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Para soldados em saiotes, do passado e do presente. · Ele girou a roda do calendário com o seis gravado. Cinco. Quatro. Inspirou fundo. Vá‑se embora. Ele ouviu as suas próprias

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Escândalos & CANALHAS

Vol. 3 / Edição 113 Agosto de 1836

DUQUESA DESAPARECIDA É ENCONTRADA!

COSCUVILHICE EMANOU do Parlamento hoje quando Seraphina, a desaparecida Duquesa de Haven, retornou da sua

jornada escandalosa para surpreender a sociedade e enfrentar o marido em plena

Câmara dos Lordes. A petição parlamentar da lady há muito

tempo desaparecida?DIVÓRCIO!

Pelo que soubemos, o LUDIBRIADO HAVEN correu para casa, cedendo a palavra (mas não desistindo da guerra) à sua antes amada lady,

uma das IRMÃS PERIGOSAS e duquesa desprezada… agora cônjuge relutante!

Contudo, a senhora não aceitará ser ignorada. Ela continuou, furiosa, jurando terminar

o casamento por qualquer meio necessário. Existe algo mais indecente do que

um escândalo de verão?

MAIS NOTÍCIAS EM BREVE.

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Capítulo 1

O DUQUE ABANDONADO É REPUDIADO!

19 de agosto de 1836Câmara dos Lordes, Parlamento

E la tinha -o deixado há exatamente dois anos e sete meses.Malcolm Marcus Bevingstoke, Duque de Haven, observava

o calendário de madeira sobre a escrivaninha no seu gabinete na Câmara dos Lordes.

19 de agosto de 1836. O último dia da atual sessão parlamentar, cheio de pompa e ócio. E lembranças persistentes.

Ele girou a roda do calendário com o seis gravado. Cinco. Quatro. Inspirou fundo.

Vá ‑se embora. Ele ouviu as suas próprias palavras, frias e furiosas com a traição, a retumbar com a ameaça implícita. Não volte nunca mais.

Tocou na roda mais uma vez. Agosto tornou -se julho. Maio. Março. 19 de janeiro de 1834. O dia em que ela o deixou.Os dedos dele moveram -se sozinhos, encontrando consolo nos

estalidos familiares das rodas. 17 de abril de 1833.O modo como me faz sentir… Desta vez, palavras dela — doces e

tentadoras. Nunca senti nada parecido com isto.Ele também não tinha sentido. Como se luz, ar e esperança tives-

sem inundado o ambiente, preenchendo todos os espaços sombrios. Preenchendo os pulmões e o coração dele. E tudo por causa dela.

Até que ele descobriu a verdade. A verdade que teve tanta impor-tância no início até não ter nenhuma. Aonde é que ela tinha ido?

O relógio no canto do gabinete continuou o tiquetaque, contando os segundos até chegar o momento em que Haven devia ocupar o seu

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lugar no venerável salão principal da Câmara dos Lordes, onde, du- rante gerações antes dele, se sentaram homens com paixões e obje-tivos maiores. Os dedos dele brincavam com o pequeno calendário com destreza, como se já tivessem feito aquele jogo centenas de vezes. Milhares. E tinham feito mesmo.

Primeiro de março de 1833. O dia em que se conheceram.Então, agora eles deixam qualquer um tornar‑se duque, é isso? Não há

respeito. Provocação, charme e beleza pura, imaculada. Se acha que os duques são maus, imagine só quem aceitam como

duquesas. Aquele sorriso. Como se nunca tivesse encontrado outro homem.

Como se nunca tivesse querido encontrar outro. Ele tornou -se dela no momento em que viu aquele sorriso. Antes disso.

Imagine, mesmo. E então tudo se desmoronou. Ele perdeu tudo, e perdeu -a também

a ela. Ou talvez tenha sido o contrário. Ou, quem sabe, tenha sido ao mesmo tempo. Chegaria o dia em que ele deixaria de pensar nela? Existiria alguma data que não o fizesse lembrar-se dela? Do tempo que se estendeu eternamente desde que ela o deixara?

Aonde teria ela ido? O relógio chegou às 11 horas e as badaladas ressoaram no gabinete, encontrando eco numa dúzia de relógios que soavam ao longo do extenso corredor de carvalho para lá da porta, convocando homens com nomes há muito tempo estabelecidos para o dever que era deles ainda antes de nascerem.

Após girar as rodas do calendário com força, deixou que ficassem onde pararam: 37 de novembro de 3842. Uma ótima data, sem qual-quer hipótese de ele ainda pensar nela.

Levantou -se, dirigindo-se para o lugar onde ficavam as suas vestes vermelhas — trajes espessos, pesados, que deveriam representar o peso da responsabilidade que recaía sobre os membros da Câmara. Pôs o traje sobre os ombros, e o calor do veludo oprimiu -o quase de imediato, deixando-o enjoado e sufocado. Isso antes de pegar na peruca empoada, que lhe provocou um esgar de desgosto quando a colocou sobre a cabeça, o rabo de cavalo açoitando -lhe a nuca antes de repousar, imóvel e desconfortável, como uma punição pelos seus pecados do passado.

Ignorando os sentimentos, o Duque de Haven abriu a porta do gabinete e percorreu os corredores, agora silenciosos, até à entrada

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do salão principal da Câmara dos Lordes. Ao entrar, inspirou fundo e arrependeu-se de imediato. Era agosto e estava quente como o Inferno no Parlamento. O ar fedia a suor e perfume. As janelas estavam abertas para permitir que uma brisa entrasse no salão, um movimento de ar quase imperceptível, que apenas exacerbava o mau cheiro e acrescentava o ar pestilento do Tamisa ao já horrendo cheiro do ambiente.

Perto da casa dele, o rio corria fresco e límpido, ainda não macula- do pela imundície de Londres. Em casa o ar era limpo, trazendo a promessa de um idílio de verão e de algo mais. Do futuro. Pelo menos tinha sido assim. Até o lar se ter começado a desmoronar, a cair em pedaços, e ele ter ficado sozinho, sem ela. Agora, a propriedade pare-cia não ser nada além de terra. Um lar necessitava de mais do que um rio e colinas verdejantes. Um lar precisava dela. Então, naquele verão, ele faria o que fizera todos os instantes em que se afastava de Londres nos últimos dois anos e sete meses. Procuraria Seraphina.

Ela não tinha estado em França nem em Espanha, para onde ele tinha ido no verão anterior, à procura de mulheres inglesas em busca de diversão. Ela não era nenhuma das falsas viúvas que encon-trara na Escócia, nem a governanta da imponente mansão no País de Gales; tão -pouco a mulher que encontrara em Constantinopla um mês depois de Seraphina o ter deixado, uma charlatã que fingia ser aristocrata. E depois houve aquela mulher de Boston — sobre quem ele tinha tanta certeza —, a quem chamavam A Pomba.

Não era Sera. Nunca era. Ela tinha desaparecido, como se jamais tivesse existido. Num momento ela estava ali, no seguinte já não, dispondo de dinheiro suficiente para desaparecer. E logo quando ele percebeu o quanto a queria. Mas o dinheiro a dada altura acabaria, e ela não teria escolha a não ser parar de fugir. Ele, por outro lado, era um homem com poder e privilégio, com uma fortuna exorbitante, suficiente para a encontrar no momento em que ela parasse. E ele ia encontrá-la.

Haven sentou -se num dos longos bancos que circundavam o piso da Câmara, onde o Lorde Chanceler já tinha começado a falar.

— Meus lordes, se não houver mais nenhum assunto formal, encerraremos a temporada parlamentar deste ano.

Um coro de aprovação — com punhos a bater nos assentos por todo o salão — ecoou na câmara.

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Haven suspirou e resistiu ao impulso de coçar a peruca, sabendo que, se cedesse ao desejo, aquele desconforto na cabeça o consumiria.

— Meus lordes! — gritou o Lorde Chanceler. — Não há, de facto, mais nenhum assunto formal na atual sessão?

— Não! — ressoou em uníssono no salão. Parecia que a Câmara dos Lordes estava cheia de estudantes desesperados por uma tarde no lago, em vez de quase 200 aristocratas pomposos ávidos por se irem encontrar com as amantes.

O Lorde Chanceler sorriu, o rosto corado a brilhar de suor, enquan- to espalmava as manzorras sobre o amplo abdómen.

— Muito bem, então! São os reais desejos e alegria de Sua Majes- tade…

As enormes portas do salão abriram-se com estrondo e o som ecoou pela câmara silenciosa, competindo com a voz do chanceler. As cabeças viraram -se, exceto a de Haven; ele estava demasiado ansioso para deixar Londres e a peruca para trás, de modo que nem se preocupou com o que estava a acontecer.

O Lorde Chanceler recompôs -se, pigarreou e continuou:— … que este Parlamento seja suspenso até sexta-feira, dia 7 de

outubro próximo…Um coro de exclamações de reprovação ecoou assim que as por-

tas se fecharam com um estrondo. Nesse momento, Haven olhou, seguindo o olhar dos homens até à porta da câmara. Ele não perce-bia qual era o problema.

O Lorde Chanceler pigarreou, o som carregado de reprovação, antes de renovar o seu compromisso de encerrar a sessão. Graças a Deus por isso.

— … sexta‑feira, no sétimo dia de outubro próximo. — Antes de Vossa Excelência encerrar, Lorde Chanceler?Haven ficou rígido. As palavras soaram fortes e ao mesmo tempo suaves e melodio-

sas, e encantadoramente femininas — tão estranhas na Câmara dos Lordes, um local para lá dos limites do chamado «sexo frágil». Deve ter sido por isso que Haven susteve a respiração. Sem dúvida foi por isso que o seu coração disparou. O motivo pelo qual, de repente, ele se pôs de pé no meio de um coro de homens afrontados.

Não foi por causa da voz em si.— O que significa isto? — trovejou o chanceler.

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Haven conseguiu ver, por fim, a causa de tamanha comoção. Uma mulher. Mais alta do que qualquer mulher que ele conhecera, com o mais belo vestido cor de lavanda que ele já vira, perfeitamente arranjada, como se entrasse em sessões parlamentares com regula-ridade. Como se ela fosse a própria primeira-ministra. Como se ela fosse até mais do que isso. Como se fosse da realeza.

A única mulher que ele tinha amado. A única mulher que ele tinha odiado. A mesma, e ainda assim, totalmente diferente.

Haven ficou petrificado onde estava.— Confesso — disse ela, como se estivesse num chá da tarde,

dirigindo -se para o centro da câmara — que temia que a sessão já tivesse sido encerrada. Mas fico feliz por me ter conseguido infiltrar antes que todos pudessem fugir para onde quer que os cavalheiros vão em busca de… prazer. — Ela sorriu para um conde idoso, que corou sob o calor do olhar dela e se virou para o lado. — De qualquer modo, disseram-me que aquilo de que estou à procura exige um Ato do Parlamento. E os senhores são… como bem sabem… o Parlamento.

O olhar dela encontrou o dele. Os olhos dela eram exatamente como ele se lembrava, azuis como o mar de verão, mas agora esta-vam, de algum modo, diferentes. Se tinham sido francos e honestos, agora estavam protegidos. Reservados.

Céus. Ela estava ali. Ali. Quase três anos à procura dela, e agora ela ali estava, como se tivessem passado apenas algumas horas. O cho-que misturou -se com uma raiva por que ele não esperava, mas essas emoções não eram nada quando comparadas com um terceiro sen-timento. Um prazer imenso e insuportável.

Ela estava ali. Finalmente. De novo.Ele fez os possíveis para não se mexer. Para não pegar nela e levá-la

dali. Para a segurar perto de si. Reconquistá-la. Começar de novo. Só que ela não parecia estar ali para isso.

Ela observou -o por um longo momento, com um olhar inflexí-vel, antes de declarar:

— Eu sou Seraphina Bevingstoke, Duquesa de Haven. E solicito um divórcio.

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Capítulo 2

A DUQUESA DESAPARECE, O DUQUE ESTÁ DEVASTADO

Janeiro de 1834Dois anos e sete meses antes. Menos três dias.Mansão Highley

S e ela não batesse à porta, morreria.Ela não deveria ter vindo. Tinha sido demasiado irresponsá-

vel. Tomou a decisão num instante insuportavelmente emotivo, desesperada por algum tipo de controlo naquele que era o momento menos controlável da sua vida.

Se não estivesse com tanto frio, ter -se -ia rido da loucura que era aquela ideia, de que um dia poderia voltar a ter algum controlo sobre a sua vida.

Mas a única coisa que Seraphina Bevingstoke, Duquesa de Haven, podia fazer era lamentar a sua decisão parva de alugar uma carrua- gem, pagar uma fortuna ao cocheiro para a levar numa longa e ater-radora viagem no meio da chuva gelada de uma noite fria de janeiro, para ir ali parar, a Highley, a mansão de que era senhora. Contudo, um nome não conferia direitos. Não às mulheres. Por direito, ela não era nada além de uma visitante. Nem mesmo uma convidada. Ainda não. Talvez nunca.

A carruagem desapareceu na chuva, que ameaçava ficar torren-cial e em forma de neve, e Sera olhou para a enorme porta da casa sombria, considerando a sua próxima ação. Era tarde da noite, a cria- dagem já estava recolhida, mas ela não tinha alternativa a não ser acordar alguém. Não podia continuar do lado de fora. Se permane-cesse ali, estaria morta antes do amanhecer.

Uma onda de dor assustadora sacudiu -a. Ela levou a mão à barriga.Eles estariam.

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A dor cedeu e ela recuperou o fôlego, levantando a elaborada aldra- ba de ferro forjado, em formato de B, presa à porta. Ao deixá-la cair com um baque, o som do machado de um carrasco, sombrio e abominável, trouxe uma enxurrada de preocupação. E se ninguém atendesse? Pior, e se ela tivesse ido até lá, desafiando a lógica, para encontrar uma casa vazia?

Essas preocupações eram infundadas. Highley era a sede do Ducado de Haven, com a criadagem completa. A porta foi aberta e surgiu um jovem criado de uniforme, com olhos a expressar cansaço, a sua curiosidade imediatamente a dar lugar ao choque enquanto a dor sacudia Sera mais uma vez.

Antes que ele pudesse falar ou que a deixasse na rua, Sera en- trou, arquejante, com uma mão na barriga e a outra no batente da porta.

— Haven. — O nome foi tudo o que ela conseguiu dizer antes de se curvar de dor.

— Ele… — O rapaz parou. — Sua Graça, quer dizer… ele não está na residência.

Ela conseguiu fitar o rapaz, os seus olhos encontrando os dele na pouca luz do ambiente.

— Você conhece -me?Ele baixou os olhos para o abdómen dela. E então subiu o olhar.Ela abriu a mão sobre a criança que trazia ali.— O herdeiro.O rapaz concordou e ela sentiu alívio, uma onda de calor. Sera

cambaleou e ele arregalou os olhos jovens, atraídos para o chão entre eles. Não era alívio, mas sangue.

— Oh… — começou ele, mas o resto das suas palavras perdeu-se pelo choque.

Sera cambaleou na entrada, tentando segurar -se ao rapaz, prati-camente uma criança, que tinha tido muito azar no trabalho naquela noite. Ele segurou -a pela mão.

— Ele está aqui — sussurrou ele. — No andar de cima.Lá estava ele. Forte o suficiente para dobrar o Sol se assim o de-

sejasse.Sera poderia ter sentido gratidão, não fosse a dor. Poderia ter sen-

tido felicidade, não fosse o medo. E poderia haver vida, não fosse o facto de ela de repente perceber o que estava para vir.

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Vá embora. Ela ouviu as palavras. Viu o olhar frio quando ele a baniu meses antes. E então, de algum modo…

Venha cá. Aquele olhar de novo, mas dessa vez com as pálpebras pesadas. Quente como o Sol. E então vieram os sussurros lindos e suaves junto da orelha dela. Você foi feita para mim. Nós fomos feitos um para o outro.

A dor devolveu Sera ao presente, uma dor aguda e excruciante, anunciando que algo estava terrivelmente errado. Como se o sangue que lhe tingia as saias e o chão de mármore não fosse alerta sufi-ciente. Ela gritou, mais alto do que percebeu. De repente, apareceu mais alguém, uma mulher.

Conversaram, mas Sera não conseguiu ouvir as palavras. Então a mulher desapareceu e ela foi deixada na escuridão, com os seus erros e o rapaz, o querido e doce rapaz, que se agarrou a ela. Ou foi ela que se agarrou a ele.

— Ela foi buscá-lo. Era tarde demais, claro. De muitas maneiras. Não devia ter ido

até lá.Sera caiu de joelhos, arfando com a dor. Tristeza além do ima-

ginável. Ela jamais conheceria o filho deles. De cabelo castanho e sorriso largo, inteligente como o pai. Solitário como ele, também. Se pelo menos ela sobrevivesse, poderia amá-los o suficiente. Mas ela ia morrer ali, naquele lugar, a poucos metros do único homem que tinha amado na vida. Sem nunca lho ter dito. Sera perguntou--se se ele sofreria quando ela morresse, e a resposta aterrorizou -a mais do que tudo, porque ela soube, sem dúvida, que essa resposta a perseguiria no além.

Ela apertou a mão do rapaz.— Diga-me o seu nome.— Vossa Graça?Ela apertou-lhe mais a mão.— Sera — sussurrou ela. Ia morrer e queria que alguém disses-

se o nome dela, não o título. Algo real. Algo que parecesse ser dela. — O meu nome é Seraphina.

O simpático rapaz segurou -a. Concordou. O nó na garganta estreita demais pulsou com o nervosismo dele.

— Daniel — disse ele. — O que devo fazer?— O meu filho — sussurrou ela. — Dele.

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O rapaz concordou com a cabeça, de repente sábio demais para a idade.

— Precisa que lhe traga alguma coisa?— Mal… — disse ela, incapaz de conter a verdade. Incapaz de

evitar que a verdade a consumisse por inteiro. Só mais uma vez. Só o bastante para acertar tudo. — Eu quero o Malcolm.

O Duque de Haven escancarou a porta do quarto em que Sera estava deitada, silenciosa, imóvel e pálida; a porta de carvalho fez ricochete com força na parede, assustando quem estava lá dentro. Uma criada jovem soltou um gritinho de susto e a governanta levan-tou os olhos de onde estava, mantendo um pano sobre a testa de Sera. Mas o Duque não queria nada com as duas mulheres. Ele estava con- centrado no médico ao lado da sua esposa.

— Ela vive — rosnou Haven, as palavras carregadas de uma emo-ção que ele não sabia ser capaz de sentir. Mas que Seraphina sempre o fez sentir. Mesmo quando ele estava desesperado para não sentir nada.

O cirurgião concordou. — Por um fio, Vossa Graça. É provável que morra antes do anoi-

tecer.As palavras entraram nele, curtas e frias, como se o médico esti-

vesse a discutir o clima ou as notícias matinais, e Malcolm ficou imóvel, sentindo o peso daquela declaração que tentava derrubá-lo. Menos de uma hora antes, segurara a sua filha perdida, tão pequena que nem chegava a encher -lhe as mãos, tão preciosa que ele não conseguiu devolvê-la à criada que a trouxe.

Ele mandou a criada embora e ficou sentando em silêncio, segu-rando o corpo quase sem peso da filha, lamentando a sua morte. E a sua vida. Todas as coisas que ela poderia ter sido.

Sabendo que, apesar da fortuna, da condição e do poder, prati-camente ilimitados, ele não conseguiria trazê-la de volta. E, quando conseguiu pensar além da tristeza, pôde encontrar consolo na fúria.

Ele não perderia as duas. Malcolm fixou o olhar no médico.— Entendeu -me mal — disse, aproximando -se do homem.

Levantando-o pelas lapelas do casaco, o duque trovejou sobre o

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homem mais pequeno, mais velho, mais fraco. — Está -me a ouvir? Ela vive! — O médico gaguejou, e uma fúria inundou Malcolm, que sacudiu o homem. — A minha mulher vai viver!

— Eu… eu não posso salvá-la se ela não quiser ser salva. Malcolm soltou -o, sem se importar com o facto de o médico ter

cambaleado quando os pés tocaram no chão. Ele já estava a dirigir--se para Sera, ajoelhando-se ao lado da cama, tomando a mão dela na sua, detestando a frieza ao toque, apertando mais, desejando que ela aquecesse. Demorou -se um momento a admirá -la — ela tinha estado longe durante tanto tempo, e, antes disso, ele detestara-a de- mais. Antes de tudo, ainda, Malcolm estava demasiado desesperado para perceber, exatamente, o que desejava dela.

Porque é que ele tinha demorado até àquele momento — quando Sera estava pálida, imóvel e à beira da morte — para perceber como ela era linda? As maçãs do rosto altas, aqueles lábios cheios e as pes-tanas pretas como carvão, incrivelmente longas, a descansar sobre a sua pele de porcelana.

O que ele daria para que ela levantasse aquelas pestanas e olhasse para ele com aqueles olhos que nunca deixavam de lhe roubar o fôlego, azuis como o céu de verão. Ele aceitá -los -ia como viessem… cheios de alegria. Tristeza. Ódio.

Ele já tinha dado tanto. E ela também. O que mais possuía ele? Que sacrifício mais poderia oferecer? Nenhum. Então, nesse caso, aceitaria sem oferecer nada em troca. Fechou os olhos e colou os lábios aos dedos frios e inertes dela.

— Vai sobreviver, Sera. Nem que eu tenha de a puxar de volta do céu. Vai sobreviver.

— Vossa Graça.Ele congelou ao ouvir as palavras claras e impassíveis, proferidas

da porta do quarto. Não se virou para encarar a mulher que estava lá; não conseguiu encontrar paciência para tanto.

As saias da mãe restolhavam quando ela se aproximou.— Haven. Uma onda de fúria agitou -o ao ouvir o título ali, naquele mo-

mento. Sempre um duque, nunca um homem. Com que frequência ela lhe lembrava a sua posição? O seu propósito? Os sacrifícios que ela fizera para lhe garantir tudo aquilo? Sacrifícios que a tinham torna- do uma das mulheres mais temidas da Grã-Bretanha. Uma censura

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da Duquesa de Haven poderia arruinar uma rapariga antes de ela ter qualquer hipótese.

Duquesa, não. Viúva do duque.Malcolm levantou -se, virando-se para encarar a mãe, impedindo-a

de ver Seraphina. De repente, ele queria a mãe fora do quarto. Longe da mulher dele.

Haven passou pela mãe e pelo médico, abrindo caminho até ao cor- redor do lado de fora, tirando as criadas do seu torpor com as cabeças baixas e as preces sussurradas. Reprimiu o impulso de gritar com elas. De ir contra décadas de formação em título e condição social.

— Está a ser dramático — disse a mãe. O maior de todos os pecados.

O coração dele começou a martelar.— A minha filha está morta. A minha mulher, quase. — O olhar

dela não se aqueceu. Ele não devia surpreender -se por isso, mas mesmo assim quase teve um acesso de fúria. Mas duques não têm acessos de nada. Em vez disso, ele encarou os frios olhos azuis dela e disse: — A sua neta está morta.

— Uma menina.Uma onda de calor sacudiu -o.— Uma filha. — Não um herdeiro — observou a mãe, dando pouca importân-

cia. — Agora, se tiver sorte, pode recomeçar a sua vida.O calor transformou-se em chamas, queimando-o por dentro.

Fechando -lhe a garganta. Sufocando -o.— Se eu tiver sorte? — Se a rapariga Talbot morrer. O médico diz que, se ela viver, vai

ficar estéril, não vai ter qualquer utilidade. Você vai poder encontrar outra. Conseguir um herdeiro. Um com melhor pedigree.

Ele cerrou os olhos, com dificuldade em entender aquelas pala-vras com o rugido que lhe troava nos ouvidos.

— Ela é a Duquesa de Haven.— O título não significa nada se ela não puder dar à luz o pró-

ximo duque. Foi por isso que se casou com ela, não foi? Ela e a mãe prepararam -lhe uma armadilha. Apanharam -no. Seguraram -no com a promessa de um herdeiro. E agora acabou. Eu não seria uma boa mãe se não desejasse vê-lo livre dessa mulher vulgar.

Ele escolheu as palavras com cuidado.

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— Neste momento, não podia ser uma mãe pior. É uma cabra fria e sem coração. E quero que esteja longe desta casa quando eu voltar.

A mãe arqueou uma sobrancelha bem definida.— A emoção não lhe fica bem.Então ele saiu de perto da mãe, porque não confiava em si o

suficiente para garantir que não extravasaria as suas emoções incon-venientes sobre ela.

Deixou a mãe e foi enterrar a filha no chão frio de janeiro, en- quanto rezava para que a mulher sobrevivesse.

Seraphina estava sozinha quando acordou, num quarto invadido por uma luz ofuscante. Sentia dores em tudo — nos ossos, nos mús- culos e em sítios cujos nomes nem sabia. Como aquele que até há pouco tempo estava tão lindamente cheio de algo maior do que esperança, mas que agora jazia devastadoramente vazio.

Ela passou a mão pela coberta, os dedos marcando o tecido deli-cado sobre o abdómen dorido, inchado e desocupado. Uma lágrima escorreu, descendo -lhe pela têmpora, deixando um rasto de solidão ao entrar -lhe no cabelo e desaparecer. Imaginou aquela gota a levar a sua última reserva de felicidade.

Para lá da janela, avistava-se um céu azul brilhante, sem nada a obscurecê -lo a não ser o vidro grosso. Um galho de árvore sem folhas, à distância, parecia malformado, com grandes manchas pre-tas. Não era malformação. Eram corvos.

Um para tristeza. Dois para alegria — lembrou -se do poema infantil.

A respiração ficou -lhe presa na garganta.— Lágrimas não a vão trazer de volta.Sera virou -se para a voz, temendo o que encontraria. Não o ma-

rido, mas a sogra, que parecia ter o hábito de aparecer quando não era bem-vinda. De facto, a Duquesa Viúva de Haven costumava estar presente nos piores aposentos. Aqueles que eram palco da destrui-ção de sonhos. A mulher era um prenúncio de sofrimento. Mesmo que Sera não soubesse, no seu íntimo, que a criança tinha morrido, a presença da viúva bastaria para lhe provar a tragédia.

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Sera desviou o olhar para a janela, para o céu, brilhante e carre-gado de uma promessa roubada. Olhou para os corvos.

Três para um casamento. Quatro para um nascimento.Não disse nada. Não conseguiu encontrar as palavras, e, mesmo

que conseguisse, não estava interessada em partilhá-las com a so- gra. Contudo, a viúva encontrou palavras suficientes para as duas, aproximando-se, como se estivesse a falar sobre o tempo.

— Pode não gostar de mim, Seraphina, mas faria bem se me escutasse.

Sera não se mexeu. — Não somos assim tão diferentes, você e eu — disse a sogra.

— Nós as duas cometemos o erro de forçar um homem a casar -se. A diferença é que o meu filho sobreviveu. — Fez uma pausa, e Sera desejou que ela saísse do quarto, sentindo-se de repente exausta pela simples presença da viúva. — Se não tivesse sobrevivido, eu teria fugido.

Fugir era uma ideia magnífica. Conseguiria ela fugir? Da tristeza? Da dor? Conseguiria deixar tudo para trás?

— Não havia amor no nosso casamento. Assim como não há no seu.

Ela estava errada, claro. O casamento de Sera era todo baseado no amor. Mas então, deitada sozinha naquela cama ofuscante de tão branca, naquele quarto igualmente branco, naquela casa intimi-dadora, ela soube que o seu casamento nunca recuperaria o amor perdido.

Porque não haveria mais amor. Não para Malcolm. Não para a filha deles. Não para ela mesma. Ela estava sozinha naquele quarto e na vida. Se pelo menos pudesse fugir. Mas ele roubara -lhe a liber-dade do mesmo modo que lhe tinha roubado o coração, a felicidade e o futuro.

— Você ficou estéril.Sera não sentiu nada ao ouvir aquilo, algo sem significado no

momento. Não estava interessada em notícias do futuro ou de filhos imaginários, só lhe interessava a criança que tinha perdido. A criança que eles tinham perdido.

— Ele vai precisar de um herdeiro.Ele não queria nenhum herdeiro. Isso não tinha ficado claro?

Ou a mãe dele não sabia, ou não se importava.

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— Você não é capaz de lhe dar um. Outra mulher pode.Ela desviou o olhar.— Eu posso ajudá-la se quiser. Sera olhou para a sogra, para aqueles olhos azuis frios como a

alma da mulher. Ela não fingiu que não entendia. Sabia que o seu desaparecimento era tudo o que aquela mulher odiosa sempre qui-sera. A viúva odiou Sera desde o início, odiou as circunstâncias do nascimento da nora — o pai de Sera, um plebeu que comprou a sua entrada na aristocracia, e a mãe, disposta a fazer qualquer coisa para subir na sociedade, que se gabava para quem quisesse ouvir que sua filha mais velha tinha agarrado um duque.

É claro que Sera acreditava que o tinha agarrado. Acreditava que ele fosse dela. Desejava isso mais do que tudo. Mas aquela mulher — aquela velha fria e cruel — tinha garantido que isso nunca acon-teceria. Apesar da promessa de um filho. Por causa disso.

Até àquele momento, Sera tinha planeado ficar. Conquistar o perdão do marido. Desafiar a fúria da viúva. Mas isso tinha sido antes. Quando ela pensou que eles algum dia poderiam ser uma família. Quando ela ainda tinha sonhos de felicidade. Agora sabia que já não era possível.

Saias pesadas restolharam quando a sogra se aproximou.— Você pode fugir. Começar de novo. Deixar que ele faça o mesmo.Era loucura. Ainda assim ela não conseguiu evitar perguntar: — E o nosso casamento?Seraphina viu o canto do lábio da viúva erguer -se levemente, como

se sentisse a proximidade do triunfo.— O dinheiro compra tudo. Até uma anulação.Sera olhou para os corvos lá fora. Cinco para prata. Seis para ouro.A viúva continuou:— A ausência de filhos facilitará tudo.As palavras eram uma tortura fria e silenciosa. A ausência nunca

seria fácil.— Diga o seu preço — sussurrou a viúva. Sera ficou em silêncio, a olhar para a porta atrás da sogra, a dese-

jar que se abrisse. A desejar que o marido voltasse, com a mesma tristeza dolorosa que a consumia. Desesperado para lamentar a filha deles. O passado. O futuro. Disposto a perdoar -lhe. Disposto a pedir perdão.

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A porta de mogno continuou fechada. Ele não desejava nada disso, então porque desejaria ela? Porque não podia ela própria fechar uma porta? Porque não podia escolher um novo caminho?

Quanto custaria fazer isso? Quanto por um futuro? Quanto para fugir? Quanto por uma vida sozinha, sem graça, em comparação com a que lhe tinham prometido? Uma vida sozinha, mas dela.

Ela sussurrou o número exorbitante. Suficiente para partir. Mas não para esquecer.

Sete para um segredo que nunca será revelado.

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Capítulo 3

A DUQUESA DIFÍCIL EXIGE DIVÓRCIO!

19 de agosto de 1836Câmara dos Lordes, Parlamento

E le estava mais lindo do que nunca. Ela não sabia dizer por-que é que tinha imaginado o contrário — fazia três anos, não trinta —, mas tinha. Ou talvez não tivesse imaginado, mas

esperado. Alimentava um sonho secreto de que ele estaria menos perfeito. Menos atraente. Menos tudo.

Mas ele não estava nada menos. Ele estava ainda mais…O rosto mais definido, o olhar mais envolvente. Estava até mais

alto do que ela se lembrava. E mais bonito, mesmo quando cami-nhou em direção a ela, com o antigo traje parlamentar vestido e a estúpida peruca empoada, coisas que deveriam ter feito com que ele parecesse uma criança a brincar aos disfarces, mas que, na verdade, o fizeram parecer um homem com propósito.

Um dos seus propósitos, certamente, era tirá-la da Câmara dos Lordes.

Ele abriu caminho por entre os outros parlamentares vestidos de igual, como se abrisse um mar de veludo vermelho, encorajado pelos apupos dos aristocratas reunidos, cujo desdém Seraphina conhecia muito bem da vida que levava antes de desaparecer. Homens que podiam arruinar uma mulher num instante. Destruindo -lhe a famí-lia e o futuro. E tudo isso sem pensar duas vezes.

Ela odiava -os; a ele mais do que a todos os outros. Mas não por muito tempo.

Sera planeava deixar o ódio para trás, agora que tinha voltado, pronta para o esquecer. Imaginara aquele momento durante meses,

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desde antes do seu retorno à Grã-Bretanha. Todo o plano fora con-cebido para o enfurecer a ponto de concordar com a dissolução do casamento. Pois se havia algo que Haven detestava mais que tudo era que o fizessem passar por tolo. Não tinha sido essa a mal-dição deles desde o início?

Ele aproximou -se, a câmara enorme perdeu importância. Ela tinha sido assombrada pelos olhos dele, que não eram castanhos, nem ver- des, nem dourados, nem cinzentos, mas, de algum modo, tinham todas essas cores ao mesmo tempo. Fascinantes e cheios de segre-dos. O tipo de olhos que poderiam roubar a sanidade de uma mulher se ela não tivesse cuidado. Sera tinha cuidado, agora.

Ela era cuidadosa e inteligente. Resistiu ao impulso de se afastar, ao mesmo tempo receosa do que poderia acontecer se ele lhe tocasse, e determinada a nunca se amedrontar diante de Malcolm. A nunca mais fugir dele.

Sera não era a mesma mulher de quando tinha partido. Tinha voltado com uma promessa singular para si mesma: quando o dei- xasse, desta vez fá -lo -ia com orgulho. Com propósito. Com um futuro certo. Ela tinha planos. E aqueles homens não a deteriam.

E foi assim que os mais poderosos de Londres, reunidos para o último dia da sessão parlamentar, testemunharam o sorriso irre-sistível de Seraphina, Duquesa de Haven, quando esta encarou o duque com o mesmo nome pela primeira vez em dois anos e sete meses. Exatamente.

— Marido.Outra mulher talvez não percebesse o leve estreitamento dos

olhos, a dilatação quase imperceptível das narinas, o aperto discreto do maxilar definido. Mas Sera tinha passado a maior parte de um ano fascinada pelo modo como aquele homem altivo, imperturbá-vel, se revelava nos detalhes mínimos. Ele estava com raiva. Ótimo.

— Então lembra -se de mim. As palavras saíram baixas e agudas. É claro que ela se lembrava.

Não importava o quanto tentasse, Sera parecia incapaz de o esque-cer. E como tinha tentado.

Levantou o queixo, extremamente ciente da plateia, e disparou a flecha:

— Não tema, querido. Prevejo que não precisaremos de nos lem- brar um do outro por muito tempo.

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— Está a dar um espetáculo. — O senhor diz isso como se fosse uma coisa má — retorquiu

ela, alargando o sorriso. O duque arqueou uma sobrancelha, mais altivo do que nunca.— Você está a transformar-me em parte do espetáculo.Ela não fraquejou.— O senhor diz isso como se não merecesse.Sera não esperava que ele fosse tocar -lhe, ou estaria preparada

para o que aconteceu quando os dedos dele lhe envolveram o coto-velo, firmes, quentes e, de algum modo, inesperadamente delicados. Ela ter -se -ia preparado para o assalto de lembranças muito distantes.

Eu nunca senti nada assim. Ela resistiu à lembrança e retirou o braço da mão dele com uma força elegante que ele pôde sentir, mas que ninguém na assistência percebeu. O duque não teve escolha a não ser soltá-la. Quando ele baixou a voz e falou, as palavras mal saíram.

— Quem é você?— Não me reconhece? — Desta vez, foi a sobrancelha dela que

se ergueu.— Esta encarnação de si, não.Encarnação. Não era a palavra errada, pois ela tinha mesmo reen-

carnado. Era isso o que acontecia com aqueles que morriam e vol-tavam. A sensação tinha sido de morte, assim como aquela manhã, naquele lugar, com todo o calor e fedor detestável do ambiente, agravado pela reunião de masculinidade pomposa, por incrível que pudesse ser, parecia-se de novo com a vida.

— Antes eu não conseguia saborear a liberdade.Ele apertou os lábios. Antes de poder responder, um homem

gritou do meio da assembleia:— Ei, Haven! A rapariga não pode ficar aqui!Sera virou -se para o homem.— Conde, meu lorde, acredito que pretendia dirigir -se a mim

como duquesa.Os homens reunidos soltaram exclamações de indignação, e o

conde em questão — agora com orelhas escarlates — dirigiu-se a Haven:

— Controle a sua mulher. Sera voltou a atenção para o marido, mas não baixou a voz.

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— É impressionante que ele acredite que o senhor é capaz de o fazer.

Os olhos de Haven estreitaram -se e o coração de Sera começou a martelar-lhe no peito. Ela reconheceu o olhar. Uma fera desafiada.

Ele que tentasse. Ela também tinha dentes. — Para o meu gabinete. Já.— E se eu recusar? — Ela viu que ele percebeu o poder dela. Quan-

tas outras esposas aguentariam ficar ali, diante de Deus, do marido e da Câmara dos Lordes, e manter a sua posição sem medo das con- sequências?

Esse era o segredo, claro. Se uma pessoa não temesse a ruína, não poderia ser ameaçada com isso. Como Sera já tinha visto a ruína de todas as formas, encarando-a e sobrevivendo, não a temia, e, por-tanto, a ruína não lhe podia fazer mal. Sera desaparecera de Londres por quase três anos, e a reputação dela já estava despedaçada muito antes de ter entrado na carruagem que a levou da propriedade Haven, naquele distante dia de inverno. É notável o poder que se tem quan- do não se tem nada a perder. Ou, pelo menos, quando se pensa que não se tem nada a perder.

E assim ficou ela diante do grupo mais poderoso da Grã-Bretanha, frente a frente com o marido, que sempre tivera tanta influência sobre ela. Sobre o seu coração… e a sua mão, o seu corpo, a sua iden-tidade. Iguais, afinal. E ela esperou que ele desse o passo seguinte. O que não esperava era um sorriso irónico dele.

— Não pode recusar.— Porque não? — perguntou Sera, sentindo a insegurança a cres-

cer, mas jamais o demonstraria. — Porque, se quer o divórcio, vai precisar da minha ajuda. O coração dela acelerou. Ele dar -lhe -ia o divórcio? A liberdade?

Poderia ser assim tão simples? A excitação cresceu. E a sensação de triunfo surgiu. E algo mais, sobre o qual ela não quis refletir. Apenas acenou com o braço, usando um floreio exagerado.

— Por favor, Vossa Graça. Vá à frente. Eles saíram do salão principal da Câmara dos Lordes debaixo

de uma cacofonia de crítica e desaprovação. No corredor silencioso adiante, Haven virou -se para ela.

— Valeu a pena o constrangimento? — perguntou ele, num tom de voz suave. — A cena?

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— Julga -me mal se acredita que a opinião daqueles homens me envergonha — respondeu ela. — Já sofri com isso antes e hei -de sofrer de novo.

— E de novo e de novo se conseguir o que deseja.Ele falava do divórcio. De que ela nunca mais seria aceite na

sociedade. Ele não conseguia ver que ela não se importava com isso.— O senhor quis dizer quando eu conseguir.Ele parou diante de uma porta enorme, feita para impressionar,

e abriu -a, revelando o magnífico gabinete, do tipo reservado a duques que decidiam instalar -se na Câmara dos Lordes. A sala era grande e impressionante, toda em mogno, couro e ouro, com todas as super-fícies marcadas por privilégio e poder.

Ela entrou, incapaz de evitar roçar nele, detestando o modo como o toque quase inexistente provocou tanta agitação dentro dela. E isso foi antes de as lembranças surgirem.

Sera já tinha estado ali. Às escondidas, disfarçada e misteriosa, para o surpreender. Assim como o tinha surpreendido hoje.

Nesse outro dia, ela tinha vindo por amor… Ignorou o pensamento e deu meia-volta para o encarar, pouco à vontade quando a porta foi fechada, o estalido discreto parecendo -lhe um disparo de pistola. Ele arrancou a peruca da cabeça, atirando -a para uma cadeira próxima com um tal descuido que traía o seu exterior tranquilo. Começou a soltar os fechos do traje pesado, e Sera viu -se incapaz de desviar os olhos daquela mão grande e decidida, bronzeada e marcada por elegância e força. Com a tarefa completa, ele tirou a vestimenta de cima dos ombros e a ondulação escarlate despertou -a, atraindo-lhe o olhar para o dele, onde uma sobrancelha castanha se arqueou com um entendimento perturbador.

Com o traje pendurado no seu lugar, junto à porta, ele veio para o meio do gabinete.

— Por onde é que andou?Ela caminhou até à enorme janela com vista para leste, onde a

cúpula de St. Paul reluzia à distância. Cruzando os braços sobre o peito, demonstrando indiferença, ela respondeu:

— Isso importa?— Já que fugiu de mim, e metade da cidade de Londres acredita

que sou culpado de algum plano nefasto, sim, importa.— Achavam que eu estava morta?

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— Ninguém disse isso, mas imagino que sim. As suas irmãs não ajudam, fuzilando-me com o olhar sempre que os nossos caminhos se cruzam.

Sera inspirou fundo, odiando o modo como o peito se lhe aper-tou quando ele se referiu às suas quatro irmãs mais novas. Mais amor perdido.

— E a outra metade de Londres? O que pensa?— Provavelmente a mesma coisa, mas não me culpam por isso.— Acham que eu mereci. É claro. Ele não respondeu, mas ela entendeu o raciocínio. Ela mereceu

por ter preparado uma armadilha para o pobre duque, ótimo partido, para se casar com ela, sem ter a decência de lhe dar um herdeiro. Ignorando a pontada de injustiça que veio com o pensamento, ela disse:

— E aqui estou eu, vivíssima. Imagino que isso vá agitar todos os coscuvilheiros.

— Para onde é que foi? — A pergunta foi delicada, e, se não sou-besse a verdade, Sera teria pensado que a questão expressava algo além de frustração.

A atenção dela foi desviada para uma fileira de corvos empolei-rados no teto da ala oposta do edifício, os pássaros pretos a cintilar no calor de agosto. Ela demorou -se um instante, contando-os antes de responder. Sete.

— Para longe.— Essa é a melhor resposta que vou obter? Eu… — A réplica,

furiosa, ficou pela metade, mas foi a hesitação que chamou a aten-ção dela.

— Você? — Ela virou -se.Por um momento pareceu que Malcolm ia dizer algo mais. Mas

ele abanou a cabeça apenas.— Então você está de volta.— Estou sempre a causar problemas, não é? — Ele apoiou -se

na grande escrivaninha de carvalho, em mangas de camisa, colete e calças, cruzando as longas pernas musculosas nos tornozelos, um copo de cristal pendurado nos dedos como se ele não tivesse qual-quer preocupação. Ela ignorou o aperto no peito que aquela cena lhe causava e levantou uma sobrancelha. — Não oferece uma bebida à sua esposa?

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Ele inclinou a cabeça um pouco, a única evidência da sua sur-presa antes de se endireitar e ir até uma mesa próxima onde repou-sava uma garrafa e três copos de cristal. Sera observou-o a servir dois dedos do líquido âmbar. Malcolm movia -se do mesmo modo de sempre, confiante e cheio de elegância ao erguer e entregar -lhe o copo com o braço estendido.

Sera deu um gole e ficaram em silêncio por um tempo que pare-ceu uma eternidade, até ela não aguentar mais.

— Devia estar feliz com o meu regresso.— Devia?Ela daria qualquer coisa para saber o que é que ele estava a pensar. — O divórcio vai -lhe dar tudo o que sempre quis.Ele bebeu.— Como é que descobriu que eu desejava ser manchete de todos

os jornais de Londres? — Vossa Graça casou -se com uma irmã Talbot. As irmãs Talbot eram cinco raparigas famosas nos jornais de

mexericos de Londres, que lhes chamavam Irmãs Perigosas, filhas do Conde de Wight, antigo mineiro de carvão com talento para encontrar valiosas jazidas do mineral — talento suficiente para que pudesse comprar um título. Com ou sem condado, o resto da aris-tocracia não tinha estômago para aguentar a família, odiando-a pela sua incrível capacidade de ascensão social, rotulando-a por ambicio-nar a fama apenas pelo gosto de ser famosa. A ironia, claro, era que o pai das irmãs tinha trabalhado para conquistar o seu dinheiro, e não tinha nascido num berço de ouro. Como os valores do mundo estavam invertidos.

— É o meu destino, então, por me ter casado com uma das Irmãs Perigosas.

Sera conteve a vontade de se encolher ao ouvir a alcunha — que ela tinha conquistado para as irmãs todas.

Você armou‑me uma cilada. Armei mesmo.Vá embora.— Não uma Irmã qualquer — disse ela, recusando-se a ceder.

— Sou a mais perigosa.Ele observou -a por um momento, como se pudesse ler -lhe os

pensamentos. Sera resistiu ao impulso de se mexer.

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— Se não me vai dizer onde esteve, talvez esteja disposta a contar - -me porque decidiu voltar?

Ela bebeu, considerando a mentira que teria de contar.— Eu não fui clara?— Acha que obter um divórcio é fácil?— Eu sei que não é, mas Vossa Graça preferia… isto?Ele não desviou o olhar, aquele olhar tão perturbador que parecia

ver tudo, ao mesmo tempo que não revelava nada. — Não seríamos os primeiros a sofrer num casamento sem

amor.Eles nem sempre viveram sem amor.— Já sofri o suficiente — replicou ela, abrindo as mãos. — E, ao

contrário do resto da aristocracia, não tenho qualquer motivo para não terminar a nossa infeliz união. Não tenho nada a perder.

Ele encarou -a.— Toda a gente tem alguma coisa a perder.Ela susteve o olhar dele.— Esqueceu -se, marido. Eu já perdi tudo.— Não me esqueci. — Ele olhou para o lado e bebeu. Sera observou os músculos da mão dele ficarem tensos e aper-

tarem o copo, e uma parte secreta e escondida dela perguntou -se porquê.

Aquela parte dela podia continuar escondida. Não se importava com o que ele lhe lembrava. Sera importava -se apenas com o facto de que ele era um homem poderoso, que dispunha de recursos for-midáveis, e que a dissolução do casamento deles era essencial para a vida que ela tinha escolhido para si. A vida que ela tinha construído a partir das cinzas deixadas para trás.

— Deixe-me ser bem clara, Haven — disse ela, forçando um tom formal. — Esta é a única oportunidade de nos livrarmos um do outro. Para nos livrarmos do passado. — Ela fez uma pausa. — Ou será que tem outro plano para exorcizar os demónios do nosso casa- mento?

Ele expirou e levantou -se, dirigindo-se à escrivaninha, como se estivesse farto da conversa. Ela observou -o, pensando naquela ação. Imaginando o que é que ele estaria a pensar.

— Tem? — insistiu ela.— Na verdade, tenho.

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A surpresa invadiu -a. Havia apenas três modos de se dissolver um casamento. O que ela propunha era um. Os outros…

— Anulação não é possível — disse ela, detestando o fio de tris-teza trazido pelas palavras. Pela ideia de que ele poderia ter pensado nisso. Mas houve uma… Houve uma filha.

Ele encarou -a.— Anulação, não.— Então você pretendia declarar -me morta. — É claro que essa

ideia tinha ocorrido a Seraphina. À noite, quando pensava na pos-sibilidade de ele querer um herdeiro. Quando pensava que o duque pudesse mudar de ideias e querer ter outra mulher, outra família.

Só havia um modo de conseguir um herdeiro. Com a exceção do facto de que ela não estava morta.

— Mais quatro anos? — perguntou ela. A lei exigia que passas-sem sete anos antes de se poder declarar uma pessoa como morta. Ele olhou para o lado. — Ah, mas Vossa Graça tem dinheiro e poder para contornar pequenos detalhes, como a passagem do tempo, não tem, duque?

Ele semicerrou os olhos. — Você diz isso como se não planeasse usar os mesmos recursos

para convencer o Parlamento a dar -nos o divórcio, algo tão exorbi-tantemente dispendioso que houve quantos, 250 divórcios autoriza-dos? Na história?

— Trezentos e catorze — respondeu Sera. — E, pelo menos, na conclusão do meu plano nós estamos os dois vivos. Eu ia morrer em breve? Tenho sorte por ter chegado antes da pausa de verão e não depois? Quando o Parlamento voltaria do idílio de verão descansado e pronto para desaparecer com uma duquesa, abrindo caminho a outra?

— Já não importa, pois não? — disse ele, com a voz calma o sufi- ciente para a enfurecer.

Não deveria importar. Ela tinha um objetivo. A Cotovia Canora, a sua taberna. E com ela dinheiro, liberdade e futuro. Nada disso seria dela até conseguir cortar as rédeas.

— Então vamos lá, Sera. Qual é a razão para a dissolução da nossa outrora lendária união? Há motivos limitados para um divór-cio. O que vai ser? Vai dizer aos meus colegas que eu sou intolera-velmente cruel? Que tal declarar a toda a cidade de Londres que sou

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um lunático? Quem sabe talvez tenha sido forçada a casar comigo? Não — troçou ele —, toda a gente sabe que você veio de muito livre vontade. Quase tropeçou ao entrar na igreja, de tão ansiosa para se amarrar a mim.

— Que tola que eu era — retrucou ela. — Isso foi antes de eu saber a verdade.

— E que verdade é essa? — perguntou ele, semicerrando os olhos. A verdade é que você nunca me quis. Que sempre se importou mais

com o seu título do que com o seu futuro. Que nós nunca fomos mais do que um momento fugaz, passageiro. Que você não se importou quando a nossa família se tornou uma impossibilidade.

— Não importa — respondeu ela.— Eu nunca menti — afirmou ele. Era um eco de anos atrás. Você mentiu. Ela ainda conseguia ouvir

as palavras, como se tivessem sido pronunciadas ontem, não três anos antes, quando ele se recusou a escutar. Quando se recusou a acreditar. Porque ela não tinha mentido. Não quando era impor-tante. Sera levantou o queixo, desafiadora e na defensiva.

— Agora sim, marido, esqueceu -se de alguma coisa.Ele pousou o copo sobre a escrivaninha com um baque omino-

so, pontuando o seu movimento ao aproximar -se dela, o músculo a tremer na face era o único indício da irritação dele.

Sera tentou controlar a respiração e acalmar o coração. Ela pre-tendia mesmo enfurecê-lo. Queria levá-lo ao limite. Fazê-lo desejar que ela desaparecesse, para lhe dar o que queria. Para a libertar. Ela tinha planeado isso. Irritá-lo. Fazê-lo passar o verão com o gosto mais amargo na boca. Ela só não esperava ver -se aprisionada pela lembrança dele.

— Eu não me esqueço, Seraphina. Não me esqueço de nenhum momento. E você também não. — Ele aproximou -se e ela não con-seguiu evitar dar um passo atrás, em direção à janela com vista para Londres — a cidade que se curvava para ele como ela já se tinha curvado. Sera inspirou fundo, recusando-se a deixar que ele a intimidasse. E ele não a intimidou. Fez algo muito pior. Malcolm estendeu-lhe a mão, os dedos tocaram -lhe o pescoço ao de leve, um toque quase impercetível que ela devia ter sido capaz de ignorar.

— Acha que eu não me lembro de si suficientemente bem para conseguir ver? Acha que não vi como as lembranças a atacaram quando

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passou pela porta e entrou nesta sala? Acha que não tive as mesmas lembranças da última vez que esteve aqui, nesta mesma sala?

Ela engoliu em seco. Não gostou do modo como ele se aproxi-mou dela.

— Não me lembro de ter estado aqui antes — disse ela.— Pode mentir a toda a gente, Sera — disse ele, os dedos pro-

vocando os ombros dela. Ela não recuaria. Não deixaria que ele ven‑cesse. — Pode até mentir -me a mim. Sobre o seu passado e os seus planos para o futuro. Sobre onde esteve e o que planeia fazer. Mas nunca, jamais, pense que eu não conheço a verdade sobre as suas lembranças.

O movimento dele inverteu -se, voltando ao pescoço dela, dessa vez ganhando tração, os dedos quentes e decididos curvando -se, o polegar forte e familiar acariciando -lhe o maxilar, inclinando o rosto de Sera para ele. Marcando-a com o passado. Com as palavras dele, suaves como seda.

— Nunca, jamais, imagine que eu não sei que me observou a tirar aquela veste enquanto pensava, o tempo todo, na espessura dela. Na maciez dela na sua pele. No modo como se deitou nu sobre ela neste mesmo chão. No modo como me deitei sobre ela consigo.

Malcolm estava tão perto, perto o suficiente para ela sentir o cheiro dele — couro e terra, como se tivesse vindo do campo em vez de das Casas do Parlamento —, inebriante na sua proximidade, mesmo com aquelas palavras ferinas. Mesmo com Sera a dizer a si mesma que não se importava.

— Eu lembro -me, Sera. Lembro -me do seu sabor… como luz do Sol e paz. Lembro -me do seu toque… calor e seda. Lembro -me do modo como arfava, roubando -me um suspiro para si. Roubando-me. O modo como se ofereceu, como um prémio. Fazendo com que eu acreditasse em si. Em nós. Antes de eu cair e você triunfar.

A insinuação de que ela os tinha arruinado e o que eles pode-riam ter tido não deveria surpreender Sera, mas ainda assim sur-preendeu, fazendo-a procurar as palavras e desferir o seu próprio golpe.

— Nunca foi um triunfo. Foi o pior erro da minha vida. Ela atingiu o alvo. Ele soltou -a. Graças aos céus.— Você recebeu o título, não foi? E as suas irmãs conseguiram

o impulso de que precisavam para escalar o muro da aristocracia.

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A sua mãe pôde anunciar o triunfo dela ao mundo: a filha mais velha tinha caçado um duque.

Só porque eu nunca quis nada como o quis a si. Ela sacudiu a cabeça, odiando-o por estar tão perto. Odiando-se

por o desejar ainda que não quisesse nada com ele.— Já não quero isso.Ele aproximou -se, os olhos fixos nela, forçando-a a inclinar a ca-

beça para trás para suster o olhar dele. — Devia ter pensado nisso antes de alcançar o seu objetivo. —

Malcolm estava mais perto ainda. Sera sentiu o calor suave da res-piração dele na sua pele. Nos seus lábios. — Não acha que este local me arruinou? Este local que é para homens com um propósito? Para fazer história? Para estabelecer a ordem? Acha que este lugar não me lembra constantemente de si? Do futuro que poderíamos ter tido?

Era uma mentira, claro. Ele não pensava no futuro deles. Se pen- sava nela de algum modo, era com raiva e nada mais. Mesmo naquele momento, ele brincava com ela, tentando emocioná -la. Ela tinha sido sempre um brinquedo para ele, que nunca a considerara uma igual. Sera sacudiu a cabeça, recusando-se a ser envolvida por ele. Recusando-se a afastar -se do seu objetivo.

— Chega — disse ela. — É um passado distante.Ele riu-se sem vontade ao ouvir o comentário.— O passado é um prólogo, meu anjo. Eu penso nisso todos os dias.Os lábios de Sera entreabriram -se numa exclamação silenciosa.

Ele estava perto o suficiente para a beijar, e de repente ela também se conseguiu lembrar. Do toque dele. Do sabor. Do modo como ele a fazia pulsar de desejo.

Só que ela já não era aquela rapariga tola, estúpida. Sera colocou as mãos espalmadas sobre o peito dele, sobre aquelas linhas fortes e definidas sob a camisa, que ficaram tensas com o movimento, que se arrepiaram quando ela arrastou as mãos até aos ombros dele, provocando -lhe a pele quente do pescoço com os dedos, tentando-o.

Ele inclinou -se um pouco, um movimento quase impercetível. Mas foi percebido. Sera sentiu a vitória. E o seu sussurro ecoou na sala.

— A sua memória está fraca se pensa que eu criei toda a devas-tação sozinha, marido. Havia dois de nós sobre aquele traje. Dois de

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nós em Highley no dia em que eu o agarrei. Dois de nós em Londres no dia em que lhe implorei que me libertasse… o dia em que você jurou vingar -se dos meus pecados negando-me a única coisa que eu queria. — Ela sentiu orgulho da rigidez das suas palavras. Do modo como conseguiu pronunciá-las sem deixar a sua voz fraquejar. Sem evocar a lembrança da filha que ela tinha perdido, da esperança que perdeu no mesmo instante.

Orgulhosa o bastante para manter o seu objetivo e entregar a sua mensagem.

— Mas talvez não se lembre tão bem dos detalhes como pensa — continuou ela. — Claro que deve ser difícil para si lembrar -se de todas as vezes que esteve comigo, já que foram tantas as mulheres desde então.

Ela deliciou -se com a própria resposta, o modo como ele ergueu a cabeça de repente, os olhos — aqueles olhos lindos e misteriosos — à procura dos dela. Ele observou -a, a raiva evidente, e Sera espe-rou pela próxima jogada dele. Ansiava por ela, ainda que se odiasse por agir assim.

Tinha sido sempre assim. Intensos e de igual para igual. Provo- cação além de qualquer medida, mesmo quando doía.

— E então chegamos ao ponto. Adultério. — Ele massajou a nuca e desviou o olhar, soltando uma risada suave. — Infelizmente, estamos na Londres de 1836, e, embora você possa achar -se uma verdadeira Boadicea, a rainha dos celtas, a lei não a vê dessa forma. As minhas ações fora do nosso quarto não constituem base para um divórcio. Tem de estudar mais.

Ela limpou uma nódoa invisível da própria manga, fingindo tédio.

— Não tema, duque. Existe a questão da impotência.Malcolm apertou os lábios numa linha fina enquanto Sera pas-

sava por ele em direção à porta, sentindo o coração martelar devido à proximidade do marido, às lembranças, ao pânico e a algo mais que ela não quis identificar.

Ela soltou o fôlego que tinha sustido num suspiro longo quando alcançou a maçaneta. Virou -se para o encontrar a olhar fixamente pela janela, para os telhados de Londres, o sol dourado e líquido a escorrer ao redor dele como um halo, marcando -lhe os ombros lar-gos, a coluna reta, os braços fortes e as ancas estreitas. Ela odiou -se

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por reparar nisso. Por se lembrar das sensações. Por pensar no calor dele.

— Malcolm — disse ela, enquanto rodava a maçaneta da porta. Ele ficou tenso ao ouvir o seu primeiro nome, mas não olhou para ela, nem mesmo quando Seraphina disse, alto e bom som: — Sinto que lhe devo lembrar que, embora as infidelidades de um marido não sejam motivo para divórcio, as da esposa são totalmente diferentes.

Com este último ataque, a Duquesa de Haven saiu das Casas do Parlamento, deixando um escândalo atrás de si.

Um escândalo e um marido tão furioso que Sera imaginou que o divórcio seria rápido e sem qualquer hesitação.

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