim, perde-se a alma.

    Assim, para encerrar, diria que o sermo tem seu incio antes ainda de o padre Vieira comporuma s linha dele. Quando comea a pregao, j uma mquinade composio est em andamento,pronta a fornecer-lhe os principais anlogosda inveno e metforas da elocuo, bem como os cruzamentosentre eles. Esse aspecto bsico do gnero parentico, que postula uma hermenutica na qual astpicas polticas ajustam-se tradio bibliolgica e litrgica, segundo o jogo complexo dos temposde sua produo, pode, entretanto, ficar soterrado sob as consideraes to entusisticas quantoanacrnicas da genialidade de Antnio Vieira. Seja l o que se queira indicar com os termos gnio,

    genial, genialidade, e sem pretender sequer recus-los, parece-me, contudo, mais pertinente oufuncional referir a produtividade prpria dos lugares convencionais do gnero, sobretudo consideradoem sua insero na tradio catlica. No h nada a temer: Vieira no perde nada com isso; ele nose torna um reprodutor vulgar de frmulas do passado. Ao contrrio: ele se torna uma autoridadenognero ao emular a tradio e propor novas formas particulares de atualiz-lo e de torn-lo eficazpara novos auditrios.

    ABSTRACTThis study considers the three necessary branches in one sermon of sacramental style in the seventeeth

    Iberic century: the liturgical year, the gospel of the day, and the circumstances of the preaching.

    PALAVRAS-CHAVE: Antonio Vieira. Sacred Oratory. Sermon. Liturgy. Hermeneutics.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    LOYOLA, S. I. Obras. Madrid: B.A.C., 1997.

    PCORA, A. Teatro do Sacramento.A unidade teolgico-retrico-poltica dos sermes de AntonioVieira. Campinas: Editora da Unicamp; So Paulo: Edusp, 1994.

    PESCH, W. Juzo/Julgamento. In: BAUER, J. B. (Org). Dicionrio de Teologia Bblica. So Paulo:Loyola, 1983. v. 2.

    6

    Traduo: [...] mirrando-se os homens de susto na expectao [...].