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Para Sharon - Editora Sextante · dos sentimentos morais. Originalmente publicado em 1759, o livro teve seis edições na época, e em 1790, ano da morte de Adam Smith, foi lançada

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Para Sharon

Sumário

Capítulo 1 – Como Adam Smith pode mudar sua vida 9

Capítulo 2 – Como conhecer a si mesmo 19

Capítulo 3 – Como ser feliz 36

Capítulo 4 – Como não enganar a si mesmo 48

Capítulo 5 – Como ser amado 67

Capítulo 6 – Como ser amável 98

Capítulo 7 – Como ser bom 117

Capítulo 8 – Como tornar o mundo um lugar melhor 133

Capítulo 9 – Como não tornar o mundo um lugar melhor 154

Capítulo 10 – Como viver no mundo moderno 165

Agradecimentos 181

Fontes bibliográficas e leitura adicional 183

CAPÍTULO 1

Como Adam Smith pode mudar sua vida

O que é uma vida boa? A religião, a filosofia e os livros de autoajuda modernos debatem essa questão, mas a resposta a que chegam é sempre vaga. Significa ser feliz? Ou será que tem a ver com riqueza e sucesso profissional? Qual é o papel que a virtude desempenha nisso? Ter uma vida boa é uma consequência de ser bom? Ou de ajudar os outros e fazer do mundo um lugar melhor?

Há 250 anos, um filósofo moral escocês abordou essas per-guntas num livro com o singelo título Teoria dos sentimentos morais. O livro foi uma tentativa de Adam Smith de explicar de onde vem a moral e por que as pessoas são capazes de agir com dignidade e virtude, mesmo quando isso entra em con-flito com seus interesses pessoais. Trata-se de uma mistura de psicologia, filosofia e o que hoje é chamado de economia comportamental, somada a observações sobre amizade, busca da riqueza, busca da felicidade e virtude. Ao longo do texto, Adam Smith mostra ao leitor o que é uma vida boa e como conquistá-la.

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Na época em que foi lançado, o livro foi um sucesso. Hoje, entretanto, a Teoria dos sentimentos morais está quase esqueci-da, ofuscada pela fama que o autor alcançou com seu segundo livro, A riqueza das nações. Publicado em 1776, tornou Adam Smith eternamente famoso e deu origem ao campo da econo-mia. Embora nos dias de hoje poucas pessoas o leiam, é ine-gável que é um clássico. Muito menos gente, porém, leu ou sequer ouviu falar do outro livro de Adam Smith, Teoria dos sentimentos morais.

Durante a maior parte da minha carreira, eu também não havia lido. Esta é uma confissão meio constrangedora para um economista. Seria de esperar que eu tivesse lido os dois prin-cipais livros do fundador da minha área. Até recentemente, porém, eu sabia pouquíssimo sobre a Teoria dos sentimentos morais. Na verdade, demorou muito até que eu ouvisse alguém mencionar o outro livro de Smith, aquele de título intimidante que não parecia ter muito a ver com economia.

Minha relação com a Teoria dos sentimentos morais mudou quando meu amigo Dan Klein, da Universidade George Ma-son, sugeriu que eu o entrevistasse sobre essa obra em meu podcast semanal, o EconTalk. Concordei, pensando que isso enfim me levaria a ler o livro. Pelo menos, eu tinha um exem-plar – comprado uns trinta anos antes, por eu achar que um economista deveria no mínimo ter os dois livros de Adam Smith. Assim, tirei-o da estante, abri-o na primeira página e comecei a ler.

Por mais egoísta que o homem suponha ser, é evidente que há em sua natureza alguns princípios que o fazem se inte-ressar pela sorte dos outros e se importar com a felicidade deles, embora nada extraia disso senão o prazer de testemu-nhá-la.

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Tive de ler esse trecho duas vezes para compreender o que Adam Smith estava dizendo: embora as pessoas possam ser bastante egoístas, elas se importam com a felicidade alheia. Faz sentido. Continuei a ler a primeira página. Depois, a segunda e a terceira. Fechei o livro.

Uma segunda confissão: eu não fazia ideia de qual era o as-sunto abordado por Smith. O livro parecia começar no meio do caminho. Ao contrário de A riqueza das nações, que é uma prosa encantadora e cativante desde o início, a Teoria dos sen-timentos morais possui uma narrativa muito lenta. Eu me senti pouco confiante – talvez não devesse ter concordado com a entrevista. Duvidei da minha capacidade de entender a obra. Ia me expor a um vexame, e até pensei em pedir ao Dan que cancelasse o encontro.

Mas insisti, na esperança de mudar de ideia. Recomecei. Aos poucos, fui tendo uma ideia do que Smith pretendia explicar. Quando cheguei a um terço do texto, tinha sido fisgado. Levei o livro para os jogos de futebol da minha filha e o devorei no intervalo das partidas e quando ela não estava em campo. Li trechos em voz alta para minha mulher e meus filhos à mesa do jantar, na esperança de despertar o interesse deles pelas ideias do autor sobre como se relacionar com outras pessoas. As margens do livro ficaram cheias de asteriscos e pontos de exclamação, pois eu marquei as passagens de que mais havia gostado. Quando terminei a leitura, tive vontade de espalhar a notícia para todos, em alto e bom som: o livro é uma maravi-lha, uma joia rara, vocês precisam ler!

A obra modificou minha maneira de ver as pessoas e, o que talvez seja mais importante, minha forma de enxergar a mim mesmo. Adam Smith me tornou consciente de como as pes-soas interagem umas com as outras de modos que eu não havia notado antes. Ele oferece conselhos de valor inestimável sobre

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como lidar com o dinheiro, a ambição, a fama e a moral. Mostra ao leitor como encontrar a felicidade, como lidar com o sucesso e o fracasso materiais. Também descreve o caminho para a vir-tude e a bondade, e a razão pela qual vale a pena segui-lo.

Adam Smith me ajudou a compreender, entre outras coisas, o motivo de Whitney Houston e Marilyn Monroe terem sido tão infelizes e por que a morte delas entristeceu tanta gente; a causa de minha afeição por meu iPad e meu iPhone; por que conversar com estranhos sobre nossos problemas pode aca-lentar a alma; a razão de ser possível ter pensamentos mons-truosos mas raramente colocá-los em prática; o porquê de as pessoas adorarem os políticos; e de que modo a moral se in-corpora à trama do mundo.

Embora ele seja o pai do capitalismo e tenha escrito o livro mais famoso, e talvez o melhor, sobre por que algumas nações são ricas e outras são pobres, Adam Smith, na Teoria dos sen-timentos morais, escreveu com a mesma fluência de qualquer outro autor sobre a futilidade que é buscar dinheiro na espe-rança de encontrar felicidade. Como conciliar isso com o fato de ninguém ter feito mais do que Adam Smith para tornar res-peitáveis o capitalismo e o interesse pessoal? Este é um enigma que tentarei decifrar até o final deste livro.

Além do vazio do materialismo excessivo, Smith compreen-deu o potencial que temos para enganar a nós mesmos, o pe-rigo das consequências não planejadas, a atração exercida pela fama e pelo poder, as limitações da razão humana e as fontes invisíveis que tornam nossa vida tão complexa e, ainda assim, às vezes tão ordenada. Teoria dos sentimentos morais é um li-vro de observações sobre o que nos motiva. De quebra e quase de passagem, o autor nos mostra como levar uma vida boa, no sentido mais pleno dessa expressão.

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Os detalhes da vida do próprio Adam Smith são bem tri-viais. Ele nasceu na aldeia de Kircaldy, na Escócia, em 1723. Seu pai morreu quando ele tinha poucos meses. Aos 14 anos, foi estudar na Universidade de Glasgow, depois em Oxford, e então voltou para a Escócia para lecionar na Universidade de Edimburgo. Em seguida, em 1751, foi contratado pela Univer-sidade de Glasgow como professor de lógica e, mais tarde, de filosofia moral. Sua mãe e uma tia solteira foram morar com ele em Glasgow, numa casa oferecida pela universidade. Em 1763, ele deixou a vida acadêmica para ter um emprego mais lucrativo, como mentor do rico e jovem duque de Buccleuch.

Essa deve ter sido uma mudança de ritmo bastante drástica para Adam Smith, que, então com 40 anos, passou a ver de perto o estilo de vida dos ricos e famosos de sua época. Du-rante dois anos e meio, ele viajou pela França e pela Suíça com seu jovem aluno e, no caminho, conheceu alguns dos grandes intelectuais europeus da época, entre eles Voltaire, François Quesnay e Anne-Robert-Jacques Turgot. Após esse período, e ao longo de uma década, ficou em Kircaldy, depois em Lon-dres, trabalhando em A riqueza das nações.

Em 1778, Adam Smith mudou-se de Londres para Edim-burgo, onde foi morar com a mãe e vários primos. No mesmo ano, foi nomeado um dos cinco comissários da alfândega esco-cesa, chefiando uma equipe que perseguia o contrabando e co-brava impostos, ou o que hoje chamamos de tarifa alfandegá-ria. O homem que talvez tenha sido o mais influente defensor do livre-comércio passou os últimos anos de vida reduzindo o fluxo de mercadorias contrabandeadas e coletando impostos de importação para o governo.

Sem contar o período que passou na Europa continental, Adam Smith parece ter levado uma vida que a maioria clas-sificaria como particularmente sem graça. Foi conferencista,

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professor universitário e tutor – três trabalhos conhecidos por ficarem distantes do que chamamos de realidade. Joseph Schumpeter escreveu: “Nenhuma mulher, exceto sua mãe, de-sempenhou papel algum em sua vida; nesse, como em outros aspectos, os encantos e as paixões foram mera literatura para ele.” Schumpeter exagerou um pouco, mas o fato é que Smith nunca se casou. Morreu em 1790, aos 67 anos.

Essa foi a vida pública de Adam Smith. Mas e quanto a suas motivações e dúvidas, sua vida interior? Não foi deixado ne-nhum diário ou agenda após sua morte – ele pediu que todos fossem destruídos. Quase todas as suas cartas são sucintas e formais, inclusive as que escreveu a seu melhor amigo, o gran-de filósofo e seu conterrâneo David Hume. Como um homem com a experiência aparentemente limitada de Adam Smith pôde sondar as profundezas da interação humana e fazer des-cobertas perspicazes?

Sabemos que ele conseguiu fazê-lo porque temos a Teoria dos sentimentos morais. Originalmente publicado em 1759, o livro teve seis edições na época, e em 1790, ano da morte de Adam Smith, foi lançada a última delas, na qual ele fez altera-ções substanciais. Em certo sentido, a Teoria dos sentimentos morais foi o primeiro e último livro dele.

Creio saber por que ele o revisou numa fase tardia da vida, em que vinha fazendo poucos estudos sérios que tenham sur-tido algum impacto. Quando se começa a pensar na motivação dos homens e nos lados luminoso e sombrio da humanidade – o que Faulkner chamava de “o coração humano em conflito consigo mesmo” –, fica difícil pensar em qualquer outra coisa. Tentar compreender o próximo e a si mesmo é algo que pode ser feito eternamente. Todo dia há um novo conjunto de dados para ruminar e explorar, se a pessoa estiver interessada – todas as interações com amigos, familiares, colegas e estranhos.

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Ao ler a Teoria dos sentimentos morais, percebe-se que a mo-ral e o sentido da vida, e também o modo como as pessoas se comportam, não mudaram muito desde o século XVIII. Um homem suficientemente sagaz é capaz de atravessar mais de dois séculos, chamar a atenção de todos e ensinar uma ou duas coisas acerca de nós e do que é importante.

Soma-se ao prazer dessa descoberta o fato de que Adam Smith realmente sabe escrever. É irônico, divertido e eloquen-te. Quando está no auge da excelência e nos alerta sobre não nos envolvermos demais com engenhocas sofisticadas que ca-bem no bolso, temos a sensação de haver encontrado uma fon-te secreta de sabedoria. É como descobrir que Bruce Wayne, aquele homem bem-sucedido, tem ainda mais coisas a com-partilhar com o mundo e que seu lado oculto talvez seja muito mais interessante do que sua imagem pública.

Então por que a Teoria dos sentimentos morais é tão secreta? O mapa de Adam Smith para a felicidade, a bondade e o au-toconhecimento é antigo. A linguagem é meio empoeirada e deixa transparecer sua origem setecentista. Mais do que isso, o livro é um roteiro com uma porção de reviravoltas complexas. De vez em quando o texto parece retroceder, e temos a sensa-ção de chegar a um ponto que já tínhamos visitado. Não é o caminho mais fácil para o leitor moderno.

Adam Smith estava escrevendo um tratado acadêmico, em competição intelectual com outros autores que tinham as próprias teorias sobre a motivação humana. A maioria deles – escritores como Bernard Mandeville, Francis Hutcheson e os estoicos – foi esquecida há muito tempo por quase todos nós, juntamente com suas visões particulares da humanidade. Adam Smith passa boa parte do livro explicando por que suas teorias e percepções são preferíveis às da concorrência. Logo, o texto não parece muito o de um livro de autoajuda.

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Eu ficaria muito contente se mais pessoas lessem a Teoria dos sentimentos morais. Grande parte do seu encanto está na linguagem poética de Adam Smith. Ele tinha um estilo ímpar, o que explica parte do seu sucesso. Mas nós, do século XXI, podemos achar maçante a prosa antiga – é comum as frases serem longas, além de estruturadas de um jeito que nosso cé-rebro não processa bem sem certa prática. Requerem muito tempo e alguma paciência para serem compreendidas. Parte do meu objetivo aqui é lhes mostrar as percepções de Adam Smith e alguns dos melhores trechos de seus livros, para o caso de vocês não conseguirem ler o original inteiro.

Minha outra missão é trazer as ideias de Adam Smith para o presente e refletir sobre de que modo elas podem ser úteis para você e para mim. Todos nos achamos únicos – e tenho certeza de que você o é –, mas também temos várias coisas em comum. Muitas das nossas forças e fraquezas são iguais. Por isso, quando Smith me ensina algo a respeito de mim, é prová-vel que isso também faça sentido para você. E isso me ajuda a tratar as pessoas como elas gostam de ser tratadas, além de lhes dar uma ideia de como me tratar. Mais que isso, Adam Smith tentava entender o que nos deixa felizes e o que dá sentido à vida. Continua sendo bastante útil entendermos essas coisas.

Fiz um esforço para transmitir as lições de Adam Smith de uma forma digerível. A estratégia normal seria seguir a narrati-va dele em seu livro. Mas ela não é linear, e muitos temas abor-dados pelo autor não são interessantes para o leitor moderno. Por isso peguei as percepções mais relevantes de Adam Smith e as organizei numa ordem que creio ser mais pertinente que a do original. Também incluí citações dele, sempre que possível. Quando necessário, eu as destrinchei e fiz comentários descri-tivos que explicam as alusões e as peculiaridades estilísticas de um cavalheiro culto em 1759.

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A menos que eu forneça uma indicação diferente, todas as citações deste livro são da Teoria dos sentimentos morais. No meio delas, vez ou outra utilizo colchetes [como estes] para explicar uma palavra ou uma expressão arcaica.

Talvez você se pergunte o que um livro setecentista sobre a moral e a natureza humana tem a ver com a economia, o mais famoso legado de Smith. Os economistas comportamentais de hoje em dia trabalham na fronteira entre a economia e a psi-cologia, o que é um território muito smithiano. Porém, quase todos os economistas do século XXI tentam prever as taxas de juros, sugerir políticas para reduzir o desemprego e abrandar seus efeitos nocivos, ou projetar o PIB do trimestre seguinte. Às vezes, tentam explicar por que o mercado de ações entrou em alta ou em baixa. Não são particularmente bons em nenhu-ma dessas coisas, e é comum discordarem quanto às melhores políticas para fazer a economia crescer. Isso leva os não econo-mistas a concluírem que a economia tem a ver sobretudo com dinheiro, e que os economistas não fazem previsões muito confiáveis do futuro, tampouco são os melhores engenheiros para conduzir a máquina econômica.

Infelizmente, os meios de comunicação e o público esperam dos economistas aquilo em que eles, provavelmente, são piores: dar respostas exatas a perguntas que supõem que a economia é como um relógio ou um aparelho gigantesco cujos mecanismos podem ser dominados e manipulados com certo grau de preci-são. A incapacidade de prever a Grande Recessão, de chegar a um acordo sobre a maneira de sair dela ou de projetar o cami-nho da recuperação foi humilhante para todos nós, economistas.

Convém frisar que a economia tem a ver com algo mais im-portante que o dinheiro.

A economia ajuda a compreender que o dinheiro não é a única coisa importante na vida. Ensina que fazer uma esco-

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lha significa abrir mão de algo. E pode nos ajudar a apreciar a complexidade e o fato de que ações e pessoas aparentemente sem relação entre si podem estar relacionadas. Esses e outros insights encontram-se dispersos por todo o texto da Teoria dos sentimentos morais. Dinheiro é bom, mas saber como lidar com ele pode ser melhor ainda.

Certa vez, uma aluna me disse que um de seus professores afirmava que a economia era o estudo de como tirar o máxi-mo proveito da vida. Isso talvez pareça uma afirmação absurda para alguns de vocês, inclusive os que se formaram nessa área. Mas tudo tem a ver com escolhas. Tirar o máximo proveito da vida significa escolher bem e com sabedoria. E fazer escolhas – estar ciente de que optar por um caminho significa não se-guir por outro, de que minhas escolhas interagem com as dos outros – é a essência da economia.

Se você quiser realizar boas escolhas, terá de compreender a si mesmo e os que o cercam. Se quiser viver da melhor forma possível, é provável que compreender o que Adam Smith tem a dizer na Teoria dos sentimentos morais seja mais importante do que os insights dele em A riqueza das nações. Vamos começar.

CAPÍTULO 2

Como conhecer a si mesmo

V ocê está sentado à sua mesa no escritório, num fim de tar-

de, trabalhando numa planilha para uma proposta que tem de estar concluída no mesmo dia. Ao mesmo tempo, está pensan-do no que redigir no e-mail em que a planilha seguirá anexada. E, num canto ainda mais fundo da mente, você se lembra de que seu filho de 14 anos tem um jogo de basquete logo mais, e você não sabe direito como ele vai chegar lá.

Enquanto acrescenta uma coluna à planilha, você se ques-tiona se sua mulher poderá levar o garoto ao jogo, e então um colega entra na sua sala e lhe pergunta se você viu o noticiário. Houve um grande terremoto na China, com dezenas de milha-res de mortos e outros tantos desaparecidos. Que coisa terrí-vel, você comenta. Seu rosto mostra a sua tristeza. Talvez você busque mais detalhes na internet. Por um momento, pensa na fábrica que sua empresa tem na China. Será que foi atingida?

Você volta para a planilha, passam-se cinco minutos e sua mulher telefona. Ela pode levar o menino ao jogo, afinal. Vai mandar mensagens de texto quando seu filho marcar pontos

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e dirá como está indo o jogo. “Que ótimo!”, pensa você com seus botões. “Poderei ficar até tarde e terminar a proposta. Será bom chegar em casa para jantar sem ter essa pendência mar-telando na cabeça.”

Você se esqueceu por completo dos chineses mortos.Bem, não exatamente. Se outro colega passasse um pouco

depois e lhe perguntasse se você soubera das notícias, você di-ria “É claro, que tragédia”. Nessa oportunidade, talvez pensasse em fazer uma doação para a Cruz Vermelha. Ou até fizesse isso, de fato.

Mas, passados alguns minutos, apesar de não ter esque-cido completamente os chineses, você não estará pensando neles, mas sim em terminar a proposta e ansiando pelo jantar e por receber as informações sobre o jogo de basquete do seu filho. E, quando sua mulher mandar uma mensagem dizendo que ele está jogando bem e que o time dele está com cin-co pontos de vantagem, seu prazer com a conquista do filho não será nem um pouco reduzido pelos milhares de mortos na China e por todas as famílias dos desaparecidos, aflitas para encontrar seus entes queridos. A dor delas terá que lutar para penetrar na sua consciência. Deitado no escuro, ao lado de sua mulher, quando ela comentar o horror do terremoto, você resmungará sua concordância e pegará no sono, sem pensar nos chineses por mais de um instante. Seu repouso não será perturbado.

Imagine, porém, uma sequência diferente de acontecimen-tos. Desta vez, quando o colega entra no seu escritório, é para dizer que lhe telefonaram de um laboratório médico. Você sabe do que se trata. Está com um tumor no dedo, e devem ter ligado para falar sobre a biópsia. Seu coração dispara quando você retorna a ligação. Câncer. Isso significa que o dedo terá que ser amputado.

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Não é tão ruim. É só o dedo mindinho. Não haverá nenhu-ma outra parte afetada, e o médico lhe garante que nenhum outro tratamento será necessário. Ele já marcou o procedi-mento para amanhã. Nessa noite, você se deita e não consegue dormir, angustiado, com medo, desejando que tudo aquilo te-nha sido apenas um pesadelo.

Ao escrever em 1759, Adam Smith observou que nos sen-timos pior, muito pior, com a perspectiva de perder um dedo mindinho do que com a morte de uma multidão de estranhos num local distante. Assim é a natureza humana, a mesma em 1759 e nos dias atuais. A televisão e a internet tornaram as tragédias longínquas mais viscerais do que seriam na época de Adam Smith, mas a percepção smithiana continua a ser verda-deira. Ele começa imaginando o terremoto:

Vamos supor que o grande império da China, com toda a sua miríade de habitantes, seja subitamente devastado por um ter-remoto. Imaginemos, então, como um humanitário na Europa, sem nenhum tipo de ligação com aquela parte do mundo, seria afetado ao saber dessa terrível calamidade.

Como esse humanitário reagiria?

Antes de mais nada, imagino que ele expressaria intensamen-te a sua tristeza pela desgraça desse povo desafortunado e faria muitas reflexões melancólicas sobre a precariedade da vida humana e a futilidade de todos os labores do homem, passível de ser aniquilado dessa maneira num instante. Se fosse dado a especulações, talvez também se entregasse a muitas considerações acerca dos efeitos que esse desastre po-deria produzir no comércio e nos negócios da Europa e do mundo em geral.

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Portanto, Adam Smith diz que, sim, demonstraremos que nos importamos e expressaremos nossa tristeza, e pode até ser que nos indaguemos sobre as consequências. Produziremos as expressões faciais e os ruídos corretos. Mas tudo isso é fugaz:

E, uma vez encerrada toda essa bela filosofia, quando todos esses sentimentos humanos tivessem sido adequadamente ma-nifestados, ele daria continuidade a seus negócios ou a seu pra-zer, desfrutaria de seu repouso ou sua diversão com a mesma descontração e a mesma tranquilidade que teria se tal acidente não houvesse acontecido.

Bem ou mal, a vida continua. A avaliação de Adam Smith, infelizmente, é verdadeira em relação à maioria de nós. O au-tor disserta então sobre como a reação do indivíduo seria dife-rente se ele estivesse prestes a perder um dedo:

O mais frívolo desastre que pudesse se abater sobre ele ocasio-naria uma perturbação mais real. Se ele estivesse para perder seu dedo mindinho no dia seguinte, não dormiria nessa noite; entretanto, desde que nunca os tivesse visto, roncaria na mais profunda segurança diante da ruína de centenas de milhares de seus irmãos, e a destruição dessa multidão imensa lhe parece-ria, claramente, um objeto de menor interesse para ele do que o próprio infortúnio insignificante.

Nossa capacidade de sentir a dor alheia é sempre muito me-nor que a de sentirmos a própria dor. Posso lidar com esse fato. Mas será que realmente nos importamos mais com nosso dedo mindinho do que com a morte de uma “multidão imensa”? Isso é um pouco mais difícil de aceitar. Adam Smith insinua que somos grotescamente egoístas.

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Isso parece confirmar a visão comumente aceita de que Adam Smith vê o mundo como movido pelo egoísmo. Muitas vezes, ele é definido como o precursor escocês de Ayn Rand, que, além de A revolta de Atlas, escreveu um livro intitulado A virtude do egoísmo. Na Teoria dos sentimentos morais, Adam Smith apresenta longos trechos falando de diversas virtudes. O egoísmo não está entre elas.

O que, efetivamente, sugere em seu famoso A riqueza das nações é que as pessoas são fundamentalmente interessadas por si mesmas, o que não é o mesmo que ser egoísta. Logo no início de A riqueza das nações, Adam Smith explica o poder da especialização para criar prosperidade. Idealmente, nós nos especializamos e nos tornamos bons em algo, e confiamos que vamos obter dos outros o resto do que desejamos. Mas, se to-dos estamos interessados em nós mesmos, por que outra pes-soa me ajudaria, fornecendo-me os bens que não posso obter sozinho? A resposta do autor é simples: a pessoa me ajudará se houver alguma vantagem nisso para ela. Trocar – oferecer algo em contrapartida à ajuda de alguém – é nossa maneira de sustentar o poder da especialização. Sobre a essência do inter-câmbio, Adam Smith escreveu em A riqueza das nações:

Quem oferece qualquer coisa a outra pessoa se propõe a fazer isto: “Dê-me aquilo que quero e você terá isto aqui, que você quer”; é esse o significado de qualquer oferta desse tipo, e é dessa maneira que obtemos uns dos outros a grande maioria dos bons serviços de que necessitamos.

Ele prossegue com uma de suas frases mais célebres:

Não dependemos da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro para termos nosso jantar, mas da consideração

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que eles têm pelo próprio interesse. Não nos dirigimos à sua hu-manidade, mas a seu amor-próprio, e nunca lhes falamos das nossas necessidades, mas das vantagens que eles terão.

Poucos discordariam dessa faceta fundamental da nature-za humana, que muitas vezes passa despercebida. Inúmeros alunos me mostram as cartas de recomendação que deverão acompanhar suas solicitações de emprego, e que falam unica-mente de quanto eles sonharam trabalhar para a companhia XYZ e de quanto significará para eles conseguir essa vaga. Pa-recem achar que o desejo de trabalhar na empresa é suficiente para que sejam contratados. Sempre incentivo meus alunos a se dirigirem ao amor-próprio de seus empregadores, não ape-nas à humanidade deles, apresentando alguma razão pela qual a XYZ se beneficiaria ao contratá-los. De que modo as suas habilidades serviriam aos objetivos da companhia? Você faz alguma ideia de quais são esses objetivos? A ideia de que as pessoas se importam consigo mesmas costuma ser uma boa coisa para levarmos em consideração quando queremos que elas façam algo por nós.

Mas esse é o mercado de trabalho, uma parte bastante mer-cenária da vida. Há muitas outras situações em que não pen-samos apenas em nós mesmos. A frase inicial da Teoria dos sentimentos morais deixa isso claro:

Por mais egoísta que o homem suponha ser, é evidente que há em sua natureza alguns princípios que o fazem se interessar pela sorte dos outros e se importar com a felicidade deles, em-bora nada extraia disso senão o prazer de testemunhá-la.

Nós nos importamos com os outros, mesmo quando não ganhamos nada com isso. Mas até que ponto nos importamos?

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O exemplo de Adam Smith sobre o terremoto na China mostra com clareza que a natureza humana é marcantemente egoísta. Mas depois disso ele ainda pergunta: supondo que fosse pos-sível salvar o seu dedo mindinho se você deixasse perecerem alguns milhões de chineses, você o faria? Afinal, é quase certo que você – como quase todas as pessoas reais que conheço, não angelicais, não santas, apenas meramente humanas – conside-re a perda de um dedo mais perturbadora para a sua felicidade e a sua visão geral da vida do que a morte de milhões de pes-soas que moram longe. Mas, se isso for verdade, você deverá ficar contente por deixar milhões de chineses morrerem para conservar seu dedo.

No entanto, nenhuma pessoa civilizada – nenhum “homem humanitário”, na descrição de Adam Smith – consideraria essa troca, nem por um instante. Ele escreveu que a mente se esqui-va até de imaginar semelhante negociação:

Assim, para prevenir esse insignificante infortúnio causado a ele mesmo, estaria um homem humanitário disposto a sacrificar a vida de cem milhões de irmãos, desde que nunca os tivesse visto? A natureza humana se assusta, horrorizada, diante dessa ideia, e o mundo, em seu mais alto grau de depravação e corrup-ção, nunca produziu um vilão que fosse capaz de considerá-la.

Hilel, o Ancião, o grande sábio judaico do Talmude do sé-culo I a.C., indagou: “Se eu não me importar comigo, quem se importará? E se eu me importar apenas comigo, quem serei?” A resposta de Adam Smith é que se a pessoa se importar ape-nas com ela mesma, se salvar o próprio dedo, matando milhões de pessoas, então será um monstro de proporções desumanas.

Portanto, este é o segundo passo para você se compreen-der. Sim, você é profundamente interessado por si mesmo.

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No entanto, por alguma razão, nem sempre age em função do que parece ser seu interesse pessoal. Adam Smith faz ques-tionamentos sobre como conciliamos nossos sentimentos e nossos atos:

Mas o que produz essa diferença? Se nossos sentimentos pas-sivos são quase sempre tão sórdidos e egoístas, como é que nossos princípios ativos são constantemente tão generosos e nobres? Se sempre somos tão mais profundamente afetados pelo que nos diz respeito do que pelo que acontece aos outros homens, o que impele os generosos, em todas as ocasiões, e os mesquinhos, em muitas delas, a sacrificar os interesses pes-soais em prol dos interesses de terceiros?

Considerando-se o nosso amor-próprio, por que é tão fre-quente agirmos de forma altruísta, sacrificando nosso bem--estar para ajudar o próximo?

Uma resposta seria o fato de sermos intrinsecamente bons e decentes, repletos do que Adam Smith chama de benevolência, ou do que nós, modernos, chamamos de compaixão. Somos altruístas; importamo-nos com os outros e detestamos vê-los sofrer – ainda que, como Adam Smith nos lembra, perder um dedo mindinho nos incomode mais do que o fato de milhões de pessoas perderem a vida. Ele rejeita a tese de que é nossa be-nevolência ou compaixão que faz com que nos abstenhamos, de maneira egoísta, de pôr nosso sofrimento insignificante aci-ma do desespero de milhões:

Não é o suave poder da humanidade, não é aquela frágil cen-telha de benevolência que a Natureza acendeu no coração hu-mano que é, portanto, capaz de se contrapor aos impulsos mais fortes do amor-próprio.

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Então, se a seiva da bondade humana é tão escassa, por que não somos mais afrontosamente egoístas, mais sórdi-dos? Adam Smith explica que é porque nosso comporta-mento é guiado por uma interação imaginária com o que ele chama de espectador imparcial – uma figura com quem conversamos num sentido virtual, alguém imparcial e obje-tivo que enxerga com clareza a moral dos nossos atos. É a essa figura que recorremos quando avaliamos o que é moral ou correto.

Esse espectador imparcial é muito parecido com nossa consciência. Mas a contribuição de Adam Smith consiste em fornecer uma fonte inusitada para essa consciência. Ele não invoca nossos valores, nossa religião nem quaisquer princípios que emitam um sinal para que nossa consciência moral produ-za sentimentos de culpa ou vergonha por nosso mau compor-tamento. Em vez disso, afirma que imaginamos ser julgados não por Deus, nem por nossos princípios, mas por um outro ser humano que olha por cima do nosso ombro:

É a razão, o princípio, a consciência, o habitante do peito, o homem interior, o grande árbitro de nossa conduta. É ele que, sempre que estamos prestes a agir de maneira que vai afetar a felicidade alheia, grita conosco, com uma voz capaz de assom-brar a mais pretensiosa das nossas paixões, dizendo que somos apenas um na multidão, em nada melhor do que qualquer ou-tro presente nela, e que, quando nos preferimos aos outros, de maneira tão vergonhosa e cega, transformamo-nos em objetos de ressentimento, abominação e execração.

Para Adam Smith, o espectador imparcial nos fala com a voz da humildade, a qual nos lembra que somos pequenos e que o mundo é enorme:

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É unicamente com ele que aprendemos a verdadeira pequenez de nós mesmos e de tudo que se relaciona conosco, e os equívo-cos naturais da autoestima só podem ser corrigidos pelo olhar desse espectador imparcial. É ele que nos mostra a exatidão da generosidade e a deturpação da injustiça; a exatidão de renun-ciarmos a nossos maiores interesses em nome dos interesses ain-da maiores de outrem e a deturpação de causar o menor prejuízo a um semelhante a fim de obter um benefício pessoal.

No fundo, sabemos que isso é verdade. Sabemos que somos pequenos em relação ao resto do mundo. No entanto, durante grande parte do tempo, talvez a maior parte, temos a sensação de ser o centro do universo. Chame isto de Lei Férrea de Você. Você pensa mais em si mesmo do que em mim.

Você já mandou um e-mail a alguém pedindo um favor e não recebeu resposta? É fácil esquecer que o destinatário, tal-vez como você, recebe muitos e-mails que precisa responder de imediato. O seu e-mail significa mais para você do que para o outro. Não há razão para encarar isso como uma ofensa pessoal. Quando não obtenho resposta de alguém, presumo que a pessoa não tenha recebido meu e-mail, para começo de conversa. Alguns dias depois, torno a enviá-lo, sem mencionar que o mandei antes (nem reclamar).

Certa vez, mandei um de meus livros a Tony Snow, que na época era colunista do USA Today. Como não recebi notícias dele, presumi que não estivesse interessado em escrever sobre o livro. Então, um dia, eu estava perto de seu escritório e passei para dizer um “oi”. Quando cheguei, confrontei-me com a Lei Férrea de Você. As estantes que cobriam as paredes do escri-tório, do piso ao teto, estavam repletas de livros. Havia livros empilhados em mesas, no chão até a altura dos olhos, por toda parte. Livros que gente como eu tinha enviado, na esperança

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de ser mencionado na coluna dele. Nem sei dizer se o meu es-tava lá. Talvez ele ainda não o houvesse recebido. Se não fosse o caso, então pode ser que não tivesse pensado nele por mais de um instante antes de colocá-lo numa pilha. Esquecendo a Lei Férrea de Você, eu havia presumido que meu livro chegaria e seria colocado no centro de uma mesa limpa, implorando para ser lido.

O espectador imparcial nos lembra que não somos o cen-tro do universo. Ter em mente que não somos mais impor-tantes do que ninguém nos ajuda a agir corretamente com os outros. O espectador imparcial é a voz interna que nos informa que o interesse pessoal puro é grotesco, e que pensar nos outros é honrado e nobre – a voz que nos lembra que, se prejudicarmos os outros para nos beneficiarmos, seremos ob-jeto de ressentimento, antipatia e desamor de qualquer um que nos olhe com imparcialidade. Se nos importarmos apenas com nós mesmos, não seremos bem-vistos.

Smith rejeita a ideia de que agimos corretamente por ser-mos compassivos e nos importarmos com os outros num sen-tido abstrato:

Não é o amor ao próximo, não é o amor à humanidade que, em muitas ocasiões, impele-nos à prática dessas virtudes divinas. É um amor mais intenso, uma afeição mais poderosa, que se manifesta nessas ocasiões: o amor pelo que é honroso e nobre, pela grandeza, pela dignidade e pela superioridade do nosso caráter.

O amor-próprio surge naturalmente. E o amor ao próximo? Não tão facilmente assim. Adam Smith diz que, apesar de não conseguirmos amar ao próximo como a nós mesmos, somos capazes, em alguns momentos, de agir como se isso fosse pos-

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sível. Mas nossos atos de caridade não são motivados pela mesma emoção que nos instiga a nos protegermos e a evitar a dor e o sofrimento. O que nos incita a cuidar do próximo é o desejo de agir de forma honrada e nobre, para satisfazer o que imaginamos ser o padrão estipulado por um espectador imparcial.

Certa vez, eu estava conversando com um amigo sobre Deus e a moralidade. Será que acreditar em Deus reduz a probabilidade de alguém pecar ou cometer um crime? E se a pessoa soubesse que não haveria chance de ser descoberta, que com certeza não sofreria castigo algum por esse deslize? Portanto, ao que parece, é racional roubar ou pecar quando ninguém está olhando. Ao ouvir essa minha conclusão, meu amigo sorriu e disse que toda a ideia de Deus é de que Ele está sempre olhando.

Já Adam Smith pensa que é você que está sempre olhando! Mesmo que esteja sozinho, sem possibilidade de ser descober-to, mesmo que ninguém saiba que você está roubando, você sabe. E, ao contemplar a prática desse ato, imagina como uma segunda pessoa, um espectador imparcial do seu crime, reagi-ria à sua falha moral. Você sai de si mesmo e vê seus atos pelos olhos de outro.

No musical Os miseráveis, Jean Valjean é um fugitivo. Por um equívoco, outro homem é detido e irá para a prisão por muito, muito tempo, no lugar dele. É um esplêndido golpe de sorte para Valjean, que finalmente ficará livre. Tentado a dei-xar um inocente sofrer em seu lugar, Valjean se faz a pergunta de Hilel, que é também a de Smith: Quem sou eu? Será que só me importo comigo? Na música “Who Am I?”, Valjean se debate com as instigações do amor-próprio: pode continuar livre, mas somente condenando outro à prisão. Esse egoísmo é estritamente racional, é claro; é melhor ser livre do que estar preso. Mas Valjean não leva isso em consideração. Como po-

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deria encarar seus semelhantes se agisse com tanto egoísmo? Como encararia a si mesmo? Somente entregando-se é que poderá reivindicar a pessoa que ele quer ser.

Sofrer para salvar outra pessoa parece irracional. Adam Smith afirma que é falho o moderno cálculo econômico que considera apenas os custos e benefícios materiais. É perfeita-mente racional dar gorjeta num restaurante em que nunca vol-taremos, fazer doações anônimas para instituições beneficen-tes, doar sangue sem ter a expectativa de precisar de sangue no futuro e até doar um rim sem receber qualquer valor por isso. As pessoas que fazem essas coisas agem com prazer.

Há muito tempo psicólogos e filósofos debatem em torno da seguinte questão: nosso senso moral é inato ou adquirido? Muitos deles afirmam que o cérebro humano é uma tábula rasa que absorve todos os fatores culturais. A moral é inteiramente relativa: depende de onde a pessoa cresce e de como é criada. Num livro recente sobre psicologia moral, The Righteous Mind (A mente moralizante), o psicólogo social Jonathan Haidt afir-ma que há um corpus crescente de provas de que a moral é mais do que apenas um conjunto de sentimentos influencia-do pela cultura. Embora não discuta a questão nesses termos, Adam Smith tende para a visão da origem inata. Ele acredita que nosso desejo de ser aprovado está inserido em nós, e que nosso senso moral provém de observarmos a aprovação e a reprovação de terceiros. Quando vivenciamos essas reações, passamos a imaginar um espectador imparcial que nos julga.

Sendo ou não o comportamento honroso motivado pela visão de um espectador imparcial atento e moralista, essa ideia nos fornece uma ferramenta poderosa de autoaprimo-ramento. Pensar em um espectador imparcial nos estimula a sairmos de nós mesmos e a nos enxergarmos como os ou-tros nos veem. Trata-se de um exercício que exige coragem

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e que a maioria de nós passa a vida evitando ou praticando de forma precária. Mas se você conseguir fazê-lo, e o fizer bem, poderá observar como se porta e começar a saber quem realmente é e de que maneira poderia melhorar. Sair de si mesmo é uma oportunidade de chegar ao que às vezes é cha-mado de atenção plena – a arte de prestar atenção, em vez de vagar pela vida sem conhecimento das próprias falhas e dos próprios hábitos.

Todos gostamos de pensar em nós mesmos como pessoas boas. Até os assassinos são capazes de ter uma opinião ótima a respeito de si e de justificar seus atos. Mas, se quiser ser uma boa pessoa de fato, em vez de apenas simular isso em sua men-te, você deve saber o que tem de enfrentar. Você ficará diante da Lei Férrea de Você – seu inevitável egocentrismo, que quer não apenas colocá-lo em primeiro lugar, mas também que você acredite ser uma boa pessoa, mesmo quando não for o caso. Pensar no espectador imparcial – um observador de ca-beça fria, alheio ao calor do momento – pode transformá-lo numa pessoa melhor e num colega de trabalho mais eficiente, num amigo mais próximo e num cônjuge mais atencioso.

Pense na mais básica interação humana: a conversa. Todos conhecemos pessoas que falam demais de si, dominando a situação e ocupando uma parcela de tempo maior do que a que lhes caberia. É mais difícil notar que, às vezes, você é essa pessoa. Gostamos de falar de nós mesmos, de expor nossos pontos de vista. Quantas vezes você responde a uma pergunta e fica esperando outra, em vez de retrucar com algum questio-namento sobre ela? Com que frequência você escuta querendo compreender, em vez de esperar que o outro termine, apenas para poder fazer outra colocação ou contar outra história a respeito de si? Como é que um espectador imaginário julgaria o seu estilo de conversa? Imaginar um espectador imparcial

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pode ajudá-lo a transformar sua conversa em algo mais pare-cido com uma dança, e menos com um revezamento – mais diálogos do que monólogos concorrentes.

Quando comecei a gravar meus podcasts, em 2006, entre-vistando um convidado por semana, eu falava mais do que agora. Comentava as observações de meus convidados depois de quase todas as respostas. “Ora, o entrevistador sou eu”, di-zia a mim mesmo. “As pessoas querem saber minha opinião. E tenho muito a dizer, não é?” Talvez. Às vezes. Nem sempre, com certeza. Não precisei de um espectador imparcial para me alertar; volta e meia um ouvinte de carne e osso reclamava de que eu falava demais. Afastei-me de mim mesmo e me dei con-ta de que esses ouvintes tinham razão. O programa melhorou quando deixei que meus convidados falassem mais.

Ou, então, pense em como você reage a desfeitas e peque-nas injustiças. Há ocasiões em que sentimos uma ânsia de nos entregarmos a sentimentos de raiva, ressentimento ou injustiça por causa de pequenos aborrecimentos que seria melhor ignorar. Adam Smith nos incentiva a sairmos de den-tro de nós mesmos e perguntarmos se um observador ex-terno nos veria mais como resmungões ou como defensores da justiça. Para não insuflarmos nossos sentimentos de in-justiça, ele propõe um modo de encontrarmos a serenidade: reclame menos, ria mais.

Um dia desses, minha mulher e eu estávamos no carro e mencionei que havia remarcado um compromisso para nós dois podermos ir juntos. “Não vai dar”, disse ela. “Você não leu o e-mail que mandei?” O novo horário do compromisso batia com algo que eu tinha de fazer com uma das crianças. Eu havia lido o e-mail. Mas me esquecera dele ao fazer o rea-gendamento. Senti-me um idiota. “Não faz mal”, disse minha mulher. “É só marcar de novo, sem problema.”

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Mas para mim foi um problema. Fiquei sem jeito por re-marcar o compromisso mais uma vez. Notei que minha voz se elevou. Na ânsia de fazer minha mulher entender quanto eu achava má ideia esse novo adiamento, me exaltei. Cinco mi-nutos depois, pensei no espectador imparcial. Retirei-me da situação. Eu havia destratado minha mulher. Dei a impressão de estar com raiva dela quando, na verdade, estava zangado comigo mesmo – e sem graça – por ter esquecido o e-mail. Pedi desculpas.

Gostaria de ter pensado mais cedo nesse espectador impar-cial. E, se tivesse havido um espectador de fato – um amigo no banco traseiro, digamos –, eu jamais teria ficado tão aborreci-do. Uma pessoa de carne e osso teria me acalmado. Em vez de ficar na defensiva, eu teria perguntado se havia um modo de resolver a questão do nosso filho sem ter que remarcar o com-promisso, o que acabamos fazendo.

Talvez você pague a alguém para cortar a grama ou fazer faxina em sua casa. Ou então tenha contratado alguém para consertar algo, ou seja um gerente e tenha subordinados no trabalho. É difícil tratar as pessoas como elas querem – você é muito ocupado, tem muitas responsabilidades. Agrada-lhe pensar que os profissionais com quem você trabalha lhe darão o benefício da dúvida caso você seja grosseiro ou sem conside-ração. Será que um espectador imparcial o veria como um che-fe gentil e atencioso ou como uma pessoa aquém desse ideal?

Se você quer se aprimorar naquilo que faz, se quer ser me-lhor nessa coisa chamada vida, precisa prestar atenção. Só as-sim conseguirá se concentrar no que realmente importa, no que é verdadeiro e duradouro, não no que é falso e passageiro. Pensar num espectador imparcial pode ajudar você a se co-nhecer e a se tornar um melhor patrão, cônjuge, pai ou amigo; a interagir com espectadores da vida real e modificar o que

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eles pensam de você. Isso é bom, mas Adam Smith afirma que prestar atenção no modo como sua conduta é percebida ofe-rece mais do que um agradável benefício colateral. Pode levar, efetivamente, à serenidade, à tranquilidade e à felicidade.

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