Para Repensar a Região

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Análise da construção de componente curricular no Ensino Fundamental para abordar a temática da identidade gaúcha e a história do regionalismo.

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  • Para repensar a regio: uma proposta de ensino integrado

    de Geografia e HistriaJocelito Zalla*

    Mara Suertegaray Rossato**

    Resumo: Frente atualidade do debate sobre identidades na-cionais e regionais, propomos, neste trabalho, a anlise de uma ao de ensino integrada de Geografi a e Histria, realizada no CAp-UFRGS, que pretendeu traduzir em novas estratgias e abordagens didticas os conhecimentos acadmicos sobre a construo da ideia de regio e da fi gura do gacho tradicional no Rio Grande do Sul. Para tanto, tambm tecemos um breve balano do desenvolvimento terico do conceito de regio nos meios especializados e um rpido histrico da produo do mito do gacho pampiano no estado. Os resultados da ao mostram ser possvel utilizar a temtica para construir, com os estudantes, conceitos interdisciplinares (como fronteira, nao, regio, este-retipo), desnaturalizando na sala de aula uma identidade que se apresenta como fi xa e essencialista e fomentando a tolerncia e o respeito diversidade cultural.

    Palavras-chave: Regio; Identidade; Educao; Geografi a; Histria.

    * Mestre em Histria pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Docente do Departamento de Humanidades do Colgio de Aplicao-UFRGS, professor de Histria do Projeto Amora. E-mail: [email protected].

    ** Doutora em Geografi a pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Docente do Departamento de Humanidades do Colgio de Aplicao-UFRGS, professora de Geografi a do Projeto Amora. E-mail: [email protected].

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    Abstract: Faced with todays debate about national and re-gional identities, we propose, in this work, the analysis of an integrated education action of Geography and History, held at CAp-UFRGS, which intended to translate into new strategies and didactic approaches the academic knowledge about the construction of the idea of the region and the fi gure of the Gau-cho in Rio Grande do Sul. To this end, we also weaved a brief balance of the theoretical development of the concept of region in the specialized studies and a quick history of the production of the myth of the Gaucho pampiano in the state. The action results show it is possible to use the theme to build with stu-dents interdisciplinary concepts (such as frontier, nation, region, stereotype), denaturalizing, in the classroom, an identity that is presented as fi xed and essentialist and encouraging tolerance and respect for cultural diversity.

    Keywords: Region; Identity; Education; Geography; History.

    Introduo

    A regio uma dimenso fundamental da vida social, somente ultrapassada pela nao como unidade de referncia identitria no fi nal do sculo XIX e incio do sculo XX.1 Mas os mesmos processos scio-histricos que levaram expanso dos projetos nacionalistas, como a organizao e centralizao administrativa dos estados, a soberania poltica do povo e a dis-seminao da economia capitalista de mercado, tm produzido movimentos de resistncia cultural em nveis locais, apelando a antigos mitos e costumes e inventando tradies altamente formalizadas. Tudo se passa como se o avano de padres con-vergentes de organizao, produo e consumo de bens materiais e simblicos fomentasse um sentimento generalizado de perda

    1 Para um histrico da escala como unidade social, sua substituio/convivncia com a nao e possveis implicaes pedaggicas do processo no ensino de Histria, ver Marcos Lobato Martins, 2010.

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    de razes e, corolariamente, a afi rmao das especifi cidades. Nesse contexto, h, de um lado, demandas crescentes pelo dom-nio e pela compreenso da realidade regional e, de outro, vindo ao seu encontro, discursos regionalistas, nos mbitos da cultura e da poltica, que operam com esteretipos sobre os habitantes da comunidade imaginada local e, para estabelecer seus limites simblicos, propagam preconceitos sobre esses e seus outros.

    O fenmeno bastante conhecido e foi amplamente docu-mentado pela bibliografi a acadmica, em reas como Histria, Antropologia, Estudos Literrios e Geografi a. Para fi carmos em um exemplo, vale lembrar que o crtico argentino ngel Rama (2001) apontava que a literatura regionalista na Amrica Latina deveria ser compreendida como resposta penetrao da mo-dernidade em zonas afastadas, imobilizadas ou em decadncia, aps surtos de desenvolvimento econmico. Em um pas de propores continentais como o nosso, em que a incorporao dos sertes ao modelo civilizacional difundido pelo moderno litoral teve lento (e violento) percurso, a anlise revela-se muito pertinente. No sculo das naes, o Brasil s podia se imaginar uno apelando s peculiares caractersticas locais, da sua ainda hoje comum representao como grande mosaico cultural. Isso tambm explica o fato de que o regionalismo literrio romntico no vingou somente na pena de escritores como Jos de Alencar, que falavam ao pblico do centro do Imprio, interessado nas especifi cidades dos demais brasileiros, mas serviu de modelo ao estabelecimento das letras locais em diversos pontos do pas. Dessa forma, criavam-se imagens extremamente plsticas sobre o sertanejo, o gacho, o caipira paulista e, mais recentemente, o nordestino. Todas pautadas pela viso que os homens da cidade tinham dos caboclos e campesinos e dessa maneira reprodu-zidas em larga escala, no s pela literatura de fi co, mas atravs do jornalismo poltico, do folclore, da historiografi a tradicional e, nas ltimas dcadas, da fi lmografi a e produo televisiva. O caso do Rio Grande do Sul, como veremos a seguir, , no mni-mo, emblemtico, pelo que h nele de geral, mas tambm pelo

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    desproporcional peso e legitimidade da questo regional em sua histria recente.

    importante ressaltar que esses esforos de interpre-tao acadmica do regionalismo brasileiro, alm da prpria categoria de regio, ainda encontram pouca correspondncia nos currculos escolares e na prtica docente no Ensino Bsico. Outrossim, no incomum verifi carmos que a escola, quando prope-se a discutir a questo, pode assumir o ponto de vista dos movimentos folclricos e reforar a retrica da perda e da salvaguarda das tradies populares. Nesse caso, o argumento, muitas vezes, tautolgico: A tradio corre perigo de extino; h-se, portanto, que preserv-la, pois tradio. Pouco refl ete-se sobre sua natureza, movimento que revelaria o quanto h nela de inveno recente, operada por intelectuais especializados, com propsitos polticos nem sempre nobres.2

    Como fugir dessa armadilha e traduzir os avanos anal-ticos das Cincias Sociais sobre o tema em novas estratgias e abordagens didticas? A resposta no fcil e, em larga escala, provavelmente esbarraria em certas resistncias de parcela da so-ciedade e do Estado. Mas parece que tempo de ensaiar algumas tentativas. E, para isso, j h bastante suporte legal e pedaggico.

    Atualmente, amplo o debate acerca da necessidade de desconstruir esteretipos e reducionismos, a partir do respeito s diferenas, do reconhecimento da complexidade sociocultural e da multiculturalidade. Tal discusso ganhou fora a partir da insero de novas leis e diretrizes que demandam prticas peda-ggicas que viabilizem a convivncia democrtica entre diferentes grupos e culturas, como o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indgenas, as polticas afi rmativas das minorias tnicas, as propostas de incluso de pessoas portadoras de necessidades especiais na escola regular, a ampliao e o reconhecimento dos movimentos de gnero, entre outros. Vale lembrar que um dos

    2 Para uma discusso terica sobre o tema, ver o clssico estudo introdutrio de Eric Hobsbawm ao livro A inveno das tradies (2002), por ele organizado em conjunto com Terence Ranger.

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    temas transversais recomendados pelos Planos Curriculares Na-cionais (PCNs) o da pluralidade cultural.

    Neste artigo, queremos compartilhar uma experincia de ensino, desenvolvida no Projeto Amora do Colgio de Aplicao da UFRGS, que buscou solues aos problemas enunciados anteriormente, indo ao encontro das polticas de valorizao da diversidade. Trata-se da ofi cina Geografi a imaginria do Rio Grande do Sul, por ns ministrada no primeiro semestre de 2011, com um grupo misto de alunos de quinta e sexta sries do Ensino Fundamental. Com isso, objetiva-se analisar os resultados da ao e discutir a possibilidade de extrapol-la e/ou adapt-la a outros contextos escolares. Antes, trazemos um breve balano do desenvolvimento terico do conceito de regio nos meios especializados e, para que o leitor reconhea a realidade que foi tratada na sala de aula, teceremos ainda um rpido histrico da produo do mito do gacho e da ideia de Rio Grande do Sul que nele se assenta.

    Sobre os conceitos de regio e de regionalismo

    O conceito de regio assumiu e ainda assume diferentes signifi cados. Sua trajetria caracteriza-se pela polissemia, devido sua ampla utilizao nos mais variados discursos, desde os aca-dmicos at aqueles do senso comum.

    Contudo, enquanto importante categoria trabalhada pela Geografi a, pode-se sintetizar o conceito de regio em duas ideias distintas: ela existe na realidade, enquanto objeto (espao abso-luto), ou ela existe na mente do pesquisador (espao relativo) e deve ser defi nida por ele atravs de critrios preestabelecidos, confi gurando-se como resultado de um mtodo.

    O conceito de regio enquanto espao absoluto foi bastante difundido no sculo XIX e, nessa viso, as regies existiam a priori. Elas consistiam num entorno vivencial instalado na percepo

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    dos habitantes e, nesse caso, os gegrafos deveriam descobri-la. Assim, depois de identifi cados/defi nidos seus limites, a regio era estudada em detalhe, considerando a totalidade de seus as-pectos fsicos e humanos, chegando a grandes inventrios que compunham as chamadas monografi as geogrfi cas regionais, que tiveram grande representatividade dada pela Geografi a francesa de Paul Vidal de La Blache. Esses trabalhos consideravam a regio como um objeto de estudo e privilegiavam os aspectos fsicos como suporte das atividades humanas (BUZAI, 2004).

    A regio que existe na mente (espao relativo), enquanto artifcio ou enquanto resultado de mtodo (GRIGG, 1974), surgiu na dcada de 20, com os trabalhos do gegrafo alemo Alfred Hettner, sendo amplamente difundida, mais tarde, por Richard Hartshorne, em 1939. Esses trabalhos pautavam-se pelo reconhecimento de que as regies eram fragmentos de ter-ra, cujos limites eram defi nidos com uso de critrios arbitrrios, eram recortes feitos pelo exerccio intelectual, no existindo em si mesmas, enquanto objetos concretos.

    Para Hettner, a anlise regional leva em considerao um conjunto heterogneo de fenmenos que possuam coerncia inter-na prpria, conformando uma individualidade referida no tempo e no espao (LENCIONI, 1999). A determinao dos fenmenos a serem analisados tarefa do pesquisador, considerando seus objetivos de estudo. O mtodo regional estaria, ento, determina-do por procedimentos intelectuais precisos para a construo de reas e, na Geografi a, este est fundamentado na anlise espacial de associaes do ponto de vista qualitativo (BUZAI, 2004).

    Com a crtica ao quantitativismo, os limites postos no espao mudam de rumo, j que os estudos geogrfi cos mudam seu foco de interesse. Na dcada de 70, despontam na Geografi a duas posturas diferenciadas que se opunham radicalmente ao quantitativismo: a Geografi a Humanista, baseada nos estudos da percepo e da valorizao do mundo vivido e a Geografi a Crtica ou Marxista, baseada na teoria marxista que considerava o espao geogrfi co como resultado das relaes capitalistas de produo em macroescala.

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    Segundo Suertegaray (2005, p. 55),

    A Geografi a Marxista vai reavaliar o conceito e vai pensar e analisar o espao geogrfi co a partir de uma concepo de regio que se defi ne a partir de um contexto histrico e o associa a diviso territorial do trabalho. Regio , portanto, uma construo de espao vinculado diviso territorial do trabalho que advm da forma como, na contem-poraneidade, sob a lgica do Modo de Produo Capitalista, se organiza o processo produtivo.

    Mas para alm da dimenso poltico-econmica de anlise da regio, pode-se incorporar a dimenso simblico-cultural, como destaca Haesbaert (1988) em seu estudo sobre a campa-nha gacha, no qual aborda a regio a partir dos regionalismos e da identidade regional, conformadores de um bloco regional de uma frao regionalmente hegemnica da classe dominante.

    Para Haesbaert (2010, p. 53),

    Neste caso, o reconhecimento da regio ou da condio regional no se d como um simples artifcio metodolgico criado pelo pesquisador, mas efetivamente se reconhece sua construo a partir de prticas sociais especfi cas no caso, a identidade cultural e uma certa representatividade poltica (na defesa de interesses notadamente econmicos vinculados ao espao regional).

    Nesse sentido, a regio pode ser, tambm, compreendida como espao identitrio para um determinado grupo social, que se consolida nos regionalismos e que se expressa pelo hibridismo do poltico, do econmico e do cultural, enquanto construo de representaes que fortaleam a identidade (SUERTEGARAY, 2005). E atravs desse vis que enfocamos o trabalho realizado com a ofi cina Geografi a Imaginria do Rio Grande do Sul.

    A regio concebida a partir do [...] processo de inveno discursiva, aliando conceito e metfora, cincia e arte (THRIFT apud HAESBAERT, 2010, p. 67). Ela emerge das nossas geogra-fi as imaginrias, as quais utilizamos para reconstruir constantemen-te nossas referncias identitrias. Albuquerque Jnior (1999 apud HAESBAERT, 2010, p. 69) destaca, a exemplo da construo do Nordeste, que [...] a regio se institui, paulatinamente, por meio de prticas e discursos, imagens e textos que podem ter, ou no,

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    relao entre si, um no representa o outro. A verdade sobre a regio constituda a partir desta batalha entre o visvel e o di-zvel. Assim como inventa-se a regio, inventam-se os sujeitos regionais (nordestino, gacho, caipira), sujeitos esses produzidos tambm a partir das prticas espaciais percebidas e de um espao representado ou vivido.

    Outro ponto de destaque que esta regio amparada no discurso regionalista instituda e sustentada a partir de redes de poder que se estabelecem espacialmente, estando tambm apoiada na produo de uma sensibilidade regionalista, isto , uma cultura na qual prticas regionalistas so incorporadas por vrias camadas da populao e surgem como elementos dos dis-cursos desses vrios segmentos (ALBUQUERQUE JNIOR apud HAESBAERT, 2010).

    Mesmo sendo essa uma abordagem mais recente na Geo-grafi a, a construo ou a inveno das regies (na prtica) a partir das identidades regionais no nova.

    A produo do esteretipo: o caso do Rio Grande do Sul

    A crtica especializada, nas mais diversas reas3, revela que a criao do mito do gacho, cavaleiro errante romantizado, s foi possvel aps sua morte como tipo social. Foi na segunda metade do sculo XIX, quando formas de organizao capitalista chegavam ao campo no Rio Grande e nos pases vizinhos, erra-dicando maneiras tradicionais de vida, que o gacho comeou a ser desenhado como marco da identidade regional. Enquanto o antigo andarilho passava a ser confundido com o novo peo de

    3 interessante notar como a identifi cao da morte ou decadncia do gacho rural e sua relao com a produo de uma vasta literatura gauchesca no Estado (e nos pases platinos) une trabalhos e pesquisas com variado leque de preocupaes e abordagens, em perodos tambm distintos, englobando diferentes geraes de intelectuais.

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    estncia4, a desmobilizao da sociedade sul-rio-grandense para a guerra permitia, nas maiores cidades, os primeiros esforos intelectuais considerveis, como a criao de peridicos e aca-demias literrias. Desde logo, os novos escritores da provncia debruaram-se sobre a fi gura, antevista nas crnicas de viajantes que por aqui passaram, dando-lhe cores mais vivas e condizentes com o projeto romntico de criao da nao.

    A escolha do gacho como tipo folclrico representativo da regio no foi pacfi ca, gerando srias implicncias ao longo de todo o processo de consolidao e atualizao do mito. Visto no sculo anterior como bandido social, ele causava suspeitas no somente no centro do pas, mas tambm entre a populao urbana local.5 Como mostrado por Carla Renata Gomes (2009), o gacho foi inicialmente o antpoda do sul-rio-grandense. Mas, dadas as mudanas sociais j citadas e o investimento simblico efetivado pelos intelectuais, aos poucos, tambm o termo gacho passou por um processo de positivao, o que permitiu, no sculo XX, sua adoo defi nitiva como adjetivo gentlico.

    Ainda hoje, o debate identitrio no estado pautado mais pelo mito, quer dizer, pela viso idealizada do gacho, do que pela fi gura histrica que o inspira. Pode-se dizer que herdamos do regionalismo romntico um arqutipo bastante forte e difcil de contornar. Quais so, ento, suas formas e seus contedos mais usuais? Grosso modo, ele caracterizado como cavaleiro que goza de grande liberdade de ir e vir, percorrendo longas distncias pelas coxilhas sulinas, deserto verde sem cercas e limites precisos, no trato com o gado. A faina campeira confere-lhe atributos quase sobre-humanos, como fora, bravura e coragem extremadas. Da sua predisposio guerra: peo habilidoso com os instrumentos de carneao, tambm o com as armas brancas. Mas nobre,

    4 Esse processo foi identifi cado e analisado pioneiramente pelo crtico Augusto Meyer (1957), cuja interpretao foi validada pela historiografi a profi ssional recente.

    5 Segundo Csar Guazzeli (2002), alm dos delitos associados fi gura, seu aliciamento em hostes irregulares dos caudilhos nas guerras de independncia e nas disputas que se seguiram ao processo de formao dos Estados nacionais na regio platina o manteve como legenda negra por boa parte do sculo XIX.

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    acima de tudo. Segue rigorosa moral forjada na vida da fron-teira: leal aos chefes e aos companheiros, preferindo a morte desonra. Tambm hospitaleiro, recebendo bem sem olhar a quem; sempre h espao para o repouso do viajante no galpo da estncia, com fogo de cho e chimarro para afugentar o frio. Churrasco sua comida diria, e o apreo pela carne distintivo. Pese certa misoginia, conferida pela pouca convivncia com as mulheres na estncia, o gacho de verdade sempre respeitoso para com elas. Por ltimo, sua bravura no sinnimo de algazarra. Alm de trabalhador, ordeiro.

    Dessa maneira compreendido, o gacho torna-se prati-camente um heri sem nome, pois representa uma coletividade que, mesmo excedendo sua realidade primria, compartilharia com ele um jeito de ser. Indo alm dessa casta social imaginria, o ethos gaudrio seria reconhecvel em todo habitante do estado.

    Com tal confi gurao, fi ca fcil compreender a ideia de re-gio ligada fi gura: um mundo rural por excelncia, inclinado, principalmente, pecuria extensiva, cujas formas tradicionais exigem latifndios, com livre trnsito de homens, seus bois e cavalos. A paisagem imaginada sempre o Pampa, termo de origem indgena para regio plana. Esta paisagem caracteriza-se pelo relevo aplainado com suaves ondulaes chamadas coxi-lhas. A vegetao basicamente campestre. Plantas herbceas e arbustivas so dominantes, enquanto que as formaes fl orestais restringem-se principalmente s margens dos rios. A paisagem do que, atualmente, chama-se bioma Pampa encontrada ao sul do Estado do Rio Grande do Sul, atingindo o Uruguai e a Argentina. A continuidade geogrfi ca explica as fceis trocas econmicas e as indesejveis proximidades culturais com os pases platinos. Todavia (e este um adendo criado pela historiografi a tradicional do sculo XX), como fronteira, terra de um povo que luta para garantir a brasilidade no sul do continente, pegando em armas sempre que seja necessrio defender o pas. Distante de seu centro administrativo e poltico, a regio vive ainda em relativa autonomia e, como ressaltaram os olhares romnticos

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    oitocentistas, isenta dos vcios civilizacionais com os quais pa-decia o Rio de Janeiro, sucedneo americano do velho mundo.

    Ao longo do tempo, tais imagens foram insistentemente repro duzidas e atualizadas em discursos literrios e polticos lo-cais. No campo da fi co, o gnero gauchesco criou profundas razes na escrita local, afi rmando-se como dominante por boa parte do sculo passado, apesar das mais variadas vertentes, in-clusive antagnicas, que nele beberam.6

    A partir da dcada de 1920, com a fundao do Instituto Histrico e Geogrfi co do Rio Grande do Sul (IGHRS), uma nova gerao de historiadores criou e ofi cializou uma perspec-tiva de memria pblica tributria do mito literrio do gacho, despindo-o, no entanto, das inconvenientes suspeitas de barbrie e banditismo, alm de hispanismos culturais pouco tolerados a um pas que, mais uma vez, buscava a unifi cao nacional.

    Com a represso do Estado Novo (1937-1945), ironica-mente comandado pelo gacho Getlio Vargas, aos particularis-mos polticos e culturais, o mito enfraqueceu-se, sumindo da cena pblica. Mas, ao que tudo indica, no do imaginrio popular. Da a grande receptividade que, fi ndo o regime getulista7, ganhou o gacho redesenhado pela Comisso Estadual de Folclore e pelo nascente movimento tradicionalista. Quando jovens estudantes do Colgio Jlio de Castilhos, capitaneados pelos colegas Joo Carlos Dvila Paixo Crtes e Luiz Carlos Barbosa Lessa, fundaram as primeiras entidades tradicionalistas8, o gauchismo cvico por eles inventado se inspirava em representaes sociais de

    6 Do regionalismo naturalista ao realismo denunciatrio, da celebrao ufanista crtica disfrica, para usar os termos do escritor Cyro Martins (1979), quer dizer, da exaltao do arqutipo, criado no sculo anterior, sua desmistifi cao.

    7 Nessa momento, o regional, categoria combatida pelo centralismo poltico e pela perspectiva de popular-nacional buscada pelos intelectuais do Estado Novo (VELLOSO, 2003), retornava ao debate pblico nos Estados perifricos, sendo disputado, reconfi gurado e divulgado pelos novos meios de comunicao de massa, como o rdio e o cinema (OLIVEIRA, 2003).

    8 Em 1948, foi criado o Departamento de Tradies Gachas do Colgio. No ano seguinte, o 35 Centro de Tradies Gachas, modelo dos novos CTGs que se pro-liferaram pelo estado e para alm dele na segunda metade do sculo XX.

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    longa durao, incluindo as imagens literrias e historiogrfi cas construdas pela erudio local.

    A difuso da perspectiva tradicionalista deu-se princi-palmente pela elaborao de ritos de fcil reproduo, como danas de inspirao folclrica, uma sociabilidade inspirada na hierarquia idealizada da estncia, dividida entre patro e pees e, inclusive, a inveno de um modelo de ser mulher, a prenda, cujo traje, um longo vestido rendado, sequer tinha fundamento histrico, j que nunca fora utilizado pelas gachas de outrora (ZALLA, 2010).9

    O mesmo grupo deu incio dinmica que viramos a chamar de Semana Farroupilha. Denominada inicialmente de Ronda Gacha e, a seguir, Ronda Crioula, caracterizou-se pela realizao de comemoraes em torno de uma centelha retirada da Pira da Ptria, por ocasio dos festejos da independncia do Brasil, contando com atividades artsticas, campeiras e debates intelectuais sobre a literatura e a histria do Rio Grande do Sul. Ao longo dos anos, o evento constituiu-se em um ritual de alta adeso, ganhando patrocnio do Estado.10 O mito do gacho a cavalo encontrou nessa celebrao espao privilegiado para sua afi rmao e disseminao, com a evocao peridica de toda a gama de smbolos e tradies inventadas por nossos intelectuais desde o sculo XIX.

    9 Para outras anlises acadmicas sobre o movimento tradicionalista, ver Oliven (1992, 2006), Maciel (2000), Nedel (2005).

    10 A lei n. 4.850, assinada em 11 de dezembro de 1964 pelo deputado Francisco Solano Borges, ento Presidente da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, ofi cializa a Semana Farroupilha, [...] a ser comemorada de 14 a 20 de setembro de cada ano, em homenagem e memria aos heris farroupilhas, segundo defi nio do Art. 1.

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    A recepo do mito: as representaes dos estudantes sobre a regio

    Repensar a regio e o regionalismo sul-rio-grandense na sala de aula , como vimos, um grande desafi o. O planejamento inicial da ofi cina realizada no Projeto Amora levou em consi-derao a elaborao terica do tema, como foi anteriormente vislumbrado, mas sem esquecer a contrapartida emprica. Quer dizer, saber que a regio uma construo discursiva estereoti-pada e politicamente direcionada no signifi ca conhecer a priori todas as possibilidades de representao as quais sujeitos reais lanam mo no seu processo de constituio identitria. Pensando no pblico-alvo da ao, estudantes das sries fi nais do Ensino Fundamental, com mdia etria entre 11 e 12 anos, h que se perguntar ainda de que maneira o modelo hegemnico de iden-tidade gacha os interpela. As imagens mais tradicionais ligadas regio j se encontram formadas? De quais smbolos e signos tais estudantes dispem? Como se deu/d a elaborao dessas representaes at este momento de sua formao?

    A avaliao desses problemas nos imps uma atividade inicial diagnstica, defi nida da seguinte forma: apresentamos aos alunos mapas do Rio Grande do Sul contendo apenas os limites polticos do estado e solicitamos que preenchessem o espao em branco com imagens e palavras que poderiam caracterizar a regio. Para tanto, selecionamos um conjunto de revistas de as-suntos gerais que contivessem desde fotografi as do bioma Pampa e de situaes ligadas ao mundo rural, alm de comidas e bebidas identifi cadas pelo senso comum como tpicas, at imagens mais frequentes na realidade dos estudantes, prximas do cotidiano urbano vivido em Porto Alegre e regio metropolitana. Alm de recortes desse material, a serem escolhidos individualmente, os alunos tambm poderiam desenhar e escrever livremente o que fosse considerado importante para dar conta da tarefa.

    Os trabalhos confeccionados nesse dia apresentaram, na sua maioria, a viso estereotipada j mencionada, na qual o Rio

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    Grande do Sul representado pelo homem do campo, vestido com pilcha e montado a cavalo. Um trabalho, contudo (Figura 1), trouxe outros elementos, como a referncia Serra (regio nordeste do RS, caracterizada pela imigrao italiana e alem), a festa do peixe no litoral e tambm a violncia caracterstica dos grandes centros urbanos. Os aspectos positivos e negativos do estado aparecem de forma explcita na produo do aluno, que nela escreveu: Eu acho que as imagens que esto a uma parte boa e uma parte do mal do RS (sic).

    Figura 1

    Fonte: Acervo pessoal dos autores

    Apesar da (previsvel) variao da imagem da regio cons-truda pelos estudantes, fi cou claro que muitos dos elementos simblicos erigidos como representativos ao longo da histria cultural do Rio Grande do Sul continuam a pautar a viso cole-tiva sobre o estado. Por sua vez, tal viso j se confi gura como referencial identitrio para a faixa etria considerada. Nesse sentido, optou-se por elaborar as prximas atividades a partir da

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    qualifi cao de conceitos correntes no discurso no especializado, como regio, nao e fronteira.

    Na sequncia, ento, distribumos novamente mapas em branco, dessa vez do Brasil, com os limites polticos internos defi nidos. Os estudantes foram provocados a desenhar aspectos que lhes lembrassem de cada estado (Figura 2). O concurso a esteretipos regionais foi a tnica comum. Para os estados ama-znicos, por exemplo, surgiram imagens de indgenas e fl orestas, enquanto que cidades e indstrias marcaram o Estado de So Paulo, e violncia, o Estado do Rio de Janeiro. O Rio Grande do Sul foi caracterizado a partir das seguintes imagens: cuias de chimarro (em todas as produes), cavalos e bandeiras do estado, conforme fi gura abaixo.

    Figura 2

    Fonte: Acervo pessoal dos autores

    A estratgia escolhida para desconstruir tais esteretipos foi mostrar que as caractersticas tomadas como tpicas so na verdade produtos de uma seleo; escolhidas pelos agentes

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    histricos para criar e/ou reforar a viso de si almejada. O ciclo de estudos seguinte partiu da necessidade de trabalhar tal questo.

    Do geral e do particular: construindo conceitos

    Se o sul do Brasil compartilha elementos culturais com os vizinhos platinos, tais elementos podem, em tese, fundamentar tanto identidades regionais quanto nacionais. Em verdade, o gacho histrico foi tomado por movimentos romnticos no Uruguai e na Argentina como smbolo da nacionalidade, ainda que no tenha chegado a gozar da mesma hegemonia identifi cada no Rio Grande do Sul como fi gura representativa da populao local. De carter marcadamente popular, o gacho platino no foi incorporado histria das elites desses pases, mas ainda compa-rece como recurso identitrio possvel, principalmente quando busca-se ressaltar o aspecto folclrico/folclorista. As noes de regio e de nao, portanto, esmaecem-se quando confrontadas com elaboraes baseadas em uma cultura fronteiria.

    Para discutir e (re)construir os conceitos de regio e nao, assistimos ao fi lme Al Amigos, produo de 1943 dos estdios Disney. No contexto da II Guerra Mundial, havia a necessi-dade de reforar os laos polticos entre os pases do continente americano, sob a gide dos EUA, potncia econmica e militar que despontava como liderana mundial. Os produtores do fi lme empreenderam uma viagem de campo a alguns pases da Amrica Latina, coletando dados para criao de cenas e perso-nagens locais.

    Na atividade de refl exo sobre o vdeo, distribumos um mapa em branco da Amrica do Sul e pedimos que os estudantes localizassem os pases representados, listando palavras-chave de cada lugar. Chamou bastante a ateno dos estudantes o fato de que aspectos culturais e naturais de apenas algumas regies so promovidos categoria de nacional, como o samba e a praia

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    cariocas para identifi car todo o Brasil. Mas impressionados mesmo eles fi caram ao reconhecer na representao da Argen-tina o gacho celebrado recorrentemente no Rio Grande do Sul. Muitos deles afi rmaram que a fi gura encarnada pelo personagem Pateta era igual aos habitantes do nosso Estado. No fi lme, um Pateta originalmente cowboy comparado com e transformado em gaucho argentino, paramentado de acordo com as regras estabelecidas pelos grupos folclricos daquele pas. Cenas de apresentaes artsticas desses grupos, fi lmadas durante a excurso dos produtores norte-americanos, so intercaladas ao desenho, afi rmando smbolos j bastante conhecidos nos esteretipos da gauchidade fronteiria: churrasco, mate, bombachas e chirips masculinos, vestidos compridos para as mulheres, danas de grupo e cantigas de viola.

    Com a discusso, pudemos mostrar que os conceitos de regio e de nao variam histrica e geografi camente; aspectos culturais ressaltados em determinado espao que foi construdo como regio podem ser selecionados para elaborar a ideia de nacionalidade em outros contextos, desde que identifi cados no passado histrico e/ou imaginado das respectivas populaes. Evidentemente, a apropriao e a ressignifi cao desses elementos compartilhados so determinadas por condies especfi cas e seus desdobramentos respeitam a histria de cada formao poltica e social.

    Ainda neste ciclo, trabalhamos o conceito de esteretipo, a partir das representaes das fi guras do gacho e do brasileiro mostrados no fi lme Al amigos. Os estudantes questionaram o porqu do uso de determinadas caractersticas para representar o brasileiro, como o samba, as festas, a exuberncia da natureza. Partindo dessa problematizao, assistimos ao polmico episdio da srie de animao Os Simpsons, no qual a famlia norte-ameri-cana vem de frias para o Brasil e se depara com a criminalidade, animais selvagens em plena cidade e a pobreza disseminada em todos os espaos. Os alunos mostraram-se muito incomodados com a maneira com que o pas foi representado no desenho.

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    Esse foi o mote para a o debate sobre o termo esteretipo e o que ele representa. A construo de imagens tpicas para a na-o e a regio tambm revelou-se, assim, uma possibilidade de estereotipia, j que seleciona e ressalta algumas caractersticas da realidade, como que em uma caricatura social.

    Na sequncia, apresentamos duas msicas que descreviam o dia a dia de um gacho: Veterano, de Leopoldo Rassier, e Amigo Punk, composta por Frank Jorge e Marcelo Birck. A primeira narra a vida do gacho no campo, descreve a sua rotina e o exal-ta em sua bravura, enquanto a segunda trata de uma realidade urbana, de um gacho que gosta de festa e escuta rock pesado. Nossa proposta aqui foi desconstruir o esteretipo do gacho tradicional, mostrando que existem outros tipos de gachos: urbanos, que no usam pilcha, no andam a cavalo, podem gos-tar de carne, mas podem ser vegetarianos. Os alunos, depois da escuta da msica, tinham a tarefa de desenhar o gacho de cada uma das msica a partir dos elementos apresentados na letra. Os resultados foram bastante interessantes: gachos tradicionais, ligados ao esteretipo regional, puderam ser comparados a ma-neiras urbanas, plurais e contemporneas de se identifi car com a identidade local (Figuras 3 e 4).

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    Figura 3

    Fonte: Acervo pessoal dos autores

    Figura 4

    Fonte: Acervo pessoal dos autores

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    A distino entre gacho como tipo social histrico e gacho como adjetivo gentlico comeou, dessa forma, a ser trabalhada, ampliando os signifi cados ligados ao vocbulo, na expectativa de romper com as descries normativas e restri-tivas do habitante do Estado no discurso tradicionalista e, como vimos, na memria pblica ofi cial. Na ocasio dessa discusso, tambm apresentamos aos alunos alguns dados do IBGE sobre a populao do Rio Grande do Sul. Selecionamos aspectos mais marcantes do esteretipo do gacho e fi zemos um contraponto com dados atuais, mostrando que os gachos contemporneos, pelo menos a maior parte deles, moram nas cidades, trabalham no setor de comrcio e servios, andam de carro, comem carne, mas incluram na sua alimentao muitos alimentos industriali-zados. Comeou a se delinear ento a explicao para a origem do termo gacho, trabalhada com profundidade mais adiante.

    Como a produo oral e escrita dos estudantes, nesse ciclo, foi marcada pela curiosidade em relao aos pases platinos e sobre as trocas ocorridas entre eles e o Rio Grande do Sul ao longo do tempo, o segundo ciclo de estudos foi planejado para explorar o conceito de fronteira e suas potencialidades pedaggicas.

    Do imaginado ao real: cultura de fronteira em perspectiva geo-histrica

    Para o entendimento da construo por trs da imagem do gacho atualmente difundida, julgamos importante trabalhar os conceitos de limite poltico e fronteira, muitas vezes concebidos como sinnimos. Limites so linhas demarcatrias que separam dois territrios vizinhos. Podem ser naturais (montanhas, rios etc.) ou artifi ciais (limites convencionais no defi nidos por aciden-tes geogrfi cos). O conceito de fronteira envolve, alm da linha do limite, as reas vizinhas numa largura de 150 km, formando uma faixa ou zona de fronteira. uma rea de superposio e

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    justaposio de infl uncias. um mundo de relaes que pode ser ampliado ou fechado atravs de aes polticas, econmicas, culturais e militares. Pela complexidade das relaes que nela se estabelecem, a fronteira possui uma cultura especfi ca. A partir desta diferenciao foi possvel trabalhar a defi nio dos limites do Estado do RS ao longo da histria e a caracterizao de sua fronteira com os pases vizinhos.

    Na fronteira com o Uruguai e a Argentina, percebem-se as infl uncias culturais desses pases. A proximidade propicia trocas lingusticas, com vrios termos se acastelhanando. Essa situao tambm ocorre em outros pontos da fronteira, onde a mescla de termos hispnicos e portugueses na linguagem cotidiana frequente. E, se houve infl uncia na linguagem, tambm houve no modo de vida (desde caractersticas culturais ligadas arte, culinria e vestimenta, bem como s atividades econmicas).

    Assim, passamos, na sequncia, a confrontar bens cultu-rais produzidos na Argentina e no Brasil, com base no universo gauchesco. A primeira linguagem escolhida foi a cano. Sele-cionamos uma milonga argentina, Milonga del Peon de Campo, do compositor argentino Atahualpa Yupanqui, e outra brasileira, Meus Amores, do cantor e compositor nativista Luiz Marenco, e comparamos os elementos rtmicos e textuais. Alm da temtica rural e do gnero musical, chamou muito a ateno dos alunos a existncia de vocbulos semelhantes e, mesmo, grafi camente idnticos em composies nas lnguas espanhola e portuguesa, tais como: poncho, estncia, rancho e pago. O levantamento de vocbulos falados na fronteira do RS com infl uncia do espanhol tambm foi tarefa interessante que mobilizou muito os estu-dantes. A maioria deles apresentou exemplos trazidos de suas vivncias, como pelear, bolicho, sanga, cola, carpeta11, entre outros.

    11 Pelear - Pelejar, combater, lutar. Bolicho - Casa de negcio de pequeno sortimento e de pouca importncia. Bodega. Sanga - Pequeno curso dgua menor que um regato ou arroio. Cola - rabo. Carpeta - jogo de baralho.

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    Selecionamos, ento, trechos de textos literrios de ambos os pases que apresentam temtica e forma comum, o gauchesco fi gurado como contao oral, em que no somente se apela ao vocabulrio da cultura representada, mas tambm a seu modo de narrar. Para explorar mais o contexto platino, assistimos animao Martn Fierro (2007), baseada no homnimo poema de Jos Hernndez. Como o gaucho argentino comumente visto como elemento popular, optamos por explorar a histria da fi gura e as variaes de sentido em torno do prprio nome gaucho/gacho. Atravs da seleo de trechos de documentos de poca (relatos de viajantes, historiografi a tradicional e ainda a literatura de imaginao) foi possvel conhecer os discursos feitos sobre os gachos.

    A ideia era problematizar o uso do termo, mostrando que, at meados do sculo XIX, o vocbulo gacho era pejora-tivo, quer dizer, indicava desaprovao, pois era muito negativo, desagradvel e servia para identifi car apenas homens errantes, sem trabalho fi xo, tidos como vagabundos. J no fi nal daquele sculo, passou a ser usado a designar os pees das estncias ou pequenos proprietrios do campo na Argentina. Foi somente no sculo XX, principalmente na segunda metade, que o termo ga-cho foi adotado como gentlico no Rio Grande do Sul, quando a economia do estado migrava cada vez mais para a indstria e as cidades cresciam aceleradamente. A industrializao e a urba-nizao, na mesma poca, eram apontadas como os principais fatores da extino do gacho tradicional, o que levou criao, nas cidades, dos Centros de Tradio Gacha (CTGs).

    (Des)encontros com o gacho: o produto final

    Para avaliar as aprendizagens realizadas, propusemos aos estudantes a elaborao de um vdeo ou de uma fotonovela narrando a histria da idealizao do gacho tradicional. A

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    escolha da forma de apresentao da narrativa tambm foi de-legada aos alunos, que optaram por um vdeo, como um fi lme em curta-metragem. O roteiro foi elaborado em conjunto pelos professores e estudantes. Para tanto, a professora convidada Lisinei Ftima Rodrigues, da rea de Teatro do CAp-UFRGS, realizou uma miniofi cina sobre construo de personagens. Cada estudante criou um perfi l, de acordo com as discusses feitas ao longo da ofi cina. Aps apresentar seus personagens aos colegas, o grupo comeou a tecer relaes possveis entre eles, dando corpo narrativa.

    Como a preparao do pas para a Copa do Mundo de 2014 estava em pauta na mdia no perodo, os estudantes escolheram como espao e tempo da histria a Porto Alegre durante o mun-dial de futebol, lanando a hiptese de que nela se encontraro turistas de vrios lugares do mundo, os quais podem se interessar pelo folclore local ou viver situaes de estranhamento cultural. Trs miniesquetes foram montados, tendo como fi o articulador um turista narrador-francs, em telefonema a um amigo em Paris.

    Todas as cenas passam-se no Hotel Pampa, que teria como proposta possibilitar aos visitantes uma experincia com a tra-dio gacha. Nele, os funcionrios trabalham devidamente pilchados e informam quais os hbitos e costumes do habitante local, segundo o esteretipo regional. No entanto, uma conversa entre os dois recepcionistas revela que ambos tm conscincia de que a tradio no representa totalmente a realidade.

    O primeiro esquete apresenta um choque entre os gachos folclorizados do hotel e trs habitantes do campo rio-grandense: um casal de fazendeiros e um peo agregado (Figura 5). Repre-sentando o gacho do campo real, esses reclamam do carter fantasioso da caracterizao. No segundo esquete, o peo Otaclio, funcionrio dos estancieiros, sofre com o preconceito de um turista argentino. Por no acreditar ser apropriado o uso da bombacha na cidade, e partindo de uma experincia diferente com o gauchismo, esse questiona o primeiro. Otaclio defende-se e afi rma sua iden-tidade como real, parecendo com isso se distanciar mais uma vez

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    dos funcionrios do hotel, dizendo ser normal se vestir daquela forma nas terras de onde vem. O ltimo esquete conta uma di-vertida confuso: tendo ouvido dos recepcionistas que no Rio Grande do Sul se usa a pilcha tradicionalista, um turista coreano compra indumentria completa e passa a vesti-la durante toda a semana, acreditando, assim, estar melhor ambientado. No fi nal, acaba sendo surpreendido por um gacho urbano, um skatista que lhe conta a verdade, no que auxiliado por um policial que tenta acalmar o turista: uma homenagem ao gacho do campo, mas no se usa todo dia.

    Percebem-se na construo da narrativa, duas preocupaes principais: desconstruir o esteretipo regional, mostrando que ele no representativo do todo, e apontar para a idealizao do gacho do campo, sem esquecer a tolerncia e a diversidade cultural. Criam-se, dessa maneira, vrias possibilidades de ser gacho gentlico, o que inclui tambm o gacho tradicionalista e o homem do campo, portando bombachas, mas destitudo do romantismo folclorista. Um texto simples na forma, encenado dentro dos limites (tecnolgicos, teatrais e mesmo cognitivos) disponveis aos estudantes, mas bastante rico na mensagem prin-cipal, evidenciando que os objetivos da ofi cina foram cumpridos de maneira satisfatria.12

    12 O vdeo foi postado no site You Tube, sendo encontrado no link: http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=1pCnRNyOO_k

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    Figura 5 Cena do vdeo (Des)encontros com o gacho

    Fonte: Vdeo (Des)encontros com o gacho

    Consideraes finais

    Em estudo j clssico sobre o tratamento do popular pelo erudito, dos folclorismos produo acadmica, Jacques Revel, Michel de Certeau e Dominique Julia (1989) refl etem sobre a pergunta feita por Morvan Lebesque: Ser possvel ser-se breto?. A resposta uma negativa peremptria, a no ser enquanto objeto abolido e nostlgico. Uma analogia com o processo de construo do gacho folclorizado e da ideia de regio no Rio Grande do Sul pode ser bem-vinda para concluir-mos nossa anlise.

    Como vimos anteriormente, foi a morte ou a transforma-o do gacho histrico que permitiu sua eleio como smbolo regional, tornando-o objeto de um processo de estetizao de longo prazo. A nostalgia confi gura, assim, uma marca do gau-chesco literrio e cvico: o saudosismo do passado o torna pre-sente na experincia de leitura ou nos ritos tradicionalistas. Esse viver do que j no (ou do que nunca foi) no impede, como

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    sabemos, a identifi cao de milhares, se no milhes, de pessoas com modelos de se portar e se relacionar em sociedade criados a partir do passado imaginrio do campo gacho. Ao confundir-se o folclrico com o gentlico, tais modelos amarram-se discur-sivamente a caracterizaes arbitrrias do povo rio-grandense, naturalizando-se como verdades histricas e culturais frente aos olhos do senso comum.

    O que pretendemos, com a ao de ensino-aprendizagem colocada em prtica foi, em primeira instncia, dessencializar uma identidade que se apresenta como inevitvel. Politicamente, a proposta tem pretenses libertrias, na medida em que visa construo de sujeitos conscientes e autores de si, crticos a determinismos discursivos, os quais se elaboram como histricos e geogrfi cos. A Histria e a Geografi a, compreendidas como as cincias que estudam o tempo e o espao humanos, alis, revelam -se instrumentos fecundos para a desconstruo dos esteretipos (e preconceitos) criados pelo atual modelo hegemnico de identi-dade local e a ideia de regio com ele fabricada: suas abordagens e perspectivas (analticas e no normativas), suas metodologias de investigao (o trato de fontes discursivas e imagticas, a anlise de dados quantitativos e qualitativos, a leitura de documentao histrica), bem como os saberes por ela produ zidos contempo-raneamente (novos contedos-aprendizagens) historicizam e iluminam relaes de poder que no esto dadas nas superfcies dos discursos ofi ciais, folcloristas, memorialistas e mesmo nas formas mais tradicionais de conhecimento histrico, geogrfi co, literrio etc.

    A reside aquele potencial de extrapolao da ao a ou-tros contextos escolares de que falvamos inicialmente. Como sabemos, os professores encontram, em cada escola, realidades especfi cas, que podem levar a desdobramentos diferentes. As atividades anteriormente descritas (representaes textuais e imagticas por parte dos estudantes; leitura e anlise de imagens, vdeos, e textos contemporneos e de poca; comparao estrutu-ral de produtos culturais) apresentam-se como estratgias prof-cuas para dar conta do problema identitrio na sala de aula, mas

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    evidentemente no se confi guram como um programa fechado de estudos. Quanto mais o professor estiver atento recepo/construo do trabalho pelos estudantes, mais condies ter de desenvolver atividades prticas e tericas que propiciem apren-dizagens signifi cativas. , portanto, a abordagem geral do tema, traada anteriormente, que permite gerar tecnologias didticas consoantes com os objetivos pretendidos.

    Para fi nalizar, vale olhar mais uma vez para o retorno dos es-tudantes envolvidos na ao. Quando construram uma narra tiva plural sobre a fi gura do gacho, eles pareciam dar uma resposta bastante complexa pergunta que ora fi zemos: se no tomarmos gacho como uma categoria classifi catria fechada, com sentido nico, ou mesmo unvoco, ainda possvel ser gacho. Melhor dizendo, a identifi cao do termo com o gentlico do estado est socialmente sedimentada (e s processos sociais de larga escala poderiam, mais uma vez, modifi c-la), mas o que no pode se consolidar a restrio de nossa experincia a modelos extrema-mente redutores. Como modo de ser, o skatista de bermudas to legtimo quanto o peo de bombachas. Desconstruir o objeto regio com as ferramentas de que dispomos implica, portanto, mais do que uma atitude denunciatria: a tolerncia e o respeito s diferenas culturais que se consegue construir.

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