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VERLAINE FREITAS Para uma dialética da alteridade A constituição mimética do sujeito, da razão e do tempo em Th. Adorno Tese apresentada ao curso de Doutorado da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito à obtenção do título de Doutor em Filosofia. Linha de pesquisa: Estética e Filosofia da arte. Orientador: Prof. Dr. Rodrigo A. P. Duarte. Belo Horizonte Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG 2001 1 1 A data se refere à defesa da tese. O presente texto (2006) é resultado de uma revisão de algumas formulações do original. Cf. o Prefácio logo à frente.

Para uma dialética da alteridade

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VERLAINE FREITAS

Para uma dialética da alteridade

A constituição mimética do sujeito, da razão e do tempo

em Th. Adorno

Tese apresentada ao curso de Doutorado da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito à obtenção do título de Doutor em Filosofia. Linha de pesquisa: Estética e Filosofia da arte. Orientador: Prof. Dr. Rodrigo A. P. Duarte.

Belo Horizonte

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG

20011 1 A data se refere à defesa da tese. O presente texto (2006) é resultado de uma revisão de algumas formulações do original. Cf. o Prefácio logo à frente.

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Ficha catalográfica

Freitas, Verlaine Para uma dialética da alteridade. A constituição mimética do sujeito, da razão e do tempo em Theodor Adorno. - Belo Horizonte: FAFICH / UFMG, 2001. Edição revista em 2006 206 p.

Tese de Doutorado UFMG, FAFICH Palavras-chave: alteridade, mímesis, conhecimento, Theodor Adorno, abstração, racionalidade, ideologia, sublime, tempo, estética.

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F866p

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Agradecimentos

Gostaria de agradecer aqui: ao CNPq, pela bolsa concedida para financiamento desse trabalho, sem a qual este não teria sido possível; às funcionárias do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFMG, Norma e Andréia, pela assistência em relação aos trâmites administrativos junto à Universidade; à minha mãe, Conceição, pelo apoio constante durante todos esses anos; e a Rodrigo Duarte, pela orientação criteriosa para a realização da tese.

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Índice

NOTA SOBRE AS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS PRINCIPAIS...........................................................6 Introdução......................................................................................................................8 Capítulo I...................................................................................................................... 19

MÍMESIS COMO FORMA DE CONHECIMENTO ..................................................................................... 19 1. As dificuldades do conceito de mímesis..................................................................................... 19 2. Imagem: entre sensação e conceito .............................................................................................. 23 3. Abstração como conceito antropológico ................................................................................... 24

a) O conceito “abstração”............................................................................................................. 24 b) A genealogia do humano na abstração................................................................................. 26

4. Assimilação imagética do real: mimetismo e mímesis............................................................. 27 a) Alteridade, medo e similitude: o mimetismo....................................................................... 27 b) Da semelhança à consciência da diferença: mímesis ........................................................ 30

5. As formas primevas de conhecimento ........................................................................................ 39 a) Preanimismo ................................................................................................................................ 40 b) Magia ............................................................................................................................................. 42 c) Mito ................................................................................................................................................ 49 d) Abstração crescente ................................................................................................................... 54

Capítulo II....................................................................................................................56 ABSTRAÇÃO VERSUS MÍMESIS: A TRAJETÓRIA DO ESCLARECIMENTO ........................................ 56

1. Onde começa o esclarecimento?................................................................................................... 56 a) Quatro conceitos de esclarecimento...................................................................................... 56 b) Esclarecimento qua dominação.............................................................................................. 58 c) Mito grego como incício do esclarecimento ....................................................................... 63

2. Abstração, subjetividade e poder.................................................................................................. 65 a) Origem do sujeito nas relações de poder............................................................................. 65 b) Linguagem e coletividade; a metafísica como expressão de poder............................... 67 c) Negação abstrata cognitiva da natureza: o cogito cartesiano.......................................... 68

3. Positividade da ciência como Leitmotiv do esclarecimento .................................................. 74 a) O mundo como tautologia do pensamento ........................................................................ 74 b) Positivismo metafísico .............................................................................................................. 77 c) A epistemologia naturalizada de Quine................................................................................ 79 d) Reificação do pensamento: a razão instrumental .............................................................. 81

4. Integração funcional do indivíduo na sociedade...................................................................... 83 5. Negação abstrata prática da natureza .......................................................................................... 86

a) Obstinação identitária................................................................................................................ 86 b) Moral como negação abstrata da natureza: a ética kantiana ........................................... 99

6. Regressão mimética ........................................................................................................................101 Capítulo III................................................................................................................. 104

ALÉM DA IMAGEM E DA RAZÃO............................................................................................................104 1. Conceito versus imagem..................................................................................................................104

a) A necessidade da mediação imagética.................................................................................104 b) Judaísmo: negação determinada?.........................................................................................105 c) A recusa logocêntrica da mímesis; a imagem estética.....................................................110 d) Imagem, símbolo e signo .......................................................................................................114

2. Ideologia: opacidade entre o idêntico e o diferente...............................................................116 a) Ideologia como problema......................................................................................................116 b) O conceito adorniano de ideologia.....................................................................................118 c) O pensamento ideológico: tabu reflexivo..........................................................................120

3. Negação determinada da imagem: a dialética particular-universal.....................................128 a) Eikón, conceptum e sema......................................................................................................128 b) Nome, idéia e reconciliação...................................................................................................133

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4. Negação determinada da identidade: a dimensão intra-temporal do pensamento........143 Capítulo IV................................................................................................................. 147

A EXPERIÊNCIA MIMÉTICA DO TEMPO...............................................................................................147 1. A genealogia da percepção temporal.........................................................................................147

a) O devir, o tempo e a história.................................................................................................148 b) A profundidade imagética do tempo: o mito ...................................................................150 c) A tridimensionalidade temporal através da abstração....................................................153 d) A distensão interna do tempo: Santo Agostinho .............................................................156 e) A apropriação burguesa do tempo: Kant e Hegel...........................................................160

2. Transcendência e alteridade: o sublime em questão..............................................................163 a) A pertinência do conceito de sublime.................................................................................163 b) A introversão da transcendência: o sublime kantiano ....................................................165 c) Da transcendência à alteridade..............................................................................................171

3. O sublime na Teoria estética............................................................................................................173 a) Sublime como justiça ao particular ......................................................................................175 b) A experiência da alteridade: abalo, comoção....................................................................179 c) A dialética espírito-natureza...................................................................................................181 d) A transcendência secularizada...............................................................................................183 e) A historicidade como forma..................................................................................................186 f) A arte moderna como historicamente-sublime.................................................................190

Conclusão................................................................................................................... 193 Bibliografia................................................................................................................. 199 Resumo....................................................................................................................... 206 Abstract ...................................................................................................................... 206

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Prefácio à edição eletrônica

Assim como dissemos no prefácio à edição eletrônica da dissertação de mestrado, disponível em nosso site (http://www.fafich.ufmg.br/~verlaine), nossa trajetória intelectual sofreu uma mudança substantiva a partir do contato com a teoria psicanalítica. Isso se deu logo após a conclusão da tese de doutorado. A partir de então, vários — mas não todos — conceitos expostos nessa tese, principalmente no primeiro capítulo, seriam totalmente reformulados. Isso se dá em grande parte porque, apesar de ainda tomarmos alguns como válidos, a perspectiva geral que lhes dá fundamento nos parece hoje insuficiente, diante de nossa opção cada vez mais clara de compreender o pensamento filosófico através da mediação da psicanálise. O presente texto possui, assim, um valor mais histórico do que conceitual para o autor.

De modo semelhante à dissertação, para darmos um caráter atual a essa tese, precisaríamos realizar tantas alterações que isso significaria um novo texto, o que rejeitamos, com a idéia da publicarmos ulteriormente um livro que aborde as questões aqui tratadas a partir da ótica que atualmente subscrevemos. Ao revisar o material para a presente edição, restringimo-nos a questões estilísticas e a pontos conceituais críticos.

Verlaine Freitas Belo Horizonte, setembro de 2006.

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Nota sobre as referências bibliográficas principais

O texto mais referido ao longo da tese é a Dialética do esclarecimento — Dialektik der Aufklärung — escrita por Theodor W. Adorno e por Max Horkheimer. Utilizou-se a edição alemã especificada na lista bibliográfica, auxiliados pela brilha nte tradução de Guido de Almeida. Nas citações que se fez a essa obra, aproveitou-se, via de regra, essa tradução. Entretanto, consideramos a tradução de algumas passagens um tanto inadequada. Nesses momentos, ou foi feita uma tradução própria, quando a anterior se mostra muito imprecisa, ou uma modificação, e, salvo em alguns casos, foi feito um comentário em nota de rodapé sobre o que justifica essas substituições ou mudanças. Nas referências a esse livro, foi indicado inicialmente o número da página do original alemão, seguido do número da página em que está ou estaria a tradução feita por Guido de Almeida. Exemplo: (DA 31/37).

A Dialética negativa — Negative Dialektik — de Adorno foi citada a partir de tradução própria do texto original da editora Suhrkamp ou, em poucas passagens, a partir de uma versão preliminar inédita da tradução dessa obra feita por Newton Ramos-de-Oliveira. Exemplo da referência usada: (ND 345).

A Teoria estética — Ästhetische Theorie — de Adorno foi citada, ora a partir de tradução própria, ora aproveitando a realizada por Artur Morão. O processo de aproveitamento dessa tradução foi o mesmo para a de Guido de Almeida, e a forma de referência no nosso texto também é análoga: (ÄT 171/152).

A Minima Moralia de Adorno foi citada diretamente a partir da tradução de Luiz Eduardo Bicca, revisada por Guido de Almeida. Para facilitar o acesso ao texto original por aqueles leitores que possam fazê-lo, indicamos o número do aforismo seguido pelo da página na tradução; exemplo: (MM §38, p.53).

Outro texto, mas não de Adorno, que foi citado com certa freqüência, é a Crítica da faculdade do juízo — Kritik der Urteilskraft — de Immanuel Kant. Ela foi citada diretamente a partir do texto original alemão, sendo as traduções feitas por nós. A versão utilizada foi a da segunda edição de 1793, com as modificações da Edição da Academia (Akademie Ausgabe). Os números indicados correspondem a essa edição original; exemplo: (KdU B 61).

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Introdução

Esse texto pretende fornecer uma contribuição para uma teoria dialética da alteridade a partir do pensamento de Theodor Adorno. Inicialmente, é preciso salientar que se trata de uma mera contribuição, posto que se deixaram de lado diversos elementos de ordem psicanalítica ou filosófica que poderiam ser relevantes para o tema. Depois, afirmamos nossa tomada de posição a favor do pensamento dialético, o que significa, entre outras coisas, somente considerar os fenômenos e conceitos na inter-relação que possuem em termos sociais, considerando o peso relativo de vários deles no processo de constituição da identidade de cada um. Além disso, consideramos, seguindo Adorno, que toda e qualquer realidade somente pode ser entendida de modo consistente a partir de seu desenvolvimento histórico, lendo, em cada uma, a história que se armazenou nela. O objeto que é alvo dessa investigação é a alteridade, a relação entre a esfera da subjetividade, do indivíduo e do espírito, em contraposição à da objetividade, do coletivo e da natureza. Por último, frisamos que todas as nossas reflexões partem de argumentos de Theodor Adorno, seja como textos a serem comentados, seja como pontos de partida para uma elaboração própria, seja como idéias a que nos contrapomos.

Apesar de não ser anunciado no título, essa tese pretende ser um texto de estética. Entretanto, o leitor não encontrará referências explícitas a questões sobre o belo, sobre a arte ou sobre o sublime nos dois primeiros capítulos. A terceira parte contém um item sobre a beleza, e o fechamento de nossa tese culmina nas noções de sublime, tanto em geral, como na arte. A vinculação de nosso texto como um todo à área de estética somente pode ser assegurado com clareza, se nos colocamos a favor de um conceito de estética que não se limite apenas à reflexão sobre o belo ou sobre o feio, sobre o sublime e sobre a arte. Segundo pensamos, a limitação do conceito de estética a essas áreas poderia ser vista como um processo específico de dignificação filosófica da sensibilidade e da corporeidade, algo como que correspondente ao que se estabelece na teoria do conhecimento na medida em que, nesta, esses âmbitos são apropriados como instrumento ou material para a constituição do saber. Nitidamente colocada como tese fundamental do primeiro capítulo, que funciona como a escala a partir da qual as notas dos próximos capítulos serão compreendidas, nossa posição procura resgatar a dimensão concreta do conhecimento a partir do exercício imagético-sensível-desiderativo na relação com o mundo. Nesse sentido, procuramos desfazer o caráter abstrato da idéia de conhecimento tradicional, investigando a origem concreta, prática, da consciência, em que a imagem/sensação não é mero material ou instrumento, mas medium, não apenas como catalisador, mas, sim, como gênese pro-ducente do “campo” da consciência, pensada por nós como hipóstase abstrata do exercicium concreto da imagem que duplica o mundo. A bem dizer, todo nosso primeiro capítulo poderia ser lido como uma defesa enfática da idéia de que a estética deveria ser vista enquanto um pensamento votado à concretude da relação imagético-sensível-desiderativa como origem constituinte do campo da consciência, em última instância, do sujeito e do conhecimento tout court.

Procurando ser congruentes com essa idéia, vemos nosso texto ser construído em quatro partes (que são os quatro capítulos): na primeira, investigamos a proto-história da constituição da consciência a partir da relação imagética com o mundo através do conceito de mímesis; no segundo, seguimos o trajeto de recalque solipsista desse modo de comportamento por parte do saber racionalmente instituído; no terceiro, investigamos o que a razão pode assimilar desse modo de relacionar-se com o real a fim de ultrapassar sua inverdade; na última parte, vemos como a noção de sublime artístico é aquela que melhor explicita, no âmbito da experiência sensível, a retomada do teor de

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verdade que a razão pode alcançar a partir da assunção, em si mesma, do outro como determinante de sua identidade em termos de sua percepção do tempo histórico. Assim, a construção da dialética histórica da alteridade que perseguimos é feita, esquematicamente, em quatro passos que relacionam os seguintes conceitos: imagem/mímesis/consciência, abstração/racionalidade/sujeito, imagem/filosofia/verdade e tempo/sublime/arte/história.

De todo esses conceitos, o de mímesis é o que configura, em termos mais gerais, a âncora analítica para elucidar a noção de alteridade em sua demárche dialética. Ele constitui o fio condutor de todos os capítulos, seja como tema principal, seja como aquilo que foi recalcado, seja como o que aponta para a superação dos impasses a que se chega por seu recalque. É devido a essa presença que se explica o subtítulo de nossa tese.

Dada a importância desse conceito, o primeiro capítulo incumbe-se de mostrar como se pode conceber a origem da consciência e do conhecimento em geral a partir do comportamento mimético. Como nossa abordagem tem um viés nitidamente histórico, procuramos delinear, nessa primeira parte, a genealogia da cultura a partir de suas primeiras manifestações mais rudimentares, caminhando em um crescendo de sofisticação e de complexidade até alcançarmos as formas mais elaboradas de saber. As noções auxiliares mais importantes para isso são as de imagem e de abstração, que, contrapondo-se em diversos graus e maneiras, permitem-nos perceber a dinâmica inicialmente não-resolvida de aproximação e de distanciamento entre o eu e o outro. O que caracterizará de modo pregnante nossas considerações nesse primeiro capítulo será precisamente a irresolubilidade entre identidade e diferença. Esse capítulo está dividido em três partes: a primeira é uma abordagem preliminar, em que expomos as dificuldades que a tradição interpretativa dos textos de Adorno coloca quanto à valoração do uso que o autor faz desse conceito, partindo, então, para o delineamento sumário dos conceitos de imagem e de abstração que servem de pano de fundo, não apenas para esse capítulo, mas, também, para os demais. A segunda parte trata propriamente dos conceitos de mimetismo e de mímesis, sem especificar alguma forma culturalmente estabelecida em que eles sejam pensados. A terceira parte procura mostrar como a mímesis já pode ser vista como sedimento cognitivo na relação do homem com o mundo, através do preanimismo, da magia e do mito. Procuramos, nesse capítulo como um todo, evitar as indefinições conceituais que invariavelmente podem ser vistas nos comentários sobre o conceito de mímesis em Adorno. Podemos considerar como nossa principal tarefa precisamente estabelecer, com a maior clareza possível, a distinção entre todos os termos que citamos: mimetismo, mímesis, preanimismo, magia e mito. Precisamos dessa clareza de distinção para prosseguir com o argumento do próximo capítulo, que trata da negação da mímesis.

Esse novo tema é marcado pela consideração da racionalidade ocidental, considerando como seu elemento mais próprio a construção do ideal de autonomia da unidade da consciência socialmente fundada através da razão. Se no primeiro capítulo procuramos perceber o duplo movimento de aproximação e de distanciamento entre sujeito e objeto, aqui procuramos ver como se deu o processo de construção do sujeito a partir do recalque do comportamento mimético, da ambigüidade fundamental deste último em termos da presença, no sujeito, daquilo que é próprio de seu outro. Nesse capítulo, o peso da coletividade vai se mostrar precisamente no tocante ao processo de unificação do espírito e da natureza a partir de relações de poder estruturadas segundo a noção de progresso. A unidade do ego é pensada a partir da unidade coletiva, e ambas estão calcadas na premência de domínio do outro, representado pelos ímpetos pulsionais internos, pela natureza externa ou pelo semelhante. Se a noção de mímesis é a base para o primeiro capítulo, este agora apóia-se na de abstração, que inclui precisamente a idéia de

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separação, e que é a base para a primeira parte desse capítulo, que se inicia com a pesquisa da pertinência desse conceito para entender-se a especificidade da razão ocidental, passando para a análise de seu vínculo com o exercício do poder. Em seguida investigamos aquilo que é o fio condutor para se entender como um todo o processo de racionalização que chamamos de esclarecimento, que é a positividade da ciência moderna matematizada, a qual culmina em sua interpretação pelo positivismo lógico. A parte final faz a análise do surgimento do sujeito moderno a partir da Odisséia de Homero, tal como o interpretam Adorno e Horkheimer. O fechamento do capítulo dá-se com a consideração sobre o retorno violento da alteridade oprimida no contexto de coletivização radical do mundo. Em todos esses momentos, a abstração acentua-se até o paroxismo da total injunção do espírito e de seu outro, precisamente devido ao fato de que, de tão isolado daquilo que lhe é diferente, o espírito não tem mais como se perceber como outro do que lhe é diferente. Não é por acaso que Hegel deu o nome de negação abstrata àquela que se estabelece como um processo de violência contra o que é diferente, heterogêneo. Essa idéia, tal como Adorno a interpreta, é de suma importância em toda a argumentação dessa segunda parte. Ela estabelece a contraparte do que seja uma relação verdadeira com a alteridade, que se baseia, tanto para Hegel, quanto para Adorno, na idéia de negação determinada, que é o tema inicial do terceiro capítulo.

Esse último tem como tema precisamente a possibilidade de ultrapassagem das aporias que uma racionalidade solipsista coloca para se compreender de outro modo a relação para com a alteridade. A idéia base que seguiremos é a de que o próprio pensamento é que deve se incumbir de retirar de si seu teor de falsidade, através de um processo radicalmente reflexivo. Isso inclui a vinculação de duas idéias fundamentais: a assunção da alteridade no próprio pensamento e a percepção da historicidade imanente a ele. Se a mímesis aponta para uma relação de ambigüidade não-resolvida entre sujeito e objeto, que se colocam em uma relação de interdependência recíproca, a verdade sobre a relação entre espírito e natureza deve fazer justiça a esse relacionamento, o que significa compreender a dimensão mimética da própria razão. Para cumprir essa tarefa expositiva, o capítulo tem três partes: a relação entre imagem e conceito, a noção de ideologia e a verdade do pensamento filosófico. A primeira fala da interdição logocêntrica em relação à positividade da imagem, ao seu poder de sedução, de desvio. A segunda investiga o conceito de ideologia, no qual falamos sobre a opacidade constitutiva, para o pensamento, em relação à sua verdade como determinado por aquilo que se lhe contrapõe. A última parte é o ápice da argumentação, em que procuramos ver como Adorno concebe o movimento de desfalsificação do pensar executado por si mesmo, em um processo de negação dialética essencialmente crítico, sem a positividade da suprassunção hegeliana rumo a um saber absoluto. Essa demárche autocrítica expõe algo importante, que é o caráter anistórico do pensamento solipsista, enredado numa auto-identidade isenta das flutuações temporais da matéria do objeto do pensar. Nesse ponto, a nossa idéia fundamental é: romper o solipsismo do espírito significa a assunção de seu caráter histórico-temporal. Dada essa relação estreita entre alteridade, espírito e história, o conceito de tempo se mostra fundamental para a auto-compreensão do sujeito, que é o assunto do quarto capítulo.

Nessa última parte, começamos fazendo uma abordagem do que seja a percepção temporal, desde seus primórdios na formação do conhecimento mimético, até as concepções de Kant e de Hegel, passando pela especificidade da abstração grega e pela famosa concepção de tempo como distensão da alma de Santo Agostinho. Nesse momento, estamos interessados na vinculação entre a consciência e a percepção temporal, a partir da noção de imagem, que sempre está presente ao longo de toda a nossa tese. É

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exatamente a vinculação entre alteridade, imagem e tempo histórico que será investigada nas duas últimas partes desse capítulo, através do conceito de sublime em geral e, depois, na arte. Nesse último item, trataremos da própria percepção do movimento histórico à luz de vários conceitos tratados nos capítulo anteriores, fornecendo a culminação de todo o esforço de se pensar uma relação de alteridade que não se afunde no solipsismo anistórico da razão científica.

Em relação às obras que servem de apoio a nossos argumentos, a Dialética do esclarecimento de Adorno e de Horkheimer, publicada em 1947, é a referência fundamental para os dois primeiros capítulos.

Há que se esclarecer, inicialmente, o sentido geral de nossa apropriação dessa obra. Não a tomamos como um objeto de estudo per se, uma vez que não nos interessamos, por exemplo, pelo desenvolvimento teórico que desembocou em sua realização, através da sociologia de Weber, da filosofia de Marx, da psicanálise de Freud, dos escritos iniciais da Teoria Crítica, etc. Tomamos a Dialética de 1947 mais como ponto de partida para nossas reflexões do que como ponto de chegada. Interessa-nos mais, por exemplo, sua ligação futura com a Dialética negativa e com a Teoria estética de Adorno do que seu caráter de resultado de um processo.

O objetivo primordial desse livro é o de “descobrir porque a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie” (DA 1/11). Trata-se de uma investigação propriamente genealógica, que procura perceber as origens daquilo que foi sentido de modo tão enfático pelos membros do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt, todos eles judeus, obrigados a emigrar para os EUA na época de ascensão de Hitler. O que os autores querem descobrir é onde residiria o germe mais profundo que deu origem aos regimes totalitários do nazi-fascismo. Parte-se da idéia de que estes não são um mero acidente de percurso da racionalidade, mas, sim, o caso extremo de algo que desde sempre foi gestado na história da racionalidade humana. Os autores querem tornar evidente o paroxismo hiperbólico da vinculação entre o cume do desenvolvimento da razão e os horrores estratosféricos do genocídio cinicamente cruel.

O tema dessa obra é propriamente a história do desenvolvimento da racionalidade, desde os primeiros modos de relacionamento do homem com o mundo até a contemporaneidade. Dada essa abrangência temporal, é evidente que não se trata de uma abordagem que considere fase por fase, autor por autor, como que constituindo uma macro-história das idéias, mas, sim, da explicitação de uma tese forte, colocada e desenvolvida no primeiro capítulo do livro: o mito já continha elementos que o tornam parte do processo de racionalização chamado de esclarecimento, e este, por sua vez, conserva, funestamente, os traços mitológicos de sua origem. Ora, dizer que o mito já se configura como racionalização supõe estender os limites do esclarecimento a um período surpreendentemente anterior. (Um dos nossos temas do segundo capítulo será precisamente questionar até que ponto se pode, legitimamente, deslocar o começo do esclarecimento.) Nessa primeira parte do livro, o vínculo entre o mito e a razão esclarecida é visualizado nas grandes figuras do desenrolar do pensamento: preanimismo, magia, mito, epopéia, metafísica, ciência moderna e positivismo lógico.

O Excurso I procura perceber como essa imbricação de mito e de esclarecimento pode ser pensada no surgimento da proto-forma do indivíduo burguês através de uma leitura da Odisséia de Homero. O herói Ulisses, que, após a guerra de Tróia, almeja voltar a Ítaca, passa por diversos perigos, por aventuras que constantemente colocam à prova sua rigidez de caráter e sua determinação. A ipseidade do sujeito moderno já está lançada, segundo Adorno e Horkheimer, nessa construção solipsista de

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um eu que deve negar tudo o que se opõe à sua idéia preestabelecida de retorno ao solo pátrio e a seus bens e propriedades. Essa temática será analisada também no segundo capítulo de nossa tese.

O Excurso II, que trata sobre a moral esclarecida, e o capítulo sobre a indústria cultural não serão analisados por nós aqui, pois serão ser alvo de estudos posteriores.

O capítulo sobre os “elementos do anti-semitismo” será referido por nós em uma de suas passagens — no item V — em que Adorno explicita, de modo mais enfático do que em toda a sua obra restante, o conceito de mímesis. Apesar de relativamente pequena, essa passagem é a que forneceu os subsídios para que construíssemos todo o primeiro capítulo de nosso texto.

Os fragmentos posteriores também possuem algumas passagens a que nos referiremos em determinados itens de nossa tese.

Apesar de toda a abrangência, do vigor interpretativo e da importância que este livro alcançou na filosofia da segunda metade do século XX, ele foi alvo de inúmeras controvérsias e de infindáveis críticas. Muito se falou do influxo que as condições históricas da Segunda Guerra Mundial tiveram sobre essa obra conjunta dos mais proeminentes autores da Teoria Crítica. Hoje, para nós, que vivemos em sociedades cujo controle político dito democrático diferencia-se substancialmente da opressão diretamente realizada pelo nazi-fascismo, a idéia de dominação, de senhorio, de repressão, de poder, etc., tal como Adorno e Horkheimer expõem, poderia ser facilmente vista como ultrapassada — o que até mesmo os autores, no prefácio da edição de 1969, vinte e um anos após a primeira edição, compartilham em certa medida: “O livro foi redigido num momento em que já se podia enxergar o fim do terror nacional-socialista. Mas não são poucas as passagens em que a formulação não é mais adequada à realidade atual” (DA IX/09). E como eles retomaram o que havia sido escrito? “Quanto às alterações, fomos muito mais parcimoniosos do que o costume na reedição de livros publicados há mais de uma década. Não queríamos retocar o que havíamos escrito, nem mesmo as passagens manifestamente inadequadas. Atualizar todo o texto teria significado nada menos do que um novo livro” (DA X/10). Apesar dessa reticência em relação à atualidade do texto, eles dizem que

o desenvolvimento que diagnosticamos neste livro em direção à integração total está suspenso, mas não extinto2; ele ameaça se completar através de ditaduras e de guerras. O prognóstico da conversão correlata do esclarecimento no positivismo, o mito dos fatos, finalmente a identidade da inteligência e da hostilidade ao espírito encontraram uma confirmação avassaladora. (DA X/10; tradução modificada)

Como dissemos, o nazi-fascismo não deve, segundo os autores, ser tomado como algo sui generis, diferente de modo radical de todos os produtos do espírito humano, mas, sim, como uma forma específica de realização de um processo de constituição da sociedade que tem seus princípios vigentes mesmo nas sociedades ditas democráticas. Podemos dizer que a era do fascismo não foi superada, pois seus pressupostos ainda vigem na sociedade atual. É preciso considerar, segundo pensamos, quais são esses

2 Aqui modificamos a tradução de Guido de Almeida. Os autores dizem que o processo a que se referem está unterbrochen, não abgebrochen. Guido traduz a primeira palavra por “suspenso” e a segunda, por “interrompido”. Essa segunda tradução, apesar de não ser errada, não é boa, pois, em português, “interromper” tem, segundo o dicionário Aurélio, o significado de “fazer parar por algum tempo; romper ou suspender a continuidade de”, “deixar de fazer temporariamente”, embora tenha também o significado de “fazer cessar; destruir, extinguir”. Para deixar clara a intenção do autor, optamos por traduzir “abbrechen” por “extinguir”.

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pressupostos de modo mais radical possível. A nossa tese é a de que os fundamentos da estrutura social que deram origem aos regimes totalitários subsistem na sociedade como os princípios mais primordiais que alimentam a experiência do indivíduo com o mundo.

O que mais irrita os comentadores da Dialética do esclarecimento é o fato de suas análises parecerem levar a um sentimento radicalmente negativo em relação ao conceito de razão tout court. Tal é a crítica de Habermas, que poderia ser sintetizada em duas idéias: 1) Os autores da Dialética, identificando o conceito de razão ao de racionalidade instrumental, tornam sem saída, aporético, o processo de pensar a possibilidade de emancipação. Se toda a forma de racionalidade está corrompida pela herança mítica da identificação infinitamente repetida, como pensar a possibilidade de emancipação? A Dialética do esclarecimento levaria, assim, a um pessimismo absoluto em relação a um possível potencial emancipatório inerente à razão:

[Adorno e Horkheimer] aprofundaram tanto sua crítica do esclarecimento, que o próprio projeto do esclarecimento corre perigo; a Dialética do esclarecimento dificilmente deixa entrever uma saída para o mito da racionalidade orientada a fins que se concretizou na violência objetificada.3

2) Por outro lado, dada essa contaminação da razão enquanto tal pela inverdade mítica, o próprio discurso de Adorno e de Horkheimer estaria contaminado por ela, ou seja, eles incorreriam em uma contradição performativa, pois se valem daquilo que criticam fervorosamente. A Dialética do esclarecimento “autonomiza a crítica até mesmo perante seus próprios fundamentos” 4.

Para responder a essa e a outras críticas, é preciso considerar, de modo bastante claro, qual é o escopo mais primordial do texto em questão. Os autores dizem, explicitamente, que sua análise deveria “preparar um conceito positivo do esclarecimento, que o solte do emaranhado que o prende a uma dominação cega” (DA 6/15), ou seja, não se trata, segundo essa passagem explicita, de uma tarefa apenas crítico-negativa. Entretanto, é evidente que os autores não se dedicaram a estabelecer tal conceito “positivo” de esclarecimento. O que eles realmente fizeram foi executar uma crítica feroz à racionalidade ocidental, pretendendo perceber, em qualquer de suas manifestações, a instrumentalização do pensamento como algo próprio de sua estrutura mais íntima. O texto como um todo tem, portanto, como seu sentido mais essencial, a execução de um projeto eminentemente negativo: mostrar o que, na racionalidade tout court, levou à catástrofe do nazismo. Ora, se é esse o verdadeiro sentido dessa obra, seria de se esperar que os autores se detivessem naquilo que constitui o conteúdo de verdade da experiência burguesa de vida? Seu olhar estava dirigido substancialmente para os fundamentos filosóficos que levaram a sociedade ao estado de negação planetária do homem como ser vivo. Destarte, o livro de 1947 é tachado por vários autores de unilateral, de pessimista, de aporético. Vejamos a consideração crítica de Norbert Bolz em relação à concepção histórica desse texto:

Problemático na Dialética do esclarecimento não é a super-pregnância de suas percepções, mas, sim, a homogeneização da história em um curso do mundo infeliz: ‘de Homero à modernidade’. O modo de ser burguês é expressamente tão pré-datado, que (…) a história mundial parece estar suprassumida, sem resto, no esclarecimento.5

3 Jürgen Habermas. “Die Verschlingung von Mythos und Aufklärung”. In: Philosophische Discurs der Moderne. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1985, p.138. 4 Jürgen Habermas. “Die Verschlingung von Mythos und Aufklärung”. In: op. cit., p.141. 5 Norbert Bolz. “Das Selbst und sein Preis”. In: Willem van Reijen & Gunzelin S. Noerr Verizig Jahre Flaschenpost: “Dialektik der Aufklärung” 1947 bis 1987. Frankfurt a. M.: Fischer, 1987, p.111.

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Se se perguntasse aos autores, quando escreviam a Dialética do esclarecimento, se eles pensavam que tudo no mundo sempre obedeceu somente ao curso do esclarecimento de recaída na coerção mítica, o que eles responderiam? Naturalmente que não. Ora, não se tem no livro uma descrição exaustiva da história universal. Não se trata de um “totalitarismo de esquerda”, como Bolz diz, concordando com Habermas, mas, sim, de uma interpretação da dinâmica mais profunda do desenvolvimento do processo de constituição da civilização ocidental. Os autores dizem que a história obedece, em um nível macro, a esse desenvolvimento, mas, evidentemente, não concordariam que o livro pretendesse dizer que se trata de uma “descrição explicativa” da totalidade dos acontecimentos que se deram no planeta. Consideramos essa leitura da Dialética do esclarecimento de uma ingenuidade carregada de má-fé.

Para sustentar sua idéia, Bolz cita a passagem: “o burguês, nas sucessivas formas do senhor de escravos, empresário livre e administrador, é o sujeito lógico do esclarecimento” (DA 89/83). Duas coisas: os autores diriam que somente existe esse tipo de pessoas? – e que em todo administrador somente existe o sujeito lógico do esclarecimento? Em vez disso, trata-se do conceito de empresário livre, ou outro, que é conforme à noção hermenêutica, interpretativa, “sujeito lógico do esclarecimento”, a qual é um elemento analítico que nos permite perceber a lei de movimento da civilização burguesa, que já se prefigurava no tempo da constituição da Grécia antiga como sociedade patriarcal, regida pelo mito, o qual recebe uma configuração nova na epopéia. Esse conceito “sujeito lógico do esclarecimento” não descreve, nem pretende descrever, a totalidade da subjetividade do homem ocidental — sob pena de transformar o livro em uma imbecilidade sem tamanho —, mas apenas interpretar o sentido geral que esteve presente como linha mestra no desenvolvimento macro da civilização, de modo a satisfazer aquela tarefa mais primordial de encontrar os fundamentos funestos da imersão da humanidade na barbárie. Problemática é, portanto, não a assimilação generalizada que os autores fariam do sujeito à dialética do esclarecimento como um todo, mas, sim, a leitura superficial que se faz de sua intenção.

O texto de 1947 está voltado eminentemente para sua tarefa genealógica do elemento de falsidade do todo social e do pensamento, presente nas formas de experiência do indivíduo com o mundo, e deve ser avaliado em relação a essa proposta. Para responder, inicialmente, à crítica de pessimismo levantada por Habermas, poderíamos perguntar, de uma maneira irônica, em que lugar está escrito, com autoridade irrefutável, que todo texto que aponte para a falsidade do real tem que mostrar, ao mesmo tempo, o que há de verdadeiro neste? Por que o valor de um texto não pode consistir precisamente em apontar o que há de falso na realidade?

Mas, por outro lado — e talvez isso seja o mais importante no âmbito da exegese do texto em questão —, há que se considerar, também, uma retórica presente nos textos adornianos, que é o de dizer de modo hiperbólico, generalizado, o que poderia ser dito de modo mais “razoável” a nossos olhos. Este é um (ab)uso consciente da amplitude hiperbólica dos conceitos, que nos solicita que travemos um diálogo com o próprio texto, e não apenas vejamos nele o que poderíamos ter posto em suas linhas. Este espaço entre a factualidade do real e o pensamento que pretende alcançá-lo é algo que conta de modo efetivamente válido para a verdade das idéias:

É apenas na distância em relação à vida que se desenvolve a vida do pensamento que realmente atinge a vida empírica. Enquanto o pensamento se refere aos fatos e se move na crítica a eles, ele não se move menos graças à diferença mantida. Ele exprime com exatidão o que é, pelo fato mesmo de que o que é nunca é inteiramente tal qual o pensamento o exprime. A ele é essencial um elemento de exagero, que o impele para além das coisas e o faz desembaraçar-se do peso do factual, graças ao que, em vez de apenas reproduzir o ser, co nsuma de maneira rigorosa e livre a determinação deste último. (MM §82, p.110)

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O exagero é, assim, algo programático no pensamento de Adorno. Nesse auto-reconhecimento de inadequação frente ao seu objeto, o pensar se dá conta como um jogo, que visa, não uma repetição do real pura e simplesmente, mas, sim, uma interpretação dele. Adorno nega a pretensa transparência do discurso que quer alcançar a realidade em sua clareza absoluta: “pois o conhecimento se dá numa rede onde se entrelaçam prejuízos, intuições, inervações, autocorreções, antecipações e exageros, em poucas palavras, na experiência, que é densa, fundada, mas de modo algum transparente em todos os seus pontos” (MM §50, p.69). No extremo de sua dialética negativa, Adorno chega a dizer: “Verdadeiros são apenas aqueles pensamentos que não compreendem a si mesmos” (MM §122, p.168). Por outro lado, esse desligamento com a factualidade do mundo não deve ser hipostasiado como algo bom em si mesmo, como se fornecesse ao pensamento uma liberdade absoluta, na qual pudesse estabelecer uma verdade para si independente do objeto:

Se (…) ele pretextasse a distância como um privilégio, não se sairia melhor, mas proclamaria dois tipos de verdade, a dos fatos e a dos conceitos. Isso dissolveria a própria verdade e denunciaria o pensamento mais ainda. A distância não é nenhuma zona de segurança, e sim um campo de tensões. Ela não se manifesta tanto no relaxamento da pretensão de verdade dos conceitos, quanto na delicadeza e na fragilidade com que se pensa. (MM §82, p.111)

Uma questão a mais que se coloca à Dialética do esclarecimento é sua inserção na obra adorniana como um todo. Os comentadores não se satisfazem em criticá-la mordazmente pelas próprias idéias expostas, mas, também, de acordo com o que eles vêem como sendo algo precário em relação aos desenvolvimentos conceituais ulteriores do pensamento de Adorno.

Comparando a Dialética do esclarecimento com a Dialética negativa, cremos — ao contrário de Habermas — que esta última possui um Leitmotiv essencialmente diferente. Aqui, Adorno estava interessado em propor uma consciência filosófica, não apenas do que é falso no real e no pensamento, mas, também, daquilo que poderia ultrapassá-la. Toda a parte intermediária desse texto, “Dialética negativa. Conceitos e categorias”, pode ser lida como a tentativa enfática de conceber a estrutura constelatória do pensamento filosófico que faria com que pudéssemos vislumbrar, como negação determinada da falsidade do pensamento, o que aponta para além da racionalidade imperante no mundo falso. Se não se leva em conta claramente o sentido filosófico geral das duas Dialéticas, a primeira sempre irá parecer um esboço mal feito e equivocado do que Adorno escreveu posteriormente, como é vista por vários comentadores, entre os quais se situa Klaus Baum, que diz: “em comparação à Dialética negativa, a Dialética do esclarecimento aparece como uma imagem profusa de conceitualidade cambiante, que somente poderia ser tornada transparente pelo espírito do absoluto, ao qual a totalidade está sempre presente”6. Ao se referir à relação entre os dois livros, Marcos Nobre, embora diga que pretenda, no fim das contas, “apontar para rupturas ou fissuras num quadro geral em que predomina a continuidade”7, salienta visivelmente o aspecto de discontinuidade. Após citar a passagem do prefácio da Dialética do esclarecimento em que os autores dizem da necessidade de reescrever todo o livro se quisessem atualizar todo o texto, conclui “que toda e qualquer referência à Dialética do esclarecimento para explicar a obra posterior de Adorno (ou

6 Klaus Baum. Die Transzendierung des Mythos. Zur Philosophie und Aeshetik Schellings und Adornos. Würzburg: Königshausen & Newman, 1988, p.73. 7 Marcos Nobre. A Dialética negativa de Theodor W. Adorno. A ontologia do estado falso. São Paulo: Iluminuras, 1998, p.16.

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de Horkheimer) tem de ser tomada cum grano salis, respeitando as limitações” indicadas por ele.8

Marcos Nobre, embora se qualifique como contrário à corrente majoritária dos intérpretes adornianos, os quais partilhariam do que ele chama de “paradigma da Dialética do esclarecimento”, em que esta é vista como fundamento histórico-filosófico da obra tardia de Adorno, na verdade coloca-se como partidário de toda a gama de críticos — particularmente centrados na crítica de Habermas a Adorno, como já apontamos acima — de que a Dialética do esclarecimento é excessivamente homogeneizante em sua consideração da história. Diz ele:

Acredito que a maneira mais simples de esterilizar o pensamento de Adorno é estabelecer — com uma pretensa base na Dialética do esclarecimento — uma continuidade entre os diversos modos de produção que ignora o fato de que a legitimação da dominação “tradicional”, “vinda de cima” foi posta de lado sob o capitalismo. Só considerando a ruptura podemos compreender corretamente a pergunta “por que a emancipação não se deu e continua a não se dar”, bem como o olhar histórico alegórico que a acompanha e a proibição de sondar o futuro.9

Ora, é preciso considerar, em relação ao advento do capitalismo, não apenas a sua ruptura — que, evidentemente, é enorme — como, também, o que há de continuidade em relação ao processo de racionalização do ocidente que começou a ocorrer bem antes. A homogeneidade da massa do trabalho sob o princípio da livre troca de mercadorias, em que o próprio trabalho converteu-se em uma delas, deve poder ser pensada a partir de uma matriz cultural mais primitiva, da qual seria um desdobramento, ao mesmo tempo em que funda uma ruptura qualitativa na experiência do indivíduo consigo mesmo, com a natureza e com o outro. Ou seja, para pensarmos a ruptura qualitativa do capitalismo é preciso pensar, também, o que há de continuidade com as formas culturais antecedentes. Ou se poderia dizer que o capitalismo é algo absolutamente original? É evidente que não. Se queremos pesquisar o fenômeno do capitalismo em sua totalidade diacrônica, é preciso pensar, então, tanto a continuidade, quanto a diferença. Como vamos ver no segundo capítulo, os autores não elidiram pura e simplesmente a distinção qualitativa do capitalismo frente a outras formas de sociedade. Mas novamente dizemos: o objetivo da Dialética do esclarecimento é o de pesquisar fundamentalmente o primeiro aspecto, de fazer uma genealogia da recaída do humano na barbárie. Que haja vários comentadores que negligenciam o aspecto da distinção qualitativa entre formas pré- e propriamente capitalistas apoiando-se no livro de 1947, isso não pode ser visto como o pecado original do livro, do qual emanariam os erros em relação à própria realidade, mas, sim, como um erro de leitura, pois esse equívoco baseia-se, do mesmo modo que em Marcos Nobre, num descuidado em relação àquilo que deve fazer toda crítica de um texto: avaliá-lo de acordo com os objetivos que iluminam o sentido da construção do texto.

A Dialética do esclarecimento é, sim, segundo pensamos, extremamente profícua para estudarmos o pensamento de Adorno, desde que compreendida a partir dos objetivos a que ela se propõe. Uma vez considerados os limites colocados pelo projeto geral dos autores, esse pode ser avaliado de modo mais sóbrio, tendo muito mais chance de ser assumido como válido, porque deixa de ser alvo de um mero preconceito metodológico de leitura irrefletido. Simplificando enormemente, com fins didáticos, podemos dizer que as formulações filosóficas crítico-negativas do texto de 1947 são, via

8 Marcos Nobre. Op. cit., p.32-3. 9 Marcos Nobre. Op. cit., p.50.

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de regra, corroboradas pela Dialética negativa, ao passo que essa, além de expandir seu campo de análise e de não tematizar alguns assuntos tratados naquele, incorpora reflexões de modo a perceber o elemento de verdade no real e no pensamento, ou seja, aquilo que ultrapassa o estado atual de negação do humano. Apesar dessa distinção inicial, podemos ver que já a Dialética do esclarecimento coloca um elemento forte como aquilo que poderia ser uma superação da racionalidade instrumentalizada: a idéia de uma “rememoração da natureza no sujeito”, que será explicitada em detalhes no terceiro capítulo. Essa idéia, vinculada ao processo de reflexão do esclarecimento sobre seus pressupostos históricos, entretanto, não foi desenvolvida pelos autores naquele texto. Ela poderia ser mais bem compreendida, em termos de sua explicitação, na Dialética de 1966. Naturalmente, é inviável demonstrar de maneira cabal essa tese da continuidade entre a primeira e a segunda Dialéticas de Adorno, mesmo porque esse não é o tema dessa tese, mas, sim, a alteridade dialeticamente considerada — motivo pelo qual não se discutiu a relação entre os textos de 1947 e de 1966. A Dialética negativa é invocada em diversas passagens como apoio para nossa leitura da obra conjunta de Adorno e de Horkheimer. Mas há vários comentadores que partilham da idéia de uma continuidade entre os textos, como por exemplo Albrecht Wellmer: “no que concerne a Adorno, é surpreendente a continuidade de seu pensamento, dos primeiros trabalhos frankfurtianos sobre filosofia e sobre sociologia da música até suas obras tardias, a Dialética negativa e a Teoria estética”10.

As críticas que levantamos acima afetam, e muito, o conceito de mímesis, que é aquele que serve de guia mais geral para todos os nossos argumentos. Nesse aspecto, o grande mal-estar em relação à Dialética do esclarecimento reside na idéia de que, como diz Marcos Nobre,

se se pudesse determinar o “continuum da violência e da dominação” que caracteriza a Dialética do esclarecimento como a base explicativa da filosofia de Adorno, teríamos simplesmente um sistema às avessas, uma absolutização da razão instrumental em que o não-instrumental só encontraria seu lugar unicamente na mímesis, na total extraterritorialidade frente à dominação sistêmica, quando, ao contrário, já sabemos que a invasão do não-imanente ao sistema pertence também à dialética imanente.11

A expressão “unicamente na mímesis” mostra uma inquietude fundamental de vários comentadores com tal conceito em Adorno, principalmente ao tratar dele na Dialética do esclarecimento. Dada aquela abordagem de leitura indevida de cobrar do texto o que ele não se propõe prioritariamente a fornecer, aquele conceito acaba sempre sendo tomado pejorativamente como escape a um mundo sombrio ao qual não haveria alternativa. Segundo pensamos, esse conceito tem sua validade no pensamento de Adorno, não apenas na Dialética de 1947 ou na Teoria estética, mas na própria idéia de uma dialética negativa, que se pensa como reflexão sobre a não-identidade entre conceito e objeto, na medida em que o movimento de aproximação entre tais pólos pode ser concebido sob o pano de fundo mais geral de uma relação mimética entre eles. Trata-se da superação da ipseidade conceitual através da consideração de sua alteridade. Como diz Wellmer, “na Dialética negativa, Adorno tentou caracterizar esta ultrapassagem do conceito como sendo a admissão de um momento ‘mimético’ no pensamento conceitual”12. Ora, para mostrar que todo o desenvolvimento conceitual da Dialética negativa poderia ser 10 Allbrecht Wellmer. Zur Dialektik von Moderne und Postmoderne. Vernunftkritik nach Adorno. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1985, p.139. 11 Marcos Nobre. Op. cit., p.179. 12 Allbrecht Wellmer. Zur Dialektik von Moderne und Postmoderne. Vernunftkritik nach Adorno. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1981, p.153.

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pensado em termos miméticos, seria importante mostrar que a mímesis não é um “potencial contrafático, pré-histórico”13, mas pode ser concebida em termos da historicidade imanente ao processo de constituição da experiência. Esse é o tema principal do terceiro capítulo de nossa tese, que se serve precisamente de alguns dos desenvolvimentos conceituais da Dialética negativa.

Entretanto, algo do que todas essas críticas apontam em relação à Dialética do esclarecimento tem seu conteúdo de verdade. Se lermos adequadamente o que significa esse continuum de violência e de dominação de que fala Marcos Nobre, podemos desnudar uma idéia no texto de 1947 que é de suma importância para a determinação dos conceitos de mímesis e de ideologia. A bem dizer, o vínculo entre esclarecimento e dominação é o alvo da principal tese interpretativa que expomos no segundo capítulo. Mas essa nossa análise é imanente e respeita as limitações da intenção crítico-negativa que o texto possui.

Resumindo drasticamente o que dissemos até agora e avançando um pouco, diríamos que o tema mais amplo de nosso texto é o de estabelecer os contornos a partir dos quais é possível pensar filosófica- e dialeticamente a relação entre a constituição do eu no ocidente e tudo aquilo que é posto — ou está — fora da esfera dessa identidade, principalmente através do conceito de mímesis. A tese maior de nosso texto, por sua vez, reside, em primeiro lugar, na idéia de que a negação da mímesis pela abstração do pensamento foi a origem da racionalidade ocidental denominada esclarecimento, que, ao mesmo tempo em que propiciou as condições para a emergência do sujeito, enredou-o em um solipsismo que obscurece a sua percepção da historicidade imanente ao real; em segundo lugar, na idéia de que é através do processo reflexivo radicalmente crítico do pensamento sobre si mesmo que este pode desfazer-se de sua inverdade, momento em que a ruptura de seu solipsismo vincula-se a uma forma de percepção da dimensão da temporalidade histórica — tanto no âmbito do pensamento, quanto no da experiência concreta —, que deve poder ser pensada como a via pela qual é possível localizar teoricamente a dimensão de alteridade constitutiva do sujeito, visualizável na experiência estética do sublime, particularmente na arte moderna.

Para efetivar integralmente a explicitação dessa tese, precisamos recorrer, no último capítulo, à Teoria estética, em que Adorno faz uma brilhante e abrangente reflexão filosófica sobre o fenômeno da arte. Não perguntaremos por todas as características mais relevantes da estética adorniana, mas, sim, somente por aquelas que se situam no rol das determinações da dimensão de alteridade e de história, que agruparemos sob o conceito de sublime. Pretendemos, em sentido mais estrito, fornecer, a partir dos argumentos desse livro, um conceito de sublime artístico vinculado à dimensão temporal e histórica da percepção.

Além da Dialética do esclarecimento, da Dialética negativa e da Teoria estética, foram usados por nós também a Minima Moralia e Palavras e sinais. Modelos críticos 2, principalmente os artigos “Progresso” e “Sobre sujeito e objeto”. Esses textos fornecem auxílio na construção de vários argumentos, sem que tenham sido alvo de análise específica.

13 Ulrich Rödel, Günther Frankenberg e Helmut Dubiel. Die demokratische Frage. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1989, p.158. Apud Marcos Nobre. A Dialética negativa de Theodor W. Adorno. A ontologia do estado falso. São Paulo: Iluminuras, 1998, p.184.

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Capítulo I

Mímesis como forma de conhecimento

1. As dificuldades do conceito de mímesis

Antes de falar propriamente da relação mimética com o mundo, seria bom salientar o enorme mal-estar causado nos leitores de Adorno pelo uso que ele faz desse conceito. O tom geral que se produz em termos de receptividade é, salvo raras exceções, que tal noção é por demais imprecisa, vacilante, à qual o autor faz referência em várias circunstâncias, sem que, no entanto, se tenha um solo seguro a partir do qual se pudesse saber o que, afinal de contas, ela quer dizer. Alo Allkemper diz explicitamente: “o conceito de mímesis em Adorno é vago e impreciso”14. Uma posição agudamente crítica é a de Jürgen Habermas, que via na mímesis adorniana algo que estaria no lugar de uma concepção de racionalidade positiva:

Como substituto para essa razão primordial que foi desviada da intenção da verdade, Adorno e Horkheimer nomeiam uma capacidade, a mímesis, à qual eles só podem se referir como a um fragmento de natureza incompreendida. Eles caracterizaram a capacidade mimética, na qual uma natureza instrumentalizada faz sua acusação muda, como um ‘impulso’. O paradoxo no qual o crítico da razão instrumental está enredado, e que resiste tenazmente mesmo à mais dócil dialética, consiste portanto nisto: Adorno e Horkheimer teriam de elaborar uma teoria da mímesis, a qual, segundo suas próprias idéias, é impossível.15

Fredric Jameson chega a ter uma posição até mesmo algo sarcástica, ou no mínimo irônica em relação à noção de mímesis em Adorno:

um conceito fundacional jamais definido nem defendido, mas sempre referido, por nome, como se houvesse preexistido a todos os textos (…). É como se (…) um tipo de nostalgia fundacional reprimida forçasse o seu ressurgimento em seus escritos por intermédio desses termos mágicos, que são evocados para explicar tudo, sem, por sua vez, serem explicados, até que, com o tempo, ficássemos persuadidos de que eles não poderiam jamais ser explicados ou fundamentados, e assinalam a raiz de alguma obsessão arcaica privada, como nos “Ur-sons” e nomes dos grandes poetas modernos.16

De onde viria esse incômodo compartilhado por inúmeros comentadores e críticos de Adorno? Cremos que o principal motivo está na qualificação do comportamento mimético como pré-conceitual, ou seja, a mímesis seria uma forma de relacionamento com o mundo em que a mediação pelo conceito ainda não existe ou é suprassumida. Mas como pensar, conceitualmente, algo que é, a rigor, não-conceitual, ou seja, que escapa ao poder de compreensão dos conceitos? Dada essa a-conceitualidade da mímesis, ela possui uma qualificação tripla: é pensada como um modo de conhecimento que antecedeu a formação conceitual, indica um modo de regressão atual dessa última e aponta para uma superação das mazelas da racionalidade fundada na onipotência do conceito. Desse modo, a mímesis oscila, em termos de sua inserção contextual no pensamento de Adorno, entre um modo rudimentar pré-histórico de conhecimento, 14 Alo Allkemper. Rettung und Utpopie. Studien zu Adorno. Paderborn: Ferdinand Schöningh, 1981, p.95. 15 Jürgen Habermas. The Theory of Communicative Action. Trad Thomas McCarthy. Boston, MA, 1984, vol. 1, p.382. Citado por Fredric Jameson. Marxismo tardio. Adorno, ou a persistência da dialética. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Unesp & Boitempo Editorial, 1996, p.91. 16 Fredric Jameson. Marxismo tardio. Adorno, ou a persistência da dialética. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Unesp & Boitempo Editorial, 1996, p.90-1, grifos nossos.

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passando pela colocação hiperbolicamente crítica da condição do pensamento reificado e chegando a situar-se como “redenção” desse mesmo estado em uma concepção (negativa) de utopia cognitiva!! Dado esse entrelaçamento de idéias tão díspares e, poder-se-ia pensar, inconciliáveis, a dialética adorniana parece ter colocado, a vários de seus leitores, obstáculos quase intransponíveis. Temos que reconhecer, por outro lado, que Adorno não chegou a estabelecer uma conformação teórica de mímesis tão pormenorizada e direta quanto o fez, por exemplo, em relação aos conceitos de sociedade, de razão instrumental, de forma e de conteúdo da obra de arte, etc. O próprio autor reconheceu a imprecisão desse conceito em sua obra.17 A crítica de Jameson de que “mímesis” seria “um conceito fundacional jamais definido nem defendido, mas sempre referido, por nome, como se houvesse preexistido a todos os textos” não é desprovida de fundamento, pois essa noção é recorrente nos textos de Adorno, sem que se tenha um momento em que seu significado teórico seja claramente delineado.

Não pretendemos, aqui, fazer o que o próprio Adorno não fez, ou seja, fornecer uma teoria detalhada e completa do conceito de mímesis, principalmente pelo fato de não nos determos em suas determinações presentes na Teoria estética, mas, pelo menos, temos a intenção de fornecer alguns elementos teóricos concatenados de modo a mostrar que é equivocada a idéia de Habermas de que é impossível uma teoria da mímesis. Essa nossa atitude não é tomada pelos comentadores, pois eles se limitam a falar sobre esse conceito tal como Adorno o usa, sem se preocuparem em arriscar um desenvolvimento teórico do próprio conceito que foi deixado de lado pelos autores na Dialética do esclarecimento. Além disso, vários intérpretes pecam por basearem sua análise em considerações valorativas por demais genéricas, partindo de avaliações prático-gnosiológicas que Adorno teria feito em relação ao comportamento mimético, em vez de considerarem tal noção de um ponto de vista inicialmente isento de pejoratividade ou de valorização positiva. A tentativa de estabelecer uma teoria que pretenda captar a genealogia da representação mimética fica prejudicada por considerações desse tipo, das quais a posição de Jean-Marie Gagnebin, seguindo Joseph Früchtl, é um exemplo: “poderíamos afirmar que prevalece, no pensamento de Adorno (e de Horkheimer), na época da Dialética do esclarecimento, uma certa condenação da mímesis, descrita antes de tudo como um processo social de identificação perversa”18. Essa valorização negativa somente tem sentido a partir da consideração da perversidade de formas sociais de leitura do mundo e de integração sociais existentes na sociedade contemporânea, em que a mímesis arcaica poderia ser rejeitada como uma falsa solução para as aporias do conhecimento conceitual, e, por outro lado, considerando-se, como dissemos acima, que o conhecimento reificado e algumas formas de organização sociais, como o nazi-fascismo, apresentariam uma regressão mimética. É preciso fugir desse ponto de partida apressadamente conclusivo em termos de valorização do comportamento mimético.

A tarefa teórica mais adequada em relação à noção de mímesis é a de mostrar como ela se estabelece como substrato da formação da consciência humana. Assim, a posição em que nos colocamos é radicalmente oposta à de Hauke Brunkhorst, que diz: “O conceito de mímesis de Adorno não é nenhum esquema para construção teórica da

17 Theodor W. Adorno. Philosophische Terminologie I. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1972, p.83. 18 Jean-Marie Gagnebin. “Do conceito de mímesis no pensamento de Adorno e Benjamin”. In: Sete aulas sobre linguagem, memória e história. Rio de Janeiro: Imago, 1997, p.93.

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autoconsciência e da autodeterminação, da identidade do Eu e da individualidade”.19 Essa idéia do comentador somente seria verdadeira se a identidade subjetiva tivesse iniciado ab ovo com a formação conceitual, ou seja, se não houvesse nada nas formas pré-conceituais de relacionamento com o mundo que fornecesse elementos para essa construção. Como procuraremos mostrar, o conceito de mímesis nos possibilita, sim, pensarmos, não somente a pré-história da formação da consciência, mas, também, da constituição da própria racionalidade, ou seja, a mímesis não somente é um passo para a construção da identidade conceitualmente fundada, como a própria conceitualidade se estabelece mimeticamente com o mundo. A afirmação de Brunkhorst está duplamente equivocada de modo enfático.

Embora, como diz Martin Jay, o conceito de mímesis tenha diversas facetas, como a zoológica, psicológica, antropológica e estética20, por nossa parte, seguiremos uma ênfase nitidamente gnosio- e antropológica. Devido a esse viés interpretativo, precisamos investigar a genealogia do comportamento mimético, sendo necessário, inicialmente, vermos quais pressupostos conceituais estão envolvidos nesse processo.

Para nossas reflexões, tomamos uma posição frontalmente contrária às assertivas de Alo Allkemper de que “mímesis não é conhecimento [Erkenntnis]”, mas, sim, uma “reação imediata” frente à natureza21. Essa posição de Allkemper parece ser corroborada, em parte, pelo próprio Adorno, que, na Teoria estética, afirma que a interdição da mímesis ao longo da história encontrou confirmação na própria arte, através da “condenação da mímesis como um comportamento arcaico: que esta, praticada imediatamente, não é conhecimento” (ÄT 169/131; tradução própria). Segundo Adorno, a mímesis somente seria conhecimento na arte, uma vez que, nesse âmbito, há todo um processo reflexivo de construção formal da obra, que retira a imediatidade da relação mimética com o mundo, configurando o caráter de verdade e, assim, gnosiológico, para a mímesis artística.

Ora, tal reação imediata é algo que poderíamos ligar ao conceito de mimetismo, como veremos mais à frente. A idéia de absoluta imediatidade não seria, segundo pensamos, totalmente adequada em relação à mímesis, strictu sensu, porque esta deveria ser considerada como a própria mediação que se estabeleceu para que o homem pudesse assimilar a realidade. Por isso, pode-se dizer que a mímesis é, sim, uma forma cognitiva primeva. O que Adorno e seu comentador deveriam ter dito é que a mímesis não é uma forma de conhecimento conceitual, e que não há mediação por conceitos na representação mimética. A questão que se pode levantar é: seria possível falar-se de um conhecimento em que não estivesse envolvida a mediação conceitual?

Para apoiar a idéia de que se pode responder sim a essa pergunta, façamos uma distinção pormenorizada entre experiência, conhecimento e saber.

“Experiência” é uma palavra que deriva do prefixo grego ex- (para fora) e do advérbio e preposição peri (em torno de, limite), derivado de peran (do outro lado, mais além), afim ao substantivo peira (prova, experiência, ensaio; astúcia; intento de sedução (de uma mulher)), que derivou o substantivo empeiria e o latim periculum (tentativa; perigo). Todos esses estratos etimológicos mostram algo envolvido de modo explícito na palavra 19 Hauke Brunkhorst. “Die Welt als Beute. Rationalisierung und Vernunft in der Geschichte”. In: Willem van Reijen & Gunzelin S. NOERR Verizig Jahre Flaschenpost: “Dialektik der Aufklärung” 1947 bis 1987. Frankfurt a. M.: Fischer, 1987, pp.178. 20 Martin Jay, Mimesis and Mimetology : Adorno and Lacoue-Labarthe. In: Tom Huhn & Lambert Zuidervaart (Org). The semblance of subjectivity . Cambridge: MIT Press, 1997, p.31. 21 Alo Allkemper. Rettung und Utopie. Studien zu Adorno. Paderborn: Ferdinand Schöningh, 1981, p.96.

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alemã correspondente, Erfahrung, tomada por Hegel em sua dimensão etimológica de er-fahren (prefixo de reforço er-, mais o verbo fahren (viajar, passear, dirigir)), ou seja, a ex-periência significaria propriamente o trânsito em relação a uma determinada realidade a que se expõe em um movimento de: tentativa, ensaio, golpe, sedução, aliado à idéia de perigo, de perda. Nesse âmbito, não entraria em jogo, propriamente, o que resulta dessa exposição (embora, tanto no grego peira, quanto no português correspondente, haja o uso associado a ela como significando “ter passado pela experiência”, mas que não é, evidentemente, o significado mais original da palavra). “Conhecimento”, por sua vez, vem do grego gnosis (conhecimento, noção; investigação, instrução judicial; relações de amizade), derivado do verbo gignóska (aprender a conhecer; conhecer, reconhecer, saber; julgar, pensar; decidir, resolver; ter relações íntimas com). Embora o dicionário de Isidro Pereira, que é a fonte das consultas sobre as palavras gregas que estamos utilizando, não explicite esta idéia, creio que poderíamos arriscar a tomar os últimos significados listados para gignóska e para gnosis como exprimindo algo mais originário nelas, isto é, conhecer estaria ligado, não apenas à ex-periência, à exposição a algo, mas, também, a uma qualidade dela, qual seja, a de se ganhar uma intimidade com aquilo em relação ao qual nos expomos, ou seja, gnosis incluiria uma qualificação de interioridade como resultado de um processo de amadurecimento da ex-periência. O alemão Erkenntnis não possui ascendência etimológica aparentada a essas noções; deriva do verbo kennen (conhecer), que se liga ao verbo können (poder); ambos vêm do germânico *kannjan (fazer com que se saiba), que é derivado de kunnan (faculdade intelectual, saber, compreender). Tomando a proximidade de kennen e de können como significativa para a determinação do substantivo Erkenntnis, diríamos que também aqui residiria uma qualificação afim à que demos de gnosis em relação à ex-periência, ou seja, a de uma destreza, habilidade, na atividade de entrar em contado com algo que se vê, que se pode fazer (note-se que Kunst (arte) deriva de können). “Saber”, por outro lado, vem do latim sapere (ter paladar, julgamento; compreender, saber), algo ligado à especificidade de ter passado pelos sentidos, que é também o caso de Wissen, no alemão, que deriva do indogermânico *ueid- (ver, olhar), cujo passado é *uoida (eu vi, olhei, ou seja, eu sei). Embora essas duas noções já apontem para a idéia de resultado de se ter entrado em contado com o mundo através dos sentidos, são os verbos grego epístamai (saber, ser capaz de; ser versado em, ser exercitado em; estar bem informado de, saber com certeza), origem do substantivo epistéme, e o latim scire (saber), origem do substantivo scientia, que mostram a idéia que queremos ressaltar: o saber estaria ligado a uma sedimentação, a uma cristalização do conhecimento que obtemos para nós com a experiência que se faz com as coisas como algo a ser utilizado. Ou seja, o saber inclui um elemento (em maior ou menor grau) de reflexão, que não existe na experiência ou no conhecimento per se. Da experiência, passando pelo conhecimento, até o saber, temos a interiorização crescente do que dá sentido e especificidade à atividade em questão.22 22 Assim, todo saber seria um conhecimento e uma experiência, mas nem todo conhecimento ou experiência seriam um saber; todo conhecimento seria uma experiência, mas nem toda experiência seria um conhecimento — mas o que seria uma experiência que não fosse conhecimento? Prolongando essa linha de raciocínio, experiência-conhecimento-saber, passamos pela sabedoria, que, em grego é sophia, ou seja, um conhecimento profundo e pleno de todas as coisas, até alcançarmos a philosophia, que dispensa especificações. Com base nessa distinção entre gnosis e epistéme, aproveitamos a ocasião para propor uma diferenciação semântica entre gnosiologia e epistemologia. A primeira lidaria com tudo aquilo envolvido na produção do conhecimento, em suas condições de possibilidade, etc., enquanto a outra diria respeito ao saber como algo instituído, já formado e praticado. Como exemplo claro da primeira, temos a Crítica da razão pura de Kant, e da segunda, A estrutura das revoluções científicas, de Thomas Kuhn. (Naturalmente que essa diferenciação não é estanque, nem excludente e nem sempre claramente aplicável.)

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Considerando todo esse desenvolvimento, pode-se dizer que a mímesis é uma forma de experiência em que criamos uma intimidade, uma proximidade, com as coisas, pelo fato de nos exercitarmos com elas, motivo pelo qual dizemos que ela seria uma forma de conhecimento. Entretanto, não diríamos que ela seja, strictu sensu, uma forma de saber, posto que, para tal, seria de se supor que houvesse nela uma forma de decantação do conhecimento de modo a que se possuísse um mínimo de consciência sobre esse próprio conhecimento como posse do sujeito. A mímesis seria, inicialmente, então, um modo de conhecimento não-reflexivo.23

Como tal, a mímesis tem que repousar sobre um elemento propriamente humano como modo de representação. Precisamos investigar o que está envolvido nesse conceito de representação, que, diga-se de passagem, é um dos mais problemáticos de toda a teoria do conhecimento. Não pretendemos fazer um apanhado geral das inúmeras variáveis relacionadas a essa idéia, nem elucidá-lo com vistas a dar uma nova definição sua. O que nos é necessário é esclarecer brevemente duas noções importantes que lhe estão intimamente vinculadas: a configuração imagética e a abstração. 2. Imagem: entre sensação e conceito

A concepção de imagem que subjaz a todas as nossas reflexões é nitidamente de influência kantiana. O problema de Kant é, como Hegel já dizia enfaticamente, o seu formalismo subjetivista, que procura compartimentar a razão, de modo a compreender a estrutura do real através da estrutura do pensamento. Apesar disso, algumas de suas distinções podem ser úteis, como a que se dá entre a abstração conceitual e a materialidade das sensações.

É difícil definir cada um desses dois conceitos de modo a termos uma noção satisfatória. O que queremos é explicitar o que nós vamos usar como conteúdo semântico para eles. Consideraremos como sensação aquilo que é um dado sensível, tomado em sua materialidade como resultante do processamento neurológico de impulsos capazes de nos afetar, tanto de fora, quanto internamente. Embora isso seja uma idéia abstrata, posto que a sensação em sentido estritamente material nunca seja percebida pelo ser humano, em termos analíticos tem sua validade, uma vez que, embora tal materialidade seja sempre acompanhada de elementos de cunho mais abstrato, como conceitos, pré-disposições de toda ordem, formas de organizar previamente a estrutura de tais dados, etc., ela tem, também, que ser pensada como componente daquilo do qual se diz que estamos conscientes.

A dificuldade de referencialidade desse conceito é precisamente aquilo que nos obriga a pensar que seja necessária uma forma de mediação para isso considerado em sua materialidade. Uma dessas formas é a imagem. Consideramos uma imagem (Bild, em alemão) a totalidade, a unificação, dos dados sensíveis, sem que esteja em jogo, nesse momento, a interferência de conceitos para dar uma unidade abstratamente fundada para a sensação. Apesar de o ser humano que fala sempre dar uma enformação conceitual para aquilo que tem nos seus sentidos, o que dizer dos seres humanos que não possuíam nenhum conceito para aquilo que viam? – o que se diz dos próprios animais, que não têm nenhuma forma conceitual de perceber a realidade? É evidente que ambos têm que ser pensados como experimentando uma forma de unificar os dados sensíveis em uma 23 O advérbio “inicialmente” está colocado aqui para ressalvar o lugar da arte, em que a mímesis, segundo Adorno, como apontamos, toma um status bastante diferenciado, e que se caracteriza como, não apenas reflexiva, mas, também, crítica da racionalidade vigente na empiria. Além disso, o mito também é uma forma de conhecimento mimético e, como veremos, já poder ser qualificado como um saber.

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totalidade mais ou menos estável, de tal forma que possam se locomover, apanhar alimentos, distinguir sons, odores, etc. Se não houvesse nenhuma unidade para as sensações, como se tudo fosse massa disforme de sensações desconexas, múltiplas e sem nenhuma constância, dificilmente seria possível de se pensar a continuidade da vida animal ou do homem antes da criação dos primeiros vocábulos. Que um cão aja sempre de uma mesma forma em relação ao próprio dono, seja capaz de fixar elementos sensíveis para agir de forma padronizada, é indício forte de que ele tem que ser apto a formar blocos de dados sensíveis minimamente unitários para poder agir em relação às coisas.

Desse modo, damos o nome de imagem à conformação intuitiva das coisas independente da consideração da unidade conceitual. Ela possui algo das sensações, pois estas são sua matéria, algo que é imprescindível para que ela exista. Do conceito ela possui a unidade, a inteireza, que é característica própria do nível abstrato das idéias. Desse modo, a imagem é algo ambíguo: não se confunde com a materialidade tout court das sensações, pois já apresenta certa estruturação, mas ainda está ligada a elas, porque é algo ainda concreto; não se confunde com a unidade conceitual, pois tem sua característica de unicidade (toda imagem é somente considerada em sua produção atual nos sentidos ou na imaginação), mas está vinculada a ela, na medida em que já é um passo para a constituição do processo de identificação das coisas.

É preciso notar que esse conceito de imagem diz respeito a qualquer formação intuitiva, seja ela visual, auditiva, gustativa, etc. Embora a palavra “imagem” seja usada normalmente para a visão, poderíamos, a partir da definição acima, falar de uma imagem de algo formada através do paladar, de modo a podermos dizer da possibilidade de diferenciar o gosto do abacaxi do da laranja pelo fato de termos imagens gustativas diferentes desses elementos.

Embora, uma vez adquiridos os conceitos, toda imagem acabe vinculada, de uma forma ou de outra, a eles, ela pode ser entendida como estando situada em um âmbito com relativa autonomia, constituindo um âmbito próprio, específico. Essa autonomia, que, na experiência comum, não pode ser experimentada, toma força e consistência em vários momentos da relação do homem com o real. O que pretendemos pensar como parte dessa dialética da alteridade que vamos explicitar é em que consiste o papel da imagem como mediadora entre a identidade subjetiva e a exterioridade do mundo, representadas, em termos cognitivos, pelo conceito e pela sensação, respectivamente. Essa característica é que deverá ser pensada como estando na base do modo de comportamento mimético, que se dá precisamente devido ao espaço de transitividade imagética entre a matéria bruta da sensação e a abstração do conceito. Dado esse “campo” de atuação mimética, precisamos ver o que caracteriza os âmbitos concreto e abstrato.

3. Abstração como conceito antropológico

a) O conceito “abstração”

A origem etimológica de “abstração” é abstrahere, que significa propriamente retirar. É preciso investigar quando há tal retirada, o que é retirado e a partir de que ela é feita, além dos conceitos que se associam necessariamente a esse processo. Primeiramente, dizemos que o conceito de abstração está ligado ao de representação, ou seja, é esta que dizemos ser abstrata ou seu contrário, concreta. Não há abstração sem representação e vice-versa. Depois, que há graus de abstração, isto é, ser abstrato ou concreto não são determinações absolutas, mas relativas, pois algo pode ser dito concreto se comparado a X, mas abstrato se comparado a Y.

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Ilustremos essas noções com um exemplo. Tomemos um objeto simples como uma caneta. Se, para nos referirmos a ela, tomássemos ela própria, não haveria nenhuma abstração nisso, uma vez que não teríamos retirado nada do próprio objeto para nos referirmos a ele. Se, em vez disso, fizéssemos uma cópia absolutamente fiel (supondo isso como possível), com o mesmo tipo de matéria, as mesmas cor e forma, etc., aqui já haveria uma abstração mínima, uma vez que abstraímos a própria existência da caneta. Se fizermos uma outra cópia fiel, só que apenas constituída de uma projeção tridimensional, teríamos abstraído da matéria da caneta. Assim, a série de representações continuaria: foto a cores bidimensional, foto em preto e branco, desenho com linhas, esquema genérico e, por fim, a palavra “caneta”. A cada etapa, abstraiu-se cada vez mais. A primeira delas, não contendo nenhuma abstração, não é uma representação, sendo absolutamente concreta; a última, não contendo nada de sensível em relação ao objeto, é absolutamente abstrata.

Uma conseqüência importante que se tira dessa concepção é a de que, quanto mais abstrata é uma representação, mais distante, separada, está de seu objeto. O número é algo extremamente abstrato, porque se distancia radicalmente do âmbito sensível, uma vez que sua relação com esse se dá, não como sendo uma representação de algum objeto, mas como algo que se aplica a este. O número quatro não representa os pés da cadeira, apenas é aplicado neles para formar uma noção abstrata de quantidade específica desse caso, ao passo que o conceito “caneta” representa algo no mundo perceptível, embora não contenha nada de sensível desse objeto. Concretude, portanto, vincula-se à indistinção, à proximidade, enquanto que abstração, à distância, à diferença, à separação.

Isso diz respeito a algo que é de fundamental importância no processo de constituição e de desenvolvimento do pensamento: a abstração é marcada pela capacidade de estabelecer distinções, divisões, diferenças específicas. Ora, mas para marcar diferenças é preciso conceber semelhanças em um meio indiferenciado. A abstração é, assim, algo ambíguo: estabelece uma separação entre coisas na medida em que capta, apreende, semelhanças, conjuntos, unidades. O conceito “árvore”, por exemplo, marca as diferenças dessa classe de objetos em relação a todos os outros, ao mesmo tempo em que estipula as semelhanças entre os que caem sob tal significação. Tal capacidade de estabelecer distinções é, segundo Adorno, uma capacidade inerente à própria razão:

Ratio não é mera συναγογη , elevação dos fenômenos dispersos ao seu gênero. Ela exige, igualmente, a capacidade da diferenciação. Sem ela, a função sintética do pensamento, a unificação abstrativa, não seria possível: unificar o igual significa, necessariamente, diferenciá-lo do desigual. Mas este é o qualitativo; o pensamento que não o pensa é ele mesmo cindido e desigual consigo. (DN 53)

Além disso, quanto mais abstrata uma representação, mais amplo é seu leque de aplicações possíveis, ou seja, mais genérica ela é. No exemplo acima, quanto mais concreta era a representação, menor o número de entes que poderiam ser referidos através dela. No primeiro caso, em que o próprio objeto era usado para nos referirmos a ele, somente ele mesmo é que poderia ser alvo dessa “designação”. No segundo caso, qualquer ente poderia ser alvo da representação, mas com a extrema limitação de ter que possuir todos os elementos materiais e formais. Com o aumento da abstração, esse limite para o vínculo de referência é diminuído cada vez mais, até ser estipulado por mera convenção, arbitrariamente, como é o caso da palavra “mesa”. Mas, ainda assim, podemos ver que no caso do número, até mesmo essa limitação arbitrária deixa de existir, uma vez que a aplicação da idéia de quantidade é (virtualmente) infinita, pois, mantendo-se sua

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qualidade própria (a idéia de um quantum), não há limite concebível para qualquer ser, imaginário ou sensível, que não pudesse ser objeto de aplicação dessa idéia. 24

Dado que o conceito de representação é eminentemente relativo ao conhecimento, sendo este algo propriamente humano; dada a vinculação entre representar e abstrair, e dado o viés propriamente gnosiológico de nossa interpretação da Dialética do esclarecimento, vejamos como o conceito de abstração pode ser usado como determinante antropológico na genealogia do conhecimento e do próprio sujeito. b) A genealogia do humano na abstração

A nossa idéia é a de que o homo sapiens teve sua existência como espécie definida por uma separação, por uma abstração essencial, que se deu entre o ímpeto para agir e a sede do poder que direciona a ação. No animal, o instinto contém tanto a determinação que leva ao movimento, quanto o modo como essa ação será realizada. Podemos dizer, metaforicamente, que o instinto contém, tanto a matéria, quanto a forma da ação, ou seja, tanto o impulso para agir, quanto a determinação de como fazê-lo.25 Não há distinção entre o que o animal processa do mundo em termos cerebrais para se pôr a agir e o ímpeto para praticar a ação, ou seja, há uma indistinção entre o aspecto cognitivo e de movimento, pois o instinto abarca ambas as determinações26. O mundo do animal já está enformado pela natureza, de modo que não há brechas por onde ele possa, de alguma maneira, separar-se da realidade circundante. Uma vez que não há diferença entre o âmbito cognitivo e o de ação, não há entre o animal e o mundo. Somente a partir de alguma forma de diferenciação interna, é que poderia haver uma externa.

O ser humano, ao contrário, não recebeu da natureza a forma como satisfará o ímpeto que o move. Esse ímpeto, que, em alemão, é denominado Trieb, é, por assim dizer, indeterminado, indefinido. O homem, desde a feliz mutação genética que o separou do âmbito da natureza, passou a experienciar uma abstração entre o núcleo impulsionador para a ação e o núcleo que “gerencia” esse impulso.

Os animais, de modo semelhante aos doentes regressivos que sofrem de lesões cerebrais, só conhecem objetos de ação: percepção, ardil, alimento são uma e a mesma coisa sob a coação, que pesa mais sobre os que não são sujeitos do que sobre os sujeitos. O ardil deve ter-se independentizado para que os seres individuais conquistassem essa distância em relação ao alimento, cujo ‘télos’ seria o fim da dominação na qual se perpetua a história natural.27

O ser humano, portanto, não possuiria instinto, mas, sim, pulsão, que deixa em aberto se e como alguma ação será feita. Não há uma acoplagem entre o ímpeto de agir e o saber que leva à decisão que determinará se e como agir. Desse modo, o elemento pulsional é algo “estranho” à consciência, não se confunde com ela. Ute Guzzoni

24 Essa aplicabilidade tem algumas restrições, como é o caso de não se poder usar a idéia de quantificação em relação ao próprio número, pois não se trata de um ser. Não haveria sentido em falar de cinco “quatros”, a não ser que “quatro” se referisse à representação, ao algarismo, e não ao número. 25 Seria preciso fazer aqui uma série de observações, como a de que o instinto é algo flexível em alguma medida, pois o animal pode condicionar-se a fazer alguma coisa de acordo com as condições ambientais a que está sujeito. Dessa flexibilidade depende, por exemplo, o adestramento. Pode-se dizer que quanto mais evoluído é um animal na escala biológica, mais flexível é o instinto, e mais facilmente o animal se condiciona a novas circunstâncias. Mas não nos deteremos nessas observações por não serem importantes para o desenvolvimento da argumentação. 26 Cf. Henri Bergson. “A evolução criadora”, Cap. II. In: Bergson. Tradução de Nathanael Caxeiro. São Paulo: Abril, 1984, pp.177 ss. 27 Theodor W. Adorno. “Notas sobre teoria e práxis”. In: Palavras e sinais. Tradução de Maria Helena Ruschel. Petrópolis: Vozes, 1995, p.213.

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refere-se a Trieb como sendo algo a que estamos sujeitos, não algo pelo qual nos esforçamos.

A expressão Trieb significa — em contraste com ‘Streben’28, por exemplo — não primeiramente que nós nos impelimos ou nos lançamos para algum lugar ou para algum fim, mas, sim, que nós somos impulsionados, que algo nos acomete. (…) As pulsões vêm ‘de algum modo’ de nossa natureza, e, não, precisamente por nós.29

O surgimento da nossa espécie no planeta é marcado essencialmente por uma abstração: o que decide pela ação está separado daquilo que impulsiona a ela. O ser humano é marcado, desde seu mais remoto instante na terra, por um alheamento em relação a si mesmo e, por conseguinte, em relação ao mundo. Naturalmente, essa abstração, em seu início, era por demais rudimentar, fraca, mas não desprezível, pois, embora não perceptível, experimentável, de modo evidente, como nos dias de hoje, pôde desenvolver-se indefinidamente. Podemos dizer que toda a história do desenvolvimento da racionalidade da espécie humana é contada pelo modo como essa separação foi sendo reforçada, modificada e conduzida. Nesse percurso, há que se considerar aquilo que deu o sentido de todas as formas de conhecimento, isto é, cobrir essa separação que, em última instância, é a que funda a identidade do sujeito e do objeto:

A abstração, cuja reificação na história do nominalismo desde a crítica aristotélica a Platão é imputada ao sujeito como seu erro, é, ela própria, o princípio através do qual o sujeito se torna, em geral, um sujeito, é sua própria essência. Por isso o recurso àquilo que ele não é, ao exterior, só pode parecer-lhe violento. (DN 182)

Ora, tal “violência” não é algo apenas da ordem cognitiva, como essa passagem da Dialética negativa enfatiza nesse momento do texto, mas tem sua raiz na prática de vida de todos os homens, que percebiam sua distância para com o mundo. A primeira forma de se recobrir esse “abismo” que se insinuava foi algo que remonta à origem animal do homo sapiens: as reações orgânicas para sobreviver devido ao sentimento da alteridade ameaçadora. 4. Assimilação imagética do real: mimetismo e mímesis

a) Alteridade, medo e similitude: o mimetismo

Na relação entre o ser animal e seu ambiente, a ameaça é aquilo que agudiza a diferença, e o que surge como marca interna dessa percepção é o medo. Pode-se supor que os animais irracionais tenham essa sensação; mas, como a percepção da ameaça é algo inseparável do ímpeto de fugir, essa “diferença”, essa alteridade, de que falamos é algo um tanto equívoco, uma projeção do que ocorre no âmbito humano. Nesse último, sim, temos como falar da ênfase da diferença entre o ser e o mundo no medo de perder a vida. Isso fez com que esse sentimento fosse um fator de capital importância para a emergência e sedimentação do pensar:

o medo constitui um motivo subjetivo mais crucial da racionalidade objetiva. (…) No curso da história, esse medo tornou-se uma segunda natureza; não é por nada que a palavra ‘existência’, não contaminada pela filosofia, significa igualmente o fato de estar vivo e a possibilidade de

28 Streben: esforçar, em alemão. 29 U. Guzzoni, Über Natur, Freiburg, 1995, p.275. Apud Soung-Suk Nho, Die Sebstkritik und Retung der Aufklärung, Frankfurt am Main: Peter Lang, 2000, p.53.

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autopreservação no processo econômico.30

O medo é um sentimento fundamental, em que o alheio, o diferente, ganha expressão viva, intensa, principalmente pelo fato de que, uma vez não recebendo resistência, provoca dor, que, no extremo, coincide com a morte. Nos animais, dado que a sensação de medo não se distingue do impulso para escapar do perigo, a “alteridade” radical da ameaça, na verdade, não existe. Essa idéia talvez soe estranha, uma vez que, em nossa experiência, o medo parece apontar indubitavelmente para a diferença, para a distinção. Mas não é bem esse o caso, pois, uma vez que o outro recebe reconhecimento claro, ou seja, torna-se eloqüente, o isolamento do ego desfaz-se, não por “sim-patia”, mas, sim, por “anti-patia”. A estratégia de “identificação com o agressor”, difundida na psicanálise, por exemplo, mostra como a ameaça e a identidade não são totalmente excludentes. Mas o entrelaçamento de identidade e de diferença — marca expressiva, evidente, de todo o comportamento mimético — pode ser visto de modo bem enfático nos animais: a atitude de assemelhar-se ao meio ambiente para escapar do perigo. O que vários insetos e pequenos animais fazem — fingirem-se de mortos —, sobreviveu nas espécies mais evoluídas e até mesmo no ser humano como os movimentos incontrolados de susto:

Eles reproduzem momentos da proto-história biológica: sinais de perigo cujo ruído fazia os cabelos se eriçarem e o coração cessar de bater. (…) Determinados órgãos escapam de novo ao domínio do sujeito; independentes, obedecem a estímulos biológicos fundamentais. O ego que se apreende em reações como as contrações da pele, dos músculos e dos membros não tem um domínio total delas. Em certos instantes, essas reações efetuam uma assimilação à imóvel natureza ambiente. (…) A proteção pelo susto é uma forma do mim etismo. Essas reações de contração no homem são esquemas arcaicos da autoconservação: a vida paga o tributo de sua sobrevivência assimilando-se ao que é morto. (DA 189/168)

O mimetismo [Mimikry] é uma reação fisiológica, vital, orgânica, em que o organismo, diante de alguma necessidade premente, tanto de fuga a uma ameaça, quanto de obtenção de alimento, produz movimentos, alterações de sua conformação física, emocional, etc., de tal modo que a continuidade da vida se vê facilitada através da similitude com o meio ambiente. O que queremos, aqui, é marcar a enorme diferença que tem, em termos de importância, esse ato de produção da semelhança na situação de medo perante a alteridade ameaçadora nos animais e no ser humano. Naqueles, uma vez fechados em um todo indiviso composto por impulsos vitais para ação previamente enformados por natureza em relação à forma de agir, o produto “similitude” não representa propriamente algo especial. No homem, ao contrário, dada a separação entre os âmbitos cognitivo e de ação, esse “terceiro termo”, situado entre o eu e o mundo, que é a semelhança produzida, pôde destacar-se de modo essencial31. O ato de produzir tal similitude, confundindo-se com o produto mesmo, ganhou um status sui generis, uma vez que não se confundia nem com o produtor, nem com o mundo. A nossa idéia, não contida na Dialética do

30 Theodor W. Adorno. Zum Verhältnis von Soziologie und Psychologie. In: Soziologische Scriften II. Gesammelte Werke, vol. 8. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1972, pp.46-7. Citado por Fredric Jameson. O marxismo tardio. Adorno, ou a persistência da dialética. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Unesp, 1996, p.133. 31 Nesse argumento, vale a pena chamar à atenção para a origem da palavra “produzir”, que deriva do latim producere, constituída do radical pro-, que designa a direção para a frente, e o verbo ducere, que significa levar, mover, e que resultou nos verbos conduzir, seduzir, induzir, etc. A produção seria, assim, o resultado de um movimento de trazer à frente de todos alguma coisa.

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esclarecimento, é que tal âmbito acabou hipostasiando-se como forma primeva de pensamento32.

Kipfer também se refere à origem do conhecimento no medo, embora não faça nenhuma alusão à representação mimética como suporte para o desenvolvimento do pensar, e apesar de que, também, esteja se referindo ao mito, que, mesmo relacionando-se diretamente à mímesis, está em um nível de elaboração cognitiva mais elevado:

A experiência do medo na unidade indiferente do estado primordial permanece o ponto de partida para a diferenciação cognitiva, que, com a gênese fundadora de identidade de subjetividade, tem que produzir, de modo igualmente originário, as categorias para a estruturação do mundo.33

Problemática nessa passagem de Kipfer é a idéia de “unidade indiferente do estado primordial”. Como veremos em detalhes ao longo desse item, essa noção, se fosse aplicada ao ser humano, faria com que não houvesse ligação genealógica do medo para o conhecimento. Para haver tal vínculo, seria necessário existir, pelo menos de forma embrionária, o que virá a ser o espaço da consciência.

Na criança, por exemplo, a prefiguração desse espaço evidentemente existe, o que faz com que seja possível falarmos da genealogia do pensamento a partir da representação mimética em relação a ela, embora não ligada direta- ou necessariamente ao sentimento de medo. Muito do que falamos nesse capítulo poderia ser transposto, mutatis mutandis, para a experiência de conformação da consciência da criança atualmente em nosso meio. Essa transposição está justificada pelo fato de o ser humano, em sua fase inicial de vida, não ter à sua disposição um arsenal de conceitos e de noções abstratas para identificar o mundo, de forma semelhante aos adultos de épocas em que a linguagem não havia se desenvolvido plenamente ou não possuía o caráter abstrato que passou a ter no ocidente helênico. A diferença fundamental da formação arcaica da consciência e das formas primitivas de conhecimento mimético (preanimismo, magia e mito) em relação à criança reside em que esta última rapidamente é ingressada em um meio conceitualmente instituído, de modo a aprender a reprimir seu comportamento mimético em prol de uma assimilação abstrata da realidade. Aquilo que, na história da humanidade, demorou milhares de anos a acontecer, chegando a se dar de modo razoavelmente desenvolvido somente a partir da época da revolução burguesa, ocorre de modo acelerado na formação infantil. Considerando os primeiros seres humanos, essa diferença com a criança toma contornos agudos, uma vez que eles não chegaram a possuir, em nenhum momento de suas vidas, um aparato conceitual para enxergar a realidade — o que já acontecia, mesmo que de modo fortemente imagético, no mito, por exemplo. Em relação a eles, a questão que se coloca é: como é que puderam passar de um modo de comportamento quase que exclusivamente fi siológico de se relacionar com a natureza para uma forma de assimilação cognitiva mais elaborada?

32 “Hipóstase”: do grego hypos, debaixo, sub-, e histanai, ficar, permanecer. Essa palavra tem um uso médico específico que é a concentração de alguma substância, mais propriamente o sangue, devido a uma sedimentação durante longo repouso. Em Adorno, ela normalmente significa a substancialização de alguma idéia ou conceito através de uma consideração não-dialética, tomando-a como absoluta, quando, na verdade, seria condicionada, limitada, por várias coisas, das quais receberia alguma determinação para ser o que é. Na nossa frase, entretanto, ela não contém esse elemento crítico presente em Adorno, indica mais propriamente apenas o resultado da sedimentação de uma forma de relacionar-se com o mundo, que acaba se transmutando em uma de outro jaez. 33 Daniel Kipfer. Individualität nach Adorno. Tübingen: Francke, 1999, p.90.

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b) Da semelhança à consciência da diferença: mímesis

Essa passagem de um estágio a outro situa-nos na diferença entre os conceitos de mimetismo e de mímesis. Segundo W. Lüdke, os comentadores, em geral, dedicaram-se bem a explicar o conceito de mímesis na Teoria estética e na Dialética do esclarecimento, mas não prestaram atenção à sua diferença em relação ao mimetismo34. Dezoito anos depois, em 1999, Daniel Kipfer ainda afirma a mesma coisa, dizendo que a posição de Lüdke, juntamente com a de Habermas, é exceção a essa regra35. Segundo Lüdke, “a adaptação coagida pelo poder superior da natureza, o fazer-se igual, transforma-se de mimetismo em mímesis quando ela, como imitação, efetivada de modo consciente e intencional, leva à duplicação da natureza”36. Ou seja, o mimetismo seria algo realizado sem a mediação da consciência, de modo automatizado, como um ato reflexo ou, pelo menos, sem nenhum componente de ordem decisória, o que faria com que tanto os animais irracionais quanto o homem possam praticá-lo, na medida em que, naqueles, todas as ações seriam a-conscientes e, neste, algumas delas o seriam, como os movimentos de susto, a que já aludimos acima. A ênfase desse comentador é a de que a mímesis é caracterizada pelo aumento da intervenção do aspecto consciente. O mimetismo tornar-se-ia mímesis, quando a submissão à natureza torna -se a técnica da dominação desta.37 Jay diz que isso é verdadeiro, segundo lhe parece, “somente se o impulso construtivo dessa duplicação não é entendido como sobrepujando [outweigh] o impulso assimilativo”38, ou seja, não se deveria diminuir a importância da questão da semelhança em prol da ênfase no aspecto de sua produção.

Por nossa parte, concordamos, tanto com a concepção de Lüdke, quanto, embora com reservas, com a observação de Jay, mas consideramos ambas as idéias por demais vagas, genéricas, pois seria algo realmente importante determinar como é que se dá a relação entre os termos envolvidos: mimetismo, similitude, imagem, produção, mímesis e consciência. Nessa relação, o que nos interessa, como objetivo último, é de mostrar como o conhecimento (magia, mito, metafísica, etc.) pôde consolidar-se a partir do exercício da produção da similitude, dando origem à consciência, mesmo que rudimentar, do ego, fazendo com que o mimetismo se transformasse em um meio de apropriação imagética consciente da realidade como mímesis.

Em todos os nossos argumentos que se seguem, todas as referências à formação do ego devem ser rigorosamente tomadas como indicando apenas e tão somente o caminho que estava sendo aberto para aquilo que, milhares de anos após a evolução da espécie humana viria a ser considerado como indivíduo em sentido pleno ou razoavelmente desenvolvido. Quando falamos da formação do ego na mímesis estaremos sempre nos referindo a algo que seria uma proto-história da constituição do que virá a ser a individualidade. Seria um anacronismo grosseiro pensarmos que houvesse qualquer coisa parecida com a identidade individual, tal como a podemos perceber a partir da idade moderna. Essa observação está sendo feita de modo tão enfático, para que não precisemos sobrecarregar o texto com ressalvas a todo instante. O que queremos 34 W. Martin Lüdke, Anmerkungen zu einer “Logik des Zerfalls”: Adorno-Beckett . Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1981, p.57. 35 Daniel Kipfer. Individualität nach Adorno. Tübingen: Francke, 1999, p.109. 36 W. Martin Lüdke, op. cit ., p.58. 37 Cf. W. Martin Lüdke, op. cit ., p.58. 38 Martin Jay, Mimesis and Mimetology: Adorno and Lacoue-Labarthe. In: HUHN, Tom & ZUIDERVAART (Org). The semblance of subjectivity . Cambridge: MIT Press, 1997, p.48; nota n.º 18.

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perceber, apesar de todas essas indicações, entretanto, é que, por mais distante que a origem mimética esteja do sujeito contemporâneo, ela é a trilha primeva pela qual a espécie humana passou para chegar onde chegou. Se não tivesse havido, na pré-história, absolutamente nada do que podemos experimentar como sendo a consciência individual, não conseguiríamos explicar como essa pôde se formar. A tese que sustentamos é que essa consciência embrionária pode ser estudada a partir da mímesis, porque a própria mímesis já era uma forma de conhecimento — embora não conceitual —, que é o que sempre foi a única forma de constituir o espaço da consciência39.

Para considerarmos essa origem do conhecimento, do pensamento mesmo, é necessário levar em conta algo bastante rudimentar em termos de presença corporal, orgânica do ser humano no mundo: o papel da ameaça de morte. A nossa tese é a de que o medo fortaleceu a sede do pensamento, foi responsável por sua cristalização, na medida em que, nas situações de perigo, a premência de fuga, de ação, acabou fomentando o exercício de atitudes reiteradas de defesa. Como a natureza não forneceu ao homem a forma com a qual se defenderia, foi-lhe necessário, desde sua emergência como homo sapiens, aprender como agir em determinadas circunstâncias. Tal aprendizado, tanto no caso do pavor diante de uma ameaça, como quando diante da possibilidade de morte devido à necessidade de comida, ganha uma importância crucial, uma vez que, no medo, a questão da diferença fundante, essencial, entre o eu e o mundo é colocada de modo radical, como falamos acima. A percepção corporal continuada dessa diferença acabou gerando um início tímido, bastante precário, da consciência da relação entre esses três elementos: o eu, o agressor e a ação que mantém a vida. Dada a inexistência do elemento propriamente conceitual, toda a ação do homem seria regida pelo princípio da imitação, pois não haveria outra forma de aprendizado. Deste modo, a representação mimética40 representaria o suporte material, físico, para a constituição do pensamento.

Ora, é perfeitamente compreensível que, na ausência total de conceitos, o elemento de assimilação da realidade funcionasse como um elo no qual o eu e o mundo não se diferenciassem. Nos animais, essa indistinção não coloca um elemento novo na já existente interação com o meio. A nossa tese, não explicitada na Dialética do esclarecimento, é que, no homem, essa indistinção configura uma característica da percepção como um todo, que é o aspecto projetivo:

Em certo sentido, todo perceber é projetar. A projeção das impressões dos sentidos é um legado de nossa pré-história animal, um mecanismo para fins de proteção e para obtenção de comida, o prolongamento da combatividade com que as espécies animais superiores reagiam ao movimento, com prazer ou com desprazer e independentemente da intenção do objeto. A projeção está automatizada nos homens, assim como as outras funções de ataque e de proteção, que se tornaram reflexos. (DA 196-7/174-5; tradução modificada)41

39 Note-se que a própria palavra “consciência” deriva do prefixo latino co- (junto, com) e do verbo scire (saber), ou seja, a consciência, em termos etimológicos, seria aquilo que acompanha o conhecimento como sua condição, ou seu lugar de realização. 40 Μíµεσι ς, em grego, é normalmente traduzido por imitação, por cópia, por reprodução, por representação. Não precisamos entrar em pormenores sobre esse elemento definitório do conceito, uma vez que todo esse nosso capítulo foi escrito precisamente para mostrar o que está envolvido nele. Entretanto, podemos tomar essas traduções como a base semântica mais própria para nossa estratégia argumentativa. O que elas têm de impreciso ou de equívoco cremos ser corrigido pela própria argumentação. 41 Seria difícil conceber que os animais projetassem algo na realidade, quando não há algo como um eu — que seria a fonte do que é projetado —, nem sequer em estágio embrionário. Ao dizer que a projeção “é um legado de nossa pré-história animal”, Adorno e Horkheimer, segundo pensamos, incorreriam em um qui pro quo, pois não se deveria dizer que ela existia no âmbito animal, mas, sim, que, no homem, ela corresponde a essa integração total entre animal e meio circundante, em que esse reage ao perigo ou realiza a caça através de adaptação orgânica ao outro ou através

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A percepção depende de um elemento ativo por parte do sujeito: “para refletir a coisa tal como ela é, o sujeito deve devolver-lhe mais do que dela recebe” (DA 198/176). A idéia que advogamos, que não é explicitada por Adorno e por Horkheimer, é a de que a projeção seria proveniente da relação mimética com o mundo, porque esta envolve nitidamente um elemento de pro-dução de semelhança, em que aquele que a realiza encontra-se cindido no âmbito cognitivo e de ação, motivo pelo qual essa produção arrastaria para si — e, por extensão, para a coisa percebida — o que é vivido no interior do sujeito. Sem essa cisão interna do indivíduo — ou seja, no animal irracional — não haveria como falarmos da assimilação imitativa como pro-dução, pois em que consistiria essa exteriorização de algo através de um movimento? – de onde para onde, se não há distinção entre tais “lugares”? A questão mais importante, entretanto, é a de como se constituiu, em termos proto-históricos, a identidade do indivíduo, e, também, se seria possível falar de algo do objeto que contribui para tal constituição e o que, do sujeito, também o faz. A seguinte passagem da Dialética do esclarecimento fala sobre isso:

O sujeito recria o mundo fora dele a partir dos vestígios que o mundo deixa em seus sentidos: a unidade da coisa em suas múltiplas propriedades e estados; e constitui desse modo retroativamente o ego, aprendendo a conferir uma unidade sintética, não apenas às impressões externas, mas, também, às impressões internas que se separaram pouco a pouco daquelas. O ego idêntico é o produto constante mais tardio da projeção. (DA 198/176)

É preciso explicar, aqui, o que significa a “unidade sintética” praticada pelo sujeito. Ela estaria ligada à capacidade adquirida lentamente pelo homem de agregar elementos, em princípio pouco semelhantes, a um denominador comum. A idéia de que tal unidade não seria simplesmente recebida através da repetição de impressões sensíveis, mas, sim, formada por aglutinação de elementos um tanto diversos, qualifica-a como uma sín-tese, ou seja, como justa-posição42. O elemento tardio de que falam Adorno e Horkheimer residiria no fato de que, de síntese em síntese, o sujeito acabou formando a mais ampla de todas: a de que, em todos os elementos que vê, experimenta, sente, etc., algo permaneceu constante, apesar de todas as impressões — externas e internas — poderem ter se modificado o tempo todo, ou seja, o próprio ego.

Fica por esclarecer, ainda, algo de suma importância: como, ou a partir de que, o sujeito foi sendo capaz de produzir tais sínteses. Isso tem, obviamente, sua dependência em relação ao desenvolvimento biológico do ser humano, como dizem os autores: “em um processo que só pôde se realizar historicamente com as forças desenvolvidas da

de reações as mais diversas de modo prospectivo, com antecipação frente a uma ameaça. Porém, não o faz por projeção, mas, sim, por responder ao instinto que, diante de características físicas determinadas, incita o animal a agir de modo específico. A expressão “independente da intenção do objeto” mostra a transferência indevida da dimensão humana do aspecto projetivo para os animais, pois em nenhum momento está em jogo para o animal que ele leve em conta tal intenção alheia para determinar sua ação, pois não se trata, para ele, evidentemente, de interpretar o que poderia estar “por trás” de uma aparência de agressão ou de “amistosidade”. A “leitura” que o animal faz do mundo só pode ser imediata, ou seja, vinculada diretamente a dados sensíveis, processados de acordo com o que seu impulso motor o leva a agir. Não se trata de dizer que o animal projete em alguma coisa algo da ordem de uma ameaça, pois, se ele foge, é porque algo fisicamente determinado no objeto o levou a isso. E isso sempre acontece “independente da intenção do objeto”. – Embora não consideremos decisivo, cremos que o próprio Adorno mudou, na Dialética negativa, essa idéia de que os animais projetem: “Os animais de presa são famélicos; o salto sobre a vítima é difícil e, muitas vezes, perigoso, para arriscar-se, o animal precisa de impulsos adicionais. Estes se fundem ao mal-estar da fome como fúria contra a presa e esta expressão, por sua vez, cumpre a finalidade de aterrorizar e paralisar a vítima. Com o avanço do processo de humanização, isto se racionaliza como projeção . O animal rationale, com seu apetite contra o adversário, já feliz possuidor de um super-ego, precisa encontrar uma razão. (…) O ser vivo que se quer devorar tem, necessariamente, que ser mau. Tal esquema antropológico se deixa ver até na teoria do conhecimento” (ND 33 – grifos nossos; tradução de Newton Ramos-de-Oliveira, inédita) 42 “Síntese”: do grego syn- (junto), e tithenai (colocar).

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constituição fisiológica humana, o ego idêntico desenvolveu-se simultaneamente como função unitária e excêntrica” (DA 198/176 — tradução própria), mas, naturalmente, não pode ser relegado apenas a um componente desta ordem. A nossa idéia, não explicitada por Adorno e por Horkheimer, é a de que foi a partir da repetição infindável do exercício de assimilação imagética, da produção do medium da representação mimética, que se começaram a fixar os primeiros elementos constituidores da identidade, mesmo que precária, do ego.

Para explicar essa nossa tese, seria necessário distinguir, na passagem acima, a unidade das impressões externas e internas. Inicialmente, vemos que ambas têm a ver com a noção de semelhança, pois relacionam-se à unidade entre coisas; mas a primeira, embora os autores digam ser algo que o sujeito “devolve à coisa mais do que dela recebe”, é algo que tem um viés mais propriamente receptivo, de capacidade de ser afetado, de sensibilidade, enquanto a outra é marcada mais propriamente pelo caráter produtivo, de realização.

O processo de assemelhar-se ao meio ambiente, a adaptação orgânica ao outro, uma vez que se supõe a distinção incipiente entre o aspecto cognitivo e prático no ser humano, somente se realizou como um processo de efetivação a partir da consideração dos momentos de ordem interna como material que deveria ser usado, “manipulado”, digerido, de forma a se ter, como resultado final, o produto desejado, que é a forma de ação que imita alguma outra coisa. No ser humano, desprovido da indiferenciação do instinto, a imitação tornou-se um télos, uma meta a ser alcançada, não já presente. Entre o ímpeto de imitar uma imagem e o resultado final da produção da representação mimética abriu-se um fosso, que teve de ser recoberto por uma atividade “introspectiva” e auto-operatória do sujeito. O olhar dirigido para dentro do eu, a atenção para si mesmo, tendo como objetivo não-refletido a conformação dos componentes internos de modo a constituírem uma unidade baseada na semelhança com o externo, ensinou lentamente ao ego a saber operar com suas impressões e impulsos internos43, e, a partir daí, pouco a pouco, a perceber-se como a sede de um poder de “gerenciamento” em relação a elas. Vê-se, então, como é importante que se tome como ponto de partida a distinção entre as esferas cognitiva e de ação no ser humano. Sem se considerar que o saber está abstraído do impulso para agir, essa produção da semelhança não poderia levar à conformação do ego, pois isso somente pode se dar na medida em que esse ímpeto de assemelhar-se ao outro está imbricado na auto-percepção como um poder de lidar com algo dentro dele como sendo, ao mesmo tempo, minimamente alheio a ele como consciência. Enquanto na produção da unidade das impressões externas o sujeito exerce um papel ativo, mas, de certa forma ou totalmente, inconsciente, na produção da unidade das impressões internas esse “ativismo” toma contornos importantíssimos, uma vez que, realizado na premência da defesa ou da caça — em ambos os casos fundado no sentimento de medo pela morte —, gerou muito lentamente a consciência da primazia e da premência do poder de unificação das impressões a favor da continuidade da vida.

Desse modo, o surgimento precário da identidade do ego é algo que resulta de uma atividade prática dirigida por um conhecimento que dela se distingue. Mas esse conhecimento teve sua identidade como aspecto consciente favorecida pelo fato de que o

43 É bom que se note, aqui, que evidenciamos o elemento pulsional como um dos que constituem o âmbito interno, sendo que ele não é mencionado por Adorno e por Horkheimer, que, nesse ponto do texto, estão com sua atenção voltada para o aspecto propriamente gnosiológico da formação do ego, embora falem também do aspecto mimético, de assimilação ao outro. No nosso caso, é importante salientar aquele elemento, uma vez que consideramos a origem prática do ego.

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produto final desse “comando” em relação às impressões e impulsos internos cristalizava-se em uma unidade que, no caso de seres humanos ainda desprovidos de conceitos, era meramente em relação à forma física. A idéia que defendemos é a de que não é algo extrínseco à formação do ego o fato de o seu produto dever ter uma unidade em si mesmo. Mais ainda: dizemos que a identidade do ego somente se constituiu como um poder unitário que dispõe dos componentes internos porque o resultado do uso de tal poder também possuía uma identidade, que era a unidade formal da ação que imitava algo. Em outras palavras, a identidade do ego é mediada pela identidade de seu produto. Dada essa mediação, é preciso considerar mais de perto, como algo razoavelmente autônomo, isso que propiciou a formação do eu. Entre a multiplicidade das coisas lá fora e o ego que se formava, a unidade de suas ações imitativas contém um peso próprio, e é a partir dessa relativa autonomia que podemos ler como essa representação pôde dar um “preenchimento” total, pleno, ao poder de manipulação das impressões e dos impulsos internos.

Antes de continuar, há que se ter claro o seguinte: o sujeito encontra-se, nos primórdios da formação da consciência a partir da representação mimética, totalmente mediado pela configuração da imagem. Isso significa dizer que, embora haja, de forma incipiente, um delineamento do que virá a ser o espaço da consciência, ele se encontra tomado, ou saturado, pela práxis de constituição da unidade da similitude, de tal forma que poderíamos falar de uma radicalização hiperbólica da noção fenomenológica de que toda consciência é consciência de…, sendo o caso de dizer que toda consciência é consciência em… Ou, usando uma outra noção filosófica como metáfora — o ato ilocucionário de Austin, no qual, ao dizer alguma coisa, queremos produzir um sentido —, diríamos que a consciência, em sua origem mimética, é plenamente “ilocucionária”, no sentido de que é somente no medium da imagem duplicada que ela se efetiva.

“Efetivação” é, aqui, a melhor palavra para expressar esse caráter “ilocucionário”, uma vez que o que move o ser humano a alcançar a condição de ser consciente é algo da ordem da prática, da ação. Aquilo que mostra os rudimentos da separação do homem com o mundo é algo que indica como ele é radicalmente mediado por aquilo a que ele se refere. Aqui ocorreria o que Adorno e Horkheimer chamam de uma “unidade pré-conceitual de percepção e de objeto [Gegenstand]” (DA 198/176), na medida em que não se pode distinguir, na representação imagética, o que seria ob- e subjetivo, ligando-se materialmente a ambos, podendo ser considerada mais propriamente como um campo de forças atuantes em um meio razoavelmente indiferenciado quanto à origem destas. Essa ambivalência (ou anfibolia — para usar um termo kantiano da Crítica da razão pura) da imagem pode ser mais claramente compreendida, se tivermos em mente que a representação mimética não é uma duplicação apenas do objeto, mas, também, do próprio sujeito. O ser humano vê-se integralmente refletido no produto de sua atividade; esta não é algo externo a ele, fazendo parte de sua própria autoconsciência, ou mais, como dissemos, pois afirmamos que é somente como produto subjetivo que a consciência pode existir como valor agregado intimamente ao substrato físico da imagem produzida. O aspecto construtivo dessa imagem, que Martin Jay diz que não deve ser pensado como sobrepujando o aspecto assimilativo na mímesis, é um exercício da produção de uma assimilação do próprio sujeito. Ou seja, o ato mesmo de produzir uma semelhança com o objeto é, para o ser humano, uma duplicação de si mesmo. Nesse sentido, não haveria como se falar de uma supremacia para o aspecto construtivo em detrimento do fator assimilativo, uma vez que o primeiro também deve ser pensado como duplicação. Cremos que a inobservância desse aspecto de duplicação do próprio sujeito é uma fonte importante para a incompreensão geral em relação ao conceito de mímesis em Adorno.

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Essa dupla representação na imagem mostra algo fundamental na assimilação imagética do mundo: o sujeito não se separa do objeto. Dado que a consciência somente é o que é devido a uma duplicidade do mundo, ela, de alguma maneira, se perde na própria execução do duplo da realidade. Somente com a unificação conceitual do sujeito é que se poderá falar de uma identidade pessoal minimamente desenvolvida, dadas as possibilidades infindáveis da abstração conceitual se desenvolver. A unidade imagética, por seu turno, é ainda por demais concreta, possuindo, de acordo com o que falamos no item anterior, uma indiferenciação, uma proximidade com o que é representado, de tal modo que o poder de representar, seu produto e o que é representado estão íntima e profundamente entrelaçados.

O entrelaçamento entre sujeito e objeto pode ser expresso, também, com a idéia de unicidade da imagem. Imitar corporalmente o movimento de uma fera, ou fazer uma dança que se assemelhe à chuva, ou assumir uma aparência enlouquecida de um demônio, etc., são modos de o sujeito relacionar-se aqui e agora com aquilo que é representado. A mímesis é uma relação concreta com o mundo, uma vez que diz respeito a semelhanças e diferenças específicas entre os dois. O que está sendo construído, muito lentamente, através dela, é o distanciamento progressivo entre sujeito e objeto, pois, como vimos, se no mimetismo a relação do homem com o mundo é essencialmente orgânica, com o passar do tempo já se percebe que começa a haver um processo de cristalização do meio “similitude” como mediação. Na mímesis, o sujeito duplica a realidade como meio de começar a se separar dela. Mas esse construto ainda se dá em um meio por demais concreto. O sujeito está ainda adstrito à materialidade do meio de que dispõe para assimilar o mundo, o que mostra a ausência de distanciamento abstrato, de modo que se pudesse constituir a identidade subjetiva em face a uma unidade do objeto.

A importância disso se deve ao fato de conter o elemento que nos possibilita explicar outro caráter presente no conceito de mímesis, que é o de expressão. Martin Jay observa que o conceito de mímesis em Adorno retoma um uso grego pré-platônico do termo, pois, “nos hinos delianos de Píndaro, mímesis significava a expressão de estados interiores em rituais de culto, em vez de uma reprodução da realidade externa, rituais que incluíam música, dança e mímica”.44 O que nos interessa é ver como a produção da similitude com o meio ambiente é algo expressivo em um duplo sentido, não apenas nesse apontado por Jay.

O primeiro sentido de expressão, que é o que é colocado por Adorno e por Horkheimer, não é propriamente o de transmitir “estados interiores”, mas, sim, o de suspender os limites do ego e de se imiscuir no alheio.

De todos os sentidos, o ato de cheirar — que se deixa atrair sem objetualizar — é o testemunho mais evidente da ânsia de se perder no outro e de com ele se identificar. Por isso o cheiro, tanto como percepção, quanto como percebido (ambos se identificam no ato), é mais expressivo do que os outros sentidos. Ao vermos, permanecemos quem somos, ao cheirarmos, deixamo-nos absorver. (DA 193/171-2 – tradução modificada)

De acordo com nossos argumentos anteriores, como poderíamos explicar essa comparação entre o olfato e a visão? O primeiro forneceria uma representação do mundo que contém muito pouca unidade, pouca “inteireza”, dado que os limites da

44 Martin Jay, Mimesis and Mimetology: Adorno and Lacoue-Labarthe. In: HUHN, Tom & ZUIDERVAART (Org). The semblance of subjectivity. Cambridge: MIT Press, 1997, p.32. Essa colocação de Jay, além de incompleta — como veremos —, mostra-nos o que acontece com os comentários em geral sobre o conceito de mímesis em Adorno: mencionam um determinado aspecto, falam sobre ele, estabelecem relações com outros conceitos, mas não se arriscam a estabelecer a dinâmica conceitualmente delineada em sua estruturação.

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percepção olfativa, de todos os sentidos, são os mais imprecisos, mais evanescentes, ao passo que o olhar é capaz de dar uma configuração unitária para a imagem visual. Dada a ausência de definição da representação sensível no olfato, o ego, mediado por ela, também não possui tal delimitação, confundindo-se com o que seria objetivo na percepção. É precisamente o entrelaçamento das dimensões ob- e subjetiva que configura a expressão do relacionamento com o mundo. Esta não seria um “meio” de transmissão de estados de alma. A arte, “refúgio do comportamento mimético” (ÄT 86/68), é um meio em que o elemento expressivo do conhecimento tem, na filosofia da Adorno, um status bastante especial. Na Teoria estética, lê-se que

a arte é imitação unicamente como a de uma expressão objetiva subtraída a toda a psicologia, expressão que talvez outrora o sensório percebia no mundo e que em nenhum lugar subsiste senão nas obras. A arte fecha-se, mediante a expressão, ao ser-para-outro que avidamente devora tal expressão, e fala em si: tal é sua efetivação [Vollzug] mimética. Sua expressão é o contrário da expressão de alguma coisa. (ÄT 171/131-2 – tradu ção modificada)

Essa última frase é suficientemente enfática e clara para vermos que o conceito de expressão é algo avesso à idéia de comunicação de estados emocionais: “se o expresso se torna o conteúdo psíquico tangível do artista e a obra de arte sua cópia, a obra degenera em fotografia desfocada” (ÄT 171/132). A expressão é algo considerado uma qualidade objetiva da obra de arte, não o resultado da veiculação da dimensão subjetiva. 45

Essa objetividade, voltando ao conceito originário de mímesis, pode ser lida na indeterminação dos pólos ob- e subjetivo na imagem, que congrega, em si, elementos dos dois âmbitos. Isso significa que o caráter expressivo da representação mimética como proto-forma de conhecimento não é pensado como resultante apenas da explicitação dos elementos subjetivos como vinculados ao sujeito de tal modo que tomem, a partir dessa relação de pertencimento, sua importância. Na imagem, eles, imiscuindo-se aos elementos do mundo circundante a ser duplicado, confundem-se com estes, de tal modo que formam, nessa união, um continuum em que reina uma significante indiferenciação.

Por outro lado, esse conceito “objetivo” de expressão mimética exclui aquele “subjetivo”, que considera a expressão como explicitação dos movimentos emocionais do sujeito? Se essa explicitação é pensada como vinculada à idéia de comunicação de tais sentimentos, então a resposta é sim; mas, de outro ponto de vista, considerando tal explicitação como um movimento do sujeito para a imagem e dessa para ele, então cremos que ambos os conceitos de expressão podem compatibilizar-se. De acordo com a argumentação anterior, já se pode perceber em que consiste essa compatibilidade: dado que a configuração imagética é o medium pelo qual a consciência se efetiva, ela é constituída por toda a dinâmica de emoções que motivaram sua produção. Isso somente pode ser concebido como expressivo, entretanto, devido à abstração entre os elementos cognitivo e pulsional, ou de consciência e motriz, pois, não havendo tal abstração, não há propriamente “ex-pressão” no sentido subjetivo do termo, ou seja, um movimento de saída de algo que se pressuriza, que é premente, que não se contém em um determinado âmbito, exteriorizando-se de forma enfática para outro âmbito46. A imagem somente pode ser esse lugar que serve como vazão de estados de alma, pelo fato de ela

45 Para uma abordagem da dimensão expressiva da obra de arte, de sua relação com os conceitos de forma e de linguagem, veja-se nossa dissertação de mestrado “Unidade instável. O conceito de forma da obra de arte na Teoria estética de Th. Adorno”, capítulo IV, item 1; sobre a expressão como elemento fundante do discurso filosófico de Adorno, cf. Rodrigo Duarte. “Expressão como fundamentação”. In: Adornos. Nove ensaios sobre o filósofo frankfurtiano. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997, pp.161-184. 46 Cf. Rodrigo Duarte. Op. cit., p.176.

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não se confundir total- e absolutamente com aquilo que a produz. Assim, muito lentamente, ao longo de várias gerações e após anos de exercício continuado de produção de imagens que duplicavam, não apenas a natureza, mas, também, o próprio eu, suas emoções, sentimentos, angústias, o sujeito pôde começar a perceber a si mesmo em todos esses momentos. O mínimo distanciamento da imagem em relação ao seu produtor foi sendo o suficiente para que o sujeito pudesse sentir de modo incipiente que ele “falava”, ou seja, exprimia-se47, através da imagem. Na Dialética negativa, Adorno irá dizer explicitamente que o conteúdo da expressão é o sofrimento:

A liberdade do pensamento reside onde ele extrapola aquilo ao qual se atém obstinadamente. Ela é conseqüência do ímpeto expressivo do sujeito. A necessidade de tornar eloqüente o sofrimento é condição de toda verdade, pois o sofrimento é objetividade, que pesa sobre o sujeito; o que este experimenta como o que lhe é mais subjetivo, sua expressão, é objet ivamente mediado. (ND 29)48

Desse modo, vemos que o sujeito somente pôde tomar consciência de si, na medida em que sentia na imagem certa objetivação de suas emoções. Para haver tal objetivação, foi necessário que ele percebesse no construto mimético uma certa unidade, como dissemos acima. Para que a imagem pudesse “refletir” algo do sujeito, dando-lhe, ao mesmo tempo, a oportunidade de se perceber como inteiro, ela, por seu turno, também deveria ser pensada como contendo alguma unidade. Sem essa última, não seria possível que a imagem funcionasse de modo especular ao indivíduo que começava a se formar. De todos os sentidos, o olfato é o que menos pôde fornecer essa unidade imagética para a constituição da identidade do sujeito, podendo ser considerado, em um certo sentido, o mais “primitivamente mimético” deles.

Ao concebermos a relação entre a configuração mimética e a formação da consciência, vemos que a unidade da imagem seria algo associado à sua autonomia relativa emergente, fugindo da indeterminação olfativa, “espiritualizando-se” em algo que contém um todo que pode, cada vez mais, servir de espelho para que o sujeito se mire como um ser que contém alguma identidade, por mais incipiente que seja. Agora fica claro por que dissemos que a identidade do sujeito é mediada pela identidade de seu próprio produto. Devido a esse entrelaçamento dos fatores ob- e subjetivos na imagem, o “perigo” da “sobrevalorização” do impulso construtivo em detrimento do assimilativo na imagem, apontado por Jay — embora seja real, se não se atenta para o caráter de duplicação do sujeito na imagem —, é um tanto falso, pois o que se deu, efetivamente, ao longo da mutação das formas imagéticas de assimilação do mundo é que o aspecto construtivo foi ganhando cada vez mais preponderância na medida em que o constructo passou a ter um peso cada vez maior. E essa dinâmica é de suma importância, pois caracteriza o modo como as primeiras formas de conhecimento (preanimismo, magia e mito) formaram-se como sedimentos culturais do comportamento mimético.

A imagem, como dissemos, é uma duplicação do sujeito; por outro lado, sua unidade, ao solidificar-se, fez com que ela fosse percebida como algo a que se deve alguma coisa. A completude formal, ganhando unificação, “distanciou-se” do sujeito, ao mesmo tempo em que levava consigo o “centro de gravidade” deste. A imagem passou a gerar o sentimento irresistível de que ela deveria ser retomada, reapropriada, uma vez que arrastava do sujeito sua egoidade que mal se formava. Tal sentimento somente possuía (e

47 Aqui a língua alemã tem uma palavra que indica precisamente essa “fala que exprime”: aussprechen, composta do prefixo “aus”, que indica movimento para fora (correspondente ao “ex” do latim), e do verbo “sprechen”, que significa falar. 48 Citado por Rodrigo Duarte. op. cit ., p.176.

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possui!) tal magnitude, porque o ego somente pôde se estabelecer através da imagem. Quanto mais o sujeito se exercitou na produção de si mesmo através da construção imagética que duplica o mundo, mais ele “assinava notas promissórias” para tal construto, que, à medida em que ganha uma inteireza, uma relativa autonomia, “cobra” toda essa dívida. O sujeito experimenta a constrição de repetir a imagem: ele repete o mundo para formar-se e paga, como preço, a necessidade de continuar a repetir a imagem, posto que sua identidade foi comprada com a reiterada alienação de si. A imagem unificada é percebida como contendo um “mais” em relação ao sujeito, posto que ele sempre e somente aprendeu a se reconhecer através dela, ou seja, durante milhares de anos (e isso se repete na infância de cada um de nós), ser alguém significava produzir uma imagem que duplica o mundo. Quando ela ainda possuía uma indeterminação “olfativa”, nada de muito especial ocorria entre mediador (representação) e mediado (o ego), posto que a indeterminação quase total entre sujeito e objeto evitava a tensão. Aprendendo a conformar a identidade formal, e, portanto, ganhando um espelho com melhor nitidez para se ver, o sujeito não soube ainda reconhecer na imagem “apenas” um outro de si, mas percebia nela o que ele efetivamente era. Essa percepção, aliada à consciência incipiente da separação entre si e o mundo, conservou na imagem o sentimento que ela deveria apaziguar desde o início: o medo.

Esse sentimento sempre se fez presente movido pela premência da autoconservação, e é evidente que esta é facilitada pela soma de esforços individuais em um todo coletivo. A presença dos semelhantes sempre serviu para aumentar a confiança nas próprias forças, o que até hoje é claramente visível no aumento de agressividade de vários grupos de torcedores de futebol, gangues de rua, grupos de hardcore, etc. A similitude sempre foi o instrumento para a determinação do que o mundo era, quando o conceito ainda não existia para firmar uma similitude e, portanto, uma identidade (mais) abstrata. Como a imagem especular sempre foi também aquilo que mediou radicalmente a constituição da identidade do sujeito, e o isolamento sempre significou um enfraquecimento da própria condição de ser vivente, as imagens adquiriram rapidamente um conteúdo coletivo. Ou seja, a imagem assumida coletivamente possuía simultaneamente uma tripla dimensão: constituía uma mediação formal unitária para assimilação do mundo exterior, refletia a identidade dos indivíduos, ao mesmo tempo em que condensava, nessa unidade, a força grupal fisicamente sentida. Dado que a imagem, ao ser um amuleto contra o perigo de vida, era expressão do próprio terror, a imagem era depositária do sentimento de medo coletivo.

Desse modo, a identidade individual sempre foi mediada pela dimensão coletiva, ao mesmo tempo em que se vê que o conhecimento, já em sua proto-forma imagética, estava associado ao poder, o que significa dizer que todo conhecimento se forma socialmente. Por isso não se pode descrever de modo consistente o conhecimento sem compreendê-lo em sua tecedura social. Ele somente faz sentido como algo que estabelece uma mediação com o mundo a partir de uma dinâmica histórica que sedimenta em suas formas um modo coletivamente instituído de preservar a imagem da sociedade e dos indivíduos, que são radicalmente mediados por tal configuração imagética.

Embora toda essa nossa reflexão tenha tido como objeto a imagem fisicamente considerada, que é o elemento mais originário e essencial na relação mimética com o mundo, vários de nossos argumentos, principalmente esse desdobramento do teor coletivo da imagem pode ser transferido para o nome dos objetos. Este último pode ser pensado como uma duplicação simbólica das coisas que mantém uma ligação estreita com elas, tal como vimos na imagem: “no estágio mágico, sonho e imagem não eram tidos como meros sinais da coisa, mas como ligados a esta por semelhança ou pelo nome. A

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relação não é a da intenção, mas do parentesco” (DA 17/25). Mas não apenas o nome das coisas, mas toda a construção lingüística é uma duplicação simbólica do real que opera como representação imagética deste: “como atestam os hieróglifos, a palavra exerceu originariamente também a função da imagem” (DA 23/30).49 Ora, se a imagem já contém uma nítida dimensão de coletividade, tanto mais o corpo lingüístico, que, evidentemente, já é aprendido por cada indivíduo no meio social, e que sedimenta historicamente as formas coletivas com que o real é assimilado.

É precisamente essa dinâmica socialmente estabelecida que servirá de fio condutor para todas as nossas considerações ulteriores sobre a Dialética do esclarecimento, em que investigaremos, no próximo item, as formas prioritariamente miméticas de conhecimento (preanimismo, magia e mito), e, nos outros capítulos, a racionalidade ocidental, a prefiguração do sujeito burguês na Odisséia de Homero, o caráter mimético do pensamento filosófico em Adorno e a emergência da percepção do tempo histórico. 5. As formas primevas de conhecimento

Segundo Soung-Suk Nho, Adorno e Horkheimer não diferenciam entre animismo e preanimismo:

O conceito de preanimismo permanece impreciso nos autores. Eles não estabelecem nenhuma diferença entre preanimismo e animismo. Disso se segue a questão de se eles co ncebem o preanimismo como contendo duas fases, pois, segundo eles, encontram-se no preanimismo sobretudo o princípio do mana no sentido de indiferenciação da natureza e, também, uma separação originária entre homem e natureza. Seria compreensível, se eles atribuíssem a separação, não ao preanimismo, mas ao animismo, que pode valer como uma fase de transição para o mito.50

Essa passagem mostra claramente um dos males (talvez o mais pernicioso) de inúmeros comentadores de Adorno: falta de percepção dialética. Não parece ser sensata à comentadora a idéia de Adorno de que na “obscura indistinção do princípio religioso, venerado sob o nome de ‘mana’ nos mais antigos estágios que se conhecem da humanidade”, (…) “já está lançada a própria separação entre sujeito e objeto” (DA 21/28-9 – tradução modificada). A questão que a comentadora deve ter se feito é: “como algo pode ser obscuramente indiferenciado e conter a separação entre sujeito e objeto”? – ou: como algo pode ser e não ser ao mesmo tempo? Esse é o incômodo que o pensamento dialético causa em geral, que é o que Diógenes Laércio teve em relação à dialética platônica. Citando aquele, Adorno comenta:

“Com freqüência [Platão – vf] necessita de nomes diferentes para a mesma coisa. Assim, chama as idéias também de Forma (eidos) (…) e Gênero (Genos) [isto é, a generalidade lógica – twa], Modelo (paradeigma) e Começo (Princípio) [quer dizer, arché – twa] e Causa (aítion). Assim, necessita de expressões opostas para a mesma coisa. Deste modo, ao percebido sensivelmente o chama de ente como de não-ente. Ente, porque é o produto de um devir; não-ente, por sua mudança constante. Também diz da idéia, nem que não se move, nem que está em repouso, e também que é una e múltipla. Assim o faz também com outras coisas”. — O que diz Diógenes Laércio é verdadeiro e falso, e pode revelar a complicação do assunto para um homem que vê a terminologia filosófica viva desde o ponto de vista de um léxico morto.51

49 Note-se que “palavra” tem origem etimológica quase idêntica a “símbolo”: na primeira, tem-se o prefixo grego para- (diante) e o radical ballein (lançar), e, no segundo, muda-se apenas o prefixo para syn- (junto). 50 Soung-Suk Nho, Die Sebstkritik und Retung der Aufklärung, Frankfurt am Main: Peter Lang, 2000, p.46, nota. 51 Theodor W. Adorno. Terminología filosófica. Tradução de Ricardo Sanchez Ortiz de Urbina. Madri: Taurus, 1983, p.39.

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Incômodo esse que é, talvez, o que o leitor tenha experimentado no nosso item anterior, em que falávamos em “unidade do ego” e, no mesmo item, de indistinção entre sujeito e objeto.

A dialética é um pensamento que pretende perceber intimamente as coisas como processo, não como algo estabelecido através dos critérios predeterminados pelo princípio da não-contradição, que quer separar “quimicamente” as diversas determinações das coisas, alheio à dinâmica histórica. Trata-se de pensar alguma realidade como vinculada profundamente a determinações resultantes de sua relação com várias outras:

O objeto abre-se a uma insistência monadológica que é a consciência da constelação na qual ele está: a possibilidade para a penetração no interno carece desse externo. Tal universalidade imanente do singular, entretanto, é objetiva como história sedimentada. Esta existe nele e fora dele, algo que o engloba, em que ele tem seu lugar. Perceber a constelação em que a coisa está significa tanto quanto decifrar aquela que contém em si aquele elemento englobante como algo que se transformou. O chorismós do fora e do dentro é, por sua vez, condicionado historicamente. Somente um conhecimento consegue destacar a história no objeto, e que tem presente também a importância histórica do objeto em sua relação com outros: atualização e concentração de um já sabido, que o transforma. Conhecimento do objeto em sua constelação é o de seu processo, que ele armazena em si. (ND 166)

Que se pense que a representação mimética contenha e não contenha a distinção sujeito-objeto significa mostrar como esta já estava presente nela, mas não de forma absoluta como se veio a pensar (erroneamente) no pensamento moderno e contemporâneo. É preciso pensar como tal separação evoluiu, em que sentido ela era mínima, mas, ao mesmo tempo, já presente, quais suas transformações qualitativas, etc. Vejamos, em primeiro lugar, como essa relação dialética configurava-se na forma mais primitiva de sedimentação do comportamento mimético. a) Preanimismo

O que mais propriamente caracteriza essa forma de assimilação da realidade é, como o próprio nome indica, que o mundo não é povoado de espíritos, mas, sim, percebido como um poder infinitamente superior ao homem, o mana.

Primário, indiferenciado, ele é tudo o que é desconhecido, estranho: aquilo que transcende o âmbito da experiência, aquilo que, nas coisas, é mais do que sua realidade já conhecida. O que o primitivo aí sente como algo de sobrenatural não é nenhuma substância espiritual oposta à substância material, mas o emaranhado da natureza em face do elemento individual. (DA 21/28-9)

A transcendência não é espiritual, mas de poder. O preanimismo tem em comum com o animismo a incomensurabilidade com que é visto tal poder em relação aos homens. A origem do mana é algo da ordem da condição física do ser humano: sua fraqueza em relação à infinidade de elementos da natureza que podem causar a morte de modo absolutamente incompreensível. É exatamente o escape a toda possibilidade de assimilação que torna o poder de morte indiferenciado, englobando todo o real em uma névoa de indeterminação causal, cujo efeito, entretanto, é claramente sentido: dor, sofrimento e morte. A multiplicidade de fluxos torrenciais amedrontadores: feras, tempestades, secas, pragas, avalanches, etc., configuram uma atmosfera em que, ao longo de milhares de anos, chega-se à percepção precária de que o perigo é real e imenso, só não se sabe de onde vem. É precisamente o vínculo do sentimento da concretude da ameaça e da difusão absoluta de sua origem que levou à única possibilidade de solução: cristalizar a fonte indiferenciada de ameaça em uma re-presentação simbólica sua:

O grito de terror com que é vivido o insólito torna-se seu nome. Ele fixa a transcendência do desconhecido em face do conhecido e, assim, o horror como sacralidade. A duplicação da natureza como aparência e essência, ação e força, que torna possível tanto o mito quanto a ciência, provém

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do medo do homem, cuja expressão se converte na explicação. (DA 21/29)

O mana somente pôde se cristalizar como o indiferenciado, porque ele é a duplicação de algo que, de alguma forma, podia ser sentido precariament e como “o mesmo”: o pavor perante a morte. Há que se ter em mente, entretanto, que a indiferenciação do perigo está plenamente colocada na sua imagem como mana, posto que, como dissemos, a representação imagética media radicalmente a experiência que o indivíduo faz de si. Dada a indiferenciação do representado, conclui-se pela indiferenciação do que produz a representação. Mas ela contém algo que mostra como a separação sujeito-objeto “já está lançada” [ist schon angelegt52]: embora o perigo seja sentido como difuso, já se vê como fixado, sedimentado em uma representação. O fato de já haver a própria experiência da transcendência através de uma duplicação imagética mostra que algo ultrapassa o âmbito das meras relações corporais imediatamente sentidas. Aquilo que se desdobrará plenamente como consciência em contraste com a unidade das sensações como objeto exterior já se mostra no começo precário de distinção entre a materialidade da dor, da morte, das coisas em geral, e a transcendência do que é difusamente ameaçador.

Quando uma árvore é considerada não mais simplesmente como árvore, mas como testemunho de uma outra coisa, como sede do mana, a linguagem exprime a contradição de que uma coisa seria ao mesmo tempo ela mesma e outra coisa diferente dela, idêntica e não idêntica. Através da divindade, linguagem passa da tautologia à linguagem. O conceito, que se costuma definir como a unidade característica do que está nele subsumido, já era desde o início o produto do pensamento dialético, no qual cada coisa só é o que ela é tornando-se aquilo que ela não é. Eis aí a forma primitiva da determinação objetivadora na qual se separavam o conceito e a coisa, determinação essa que já está amplamente desenvolvida na epopéia homérica e que se acelera na ciência positiva moderna. (DA 21-2/29)

Por que a fixação da transcendência numa representação simbólica é uma forma de “determinação objetivadora”? Porque todo objeto somente tem esse status porque pode ser percebido como o mesmo. Ora, a “mesmidade” de alguma coisa somente pode ser percebida através de alguma relação re-presentativa desta que não se confunda com o torvelinho de impressões sensíveis eternamente cambiantes, que não seja como é, segundo Adorno e Horkheimer, o mundo dos animais irracionais: “(…) nenhuma palavra existe para fixar o idêntico no fluxo dos fenômenos, a mesma espécie na variação dos exemplos, a mesma coisa na diversidade das situações. (…) No fluxo, nada se acha que se possa determinar como permanente e, no entanto, tudo permanece idêntico, porque não há nenhum saber sólido acerca do passado e nenhum olhar claro mirando o futuro” (DA 263/230). No preanimismo, todas as coisas têm uma mínima e precária fonte de identidade: são percebidas como partes, manifestações, emanações, de um mesmo poder indiferenciado. São elas mesmas e outra coisa diferente delas.

Nesse ponto, devemos salientar uma idéia que os autores da Dialética colocam e que é utilizada em outras partes do texto, a saber, que o mana não seria resultado da atividade projetiva psíquica dos selvagens (nem mesmo os espíritos e deuses míticos posteriores): “Não é a alma que é transposta para a natureza, como o psicologismo faz crer. O mana, o espírito que move, não é nenhuma projeção, mas o eco da real supremacia da natureza nas almas fracas dos selvagens” (DA 21/29). Ora, considerando a idéia de que, “em certo sentido, todo perceber é projetar” (DA 196/174); podendo-se assumir que, quanto mais fraco o ego, maior é a tendência a projetar os estados interiores de alma no mundo circundante; considerando a idéia dos autores de

52 Guido de Almeida traduz como “já está virtualmente contida”.

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que mesmo nos animais a projeção é um instrumento de sobrevivência, a qual herdamos, sendo que, “na sociedade humana, porém, na qual, tanto a vida intelectual, quanto a vida afetiva se diferenciam com a formação do indivíduo, este precisa de um controle crescente da projeção; ele tem que aprender ao mesmo tempo a aprimorá-la e a inibi-la” (DA 197/175), é fácil concluir que, quanto mais retrocedermos no tempo, mais forte é a presença da projeção como elemento de assimilação do mundo, e que, portanto, é inadequada a negação do aspecto projetivo no mana. Tal como pudemos ver no item anterior, a duplicidade mimética pode ser pensada como projetiva pelo fato de que é uma duplicação, tanto do sujeito, quanto do objeto. A própria idéia de que “o grito de terror com que é vivido o insólito torna-se seu nome” (DA 21/29) mostra que essa duplicação simbólica, o nome, é uma sedimentação de um estado interno do sujeito, o medo, gerado pela experiência concreta da ameaça de morte. Assim, o aspecto projetivo é, não apenas compatível com idéia de duplicação do perigo, mas, principalmente, ligado de modo íntimo a ela.

Embora a crítica de Nho à concepção de preanimismo e de animismo de Adorno e de Horkheimer peque por falta de dialeticidade, ela é adequada no sentido de que os autores não especificaram o que constitua e explique a passagem do primeiro ao segundo e o que os distinguiria propriamente em termos de comportamento mimético. Com base no desenvolvimento que efetuamos no item anterior, façamos uma abordagem desses assuntos.

O preanimismo, como se pôde perceber, é caracterizado como uma reação plenamente negativa perante a natureza, ou seja, como fuga, como escape à ameaça de morte, como expressão do terror. Não há, segundo vemos nas considerações de Adorno e de Horkheimer, algo que aponte na direção de uma assimilação positiva da natureza. Essa última é aquilo que caracterizará a magia e que funda a diferença para com o estágio anterior. Mas o que favoreceu a emergência dessa “positividade”? O medo contém um elemento prospectivo, de antecipação, que levou à tendência de apropriar-se do que causava o terror como algo que poderia intervir favoravelmente na realidade.53 Como vimos no item anterior, a representação mimética, tendendo a ganhar uma unidade, uma identidade, pôde refletir igualmente a unidade emergente do indivíduo, o que levou àquele movimento objetivador do real. Aliando-se a experiência reiterada de com-preensão da realidade através da imagem, ao elemento nitidamente prospectivo presente na necessidade de se antecipar ao que causava medo, vê-se que, muito lentamente, os selvagens passaram a experienciar que, da mesma maneira que o indiferenciado, o difusamente perigoso, era minimamente apaziguado com sua imagem, a mera evocação de seu nome foi logo sentida como propiciando poder. O que marca propriamente a passagem do preanimismo à magia é o estabelecimento de um sentimento de que a duplicação simbólica do real pode ser usada como meio de escapar do perigo.

b) Magia

Segundo Nho, Adorno e Horkheimer, além de “não esclarecem a passagem do preanimismo para o animismo”, “(…) tomam a fase do animismo apenas como fim do preanimismo e como começo do politeísmo, em que aparecem os espíritos limitados

53 Esse elemento de prospecção do medo é o que caracteriza mais intimamente a idéia de projeção . Isso pode ser facilmente percebido por cada um de nós. Quando sentimos medo de que algo ruim aconteça, essa “atmosfera” da consciência é facilmente confundida com a premonição de que isso irá realmente acontecer. (Quantas vezes não ouvi alguém dizer: “estou pressentindo que isso [algo ruim] vai acontecer”, ao que respondi: “na verdade, você está é com medo de que isso ocorra”.)

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localmente”54. A consideração dos autores para diferenciar as duas fases é, realmente, “a especificação do mana nos espíritos e nas divindades”, resultante do princípio de dominação, que “fascinava o olhar nas fantasmagorias dos feiticeiros e dos curandeiros” (DA 35/40). Não há, na Dialética do esclarecimento, uma explicação para tal multiplicidade de deuses e de demônios oriunda do mana que a considere a partir da relação mimética com a natureza. Segundo os autores, trata-se de uma relação de poder entre os homens, na qual os poderes divinos foram absorvidos por uma minoria que os representa perante os demais membros da coletividade.

Onde quer que a etnologia o encontre, o sentimento de horror de que se origina o mana já tinha recebido a sanção pelo menos dos mais velhos da tribo. O mana não-idêntico e difuso é tornado consistente pelos homens e materializado à força. Logo os feiticeiros povoam todo lugar de emanações e correlacionam a multiplicidade dos ritos sagrados à dos domínios sagrados. Eles expandem o mundo dos espíritos e de suas particularidades e, com ele, seu saber corporativo e seu poder. A essência sagrada transfere-se para os feiticeiros que lidam com ela. (…) [S]e o selvagem nômade, apesar de toda a submissão, ainda participava da magia que a limitava e se disfarçava no animal caçado para surpreendê-lo, em períodos posteriores o comércio com os espíritos e a submissão foram divididos pelas diferentes classes da humanidade: o poder está de um lado, a obediência, do outro.55 (DA 27/33-4)

A idéia de que o mana é materializado à força [gewaltsam] tem que ser bem entendida, pois a própria vivência dos membros da tribo que não possuíam contato privilegiado com os espíritos tinha que legitimar a incorporação dos poderes mágicos nos rituais dos sacerdotes. Em hipótese alguma haveria a possibilidade de as forças mágicas serem impostas aos dominados se eles já não vivenciassem intimamente a presença delas em todos os símbolos e imagens usados para invocá-las. Aquela dimensão coletiva a que nos referimos anteriormente e que se caracteriza pelo fato de que as imagens sedimentam um olhar coletivo em relação ao poder sobrenatural não tardou a ser afunilada em alguns membros da comunidade que, por algum motivo — que poderia ser a força física, a idade avançada, habilidade na produção de imagens e na invocação de poderes, etc. —, passaram a investir seu comando da legitimação imediata propiciada pela vivência da duplicação simbólica do real. O que os sacerdotes fizeram foi a transferência de algo existente no símbolo para a coerção social que impingiam ao restante da coletividade: os símbolos referiam-se à eterna repetição natural.

Os mitos, assim como os ritos mágicos, têm em vista a natureza que se repete. Ela é o âmago do simbólico: um ser ou um processo representado como eterno porque deve voltar sempre a ocorrer na efetuação do símbolo. Inexauribilidade, renovação infinita, permanência do significado não são apenas atributos de todos os símbolos, mas seu verdadeiro conteúdo. (DA 23/30-1)

A constrição do agir em prol de conservar a própria existência foi algo que sempre acarretou um enrijecimento da consciência de que é preciso uma ordenação absoluta de todos os espaços: tanto sociais quanto de cada membro da comunidade, os quais sempre foram impelidos a identificarem a autoconservação à continuidade da esfera 54 Soung-Suk Nho, op. cit., p.47, nota. 55 Essa última frase apresenta uma idéia que deveria ser investigada mais de perto, pois, ao afirmarem que “o selvagem nômade ainda participava da magia que limitava sua submissão”, os autores querem dizer que, para o selvagem, participar da magia que influenciava na natureza limitava sua submissão ao poder exercido pelos membros da tribo. – Ora, uma vez disperso pelo reino da natureza selvagem, sem a solidificação da estrutura social sedentária, sua experiência de vida deveria ser a de completa subordinação cega aos elementos anímicos e naturais que constituíam um todo indiviso. É difícil comparar, em termos de atenuação ou crescimento, a emergência da mediação do poder anímico pelos sacerdotes e pelos feiticeiros, pois não há parâmetros minimamente consistentes para estabelecer valores dessa espécie em relação a algo que é recalcitrante em termos de analogia com nossa experiência.

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coletiva. O medo da morte foi sempre sublimado na vida dos indivíduos e estampado de modo pregnante, por parte das classes que detiveram o comando, em todos os símbolos que expunham o perigo da perdição e, ao mesmo tempo, a possibilidade de salvação, feita através da adoração daquilo que poderia apaziguar a fúria dos deuses, ou seja, a submissão ao poder de mediação que os sacerdotes possuíam. A simbologia mágica e mítica sempre teve como seu verdadeiro conteúdo a eterna repetibilidade do processo de manutenção da vida como sendo algo realizado por obra e graça do âmbito coletivo; dívida, culpa, castigo, medo: essa constelação é o que determinou o sentido das imagens e sua magia nas hordas dos povos que já experimentavam uma ordenação mais rígida do corpo coletivo, na medida em que não mais se permitia, na esfera da comunidade organizada hierarquicamente, a difusão e relação “promíscua” com a alteridade do âmbito da natureza.

Os processos naturais recorrentes e eternamente iguais são inculcados como ritmo do trabalho nos homens submetidos, seja por tribos estrangeiras, seja pelas próprias cliques de governantes, no compasso da maça e do porrete que ecoa em todo tambor bárbaro, em todo ritual monótono. Os símbolos assumem a expressão do fetiche. A repetição da natureza, que é o seu significado, acaba sempre por se mostrar como a permanência, por eles representada, da coerção social. O sentimento de horror materializado numa imagem sólida torna-se o sinal da dominação consolidada dos privilegiados. (DA 27/34)

Mas por que os símbolos têm essa relação com a repetição natural? Nossa tese é que se trata de mais uma forma de fixação da transcendência, através de uma sedimentação imagética da força incomensurável da natureza. Mas, enquanto no preanimismo o mana encarnava a totalidade difusa das forças ameaçadoras, nos símbolos mágicos sedimentou-se uma regularidade dos processos naturais. A tomada de consciência dessa regularidade foi favorecida pelo fato de que tudo e qualquer coisa somente é o que é pelo fato de se repetir, ou seja, de se duplicar. Logo, não surpreende essa “segunda” forma de sedimentação do que extrapola o dado imediato da percepção sensível, ou seja, mais uma forma de abstração. Em vez de a natureza ser vivida e percebida diretamente como eflúvio do mana, ela passou a ter uma mediação a mais: o símbolo, que especificava a repetibilidade dos processos naturais. Não estranha em nada que o indivíduo tenha aprendido a assumir um mediador entre os espíritos e a comunidade, ou seja, o sacerdote, que, assumindo a força que atribuía aos deuses, exercia o poder social plenamente legitimado.

O trabalho repetitivo feito sob coação só teve sua legitimação plena devido ao fato de que a própria constituição do precário sentido das coisas somente se tornou possível pela repetição reiterada da realidade. Em outras palavras: a repetição do trabalho pôde ser vivenciada como o mais evidente a ser feito sob o jugo da coação simbólica, porque a própria percepção do mundo e do indivíduo foi feita exclusivamente a partir da repetição infinita, tanto das coisas, como do sujeito.

Mas, embora a percepção mimética da realidade tenha legitimado o jugo da dominação sacerdotal, ainda resta explicar em que consiste aquilo que é próprio da magia: o poder de influenciar a realidade através de imagens. Essa característica mostra claramente a especificidade da magia em relação ao preanimismo, uma vez que ela contém um aspecto teleológico claramente delineado.

Pode-se perceber, já através disso, que é na magia que a qualificação da mímesis como técnica de dominação da natureza apontada por Lüdke pode ser vista de modo claro (mas quantos conceitos, vínculos e questões estão envolvidos até que se chegue a essa idéia!). A magia é um modo de comportamento mimético em que o aspecto teleológico da ação já está configurado de modo claro, em outras palavras, ela contém uma racionalidade orientada a fins. Como diz Kipfer, “a mímesis arcaica é, ao mesmo tempo, já

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‘racional’, pressupõe a diferenciação entre sujeito e objeto, mas conserva, simultaneamente, uma relação ao particular como particular, ainda não esquematizado pela racionalidade autoconservadora”.56 É necessário ter em mente que tal racionalidade não significa, de acordo com essa relação particular com a coisa, que haja uma abstração do pensamento perante a realidade, como na concepção científica.

Como a ciência, a magia visa fins, mas ela os persegue pela mímesis, não pelo distanciamento progressivo em relação ao objeto. Ela não se baseia de modo algum na “onipotência dos pensamentos”, que o primitivo se atribuiria, segundo se diz, assim como o neurótico. Não pode haver uma “superestimação dos processos psíquicos por oposição à realidade”, quando o pensamento e a realidade não estão radicalmente separados. A “confiança inabalável na possibilidade de dominar o mundo”, que Freud anacronicamente atribui à magia, só vem corresponder a uma dominação realista do mundo graças a uma ciência mais astuciosa do que a magia. Para substituir as práticas localizadas do curandeiro pela técnica industrial universal foi preciso, primeiro, que os pensamentos se tornassem autônomos em face dos objetos, como ocorre no ego ajustado à realidade. (DA 17/25)

A “onipotência dos pensamentos” seria anacrônica, porque o próprio mundo já é vivido como sendo uma totalidade que não se diferencia da representação imagética que se faz dele. A plenitude do poder do mana é experimentada na mesma representação usada para fazer com que o mundo seja o que é; em outras palavras, o mundo sempre foi assimilado somente como poder, como emanações de forças que se chocam o tempo todo com o sujeito como ser vivente, e o meio de compreender minimamente este poder sobrenatural foi precisamente a representação imagética do real, que congrega uma parcela da força do mana em proveito próprio. Apesar de qualificar-se como mimética, a magia já contém uma forma de racionalização da relação mimética entre sujeito e objeto, ou seja, um direcionamento calculado da relação de indeterminação, de indefinição, entre os limites da subjetividade e da objetividade. A mímesis, como temos visto, é uma forma de comportamento em que a identidade e a diferença entre sujeito e objeto têm uma dinâmica em que nenhuma das duas absorve a outra ou a coloca a seu serviço. A magia, por sua vez, já contém algo que aponta para a sedimentação futura da diferença entre sujeito e objeto e que se estabelecerá com toda a força no processo de esclarecimento, que é a perseguição consciente dos fins. Para que o ritual mágico tenha efeito, é preciso toda uma hierarquia de procedimentos e dos indivíduos, em que somente alguns são tomados como aptos para entrar em contato com os deuses e falar em nome deles. A subjugação de toda a grande parte da coletividade excluída do conluio com as forças mágicas já se afigura como uma “domesticação” da relação com a natureza e com a contraparte desta, o âmbito daquilo que virá a ser o reino da consciência: os deuses.

A feitiçaria significa a consolidação da imagem como duplicidade poderosa em relação ao mundo, cujo poder pode ser manipulado em prol da sub sistência. O procedimento mágico consiste numa configuração imagética em que o que é retratado fica à mercê de poderes mágicos, incorporados em sua duplicação simbólica. A imagem duplicada é sentida como exercendo uma influência sobrenatural direta na existência do que é representado. Isso está presente, por exemplo, nos bonecos de vudu, nas imagens de animais desenhados nas cavernas do paleolítico, nos “despachos” de candomblé, nas simpatias, etc. Como explicar esse poder mágico, transcendente, sentido em relação à imagem?

Primeiramente, é bom salientarmos que tal poder sobrenatural sobrevive, de forma secularizada, em diversas reações que nós, atualmente, temos com o mundo.

56 Daniel Kipfer. op. cit., p.108.

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Explicando essa forma de reação, podemos esclarecer o que estaria em jogo com a imagem poderosa magicamente. Usando um exemplo da História da arte de Ernst Gombrich57, tomemos uma fotografia de alguma pessoa de quem gostamos muito, de preferência em que ela esteja bem caracterizada, sorrindo, etc. Em seguida, furemos os olhos da imagem lentamente com um cigarro aceso. Ora, nem é preciso fazer tal experiência para que nos convençamos de que o sentimento que nós temos é de que não estamos apenas danificando um papel colorido (embora saibamos perfeitamente que é esse o caso), mas, sim, atingindo a própria pessoa representada. Esse mal-estar nos mostra claramente que, embora a imagem seja pensada como mediação entre nós e o mundo, ela não é sentida como mera mediação, mas, sim, como nos conectando diretamente com a realidade representada.

O mesmo acontece em outra reação mimética que temos quando ouvimos ou falamos que uma desgraça vai acontecer, do tipo “você vai morrer amanhã”, “eu vou ter um enfarte”, “meu carro irá bater em outro na próxima viagem”, etc. Várias pessoas, ao ouvirem tais frases, sentem que algo na realidade conflui contra aquele que é alvo das frases, simplesmente devido ao fato de elas terem sido ditas. Embora não haja nada em termos físicos, de imagem sensível, na fala, trata-se de uma duplicação simbólica, que carrega, como vimos, o poder de imagem. Ora, se nós, mesmo depois de milênios (!) de desenvolvimento da concepção racionalizada do real, ainda temos essa relação com a realidade através da imagem, o que se dirá do que os membros das tribos primitivas não sentiam diante de representações imagéticas nos rituais?

Mas, por outro lado, há a questão de por que o poder da imagem sempre pôde ser vivido como transcendente, sagrado, mágico. Ou seja, por que se vinculou essa relação da imagem com o mundo como uma relação através de forças transcendentes, mágicas, sagradas? A imagem estabelece um “curto-circuito” em relação ao que é duplicado, ou seja, ultrapassa-se as determinações físicas — percebidas como particulares, concretas —, produzindo um efeito sentido como estando além de condicionamentos espácio-temporais, pois a pessoa representada por boneco de vudu, por exemplo, seria “atingida” por ele estando em qualquer lugar do planeta. É precisamente essa transcendência estabelecida pela imediatidade da relação da imagem com o que é duplicado que mostra claramente a vinculação da imagem com o que é incomensurável, infinito, transcendente. A representação mimética é, portanto, profundamente ambígua: representação particular, concreta, que, em sua imediatidade na relação com o que é representado, produz o sentimento imediato de ligação com a infinidade da transcendência. Mas essa ambigüidade também se dá no valor com que a incorporação do poder infinito na imagem particular é vivida. A conjuração, como nota Jean Baudrillard, é algo ambíguo: atrair, para, com a consciência forte da presença, expulsar.58 A magia é, nesse sentido, fortemente ambivalente, pois a própria presença de um animal na imagem significa sua morte virtual; a força mágica da imagem, a subjugação aos poderes de onde tal força provém e a quem a corporifica; a presença do espírito maléfico, a cura da doença, e assim por diante.

Mas haveria outra relação da duplicação imagética com o âmbito do sagrado, que é vista na dinâmica histórica de surgimento da representação mimética. A imagem que duplica a realidade teve como seu motor, como seu impulso mais íntimo, o sentimento de medo, ou seja, tratava-se de uma questão de ordem vital, de sobrevivência, conseguir imitar o mundo circundante; o medo tem sua origem no perigo, naquilo que

57 Ernst Gombrich, História da arte. São Paulo: Círculo do Livro, 1972, p.20. 58 Cf. Jean Baudrillard. A sociedade de consumo . Rio de Janeiro: Elfos, 1995.

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foge às nossas forças, à nossa capacidade de domínio, que exerce uma violência em relação à vida; o perigo, a ameaça de vida, é propriamente aquilo que, não apenas não dominamos fisicamente, como, também, não compreendemos, não assimilamos, pois, quanto maior é a compreensão do perigo, menor ele tende a ser; a incompreensão é o fermento mais evidente da transcendência, do que acaba sendo concebido como infinitamente poderoso, que ultrapassa as fronteiras do vivido, da concretude particular das coisas que podemos compreender e manejar. Esse poder infinito, o mana (que, segundo Adorno e Horkheimer, sobreviveu na magia, nos mitos e até na razão esclarecida), teve sua especificação em deuses e em demônios na magia devido propriamente à junção dos dois fatores: aquela imediatidade do poder da imagem de afetar o que é representado, por um lado, e, por outro, essa ligação genealógico-histórica da imagem com a transcendência. Em cada imagem que representava magicamente uma determinada realidade parecia estar presente uma manifestação específica daquele poder difuso por todas as coisas. Mas que determinada realidade seria essa? Os processos cíclicos e regulares da natureza. Como dissemos acima, foi a consciência do mundo a partir da repetição que possibilitou a consciência clara da regularidade dos fenômenos naturais. Dada a relação entre a duplicação da natureza e a transcendência sagrada, nada mais evidente do que a idéia de que os fenômenos naturais que se repetem infinitamente fossem vistos como um poder divino.59

Mas haveria outra questão, bastante fundamental, que parece difícil de responder, que é a de por que se tem o sentimento de que a imagem carrega para dentro de si algo do próprio real. No caso da fotografia, por exemplo, por que sentimos que estamos afetando a própria pessoa (embora sejamos absolutamente conscientes de que não é esse o caso)? Seria possível explicar por que a imagem é sentida como influenciando o real?

O poder da imagem sobre as coisas só é sentido porque o sujeito percebe que a imagem tem poder sobre ele mesmo. Como vimos no item sobre mímesis, toda a formação do ego, desde suas mais precárias manifestações, somente se deu com a produção da imagem que duplica o mundo. Por isso é que a imagem, ao ganhar independência, carrega para si todo o centro gravitacional do sujeito, gerando neste a consciência de dívida para com a imagem, posto que sua identidade, a rigor, formou-se nela. Esse aspecto de atração imagética em relação ao sujeito também pode ser ilustrado através de um outro exemplo de sobrevivência da dimensão mimética nos adultos, que é o fato de que, em geral, não se gosta que alguém nos imite. É difícil elidir o incômodo causado pelo fato de que nossos gestos e modos de andar, etc., sejam duplicados insistentemente. Para fugir a esse incômodo, o imitado geralmente faz uma posição estranha, que causaria vergonha em quem está imitando ao faze-la, ou seja, quebra-se o “encanto” criado pela imagem duplicada, ao se impedir, com os próprios meios do encantamento, sua continuidade. Nesse caso, o que se percebe é que o imitado sente que sua identidade estaria sendo extraída, expropriada, como se ele estivesse perdendo sua singularidade tão acalentada (como se fosse sua propriedade — no duplo sentido de posse e de qualidade) devido a sua duplicação reiterada.

No poder da imagem sobre o mundo exterior, o que se faz é transpor esse elemento atrativo, constringente, da imagem em relação a si para as coisas duplicadas

59 Essa última frase, na verdade, deveria ser dita assim: “dada a relação entre a duplicação da natureza e a transcendência sagrada, o poder universal e difuso da natureza do mana acabou sendo especificado em poderes localizados, que, lentamente vinculados ao poder da imagem, possibilitaram a tomada de consciência dos fenômenos repetitivos naturais como sede de tais poderes”. Essa diferença se deve ao fato de que o que é anterior é o poder infinito, o mana, depois, os poderes localizados, e, somente mais tarde, a natureza como sede de tais poderes

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imageticamente. Trata-se de uma “sub-repção” imediata, irrefletida, sentida, em que o sentimento de termos nossa identidade afetada, ferida, roubada, etc., é transferido para a identidade das coisas e das pessoas no mundo. Essa sub -repção ocorre pelo fato de que o que é agredido na violência à imagem é o sentimento que temos em relação ao que é retratado. Ou seja, ao agredirmos a imagem estamos agredindo o que sentimos pela pessoa, daí a transferência dessa violência para o objeto da nossa afeição. Isso parece corroborado pelo fato de que, no caso de a foto ser de alguém que não gostamos, a violência em relação à imagem será experimentada com prazer, posto que a agressão vai ao encontro de nosso sentimento em relação ao representado.60

É precisamente essa vinculação visceral entre o sujeito e o objeto que mostra como ambos estão vinculados estreitamente na representação mimética. Não há, nessa flutuação mimética da magia arcaica, nem uma identidade subjetiva, nem uma unidade do objeto, de modo a se perceber um distanciamento claro entre sujeito e objeto.

Os ritos do xamã dirigiam-se ao vento, à chuva, à serpente lá fora ou ao demônio dentro do doente, não a matérias ou exemplares. Não era um e o mesmo espírito que se dedicava à magia; ele mudava igual às máscaras do culto, que deviam se assemelhar aos múltiplos espíritos. (…) O feiticeiro torna-se semelhante aos demônios; para assustá-los ou suavizá-los, ele assume um ar assustadiço ou suave. (DA 15-6/24)

Apesar de a magia conter algo do preanimismo, a relação com o poder infinito da natureza, ela, devido a seu aspecto teleológico, ou seja, de sua racionalidade orientada a fins, possui algo que escapa essencialmente a seu antecessor, que é a idéia de que é possível, de acordo com uma intenção bem estabelecida, substituir uma coisa pela outra, mantendo-se integralmente a relação com a coisa. Havendo alguma duplicação de algo do objeto representado, tem-se o sentimento de vinculação total com ele. A universalidade do poder mágico e a particularidade da representação entrelaçam-se de modo visceral. É precisamente tal ambigüidade que explica esta característica bem peculiar na magia: a relação de pars pro toto, ou seja, em cada parte de uma representação conflui o todo da coisa representada, posto que a imagem não é algo ainda percebido em sua particularidade determinada apenas como parte de um todo apreendido conceitualmente. É o que Adorno e Horkheimer chamam de substitutividade [Vertretbarkeit] específica:

O que acontece à lança do inimigo, à sua cabeleira, a seu nome, afeta ao mesmo tempo a pessoa; em vez do deus, é o animal sacrificial que é massacrado. A substituição no sacrifício assinala um novo passo em direção à lógica discursiva. Embora a cerva oferecida em lugar da filha e o cordeiro em lugar do primogênito ainda devessem ter qualidades próprias, eles já representam o gênero e exibiam a indiferença do exemplar. Mas a sacralidade do hic et nunc , a singularidade histórica do escolhido, que recai sobre o elemento substituto, distingue-o radicalmente, torna-o introcável na

60 Essa idéia de sub-repção é importante, por outro lado, pois diz respeito à característica fundamental da mímesis, que é o fato de que ela é pré-conceitual. Essa propriedade está claramente configurada no fato de que, como foi dito no exemplo da foto agredida, sabemos de modo explícito que se trata apenas de um papel, mas não sentimos como se fosse apenas isso. A relação mimética com o mundo é tão fortemente pré-conceitual, que ela ignora, ou contraria a determinação da realidade através de conceitos. (No caso da magia, esse caráter pré-conceitual explica como ela pôde sobreviver em diversos segmentos da sociedade, em formas mais brandas, como simpatias, superstições, nas quais vemos diversas pessoas com alto grau de erudição sentirem-se mal simplesmente por verem sua bolsa no chão ou por passarem debaixo de uma escada.) Uma vez independente de conceitos, a relação mimética com a realidade é, também, independente dos fatos, ou, em outras palavras, estes não enfraquecem o poder da imagem. Diga-se mil vezes que uma desgraça irá acontecer; mesmo que nada de ruim, em nenhum momento, tenha acontecido, todas aquelas frases de mal agouro terão propiciado um mal estar ligado diretamente à representação simbólica do real. Essa independência da força da imagem em relação aos fatos é algo que continuou nos mitos, que são formas de conhecimento mimético mais elaboradas que a magia. Tal característica é o que configura aquilo que se diz do mito como tendo força de produção da realidade.

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troca. (DA 16/24-5)

A magia, portanto, contém, em relação ao preanimismo, dois movimentos de determinidade, de delimitação: o mana é especificado em poderes anímicos como deuses e demônios que se corporificam em forças naturais; e o ritual mágico substitui a relação direta e fluida com as divindades através da mediação substitutiva da parte que representa o todo ou um ser diferente que toma o lugar da vítima no sacrifício. Mas, em relação ao aspecto de organização social, essa determinidade também pode ser percebida, pois, no preanimismo, Adorno e Horkheimer vêem uma estrutura social vinculada ao nomadismo, a uma dispersão das relações coletivas; na magia, como vimos, já impera uma divisão social vinculada à apropriação dos poderes sagrados por uma parte da coletividade que os impinge ao restante do grupo. Em ambos os aspectos (gnosiológico e social), trata-se da questão da tomada de consciência do poder como fonte de assimilação do mundo. No primeiro aspecto, o que começou a se cristalizar foi a consciência da relação entre uma causa e um efeito. Foi precisamente um processo histórico de amadurecimento dessa consciência do mundo a partir de relações causais que deu origem a um modo importantíssimo de assimilação da realidade: a narrativa mítica. c) Mito

O mito é uma realidade bastante complexa, sendo alvo de inúmeras abordagens de diversos matizes. Não pretendemos fazer justiça a toda essa complexidade, pois vamos abordá-lo do ponto de vista de nossa temática geral, ou seja, queremos perceber em que consiste sua dimensão mimética e como ela se relaciona com o processo de abstração conceitual que lhe segue.

A Dialética do esclarecimento não toma o mito como objeto de estudo específico, mas em função da idéia de desenvolvimento da racionalidade ocidental, o esclarecimento. Destarte, as referências a ele estão sempre vinculadas àquilo que lhe sucedeu, havendo poucas relações com as formas cognitivas anteriores a ele, fazendo com que se gerasse uma expressiva confusão entre os comentadores sobre a distinção entre ele e a magia, por exemplo. Um dos vários casos que vemos na literatura a respeito disso é a notória miscelânea conceitual feita por Nho. Esta, falando sobre o mito, diz:

Na medida em que o homem tenta explicar o mundo, ele se destaca da natureza. Ele não está mais desamparadamente exposto à onipotência da natureza, mas, sim, sai do co ntexto natural. Em sua explicação do mundo, sua essência se mostra como poder, ou seja, como dominação sobre a natureza. Nesta antecipação mítica, ele começa a conhecer a natureza como poder universal. Sua primeira reação à onipotência que se lhe defronta é, portanto, mímesis. Para encontrar uma defesa perante o poder invisível da natureza, ele se assemelha à natureza. Através da mímesis ele procura vencer o medo da natureza e recobrir a distância dela. Na semelhança com ela, ele tem que aceitar as regras da natureza e orientar-se por elas: “para assustá-los [os demônios] ou suavizá-los, ele assume um ar assustadiço ou suave” (DA 15-6/24).61

O “ele” dessa última frase refere-se ao feiticeiro, que Nho omite. A autora misturou,

nesse parágrafo, mimetismo, mímesis, preanimismo, magia e mito! A confusão entre

mimetismo e mímesis, de que falam Lüdke e Kipfer, estendeu-se, aqui, a todos os itens

desse capítulo. Considerando essa situação, vê-se que a assertiva de Habermas de que é

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impossível uma teoria da mímesis parece ser aplicável, não apenas aos textos de Adorno,

mas, também, aos dos comentadores deste. Devemos, portanto, começar diferenciando o

mito da forma de apropriação mágica do mundo que ainda não havia se cristalizado como

narrativa mítica.

Como dissemos ao terminarmos o item anterior, o que diferencia a magia do preanimismo é, em termos gnosiológicos, a especificação do mana em demônios e em deuses e a apropriação da relação de poder entre imagem e mundo. É precisamente a consolidação da relação causal entre a esfera da transcendência e o mundo materialmente determinado que configura a passagem para o mito. Em vez de uma flutuação mimética dispersa em várias potências anímicas, o que se tem é mediação da experiência da realidade através de algo pseudo-categorial, que é a “noção” de origem. Como diz Daniel Kipfer,

Os símbolos míticos colocam à disposição, em um âmbito limitado, possibilidades de abstração, dependências “causais”, que também tornam reconhecíveis regularidades. Mitos da origem do mundo e do ser humano indicam o surgimento da experiência da diferença a partir da unidade arcaica, mostram como o homem (…) se desmembrou do contexto natural e, ao mesmo tempo, através de sua remissão à descendência do patriarca, etc., torna-se vinculado a um mundo ordenado com sentido.62

A origem estabelece uma nova mediação entre o homem e o mundo, na medida em que desloca a sede de explicação da rede de relações causais transcendentes para um tempo anterior ao atual, um tempo “forte”, mágico, em que tudo veio a ser o que é hoje por obra e graça dos deuses63. O mito é caracterizado, de modo mais simples e enfático, exatamente por essa remissão de todo ser e acontecer a eventos primordiais situados para além da vida cotidiana. Tal é a definição que lhe dá Mircea Eliade:

o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser.64

Essa sedimentação do poder de causalidade da esfera transcendente em uma origem tem diversas conseqüências e uma pressuposição fundamental. Ela pressupõe um desenvolvimento expressivo da linguagem, que tem de ser capaz de estruturar-se de tal modo que consiga abranger as múltiplas determinações do sagrado em um relato. A própria palavra “mito” significa, em grego, narrativa. Trata-se de um processo de simbolização da realidade que assume que a concatenação de várias idéias seja capaz de dar suporte ao poder mágico vivenciado no seio da natureza como totalidade. No mito, a particularidade da representação e a infinidade da transcendência têm uma articulação diferenciada em relação à magia. Nesta, a substitutividade específica estabelece um relacionamento mais “puntual” frente aos poderes sagrados, enquanto o mito já se

61 Soung-Suk Nho. op. cit ., p.60. 62 Daniel Kipfer. op. cit., p.90. 63 Cf. Mircea Eliade. Mito e realidade. Tradução Pola Civelli. São Paulo: Brasiliense, 1984, p.21. 64 Mircea Eliade. op. cit ., p.11.

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configura como mediando esse relacionamento através de um saber65. A magia é eminentemente prática, concreta, pois configura-se como algo vinculado a um procedimento de intercâmbio simbólico com a divindade em que esta é invocada através de procedimentos cuja efetividade está ligada à sua unicidade, aos elementos concretos, imagéticos, do arranjo do sacrifício. Não está em jogo o poder que se tenha de elaborar um saber que fundamente essa prática. Haveria uma certa dispersão das ligações com o poder sobrenatural, fundadas no aspecto flutuante da mediação mimética do sujeito e do objeto, em que ambos parecem estabelecer-se precisamente no hic et nunc da representação. A narrativa mítica, por seu turno, toma uma consistência epistemológica diferenciada, uma vez que precisa congregar os elementos simbólicos em um corpus lingüístico que assume uma relativa autonomização frente ao sentimento de contato com o poder divino, uma vez que tal sentimento é gerado precisamente pela remissão a um conjunto de elementos que não se constituem de modo dispersamente mimético como no caso da invocação de poderes mágicos pré-míticos. O que se deve notar é a capacidade que a linguagem teve que possuir de deslocar o “centro de gravidade” do real de modo a que este passasse a ter uma mediação “localizada”, centrada na referência a eventos que influenciam todo ser e acontecer a partir de um ponto que pode ser referido por um discurso, por um relato.

Em relação às conseqüências de tal deslocamento, primeiramente vemos que ele permite à consciência mítica estabelecer uma unificação razoavelmente estruturada do real. A realidade é percebida como ordenada, uma vez que se estabelece de modo enfático a diferenciação entre a esfera do sagrado e do profano, feita precisamente pela estruturação da linguagem. Como diz Kipfer:

Os símbolos do mito apresentam uma ordenação do mundo e tendem a um sistema, a um complexo total, a uma interpretação do mundo que abarca o todo. (…) Esta tarefa é efetivada pela linguagem que surge com o mito. As regras de identificação que são fornecidas aos sujeitos com a linguagem permitem-lhes uma relação com a natureza em seu todo, com uma ordenação do mundo em geral, com a totalidade. 66

A sedimentação cognitiva do mito mostra-se enfaticamente na distinção de estratos significativos do conjunto de símbolos lingüísticos, que se apresenta capaz de situar, em âmbitos diferenciados, elementos vivenciais que se misturavam de modo difusamente concreto na magia. O mito estabelece hierarquias para aquilo que sempre foi o Leitmotiv das formas cognitivas primevas (e também das que virão com a racionalidade esclarecida): as relações de poder. Os deuses são pensados em função de seu posicionamento na grade de forças relativas deles entre si, para com a natureza e com os homens. Essa gradação articulada de forças mostra a profundidade gnosiológica alcançada pelo mito, fruto da negação do elemento de exterioridade mimética, compreendida pela consideração que fizemos do caráter expressivo da mímesis, em que o sujeito se confunde com o objeto no seio da duplicação imagética do real. Em outras palavras, o aprofundamento cognitivo do mito mostra-se precisamente em seu distanciamento para com a superfície fluida de relações de identidade e de diferença entre sujeito e objeto da magia. Disso se conclui que a ordenação das relações de poderes transcendentes acarretou um passo a mais — e significativo — na constituição da esfera do que virá a ser a individualidade: a profundidade gnosiológica do mito correspondeu a uma profundidade da esfera da consciência.

65 Recorde-se a diferenciação que fizemos entre experiên cia, conhecimento e saber no início do presente capítulo. 66 Daniel Kipfer. op. cit ., p.90.

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Do preanimismo, passando pela magia, até o mito, temos um aumento da capacidade de especificação das relações de poder anímicas e naturais, sendo que tal especificação, como vimos, começou na magia, chegando a uma cristalização na idéia de origem e de ordenação dos deuses míticos. Desse modo, precisamos ver de perto a seguinte idéia em relação ao mito de Kipfer e de Hubig, por ele citado:

Fala-se de um “princípio de diferenciação” nesse estágio, com o qual a relação de mundo mítica começa; diferenciação do acontecer único (mana) que impera na natureza e nos sujeitos: “os sujeitos individuais realizam apenas aspectos singulares, que somente constituem um sentido de modo coletivo [gemeinsam]”.67

A idéia de Kipfer não é errada, pois, efetivamente, o mito produz uma nova mediação de modo a propiciar uma diferenciação do poder infinito da natureza, mas, por outro lado, dever-se-ia, por mor da clareza conceitual, dizer que a magia já fizera uma diferenciação de tal poder a seu modo, como dissemos longamente no item anterior. O que é realmente problemática é a afirmação de Hubig, pois ela é uma projeção da forma de pensamento burguesa de que a sociedade é constituída por indivíduos, ou seja, de que esta é resultado da soma das ações e dos conhecimentos particulares. Não é esse o caso no pensamento de Adorno. Para este, mesmo na sociedade atomizada contemporânea, o indivíduo é algo que somente existe como função do todo social: “O sujeito, pretensamente ser em si, é em si mediado por aquilo de que se separa: o contexto de todos os sujeitos” (DN 213). Essa mediação é algo radical, ou seja, a própria consciência individual somente pode ser pensada, ou somente existe a partir da dimensão de universalidade do pensamento, que é algo fundado socialmente. Segundo Adorno, a lógica de Hegel fracassaria em sua tentativa de estabelecer uma dialética entre universal e particular porque ela não lida “com o particular de forma alguma como particular, mas, sim, meramente com a particularidade, que é já algo conceitual. O primado lógico do universal assim estabelecido fornece o fundamento da opção hegeliana pelo social e pelo político. Mas se deveria concordar com Hegel que, não apenas a particularidade, mas, também, o particular mesmo, é impossível de ser pensado sem o momento do universal, que o diferencia, cunha, e, em certo sentido, torna-o pela primeira vez um particular” (DN 322). Ou seja, o surgimento da individualidade somente pode ser pensado a partir do âmbito coletivo, que, portanto, é algo anterior ao indivíduo. Voltando à idéia de Hubig, trata-se do contrário do que ele disse. Se o mito é um movimento de diferenciação do cosmo, então é precisamente aí que encontramos um momento em que o indivíduo pode começar a se perceber um pouco mais próximo da individualidade do que no período da magia pré-mítica. A forma mítica de pensamento, algo instituído socialmente é que é o meio, a mediação, de que se serve o próprio indivíduo para dar um passo a mais em sua oportunidade de se perceber como particular, cuja efetividade, como bem sabemos, está ainda longe de acontecer.

Essa distância para com a efetivação da individualidade estampa-se de modo claro naquilo que o mito tem da magia: ele ainda é fortemente mimético. Vejamos como a fundação da ordem cósmica na origem preservou de modo enfático a mímesis mágica.

O que há de diferente em termos substanciais do mito em relação à magia é, como dissemos, a sedimentação da noção de causa, uma vez que, no lugar de processos

67 Daniel Kipfer. op. cit ., p.90; a passagem entre aspas é de Christoph Hubig. “Dialektik der Aufklärung und neue Mythen. Eine Alternative zur These von Adorno und Horkheimer”. In: Hans Poser (ed.). Philosopnie und Mythos. Ein Kolloquium. Berlin: 1979, p.223.

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de interação dispersos com os poderes anímicos, o mito passou a mediar esse contato com a transcendência através da concentração de tais poderes em um relato sobre a origem das coisas em um tempo remoto, primordial. Apesar da ordenação do mundo obtida por esse meio, o mito preservou integralmente a relação para com o poder infinito da natureza como totalidade (mana), uma vez que tal poder ainda podia ser sentido em cada uma de suas manifestações, compreendidas a partir do relato sobre os entes primordiais.

Dado o desenvolvimento da linguagem em relação às fases anteriores, o mito já possui um status de mediação lingüística que o aproxima de nossa época, na medida em que foi o primeiro passo — e decisivo — para a absorção do poder de comprometimento imagético entre o sujeito e o mundo em um corpus lingüístico estruturado. Como dissemos, à medida em que a imagem se solidifica, se sedimenta, no comportamento mimético, ela parece arrastar para si o centro gravitacional do sujeito, fazendo com que este se sinta compelido a se “reapropriar” da imagem como pagamento de uma dívida. Ora, dada a sedimentação expressiva do poder transcendente em uma imagem de seres sobrenaturais, fantásticos, poderosos, em um tempo distante, tal cristalização e quasi-autonomia da imagem que duplica ou representa simbolicamente a realidade passou a constituir um pólo atrativo com uma significação especial, posto que a imagem do tempo sagrado já continha uma abstração significativa: a narrativa mítica não era uma imagem que duplicava fisicamente a realidade, mas, sim, como dissemos, através do conjunto de símbolos, que formavam um todo que necessitava de uma concatenação de vários elementos. Desse modo, vê-se, ao mesmo tempo, um poder de unificação do mediador em relação à transcendência (origem) e um estiramento do sujeito no continuum da narrativa. Esses dois elementos, juntos, é que propiciaram a primeira oportunidade de o ser humano constituir um saber sobre o mundo. Dadas a unificação do poder explicativo do mundo e a necessidade de falar dele em um discurso prolongado, o indivíduo teve a primeira oportunidade de iniciar um processo minimamente “reflexivo” sobre o mundo, uma vez que o dis-curso sobre o real ganha certa densidade gnosiológica.

O que fascina em relação ao mito é como essa profundidade epistemológica manteve intacta a força de constrição da imagem. A união desses dois elementos é que caracteriza mais propriamente o que se diz em relação à produção da realidade pelo mito: a imagem é percebida como influenciando diretamente o curso do mundo a partir da sedimentação lingüística da narrativa. Essa imagem é a da criação primeva, originária, das coisas. Tratam-se de eventos primordiais que devem se repetir em cada ser e acontecer como sendo a realidade mais íntima e mais profunda de cada ente. A divisão filosófica entre essência e aparência já estava sendo gestada na separação mítica entre sagrado e profano.68 Mas, dado o caráter profundamente vivencial dos dois elementos, o mito está muito longe da abstração filosófica. Aquilo que é sentido como o mais profundamente real nas coisas há que se repetir nelas como sendo a permanência do poder dos deuses. O evento primordial instaura um processo que deve ser resgatado, retomado, de modo a se preservar a ordem cósmica. O poder infinito da natureza como totalidade continuou no mito como seu verdadeiro significado, e ele é reiteradamente cumprido em cada acontecimento pela presentificação da origem. O evento primordial é algo que deve ser resgatado por um saber acerca da realidade mais profunda de uma determinada realidade. Esse resgate é o que é vivenciado como fazendo com que a realidade seja o que ela é: “no mito, tudo o que acontece deve expiar uma pena pelo fato de ter acontecido” (DA 18/26). O discurso 68 Na verdade, ela já estava com seu caminho traçado no mana preanímico, mas esse era ainda por demais concreto, vivido sem a mediação mais “densa” da linguagem, que é um elemento importante para que se possa falar de uma “prefiguração”.

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mítico é uma mediação (um saber) que ordena à natureza que ela continue em ordem, pois ele é vivido como congregando, de forma hiperbólica, o substrato mais recôndito do real, de onde brota a seiva que nutre os entes com sua dignidade mais pujante. Conhecer os mitos significa fazer com que as coisas sejam o que elas já deveriam ser.

Em Timor, por exemplo, quando germina um arrozal, dirige-se ao campo alguém que conhece as tradições míticas referentes ao arroz. (…) Recitando o mito de origem, obriga-se o arroz a crescer tão belo, vigoroso e abundante como era quando apareceu pela primeira vez. Não é com o fim de “instruí-lo” ou de ensinar-lhe a maneira como deve comportar-se que o oficiante lembra ao arroz o modo como foi criado. Ele o força magicamente a retornar à origem, isto é, a reiterar sua criação exemplar.69

As coisas devem permanecer o que são devido à força instauradora de significado que o evento primordial possui. Esse poder de produção da realidade a partir da referência simbólica à transcendência é a força centrípeta que congrega toda a realidade em um círculo cujos limites são a própria existência, que gira eternamente no movimento do destino:

o destino mítico, fatum, e a palavra falada eram uma só coisa. A esfera das representações a que pertencem as sentenças do destino executadas invariavelmente pela figuras míticas ainda não conhece a distinção entre palavra e objeto. A palavra deve ter um poderio imediato sobre a coisa, expressão e intenção confluem. (…) As palavras imutáveis permanecem fórmulas para o contexto inexorável da natureza. (DA 67/65)

Tal destino significa a ratificação da imanência do real por força da incomensurabilidade para com o poder transcendente:

O dualismo mítico não ultrapassa o âmbito da existência. O mundo totalmente dominado pelo mana, bem como o mundo do mito indiano e grego, são, ao mesmo tempo, sem saída e eternamente iguais. Todo nascimento se paga com a morte, toda ventura com a desventura. Homens e deuses podem tentar, no prazo que lhes cabe, distribuir a sorte de cada um segundo critérios diferentes do curso cego do destino; ao fim e ao cabo, a realidade triunfa sobre eles. (DA 22/29-30)

Esse poder de produção da realidade mítica aponta para algo importante: os deuses estão incorporados aos elementos naturais como poder, como força manifesta. Apesar de termos dito que a divisão entre sagrado e profano prefigura a divisão entre essência e aparência, isso é ainda bastante precário, pois o caráter concreto do que estipula o que virá a ser a essência é sobremaneira patente: não há abstração entre os dois âmbitos. Rá, para os egípcios, é mais bem compreendido por nós como congregando o poder mais profundo e substancial do que é percebido, sentido, no próprio sol enquanto calor e luz. Se o trigo cresce com o calor do astro, é porque esse calor contém um poder infinitamente grande, sagrado. Apesar de conter essa concretude, o mito, como vimos, já era um processo de abstração se comparado à magia, que, por sua vez, o é em relação ao preanimismo. Façamos um apanhado dessa escala de abstrações.70 d) Abstração crescente

O mimetismo, como dissemos, é uma forma propriamente orgânica de assimilação do real, bastante concreta, posto que se situa em um âmbito de não-consciência, podendo ser dito como compartilhado pelos homens e pelos animais. Entretanto, ele é 69 Cf. Mircea Eliade. op. cit ., p.19. 70 Não terminamos aqui nossas considerações sobre o mito. Ele será abordado em diversas outras passagens. No presente item o que vimos foi precisamente a narrativa mítica como etapa da dialética da alteridade no âmbito da configuração mimética do pensamento.

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minimamente abstrato no caso dos homens, pois, em que pese os atos reflexos — que têm seu ímpeto no sistema nervoso periférico —, ele se dá em um ser que já possui a separação entre o princípio motor e o que gerencia o movimento. O que seria absolutamente concreto seria o instinto, posto que, nele, o ser vivo não se distingue do meio circundante pelo fato de não se distinguir internamente.

A mímesis já é algo que admite a mediação da consciência, configura-se como algo que se funda, minimamente que seja, numa “decisão”. Mas não é possível falar da abstração na mímesis tout court, uma vez que ela se dá de várias formas, no preanimismo, na magia e no mito. Vejamos cada uma delas.

Enquanto forma mais primitiva de sedimentação cognitiva da mímesis, o preanimismo é bastante concreto, pelo fato de que o poder infinito da natureza como totalidade é vivido, sentido, concretamente como um poder difuso pelas coisas. Não se trata de uma concretude absoluta, como no caso da relação dos animais com o mundo, posto que já existe uma mediação simbólica de tal poder, mas a forma como ele é percebido ainda está expressivamente vinculada à materialidade do sentimento de medo, de espanto, de êxtase, de incompreensão, de fascínio, etc. A “representação” (as aspas aqui são necessárias) do mana está bastante próxima da concretude vivencial do poder.

A magia estabelece mais uma mediação para o poder da natureza, que são as figuras dos deuses e dos demônios. Nesse passo, estabelece-se uma diferenciação entre as potências anímicas. Para poder fazer essa diferenciação, foi necessário um quantum mínimo de distanciamento para com a profusão indiferenciada das forças da natureza. A representação simbólica, imagética, do poder natural em divindades é algo um pouco mais abstrato do que o mana, pois, através delas, já se tem um distanciamento em relação à natureza de modo a se poder diferenciá-la como poderes específicos. É como se, estando por demais próximos a uma parede, não conseguíssemos distinguir seus planos, divisões, etc. À medida que nos afastamos, podemos percebê-los.71

O mito é mais um passo na abstração do pensamento, na medida em que estipulou mais uma mediação para com a natureza, que é a noção de origem. Com essa localização do poder da natureza em um tempo primordial, o indivíduo pôde começar a se diferenciar dela através da solidificação do medium do saber lingüístico. Essa qualificação epistemológica emergente do mito arcaico mostra como ele colocou um grau a mais na capacidade humana de diferenciar os âmbitos do sagrado e do profano. Mas, como vimos, essa abstração era ainda incipiente, posto que essas duas esferas eram vividas como em conjunto, um misto de forças que se soprepunham e se atritavam.

A pergunta é: onde, afinal de contas, podemos falar de uma abstração significativa entre pensamento e realidade, ou entre o sagrado e o profano? – ou, antes: haveria esse começo “localizável” na história? Por que esse posicionamento é importante? Quais as conseqüências da emergência e do desenvolvimento dessa abstração? Essas são as questões que servem de Leitmotiv do próximo capítulo.

71 Não se deve confundir, aqui, o aspecto difusamente concreto do mana, com a amplitude de aplicação da representação abstrata. Essa amplitude da abstração diz respeito ao alargamento do horizonte perceptivo propiciado pela separação, ao passo que a difusão da concretude sensível mostra a indiferenciação resultante do contato com a coisa. Embora sustentemos a idéia de que a abstração crescente aumenta o leque de aplicações da representação, ou seja, quanto mais abstrata ela é, mais genérica, e quanto mais concreta, mais particular, mais específica, em um grau de particularidade extrema, a proximidade gera o efeito contrário, ou seja, uma relação com o mundo cujo status cognitivo é o de uma indiferenciação hipertrofiada.

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Capítulo II

Abstração versus mímesis: a trajetória do esclarecimento

Uma vez que o movimento de apropriação cognitiva da realidade sempre foi algo que progressivamente salientou a unidade, tanto do real, quanto do sujeito, o pensamento sempre significou, desde que se abandonou minimamente a onipresença dos movimentos de mimetismo inconscientes (não produzidos a partir de qualquer teleologia), a tentativa de se afastar da realidade para poder discernir suas diferenças e especificidades, ao mesmo tempo em que, com tal afastamento, proporcionava o espaço necessário para a constituição da consciência. Por causa desse progressivo distanciamento, parece difícil estabelecer um começo para um movimento decisivo de ruptura entre pensamento e realidade.

A idéia que iremos sustentar nesse capítulo é, basicamente, que aquilo que Adorno e Horkheimer chamam de “esclarecimento” deve ser entendido como se fundando no conceito de abstração. Uma vez que consideramos que essa ruptura cognitiva sujeito-objeto se deu em um crescendo, as questões do final do primeiro capítulo poderiam ser reformuladas em duas: haveria como se falar que o esclarecimento sempre foi a marca da existência humana? – ou podemos estabelecer uma etapa que, diferenciando-se qualitativamente das que lhe precederam, instaura o processo do esclarecimento?

(Dado que a abstração conceitual se contrapõe ao duplo movimento de identidade e de diferença entre sujeito e objeto na mímesis, o que vai nos interessar nessa parte do texto não é propriamente a mímesis, mas sua negação. Trata-se de perceber qual a trajetória seguida pela racionalidade ocidental em sua forma de instituir a sociedade, suas relações de poder, sua legitimação epistemológica, etc.)

1. Onde começa o esclarecimento?

Como dissemos na Introdução, o conceito de esclarecimento na obra de Adorno e de Horkheimer é bem incomum, na medida em que a palavra Aufklärung e a que normalmente que se usa para traduzi-la, “iluminismo”, dizem respeito ao período histórico contemporâneo da revolução francesa, sendo ela empregada de modo bem mais extenso na obra que estamos comentando. O problema reside precisamente em saber até onde vai essa ampliação praticada pelos autores. Os intérpretes do texto não tomam isso como problema propriamente, pois já assumem uma posição teórica determinada, sem considerar a dificuldade que o texto efetivamente nos coloca para assumir uma ou outra hipótese de interpretação.

De acordo com nossa leitura do texto, podemos levantar, inicialmente, quatro concepções de esclarecimento que estipulam para ele começos diferentes. Vejamos quais são elas.

a) Quatro conceitos de esclarecimento

Caminhemos do sentido mais específico para o mais genérico. O primeiro deles seria o do esclarecimento burguês, que é aquele que normalmente é usado pela historiografia para localizar o começo do processo de construção da idéia de razão moderna. Embora ele seja também usado pelos autores, qualquer leitor da Dialética do esclarecimento sabe muito bem que ele é apenas uma parte de um processo mais amplo. O segundo é o que começa com a Filosofia. Em diversas passagens, os autores referem-se ao pensamento que surgiu com os filósofos pré-socráticos como esclarecimento filosófico,

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em contraste com outro que o teria antecedido. Até aqui, não há propriamente problema na consideração desses conceitos, posto que ambos são admitidos como se referindo apenas a uma parte de um processo mais amplo.

O terceiro conceito, o de que o mito (em geral) é que seria o início do processo de esclarecimento, em contraste com a magia, por exemplo, já coloca dificuldades, pois, apesar de ser explicitado como uma das teses centrais do livro, há outro conceito, bem mais amplo, que faz com que tomemos, inclusive esse esclarecimento mítico como parte de um processo maior: trata-se da concepção de esclarecimento como identificado com todo e qualquer pensamento em geral, mesmo o mais rudimentar e precário da pré-história da humanidade.

Analisemos esses dois últimos conceitos. Quando os autores dizem que “o mito já é esclarecimento” (DA 6/15),

Nho observa que se deve prestar atenção no advérbio “já”: “ele não significa, aqui, apenas uma sucessão temporal, mas, sim, uma referência retrospectiva conceitual ao mito. Através disso salienta-se ainda que o mito, em certo sentido, também já deve ser conceituado como esclarecimento”72. Não nos parece esclarecedora essa observação, pois o que ela exclui é evidente, dado que não se trata mesmo de uma consideração cronológica, no sentido de uma colocação de datas. Mas a continuação da passagem também não acrescenta nada ao que a frase original já dizia, pois apenas diz o que também é evidente, que o mito deve já ser conceituado como esclarecimento. O que significaria, então, o advérbio “já”? Segundo pensamos, ele tem, de certa forma, uma conotação temporal sim, mas em um sentido genealógico-histórico, ou seja, é preciso pensar como o mito pode ser pensado como uma fase do desenvolvimento da consciência humana. Considerando essa sua especificidade, ele deve ser diferenciado das formas de assimilação do mundo anteriores e posteriores. Tal especificidade é precisamente aquilo que apontamos no último item do capítulo anterior, condensada na seguinte passagem em que os autores dizem explicitamente que o mito já é esclarecimento:

(…) os mitos que caem vítimas do esclarecimento já eram o produto do próprio esclarecimento. (…) O mito queria relatar, denominar, dizer a origem, mas, também, expor, fixar, explicar. Com o registro e a coleção dos mitos, essa tendência reforçou-se. Muito cedo deixaram de ser um relato, para se tornarem uma doutrina. Todo ritual inclui uma representação dos acontecimentos bem como do processo a ser influenciado pela magia. Esse elemento teórico do ritual tornou-se autônomo na primeiras epopéias dos povos. (DA 14/23)

A maioria dos comentadores usa esse conceito para referir-se àquilo que poderia ser a primeira fase do esclarecimento. Essa concepção não salienta uma distinção interna ao mito que consideramos de fundamental importância, que é a entre o mito patriarcal grego e os outros mitos (africanos, orientais, etc.). Em um livro recentemente publicado (1999), Kiepfer ainda toma o mito em geral como já sendo esclarecimento:

Em contraste com o mito — que já possibilitou um acesso estruturante à natureza (e, nessa medida já era esclarecimento) —, a estruturação cognitiva da natureza e sua apropriação, através do esclarecimento das imagens de mundo míticas, supõem imperativos metódicos e são conduzidas metodicamente. 73

Hauke Brunkhorst chega a falar o contrário da idéia que advogamos, pois, baseando-se em Max Weber, diz que ela não é válida:

(…) não apenas o relativamente tardio mito patriarcal, pois já o mágico arcaico é, para Weber, o

72 Soung-Suk Nho. op. cit ., p.57. 73 Daniel Kipfer. op. cit ., p.91.

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primeiro protótipo do profissional racional, tal como Ulisses, para os autores da Dialética do esclarecimento , é a primeira forma, ainda miticamente encantada, do burguês. A Razão, que, como diz Weber, esconde-se na “mágica racional”, na “empresa” do “mágico profissional”, na “mais antiga de todas as profissões”, é já a razão da autoconservação : a meta da magia é a “influência racional do espíritos no interesse da ciência”.74

Posição idêntica é a de Fredric Jameson, que engloba a magia no mesmo processo global: “pois trata-se também de ‘esclarecimento’: o objetivo e função do xamã — como dos filósofos e cientistas posteriores — consiste em controlar a natureza (…)”75. Essa colocação de Jameson nos possibilita passar para a última da concepções de esclarecimento, que o iguala ao próprio pensar que dispõe da natureza.

b) Esclarecimento qua dominação

Antes de dizer em que consiste essa concepção, vamos situá-la no corpo argumentativo da Dialética do esclarecimento.

A nossa tese é a de que as três primeiras partes do livro de Adorno e de Horkheimer, “Conceito de esclarecimento” e os Excursos I e II: “Ulisses ou mito e esclarecimento” e “Juliette ou Esclarecimento e moral”, operam com duas concepções distintas de esclarecimento. Segundo pensamos, a primeira delas procura conceber a relação do homem em relação ao mundo prioritariamente em termos gnosiológicos, fundando as relações de poder, de dominação social, de coletividade, etc., no modus cognoscendi instaurado pela racionalidade ocidental em contraste com o do preanimismo, da magia e do mito, ao mesmo tempo em que mostra seu entrelaçamento com essas formas arcaicas de assimilação do mundo. Assim, o conceito mais fundamental para marcar o plano de clivagem entre uma racionalidade e outra é o de abstração. Trata-se de uma categoria que pode envolver um aspecto teleológico, é verdade, mas é mais propriamente epistemológica, propiciando os meios conceituais necessários para construirmos uma teoria do surgimento da mímesis — que se fez no primeiro capítulo — e para mostrarmos como a razão surge precisamente a partir de uma dupla relação com aquela: reprimindo-a, negando-a, e acabando por continuá-la, seja usando-a como seu meio (inconsciente), ou desaguando nela como seu destino regressivo. É precisamente esse o conceito de esclarecimento que explicitaremos no próximo item e que servirá de fio condutor para o corpo principal desse capítulo.

Por outro lado, os Excursos I (sobre Ulisses) e II (sobre Juliette) constróem uma abordagem prática da assimilação do mundo, ou seja, procuram compreendê-la a partir do exercício de domínio sobre a natureza e sobre os outros, procurando conceber a origem da subjetividade burguesa a partir da elaboração épica dos mitos gregos e da moral do esclarecimento moderno. Dado esse ponto de partida fundante para o Excurso I — que é o que analisaremos mais à frente —, o conceito que serve de base para a concepção de esclarecimento é o de teleologia, em vez do de abstração. Além disso, é igualmente basilar a idéia de que a dominação da natureza esteve desde sempre imiscuida de má-consciência. O que os autores pretendem é derivar a astúcia esclarecida de lograr a natureza a partir do engodo que eles vêem sempre ter existido em todo e qualquer sacrifício.

Inicialmente, no Excurso I, é invocada a idéia de Nietzsche de que o esclarecimento tem um duplo aspecto histórico-social: por um lado, tornar os governantes 74 Hauke Brunkhorst. “Die Welt als Beute. Rationalisierung und Vernunft in der Geschichte”. In: Willem van Reijen & Gunzelin S. Noerr Verizig Jahre Flaschenpost: “Dialektik der Aufklärung” 1947 bis 1987. Frankfurt a. M.: Fischer, 1987, p.162. 75 Fredric Jameson. op. cit ., p.135.

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conscientes de seu procedimento como sendo “uma mentira deliberada”; por outro, servir de instrumento para governar, tornando os homens, na democracia, por exemplo, facilmente governáveis. Dada essa dupla característica do esclarecimento, “seu conceito como pensamento progressivo é estendido até o início da história tradicional” (DA 51/54). Essa “porta de entrada” do Excurso mostra que o conceito de razão esclarecida terá como Leitmotiv a questão do exercício do poder. Embora não esteja explícito o que seria a história tradicional (se a partir do começo da escrita, por exemplo), é certo que se inicia bem antes de qualquer início do processo de abstração significativo do pensamento:

De fato, as linhas da razão, da liberdade, da civilidade burguesa se estendem incomparavelmente mais longe do que supõem os historiadores que datam o conceito do burguês a partir tão-somente do fim do feudalismo medieval. Ao identificar o burguês justamente onde o humanismo burguês mais antigo presumia uma aurora sagrada destinada a legitimá-lo, a reação neo-romântica identifica a história universal e o esclarecimento. A ideologia na moda, que faz da liquidação do esclarecimento a primeira de suas causas, presta-lhe uma reverência involuntária e se vê forçada a reconhecer a presença do pensamento esclarecido até mesmo no mais remoto passado. (DA 51-2/54)

Dado que, desde os primórdios da história da humanidade, a sobrevivência sempre somente foi assegurada através de algum processo de domínio sobre o que poderia causar a morte, é de se esperar que a consciência da necessidade de impor tal domínio tenha existido precocemente. Desde os movimentos de mimetismo que já poderiam ser minimamente articulados de forma consciente, passando pela relação dirigida teleologicamente com os deuses, até o mito mais desenvolvido, é claro que a questão do domínio sobre um outro, seja ele a natureza ou a sociedade, sempre envolveu a premência de conhecer para poder preservar a vida. Mas os autores não se contentam em fazer o conceito de esclarecimento recobrir esse processo de domínio: eles dizem que este sempre foi acompanhado de má-fé.

A substitutividade específica na magia, que analisamos sob a noção de relação entre as partes e o todo, de acordo com a idéia de representação imagética, envolve a prática de sacrifícios, sejam eles humanos ou através de representantes, como de um carneiro em lugar do filho, etc. Segundo os autores, essa substituição tem um fim precípuo: enganar o deus no mesmo ato em que este é satisfeito, “e o logro de que ele é objeto se prolonga sem ruptura no logro que os sacerdotes incrédulos praticam sobre a comunidade crédula” (DA 57/58). A idéia dos autores é que os sacerdotes sempre souberam que seu procedimento era falso: “a experiência de que a comunicação simbólica com a divindade através do sacrifício nada tem de real só pode ser [muß] uma experiência antiquíssima [uralt]” (idem – grifos nossos). A relação com a transcendência mágica seria apenas um meio de os sacerdotes racionalizarem o “assassínio pela apoteose do escolhido” (idem). Em outras palavras, a substitutividade mágica do sacrifício — e, por extensão, de todas as práticas — sempre teria sido ideologia. Segundo os autores, “pode ser que, em determinada época dos tempos primitivos, os sacrifícios tenham possuído uma espécie de racionalidade crua, que no entretanto já então mal se poderia separar da sede de privilégios. (…) As ideologias mais recentes são apenas reprises das mais antigas, que se estendem tanto mais aquém das ideologias anteriormente conhecidas quanto mais o desenvolvimento da sociedade de classes desmente as ideologias anteriormente sancionadas” (DA 59-60/59-60).76 76 A concepção de ideologia de Adorno é tão extrema, que ela se estende a todo pensamento: “A ideologia deve sua força de resistência contra o esclarecimento à cumplicidade com o pensamento identificador: com o pensamento em geral” (DN 151); mas até mesmo ao âmbito animal (!): “se o leão tivesse uma consciência, sua fúria contra o antílope que quer comer seria ideologia” (ND 342). Mais à frente teremos oportunidade de comentar em detalhes a

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A intenção dos autores é derivar a astúcia esclarecida de Ulisses a partir da conscientização da falsidade da relação com a transcendência: “o que Ulisses faz é tão-somente elevar à consciência de si a parte de logro inerente ao sacrifício, que é talvez a razão mais profunda para o caráter ilusório do mito” (DA 58 – grifos nossos). Não há dúvida: os autores consideram realmente que a magia e o mito estão fundados em algo falso, e que seus praticantes têm consciência disso. “O que Wilamowitz censura aos mitos posteriores, o arbítrio da invenção, já devia estar presente nos mais antigos em virtude do pseudos dos sacrifícios” (DA 55 – nota/245 – nota). Ora, se “a comunicação simbólica com a transcendência” já era reconhecidamente falsa no sacrifício, o que nos leva a concluir que os autores a tomariam como verdadeira para os sacerdotes em relação à natureza em geral? Por que a magia seria tomada como verdadeira pelos sacerdotes para fazer o trigo crescer, por exemplo, mas seria falsa em relação ao sacrifício humano? Os sacerdotes, no momento do sacrifício humano, passariam a descrer no poder da magia em que acreditariam quando o aplicavam nos processos naturais? Como chega a ser até mesmo ridículo pensar que os sacerdotes viviam realmente a força de sua magia no processo de controle da natureza, mas desacreditavam-na ao fazerem sacrifícios humanos, somos levados concluir que Adorno e Horkheimer pensavam mesmo que a magia tout court era concebida como algo falso pelos seus praticantes sacerdotais.

Ora, compare-se esse “desmascaramento” da operação de contato simbólico com os deuses com a passagem da primeira parte do livro que citamos:

Os ritos do xamã dirigiam-se ao vento, à chuva, à serpente lá fora ou ao demônio dentro do doente, não a matérias ou exemplares. Não era um e o mesmo espírito que se dedicava à magia; ele mudava igual às máscaras do culto, que deviam se assemelhar aos múltiplos espíritos. (…) O feiticeiro torna-se semelhante aos demônios; para assustá-los ou suavizá-los, ele assume um ar assustadiço ou suave. (DA 15-6/24)

Ora, à luz dos parágrafos acima, somos forçados a pensar que essa passagem descreve uma cena de fingimento deliberado. Que valor esse procedimento do xamã tem em termos de delineamento da mímesis como processo de assimilação do mundo, se o que ele fazia era apenas uma “mentira deliberada” de modo a alcançar e manter uma rede de “privilégios” no meio social? Se a ordem social é um espelho da ordem da natureza, que é trazida para o meio coletivo através dos símbolos, e se tal ordem, em que “o destino mítico, fatum, e a palavra falada eram uma só coisa” (DA 67/65), então essa comunicação com a transcendência que garante o ciclo eterno das coisas valia apenas para os dominados, sendo usada pelos sacerdotes apenas como um meio conscientemente fraudulento?

Cremos que a comunicação com a transcendência era algo que os sacerdotes realmente colocavam a seu serviço, mas que eles tivessem consciência de que ela era falsa é algo que não podemos compartilhar em hipótese alguma. Para justificar essa nossa assertiva tão enfática, devemos reforçar a idéia de que os procedimentos de magia estão todos incluídos naquilo que tentamos esclarecer como sendo algo imagético, que possui uma característica pré-conceitual forte. A substitutividade mágica, incrustada em uma época claramente carente da abstração conceitual, dificilmente deixaria margem para a má-fé por parte dos sacerdotes.77 Se nós, herdeiros de todo o desenvolvimento conceitual

concepção de ideologia de Adorno e colocar, com base nas idéias desenvolvidas nesse e no próximo capítulos, um novo conceito de ideologia. 77 Não que o caráter abstrato do pensamento configure, per se, a má-fé dele, mas institui sua condição de possibilidade. A própria ideologia também pode ser pensada como se originando na abstração (sobre esse último item, cf. capítulo III, item 2).

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do ocidente, temos, de modo nítido e indelével, aquele sentimento de que, ao queimar uma foto, estamos agredindo a própria pessoa, apesar de sabermos claramente que se trata tão-somente de um pedaço de papel, o que se dirá — voltamos a perguntar — de quem viveu em uma época cuja consciência era a de que o destino e a palavra não se separavam?78 Segundo pensamos, por mais que a magia tenha sido usada deliberadamente como instrumento de domínio, não é forçado, apenas por essa instrumentalidade do procedimento xamanístico, que seu realizador pensasse que se tratava de uma farsa. Tomar a magia como instrumento de poder significa ter consciência de que ela seja ilusória?

Esse complexo argumentativo dos autores no Excurso I deixa muito pouca margem para uma concepção de mímesis que a tome a sério como um procedimento usado para assimilar uma determinada realidade, pois estende o conceito de razão esclarecida muito além de um ponto em que consideramos razoável supor o começo de uma diferença qualitativa entre os modos de assimilação esclarecido e mimético. A rigor, essa extensão acaba sendo total, indefinida. Tal como comenta Fredric Jameson:

(…) deve-se notar que a originalidade peculiar da concepção de Adorno e de Horkheimer de uma “dialética do esclarecimento” consiste em que ela exclui um início ou um primeiro termo, e descreve o “esclarecimento” especificamente como um processo “sempre-já”79, cuja estrutura reside precisamente em sua geração da ilusão de que aquilo que a precedera (que era também uma forma de esclarecimento) era esse momento “original” do mito, da união arcaica com a natureza, que é a vocação “própria” do esclarecimento anular.80

O problema é que essa “originalidade” acabou dificultando a concepção de mímesis que deveria surgir a partir da obra conjunta de Adorno e de Horkheimer, fazendo com ela acabasse podendo ser vista por inúmeros comentadores como aquilo que disse Habermas: “um fragmento de natureza incompreendida”. A primeira frase da Dialética negativa: “a Filosofia, que outrora pareceu ultrapassada, mantém-se viva, porque o momento de sua efetivação foi desperdiçado” (DN 15), poderia ser aplicada, com certo exagero, à construção de uma teoria sobre a mímesis, posto que a obra que deveria 78 Esse argumento pode soar um tanto deslocado ao leitor de uma tese de filosofia, ao lhe parecer por demais psicológico ou antropológico. Primeiro: essa dimensão antropológica parece-nos forte demais para ser relegada a apenas uma extrapolação desmesurada de alguma forma particular de relação com o mundo, uma vez que ela é aquilo que funda a própria experiência estética. O que faz milhões de pessoas ao redor do mundo estarem se emocionando profundamente, nesse exato minuto que o leitor lê essas linhas, por verem cenas fictícias sendo apresentadas nas telas dos cinemas? Trata-se de simplesmente uma vontade de ser enganado? Ou a representação imagética é vivida como nos presentificando a própria coisa? É fácil para o leitor simplesmente deixar de se afetar ao ver uma cena de terror que não gostaria de presenciar no cinema? Basta um ato simples de tomada de consciência de que se trata de mera encenação para não se tocar pelo sentimento envolvido na cena? Quantas vezes não é necessário que deixemos de olhar para a tela para não nos sentirmos mal? Ora, a nossa mentalidade esclarecida por milhares de anos de racionalização não é suficiente para nos proteger desse sentimento irracional? Se não o é, o que se dirá, voltamos a repetir (pela última vez), daquelas pessoas que viviam há milhares de anos?

Segundo : um dos males, tanto da filosofia, quanto da ciência, segundo Adorno, é a ruptura quase total que se estabeleceu entre elas, isto é, sua desconsideração recíproca. Usando como exemplo a relação entre a teoria moral kantiana e as ciências empíricas, Adorno diz que a filosofia, subtraída de todo conhecimento empírico, transforma-se em mera expressão de Weltanschauungen (visões de mundo) ao passo que a ciência perdeu em poder conceituante reflexivo. A idéia de Kant sobre a liberdade, expurgada de toda consideração psicológica, empírica, acaba sem conteúdo algum (cf. ND 214). “A filosofia vive em simbiose com a ciência; não pode separar-se desta sem dogmatismo, sem recair finalmente na mitologia”. Mas, de acordo com o que falamos na Introdução, a filosofia não se recobre com a ciência, pois “seu conteúdo (…) consistiria em expressar o que foi desperdiçado ou descartado pela ciência, pela divisão do trabalho e pelas formas de reflexão próprias do empreendimento de autoconservação” (Theodor W. Adorno. “Razão e revelação”. In: Palavras e sinais. Modelos críticos 2. Tradução de Maria Helena Ruschel. Petrópolis: Vozes, 1995, p.58). 79 Esse termo Jameson toma de empréstimo a Althusser. 80 Fredric Jameson. op. cit ., p.134.

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efetivá-la, colocou-lhe esse enorme obstáculo, que foi a hipóstase histórica da falsa consciência dos meios de dominação.81

Segundo pensamos, o esclarecimento, como fenômeno histórico, acabou sendo mitificado na obra conjunta de Adorno e de Horkheimer. A falsa consciência esclarecida da dominação passou a ser considerada à maneira de um evento primordial mítico, cuja presença “até mesmo no mais remoto passado” reclama sua atualização compulsiva, tal como a origem deve se efetivar de novo em cada ser e acontecer, obscurecendo as inúmeras diferenças qualitativas entre todos os fenômenos.

Como dissemos, esse conceito de esclarecimento qua dominação está presente nos Excursos I e II, mas há duas passagens na primeira parte que também apontam para ele. A primeira delas é precisamente a frase inicial: “no sentido mais amplo de pensamento progressivo, o esclarecimento sempre perseguiu o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores” (DA 9/19 – tradução modificada). O pensamento seria caracterizado pelo fato de, inevitavelmente, fazer progressos, que é o que se vê explicitamente na segunda passagem:

Não é apenas o esclarecimento do século dezoito que é irresistível, como atestou Hegel, mas (e ninguém sabia melhor do que ele) o movimento do próprio pensamento. Tanto o mais baixo, quanto o mais elevado discernimento já contêm o discernimento de sua distância com relação à verdade, que faz do apologeta um mentiroso. (DA 26/33 – tradução modificada)

Apesar dessas duas ocorrências, toda a primeira parte do texto está fundada, segundo pensamos, em uma outra concepção de esclarecimento, que não considera este processo de racionalização como recobrindo o absolutamente amplo espectro do exercício de poder — o qual, efetivamente, sempre existiu. Esse primeiro capítulo enfatiza a diferença qualitativa do esclarecimento em relação ao comportamento mimético que dá sua especificidade como uma forma determinada de domínio da realidade. Esta residiria, segundo pensamos, na emergência significativa do processo de separação do pensamento frente à realidade, pois, como dizem os autores, a abstração “é o instrumento do esclarecimento” (DA 19/27). Além disso, se, no Excurso I, é construída a história primeva da subjetividade, e, de acordo com uma passagem da Dialética negativa que já citamos, “a abstração (…) é o próprio princípio através do qual o sujeito se torna, em geral, sujeito, é sua própria essência” (DN 182), logo o conceito de esclarecimento, mesmo no Excurso I, deveria fundar-se no de abstração. A idéia dos autores explicitada no prefácio de 1969 da Dialética do esclarecimento de que “atualizar todo o texto teria significado nada menos do que um novo livro (DA X/10)” talvez se aplique mais propriamente a reformular o conceito de esclarecimento qua dominação que serve de guia para os dois Excursos. Qual a ligação entre atualizar o livro e o conceito de esclarecimento enquanto dominação? Ora, sabemos que o livro foi redigido sob o influxo da Segunda Guerra Mundial, em que o exercício do poder se dava de uma maneira imediata e perversa, com o assassínio refinadamente cruel de milhões de pessoas. Dada a meta dos autores de descortinarem, na razão, o germe que conduziu ao nazi-fascismo como seu desdobramento último, nada mais compreensível do que os autores terem estendido o conceito de esclarecimento “até o mais remoto passado”, de modo a se perceber como as atrocidades do nazismo já se gestavam em

81 É verdade que os autores deixam margem para a mímesis em relação aos dominados, posto que dizem que estes seriam crédulos, ao contrário dos sacerdotes. Entretanto, isso não é suficiente para salvarmos a teoria da mímesis, uma vez que, ao ser instrumento de domínio, ela perderia sua especificidade. A tese que advogamos é a de que nem todo exercício de dominação foi ideológico ou acompanhado de má-fé, exercido fraudulentamente, ou cogêneres. Cremos que, sem essa ressalva, a teoria da mímesis, embora não seja simplesmente anulada, fica bastante prejudicada.

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todas as formas de racionalidade, fazendo com que ficasse totalmente fora de questão a idéia de que tal movimento totalitário fosse apenas um acidente de percurso da razão.

Sendo um tanto (ou bastante) ousados, dizemos que o que teria justificado escrever um novo livro seria a idéia de reformular o conceito de esclarecimento dos Excursos para um que contemplasse a abstração como fator que caracteriza propriamente a emergência e desenvolvimento da razão esclarecida, em contraste com o comportamento mimético. É precisamente o estabelecimento desse plano de clivagem entre mímesis e esclarecimento que é feito, segundo nossa interpretação, na primeira parte do livro, a qual os autores dizem que é o fundamento conceitual das outras.

A pergunta é: houve uma forma historicamente determinada de conceber a realidade em que tal abstração se mostrou claramente distinta, se comparamos essa forma com as que a antecederam? De acordo com o primeiro capítulo da Dialética do esclarecimento, trata-se da mitologia grega.82 c) Mito grego como incício do esclarecimento

A passagem que citamos no penúltimo item, quando nos referíamos à caracterização do mito (em geral) como já sendo esclarecimento — e que é invariavelmente empregada pelos comentadores para justificar essa idéia —, terminou dizendo que o elemento “teórico” do ritual de ser uma representação que quer infl uenciar realidade tornou-se autônomo “nas primeiras epopéias dos povos”. Ora, é de se supor que outros povos, além do grego, tivessem epopéias, ou seja, tudo o que se falou antes sobre o aspecto ordenador e explicador dos mitos como configurando-os enquanto esclarecimento poderia servir para todos os mitos em geral. Mas as próximas frases que se seguem a essa última deixam pouca margem para dúvidas quanto a qual mito os autores se referiam e o motivo para isso:

Os mitos, como os encontram os poetas trágicos, já se encontram sob o signo daquela disciplina e poder que Bacon enaltece como o objetivo a se alcançar. O lugar dos espíritos e dos demônios locais foi tomado pelo céu e sua hierarquia; o lugar das práticas de conjuração do feiticeiro e da tribo, pelo sacrifício bem dosado e pelo trabalho servil mediado pelo comando. As deidades olímpicas não se identificam mais diretamente aos elementos, mas passam a significá-los. Em Homero, Zeus preside o céu diurno, Apolo guia o sol, Hélio e Éo já tendem para o alegórico. Os deuses separam-se dos elementos materiais como sua suprema manifestação. De agora em diante, o ser se resolve no lógos — que, com o progresso da filosofia, se reduz à mônada, mero ponto de referência — e na massa de todas as coisas e criaturas exteriores. (DA 14/23 – grifos nossos)

Com essa separação, que, de acordo com o que vimos ao longo do primeiro capítulo, possibilita a objetivação da natureza, os autores concluem: “o mito converte-se em esclarecimento, e a natureza em mera objetividade” (DA 15/24 – grifos nossos).

Como dissemos no item sobre o mito em geral, este necessitou de um desenvolvimento da linguagem capaz de sedimentar uma nova maneira de conceber o real a partir de sua origem; também a língua grega propiciou mudança qualitativa em relação aos mitos anteriores:

Enquanto totalidade desenvolvida lingüisticamente, que desvaloriza, com sua pretensão de verdade, a crença mítica mais antiga — a religião popular —, o mito patriarcal solar é ele próprio esclarecimento, com o qual o esclarecimento filósofo pode-se medir no mesmo plano. (…) A

82 Na verdade, os autores também se referem ao mito indiano como contendo as características que apontaremos. Para simplificar a argumentação, vamos nos referir apenas ao mito grego, mas tendo-se em mente que elas também se aplicam àquele outro.

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própria mitologia desfechou o processo sem fim do esclarecimento83 (…). (DA 17/25-6 – tradução modificada; grifos nossos)

Cremos que essas duas passagens sejam suficientemente enfáticas para mostrar aquilo que estávamos anunciando como pedra de toque de nossa argumentação: a emergência do esclarecimento — como forma específica de relação com o mundo em que se procura objetificar da natureza de tal modo a propiciar um domínio sobre ela a partir de um novo modo de conhecê-la — é determinada pela abstração do pensamento frente à realidade, o que começou a ocorrer de modo enfático com o mito grego, uma vez que as divindades não se confundiam com as forças da natureza, “mas passam a significá-las”. Trata-se de um processo de referência à distância, não de um sentimento de produção da realidade tal como na dimensão imagética vivencial dos deuses das mitologias africanas, egípcias, etc. Todo o âmbito do lógos já estava lançado na separação entre a divindade grega e a natureza que ela representava. Ora, como dissemos, toda representação supõe uma abstração e vice-versa. A mitologia grega é o passo, em termos de genealogia da razão ocidental, que estabeleceu a distinção entre o pensamento e a vivência imagética, intuitiva, corporal, concreta, em relação à natureza. Não havia essa diferenciação entre o transcendente e a vivência concreta que se possuía em relação à imagem do poder da natureza, percebido como sagrado. O que se vê como marca inconfundível da racionalidade ocidental, os conceitos de eidos, de essência, de Idéia, de substância (em oposição a hylé, a aparência, a manifestação, a acidente), já havia se configurado na abstração dos deuses gregos, pois estes “separam-se dos elementos materiais como sua suprema manifestação”, tal como a essência, por exemplo, é também pensada como, ao mesmo tempo, separada (de modo enfático em Platão, e pelo menos em pensamento em Aristóteles) e condensando o que há de mais real nas coisas:

As categorias, nas quais a filosofia ocidental determinava sua ordem natural eterna, marcavam os lugares outrora ocupados por Ocnos e Perséfone, Ariadne e Nereu. As cosmologias pré-socráticas fixam o instante da transição. O úmido, o indiviso, o ar, o fogo, aí citados como a matéria primordial da natureza, são apenas sedimentos racionalizados da intuição mítica. Assim como as imagens da geração a partir das águas do rio e da terra, que vieram do Nilo e chegaram até os gregos, tornaram-se84 aqui princípios hilozoístas, elementos, assim também toda a luxuriante plurivocidade dos demônios míticos espiritualizou-se na forma pura das entidade ontológicas. (DA 11-2/21 – tradu ção modificada; grifos nossos)

Desse modo, vemos que o aspecto ordenador dos mitos não-gregos não configura, per se, o aspecto propriamente esclarecido deles, mas tão-somente a marca que os diferencia da magia plurianimista. O que marca o mito grego como esclarecimento é a diferenciação radical entre os deuses e a natureza.

O título do livro de Paul Veyne, “Acreditavam os gregos em seus deuses?”85, ao qual o autor responde afirmativamente, é um indicativo para nossa argumentação. Há como se falar de crença nos mitos fora da Grécia? Não, pois lá se trata de uma vivência concreta, sentida, do poder imediato dos deuses em relação à vida, e não de uma adesão consciente a uma idéia que poderia não ser realizada. Como dissemos no primeiro capítulo, a relação com o poder imagético é pré-conceitual, independe do que 83 “Desfechou”, que Guido de Almeida verteu, erroneamente, no presente do indicativo, está como tradução de ins Spiel gesetzt hat , literalmente: “colocou em jogo”. Mas o verbo usado na tradução é pertinente, pois, segundo o dicionário Aurélio, um de seus s ignificados é: “Lançar ou desencadear com ímpeto: desfechar uma campanha.” 84 Nesse ponto Guido omite a referência ao Egito, traduzindo die vom Nil zu den Griechen kamen, hier zu hylozoistischen… por simplesmente “se tornaram, entre os gregos, princípios…”. 85 Paul Veyne, Acreditavam os gregos em seus deuses? São Paulo: Brasiliense, 1984.

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sabemos sobre o mundo. No caso da crença, já admite-se essa mediação do pensamento, do conceito, em relação ao transcendente. Os mitos gregos puderam ser questionados, tal como Xenófanes criticou o aspecto projetivo dos deuses86, precisamente porque os gregos acreditavam neles, não os vivenciando como uma imagem com poder de produção da realidade. A crença, portanto, já é um afastamento em relação à transcendência, e radical, se comparado ao que houve nas fases anteriores de assimilação do mundo.

O que marca mais profundamente a diferença do esclarecimento em relação às formas miméticas de assimilação do mundo é o fato de que o homem, devido à capacidade de conceber os deuses — agora tomados como meras representações mentais —, passou a se considerar igual a eles. A passagem do Gênesis “façamos o homem à nossa imagem e semelhança” e o pleno antropomorfismo da mitologia grega, precocemente denunciado por Xenófanes, atestam a consciência de que é preciso se afastar daquilo que deve sofrer o domínio humano, ou seja, a natureza. A proximidade em relação à força divina de criação é a justificativa para a exploração, tanto do material caótico da natureza, transformado em uma multidão de coisas a serem dominadas, quanto da maioria da comunidade, que sempre teve que ser expulsa do conluio com as benesses das divindades. Na magia, a diferença em relação aos deuses não é negada — o que se mostra precisamente pela necessidade de o feiticeiro ter que se assemelhar a eles através do ritual. Esse “reconhecimento” implícito da diferença acompanhado do movimento rumo à identificação com o outro é algo próprio da mímesis. Unificando a fonte de autodeterminação do sujeito, o esclarecimento deu fim a essa ambigüidade através da abstração do pensamento. O ímpeto para tal abstração veio precisamente da consciência de que “o pensamento só tem poder sobre a realidade pela distância” (DA 76/72). 2. Abstração, subjetividade e poder

a) Origem do sujeito nas relações de poder

A abstração do mito grego propiciou um importante hiato reflexivo entre o saber e a realidade a que ele diz respeito, que possibilitou a tomada de consciência de que o que estrutura a realidade é a dominação sobre ela. Se o mito em geral colocou a relação de poder dispersa da magia no núcleo de explicação da origem, o mito grego, separando a divindade da natureza, pôde fornecer o distanciamento suficiente para que se percebesse que tal explicação possuía como seu fundamento a estruturação das coisas a partir de um processo de ordenação através de domínio. Se as coisas são inteligíveis a partir da transcendência sagrada, isso somente acontece devido ao fato de que elas são reconhecidas como sujeitas ao poder dos deuses. Mas, ao mesmo tempo, o mito grego também já reconhece que esse inestimável poder de intelecção do real proporcionado pelos deuses tem um ônus: é preciso submeter-se àquilo que dá o poder sobre as coisas; “perante os deuses, só consegue se afirmar quem se submete sem restrições” (DA 15/24). É verdade que a supremacia dos deuses sobre tudo já estava estampada em todos os mitos, mas a diferença fundamental é a de que ela, agora, ganha uma evidência qualitativamente diferente devido ao fato de ela ter sido reconhecida em sua relativa autonomia, ou em seu peso próprio:

86 “(…) se os bois, os cavalos e os leões tivessem mãos e pudessem com elas desenhar e criar obras como os homens, os cavalos desenhariam os formas dos deuses semelhantes aos cavalos, os bois semelhantes aos bois, e fariam os corpos [dos deuses – vf] tais quais eles próprios têm”. Xenófanes, DK 21 B 15. In: Pré-socráticos. Tradução de Wilson Régis. São Paulo: Abril, 1973, p.70. (Col. Os Pensadores – tradução modificada)

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o despertar do sujeito tem por preço o reconhecimento do poder como o princípio de todas as relações. Em face da unidade de tal razão, a separação de Deus e do homem reduz-se àquela irrelevância que, inabalável, a razão assinalava desde a mais antiga crítica de Homero. Enquanto soberanos da natureza, o deus criador e o espírito ordenador se igualam. A imagem e semelhança divinas do homem consistem na soberania sobre a existência, no olhar do senhor, no comando. (DA 15/24; grifos nossos)

O sujeito pôde configurar-se como tal em seu surgimento pelo fato de que a consciência reflexiva do poder como sede da possibilidade de intelecção do real proporcionou sua unificação. É exatamente pelo fato de reconhecer o domínio como fonte de compreensão que ele pôde se ver como algo unificado em torno daquilo que seria a fonte desse domínio. O correlato simultâneo dessa unificação do sujeito como origem do poder é o nivelamento do objeto que sofre tal domínio, com a conseqüente separação, distanciamento, de um em relação ao outro: “o preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a alienação daquilo sobre o que exercem o poder. O esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os homens. Este conhece-os na medida em que pode manipulá-los” (DA 15/24). Em vez de uma relação difusamente mimética com o poder, em que o poder transcendente só é alcançado a partir da igualação do sujeito a cada manifestação divina, tem-se, agora, a identificação do sujeito com a fonte do poder em geral.

O feiticeiro torna-se semelhante aos demônios; para assustá-los ou suavizá-los, ele assume um ar assustadiço ou suave. Embora seu ofício seja a repetição, diferentemente do civilizado — para quem os modestos campos de caça se transformam no cosmo unificado, no conjunto de todas as possibilidades de presas — ele ainda não se declarou à imagem e semelhança do poder invisível. É só enquanto tal imagem e semelhança que o homem alcança a identidade do eu que não pode se perder na identificação com o outro, mas toma definitivamente posse de si como máscara impenetrável. É à identidade do espírito e a seu co rrelato, à unidade da natureza, que sucumbem as múltiplas qualidades. (…) Como a ciência, a magia visa a fins, mas ela os persegue pela mímesis, não pelo distanciamento progressivo em relação ao objeto. (DA 16-7/24-5)

Com base nisso, cremos que agora esteja clara a impropriedade de se estabelecer um conceito de esclarecimento qua dominação, sem que se reconheça que a cisão conceitual operada pelo processo de abstração do pensamento frente à realidade tenha um peso expressivo para delinear a ruptura entre um conhecimento mimético e outro conceitual esclarecido:

A distância do sujeito com relação ao objeto, que é o pressuposto da abstração, está fundada na distância em relação à coisa, que o senhor conquista através do dominado. (…) A universalidade dos pensamentos, como a desenvolve a lógica discursiva, a dominação na esfera do conceito, eleva-se fundamentada na dominação do real. É a substituição da herança mágica, isto é, das antigas representação difusas, pela unidade conceitual que exprime a nova forma de vida, organizada com base no comando e determinada pelos homens livres. O eu, que aprendeu a ordem e a subordinação com a sujeição do mundo, não demorou a identificar a verdade em geral com o pensamento ordenador, e essa verdade não pode subsistir sem as rígidas diferenciações daquele pensamento ordenador. (DA 20/28)

Mas há que se ter em mente que o mito grego ainda não contém o elemento teórico que caracterizará a ciência esclarecida. Embora já tenhamos um processo de abstração significativo entre pensamento e realidade através da separação entre deuses e natureza, trata-se ainda de deuses, ou seja, de forças sagradas que exigem sua obediência, que impõem um modo de vida, um sentido para a existência a partir da devoção a seus preceitos, etc. No mito grego, sobrevive a experiência do poder infinito da natureza, através do entrelaçamento entre os deuses olímpicos e os deuses ctônicos, assim como “as potências do bem e do mal, a graça e a desgraça, não eram claramente separadas” (DA 20-1/28). Deus e o diabo são as duas faces de uma mesma moeda: um só faz sentido pela proximidade do outro. A promessa de um paraíso sempre esteve ligada à ameaça de

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perdição, assim como o progresso sempre só fez sentido como idéia legitimadora do domínio da natureza na medida em que sua ausência ou diminuição era pensada como levando ao retrocesso e à morte.

A construção simbólica do mito grego ainda era carregada da dimensão vivencial, vinculada a um cosmo estruturado segundo uma vivência coletiva que se decantava nos mitos antropomórficos. Apesar de a ciência moderna ter expurgado de suas fórmulas essa dimensão imagética, prática, concreta, podemos ver que em todo o processo de constituição de um pensamento que foi aos poucos se destacando mais e mais da realidade múltipla e dispersa, a linguagem configurou-se como a depositária das forças sobrenaturais e humanas.

b) Linguagem e coletividade; a metafísica como expressão de poder

Como vimos no capítulo anterior, “através da divindade, a linguagem passa da tautologia à linguagem” (DA 21/29). A universalidade da designação, o acordo tácito coletivo, intersubjetivo, em relação à percepção do mundo, não é algo neutro ou desvinculado de relações de poder. O próprio acordo da força designativa da palavra congrega, sublimada, a presença da força de coesão social. “Poder e conhecimento são sinônimos” (DA 10/20) — a pregnância dessa fórmula, que lhe confere sua aparente falsidade, parece obscurecer, aos olhos melosamente democráticos do leitor contemporâneo, o que ela tem de profundamente verdadeiro em termos genealógicos, ou seja, não apenas em termos históricos, mas de uma origem constituidora de um sentido que não se perdeu apenas como um começo, mas subsiste enquanto pretensão de validar estruturas de dominação, seja através de ideologias facilmente desmascaráveis, ou pela formação, no indivíduo, da consciência da necessidade da adaptação, ou através de infinitas formas de manutenção do status quo. Universalidade, poder, adaptação, subsunção do singular constituem elementos de um complexo de determinantes da experiência com o mundo que adquirem expressão e força na linguagem pretensamente neutra: a própria neutralidade presumida do acordo intersubjetivo dos conceitos exprime relações de poder, por mais que sejam mediadas, sublimadas.

A dominação defronta-se com o indivíduo como o universal, como a razão na realidade efetiva. O poder de todos os membros da sociedade, que enquanto tais não têm outra saída, acaba sempre, pela divisão do trabalho a eles imposta, por se agregar no sentido justamente da realização do todo, cuja racionalidade é assim mais uma vez multiplicada. Aquilo que acontece a todos por obra e graça de poucos realiza-se sempre como a subjugação dos indivíduos por muitos: a opressão da sociedade tem sempre o caráter da opressão por uma coletividade. É essa unidade de coletividade e de dominação e não a universalidade social imediata, a solidariedade, que se sedimenta nas formas do pensamento. (DA 28/35)

Apesar de criticar a mitologia e os poetas por usarem imagens e serem pedagogicamente suspeitos, a metafísica platônica — e também a aristotélica —, com sua constituição de um âmbito destacado da realidade sensível, refletia, “com a mesma pureza das leis da física, a igualdade dos cidadãos plenos e a inferioridade das mulheres, das crianças e dos escravos.” (DA 28/35). A abstração das relações entre as Idéias, as normas de hierarquia da República, a afirmação enfática do chorismós (separação), nada mais eram que a hipóstase da relação de co-pertencimento dos dominadores a um nível de hierarquia social que demandava o encadeamento rigoroso das funções, espelhada na relação abstrata e rigorosa dos conceitos. Da mesma maneira que a sede do comando, do poder social se afasta da coletividade para melhor dominá -la, o conceito se separa da fluidez da relação mimética com a natureza.

Apesar de toda essa abstração do pensamento conceitual para com a relação imagética frente ao real, a metafísica ainda mantinha algo da transcendência do poder

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infinito como totalidade do mana, na medida em que congregava todo o cosmo em uma unidade teleologicamente estruturada, que absorvia, tanto os homens, quanto as coisas: “(…) os objetos conhecidos (…) não recebem do bem apenas a faculdade de serem conhecidos, mas também lhe devem o ser e a essência (…)”87; “admite-se geralmente que toda arte e toda investigação, assim como toda ação e toda escolha, têm em mira um bem qualquer; e por isso foi dito, com muito acerto, que o bem é aquilo a que todas as coisas tendem”88. O zoón politikón aristotélico é expressão inequívoca desse entrelaçamento cósmico, ordenado em termos macro, da phýsis e da pólis, em que fica difícil de decidir qual das duas é o modelo para intelecção da o utra.

A percepção estruturada da realidade a partir dessa integração é o que podemos caracterizar como a razão objetiva, na medida em que o pensamento, mesmo se afastando da realidade, ainda possuía algo daquela expressão objetiva da mímesis, em que a auto-compreensão do sujeito passava radicalmente por sua amoldagem ao objeto. A metafísica é ainda, apesar de toda a sua expressiva abstração, devedora de um posicionamento externo do sujeito, que pretende fazer com que a fonte de intelecção do real absorva e exprima um co-pertencimento do sujeito e do objeto.

Em contraste com essa razão, a modernidade presenciou a emergência da razão subjetiva, ancorada no solipsismo fundacional da realidade. Ninguém melhor do que Monsieur Descartes para servir como alvo de nossas considerações sobre o modo como se deflagrou a ruptura decisiva entre o sujeito e o mundo.

c) Negação abstrata cognitiva da natureza: o cogito cartesiano

A primeira Meditação de Descartes é uma tentativa de, através de sucessivos graus de dúvida, de negação de certezas de várias ordens, chegar a um “ponto arquimediano do conhecimento”, que fosse indubitavelmente seguro. Descartes procura, com o elemento próprio do ceticismo, a dúvida, afastar a possibilidade de se duvidar da razão como faculdade capaz de certezas inabaláveis. Ele procura generalizar a dúvida hiperbolicamente, mesmo que essa dúvida não nos acometesse em nossa experiência cotidiana. Trata-se de uma investida deliberadamente feita de tal modo que toda e qualquer possibilidade de erro deva ser extirpada do pensamento. O que o filósofo pretende é encontrar uma verdade que seja exemplarmente segura, de tal modo que, a partir dela, a razão se mostre o instrumento inquestionável para a construção do edifício do conhecimento.

No processo de dúvida generalizada, não se trata de colocar em cheque as verdades singulares, pois isso “seria um trabalho infinito; mas, visto que a ruína dos alicerces carrega necessariamente consigo todo o resto do edifício, dedicar-me-ei inicialmente aos princípios sobre os quais todas as minhas antigas opiniões estavam apoiadas” (Meditações 85)89. Inicialmente, Descartes coloca em dúvida tudo aquilo que nos vem dos sentidos: as cores, sons, a existência corporal, etc.; depois, através da idéia de que tudo o que se sabe pode ser apenas um sonho, todos os conhecimentos científicos da natureza, como física, astronomia, etc.; depois, com a idéia da possibilidade de um Deus que tenha nos feito somente ter ilusões, ou de um gênio maligno que nos engane o tempo

87 Platão. A república. Belém: Editora da Universidade do Pará, 1980, p.280. (509b) 88 Aristóteles. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e de Gerd Bornheim. São Paulo: Abril, 1984, p.49 (1094a). (Col. Os Pensadores) 89 Nesse item citaremos a partir de: René Descartes. Meditações. Tradução de J. Guinburg e de Bento Prado Júnior. São Paulo: Abril, 1984, pp.73-142. (Col. Os Pensadores)

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todo, as certezas matemáticas: “pode ocorrer que Deus tenha desejado que eu me engane todas as vezes em que faço a adição de dois mais três, ou em que enumero os lados de um quadrado, em que julgo alguma coisa ainda mais fácil, se é que se pode imaginar algo mais fácil do que isso” (Meditações 87).

Mas, por mais que a dúvida da verdade sobre toda e qualquer coisa exista na mente, ela somente pode ser isso, uma dúvida, pelo fato de que exerço minha faculdade de pensar. Por mais que haja um gênio maligno que pudesse me enganar sobre a realidade atual ou formal — ou seja, externa à mente — de alguma coisa, ele jamais poderá pôr em questão que, enquanto duvido de qualquer coisa, eu existo, “não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa” (Meditações 92). A existência do eu é tomada como a primeira certeza na ordem das razões apresentada; “mas o que sou eu, agora que suponho que há alguém que é extremamente poderoso e, se ouso dizê-lo, malicioso e ardiloso, que emprega todas as suas forças e toda a sua indústria em enganar-me?” (Meditações 93). Descartes, então, investiga aqueles atributos que poderiam fazer parte de mim como substância pensante:

Os primeiros são alimentar-me e caminhar; mas, se é verdade que não possuo corpo algum, é verdade também que não posso nem caminhar nem me alimentar. Um outro é sentir; mas não se pode também sentir sem o corpo; além do que, pensei sentir outrora muitas coisas, durante o sono, as quais reconheci, ao despertar, não ter sentido efetivamente. Um outro é pensar; e verifico aqui que o pensamento é um atributo que me pertence; só ele não pode ser separado de mim. Eu sou, eu existo : isso é certo; mas por quanto tempo? A saber, por todo o tempo em que eu penso; pois poderia, talvez, ocorrer que, se eu deixasse de pensar, deixaria ao mesmo tempo de ser ou de existir. Nada admito agora que não seja necessariamente verdadeiro: nada sou, pois, falando precisamente, senão uma coisa que pensa, isto é, um espírito, um entendimento ou uma razão, que são termos cuja significação me era anteriormente desconhecida. (Meditações 94, §7)

Descartes nega que sentir seja absolutamente seguro com base no argumento de que tudo pode não ter passado de um sonho; o que é efetivamente certo e indubitável, portanto, é a pura capacidade de pensar, igualada à razão, ao entendimento, ao espírito.90 O parágrafo seguinte (§8) ainda continua nessa linha de raciocínio, terminando por excluir todo conhecimento proveniente da imaginação como útil para conceber a natureza do eu.

No §9, entretanto, ele diz: “Mas o que sou eu, portanto? Uma coisa que pensa. Que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente. Certamente não é pouco se todas essas coisas pertencem à minha natureza”. Ora, se é necessário ter corpo para sentir — como foi dito no §7 —, e se sentir faz parte de mim como coisa pensante, a conclusão imediata é que é igualmente necessário que se tenha corpo. Mas Descartes já havia desconsiderado o próprio sentir como sendo parte essencial da res cogitans, limitando-a à razão.

O §7 é sumamente problemático no corpus de todas as Meditações, posto que, em várias outras passagens, Descartes assume o sentir como um dos modos da res cogitans, equiparando a percepção sensível com a certeza do exercício da atividade da consciência: “(…) conquanto as coisas que sinto e imagino não sejam talvez absolutamente nada fora de mim e nelas mesmas, estou, entretanto, certo de que essas maneiras de pensar, que chamo sentimentos e imaginações somente na medida em que são maneiras de pensar, residem e se encontram certamente em mim” (Meditações 99). Essa passagem mostra claramente que o sentir é tomado em geral, não como algo diretamente vinculado ao

90 Tal estratégia reaparece nos mesmos termos na Recherche de la verité (OP, II, p.1131-2).

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corpo, como foi dito no §7, mas, sim, como um dos modos do pensamento, que, em termos mais fundamentais, equivale a ser consciente: “pelo nome de pensamento, compreendo tudo quanto está de tal modo em nós que somos imediatamente conscientes dele [ut ejus immediate conscii simus]”91.

A questão que colocamos é: por que Descartes excluiu o sentir como algo próprio ao eu no §7?

Nesse parágrafo, o autor estava estabelecendo a natureza daquilo que existe indubitavelmente. Tratava-se de uma segunda certeza, após a primeira, que seria a existência tout court do eu. Mas é preciso que se atente para o fato de que as duas certezas são circulares, posto que a primeira somente pôde ser alcançada com o argumento de que o gênio maligno “não poderá jamais fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa”. A natureza do eu como coisa pensante já deveria ser dada como conhecida de modo claro e distinto, uma vez que foi exatamente pelo fato de pensar que se chegou à certeza da existência do ego. Ou seja, se o pensamento é a condição de possibilidade para a certeza da existência, então ele já é conhecido como indubitável, o que faria com que não fizesse sentido perguntar pela natureza tout court do ego, mas, sim, somente por aquilo que está incluído nela. Essa questão por esses modos do pensamento é o que estabelece e responde o §9 da segunda meditação.

A nossa hipótese de leitura é uma suposição factual da construção do próprio texto das Meditações: dizemos que os parágrafos 7 e 8 constituem uma interpolação ao texto redigido em um primeiro momento, uma vez que eles — mais claramente o §7 — possuem um conceito de cogitare que destoa muito do restante das Meditações. Todo o texto que se segue a tais parágrafos é homogêneo demais em sua articulação em torno do conceito de pensamento como ligado à noção de estar consciente, de modo que os parágrafos 7 e 8 não podem ser pensados como estando na mesma linha de desdobramento da argumentação como um todo. Toda a idéia da terceira certeza — de que o espírito é mais fácil de conhecer do que o corpo —, por exemplo, está fundada na assunção de que, por mais falsas que sejam as imagens que tenho dos corpos, mais certo é que eu me conheço como coisa pensante: “pois pode acontecer que aquilo que eu vejo não seja, de fato, cera; pode também se dar que eu não tenha olhos para ver coisa alguma; mas não pode ocorrer, quando vejo ou (coisa que não mais distingo) quando penso ver, que eu, que penso, não seja alguma coisa” (Meditações 98). Além disso, a questão que o §7 levanta, como vimos, é supérflua. O que é estabelecido como segunda certeza — a natureza do ego como pensante — é, na verdade, o que já foi tomado como conditio para a primeira, ou seja, que o eu existe porque pensa.

Mas, mesmo admitindo essa argumentação como decisiva, a questão permanece: por que essa interpolação? O único sentido interno ao texto do §7 é que ela faz a equalização da sede do pensar à razão, ao intelecto, ao espírito (o que será desfeito imediatamente a seguir). A questão pode ser mais especificada: por que Descartes fez essa interpolação de perguntar pela natureza da coisa que já se sabia pensante, respondendo que se tratava de um ser que é razão, entendimento, espírito?

Primeiramente, deve-se notar que essa equalização se dá em um momento crucial, ou seja, quando Descartes está determinando aquilo que dá o suporte para a certeza da existência do eu, pois o pensar possui um prius em relação à existência, uma vez que esta é deduzida dele. Dado que essa certeza é o que há de mais fundamental na edificação 91 René Descartes. Obra escolhida. Exposição geométrica. Definição I. Apud Raul Landim Filho, Evidência e verdade no sistema cartesiano. São Paulo: Loyola, 1992, p.50; tradução modificada. Sobre a equiparação do pensamento à noção de consciência, cf. este texto de Raul Landim, pp.37-54.

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do conhecimento racionalmente seguro, ela deve ser testemunho da autarquia absoluta da razão como determinante da verdade sobre o sujeito e sobre o mundo. Tudo o que Descartes pretende é fundar a autonomia incondicional da razão em relação ao seu outro, ou seja, a natureza. Ele quis isolar o pensamento de tudo o que não estivesse contido no próprio sujeito a partir de si como pura atividade.

Na primeira Meditação, o autor usa da idéia de dúvida generalizada em relação a todas as verdades. Ora, o que nos chama à atenção nesse ponto é que Descartes dá um salto que é referido pelos comentadores largamente como argumento pacífico, sem qualquer problema: ele passa da condição de um ser que duvida de várias coisas para a condição de um ser simplesmente que pensa (que é consciente). Apesar de o verbo “duvidar” ter também a condição de verbo intransitivo, no sentido de se ser cético, no contexto da primeira Meditação ele é sempre empregado transitivamente, ou seja, trata-se sempre de se duvidar de… Ao passar para a certeza inabalável e exemplar do cogito, que estabelece a âncora irremovível para apoiar a invocação da luz natural, ou seja, da evidência das idéias claras e distintas, Descartes elide a transitividade do dubito da primeira Meditação para a intransitividade do cogito da segunda Meditação. Embora ele sempre diga que, mesmo duvidando da verdade da existência das coisas não pode se duvidar que elas povoam o pensamento — ou seja, é igualmente claro e distinto tanto que se existe quanto que se tem coisas nas quais se pensa —, o passo para estabelecer a existência do ego como res cogitans abstrai dessa inevitabilidade do conteúdo do pensamento. Ou seja, Descartes, ao chegar à conclusão da existência da res cogitans, quis tomar o sujeito única e exclusivamente como mera atividade.

Ora, aqui podemos ver por que Descartes quis equalizar a determinação do eu como coisa pensante à razão, excluindo o sentir como um de seus modos: trata-se do fato de que o sentir também invoca o elemento transitivo da dúvida da primeira Meditação, pois sempre diz respeito ao mundo. Como Descartes mesmo diz, é preciso ter corpo para sentir, ou seja, este se liga a um obiectum, qualifica-se essencialmente como reação a alguma coisa. Mas, ao mesmo tempo, Descartes quer tomar a primeira certeza apenas e tão-somente a partir da determinação do sujeito como atividade, como pura atividade. A hesitação não-resolvida para com o sentir expressa pela interpolação dos parágrafos 7 e 8 é explicada por isso: pelo fato de Descartes ser suficientemente sincero para afirmar que a existência da res cogitans é tão segura e indubitável, é tão clara e distinta, quanto a existência do conteúdo no pensar, mas, por outro lado, sua ânsia de estabelecer a existência do sujeito como coisa pensante somente a partir de sua condição de ser ativo, o fez elidir aquilo que é inelidível: somente porque há coisas em meu pensamento é que eu posso saber que existo. A minha certeza irremovível como algo que pensa depende de, funda-se em, que eu sempre penso em alguma coisa, ou seja, sem essa “alguma coisa”, eu não poderia saber que existo. Para conceber-me reflexivamente como um ser ativo, eu preciso que haja algo que sofra essa atividade. É inconcebível — diríamos: é impossível — que a atividade seja percebida sem que ela tenha um substrato sobre o qual ela é exercida. Em outras palavras: eu dependo do obiectum para me determinar como subiectum.

Assim, deveríamos reformular a famosíssima expressão da primeira certeza das Meditações: Cogito aliquid, ergo sum (penso algo, logo existo).

Essa idéia está muito claramente expressa por Adorno: Nenhuma atividade do pensar enquanto ato seria possível de modo algum, se o pensamento não estivesse em si mesmo de algum modo ligado, segundo sua própria configuração, ao que não é em si mesmo o pensar: ali é onde se deve buscar o que se deveria decifrar no pensar. Onde o pensar é realmente produtivo, onde é criador, ali ele é sempre também um reagir. A passividade está no

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âmago do ativo, é um constituir-se do Eu a partir do não-Eu. (…) A objetividade, a verdade do pensamento depende de sua relação com a coisa. 92

Pensar é, em seu sentido próprio, pensar em alguma coisa. Mesmo na forma lógica de abstração da “alguma coisa” que é concebida ou julgada, que não precisa de qualquer ser para se estabelecer, permanece vivo para o pensamento aquilo que não é idêntico, que não é pensamento, em que pesem seus esforços para extinguí-lo. A razão torna-se irracional quando se esquece disso e hipostasia seus produtos, as abstrações, contra o sentido do pensamento. O imperativo de sua autarquia o condena ao vazio e, em último termo, à imbecilidade e ao primitivo. (ND 44; tradução de Newton Ramos-de-Oliveira, inédita; tradução modificada)

Em outras palavras, haver coisas das quais se duvida é condição de possibilidade de duvidar, haver coisas nas quais se pensa é condição de possibilidade de pensar. Isso significa que, se o pensamento é uma mediação necessária para o objeto, este o é para o sujeito. A negligência “deliberada” de Descartes em relação a essa mediação do objeto em relação ao sujeito é demonstrada na afirmação de que o cogito somente tem validade epistemológica atualmente: “todas as vezes que a enuncio ou que a concebo em meu espírito”. “Atual” deriva de atuar, de agir, ou seja, o que é atual é aquilo que é pensado como atuante, como ativo, que exerce uma determinada atividade presente. Segundo Adorno, “desde que se procurou o fundamento de todo o conhecimento na pretensa imediatidade do dado subjetivo, procurou-se — por assim dizer, submisso ao ídolo do puro presente — expulsar do pensamento sua dimensão histórica. O fictício e unidimensional ‘agora’ torna-se o fundamento cognitivo do sentido interno” (ND 63).

A autocerteza do sujeito em relação a sua existência quer extirpar do conhecimento toda a dimensão histórica que ele tem pelo fato de lidar com objetos, com coisas. A autodeterminação do sujeito dá-lhe a ilusão de que pode obter verdades isentas da necessidade de referir-se à exterioridade do mundo, que acaba lhe mostrando a necessidade de exprimir o contexto histórico em que tais coisas são pensadas. Como é fácil admitir que ideologia não necessariamente é algo conscientemente construído, então podemos dizer que a certeza pseudo-solipsista é ideológica: nega que o sujeito seja determinado pelo objeto, na medida em que o é pela história que condicionou o modo como este é configurado pelo conceito, isto é, que ele seja essencialmente constituído como um ser que herda historicamente um poder de formar conceitualmente a realidade que o rodeia. O espírito quer, não apenas mostrar sua superioridade sobre a natureza, mas, também, negar que seja mediado por ela.

Por mais abstratas que fossem as idéias das velhas metafísicas platônica, aristotélica e do medievo, a historicidade social imanente às formas do pensamento ainda era reconhecida, na medida em que elas se situavam em um contexto político, ético, social, etc. O conhecimento não estava isento da consciência da obrigação de exprimir o pertencimento do homem ao mundo, sua presença corporal, sua dimensão de ser vivente, etc. Em Descartes, o pensamento procurou fundar todo o real na autarquia absoluta do espírito, negando a imbricação entre natureza e sujeito como fundante da identidade deste último, ou seja, negando que o sujeito somente pode ser o que é a partir do que ele não é, ou seja, do objeto: “O aparentemente insuportável: a subjetividade pressupõe o fático, e a objetividade, o sujeito, é insuportável apenas para tal ofuscamento, para a hipóstase da relação entre causa e efeito, do princípio subjetivo, ao qual a experiência do objeto não se conforma” (DN 144).

92 Theodor W. Adorno. “Observações sobre o pensamento filosófico”. In: Palavras e sinais. Modelos críticos 2. Tradução de Maria Helena Ruschel. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 17-8.

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Mas essa negação da natureza não é algo absolutamente falso. Ela mostra o caminho que o espírito efetivamente tomou para conhecer a si mesmo, a saber, procurando ter a segurança em relação à natureza através do conhecimento seguro do que ele mesmo é. Como já citamos anteriormente, o processo de abstração é o que dá a essência do sujeito, é o que o faz se tornar aquilo que é, um su-jeito em contraposição a um ob-jeto: “por isso, o recurso àquilo que ele mesmo não é, exterior, só pode parecer-lhe violento” (ND 182-3). Além disso, esse autoconhecimento é a via, historicamente delineada, de superação dessa ilusão de independência absoluta do sujeito frente ao mundo: “O sujeito, no seu pôr-se a si mesmo, é aparência ilusória e, ao mesmo tempo, algo sobremodo real do ponto de vista histórico. Ele contém o potencial da superação de sua própria dominação”.93

O procedimento que Descartes usou em sua dúvida hiperbólica é um exemplo impressionantemente literal de negação abstrata, tal como Hegel a formulou: “positividade abstrata, ou seja, confirmada por arbítrio subjetivo” (ND 162). Em Hegel, o caráter abstrato da negação é devido ao fato de que ela é total, é uma Vernichtung, um aniquilamento do direito, da qualidade, da natureza própria do outro enquanto tal, e, não, uma Aufhebung, uma negação determinada, dialética, um “suprassumir”, em que tal “direito” do que é negado sobrevive no resultado da negação. De acordo com esse conceito de determinidade da negação, a lei seria uma negação determinada do desejo do outro, na medida em ela nega, não que o outro tenha qualquer desejo, mas, sim, aqueles desejos incompatíveis com a vida em comum, ao passo que a opressão, a exclusão social, seriam negação abstrata do desejo do outro. Essa última seria o resultado de uma posição arbitrária, por que é, na verdade, uma imposição motivada subjetivamente contra, ou alheia a, determinações do objeto da negação. Como diz Marilena Chauí, “etimologicamente, violência vem do latim vis, força, e significa: 1) tudo o que age usando a força para ir contra a natureza de algum ser (…); 2) todo ato de força contra a espontaneidade, a vontade e a liberdade de alguém (…)”94. Usando o primeiro significado, mais geral, e que abrange o segundo e os demais que a autora cita, podemos dizer que a negação abstrata é um ato de violência em relação àquilo que é verdadeiro em algum ser, ou que é o melhor nele, o que determina sua natureza, sua qualitas, etc.

Mas, por outro lado, se aquilo que uma negação do objeto conserva dele é o que o torna algo ruim, desnaturado, degenerado, então, segundo o que podemos ler da Dialética do esclarecimento, então não se trata de uma negação determinada, mas, sim, abstrata. Dizemos, portanto, que a razão — tal como se cristalizou na metafísica, na ciência moderna, etc. — não é uma negação determinada do mito, embora possa parecer, uma vez que o mito já era uma forma de explicar a realidade através da abstração dos deuses, etc., e a razão negou o caráter sagrado dos deuses, tornando-se um pensamento secularizado, conservando a abstração e o desejo de ordem dos mitos. Entretanto, a idéia da negação dialética “negar conservando o negado” não pode ser aplicada nessa leitura da relação entre mito e filosofia, pois o que esta e a racionalidade científica dela derivada conservaram do mito já era índice da inverdade do próprio mito: a coerção natural transposta para a imagem simbólica mítica. Deste modo, vê-se que, para Adorno, a dialética do esclarecimento é fundada em sucessivas negações abstratas, porque todas as etapas de seu desenvolvimento são reafirmações do caráter falso da cultura, que molda os homens à imagem e à semelhança do que ela reteve da natureza: a ausência de liberdade. Mas se a

93 Theodor W. Adorno. “Sujeito-objeto”. In: op. cit ., p.197. 94 Marilena Chauí. “Ética e violência”. In: Teoria e Debate. N.º 39. São Paulo: Perseu Abramo, 1998, p.33.

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dialética moderna, fundada primordialmente na concepção hegeliana da “ciência da experiência da consciência”, estabelece-se a partir da idéia de uma série de negações determinadas, em que o antecedente é suprassumido pelo posterior, como dizer-se que haveria uma “dialética” do esclarecimento? A trajetória da razão ocidental é configurada como uma funesta relação entre o eu e seu outro, em que a racionalidade acaba sempre se enredando no que a natureza tem de aprisionante. O termo “dialética” no texto de 1947 deve ser lido, não de acordo com a idéia otimista da Fenomenologia de Hegel, mas como uma trama funesta em que o antecedente sobrevive mutilado na marcha do auto-conhecimento do espírito. O eu absolutamente consciente de si a partir de seu solipsismo metodicamente construído acaba ressoando aquilo que se queria expulsar totalmente da civilização: o mito. O esclarecimento, que, desde Xenófanes, sempre protestou contra o caráter projetivo dos mitos, contra a remissão de todo o conhecimento ao homem, “é desmitologização não mais apenas como reductio ad hominem, mas, também, ao contrário, como reductio hominis, como discernimento do engano do sujeito que se coloca como absoluto. O sujeito é a forma duplicada tardia e, no entanto, a mais antiga do mito” (ND 187).

Em Descartes, pretendeu-se fazer com que a negação abstrata da natureza possuísse, por si mesma, um conteúdo. A negação abstrata da natureza externa e interna e dos homens tem como conseqüência funesta a recusa das mediações: uma indisposição latente ou explícita de enfrentá-las em relação aos objetos da realidade sócio-empírica. Nesse sentido, a dúvida hiperbólica de Descartes poderia ser lida como contendo uma dimensão política essencial: a negação de todos os elementos naturais e sociais no pensamento enquanto suas determinações intrínsecas é tomada como nos fornecendo a condição necessária para deduzir a verdade sobre o mundo empírico a partir da ausência total de mediação, ou seja, a partir da intuição da verdade da existência do eu como pura atividade. A apatia política, o rancor contra toda tentativa não plenamente bem sucedida de instaurar melhoras significativas, a preguiça em relação aos esforços pelo bem comum, o desinteresse pelos movimentos sociais, etc., teriam, como uma de suas raízes mais fundamentais, a forma de experiência do sujeito com o mundo: a negação da consciência de que a mediação do eu operada pelo mundo constitua sua verdade mais fundamental.

Não se trata de negar, por outro lado, que o sujeito tenha um papel na constituição do mundo, remontando a um realismo ingênuo pré-kantiano, mas, sim, de perceber que tanto o universal quanto o particular são prejudicados pela má relação entre eles. Esse prejuízo inestimável pode ser claramente percebido naquilo que dá o fio condutor para o próprio conceito de esclarecimento: a ciência moderna experimental. 3. Positividade da ciência como Leitmotiv do esclarecimento

Embora o esclarecimento possa ser visto em grande amplitude no mito grego, na cosmologia pré-socrática e nas metafísicas gregas e medievais, é no projeto esclarecido da ciência moderna que ele se mostra de modo mais enfático. O projeto de unidade da ciência, a redução de todo o saber à lógica, ao número, a ênfase na diminuição dos princípios a partir dos quais se possa deduzir todas as outras coisas — tudo isso configura a face mais pujante do pensamento antimitológico. a) O mundo como tautologia do pensamento

A consciência dos homens foi cada vez mais levada a distanciar-se da multiplicidade da natureza para poder abarcar, com maior raio de visão, a totalidade dos elementos que poderiam ser dominados. O objetivo mestre do esclarecimento, de “retirar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores” (DA 9/19), teve, como uma

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de suas condições (ou até mesmo como a sua condição), a consciência cada vez mais desenvolvida da necessidade de o domínio e o progresso serem totais: “o esclarecimento é totalitário” (DA 12/22). A idéia de que não se deve deixar restos no processo de conhecimento (e, por conseguinte, de domínio) é apenas uma outra expressão para o fato de o pensamento ter que se localizar para muito além das vicissitudes das relações com a natureza em termos de comportamento mimético: “A intenção esclarecedora do pensamento, a desmitologização, anula o caráter de imagem da consciência” (DN 205). O que vale propriamente é a idéia de progresso, a qual orienta o desenvolvimento da racionalidade: é preciso remover do próprio pensamento os resíduos de aproximações miméticas para com o mundo, que retardam tal progresso cognitivo. É preciso distanciar-se de tudo, inclusive de si próprio, para continuar o progresso: “só o pensamento que se faz violência a si mesmo é suficientemente duro para destruir os mitos” (DA 10/20). Tal marcha progressiva do pensamento, embora já existisse como uma prática dos homens em várias fases da humanidade, não existia enquanto uma idéia que norteasse a sua realização, o que somente ocorreu a partir da formulação da apologia da liberdade burguesa:

Durante séculos, o problema do progresso carecia de sentido. Formula-se apenas depois de liberada a dinâmica da qual foi possível extrapolar a idéia de liberdade. Embora, desde Agostinho o progresso seja a transposição à espécie do ciclo de vida natural que se estende entre o nascimento e a morte dos indivíduos, representação tão mítica quanto aquela segundo a qual o mandamento do destino assinala aos astros sua trajetória, a idéia de progresso é, não obstante, a idéia antimitológica por excelência, capaz de quebrar o círculo ao qual pertence. 95

O que é mais profundamente determinante do esclarecimento como um modo de relação dos homens com o mundo e consigo é o fato de que a consciência esclarecida cada vez mais percebeu que é preciso conceber todos os objetos de conhecimento segundo relações de igualdade, de nivelamento, de comparações sem resto, para que, com isso, se estabeleça uma distinção tranqüilizadora para com aquilo que é propriamente objeto do pensamento. A racionalidade do esclarecimento é a da busca incessante pela coerência sem resíduo no âmbito das idéias, a montagem de um sistema que abarque, através de um menor número possível de princípios fundamentais, a complexa rede de acontecimentos: a mathesis universalis. O sentido da percepção da diferença reside, então, na oportunidade de se filtrá-la pela equalização através de algum procedimento “abstratizante” de montagem de um quadro completo das ocorrências possíveis. A realidade é domesticada através de uma linha mestra da auto-concepção do pensamento como verdade: somente o que é digno de integração na árvore do conhecimento unificado pode ser admitido como realidade. O mundo, então, torna-se uma tautologia do pensamento, na medida em que tudo somente repete, em diversas formas, o que já se queria dele: que ele se mostrasse como rebatível, comparável, equiparável, sujeito a metáforas, a analogias, etc.: “A doutrina da igualdade entre a ação e a reação afirmava o poder da repetição sobre o que existe muito tempo após os homens terem renunciado à ilusão de que pela repetição poderiam se identificar com a realidade repetida e, assim, escapar a seu poder” (DA 18/26). O mundo é lido a partir da inexorabilidade das leis do pensamento, aplicadas em um material amorfo, que somente ganha status de realidade pela força de constituição de que o sujeito é capaz. Desse modo, extirpa-se frente ao real a experiência do novo, pois todo fato, para ser concebido como tal, deve se inserir numa lei que estabelece sua inteligibilidade:

95 Theodor W. Adorno. “Progresso”. In: op. cit ., p.47

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o fato torna-se nulo, mal acabou de acontecer.(…) O que seria diferente é igualado. Esse é o veredicto que estabelece os limites da experiência possível. O preço que se paga pela identidade de tudo com tudo é o fato de que nada, ao mesmo tempo, pode ser idêntico consigo mesmo. (DA 18/26-7)

Mas, como vimos, é precisamente a eterna igualdade de tudo com tudo que se afigurava como a essência do mito: todo acontecimento é visto como retribuição, expiação, pagamento, resgate, reedição de algum evento primordial, situado em um não-lugar, fora do tempo e da história comum dos homens, da mesma forma que as leis lógicas de constituição do real não contêm nenhum conteúdo empírico. O mesmo distanciamento do sujeito lógico em relação àquilo que ele constitui estava prefigurado no distanciamento dos deuses para com a série infinita e contingente dos casos, os quais são entendidos apenas na medida em que experienciados como emanações da vontade e do poder divino de criação do real.

O que o esclarecimento fez foi secularizar de modo radical a transcendência constitutiva dos deuses em uma razão desprovida de história, de alteridade e de diferença. “Nada de novo sob o sol”: esse é o estatuto que a realidade adquire quando lida a partir da adequação ao princípio de sua inteligibilidade. Como se a razão se transformasse numa neurose recalcitrante à possibilidade de experienciar o abalo de ver a si mesma como sendo diferente do que esperava ser. A duplicação dos fatos a partir de si mesma acaba dando à razão a possibilidade de defender-se contra aquilo que poderia arranhar a imagem que ela faz de si: até mesmo sua auto-percepção está subsumida na lei da duplicação, pois é preciso que ela corresponda àquilo que sempre esperou de si: “o conceito de fim, ao qual a razão se eleva por mor da conseqüente autoconservação, deveria ser emancipado do ídolo do espelho” (ND 342). “Este princípio formal, obediente às legalidades subjetivas sem consideração ao seu outro, assegura, sem abalar-se por nenhum tal outro, seu comprazimento: a subjetividade aí goza, inconscientemente, a si mesma, o sentimento de sua dominação” (ÄT 77/62; tradução própria).

A anulação da diferença corresponde ao esvaziamento de conteúdo. Do lado da racionalidade, o sujeito torna-se um mero poder de calcular e de estabelecer relações quantitativas, na mesma medida em que o mundo perde suas qualidades. Podemos dizer que toda a tarefa de Adorno e Horkheimer na Dialética do esclarecimento é a de mostrar a imbricação entre a capacidade de percepção e de concepção do mundo, por um lado, e o poder, o domínio, por outro. Segundo Simon Jarvis, a grande questão que Adorno teria perseguido em sua carreira é: “qual é a relação entre poder e racionalidade?”96; segundo C. Braun, o grande problema filosófico de Adorno seria a relação entre o particular e o universal97. Nas próximas páginas, procuraremos mostrar que a linha mestra da Dialética do esclarecimento é a de conjugar esses dois elementos diretivos gerais, na medida em que o poder inerente à racionalidade ilumina-se na relação entre a dimensão social da razão e a determinidade do indivíduo particular mediada pela hierarquia social em que este se insere.

Podemos dizer que a origem da razão é coletiva: “princípio de dominação social emigrado para o sujeito”98. Pensada em termos de faculdade individual, ela seria o

96 Simon Jarvis. Adorno. A Critical Introduction. New York: Routledge, 1998, p.1. 97 Carl Braun. Kritische Theorie versus Kritizismus. Zur Kant-Kritik Theodor W. Adornos. Berlin-New York: Walter de Gruyter, 1983, p.2 98 Theodor W. Adorno. “Progresso”. In: op. cit ., p.50. Na verdade, não apenas a razão é pensada, em termos genealógicos, como sendo social, mas, também, as próprias formas da intuição dos indivíduos: “O fato de que, enquanto sujeitos cognoscentes, dependam de espaço, de tempo e de formas de pensamento, marca sua dependência

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eco abstrato da voz coletiva, que prima por manter a ordem hierática do comando sobre uma multiplicidade a ser organizada. Tal ordem, como vimos, já existia na coerção coletiva dos rituais mágicos, em que a força difusa do mana era percebida como uma universalidade tanto mais temível quanto mais incompreensível, transcendente à experiência individual. O que o corpo social representava nesse sentido era a corporificação dirigida e assimilável desse poder, mas ainda plenamente apropriada pela elite que detinha o contato privilegiado com os deuses. A coesão social era a hipóstase, no âmbito da cultura, da percepção da universalidade das forças cósmicas, que, pela sua própria potência, exigia a sua repetição infinita em cada ato.

“Mas isso é o que os conceitos universais continuam a ser mesmo quando se desfizeram de todo aspecto figurativo. A forma dedutiva da ciência reflete ainda a hierarquia e a coerção” (DA 27/34). A dominação efetivamente praticada nos indivíduos somente subsiste através de uma sedimentação, nas formas do pensamento, da mesma hierarquia e rigidez presente na divisão do trabalho. Por quê? Porque é precisamente nas formas do pensamento que o mundo se constitui enquanto estrutura organizada, ganha realidade. Desse modo, a estruturação lógica do discurso fundamenta a hierarquização do todo social como algo óbvio, natural, inevitável, tal como inevitável é a relação entre as premissas do silogismo e sua conclusão. Essa inevitabilidade do pensamento, percebida como uma força universal sem parâmetro de comparação frente à vida frágil, contingente e efêmera do indivíduo, é, desse modo, a introjeção sublimada da dominação social, a qual aparece sempre ao indivíduo como também universal e inevitável. E o que resta aos sujeitos singulares diante dessa realidade assim formada? Do mesmo modo que entre duas afirmativas contrárias, somente uma é verdadeira, só há uma possibilidade de sobrevivência: a adequação ao todo coletivo. Do mesmo modo que somente o contato com os deuses poderia garantir a vida, a adequação ao todo social — herdeiro daqueles — é a única alternativa. Desse modo, a universalidade e a opressão da coletividade são reforçadas, na medida em que os indivíduos, para subsistirem, adaptam-se àquilo do qual querem uma porção da força para enfrentarem as adversidades para a vida.

Vemos, assim, que o esclarecimento está fundado na equalização entre a ânsia de preservação e de aumento de poder, por um lado, e sua fundação no processo de separar o núcleo universalizante do conceito em relação às vicissitudes da relação mimética com a natureza. Essa transcendência do conceito acaba nivelando todos os seres a um círculo nefasto de eterna repetição natural de sua própria existência e do todo coletivo que os impinge a conformidade a ele e que se nutre dessa mesma conformidade. O “derradeiro produto do esclarecimento”, o positivismo lógico, é uma expressão inequívoca do entrelaçamento desafortunado de todos esses elementos de modo hiperbólico. b) Positivismo metafísico

Pudemos ver que a abstração presente na metafísica ainda era expressão da injustiça social, pois estampava, na autarquia das idéias, a distância para com aqueles que eram objeto da exclusão operada pelo domínio que almeja perenizar-se. Mas o poder não necessita por muito tempo desse apoio da linguagem, e a ciência moderna acabou por perceber, na separação universalizante dos conceitos metafísicos, a explicitação daquilo que se queria aplacar: o medo pelas potências divinas. A suspeita da linguagem científica em relação à espécie. Esta se sedimentou em tais constituintes; não por isso estes valem menos. O a priori e a sociedade estão entrelaçados. A universalidade e a necessidade dessas formas, sua glória kantiana, não é outra coisa do que aquela que constitui como unidade os homens” (Theodor W. Adorno. “Sujeito-objeto”. In: op. cit ., p.191).

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em relação aos universais da metafísica está fundada no aspecto explícito que o chorismós coloca para a injustiça que era praticada contra os dominados. A matematização do saber deu fim a essa auto-assunção da injustiça no pensamento, e “o impotente perdeu inteiramente a força para se exprimir, e só o existente encontra aí seu signo neutro. Tal neutralidade é mais metafísica que a própria metafísica” (DA 29/35) — isso porque, se a metafísica é censurada pelo fato de, em sua suprema abstração, afastar-se dos conteúdos sensíveis, a ciência moderna matematizada nem sequer exprime a perda de sua referência para com a realidade vivida. Assim, podemos dizer que a inverdade do esclarecimento é que a abstração obscurece a falsidade do real, ou seja, a condição de subjugação perpétua a que os homens estão sujeitos, na medida em que a abstração iguala, nivela, todos os entes e não mais se exprime a diferença fundante entre dominados e domina ntes

Essa realidade oprimida é caracterizada pela diferenciação qualitativa, cuja consideração é algo alheio ao desenvolvimento da ciência moderna:

A objetivação científica tende, de acordo com a tendência quantificadora de toda ciência desde Descartes, a eliminar as qualidades, a transformá-las em determinações mensuráveis. A própria racionalidade é, cada vez mais, igualada more geometrico à faculdade da quantificação. (ND 53)

A matematização da ciência, a desconfiança na ponderação sobre diferenças qualitativas, é uma hipóstase daquilo que, na história da humanidade, teve um curso bem definido: a repressão do comportamento mimético. A ciência sente-se tão dentro do rumo do progresso, quanto menos espaço há, no âmbito de sua racionalidade, para a alteridade diferenciada: “no ‘igual por igual’ de seus métodos quantificativos, há tão pouco espaço para a formação do ‘outro’, quanto no sortilégio do destino.” (ND 216). Esse elemento de sempre-igual pode ser visto enfaticamente no procedimento da ciência matematizada — principalmente sob a ótica do positivismo lógico — de obediência cega ao fato: “o factual tem a última palavra, o conhecimento restringe-se à sua repetição, o pensamento transforma-se na mera tautologia” (DA 33/39).

A Dialética do esclarecimento foi publicada em 1947, época em que o positivismo lógico ainda gozava de reputação no cenário intelectual europeu. Muito da crítica de Adorno e Horkheimer à ciência é dirigida à leitura positivista da atividade científica. Entretanto, não se deveria dizer que a Dialética do esclarecimento não tem validade crítica atual pelo fato de o positivismo lógico não ser mais uma corrente filosófica importante no cenário mundial. O positivismo não é criticado apenas pelas características próprias dele enquanto movimento filosófico determinado, mas, fundamentalmente, por ser o ápice, na época da publicação da Dialética, desse processo de equalização de todos os fenômenos, de supressão das diferenças qualitativas em prol de um aperfeiçoamento do poder de manipulação da natureza. Esse processo não terminou quando as teorias do Círculo de Viena deixaram de ter espaço. As características do pensamento positivista, criticadas por Adorno e por Horkheimer, podem ser expandidas para além do movimento que se iniciou a partir de Wittgenstein. Jameson as resume exemplarmente:

“Positivismo” (…) deve ser em geral considerado significando um compromisso com os fatos empíricos e fenômenos do mundo nos quais o abstrato — tanto a interpretação como as idéias gerais, tanto as unidades coletivas sincrônicas mais amplas como as narrativas ou genealogias diacrônicas — está cada vez mais restringido, quando não sistematicamente perseguido e extirpado como uma relíquia e uma sobrevivência de categorias e pensamentos antigos tradicionais, “metafísicos”, ou simplesmente obsoletos e antiquados.99

99 Fredric Jameson. op. cit ., p.121.

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Essa definição é muito boa, principalmente porque mostra como a mentalidade positivista se determina negativamente, a partir da negação dos universais, e, não, positivamente (sem nenhum trocadilho). Essa recusa da consideração do elemento de universalidade presente no real empírico denotaria um “medo pela verdade” (DA 4/13), ou seja, por aquilo que realmente conta como origem das coisas, que são as relações de poder. Em vez de tal mentalidade evitar a superstição — que é o aspecto antimitológico por excelência —, ela acaba favorecendo-a (cf. DA 3/13), pois abre espaço para toda a sorte de discursos ideológicos que se apoiam em interpretações absurdas dos fatos, como a ideologia nazi-fascista.

Uma vez considerada essa ampliação do conceito de positivismo, as críticas de Adorno e Horkheimer podem ser perfeitamente dirigidas a um crítico severo do positivismo lógico: Quine.

c) A epistemologia naturalizada de Quine

Para Quine, a epistemologia, desde Descartes, trilhou um caminho equivocado, que foi o de tentar derivar a estrutura do mundo da estrutura do pensamento, ou seja, de vincular a determinação ontológica do real à da determinação lógica do pensar, sendo que a última grande tentativa dessa natureza teria sido Die logische Aufbau der Welt (“A construção lógica do mundo”), de Carnap.

Todo o projeto da epistemologia tradicional está fundado, segundo Quine, na pretensão de dar ao conhecimento um ou mais critérios que nos permitam decidir quais crenças são aceitáveis com base nele. Trata-se de um procedimento normativo, dado que, uma vez estabelecidos os critérios e as crenças por eles justificadas, torna-se imperativo aquiescer a tais crenças, e seria desprovido de sentido recusá-las. A palavra chave é “justificação”, pois, uma vez conseguida, tudo o mais se segue necessariamente.

A epistemologia conteria duas características: o estudo conceitual e o doutrinal. Partindo-se da idéia de que o conhecimento natural é baseado na experiência sensível, o primeiro aspecto significa explicar a noção de corpo em termos sensoriais, enquanto o outro significa justificar o nosso conhecimento de verdades da natureza também em termos sensoriais.

O empirismo de Hume é o ponto de partida para uma série de tentativas de tentar traduzir os dados dos sentidos em uma expressão lingüística: inicialmente, fazendo corresponder a identificação dos corpos diretamente às impressões sensoriais; depois, usando uma definição contextual, através da vinculação de um termo ao conjunto da frase em que ele é empregado; mais tarde, empregando a teoria dos conjuntos, como classes de impressões, classes de classes, etc. Mas, segundo Quine, embora se possa exprimir uma sentença em temos de impressões sensoriais, lógicos e de teoria dos conjuntos, isso não significa que ela esteja provada nesses termos. Por isso, segundo Quine, o projeto doutrinal do conhecimento foi abandonado, mas não o conceitual, pois este ainda poderia ser útil para esclarecer a evidência sensorial para a ciência ou para aprofundar o conhecimento de nosso discurso sobre o mundo, tornando-o tão claro quanto os termos observacionais, a lógica e a teoria dos conjuntos. Apesar dessa constatação, duas teses do empirismo mantiveram-se intactas: (1) de que, em última instância, toda evidência tem que ser sensorial, e (2) de que todo significado de palavras tem que referir-se às evidências sensoriais.

Mas por que toda essa reconstrução criativa, por que todo esse simulacro? A estimulação dos receptores sensoriais constitui, em última análise, toda a evidência na qual cada um terá podido basear-se para chegar à sua imagem do mundo. Por que não ver simplesmente como essa construção realmente se processa? Por que não ficar com a psicologia? A transferência das responsabilidades epistemológicas para a psicologia havia sido condenada, anteriormente, como

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um raciocínio circular. Se o objetivo do epistemólogo era o de validar os fundamentos da ciência empírica, ao empregar a psicologia ou outra ciência empírica nessa avaliação, ele estaria frustrando seus propósitos. Todavia, tais escrúpulos contra a circularidade terão pouca relevância, uma vez que tivermos parado de sonhar com uma dedução da ciência a partir de observações. Se estivermos procurando simplesmente compreender o elo entre observação e ciência, será de bom critério empregar qualquer informação disponível, inclusive a que é oferecida por essa ciência mesma, cujo elo com a observação estamos procu rando compreender.100

Segundo Quine, em vez de perceber, nesse processo de abandono do projeto original da epistemologia, sua derrocada, seria melhor situá-la como um capítulo da psicologia, mudando seu status, que passaria de uma tentativa de justificação do conhecimento, para a de uma explicação científica de algo da ordem da natureza: a relação entre o recebimento de impulsos sensíveis e a produção de elementos teóricos.

[A epistemologia naturalizada] estuda um fenômeno natural, a saber, um sujeito humano físico. Concede-se que esse sujeito humano recebe uma certa entrada [input] experimentalmente controlada — certos padrões de irradiação em variadas freqüências, por exemplo — e no devido tempo o sujeito fornece como saída [output] uma descrição do mundo externo tridimensional e sua história. A relação entre a magra entrada e a saída torrencial é a relação que nos sentimos estimulados a estudar um tanto pelas mesmas razões que sempre serviram de estímulo para a epistemologia; ou seja, a fim de ver como evidência se relaciona à teoria e de quais maneiras as nossas teorias da natureza transcendem qualquer evidência disponível.101

Os procedimentos de reconstrução racional ainda poderiam ser usados, desde que ajudassem na elucidação do processo psicológico de produção de teorias. A epistemologia naturalizada é um capítulo das ciências naturais, mas ainda quer dizer respeito a toda a ciência, inclusive a si própria, pois tudo não passa de modos de o sujeito racional converter dados sensíveis em elementos conceituais. As sentenças de observação têm importância tanto conceitual quanto de verdade: são as primeiras que aprendemos quando tomamos conhecimento dos significados das palavras (tanto como crianças, quanto como cientistas); e são a base para a aferição da verdade da ciência. Elas têm importância semântica imediata, não sendo propriamente afetadas pela indeterminação da tradução (de uma língua a outra e dos dados sensíveis para a estrutura lingüística).

Do mesmo modo que há padrões de percepção e de articulação da linguagem a partir de elementos fonéticos mínimos (cerca de 30), deve haver um alfabeto de normas perceptivas, “no seu conjunto bastante limitado, com respeito ao qual tendemos inconscientemente a retificar todas as percepções. Essas últimas, se identificadas experimentalmente, podem ser vistas como blocos de construção epistemológicos, como os elementos de trabalho da experiência”102.

O que Quine está nos propondo é que retiremos de nosso objetivo a exigência de justificativa do conhecimento, ou seja, que deixemos de tentar saber se o conhecimento é válido ou não; o que ele propõe é que façamos uma análise das relações causais entre os impulsos sensíveis e aquilo que resulta deles, estabelecendo leis que descreveriam a regularidade da passagem dos primeiros para os últimos, tal como se estuda um fenômeno natural. Mas, como diz Jaegwon Kim, “se a justificação sai da epistemologia, o próprio conhecimento sai da epistemologia, pois nosso conceito de conhecimento está inseparavelmente ligado ao de justificação. (…) O conhecimento é, ele

100 Willar v. O. Quine. “Epistemologia naturalizada”. Tradução de Andréa Maria A. C. Loparic. São Paulo: Nova Cultural, 1989, p.94. 101 Willar v. O. Quine. Op. cit., p.98; grifos nossos. 102 Willar v. O. Quine. Op. cit. p.102-3.

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mesmo, uma noção normativa. A epistemologia naturalizada, não-normativa, de Quine não tem nenhum espaço para nosso conceito de conhecimento”103. Isso por que, se o interesse de Quine é o de tentar pensar “como a evidência se relaciona à teoria”, não basta fazer uma relação causal de dados sensíveis entre a primeira e a segunda, pois os dados sensíveis somente têm força evidencial se já forem pensados conceitualmente como sendo evidências. Se os dados sensíveis são tomados na epistemologia naturalizada como contendo tal força, então já se assume que eles produzirão uma fonte de justificativa dos conhecimentos, o que não pode ser pensado apenas em termos de relação causal entre input sensível e output cognitivo. Ou seja, que os dados sensíveis causem o surgimento do conceito, não significa que eles tenham força evidencial para estes.

Além disso, para estabelecer tal relação, a epistemologia naturalizada teria o enorme problema de tentar explicar algo elementar em epistemologia, que é um mesmo dado sensível poder ser interpretado de várias formas através de inúmeros conceitos. Se há relação causal entre o primeiro e os últimos, seria difícil explicar como uma mesma causa pode dar origem a virtualmente infinitos efeitos. É precisamente dessa relação entre uma mesma sensação e a infinidade de interpretações possíveis para ela que se nutre um aspecto da produção da ciência e do saber em geral — que nem sequer é mencionada por Quine e nem por seus comentadores — que é o aspecto criativo do ato de conhecer. Uma nova teoria é, muitas vezes, resultado de uma aplicação inusitada, insólita, muitas vezes tomada inicialmente como absurda, de um conceito em um conjunto de dados sensíveis. A criatividade do pensamento respira no espaço aberto entre a materialidade do mundo e transcendência conceitual:

É apenas na distância em relação à vida que se desenvolve a vida do pensamento que realmente atinge a vida empírica. Enquanto o pensamento se refere aos fatos e se move na crítica a eles, ele não se move menos graças à diferença mantida. Ele exprime com exatidão o que é, pelo fato mesmo de que o que é nunca é inteiramente tal qual o pensamento o exprime. A ele é essencial um elemento de exagero, que o impele para além das coisas e o faz desembaraçar-se do peso do factual, graças ao que, em fez de apenas reproduzir o ser, co nsuma de maneira rigorosa e livre a determinação deste último. (MM §82. 110)

Se o positivismo de Viena queria fazer uma duplicação dos fatos na esfera do pensamento, sem nenhuma consideração para com a história sedimentada subterraneamente neles, ainda considerava que eles são algo diferente do pensamento, e tal diferença, segundo seus membros pensavam, poderia ser recoberta através da reconstrução lógica do mundo. Em Quine, por outro lado, temos a ausência até mesmo da diferença entre o conhecimento e a materialidade do mundo. Se o positivismo queria tra-duzir o mundo — considerado a totalidade dos fatos — em conceitos, Quine quer perceber a própria assimilação conceitual como um fato, como uma ocorrência de ordem física! Talvez não haja nada na história da “filosofia” — aqui é duvidoso o emprego dessa palavra — que seja uma demonstração mais literal do que a Teoria Crítica chamou de reificação da racionalidade. d) Reificação do pensamento: a razão instrumental

A eficácia operativa, a tomada de seu objeto como “substrato da dominação” (DA 15/24), empresta à racionalidade científica um estatuto peculiar a ela: sua transformação naquilo que Adorno e Horkheimer chamam de razão instrumental, que é caracterizada pela desconsideração, tanto da diferenciação qualitativa de seu objeto, 103 Jaegwon Kim. “What is ‘naturalized epistemology’?”. In: Hilary Kornblith (Edt.) Naturalizing Epistemology . Cambridge: MIT Press, 1994, p.41.

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quanto da necessidade de estabelecer fins. O adjetivo “instrumental” contém, assim, uma dupla determinação, a saber, o nivelamento tanto subjetivo, quanto objetivo, na experiência do sujeito com o mundo: “à tendência quantificadora corresponde, do lado subjetivo, a redução do cognoscente a um universal sem qualidade, puramente lógico” (ND 54), e, do lado objetivo, a natureza transforma-se em um material disforme, cujo único sentido é a adequação a princípios formais abstratos, sem conteúdo vivencial, subjugado à ânsia de progresso do conhecimento: “a equação do espírito e do mundo acaba por se resolver, mas apenas com a mútua redução de seus dois lados” (DA 33/38).

É precisamente essa dupla redução (subjetiva e objetiva) — levada a cabo de forma literal em Quine — que delineia o que podemos conceber em sentido mais próprio como reificação. Na racionalidade instrumental, tanto o sujeito, quanto o mundo igualam-se em um ponto bastante caro a Adorno: tornam-se um sempre-igual. Cada um torna-se a própria medida daquilo que deve vir a ser devido ao esvaziamento, em si mesmo, de elementos que instiguem, ou pelo menos apontem, para algo diferente (e, evidentemente, melhor) do que se é. A abstração da racionalidade científica matematizada é o resultado, então, de um modo específico de o sujeito experienciar o mundo que se hipostasiou na equalização, por parte da linguagem científica, entre verdade e número-lógica-princípios formais. A transformação do sujeito e do mundo em “coisas” (que é o que está envolvido no substantivo “reificação”) traz para Adorno a conseqüência filosófica de que tal concepção oblitera a possibilidade de pensar-se, tanto o sujeito, quanto o objeto, como contendo em si mesmos, como algo inerente a eles — como sua essência, se se preferir —, o que os levaria a serem melhores do que são: “o que é, é mais do que ele é” (ND 164).

Ora, todos os fatos são radicalmente mediados pela prática social de concepção do mundo, não são algo desprovido de historicidade. Precisamente porque desconsidera todas as mediações históricas, sociais, humanas em sentido geral, dos fatos, a ciência moderna matematizada apenas duplica a injustiça social que dá origem a eles, sem exprimi-la, ocultando-a sob o véu de neutralidade axiológica de sua percepção isenta de preconceitos. Tal concepção solidifica-se em formas de pensamento que dão o lastro de autenticidade ao modo como os indivíduos percebem a realidade. Manter-se fiel aos fatos, sem consideração para com o sedimento histórico no modo como eles são percebidos, é apenas um modo de repetir o que a sociedade já colocou no mundo como resultado da injustiça praticada a muitos por poucos em nome de todos. Falando em relação ao que subjaz à factualidade do mundo como sua essência, diz Adorno:

A essência não deve mais ser hipostasiada como um em si espiritual. Em vez disso, a essência transforma-se naquilo que se esconde sob a fachada do imediato, sob os pretensos fatos, e que os faz ser aquilo que eles são; transforma-se na lei do infortúnio, à qual a história até hoje obedece; e isso tão mais irresistivelmente, quanto mais profundamente tal infortúnio se esconde sob os fatos, a fim de se deixar negar confortavelmente por estes. (DN 169)

Aqui entra em jogo um elemento caro a Adorno: falso não é apenas o conhecimento, mas o próprio mundo: a injustiça, a desumanização, o sofrimento injustificado. Assim, embora possa ser concebida como verdade em relação ao fato, a ciência matematizada é falsa, pois apenas duplica a falsidade inerente ao real de modo infinito, interminável.

O fascínio causado pelo progresso infindável e acelerado do conhecimento factual, legitimado pela imagem repetidamente exposta do progresso tecnológico dele decorrente, assume o status de uma transcendência tão inquestionável quanto a universalidade bruta do poder do mana que “fascinava o olhar nas fantasmagorias dos feiticeiros e curandeiros” (DA 35/40). “(…) [O] triunfo da produtividade técnica serve

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para encenar que a utopia, irreconciliável com as relações de produção, já estaria realizada e concretizada no âmbito dessas relações”104. Naturalmente que a relação com o acúmulo do conhecimento factual e com as benesses tecnológicas não é absolutamente a mesma que com os poderes divinos na magia animista dos tempos pré-históricos, mas tem algo em comum com esta em sentido forte: a tecnologia é vivida como um milagre constante105, como um conforto material que acarreta um outro espiritual, vinculado à idéia de normalidade, de um progresso benfazejo que — isso é certo nas mentes de todos — não cessará de presentear-nos com elementos de consumo que se adaptam como uma luva às carências produzidas socialmente.106 O factual é legitimado pelo poder social de produção da própria factualidade!

Desse modo, o esclarecimento regride à mitologia, da qual jamais soube escapar. Pois, em suas figuras, a mitologia refletira a essência da ordem existente — o processo cíclico, o destino, a dominação do mundo — como a verdade e abdicara da esperança. Na pregnân cia da imagem mítica, bem como na clareza da fórmula científica, a eternidade do factual se vê confirmada e a mera existência expressa como o sentido que ela obstrui. (DA 33/39)

A existência como medida de si mesma: essa é a conseqüência da desconsideração das mediações que envolvem a factualidade do mundo. De modo semelhante à mera repetição factual no conhecimento científico, a mera repetição, continuidade, da própria existência configura-se como aquilo que dá seu sentido.

4. Integração funcional do indivíduo na sociedade

A idéia de Adorno e Horkheimer de que “poder e conhecimento são sinônimos” tem uma expressiva gama de conseqüências, das quais já falamos em parte. Uma delas é de fundamental importância para nossa análise, que é a de que a racionalidade científica não é algo que tem seu sentido encerrado no modus cogitandi próprio à atividade cognitiva do cientista, mas se alastra por todo o corpo social:

Graças aos modos de trabalho racionalizados, a eliminação das qualidades e sua conversão em funções transferem-se da ciência para o mundo da experiência dos povos e tende a assemelhá-lo de novo ao mundo dos anfíbios. A regressão das massas, de que hoje se fala, nada mais é senão a incapacidade de poder ouvir o imediato com os próprios ouvidos, de poder tocar o intocado com as próprias mãos: a nova forma de ofuscamento que vem substituir as formas míticas superadas. (DA 43/47)

O que é comum à “experiência dos povos” e à ciência é que se trata de um modo de percepção do mundo atrelado a uma funcionalização do que é percebido: tanto da natureza, quanto dos homens. A indústria e sua correlativa organização social do trabalho impingem aos impotentes operários um empobrecimento radical de sua relação com as

104 Theodor W Adorno. “Capitalismo tardio ou sociedade industrial”. Tradução de Flávio R. Kothe. In: COHN, Gabriel (Org.). Theodor W. Adorno. São Paulo: Ática, 1986, p.69. 105 Cf. Jean Baudrillard. A sociedade de consumo . Tradução de Artur Morão. Elfos: Porto, 1998. 106 É preciso considerar, aqui, o aspecto de integração social que as próprias necessidades possuem: “Para além de tudo o que à época de Marx era previsível, as necessidades, que já o eram potencialmente, acabaram se transformando completamente em funções do aparelho de produção, e não vice-versa. São totalmente dirigidas. Nessa metamorfose, as necessidades, fixadas e adequadas aos interesses do aparelho, convertem-se naquilo que o aparelho sempre pode invocar com alarde. (…) Não só as necessidades são atendidas apenas indiretamente, através do valor de troca, mas, em setores economicamente relevantes, são primeiro geradas pelo próprio interesse no lucro, e isso às custas de necessidades objetivas dos consumidores, como a necessidade de moradias suficientes e a necessidade de formação e de informação quanto aos eventos mais importantes que lhe sejam concernentes”. (Theodor W. Adorno. “Capitalismo tardio ou sociedade industrial”. Tradução de Flávio R. Kothe. In: COHN, Gabriel (Org.). Theodor W. Adorno. São Paulo: Ática, 1986, p.68.)

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coisas: “quanto mais complicada e mais refinada a aparelhagem social, econômica e científica, para cujo manejo o corpo já há muito foi ajustado pelo sistema de produção, tanto mais empobrecidas as vivências de que ele é capaz” (DA 43/47). O que marca decididamente tal empobrecimento é uma abstração que é de suma importância para Adorno: a negação abstrata da sensibilidade pelo afastamento do intelecto em relação a ela. Do mesmo modo que o senhor se afasta do trabalho e se vê substituído pela força bruta dos operários, resignando-se em ser apenas um centro decisor do que deve ser feito em prol da eficácia da operação de domínio da natureza, o intelecto torna-se um ponto vazio de controle de todas as decisões, abstraído de elementos de natureza: “a unificação da função intelectual, graças à qual se efetua a dominação dos sentidos, a resignação do pensamento em vista da produção da unanimidade, significa o empobrecimento do pensamento bem como da experiência: a separação dos dois domínios prejudica a ambos” (DA 42/47).

Como já dissemos anteriormente, tal separação é feita em função da necessidade da autoconservação, vincada pela necessidade de integrar-se à força incomensurável do todo coletivo, que se reforça com isso:

(…) o universal abstrato do todo, que exerce a coerção, é irmanado à universalidade do pensamento, ao espírito. Isso permite a este, em seus portadores, retroprojetar-se naquela universalidade como se ele estivesse efetivado nela e tivesse, por si, sua própria realidade efetiva. No espírito, a consonância do universal tornou-se sujeito, e a universalidade afirma-se na sociedade apenas através do medium do espírito, através da operação abstrativa, que ele realiza de modo sumamente efetivo. (ND 310)

Quanto mais as leis do pensamento são purificadas de todo conteúdo empírico, de sensibilidade, de toda posição de valores não universalizáveis em termos de premissas da lógica matemática, tanto mais a existência como um todo fica limitada à afirmação de sua continuidade como seu sentido.

A exclusividde das leis lógicas tem origem nessa univocidade da função, em última análise no caráter coercitivo da autoconservação. Esta culmina sempre na escolha entre a sobrevivência ou a morte, escolha essa na qual se pode perceber ainda um reflexo no princípio de que, entre duas proposições contraditórias, só uma pode ser verdadeira e só uma falsa. O formalismo desse princípio e de toda a lógica, que é o modo como ele se estabelece, deriva da opacidade e do entrelaçamento de interesses numa sociedade na qual só por acaso coincidem a conservação das formas e a dos indivíduos. (DA 37/42 – g rifos nossos)

A casualidade, contingência, da coincidência da conservação das formas sociais (governos, empresas, instituições em geral) e dos indivíduos indica a relação entre pensamento-sensibilidade e coletividade-indivíduo: o âmbito da vivência sensorial é algo experimentado pelo indivíduo como relegado à contingência dos momentos em que sua satisfação não interfere na condução de seu processo de manter a existência, conduzido pelo “intelecto autocrático” (DA 42/47), ao passo que o indivíduo como um todo é visto pelo coletivo (e vê a si próprio) como também relegado à esfera da contingência no que concerne à sua satisfação, na medida em que ela não interfira na condução dos processos de reprodução da vida social, assumidos pela elite dirigente.

Aqui podemos exprimir uma idéia que justifica nossa opção pelo viés gnosiológico que assumimos em nossa interpretação da Dialética do esclarecimento: a dominação da maioria por poucos tem sua legitimação na forma com que a experiência de mundo é feita por todos, que acaba introvertendo aquela coerção.

A concentração de poderes econômico e, com isto, político e administrativo, reduz, em boa medida, cada indivíduo à condição de mero funcionário da engrenagem. Os indivíduos estão provavelmente muito mais comprometidos do que no auge do liberalismo, quando ainda não ansiavam por vínculos. Sua necessidade de vínculos é, portanto, crescentemente uma necessidade de reduplicação e de legitimação intelectuais da autoridade aliás já presente. (…) A desproporção,

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crescente até o desmesurado, entre poder social e impotência social, prolonga-se no enfraquecimento da composição interna do Eu, de modo que este não se mantém sem identificar-se precisamente com aquilo que o condena à impotência. (…) Como a instauração de uma ordem justa parece ser impossível aos homens, recomenda-se-lhes a existente e injusta.107

O modo como a premência da autoconservação sublimou-se em uma separação radical dos domínios intelectual e sensível determinou a regressão, tanto da sensibilidade, quanto do pensamento. A hierarquia do poder intelectual em relação à sensibilidade é uma introversão subjetiva da hierarquia externa estabelecida com a divisão social do trabalho. Esta é fundada na possibilidade de as pessoas serem substituídas, trocadas, umas pelas outras, o que somente pôde acontecer devido ao desenvolvimento das forças produtivas, que dispensam a consideração pelas diferenças de habilidade e entre os operários, chegando-se, no capitalismo, a algo que é essencial: a homogeneização do trabalho.

O princípio da troca, a redução do trabalho humano ao conceito universal abstrato do tempo de trabalho médio, é originariamente aparentado ao princípio de identificação. Na troca, este princípio tem seu modelo social e ela não existiria sem este; através dela, seres singulares e forças não-idênticos tornam-se comensuráveis, idênticos. A expansão do princípio conduz todo o mundo a algo idêntico, à totalidade. (ND 149)

Essa igualização total dos trabalhadores no mercado de trabalho estabelece claramente algo muito importante para Adorno: a idéia de que a realidade está completamente mediada pela força da constrição social. O todo social adquire uma opacidade tão grande ao indivíduo quanto era o poder do mana nos tempos primitivos. “A experiência daquela objetividade pré-ordenada ao indivíduo e à sua consciência é a experiência da unidade da sociedade totalmente coletivizada [vergesellschaftet]” (DN 309). A partir dessa idéia, vemos que a afirmativa de Marcos Nobre de que “a legitimação da dominação ‘tradicional’, ‘vinda de cima’ foi posta de lado sob o capitalismo”108, não é totalmente correta do ponto de vista adorniano, uma vez que o próprio mercado, figura elementar do liberalismo, além de nunca ter se dado de modo absolutamente desregulado — mesmo porque isso seria inviável até do ponto de vista dos capitalistas, pois as leis econômicas, ilustradas pela noção de Estado hobbesiana, que limitam as ações de cada um, os protegem das irracionalidades alheias —, também constitui per se uma instância “acima” das atitudes particulares de cada um: qualquer investidor de bolsa de valores, lugar em que o livre mercado se exprime de modo enfático, com certeza já deve ter sentido um profundo tremor diante de um movimento inesperado do fluxo de capitais, que se lhe apresenta como desmesuradamente fora de controle, “transcendente”, talvez tão destacado de sua vontade quanto a providência divina cristã ou o deus heraclítico que de uns fez reis e de outros escravos.

Por paradoxal que seja, quanto mais forte é a coletivização da sociedade, mais dispersos têm que estar os indivíduos; a bem dizer, a própria força do todo social nutre-se precisamente da dispersão de seus membros:

O universal cuida para que o particular a ele submetido não seja melhor do que ele. Esse é o núcleo de toda a identidade produzida até hoje. (…) Para que o interesse individual determinado funcionalmente se satisfaça de alguma forma sob as formas subsistentes, ele tem que se tornar em algo primário; o indivíduo tem que confundir aquilo que lhe é imediato com a próte ousía

107 Theodor W. Adorno. “Razão e revelação”. In: Palavras e sinais. Modelos críticos 2. Tradução de Maria Helena Ruschel. Petrópolis: Vozes, 1995, p.30-1, grifos nossos. 108 Marcos Nobre. A Dialética negativa de Theodor W. Adorno. A ontologia do estado falso . São Paulo: Iluminuras, 1998, p. 50

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[substância primeira – vf]. Tal ilusão subjetiva é causada objetivamente: somente através do princípio da autoconservação individual, com toda a sua teimosia, o todo funciona. Este força o indivíduo a olhar somente para si mesmo, deturpa sua compreensão da objetividade e transforma-se, por isso, objetivamente, em algo ruim. (…) O princípio universal é o da particularização. (ND 306-7)

Por isso podemos ver que a construção da identidade coletiva é fundada e refletida na identidade individual, que se erige a partir de um fechamento dos sujeitos em relação uns aos outros. Precisamos, ver, então, como se constituiu essa formação da identidade pessoal a partir da negação individual em relação à natureza externa e interna e em relação aos outros. 5. Negação abstrata prática da natureza

Em nossas considerações sobre a formação do eu, de acordo com a Dialética do esclarecimento, é preciso dizer que a separação do ego em relação à natureza e sua concomitante afirmação é uma promessa, em princípio, legítima para o ser humano. Em hipótese alguma poder-se-ia pensar qualquer forma de liberdade, de autonomia, de realização do humano, etc., sem haver a ruptura em relação à natureza. Essa ruptura é absolutamente necessária e, em hipótese alguma, seria pensável a construção de todas as possibilidades de um mundo justo humanamente sem o processo de repressão, de dominação da natureza. É preciso começar por onde os comentadores de Adorno costumam terminar, ao acusá-lo de dizer que a racionalidade dominadora da natureza é absolutamente ruim, que não nos leva compreender sua faceta efetivamente racional, etc. Mas é preciso, ao mesmo tempo, refletir radicalmente sobre o elemento de falsidade da razão, para que possamos nos aproximar da efetiva realização de sua promessa de redenção do humano, que é, repetimos, legítima em seus propósitos, embora não o seja no modo como ela efetivamente se realizou, criando a ilusão socialmente estabelecida da aparência apodítica do modo como a realidade como um todo é enformada racionalmente.

Por outro lado, é preciso que salientemos que muito do que Adorno e Horkheimer dizem sobre a formação do ego está baseado na idéia de sacrifício, que absorve todas aquelas impropriedades da concepção de esclarecimento qua dominação que apontamos no início desse capítulo. Assim, para que se pudesse falar, de modo amplo, sobre a concepção dos autores sobre a formação da identidade pessoal a partir da argumentação geral do Excurso I, seria preciso fazer o que os autores dizem no prefácio de 1969 em relação ao livro todo: reescrevê-la. A abordagem a ser feita, então, será limitada à consideração da emergência da identidade individual a partir do conceito de astúcia como negação abstrata da natureza.

a) Obstinação identitária

Mito e epopéia são momentos diferentes no mesmo processo de esclarecimento. O mito grego, como vimos no primeiro item desse capítulo, mostra sua especificidade precisamente no fato de dar início ao processo de formação do pensamento abstrato, em que os deuses separam-se da natureza para representá-la. Apesar de representar esse passo, a mitologia grega ainda mantinha-se ligada ao contexto de coerção natural, sendo as relações de poder socialmente estabelecidas reflexo da mesma rigidez com que a natureza era percebida. Tanto o mito quanto a epopéia têm em comum a exposição da violência e da dominação como os fios que sustentam a unidade coletiva. A hierarquia presente no mito continua a existir na epopéia. Aliás, podemos dizer que isso permanecerá no processo de racionalização do ocidente até o surgimento da ciência

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matematizada, quando o processo de retirada das qualidades do cosmo instituiu um processo de secularização radical das relações entre os entes, em que a explicitação da hierarquia de forças e de valores cai na suspeita de ser remanescente da fundamentação do poder “pelo princípio arcaico do sangue e do sacrifício” (DA 52/55).

Apesar dessas semelhanças, a epopéia mostra-se como uma etapa posterior do processo de esclarecimento, na medida em que, nela, a dominação, a violência, ou seja, as relações de poder, embora experimentadas nua e cruamente, adquirem a direção interna ao indivíduo, iniciando a formação daquilo que é chamado por Adorno e Horkheimer “o sujeito lógico do esclarecimento” (DA 89/83). Podemos dizer que, na epopéia, o próprio poder torna-se mediação para o sujeito. É a partir de uma determinada forma de experienciar as relações de poder e de força que o âmbito da subjetividade começa a se delinear. Nesse sentido, pode-se falar de uma racionalização da violência, não apenas no modo como ela é exercida, mas, também, no sentido que ela alcança, no resultado que se obtém a partir dela.

Sendo a epopéia uma fase diferente do mito, nela já está sedimentada a forma que será o protótipo do burguês: afirmação unitária do ego que encontra seu modelo mais antigo no herói errante. A oposição do ego sobrevivente às múltiplas peripécias do destino exprime a oposição do esclarecimento ao mito. Todos os perigos que Ulisses atravessa são seduções [Verführungen]109, rupturas em relação a seu ideal de autoconservação e de retorno aos bens, à propriedade, ou seja, a si mesmo. A maturidade, a rigidez, a unidade e a identidade do eu só são alcançadas com a travessia de todos os perigos, de todas as possibilidades de dissolução da inteireza da autoconsciência. Mas o fundamento mais íntimo, visceral, que faz com que todas as figuras míticas enfrentadas por Ulisses tenham a força que têm, é o fato de que elas, na verdade, representam os impulsos internos, os desejos, as pulsões incontroladas, que não foram ainda domesticadas pela lei do pensamento rigidamente instituído. O que Ulisses realmente enfrenta em todo o seu percurso é o perigo representado pela força de seu próprio desejo, que tende sempre a desviá-lo do seu projeto de unificar a si mesmo através da consciência do poder que ele mesmo tem em relação a si próprio. Tal unidade não se opõe simplesmente à multiplicidade da natureza sedutora, mas é conquistada ao percorrê-la e superá-la: Ulisses perde-se para se ganhar. Comentando uma passagem em que Ulisses tenta abafar o latido de seu coração, dizem Adorno e Horkheimer:

O ímpeto é equiparado ao animal que o homem subjuga: a comparação da cadela pertence ao mesmo nível de experiência que remete à imagem dos companheiros metamorfoseados em porcos. O sujeito, ainda dividido e forçado a usar de violência contra a natureza tanto dentro dele quanto fora dele, “pune” o coração exortando à paciência e negando-lhe — com o olhar posto no futuro — o presente imediato. Bater no peito tornou-se depois um gesto de triunfo: com esse gesto, o vencedor exprime o fato de que sua vitória é sempre uma vitória sobre sua própria natureza. (DA 54 – nota/ 243 – nota)

A própria esfera da consciência pode ser pensada como um resultado do domínio em relação às próprias emoções, como uma parte da energia pulsional dirigida contra a satisfação imediata dos desejos: “Geneticamente, a consciência autonomizada, sumo da atividade nos poderes cognitivos, é uma ramificação da energia libidinosa do

109 As palavras portuguesa e alemã têm equivalência etimológica elucidativa, pois “seduzir” deriva do prefixo latino se- (de lado, separado) e o radical ducere (levar), enquanto “verführen” é composta do prefixo de reforço ver- e do verbo führen (conduzir, levar). Ou seja, trata-se de um movimento ou de ímpeto de desvio da rota normal e direta do caminho predeterminado.

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homem como ser genérico. (…) A consciência é função do sujeito vivente, seu conceito está formado segundo sua imagem” (ND 186).

Segundo Seyla Benhabib, “(…) a interpretação de Ulisses já pressupõe um eu com medo de perder a si mesmo na alteridade, um eu consciente dos perigos à sua identidade contínua postos pelos impulsos internos” 110. Adorno e Horkheimer não pressupõem a identidade do eu. Eles mostram que é precisamente o fato de ter que desafiar a natureza, de se jogar contra as forças naturais (internas e externas) numa seqüência de aventuras ousadas, que atesta que o eu ainda é frágil: “todas as vezes que o eu voltou a experimentar historicamente semelhante enfraquecimento, ou que o modo de expor pressupôs semelhante fraqueza no leitor, a narrativa da vida resvalou novamente para a sucessão de aventuras” (DA 55/56). Ele já está suficient emente formado para que o medo esteja presente perante sua desintegração, mas ainda está no processo de formação no modo como ele enfrenta os perigos e na consciência de ter que enfrentá-los.

Ainda segundo essa mesma comentadora, “a extensão de categorias psicanalíticas aos começos da civilização ocidental leva a um profundo anistoricismo, que reduz enormemente a plausibilidade dessa genealogia do eu moderno”111. Ora, o que evitaria o que Benhabib denomina “anistoricismo”? Uma consideração de todas as fases, figuras e formas da história da humanidade? Dizer, por exemplo, que o capitalismo, desde seu início foi caracterizado pela consideração abstrata do trabalho, homogeneizado no valor de troca das mercadorias, as quais obtêm tal valor na relação recíproca no mercado, significa dizer que o capitalismo é algo que não sofreu mutações, que tal princípio básico somente possui uma forma de se manifestar, etc.? Ora, que se considere estruturas mais fundamentais que os modos com os quais essas são efetivadas em hipótese alguma pode ser considerado anistórico. Se assim fosse, uma consideração verdadeiramente histórica somente seria aquela que se ativesse a cada forma específica da história, a cada momento singular, etc., e aí, sim, acabaríamos, num extremo, desconsiderando toda a carga histórica que se deposita em cada forma social, pois iríamos negligenciar todo o peso que o passado deposita no sentido das formas e instituições do presente.

Ulisses situa-se em um momento histórico em que o sujeito começa a tomar consciência da diferença entre o si mesmo e o outro. Entre o télos da unidade do eu e as seduções desviantes há uma mediação, que é aquilo que permite a Ulisses sobrepujar os perigos tornando-se forte precisamente ao se lhes expor: a astúcia. Ela dá a medida da racionalidade presente no sacrifício: relação proveitosa entre aquilo que se perde e se ganha no processo de imolação. Ao ser assimilado pela civilização, o mito assume a forma de um sacrifício do eu em função de si mesmo:

Eis aí a verdade da célebre narrativa da mitologia nórdica, segundo a qual Odin se pendurou numa árvore em sacrifício por si mesmo, e da tese de Klages que todo sacrifício é o sacrifício do deus ao deus, tal como ainda se apresenta nesse disfarce monoteísta do mito que é a cristologia. (DA 61/60)

Para se manter enquanto sujeito idêntico a si, o indivíduo perpetua a irracionalidade mítica na medida em que, renunciando à vida, alimenta o corpo coletivo. A negação da natureza no sujeito nega a finalidade a que o sacrifício serve, pois o que é negado é exatamente o sujeito enquanto ser vivo.

A anti-razão do capitalismo totalitário, cuja técnica de satisfazer necessidades, em sua fo rma

110 Seyla Benhabib. Critique, Norm and Utopia. A Study of the foundation of Critical Theory . New York: Columbia University Press, 1986, p.168. 111 Seyla Benhabib. Op. cit. p.168.

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objetualizada, determinada pela dominação, torna impossível a satisfação de necessidades e impele ao extermínio dos homens — essa anti-razão está desenvolvida de maneira prototípica no herói que se furta ao sacrifício sacrificando-se. A história da civilização é a história da introversão do sacrifício. Ou, por outra, da renúncia. (DA 62/61)

O périplo de Ulisses mostra-o como fisicamente mais fraco que as potências da natureza: é preciso vencê-las assimilando-as astuciosamente. É preciso avaliar corretamente as relações de força: “o desejo não deve ser o pai do pensamento” (DA 62/61). O sujeito somente tem sua subsistência assegurada através de uma acomodação calculada aos poderes superiores, ou seja, ele se situa no mesmo contexto natural de luta de um ser vivo contra outro ser vivo, em que todo seu conteúdo como ser vivente deve ser humilhado para que a continuidade da vida seja assegurada. A medida da racionalidade burguesa é essa: a renúncia ao todo é o preço pela manutenção da vida empobrecida.

As potências demoníacas de dissolução representam o aprisionamento no eterno ciclo repetitivo do mito: crime, castigo, culpa, remorso, vingança. “É a isso que se opõe Ulisses. O eu representa a universalidade racional contra a inevitabilidade do destino” (DA 66/63). Mas como essa inevitabilidade também é universal (a ela ninguém pode escapar) sua racionalidade consiste em ser uma exceção à regra, ou seja, a razão se mostra particular desde sua origem. Mas essa afirmação do sujeito somente é conseguida ao se cumprir o contrato mítico, ou seja, é preciso desafiar as forças míticas que estão à margem da sociedade patriarcal que quer se afirmar com base na constituição do sujeito autóctone, consciente de sua inteireza. Mas para se alcançar essa autoconsciência é necessário que se experimente o poder que se possui de resistir a elas, tornando-se duro e forte contra as seduções de toda ordem.

Para mostrar a auto-afirmação do sujeito e seu entrelaçamento com a coerção mítica transposta para a concepção esclarecida, Adorno e Horkheimer analisam a passagem da Odisséia em que Ulisses, o proprietário de terras e senhor de todos os trabalhadores, deixa-se atrelar ao mastro do navio para não sucumbir ao canto das sereias, que, segundo a lenda, possuíam um poder de encantamento irresistível. Enquanto ele pode ouvir a canção, sem, no entanto, jogar-se ao mar e morrer atraído por elas, seus comandados têm os ouvidos tapados, remando com todas as suas forças para salvar a si mesmos e a seu senhor. Ulisses, apesar de saber do perigo representado pelas sereias, desconfia do poder da consciência de sua própria liberdade, motivo pelo qual tem que se atar ao mastro do navio.

Essa passagem é emblemática para aquilo que dá um fundamento significativo para a dialética da alteridade que estamos buscando: a natureza é experimentada a partir de uma ambigüidade visceral, estampada em sua imagem mítica. Ela é vista como uma promessa de felicidade plena, representada pela união indissoluta com as sereias (ou seja, com a natureza, com o útero materno), mas, ao mesmo tempo, já é apresentada no relato épico como fonte de desgraça absoluta: a morte. O poder de discernimento esclarecido já atua de forma a cunhar na mente de todos — tanto de dominantes, quanto de dominados — a diferenciação cristalina daquilo que era vivido de forma indistinta no mito: a união com a natureza é apenas aparência. A narrativa homérica é o testemunho da elevação à consciência de si do que já era experimentado nas mentes mais esclarecidas da época, ou seja, de que a imagem mítica da natureza é perigosamente ambivalente. Mas como essa consciência ainda era precária — na verdade ela estava em processo de se afirmar —, o sujeito tem que buscar no próprio perigo a fonte de salvação contra ele: “eis aí o segredo do processo entre a epopéia e o mito: o eu não constitui o oposto rígido da aventura, mas só vem a se formar em sua rigidez através dessa oposição,

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unidade que é tão-somente na multiplicidade de tudo aquilo que é negado por essa unidade” (DA 55/56).

É exatamente devido a essa diferenciação interna da imagem que o esclarecimento deve ser diferenciado do comportamento mimético, ou seja, ele seria caracterizado pela distinção abstrativa operada na indiferenciação própria do mito e das formas de assimilação imagética do mundo. O mito, a rigor, nem sequer é unitário, mas, sim, indistinto:

A indiferenciação, antes que o sujeito se formasse, foi o estremecimento do cego nexo natural, o mito; as grandes religiões tiveram seu conteúdo de verdade no protesto contra ele. Além do mais, indiferenciação não é unidade; esta exige, já segundo a dialética platônica, diversidade, cuja unidade ela constitui. (…) Destino, a submissão à natureza dos mitos, procede de uma total menoridade social, de uma época em que a autoconsciência ainda não tinha aberto os olhos, em que ainda não existia o sujeito. Ao invés de evocar o retorno daquela época, mediante a práxis coletiva, dever-se-ia extinguir o feitiço da antiga indiferenciação.112

Mais uma vez temos aqui um argumento a favor da idéia de que é o mito grego que deve ser colocado como princípio do esclarecimento, pois, como vimos, foi ele que instaurou a separação entre deuses e natureza, contribuindo para essa tão importante cisão entre pensamento e realidade. Como vimos no primeiro item do primeiro capítulo, a abstração é o que nos capacita a perceber diferenças, e uma aplicação dessa idéia é precisamente a possibilidade que a abstração grega propiciou de perceber e de exprimir a cisão interna da imagem da natureza como sendo profundamente ambígua — índice de felicidade e de morte.

Mas essa consciência esclarecida não é uma negação determinada da imagem mítica, mas, sim, abstrata, pois, como veremos, a natureza é pensada como meramente um veículo, um substrato, para a afirmação do sujeito, o qual não preserva em nada o direito de existência da natureza enquanto natureza, enquanto algo que possui suas qualidades e diferenças e que, possuindo tais diferenças, faria parte da constituição da identidade subjetiva.

Qual a relação dos trabalhadores e de Ulisses com o perigo do canto das sereias? Em um sentido, tais relações são opostas, mas noutro sentido, são idênticas. São opostas, na medida em que, evidentemente, Ulisses ouve o canto da sereias, mas está imobilizado, impedido de ir até elas, enquanto seus subordinados estão surdos para o canto e trabalham desesperadamente. Mas elas são idênticas, na medida em que o sentido da ação de ambos é o mesmo. Tanto o senhor, quanto os servos, ficaram reduzidos a apenas reproduzir, duplicar, como coisas, aquilo que sabiam ser o melhor para todos: não sucumbir à beleza do canto das sereias. Note-se: a idéia que Ulisses possuía do que deveria ser feito não é algo vivo, concreto, para ele no momento em que está atado ao mastro, pois ela sofreu uma metamorfose decisiva, dado que se mantém para muito além das condições reais em que ela deve ser cumprida. No momento em que ela deve ser efetivada, ela já se tornou algo abstrato demais, devendo ser concretizada à força, situação em que a fonte de comando situa-se em oposição radical à vivência multifacetada do que contém elementos dispersos e perigosos à sua execução. Essa é a direção que a história da humanidade tomou: a voz de comando instaura, impõe, a verdade da experiência como necessidade de abstrair-se da multiplicidade dos sentidos, para garantir o sentido da vida como adaptação forçada à idéia socialmente instituída de autoconservação — e isso vale, tanto para o senhor, quanto para os trabalhadores. É precisamente a experiência da distância

112 Theodor W. Adorno. “Sujeito-objeto”. In: op. cit ., p.184.

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radicalizada entre a sede do poder de comando, legitimada pela noção de verdade, de dever a se cumprir, e a vivência multifacetada da natureza que desvia em relação a tal poder que mostra, mais uma vez, que a abstração do pensamento em relação aos sentidos é aquilo que institui a ruptura decisiva entre o comportamento mimético e o esclarecimento.

Quase todos os comentadores da Dialética do esclarecimento dizem que o domínio da natureza externa tem como fundamento o domínio da natureza interna. Tal como diz Alo Allkemper:

A dominação sobre as coisas funda-se na coerção para a autoconservação (…) A dominação sobre o exterior, ou seja, tanto sobre a natureza, quanto sobre os homens — enquanto função da autoconservação —, não permanece externa ao eu: a dominação externa somente existe mediada pela dominação interna. O eu somente consegue se afirmar na natureza externa, se ele, ao mesmo tempo, submete sua natureza interna ao eu.113

Apesar da expressão “ao mesmo tempo [zugleich]”, as duas primeiras frases não deixam

dúvida da relação apriorística da dominação da natureza interna em relação à da externa.

Isso não está errado, mas cremos que é mais adequado, em termos de exegese do texto

como um todo, pensar não em termos desse “transcendentalismo” de um nível de

dominação em relação ao outro. Segundo pensamos, essa diferença entre ambos os níveis

está fundada em uma relação gnosio-teleológica com a natureza. A razão esclarecida tem sua

origem no discernimento do conluio fatal entre a força da natureza e as emoções subjetivas:

o espírito percebeu uma relação de cumplicidade mimética entre ambas, ou seja, os

sentimentos começaram a ser representados como eco da multiplicidade da natureza; é isso

que experimenta Ulisses quando amarrado ao navio: “a violência de seu desejo (…) reflete

a violência das próprias semideusas” (DA 67/64). É precisamente esse discernimento que

propiciou a emergência da identidade subjetiva, na medida em que favoreceu a tomada de

consciência da necessidade de dominar as próprias emoções, alcançando a rigidez de

caráter necessária à própria identidade. Desse modo, dominar as naturezas interna e

externa é, com um certo exagero, a mesma coisa: fruto da diferenciação cognitiva a partir

das relações de poder do espírito em relação ao seu outro.

Porém, mais uma vez, vemos como o esclarecimento regride à mitologia, na medida em que esse ponto de unificação do sentido da experiência como atualização

113 Alo Allkemper. Rettung und Utopie. Studien zu Adorno. Paderborn: Ferdinand Schöningh, 1981, p.60.

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forçada do que transcende a vivência atual tem correlação com a força de presentificação do sentido no mito. Como já falamos, o mito estrutura-se como uma forma de vida fundada na eterna repetição do significado presente no símbolo, que visa à natureza em seu aspecto de permanência cíclica infinita. Ora, é precisamente a eterna repetição do elemento coercitivo presente na natureza que se espelha no rigorismo abstrato das leis lógicas e na decisão obstinada de manter a própria identidade. Isso quer dizer que o sujeito acaba repetindo em seu caráter, através dos rituais sacrificiais duros que tem que atravessar, a mesma rigidez e inexorabilidade que experimenta na natureza: “o sujeito é a forma duplicada tardia e, no entanto, a mais antiga do mito” (ND 187).

Que a razão seja um outro da natureza e, entretanto, um momento dela, é a sua pré-história que se tornou sua determinação imanente. Ela é natural ao ser a força psíquica transferida para os fins da autoco nservação; mas, uma vez cindida e contrastada à natureza, ela se torna o outro dessa. Rompendo em relação a esta efemeramente, a razão é idêntica e não-idêntica à natureza, é dialética segundo seu próprio conceito. Nessa dialética, entretanto, quanto mais inescrupulosamente a razão se faz o oposto absoluto da natureza e a esquece em si própria, tanto mais ela regride, como autoconservação selvagem, à natureza; somente como reflexão dessa, a razão seria uma sobre-natureza. (ND 285)

O empreendimento de Ulisses, como, num outro sentido, o de Robinson Crusoé, é marcado pela astúcia que vence algo radicalmente mais forte: as forças da natureza simbolizadas pelas figuras míticas. “Ele não pode jamais travar luta física com os poderes míticos que continuam a existir à margem da civilização. Ele tem que reconhecer como um fato os cerimoniais sacrificiais com os quais acaba sempre por se envolver, pois não tem força para infringi-los (DA 64/62)”. A disparidade de forças legitima a conquista pela astúcia, do mesmo modo que a burguesia mais tarde irá encontrar a legitimação moral do lucro no risco de ruína. A sobrevivência está marcada pela necessidade de lograr aquilo que se opõe a ela; Ulisses e Robinson — e, por extensão, o empreendedor burguês — são solitários: somente sobrevivem “em total separação de todos os demais homens. Estes só vêm ao encontro dos dois em uma feição alienada, como inimigos ou como pontos de apoio, sempre como instrumentos, como coisas” (DA 69/67).

Segundo Simon Jarvis, Honneth afirma que “Adorno e Horkheimer estão tão fixados no modelo do controle instrumental da natureza — que é o interesse real de sua filosofia da história — que eles querem conceber o funcionamento da dominação intra-social também de acordo com este modelo”114. A resposta de Jarvis a essa objeção de Honneth funda-se, basicamente, na idéia de que o objetivo da Dialética do esclarecimento é o de pensar a possibilidade da reconciliação entre cultura e natureza. Para isso, seria necessário ultrapassar a distinção idealista entre o âmbito constitutivo do espírito e seu outro, que leva a uma hipóstase da cultura. Ora, diz Jarvis, “fixar uma separação entre ‘dominação da natureza’ e ‘dominação social’ é fixar uma separação entre as categorias de ‘sociedade’ e de ‘natureza’”. Essa resposta nos parece adequada, mas como Jarvis argumenta a favor da imbricação qualitativa entre os dois tipos de dominação é rápida e simples demais: “para uma teoria materialista, dominar outros seres humanos — dado que seres humanos não são pura cultura — é já dominação da natureza tanto quanto dominação social, não dominação social em vez de, ou ‘modelada sobre’ dominação da natureza”115. Essa justificativa, naturalmente, é correta, mas não considera o mais difícil e importante na inter-relação entre as duas formas de domínio, pois considera que a dominação social somente se iguala à da natureza pelo fato de os homens conterem 114 Simon Jarvis. Adorno. A Critical Introduction. New York: Routledge, 1998, p.35. 115 Simon Jarvis. Op. cit ., p.35.

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literalmente um elemento de natureza como corpos físicos. É preciso ver o que homogeneiza ambas as formas de poder, para além de sua igualdade do objeto. Essa questão também está em jogo no texto de Allkemper:

O medo da destruição, da auto-aniquilação, é o medo de todo desconhecido, estranho, e torna-se total dominação sobre a natureza.(…) O outro é também o estranho, que, podendo escapar de todo cálculo prospectivo, apresenta uma alta incomensurabilidade e, assim, uma ameaça, devendo ser, portanto, dominado em favor do próprio eu.116

O elemento que subjaz à argumentação da Dialética do esclarecimento é, segundo nossa idéia, que ambas as formas de dominação têm a mesma fonte de legitimação. Algo que é próprio da relação de domínio frente ao outro é que a ameaça deste em relação ao eu torna tal domínio legítimo, pelo fato de o outro ser inserido na maioria, no todo social, no que é múltiplo, não apenas no sentido de não sintetizado, mas, também, de mais de um, grande, mais forte fisicamente. A alteridade dos indivíduos entre si está vinculada ao peso da coletividade que ela possui, e a alteridade natural, ao poder de aniquilação, de dispersão. Como o que conta em ambos os casos é o caráter de ameaça de algo mais forte sobre o mais fraco fisicamente, a fonte de justificativa para o domínio é a mesma. A dimensão de todo social que serve para legitimar a dominação da alteridade do semelhante está bem expressa no Leviatã de Hobbes, um escritor emérito do atomismo burguês: “quanto à força corporal o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta maquinação, quer aliando-se com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo”117. Nessa passagem, encontram-se expressos os dois elementos: de astúcia, que está em jogo na fala de Allkemper, e da coletividade ameaçadora, que sublinhamos.

O que é próprio da racionalidade ocidental é conjugar a abstração da concepção de mundo (com sua falsificação das relações de poder), com a consciência individual da necessidade, da naturalidade, da comodidade, da adaptação (astuciosa) ao todo coletivo. O indivíduo sente-se como se seu pertencimento à sociedade derivasse de sua astúcia, em sua capacidade de burlar o olhar coletivo (do mesmo modo que Ulisses tinha que lograr as forças da natureza). Desse modo, a má-consciência, a culpa, são resíduos presentes, em maior ou menor grau, na mentalidade daqueles que têm que se considerar separados do todo coletivo para nele se integrar. A culpa é o resíduo virtualmente necessário da astúcia, mas como ela não está de acordo com a premência de otimizar o domínio da realidade social como um todo, a “frieza burguesa” é um valor que deve acompanhar todo o estado de espírito, como se fosse uma recomendação para uma receita de bolo, por menos fútil que seja a situação em que ela deva ser empregada. Esse elemento propriamente moral do esclarecimento (visto por nós como residuário da concepção abstrata de mundo) é a transposição da negação da mímesis (no âmbito cognoscitivo-operatório) para o da valorização de si. A moral da frieza burguesa reflete a negação da relação não-resolvida entre alteridade e diferença no comportamento mimético, em função de uma indiferença para com o objeto. De modo semelhante a como Hegel diz que a subsunção do desejo do outro no reconhecimento mútuo está a serviço do auto-reconhecimento do espírito, a indiferença burguesa está a serviço da idéia de adaptação para a sobrevivência. Talvez não seja absolutamente coincidência Hegel falar de

116 Alo Allkemper. Op. cit., p.60. 117 Thomas Hobbes. O Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro e de Maria Beatriz da Silva. São Paulo: Abril, 1983, p.74 (Col. Os Pensadores).

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uma astúcia da razão na história, uma vez que é de astúcia que se trata na relação entre o eu e a natureza, e entre o indivíduo e o coletivo.

Diante de todas essas evidências interpretativas que alencamos para a idéia de que a astúcia ulissiana é uma negação abstrata da natureza, surpreende-nos, e muito, a posição de Klaus Baum. Quando se refere à lógica exposta por Adorno e por Horkheimer de contraposição abstrata, absoluta, entre a idéia e a materialidade sedutora da natureza, diz o comentador:

Se Ulisses tivesse seguido esta lógica, ele teria, precisamente por isso, ao passar pelas sereias, tapado os ouvidos com cera: mas assim ele sofre uma tortura de tântalo118. Ele está irresistivelmente exposto à atração do canto: a ânsia é ativada até o extremo do suportável, e ele, entretanto, não pode ceder a ela. A astúcia que se exprime em sua prisão é negação determinada do poder do canto e, ao mesmo tempo, condição para a ruptura intensa, dolorosa, entre a ânsia e o ímpeto para sua satisfação.119

Na medida em que esta multiplicidade [dos perigos de morte – vf] é, segundo sua substância, ameaça letal, a autoconservação de Ulisses, que aqui é caracterizada como formação da identidade, não pode ser vista como imposição rígida de um eu que persiste abstratamente. O sofrimento de Ulisses é avaliado de modo positivo, precisamente porque ele é tornado um pressuposto de sua maioridade.120

Rodrigo Duarte diz “concordar com a posição de Klaus Baum, segundo a qual o interdito não pode ser pura e simplesmente igualado à autoconservação, caso essa e a felicidade sejam postas numa relação de tertium non datur”121.

Há várias noções contidas nessas afirmativas. Comentemos cada uma delas.122

A idéia de Baum é a de que a negação exercida por Ulisses em relação à natureza somente seria abstrata se ele negasse total- e absolutamente o contato com o perigo de sedução das sereias, tapando os ouvidos. Segundo o intérprete, nesse caso, ele não teria extraído nada de sua relação com a natureza, tendo seguido, então, o que seria a lógica que apontam Adorno e Horkheimer de opor abstratamente sua idéia e a natureza.

O comentador possui uma idéia de negação abstrata bastante literal. Ele considera que negar abstratamente a natureza somente é feito se não se tem nenhum contato com ela. Não é o caso. Como vimos anteriormente, a negação abstrata é caracterizada por uma imposição subjetiva, arbitrária, em relação a algo. Se, por exemplo, numa disputa de interesses em um grupo de pessoas, um desses grupos decide, pela força, que o restante não terá seus desejos satisfeitos, então trata-se de uma negação abstrata, pois a resolução da contenda se deu por tal imposição subjetiva. Não é necessário, para se caracterizar a negação abstrata nessa situação, que o grupo excluído seja morto, por exemplo. O fato de seu direito ser totalmente negado já mostra que a negação exercida é abstrata, “confirmada por

118 Tântalo é uma figura da mitologia grega que foi punido por uma divindade, tendo que ficar em uma lagoa, sendo que toda vez que ele se curvasse para beber água, o nível desta ia se abaixando, sem que ele pudesse saciar sua sede. Quando voltava para cima, o nível da água subia novamente. 119 Klaus Baum. Die Tranzendierung des Mythos. Zur Philosophie und Aeshetik Schellings und Adornos. Würzburg: Königshausen & Newman, 1988, p.67 – nota; grifos nossos. 120 Klaus Baum. Op. cit., p.73. 121 Rodrigo Duarte. Mímesis e racionalidade. A concepção de domínio da natureza em Theodor W. Adorno. São Paulo: Loyola, 1993, p.93. 122 Na verdade há outra idéia, também importante — e mais surpreendente ainda —, que é uma conseqüência das apresentadas, que é a tomada do procedimento de Ulisses como modelo (!) para própria concepção de dialética negativa de Adorno. Essa idéia será examinada no próximo capítulo.

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arbítrio subjetivo”. “Arbítrio” e “Willkür” (em alemão) têm equivalência etimológica, pois derivam da noção de vontade (arbitrium e Wille). Ou seja, o que é decido como solução para a tensão entre os desejos tem seu fundamento numa mera vontade de algum dos lados de que seja assim e pronto, sem consideração para com a legitimidade da pretensão do outro, que se vê anulado em sua qualidade própria. O outro é achatado, nivelado, de tal modo que sua presença é destituída de dignidade própria, desqualificada, violentada. A negação abstrata tem esse nome porque é total, mas o é em relação ao direito, à natureza, à especificidade do outro enquanto outro, enquanto diferente. Para que haja essa negação total não é necessário que o outro seja morto ou nem sequer ouvido, etc. Essas já seriam abstratas, mas o fato de excluir o desejo do outro como irrealizável também é uma negação abstrata dele. Nesse exemplo, uma negação determinada poderia ser o estabelecimento de uma lei, que negasse, nos desejos em conflito, somente aquilo que não fosse legítimo, racionalmente aceito, etc.123 A lei manteria o direito do desejo do outro ao mesmo tempo em que negaria que tal desejo se efetivasse de modo a prejudicar o semelhante.

O que é indicado por Rodrigo Duarte na concepção de Baum é que Adorno e Horkheimer contrapõem totalmente a felicidade enquanto perdição e a resolução obstinada de subsistência como se inexistisse um terceiro termo (tertium non datur).

Klaus Baum está certo ao descrever assim a leitura de Adorno e de Horkheimer da Odisséia, pois eles, efetivamente, interpretam a relação de Ulisses com a natureza como se fosse efetivamente uma relação de tertium non datur. O problema é ele dizer que isso não é válido. É precisamente por excluir uma outra alternativa entre a subsistência ou a felicidade/morte que a negação exercida por Ulisses em relação à natureza é abstrata.

Uma outra passagem da Odisséia comentada por Adorno e por Horkheimer mostra claramente o que está em jogo nessa questão, que é a estada de Ulisses na ilha dos lotófagos, os quais, por comerem da flor de lótus, esquecem-se da civilização, dos deveres, da própria identidade, levando uma vida vegetativa sem as agruras da vida cultural.

Essa cena idílica (…) a razão autoconservadora não pode admiti-la entre os seus. Esse idílio é, na verdade, a mera aparência da felicidade, um estado apático e vegetativo, pobre como a vida dos animais e, no melhor dos casos, a ausência da consciência da infelicidade. Mas a felicidade contém em si a verdade. Ela é essencialmente um resultado e se desenvolve na superação do sofrimento. Assim, o sofredor tem uma justificação, a qual não o permite permanecer entre os lotófagos124. Ele defende contra estes a própria causa deles, a realização da utopia, através do trabalho histórico, pois o simples fato de se demorar na imagem da beatitude é suficiente para roubar-lhe o vigor. Mas ao perceber essa justificação, a racionalidade, isto é, Ulisses, entra forçosamente no contexto da injustiça. Enquanto imediata, sua própria ação resulta em favor da dominação. (DA 70/67 – tradução modificada; grifos nossos)

Como dissemos ao início desse item, a promessa de subsistência autonomizada feita pela razão é legítima, válida, o problema é o modo como ela foi conduzida: a partir de uma negação abstrata da natureza. Todo o problema do desenvolvimento da racionalidade ocidental reside no preço que sempre se teve que pagar 123 Aqui apenas para ilustrar o conceito, sem entrar no mérito da questão se Adorno concordaria que a lei jurídica é uma negação determinada do conflito político. 124 Aqui Guido de Almeida traduziu “so ist der Dulder im Recht, den es bei den Lotophagen nicht duldet” de modo incompreensível: “é essa a justificação do herói sofredor, que não sofre permanecer entre os lotófagos”. Ele traduziu o verbo dulden (suportar, permitir), como leiden (sofrer), confundido pelo substantivo Dulder (sofredor, paciente).

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para superar o sofrimento imposto pela coerção natural, ou seja: a sujeição da grande massa de operários, de marginais, de criminosos, etc., ao controle da máquina de produção da riqueza distribuída de forma absolutamente desigual; o empobrecimento das vivências que cada um — mesmo bem aquinhoado pelas benesses tecnológicas — sofre pelos meios de comunicação de massa, pelo ritmo estressante do trabalho, etc.; a incompreensão abissal das motivações que o levam a rejeitar in totum as propostas políticas mais progressistas e libertadoras; a superfluidade alarmante da classe dirigente, que faz até mesmo de seu próprio prazer um mero meio de despertar a inveja alheia, etc., etc., etc. O preço que se paga pela superação da ambigüidade da imagem é a repetição, no âmbito da cultura, da mesma coerção que a natureza ameaçava impor aos homens.

Na passagem dos lotófagos que citamos acima — que é extremamente profícua para embasar nossa argumentação em todo esse item —, desde a segunda frase até “(…) roubar-lhe o vigor”, a leitura da proposta, do ideário, do télos, de Ulisses é nitidamente positiva. Nas duas últimas frases, exprime-se aquilo que mostra o caráter excludente da posição do herói, e, portanto, o caráter abstrato de sua negação da natureza: a verdade contida na idéia de ter que superar a ambigüidade da imagem da natureza transforma-se em legitimação para aniquilar o direito da natureza de ser aquilo que ela é, com sua multiplicidade, com suas seduções, com suas diferenças, ou seja, com o seu caráter de um ser que tem vida e que, por isso, merece ser considerado não apenas como meio, mas, também, como fim em si mesmo. A verdade contida na utopia racionalizada de Ulisses é tornada uma mentira quando é usada como mero meio de justificar a imposição da autoconservação como única maneira de escapar ao sortilégio natural: “a essência do esclarecimento é a alternativa que torna inevitável a dominação. Os homens sempre tiveram de escolher entre submeter-se à natureza ou submeter a natureza ao eu” (DA 38/43). Tal submissão é precisamente aquilo que constitui o processo de formação da própria identidade subjetiva: é preciso excluir a alteridade natural para afirmar a si próprio como inteiro, uno, idêntico: “que uma consciência individual seja una, isso vale apenas sob a pressuposição lógica do tertium non datur: que ela não deva poder ser um outro. Nessa medida, sua singularidade, para ser possível, é sobreindividual.”125 (ND 146 – nota). Isso significa que a consciência singular somente se tornou isso, singular, porque o pensamento, sedimentando a experiência coletiva de sua unificação, pôde fornecer-lhe sua condição de possibilidade, que é a conscientização da abstração conceitual da exclusão de um terceiro termo entre ser e não ser.

Pelo menos de acordo com a história real da civilização, essa inevitabilidade tem, como sua essência, o fato de ser vivida como violenta, forçada — paradoxalmente, tanto para Ulisses quanto para os trabalhadores, como vimos acima. Na passagem pelas sereias, no caso de Ulisses, a ânsia (vivenciada) de ir ter com a felicidade plena é massacrada pela idéia de ter que subsistir para se alcançar a verdadeira felicidade. Essa verdade contida nessa idéia é o que justifica a relegação da natureza a um mero meio de o sujeito experimentar o quão forte, decidido e perseverante ele é, elevando esse saber à consciência de si, retirando dele a seiva necessária para fundar sua identidade livre das ilusões da 125 Por outro lado, Adorno chama à atenção para a necessidade de se pensar o outro lado da moeda, que é a dependência que o próprio universal tem em relação à consciência individual: “nenhum dos dois momentos tem prioridade perante o outro. Se não houvesse consciência idêntica, nenhuma identidade da particularização, tão pouco haveria um universal, como o contrário. Assim, legitima-se gnosiologicamente a concepção dialética de particular e universal” (ND 146 – nota). Todavia, enquanto crítica do modo como a particularidade efetivamente se estabeleceu, vê-se claramente que a preponderância do universal sempre fez com que aquela parecesse menor: “O universal cuida para que o particular a ele submetido não seja melhor do que ele. Esse é o núcleo de toda a identidade produzida até hoje” (ND 306 – grifos nossos).

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flutuação mimética — e ambígua — com a natureza. Para os trabalhadores, a violência é exercida de fora, do alto, pois eles não têm nem sequer o direito de se exporem ao perigo da natureza para poderem se reconhecer como ativos ao lidar com ela. A eles cabe apenas a suprema abstração de saber que a natureza é perigosamente sedutora, sem nem ao menos vivenciar esse perigo. De acordo com a concepção de negação abstrata de Klaus Baum, esta seria praticada apenas pelos trabalhadores — ou melhor, praticada neles. De fato, coube-lhes, tão-somente, a força de imposição da idéia de perigo que justifica o massacre da natureza interna de Ulisses. Para eles, a negação da natureza é literalmente abstrata, pois a repressão, recalque, negação, de seu desejo é algo já resolvido puramente no âmbito das idéias, sem que o perigo tenha sequer se mostrado real. Em ambos os casos a idéia abstrata de verdade é usada para aniquilar as qualidades próprias de cada ser, de cada indivíduo, de forma violenta:

A abstração, que é o instrumento do esclarecimento, comporta-se com seus objetos do mesmo modo que o destino, cujo conceito é por ele eliminado, ou seja, ela se comporta como um processo de liquidação. Sob o domínio nivelador do abstrato, que transforma todas as coisas na natureza em algo de reproduzível, e da indústria, para a qual esse domínio do abstrato prepara o reproduzível, os próprios liberados acabaram por se transformar naquele “destacamento” que Hegel designou como o resultado do esclarecimento. (DA 19/27)

Porém, das duas posições diante do perigo, a de Ulisses é nitidamente a mais proficiente em termos interpretativos, pois mostra a introjeção “voluntária” da violência da natureza na obstinação de manter a própria identidade. Ela mostra aquilo que os trabalhadores, em um período que já garante pelo menos formalmente sua liberdade, terão que fazer: a formação da virilidade do caráter através da negação deliberada dos próprios desejos. Em Ulisses, essa formação tem como seu fundamento a astúcia, que é, como dissemos, a mediação entre a unidade do ego e a multiplicidade da natureza. Para mostrar, segundo pensamos de modo decisivo, que ela é uma negação abstrata da natureza, é preciso que consideremos uma questão fundamental sobre o périplo odisseico que nunca é ressaltada pelos comentadores: de onde vem a necessidade de enfrentar os poderes de dissolução da natureza? Quando do episódio que comentamos,

Ulisses não tenta tomar um caminho diverso do que passa pela ilha das sereias. Tampouco tenta, por exemplo, alardear a superioridade de seu saber e escutar livremente as sedutoras, na presunção de que sua liberdade constitua proteção suficiente. Ele se apequena, o navio toma sua rota predeterminada e fatal, e ele se dá conta de que continua como ouvinte entregue à natureza, por mais que se distancie conscientemente dela. (DA 66/64)

(…) o saber em que consiste sua identidade e que lhe possibilita sobreviver tira sua substância da experiência de tudo aquilo que é múltiplo, que desvia, que dissolve, e o sobrevivente sábio é ao mesmo tempo aquele que se expõe mais audaciosamente à ameaça da morte, na qual se torna duro e forte para a vida. (DA 54/56)

A astúcia é o exercício da afirmação da identidade do sujeito que se sedimenta no orgulho de poder dar um sentido, uma significação ao mundo e obter prazer com a verdade a partir de si como o ponto de origem de uma atividade, de um agir, de uma pro-dução autóctone, autodeterminante. A autodeterminação dessa atividade tem como conditio sine qua non o fato de que ela somente ocorre a partir da experiência de eximir-se da dependência em relação à natureza, a qual configura aquilo que coloca a opacidade radical, fundante, do espírito em relação a si mesmo. A afirmação da identidade é radicalmente negativa, não apenas porque depende da negação da natureza, mas, também, porque aquilo que é negado é concebido, não apenas como inimigo ou como instrumento, mas, também, como algo que, pelo fato de possuir qualidades, diferenças, deve ser utilizado como mero receptáculo do poder de constituição do real por parte do

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sujeito, ou seja, como algo que passa a não possuir qualidades. A diferença qualitativa da natureza é radicalmente um mero pré-texto para que o sujeito se afirme em sua potência de constituir a identidade do mundo e de si mesmo no momento mesmo em que desqualifica a própria natureza. É preciso que a natureza tenha qualidades próprias para que, ao apagá-las, o sujeito possa conceber-se — no sentido propriamente etimológico de concipere (gerar) — como capaz de autodeterminação. O prazer vinculado à afirmação da identidade própria é, no esclarecimento, um prazer narcisista: derivado do olhar de satisfação de poder experimentar a própria força como sendo superior ao seu outro, ou seja, à natureza interna e externa, e à coletividade.

Desde que o trabalho espiritual separou-se do corporal sob o signo da dominação do espírito, da justificação do privilégio, o espírito separado teve que reivindicar, com o exagero da má consciência, aquele direito de dominação, que ele concluiu a partir da tese de que ele seria o primeiro e o originário, e, por isso, teve também que se esforçar por esquecer de onde seu direito provém, caso não devesse desmoronar. O espírito percebe intimamente que sua dominação estável não é a do espírito, mas, sim, tem sua ultima ratio na violência física, da qual aquela dispõe. Seu segredo não deve, ao preço de sua ruína, ser falado. A abstração — que, segundo o testemunho dos idealistas extremos como Fichte, é o que torna o sujeito um constituinte — reflete a separação do trabalho corporal, visível através da comparação com este. (ND 179)

Mas, por outro lado, é preciso considerar o outro lado da moeda, que se exprime na última idéia contida nas afirmações de Baum que citamos, que é a de que o sofrimento de Ulisses deve ser considerado algo positivo porque é pressuposição, ou seja, necessário, para a maioridade.

A reificação é, de fato, algo indispensável para a constituição do sujeito, pois sem algum esquecimento, sem um processo de domínio de si como natureza, não haveria como formar-se a identidade do sujeito. Toda identidade supõe que as diferenças sejam minimamente aplainadas. Para que haja uma identidade individual, é preciso que o sujeito se perceba o mesmo, apesar das diferenças. Não é pensável uma identidade subjetiva fundada em uma constante relação de alteridade fluida com o que é externo. O sujeito tem que aprender a esquecer, a ignorar, a desconsiderar vários elementos de sua existência em função de sua identidade:

Quem toma o que tem a qualidade de coisa como o radicalmente ruim; que gostaria de dinamizar tudo em uma pura atualidade, tende à hostilidade contra o outro, o alheio, cujo nome, não acidentalmente, ressoa em “alienação” (…) Dinâmica absoluta seria (…) aquela absoluta atividade, que se satisfaz violentamente em si mesma e que abusa do não-idêntico meramente como sua ocasião. (ND 191)

Em outras palavras, a reificação, a funcionalização do mundo, a identidade, não podem ser negadas abstratamente. Faz parte da verdade, a consciência do que há de falso no processo de constituição do sujeito, da sociedade e do mundo, mesmo que tal falsidade seja algo necessário: “A negação que o sujeito exerceu foi legítima; mesmo a exercida nele o é, e, entretanto, é ideologia” (ND 161-2); “a liberdade somente pode tornar-se real através da coerção civilizatória, não como retour à la nature” (ND 148). Mas a mentira do esclarecimento é dupla: toma o que há de falso na dominação como verdade e coloca sistematicamente impedimentos de toda ordem à reflexão sobre ela. O enclausuramento da razão é fruto do medo gerado pelo perigo que a alteridade representa para o télos de sua própria inteireza:

O círculo da identificação, que, finalmente, sempre identifica apenas a si mesmo, foi traçado pelo pensamento, que não tolera nada fora de si; sua prisão é sua própria obra. Tal racionalidade totalitária e, portanto, particular, foi ditada pelo medo do que há de ameaçador da natureza. Este é o seu limite. O pensamento identificatório, a igualação de todo desigual, perpetua-se no medo da queda na natureza. (ND 174)

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Esse delineamento do ego absoluto em contraste com a natureza que lhe ameaça com sua sedução da particularidade desviante talvez não seja tão bem expresso, em toda a história da filosofia, quanto na fundação do agir moral em Kant. b) Moral como negação abstrata da natureza: a ética kantiana

Tal como dissemos que a positividade da ciência é o Leitmotiv do esclarecimento, podemos dizer que a moral burguesa forneceria a explicitação do Leitmotiv prático (ético) do esclarecimento, porque ela é fundada naquilo que descrevemos nesse último item sobre Ulisses: a formação do eu a partir da negação abstrata da natureza. Como expressão filosófica desse quadro, a moral kantiana é insuperável. Vejamos por quê.

Na ética de Kant, não há um objeto determinado que possa fundar o caráter moral da vontade, pois este está vinculado única e exclusivamente ao poder que a razão tem de nos constranger a agir independentemente de — ou melhor, contra — todo e qualquer interesse sensível. Se agimos moralmente, o fazemos porque a razão cria um interesse em nós, que é o de agir por respeito à lei moral. Esta nos diz que nossa ação deve ser conforme um princípio geral, que, ainda apenas no âmbito particular, Kant chama de máxima, de tal modo que este princípio subjetivo se torne também objetivo, ou seja, possa ser válido para todo e qualquer ser racional, mesmo para aqueles que não tivessem corpo, ou seja, não somente para seres humanos, mas, também, para espíritos. Esse mandamento de objetivar a máxima subjetiva é o imperativo categórico, que é um mandamento incondicional, ou seja, obriga seu cumprimento independente de toda e qualquer condição, ou seja, independente de todo e qualquer interesse particular126. O fundamento único e exclusivo da moralidade da ação é, portanto, a bondade da vontade, que, por sua vez, se fundamenta na autarquia absoluta da razão de determinar o sujeito a agir sem nenhum interesse sensível.

Novamente deveríamos ter corrigido essa última frase para “contra todo interesse sensível”. Por quê? Kant diz que podemos agir conforme ao dever [gemäß dem Pflicht] ou por dever [aus dem Pflicht]. Alguém pode agir honestamente, por exemplo, para não prejudicar sua posição em uma empresa, ou simplesmente pela consciência de que se deve fazê-lo, sem outra motivação. No primeiro caso, temos uma mera adequação externa da ação ao dever, enquanto no outro, o móbil do agir é interno, a saber, a consciência de dever. Por mais que no primeiro caso a ação possa resultar em algo bom, ela, segundo Kant, não tem valor moral. Isso nós podemos concordar perfeitamente com o autor. O que chama à atenção, entretanto, é sua insatisfação evidente com os atos moralmente neutros, os quais lhe parecem não ter nenhuma relevância filosófica. Segundo o filósofo, que nós ajamos o tempo todo conforme o dever não nos dá a devida clareza da força da lei moral para nos determinar a agir, ou seja, nós não temos, na maioria de nossas ações cotidianas, a oportunidade de ver a efetividade de tal força, uma vez que nossos prazeres sensíveis não parecem nos desviar da moralidade. Somente em uma situação em que seguir a lei seja acompanhado pela humilhação de nossos interesses sensíveis, é que nossa condição de seres morais ganha visibilidade, ou seja, quando há contrariedade das nossas inclinações para com o respeito pela lei moral: “como submissão à lei, ou seja, como um

126 Todo interesse como fundamento da vontade é particular; somente o interesse que a razão desperta em nós é dito puro, mas ele não é o fundamento da vontade.

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mandamento — que anuncia um constrangimento para o sujeito afetado sensivelmente — ele não contém em si nenhum prazer, mas, ao contrário, até mesmo dor na ação”127.

Nesse quadro, todos os prazeres sensíveis são relegados a algo estritamente individual, não contendo nenhuma dimensão de coletividade strictu sensu, pois Kant não concede nenhum valor moral, por exemplo, para uma ação fundada no prazer de ser honesto. Que alguém faça algo tendo em vista tal sensação, isso não contém, segundo ele, um princípio objetivável, válido universalmente, pois tal sensação de prazer, sendo material, poderia ser válido apenas individualmente. Ora, o prazer de se ver agindo honestamente não pode ser algo identificado, em termos de valor moral, ao prazer de roubar alguém. Que se aja movido pelo prazer da honestidade pode significar que nunca se faça, com base nesse mesmo móbil, algo como furtar, roubar, etc., pois o prazer sensível não é algo que deva ser tratado como estritamente material, como algo totalmente disforme, como matéria bruta. O ser humano não pode experimentar a pura materialidade sem a enformação conceitual. A idéia de um prazer sensível desprovido de toda e qualquer dimensão conceitual é uma abstração que, se já no âmbito gnosiológico falsifica o problema do conhecimento, no âmbito prático, ao elucidar o móbil para ação, contradiz-se flagrantemente, uma vez que esta somente acontece com base em toda a complexidade da relação do homem com o mundo, supondo-se aí o entrelaçamento de vários momentos que constituem a ponte entre a consciência e a realidade. O ímpeto para a ação já é algo socialmente formado:

‘Carência’ é uma categoria social. Natureza, a ‘pulsão’, está contida nela, mas os momentos social e natural da carência não podem ser separados um do outro como secundário e primário, a fim de produzir-se uma ordem hierárquica de satisfações. (…) Cada impulso é tão mediado socialmente, que sua qualidade natural nunca aparece imediatamente, mas, sim, sempre apenas produzida pela sociedade. 128

O famoso rigorismo kantiano seria uma expressão clara de como a natureza é absolutamente desqualificada. E não somente ela, pois até mesmo o outro como ser humano. Mas, nesse ponto, Adorno aponta uma incongruência interna no pensamento de Kant, pois se o imperativo categórico fosse apenas formal, não seria possível que ele significasse tratar os seres humanos como fins em si mesmos, pois isso supõe que haja uma distinção qualitativa entre aquilo que é objeto da ação, e, segundo Kant, a vontade só é boa em termos absolutos se ela não é determinada por seu objeto, mas, sim, apenas por sua lei universal (cf. ND 215). Em Kant, então, para garantir a moralidade da ação, ou seja, a sua plena autonomia, a razão tem que desqualificar a natureza. Mas não apenas isso: a garantia da consciência da moralidade se dá, em Kant, a partir da resistência que o sujeito apresenta aos móbeis sensíveis. Os atos moralmente neutros não são suficientes para a clareza da consciência moral. Esta somente surge através da negação dos impulsos desviantes da universalidade, ou seja, não bastaria agir segundo uma máxima universal: é preciso, para haver esse orgulho da razão como produtora autóctone do sentido da ação, passar ileso por todo o calvário do desvio produzido pelos sentidos. Aqui se pode ver aquele sentido narcisista do esclarecimento que apontamos ao final do item anterior: “a liberdade, no conceito universal abstrato de um além da natureza, é espiritualizada como liberdade do reino da causalidade, mas, deste modo, também como auto-ilusão. Em

127 Immanuel Kant. Critique of Practical Reason. Tradução de Thomas Kingsmill Abbott. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1952, p.327. 128 Theodor W. Adorno. “Tesen über Bedürfnisse”. In: Werke, vol. Soziologische Scriften II. Gesammelte Werke, vol. 8. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1972, p. 392.

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termos psicológicos, o interesse do sujeito pela tese de que ele é livre é narcisista, tão desmesurado, quanto tudo o que é narcisista” (DN 219).

No caminho do auto-conhecimento e da auto-afirmação da razão, Ulisses acorrentado ao mastro para manter o próprio eu, o filho do Deus morrendo sangrando na cruz para redimir os pecados dos homens e a consciência puramente moral que nega o valor coletivo dos sentidos contêm diferenças apenas periféricas.

Essa hipóstase lúdico-narcisista da cultura tem como sua contraparte funesta sua regressão àquilo do qual ela queria desde sempre sair: o contexto natural. Se o domínio racional não reflete sobre si mesmo, então ele acaba redundando exatamente no contrário dele: “A ratio transforma-se em irracionalidade tão logo ela, em sua démarche necessária, ignora que o desaparecimento de seu substrato — por mais tênue que este seja — é seu próprio produto, obra de sua abstração. (…) Regressão da consciência é produto de sua falta de auto-reflexão” (ND 152 – grifos nossos). 6. Regressão mimética

A tese de que o esclarecimento recai no mito, que já parece por demais ampla aos comentadores, tal como uma generalização provocativa, recebe agora uma ampliação extrema, ao dizermos que a cultura recai na natureza, quanto mais tenta desvencilhar-se de tudo o que percebe de natureza em si, ou seja, quando a nega abstratamente. “Toda tentativa de romper as imposições da natureza rompendo a natureza, resulta numa submissão ainda mais profunda às imposições da natureza” (DA 19/27). O testemunho histórico desse retorno da natureza como algo coercitivo é precisamente o que os autores viviam; a ameaça, absolutamente desconectada com o poder individual dos homens, presente no poderio extraordinário das potências bélicas de destruir o mundo, reflete o poder universal e incompreensível com que os homens percebiam a natureza nos tempos mágico e mítico. A opressão sem limites, universal, intocável, que atrela a existência ao desejo de reproduzir o “cadinho” do próprio cotidiano — continuar remando, remando… —, enforma a condução da vida como subsumida a tal universalidade, desconectada da particularidade da experiência concreta.

Essa desconexão é o que funda a própria experiência da racionalidade ocidental, na medida em que o próprio pensamento, endurecido pela premência de domínio sobre o que lhe é diferente, espelha a coerção natural à repetição:

O pensamento, cujos mecanismos de compulsão refletem e prolongam a natureza, também se reflete a si mesmo, em virtude justamente de sua conseqüência inelutável, como a própria natureza esquecida de si mesma, como mecanismo de compulsão. (…) O esclarecimento é mais que esclarecimento: natureza que se torna perceptível em sua alienação. (DA 45-6/49-50)

Note-se que, para dizer que o esclarecimento reflete a natureza, é preciso considerar que tais reflexo, prolongamento e retorno dela são realizados a partir de um esquecimento, alienação, frente à própria natureza. Ela retorna, não in totum, mas de modo determinado, como mecanismo de coerção, uma vez que ela teve seu direito negado in totum (tomada como substrato da dominação), não de modo determinado. O retorno da natureza dá-se em sua mutilação, que se exprime na dominação irracional a que estão sujeitos os membros da civilização completamente racionalizada, que, na época de Adorno e Horkheimer, viviam “sob o signo de uma calamidade triunfal” (DA 9/19).

A natureza mutilada sob os escombros da razão positivista não é total- e absolutamente negada. Isso não seria possível, simplesmente porque senão o espírito não subsistiria. Aquela idéia de Klaus Baum de que a negação da natureza, para ser abstrata, teria que ser total em sentido estrito, não faz justiça à idéia de Adorno de que o que há de perverso na racionalidade ocidental é a preservação da natureza, da particularidade, do

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indivíduo, etc., na medida em que estes são tomados por ela como males necessários para a subsistência do sistema:

A desgraça não ocorre como uma eliminação radical do que existiu, mas na medida em que o que está historicamente condenado é arrastado como algo de morto, neutralizado, impotente, e se vê afundando de maneira ignominiosa. Em meio às unidades humanas padronizadas e administradas, o indivíduo vai perdurando. Ele até mesmo ficou sob proteção e adquiriu um valor de monopólio. Mas, na verdade, ele é ainda apenas a função de sua própria unicidade, uma peça de exposição como os fetos abortados que outrora provocavam o espanto e o riso nas crianças. (MM §87, p.118)

No âmbito individual, o retorno da natureza alienada de si mesma pode ser visto na neurose, que é uma espécie de vingança da natureza pelo esquecimento a que está sujeita. “Todo conteúdo de verdade das neuroses é o de que elas demonstram ao eu em si o que é estranho ao eu, o sentimento do ‘eu não sou isso de forma alguma’, sua não-liberdade; tal conteúdo de verdade existe aí, onde sua dominação sobre a natureza interna fracassa” (ND 221). A neurose seria um momento em que a natureza recusar-se-ia a ser tomada como mero material cognitivo e de dominação, contendo um ímpeto alheio à pretensa liberdade do sujeito, ou seja, um momento em que ela se exprime como dor, ao não poder ser percebida como subsumida na abstração tranqüilizadora do espírito. Podemos ver, com Martin Jay, esse retorno da natureza como um retorno violento da mímesis, expulsa do pensamento através do caráter abstrato do conceito: “quando o reprimido retorna (…), o faz freqüentemente na forma distorcida de um mimetismo sádico que mostra sua subordinação aos fins da racionalidade dominante, instrumental”129. É como se a imitação, o tornar-se semelhante ao outro para assimilá-lo em sua diferença, retornasse como imitação imposta, em que o si-mesmo é assimilado violentamente pelo que é radicalmente diferente — a natureza —: pelo fato de a identidade ter sido constituída sem espaço para a diferença, esta reivindica sua presença sem margem para a própria identidade!

A neurose pode ser vista como uma mutilação do conhecimento, que, fechando o sujeito em um ciclo infinitamente repetido, o impede de experimentar o novo. Nas palavras de Fredric Jameson,

A neurose é simplesmente esse aborrecido aprisionamento do eu em si mesmo, prejudicado pelo seu terror em relação ao novo e ao inesperado, carregando consigo a sua mesmidade onde quer que vá, de modo que tem a proteção do sentimento, e qualquer que seja a coisa para a qual ele estenda a mão, jamais en contra nada que já não conheça.130

É precisamente a impossibilidade de experimentar o novo que dá a esse retorno mutilado da natureza a qualidade de uma forma des-historicizada de percepção da realidade. De forma semelhante ao respeito mítico da ciência pelo factual, pelo imediatamente dado, a diferença radical da natureza se impõe, na neurose, como a igualdade pura e simples de sujeito e de objeto, na medida em que todas as mediações entre eles foram suprimidas, impedindo aquele de perceber o novo como tal, sem que esteja de antemão subsumido a uma compulsão de natureza ou de repetir, como no caso da ciência, aquilo que a razão desde sempre já colocou no objeto como substrato da dominação.

129 Martin Jay. “Mimesis and Mimetology: Adorno and Lacoue-Labarthe”. In: HUHN, Tom & ZUIDERVAART, Lambert. Semblance of Subjectivity. Essays in Adorno’s Aesthetic Theory . Londres: MIT Press, 1997, p.35. 130 Fredric Jameson. O marxismo tardio. Adorno, ou a persistência da dialética. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Unesp, Boitempo Editorial, 1996, p.32 – tradução modificada.

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Mas a questão que se coloca agora é: não seria possível que se pensasse uma negação da natureza que não fosse abstrata? Se a razão, tal como se configurou no processo de esclarecimento, não fez justiça à natureza como o outro do espírito, o que o faria? Seria possível uma forma de concepção da realidade que ultrapassasse essa racionalidade que anula o direito da natureza como imagem? — São essas questões que norteiam o nosso próximo capítulo.

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Capítulo III

Além da imagem e da razão

Se no capítulo I procuramos esboçar uma concepção de mímesis a partir da noção de imagem, no que lhe sucedeu procuramos mostrar como a racionalidade foi, aos poucos, suprimindo essa forma de apreender o mundo. Se o comportamento mimético apontava para uma relação de identidade e de diferença entre sujeito e objeto no medium da duplicação imagética, o caráter abstrato do conceito instituído racionalmente procurou enfatizar a ruptura crescente entre eles. Mas, como vimos, a radical diferenciação entre esses dois pólos acabou, no extremo do positivismo lógico, redundando na igualação entre ambos, às custas da diferenciação qualitativa de cada um dos dois. O que pretendemos, agora, é perceber como o pensamento pode ultrapassar essa dicotomia estrita entre a imagem mítica, que atrela o mundo a uma eterna repetição de si mesma, e a abstração niveladora do conceito.

Para isso, precisamos ver, inicialmente, como Adorno e Horkheimer concebem o que seria uma negação determinada da natureza, que conservaria seu direito. Depois, veremos o que, no pensamento racional, qualifica sua opacidade em relação àquilo que permanece como o outro de si nele mesmo. As duas últimas partes desse capítulo investigam em que consistiria, finalmente, o movimento da razão rumo a essa possibilidade de ultrapassar seu solipsismo, sua afirmação abstrata em contraposição a um objeto desprovido de qualidades 1. Conceito versus imagem

a) A necessidade da mediação imagética

Talvez o leitor tenha anotado na margem de alguma página de nosso texto algo semelhante à seguinte crítica: “os conceitos de natureza e de imagem são flutuantes; várias vezes um aparece no lugar do outro, sem definição clara da diferença entre eles”. — Desculpe, mas foi de propósito.131

Essa prática da indefinição, da interpenetração, desses conceitos quer tornar intuível um argumento conceitual: a natureza é sempre representada para o ser humano — enquanto algo distinto do espírito — como imagem. O sentido da natureza como algo desviante somente pode ser alcançado através de alguma consciência dela enquanto fenômeno assimilável, compreensível. A mera sensação disforme, bruta, sem uma totalidade formal, não faria o âmbito da intuitividade em geral ser algo que tivesse significado como contraparte ao espírito — considerado como unidade daquilo que dá a fonte de inteligibilidade da própria identidade. Se a natureza é vista, em sua multiplicidade, como desviante, é porque ela, de alguma forma, pôde ser unificada por uma consciência que foi capaz de dar alguma identidade, mesmo que precária, para ela. Ora, essa consciência pressupõe que não lidemos com a mera sensação como uma porção caótica de dados materiais dispersos. Desse modo, entre a unidade conceitualmente fundada, fonte de formação do âmbito da identidade pessoal, e a matéria caótica sem qualidade, tem-se a própria imagem, que, ainda não absorvida pela identificação abstrata do conceito,

131 Há outra flutuação que é entre imagem tout court e imagem mítica. Como o processo de esclarecimento é um processo de desmitologização , a imagem da natureza negada por excelência — em termos macro-sociais e epistemologicamente considerada como o contrário do sentido da própria racionalidade — é a mítica.

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pôde ser associada ao que há de múltiplo, de desviante, na natureza. Note-se: até mesmo para considerar a natureza como desvio, é preciso, de alguma forma, unificá-la minimamente, para que se tenha, a partir da rota preestabelecida, ter a consciência de que é lá onde reside o desvio. É precisamente essa consciência do “lá” que faz com que seja preciso filtrar a experiência das sensações como algo razoavelmente uniformizado, de modo a se formar uma contraposição entre a consciência da inteireza do ego conceitualmente estabelecido e a materialidade das sensações. O caráter referencial da relação com a natureza como perdição necessita dessa enformação minimamente unitária dela. Desse modo, a negação prática abstrata que Ulisses exerce sobre sua natureza, na verdade, em termos gnosiológicos, deveria ser pensada como uma negação abstrata da imagem que ele tem dela. A negação abstrata da natureza significa eo ipso negação abstrata da imagem da natureza.

Esse caráter mediador da imagem, entretanto, como vimos no primeiro capítulo, pode ser reforçado ou diluído. Os sentidos do olfato, do paladar e do tato (nessa ordem) são os que menos possibilitam a experiência da espessura mediativa da imagem em relação ao objeto, ao passo que a audição e a visão favorecem mais essa experiência. Nesses dois últimos é que podemos perceber mais claramente a dialética entre sujeito e objeto como mediados pela imagem, pois tais sentidos já podem configurar uma unidade suficientemente definida do objeto, ao mesmo tempo em que ainda mantêm-nos ligados a ele. Dado o aspecto racionalizado da arte, como uma apropriação finalística do teor de imagem, é fácil explicar porque as artes operam mais propriamente — em termos de tradição — com esses dois sentidos. Visão, como diz Adorno, é algo ligado à tridimensionalidade espacial externa, ao passo que a audição, como ligada ao sentido interno do tempo (Kant), está marcada pelo aspecto introspectivo132. Apesar dessa diferença, ambos são os que possibilitam a maior identificação da unidade da imagem, configurando, assim, de modo mais claro, seu caráter de mediação.

Seja qual for a densidade mediativa que a imagem assuma, o certo é que ela é aquilo que nos possibilita o trânsito gnosiológico com a natureza, mantendo todo o caráter de copertencimento de sujeito e de objeto, de mediação do sujeito pela configuração imagética, de “dívida” do sujeito para com a imagem, etc., que vimos no capítulo I. A conclusão de todo o segundo capítulo poderia ser a de que o esclarecimento — fundado no distanciamento conceitual em relação à imagem da natureza — é uma negação abstrata desta : “a intenção esclarecedora do pensamento, a desmitologização, anula [vernichtet] o caráter de imagem da consciência” (ND 205). A questão que se coloca é: o que seria uma negação determinada da imagem? Segundo Adorno e Horkheimer, a religião judaica ocuparia esse lugar.

b) Judaísmo: negação determinada?

A idéia de Adorno e de Horkheimer é que o judaísmo não é uma negação abstrata do mito, da magia, ou seja, do poder das imagens na configuração de um estado de bem-aventurança, de redenção. A idéia judaica de que “não farás imagem alguma do teu Deus”, que o próprio Kant qualificou como a mais sublime, uma vez que nega a positividade da transcendência133, seria uma negação determinada, na medida em que “o

132 Theodor W. Adorno. Philosophie der Neuen Musik, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1974, p.171ss. 133 “Talvez não haja passagem mais sublime no livro de leis dos judeus do que o mandamento: tu não deves fazer nenhuma imagem [Bildnis], nem alguma metáfora [Gleichnis], nem do que há no céu, nem na terra, nem sob a terra, etc.” (KdU B 124).

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direito da imagem é salvo na execução fiel de sua proibição” (DA 30/36 – grifos nossos). “Na religião judaica, onde a idéia do patriarcado culmina na destruição do mito, o liame entre o nome e o ser permanece reconhecido através da proibição de pronunciar o nome de Deus” (DA 30/36). O poder da imagem residente no nome, em sua capacidade de presentificar o ser, de vincular o aqui e o agora à transcendência, não seria negado de forma absoluta, total, não seria aniquilada a partir do imperialismo do conceito, pois o que se negaria com essa proibição seria tão-somente o vínculo desse poder com a efetividade de sua realização. O que o judaísmo faria, então, seria negar toda falsa projeção de um mundo redimido:

A religião judaica não tolera nenhuma palavra que proporcione consolo ao desespero de qualquer mortal. Ela associa a esperança unicamente à proibição de invocar o falso como Deus, o finito como o infinito, a mentira como verdade. O penhor da salvação co nsiste na recusa de toda fé que se substitua a ela, o conhecimento na denúncia da ilusão. (DA 30/36)

O direito da imagem que permanece seria o de invocação, ou de posicionamento (mesmo que indeterminado) do locus da transcendência. Nega-se a positividade do conteúdo desse “espaço” de redenção, mas mantém-se o vínculo com ele, a esperança de ser redimido, salvo, etc., permanece. Esses três motivos (redenção, negação da positividade da transcendência e esperança), são marcas inconfundíveis da própria idéia de pensamento filosófico de Adorno: “a filosofia, segundo a única maneira pela qual ela ainda pode ser assumida responsavelmente em face do desespero, seria a tentativa de considerar todas as coisas tais como elas se apresentariam a partir de si mesmas do ponto de vista da redenção” (MM §153, p.215); “nada positivo é alcançável pela filosofia, que fosse idêntico à sua construção. (…) A idéia de reconciliação proíbe sua colocação positiva no conceito” (ND 148-9); “no fim das contas, esperança — na medida em que se arranca da realidade ao negá-la — é a única forma na qual a verdade se manifesta. Sem esperança seria quase impossível pensar a idéia da verdade, e a inverdade capital é fazer passar por verdade a existência reconhecida como má, simplesmente porque ela foi reconhecida” (MM §61, p.85). O que Adorno pretende efetivamente combater de modo enfático é que o pensamento se resigne a ser apenas uma cópia fiel de um estado de coisas em que impera a injustiça contra o particular. Por isso, a idéia de um mundo que esteja para além dessa falsidade é a única forma de concepção de algo que mereça a qualificação de verdade.134 Consideramos que tais conceitos, no âmbito teórico-filosófico da obra adorniana tenham sua legitimidade assegurada. Entretanto, o que dizer em termos de sua significação concreta no judaísmo enquanto religião?

Todos os comentadores, até hoje, sempre fizeram referência à visão do judaísmo por parte de Adorno e de Horkheimer, mas apenas tentando interpretá-la de uma maneira ou outra — não havendo discrepância entre os comentários, dada a clareza da idéia em jogo —; o que nenhum daqueles a que tivemos acesso fez foi questionar a legitimidade, a pertinência, dela135. Será mesmo que a negação judaica do nome de Deus é uma negação determinada do poder da imagem mítica?

Para responder a essa questão seria necessário distinguir dois elementos: a adequação conceitual da negação judaica do nome de Deus à idéia de negação determinada — desenvolvida por Adorno na Dialética negativa — e, por outro lado, o sentido que tal 134 Sobre os conceitos de reconcicilação, de idéia e de justiça ao particular em Adorno, veja-se os itens 4 e 5 à frente, nesse capítulo. 135 Dado que consultamos vários livros bastante atuais, publicados em 1998, 99 e 2000, podemos, com pouco risco, dizer que ninguém colocou em cheque — nem de modo imanente, nem externo à obra dos autores — a legitimidade dessa idéia.

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negação tem em termos práticos, ou seja, o que a negação do nome de Deus significa em termos de configuração do modus vivendi judaico, ou, ainda, qual sua dimensão concreta em termos de seu posicionamento histórico-social do povo de Israel. O que os autores teriam feito, segundo pensamos, é confundir o que eles vêem como pertinência conceitual de tal negação determinada com um elemento prático que está de acordo com tal dimensão conceitual, concluindo, já por isso, pela qualidade da proibição do nome de Deus como negação determinada.

Se, como dizem os autores, “a dialética revela (…) toda imagem como uma forma de escrita”, ou seja, como algo que se deve decifrar, como um enigma, o que a negação do nome de Deus tem enquanto tal? Adorno diz que a reflexão filosófica sobre o objeto do pensamento consiste na “consciência da constelação na qual ele está: a possibilidade para a penetração no interno carece desse externo. Tal universalidade imanente do singular, entretanto, é objetiva como história sedimentada. (…) Conhecimento do objeto em sua constelação é o de seu processo, que ele armazena em si” (ND 166); se assim é, então que história se sedimenta na imagem da proibição das imagens? O que afirmamos é que a própria proibição das imagens é uma imagem coletiva que sedimenta uma dinâmica social, que, cristalizando-se enquanto símbolo, necessita de decifração desse seu conteúdo inerente, mas sublimado no meio imagético.

Quando Adorno e Horkheimer dizem que “o direito da imagem é salvo”, a pergunta é: que direito? – ele deve mesmo ser salvo? – qual é a dimensão histórico-social de sua manutenção?

A nossa tese é que a negação judaica do nome de Deus não é algo que apenas faz com que a esperança seja legitimada — essa legitimação é o que Adorno procura trazer para o conceito filosófico —, mas, sim, dá um conteúdo prático, vivencial, ou seja, dá uma positividade prática, a ela, a saber: que essa esperança está vinculada coletivamente ao situs da transcendência. Os autores teriam percebido a adequação da proibição do nome de Deus em termos conceituais com sua idéia de negação determinada pelo fato de, em termos cognitivos, essa proibição esvaziar a transcendência de sua positividade, mantendo o poder da imagem de referir-se a ela, mas tal poder não é algo que deve ser pensado apenas como fazendo com que a esperança de um mundo efetivamente humano tenha o direito à existência garantida. O sentido prático dessa proibição mostra que ela não é uma negação determinada, mas, sim, abstrata. Trata-se de uma outra forma de perpetuar o poder de constrição da imagem à sua duplicação infinita, só que, mascarado pela negação explícita de sua positividade cognitiva. O que o judaísmo fez foi negar o conhecimento positivo de Deus, mas conservou algo que não deveria ter sido conservado: a positividade prática do vínculo da esperança de um mundo melhor à esfera da transcendência. Essa permanência mostra que a coerção mítica continuou no pensamento judaico.

Podemos elucidar claramente esse vínculo das dimensões cognitiva e prática na negação da imagem de Deus através da contextualização histórico-social em que ela foi criada. O povo judeu é um povo sem solo pátrio: fugindo da perseguição do povo egípcio, ansiava pela terra prometida, Canaã:

Disse o Senhor a Abrão, depois que Ló se separou dele: Ergue os olhos e olha desde onde estás para o norte, para o sul, para o oriente e para o ocidente; porque toda essa terra que vês, eu ta darei, a ti e à tua descendência, para sempre. Farei a tua descendência como o pó da terra; de maneira que se alguém puder contar o pó da terra, então se contará também a tua descendência.136

136 Bíblia, Gênesis, cap. 13, versículos 14-16.

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A nossa tese é a de que o fato de os hebreus não terem a terra fixa, o solo pátrio, como experiência concreta, mas tão-somente como promessa, exprimiu-se simbolicamente na negação do nome de Deus. O que poderia dar legitimidade atual à positividade da imagem seria a propriedade coletiva fixa da pátria, pois toda imagem da transcendência possui conteúdo coletivo. Dada a ausência desse solo, que estabeleceria um lastro simbólico presente para o preenchimento gnosiológico da transcendência estampada na imagem, o patriarcado emergente percebeu que a esperança de redenção não poderia ter um conteúdo cognitivo, mas, evidentemente, teria que possuir um em termos práticos, caso contrário a identidade da coletividade se esfacelaria — o que, de tudo, é o que menos poderia ocorrer.

Analisemos duas passagens da Bíblia, das várias que poderiam ser interpretadas como simbolizando o vínculo coletivo prático com Deus, ao mesmo tempo em que negam a imagem deste. Na primeira, trata-se da prova que Deus colocou a Abraão, em que lhe falou: “toma teu filho, teu único filho, Isaque, a quem amas, e vai-te à terra de Moriá; oferece-o ali em holocausto, sobre um dos montes, que eu te mostrarei”137. Mas no momento em que Abraão iria imolar o filho, Deus o impediu de fazê-lo, pois o que ele queria era uma prova de fé. Uma vez satisfeito, o Senhor disse:

Jurei por mim mesmo (…), porquanto fizeste isso, e não me negaste o teu único filho, que deveras te abençoarei e certamente multiplicarei a tua descendência como as estrelas dos céus e como a areia na praia do mar; a tua descendência possuirá a cidade dos seus inimigos, nela serão benditas todas as nações da terra: porquanto obedeceste à minha voz.138

A nossa idéia é que o fato de Abraão não matar Isaque indica que, na imagem judaica de Deus, não há propriamente a consumação do poder divino enquanto positividade de sua presença na dinâmica motivacional da existência, mas, por outro lado, toda a carga vivencial estampada na imagem de um pai que se encaminha, desloca-se para uma outra cidade para matar o único filho para mostrar, externar, a força de sua crença é suficientemente enfática para se concluir que, apesar da negação daquela positividade primeira, o seu conteúdo prático é inelidível.

Mas a negação do aspecto propriamente gnosiológico em função da premência do prático está mais claramente configurada na expulsão de Adão e de Eva do paraíso. Deus disse que ambos não deveriam comer o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, pois, se o fizessem, morreriam. Mas disse a serpente a Eva: “é certo que não morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal”139. Ora, como punição, seguiram-se, dentre várias desgraças que pairam sobre os seres humanos, as dores do parto para Eva e a fadiga do trabalho para Adão. Ou seja, sem a positividade do conhecimento, tem-se a positividade da prática da vida; com a primeira, tem-se a negatividade da corporeidade vital.

Se a “negação determinada não está imunizada pela soberania do conceito abstrato contra a intuição sedutora” (DA 30/36), o povo judeu, na negação do nome de Deus, pretende, através da imagem dessa negação, formar uma aliança com ele e entre seus membros através da vivência da negação da sensibilidade como motor para o fluxo da vida coletiva, o qual deveria desaguar na terra prometida. Esse vínculo interno e para com Deus através da negação corpórea está nitidamente configurado na passagem bíblica da 137 Bíblia, Gênesis, cap. 22, versículo 2. 138 Bíblia, Gênesis, cap. 22, versículos 16-7. 139 Bíblia, Gênesis, cap. 3, versículos 4-5.

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instituição da circuncisão: “circuncidareis a carne do vosso prepúcio; será isso por sinal de aliança entre mim e vós” 140. Ora, aqui estampa-se de modo absolutamente enfático a força da presença da coletividade enquanto marca física, gerada pela intervenção corporal agressiva em relação ao ser humano ao nascer (aos oito dias de vida), em que ele nem mesmo pode decidir se quer ser circuncidado ou não. A exposição da glande mostra a ênfase social na premência de entrelaçamento dos membros da comunidade israelita, que não possuía a perenidade do sentido da palavra garantida pela propriedade territorial fixa.

Em suma: a negação da imagem positiva de Deus é, ela própria, uma imagem, uma configuração simbólica, que estabelece um curto-circuito entre a idéia, o conceito, de Deus e a materialidade da existência, na medida em que, experimentando a instabilidade do sentido simbólico da palavra devido à ausência do solo nacional, o patriarcado judeu precisou estampar, na positividade do conhecimento, a perdição que ele via existir nos povos inimigos, de tal modo a legitimar, em termos práticos, no sofrimento físico, a busca pela terra prometida.

Mas poderíamos fazer mais uma questão: por que foi o povo judeu que instituiu essa vinculação entre a negação da positividade do conhecimento e a premência da prática? Porque, na religião judaica, já se estampava aquilo que virá a ser o Leitmotiv da religião racionalizada ocidental, o cristianismo, que dela nasceu: a fé. Esta é caracterizada precisamente por conter um elemento prático, de motivação de vida, mas aliado, inelutavelmente, a uma ausência de conhecimento. Faria sentido o leitor dizer que tem fé que essa tese de doutorado existe? Claro que não, uma vez que ela está diante de seus olhos, sem possibilidade de dúvida. Faz sentido dizer que temos fé que ela será publicada por alguma editora? Sim, pois não temos provas cabais disso — talvez nem sequer indícios… Quanto mais provas, demonstrações, indicações, há para um conhecimento, menos espaço para a fé existe. É precisamente isso que Kant diz, quando afirma que quis diminuir o espaço do saber (na Crítica da razão pura) para dar lugar à fé, pois bem sabe ele que esta depende da negação daquele. Dizem Adorno e Horkheimer:

(…) a fé é um conceito privativo: ela se anula como fé se não ressalta continuamente sua oposição ao saber ou sua concordância com ele. (…) Permanecendo inevitavelmente presa ao saber como amiga ou inimiga, a fé perpetua a separação na luta para superá-la: seu fanatismo é a marca de sua inverdade, a confissão objetiva de que quem apenas crê por isso mesmo não mais crê. A má consciência é sua segunda natureza. (DA 26/33)

Um tanto problemática nessa passagem é a possibilidade de a fé ser amiga do saber. Isso está certo se se refere apenas ao conteúdo do ato de fé, ou seja, esta é amiga do saber na medida em que este confirma aquilo de que se tem tal crença. Entretanto, o que está em jogo, aqui, é a fé como suporte da instituição da religião, logo algo que tem função e significados sociais. Devido a essa magnitude coletiva, todos os diretores das instituições religiosas sempre souberam muito bem que a dimensão motivacional da existência religiosa, não somente é vinculada à fé, mas que o conhecimento racionalizado sobre a transcendência, mesmo concordante com a crença, diminui esse elemento motriz da condução da vida.141 Tal elemento consiste, precisamente, em forçar a reconciliação 140 Bíblia, Gênesis, cap. 17, versículo 11. 141 Aqui valeria uma referência à doutrina espírita, que trata diversos fenômenos no mundo como manifestações consideradas por ela evidentes da existência de Deus, como operações mediúnicas, psicografações de falas de espíritos, etc. Ora, é precisamente por causa dessa essa maior quantidade de “provas” da existência de Deus que a fé não é algo tão forte para os espíritas quanto o é para o católico, por exemplo. Devido a esse enfraquecimento motivacional pela diminuição do espaço da fé, podemos ler na sua idéia de reencarnação o locus do pólo atrator para delinear o sentido da vida, que é o de aperfeiçoar-se cada vez mais, sob pena de retornar mais vezes nesse plan eta, etc.

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entre espírito e matéria a partir de um ato, de uma atitude, que é a crença cega no transcendente.

Na secreta consciência da deficiência que lhe é necessariamente inerente, da contradição imanente nela e que consiste em fazer da reconciliação sua vocação, está a razão por que toda a honestidade dos fiéis sempre foi irascível e perigosa. Não foi como exagero mas como realização do próprio princípio da fé que se cometeram os horrores do fogo e da espada, da contra-reforma e da reforma. (DA 26/33)

Desse modo, vê-se que a negação da imagem de Deus no judaísmo e a fé cristã têm o mesmo sentido gnosiológico e prático: negar a imagem positiva da transcendência a fim de situar no âmbito prático, vivencial, moral, etc., a âncora para a continuidade da vida individual e coletiva142. Tal negação, que configura a anulação da positividade cognitivo-imagética desse objeto, está, portanto, longe de ser uma negação determinada do mito. Na verdade, ela efetua a mesma recusa que a Filosofia faz da imagem estética, que pode ser lida de modo enfático na condenação platônica da poesia em sua República.

c) A recusa logocêntrica da mímesis; a imagem estética

O banimento dos poetas da cidade, erigida segundo a razão [και το λóγος] (369c), na República, é um dos temas mais comentados da história da filosofia da arte — arriscaríamos a dizer que é o mais comentado.

Na tradição de comentários, o aspecto mais ressaltado é a questão epistemológica que trata da mímesis como duplamente falsa. Como se sabe, a verdade plena para Platão reside nas Idéias, que não se situam nem nas coisas, nem nos homens. Os objetos sensíveis seriam algo como que imitações delas, tal como as sombras das cavernas, em relação aos modelos que são iluminados pela luz radiante da idéia do Bem, ou seja, da Razão cósmica teleologicamente estruturada. Dado que uma pintura teria que se basear na aparência sensível dos objetos, ela estaria duplamente afastada do âmago do real.

Aqui se vê claramente a reação daquilo que incorpora a expressão de poder que se pretende universal contra a particularização. Somente deve ser situado na fonte de inteligibilidade do real aquilo que possa receber a efígie da universalidade, pois somente essa é indivisível — tal como a alma não parece ser divisível, em contraste com o corpo.143 É precisamente a idéia de unificação que preside toda a construção da república 142 Aqui talvez o leitor faça uma objeção a essas idéias, dizendo que, no judaísmo, o que se nega é que haja um nome para Deus, ou seja, nega-se uma imagem positiva dele, ao passo que, na fé cristã, o que é negado é um conhecimento da existência de Deus; a confusão desses dois elementos teria possibilitado a utilização da passagem da expulsão do paraíso como metáfora para a negação da imagem. Embora o conhecimento não seja uma imagem física, tal como um quadro, entretanto ele delineia, configura, um estado de coisas, que, em sua inserção no conjunto da vida como um todo, assume, evidentemente, uma dimensão imagética enquanto mediação intuitiva e conceitual entre nós e o mundo, ou seja, qualquer conhecimento conceitual é também uma representação simbólica do mundo. Desse modo, conhecer uma determinada realidade, possuir um saber sobre alguma coisa, é formar uma imagem positiva sobre ela. 143 Nesse ponto podemos fazer uma inesperada aproximação entre a condenação da mímesis em Platão e a proibição das imagens dos judeus. Este povo comunga, com a consciência aristocrática expressa no lógos filosófico, a idéia de que o poder somente se dá a partir de algo aquém ou além da materialidade visível das coisas. Quem lê a alegoria da caverna na República pela primeira vez tem a impressão de que aquilo que dará a realidade ao real está sempre postergado: sombra, bonecos, reflexo no lago e o sol. O fulcro de rotação da realidade parece sempre evadir-se ao olhar. É isso que se estampa na proibição judaica das imagens: dada a vivência do solo pátrio como mera promessa, como pro-jeto, é preciso postergar a relação direta com a transcendência em termos epistemológicos, para manter a positividade da relação prática com ela, como vimos. Em ambos os casos, o pensamento passou por uma abstração de ordem prática. Os gregos cindiram a realidade em um plano theo-noumênico e phýsico-aisthético em seus mitos, ao passo que os hebreus viviam a abstração entre a promessa eterna de uma pátria em contraste com o enlace

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platônica. A estrutura rígida das castas dessa cidade, como vimos, representava, na elaboração filosófica, o discurso do poder que pretendia perenizar-se.144 Agora estamos vendo como é que isso foi efetivamente realizado: com a censura em relação à particularidade, expressa claramente na difusão singularizada das representações miméticas. A unidade leva à excelência [αρετ? ]; a fragmentação, à diferença qualitativa e, portanto, ao contrário da eficácia:

A natureza humana, Adimanto, se me afigura dividida em pedacinhos ainda menores, de forma que é impossível a qualquer pessoa imitar bem muitas coisas ou fazer as próprias coisas que a imitação reproduz. (…) Se quisermos, portanto, manter de pé a primeira proposição, a saber: que os nossos guardas, dispensados de qualquer outra ocupação, se dedicariam exclusivamente à liberdade [αυτονοµια] da cidade, sem empreenderem senão o que tendesse para esse fim, será preciso que não façam nada mais nem imitem coisa alguma. (395b-c)

O poder sempre percebeu que sua legitimação somente poderia se firmar se ela se ligasse estreitamente àquilo que fornecesse a âncora de compreensão do real. A força física, da qual o espírito provém, teve sempre que ser acompanhada de um estrato subterrâneo, de ordem gnosiológica, para que ela pudesse cada vez mais ser dispensada, devido à sua sublimação nas formas do pensamento, que, uma vez introjetadas pelos indivíduos, contribuem para reforçar a consciência de legitimidade do poder, ao mesmo tempo em que reforçavam seu exercício, ou seja, a dominação social, política. O problema da mímesis para Platão, nesse sentido, não reside única e exclusivamente na impossibilidade de a representação imagética alcançar o teor de universalidade do pensamento, pois se ela não contivesse, como algo essencial, algo que expressa essa universalidade, em nada seria necessária a veemência da condenação da mímesis. Como diz Jeanne-Marie Gagnebin,

apesar de faltar totalmente ao ser verdadeiro, a mímesis tem uma força de arrebatamento à qual toda a filosofia de Platão procura resistir. Talvez possamos dizer que a mímesis possui essa força não apesar de não participar do ser verdadeiro, mas, mais secretamente, justamente porque ela não participa dele, porque ela aponta para o engodo, para a mentira, para ilusão e a falta. Aprofundar essa hipótese nos levaria longe demais.145

Vejamos, nós, aqui, quão longe podemos chegar. A questão fundamental é: por que a imagem seduz? Por que “o engodo”, “a

mentira” e a “ilusão” constituem fontes de prazer e de perigo? À época de Platão, a força da transcendência da imagem mítica já havia se

despontencializado, sofrendo um processo de sublimação estética: “desde o feliz e malogrado encontro de Ulisses com as sereias, todas as canções ficaram afetadas” (DA 67/65), ou seja, perderam o poder de seduzir através do apelo imediato e letal da força infinita da natureza, mas contêm, ainda, algo dessa força:

Pertence ao sentido da obra de arte, à aparência estética, ser aquilo em que se converteu, na magia do primitivo, o novo e terrível: a manifestação do todo no particular. Na obra de arte, volta sempre a se realizar a duplicação pela qual a coisa se manifestava como algo de espiritual, como exteriorização do mana. (…) Enquanto expressão da totalidade, a arte reclama a dignidade do

vivencial na premência da jornada rumo a Canaã. Tanto a aristocracia grega, quanto o patriarcado judaico perceberam o quão necessário é que os homens introjetem a fonte de legitimação do poder, para que a divisão hierática de dominação mantenha-se estável, e isso é realizado através do distanciamento de tal fonte em relação à consciência sensível dos indivíduos, o que é feito através da abstração do pensamento ligado à transcendência da fundação ontológica do real. 144 Cf. capítulo II, item 2-b. 145 Jeanne-Marie Gagnebin. “Do conceito de mímesis no pensamento de Adorno e Benjamin”. In: op. cit ., p.83.

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absoluto. (DA 25/32 – tradução modificada146)

“A manifestação do todo no particular” — eis o Leitmotiv de toda a fervorosa censura platônica das imagens dos poetas. Não se trata de condenar a imitação tout court. Qualquer leitor de Platão sabe muito bem que, para este, há “várias formas de mímesis: uma filosófica, que representa autenticament e as essências, e as outras, produtoras de simulacros, que devem ser combatidas e rejeitadas” 147. Mas não apenas a imitação no lógos purificado conceitualmente é aceita. A própria imitação nos guardiães da cidade pode ser realizada, desde que tenha como objeto algo digno, elevado:

no caso de imitarem, deverão fazê-lo desde a meninice o que lhes convier para se tornarem corajosos, temperantes, santos, livres e tudo o mais do mesmo gênero, não devendo praticar nem procurar imitar o que não for nobre nem qualquer modalidade de torpeza, para que por meio da imitação não venham a encontrar prazer na realidade. (395c)

O problema de Platão com a imagem estética não é da mesma natureza que com a sensibilidade. Os dados sensíveis, por si só, podem ser equacionados de acordo com uma gradação epistemológica em termos filosóficos, ou seja, estão afastados, tanto das figuras delimitadas das virtudes supremas, quanto daquilo que fundamenta o poder racional delas como totalidade: a idéia do Bem. A imagem estética, por outro lado, não cabe nessa grade axiológica. A imagem contém um movimento de autonomia, que faz com que ela ressoe a mesma dignidade impositiva do lógos, sem abdicar da difusão dos dados sensíveis. A universalidade do conceito parece tornar-se intuível no sentimento de secularização da transcendência mágica operado na imagem estética.

Se a repressão de sua natureza interna de que se vangloria Ulisses é uma negação abstrata dela, no entanto a cisão interna à imagem de que falamos, operada por tal negação, fez com que a dimensão estética pudesse aflorar à consciência humana. A rigor, a beleza é algo que sobreveio aos homens, quando a imagem deixou de ser vivida como propiciando o curto-circuito entre a particularidade da vida e a transcendência sagrada. “O canto das sereias”, que “ainda não se enfraqueceu como arte” (DA 39/44 – tradução própria), não seria propriamente belo, pois ainda conteria o peso da sacralidade imperando na intuição sensível, de tal modo que a indistinção (“olfativa”) mimética do eu e do outro não permitiria um distanciamento de tal modo a perceber que falsidade da imagem como algo que apraz, precisamente por estampar em sua pregnância “reflexiva” o fato de que nós não somos mais natureza. “No artefato [da obra de arte – vf] o estremecimento liberta-se do engodo mítico de seu Em-si, sem que ele seja nivelado ao espírito subjetivo” (ÄT 124-5). O prazer da imagem “enfraquecida” reside precisamente na confissão de sua insuficiência como ponte entre a particularidade infeliz e a plenitude do gozo da indiferenciação com a natureza, ou seja, com a morte. As cinzas geradas pela negação abstrata da natureza operada por Ulisses foram o solo do qual a imagem retirou a matéria de sua qualitas: não apraz pelo contato com a plenitude do ser em-si-mesmo, mas pelo testemunho de que “o que é, é mais do que ele é” (ND 164).

A ideologia cultural conservadora, que vê uma oposição simples entre esclarecimento e a arte, é

146 A primeira oração, que em alemão é: “es liegt im Sinn des Kunstwerks, dem ästhetischen Schein (…)”, Guido de Almeida traduz erroneamente “pertence ao sentido da obra de arte, da aparência estética”, dando a entender que pertença ao sentido da aparência estética o que se segue. A própria aparência estética é o que configura a unidade de sentido da obra de arte. Mas nem seria preciso esse conceito extraído da Teoria estética, pois há um erro simples de concordância na tradução, pois a partícula “dem” é regida pela preposição “in” (correspondente a “ao” da tradução) da primeira parte da frase, e não pelo genitivo “des”. 147 Jeanne-Marie Gagnebin. “Do conceito de mímesis no pensamento de Adorno e Benjamin”. In: op. cit ., p.84.

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falsa também no sentido de que desconhece a dimensão de esclarecimento presente na gênese do belo. O esclarecimento não dissolve apenas todas as qualidades às quais o belo é inerente, mas põe ao mesmo tempo pela primeira vez a qualidade do próprio belo. (…) A magia estava ligada à aparência de onipotência. Essa aparência dissipou-se com o auto-esclarecimento do espírito, mas a magia sobreviveu como poder das coisas reluzentes sobre os homens, que antes tinham arrepios diante delas e cujo olhar permanece fascinado por esse arrepio, mesmo depois de terem devassado sua pretensão de dominação. A co ntemplação é ao mesmo tempo, enquanto resíduo de adoração fetichista, um estádio de sua superação. (MM §144, p.196-7)

A arte é essencialmente uma rememoração do que se esconde por baixo do solo exaurido de qualidades da razão que tudo queima, ao querer iluminar o mundo “como tudo que é o caso”148 em busca da verdade:

Todo esclarecimento é acompanhado do medo de que possa desaparecer aquilo que ele pôs em movimento e que ameaça ser engolido por ele: a verdade. Se ele retorna a si mesmo, ele se afasta daquele ser-objetivo seguro, o qual ele gostaria de alcançar; por isso permanece-lhe o ímpeto de afirmar aquilo que foi condenado em nome da verdade. A arte é tal Mnemosine149. (ÄT 124/97; tradução própria)

A promessa de transcendência interrompida é propriamente aquilo que dá à imagem estética o valor de experiência que ela possui, que faz tremer a ânsia platônica de ancorar o poder em um solo do conhecimento unificado pelo heliotropismo conceitual. Segundo Heidegger, toda a metáfora é devedora da metafísica; segundo Derrida, todas as metáforas da filosofia são heliotrópicas; a partir disso, diríamos nós: todo o deslocamento referencial metafórico está calcado na ancoragem intelectiva pela passagem de um plano obscuro para outro que “ilumina”, tanto o primeiro, quanto os demais, e isso vinculado a uma unidade de compreensão da totalidade. A potência solar do Αγατóν na República é signo da ânsia de graduar a indistinção epistemológica da vivência em relação às diferenças miméticas, através de seu reconhecimento reflexivo e distanciado, fora da caverna, de onde se poderia, mais uma vez, enfraquecer aquilo que ainda lembrava a escuridão infinita e indivisa do interior dela. Na verdade, tal amplitude desmesurada dos espaços sem arestas — isso Platão deve ter pressentido — está apenas sublimada em sua contraparte benfazeja: a luminância ofuscante do Conceito. O fato de que “o nome de Zeus era dado tanto a um deus subterrâneo quanto a um deus da luz” (DA 20/28) indica que o Bem, não apenas se mistura ao Mal, mas, sim, é apenas uma outra expressão para a mesma coisa: a escuridão está para o medo assim como o sol está para o desejo de vencê-lo. A imagem estética não se confunde, nem com as sombras frias da caverna, nem possui a arrogância esturricante do astro: ela está na agradável área de penumbra, que permite ver que a extrema luz é apenas a experiência subjetivamente forjada na consciência de todos de que a escuridão infinita não deve ser desejada. Ela é o momento em que a falta de distinção conceitual ainda permite que não nos ofusquemos pela potência niveladora do abstrato, de modo a percebermos o engodo que reside em se pensar que nós não dependemos da natureza para sabermos o que somos – e isso apraz.

Tal significa que a imagem estética é um instante de reconhecimento de que se é diferente do que a fonte de auto-compreensão permite que vejamos, ou seja, em que percebemos que podemos nos visualizar para além do foco iluminador das relações de poder. O enfraquecimento da noção abstrata e puntual da fundação unitária da identidade através do exercício de poder está calcado na relação dialética de alteridade não-resolvida

148 Ludwig Wittgenstein. Tractatus logico-philosophicus. Tradução de Luiz Henrique Lopes dos Santos. São Paulo: Edusp, 1994, p.135. 149 Rememoração, memória.

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da imagem estética, expressão sublimada da indiferenciação expressiva entre sujeito e objeto da mímesis arcaica (cf. capítulo I, item 2); é contra isso que o discípulo de Sócrates vocifera enfaticamente. De nada adianta focar a crítica platônica à mímesis no aspecto epistemológico desta enquanto cópia da cópia, posto que isso já resultaria numa domesticação falsificadora do problema, incorrendo naquilo que estaria bem ao gosto do próprio Platão: desviar o olhar do que realmente interessa, a saber, o co-pertencimento de sujeito e de objeto no medium expressivo da imagem, que “traga” o sujeito para dentro de si, ao mesmo tempo que o aproxima do objeto. O que realmente aterroriza a autoconsciência do lógos aristocrático é a flutuação identitária da imagem estética.

“O que é a virtude?”, “o que é a justiça?”, “o que é o belo?” — o questionamento socrático incessante, que Platão tomou a si como tarefa responder e que alguns filósofos analíticos querem perceber como a origem grega de sua investigação dos usos e dos abusos das palavras, é a emergência de um saber essencialmente reflexivo sobre a necessidade urgente de dar às palavras a unicidade de que o lógos precisava. Em vez do mimetismo polissêmico dos símbolos míticos — expressões pouco dissimuladas da promiscuidade com a natureza —, a univocidade protegidamente estruturada dos signos neutros:

Com a nítida separação da ciência e da poesia, a divisão de trabalho já efetuada com sua ajuda estende-se à linguagem. É enquanto signo que a palavra chega à ciência. Enquanto som, enquanto imagem, enquanto palavra propriamente dita, ela se vê dividida entre as diferentes artes, sem jamais se deixar reconstituir através de sua adição, através da sinestesia ou da arte total. (DA 24/31)

d) Imagem, símbolo e signo

O caminho rumo ao esclarecimento é a trajetória da conscientização do λoγος como σηµα , ou seja, da fala que se percebe como aquilo que não é mais a própria coisa, mas apenas sua duplicação morta150. Nesse percurso, vemos o pensamento ir solidificando-se, desde mera duplicação reflexa da natureza no mimetismo, até o signo neutro da matemática. Podemos dizer que no mimetismo não há símbolos. Tratam-se de imagens que nem sequer se cristalizaram minimamente de modo a se falar de sim-bologia, como algo que se lança junto de outra coisa. Não há o “junto”, porque não há “duas” coisas na consciência que o ser humano faz de si mesmo que pudessem se juntar. O símbolo poderia ser a marca distintiva da magia e do mito, na medida em que as imagens e a linguagem já passam a se constituir com um relativo peso próprio, apesar de continuarem no âmbito mimético por excelência, como vimos no primeiro capítulo. No símbolo, o pensamento que irá aos poucos se conhecer como sema ainda não se separa de si como eikón: “A doutrina dos sacerdotes era simbólica no sentido de que nela coincidiam o signo e a imagem. Como atestam os hieróglifos, a palavra exerceu originariamente também a função da imagem. Essa função passou para os mitos” (DA 23/30). O símbolo já configura a sedimentação da imagem como algo inteiro, cuja integralidade já suporta a carga referencial às coisas. Esse trânsito “semântico” do símbolo ainda é bilateral, ou seja, interpenetram-se pensamento e realidade como coisas que têm um processo em que uma dimensão é constituída pela outra, tal como pudemos ver no capítulo I. Apesar da bidirecionalidade mimética, a fixidez do todo da imagem já devia, de

150 Σηµα (sinal, insígnia, signo), em grego, tem, entre vários significados, “pedra tumular”; sema é origem etimológica de “semântica”.

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alguma forma, contrapor-se à inevitabilidade do destino, que, ao mesmo tempo, se refletia nela (cf. DA 67/65).

O pensamento que começa a se perceber como sema já introduz a cisão interna do símbolo, que distingue o caráter sígnico do imagético. Tal separação é o que está em jogo em uma das passagens da Odisséia analisadas por Adorno e por Horkheimer:

Ela pertence a um folclore muito difundido. Em grego trata-se de um jogo de palavras; na única palavra que se conserva separam-se o nome — Odysseus (Ulisses) — e a intenção — ninguém. Para ouvidos modernos, Odysseus e Oudeis ainda têm um som semelhante, e é fácil imaginar que, em um dos dialetos em que se transmitiu a história do retorno a Ítaca, o nome do rei desta ilha era de fato um homófono do nome de Ninguém. (DA 75/71)

Ulisses faz um cálculo antecipatório de que os membros da tribo de Polifemo indagarão quem o cegou, ao que o gigante responderia: Oudeis, ou seja, “ninguém me cegou”. A mente primitiva do ciclope não consegue deslindar na palavra aquilo que Ulisses, astuciosamente (como sempre), colocou nela: a intenção. Ulisses como que introduz na palavra uma poção mágica, a sua vontade de escapar, que se imiscui no símbolo lingüístico, que passa a transportá-la na fala do gigante, que, sem se aperceber da estratégia, apenas efetiva a força da intenção de Ulisses, pelo fato de não possuir, ainda, a consciência da diferença entre signo e coisa. Ao dizer aos seus semelhantes que “ninguém me cegou”, Polifemo torna-se prisioneiro de sua própria estupidez, que consiste em não ter ainda a visão de sobrevôo ulissiana que, em sua abstração, já permite perceber a cisão intrínseca do símbolo entre pensamento e realidade. “A astúcia da autoconservação vive do processo que rege a relação entre a palavra e a coisa” (DA 68/65). Ulisses percebe que os nomes, na verdade, são relacionados às coisas porque se quer que eles assim sejam. A convencionalidade do nome, esse proto-nominalismo na aurora da subjetividade, está representada pela sagacidade do herói de ver que uma palavra pode se referir, da distância em que se encontra do real, a várias coisas, sem a vinculação mágico-mítica do hic et nunc da representação.

Ulisses descobre nas palavras o que na sociedade burguesa plenamente desenvolvida se chama formalismo: o preço de sua validade permanente é o fato de que elas se distanciam do conteúdo que as preenche em cada caso e que, à distância, se referem a todo conteúdo possível, tanto a ninguém quanto ao próprio Ulisses. (DA 67-8/65)

Essa aparente racionalização tem um correlato funesto. Aquilo de que se serve Ulisses como mero instrumento para se livrar do ciclope não é tão abstrato assim, pois tem um conteúdo vivencial: refere-se a algo vazio, que não existe. Para o estágio de desenvolvimento da racionalidade representado por Ulisses, o nome ainda vinculava-se imageticamente ao nomeado; por isso o conteúdo semântico de Oudeis possui vínculo de realidade em relação ao próprio Odisseus, o que significa que Ulisses precisou transformar-se em ninguém para poder continuar a ser alguém.

Os dois atos contraditórios de Ulisses no encontro com Polifemo — sua obediência ao nome e seu repúdio dele — são, porém, mais uma vez a mesma coisa. Ele faz profissão de si mesmo negando-se como Ninguém, ele salva a própria vida fazendo-se desaparecer. Essa adaptação pela linguagem ao que está morto contém o esquema da matemática moderna. (DA 68/65)

A querela dos antigos, de se é o semelhante que conhece o semelhante ou o dessemelhante que conhece o dessemelhante, foi respondida unilateralmente pela razão ocidental: é através da imitação astuciosa do que se quer conhecer que esse outro foi apreendido como algo emaranhado no poder de captação do real, tal como a aranha apreende seu alimento enredando-o naquilo que ela mesma produz.

Mas o vínculo imagético, como dissemos, ainda persiste, e o nome de Ulisses ainda tem poder de produção de realidade sobre ele, o qual precisa ser resgatado:

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ao fugir, ainda ao alcance das pedras arremessadas pelo gigante, não se contenta em zombar dele, mas revela seu verdadeiro nome e sua origem, como se o mundo primitivo, ao qual sempre acaba por escapar, ainda tivesse sobre ele um tal poder que, por ter se chamado de Ninguém, devesse temer voltar a ser Ninguém, se não restaurasse sua própria identidade graças à palavra mágica, que a identidade racional acabara de substituir. (DA 75/71)

Aqui entra em jogo aquela dívida que a imagem cobra ao se autonomizar perante o sujeito de que falamos no capítulo I. O nome de Ulisses, uma vez negado, deve ser reapropriado, pois sua identidade, de alguma forma, decantou-se nele. Dado o estágio esclarecido em que se encontra Ulisses, ele percebe que seu poder sobre as coisas depende de uma dureza do caráter, que inclui a frieza suficiente para renegar aquilo em que se reflete, ou seja, seu próprio nome. Isso mostra a emergência da necessidade de reconhecer que “o pensamento só tem poder sobre a realidade pela distância — a qual é, porém, ao mesmo tempo, sofrimento” (DA 76/72 – tradução modificada). É precisamente essa distância que estabelece, em linhas mais gerais, aquilo que podemos chamar de condição de possibilidade da ideologia.

2. Ideologia: opacidade entre o idêntico e o diferente

a) Ideologia como problema

Como vimos no início do capítulo I, o conceito de ideologia de Adorno é impressionantemente amplo. Essa extensão tem, na Dialética do esclarecimento, um vínculo estreito com o conceito de esclarecimento enquanto exercício fraudulento do poder, como vimos. Segundo pensamos, é precisamente tal hipóstase do conceito de esclarecimento qua dominação que é o impulso de todas as infindáveis críticas ao livro de Adorno e de Horkheimer. Uma das primeiras críticas ao livro de 1947 foi a feita por Habermas, que se apóia única- e exclusivamente nesse conceito hipertrofiado de esclarecimento para desferir suas objeções:

A própria razão destrói a humanidade que a possibilitou — essa tese ampla é fundamentada no primeiro excurso (…) através do fato de que o processo do esclarecimento desde sempre [von allem Anfang an ] está fundado no ímpeto para a autoconservação, a qual mutila a razão, porque ele151 reivindica esta apenas nas formas de dominação da natureza e das pulsões, precisamente como razão instrumental.152

Segundo Habermas, é precisamente a assimilação da razão, enquanto instrumental, ao poder, que fez com que ela perdesse sua força crítica: “esta é a última descoberta de uma crítica da ideologia aplicada a si mesma”153. A crítica de autofagia do pensamento adorniano tira sua seiva nessa desmesura da suspeição em relação a todo e qualquer pensamento.

Precisamos, então, “focar” a idéia de ideologia de acordo com o plano epistemológico traçado pela consciência de abstração do conceito frente à realidade, tal como esboçamos na emergência do esclarecimento enquanto um saber abstrato contraposto à identificação qualificada entre sujeito e objeto na mímesis. Para isso, vamos partir da concepção de ideologia do próprio Adorno.

151 No original alemão é indiscernível se “ele” refere-se ao processo do esclarecimento ou ao ímpeto para a autoconservação. 152 Jürgen Habermas. “Die Verschlingung von Mythos und Aufklärung”. In: Philosophische Discurs der Moderne. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1985, p.135. 153 Jürgen Habermas, op. cit., p.85, p.144.

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Antes, porém, vejamos os vários significados do conceito de ideologia levantados por Terry Eagleton, que primam por sua abrangência de pontos de vista:

a) o processo de produção de significados, de signos e de valores na vida social;

b) um corpo de idéias característico de um determinado grupo ou classe social;

c) idéias que ajudam a legitimar um poder político dominante;

d) idéias falsas que ajudam a legitimar um poder político dominante;

e) comunicação sistematicamente distorcida;

f) aquilo que confere certa posição a um sujeito;

g) formas de pensamento motivadas por interesses sociais;

h) pensamento de identidade;

i) ilusão socialmente necessária;

j) a conjuntura de discurso e de poder;

k) o veículo pelo qual atores sociais conscientes entendem o seu mundo;

l) conjunto de crenças orientadas para a ação;

m) a confusão entre realidade lingüística e realidade fenomenal;

n) oclusão semiótica;

o) o meio pelo qual os indivíduos vivenciam suas relações com uma estrutura social;

p) o processo pelo qual a vida social é convertida em uma realidade natural.154

O problema com todo o bom livro de Eagleton é o fato de ele centrar o problema da ideologia no Leitmotiv da questão de um discurso ou de um construto ideológicos determinados, especificados como “estratégias ideológicas”155. Ele não considera a ideologia como algo que se devesse ligar, por exemplo, à noção de racionalidade em geral, pois isso levaria, segundo pensa, a um esvaziamento dessa noção. Mas o problema principal com o livro, ao tomá-lo como referência para um posicionamento sobre ele, é que o autor não chega a formular uma idéia própria do que consistiria o conceito de ideologia, pois se propõe apenas a fazer uma análise de vários autores que se dedicaram ao tema, desde Marx até os teóricos mais recentes.

A análise que Eagleton faz do conceito de ideologia de Adorno é instrutivamente grosseira e precária. Segundo o autor inglês, o conceito de ideologia de Adorno está fundamentalmente ligado à noção de troca, que remete ao princípio de abstração generalizada entre os homens, cujo fundamento último é o “pensamento de identidade”. Este último tenderia a extirpar as diferenças em prol da unificação niveladora. Segundo Eagleton, essa idéia passa por cima de diversos fenômenos que não se adequam a uma idéia de que a ideologia consiste sempre em desconsiderar a diferença:

A escola marxista de Frankfurt, entre cujos membros havia vários refugiados do nazismo, simplesmente projeta o universo ideológico “extremo” do fascismo nas estruturas inteiramente diferentes dos regimes capitalistas liberais. Toda ideologia funciona pelo princípio de identidad e, extirpando impiedosamente tudo o que é heterogêneo a ela? O que dizer, por exemplo, da ideologia do humanismo liberal, que, por mais especiosa e restrita que seja, tem espaço para a variedade, pluralidade, relatividade cultural, particularidade concreta? (…) Adorno (…) não quer simplesmente substituir a identidade pela diferença, mas sua sugestiva crítica da tirania da equivalência leva-o com muita freqüência a “demonizar” o capitalismo moderno como um sistema

154 Terry Eagleton. Ideologia. Tradução de Luís Carlos Borges e de Silvana Vieira. São Paulo: Unesp, 1997, p.15-6. 155 Título do segundo capítulo de Eagleton.

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uniforme, pacificado (sic!), auto-regulador.156

Parece que Eagleton infelizmente não teve acesso a um texto de Adorno que tem por título precisamente Beitrage zur Ideologielehre [“Contribuição à teoria da ideologia”], em que este fala bem mais sobre ideologia do que foi comentado pelo autor inglês. b) O conceito adorniano de ideologia

Inicialmente, devemos dizer que Adorno, tal como costuma acontecer com alguma noção específica em seus textos, não se dedica propriamente a delinear uma definição ou explicitar os desdobramentos do conceito de ideologia. Seu interesse reside mais na consideração do estatuto histórico do conceito.

Primeiramente, Adorno salienta algo que considera comum a muitas tentativas de delineamento do fenômeno da ideologia: a crítica da abstração do espírito e sua concomitante cristalização para além da dinâmica histórica. Isso, segundo ele, vai contra a posição tradicional da filosofia, que toma partido pelo imutável, contra o devir da experiência, tal como se pode ver em Platão, em Descartes, em Kant, etc. Posição que ainda encontraria ressonância na filosofia em moda na época pré-fascista na Alemanha (que, embora não explicitado, refere-se à ontologia fundamental de Heidegger). Mas, por outro lado, a dinamização dos produtos espirituais não deveria esquecer que a própria doutrina da ideologia está sujeita a uma dinâmica histórica — é precisamente um pouco dessa dinâmica que Adorno quer expor.

Desde o século XVI, “fez-se notar as condições universais dos conteúdos falsos de consciência”157, como a crítica de Bacon à racionalidade medieval, através de sua doutrina do ídolos do pensamento. Essa doutrina tem dois pontos questionáveis: 1o: o enganos dos homens é tomado como se ocorresse a seres naturais, eternos, e não devido a determinadas condições históricas em que são formados; 2o: a mentira é imputada à falibilidade do homem, sem considerar a dinâmica histórica.

Ao mesmo tempo em que especificam a crítica de Bacon aos ídolos como formas sociais de manutenção do poder — o que pode ser caracterizado como um avanço na consideração dos impulsos históricos da formação da ideologia —, os enciclopedistas franceses foram superficiais ao procurarem as formas ideológicas apenas como expressão de “maquinações” dos poderosos, embora Helvétius tenha visto a vinculação mais geral das idéias com a sociedade como um todo. Destutt de Tracy, que inventou a palavra “ideologia”, queria perceber a motivação gnoseológica de todas as formas de pensamento, falsas ou verdadeiras. Tratava-se de uma descrição “zoológica” do conteúdo das próprias idéias, procurando deslindar “cientificamente” as condições da vida social e política, o que Adorno considera um elemento precursor da hegemonia da sociologia em relação a todas as formas de saber preconizada por Comte. A doutrina dos ideólogos franceses tinha a intenção de domínio político a partir da investigação da “química” dos processos de produção das idéias.

A intenção de Adorno, ao falar do desenvolvimento desse conceito, é a de examinar a íntima relação entre ideologia e a dinâmica histórica do mundo burguês.

A ideologia não se sobrepõe ao ser social como uma camada destacável, mas, sim, é-lhe inerente. 156 Terry Eagleton, op. cit. p.117. 157 Theodor W Adorno. “Beitrage zur Ideologielehre”. In: Soziologische Schriften I. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1972, p.458. (Nesse item, as próximas citações desse texto serão referidas no próprio corpo da tese como Beitrage, seguido do número da página.)

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Ela se funda na abstração, que conta essencialmente para o processo de troca. Sem abstrair do ser humano vivo, não se trocaria. Isso implica a aparência necessariamente social no processo de vida real até hoje. (ND 348)

Na origem dessa noção, a idéia de que bastava colocar a consciência em ordem para fazer a sociedade ficar em ordem é, não apenas burguesa, mas a essência da própria ideologia.

Enquanto necessariamente objetiva e ao mesmo tempo falsa consciência, enquanto entrelaçamento do verdadeiro e do não-verdadeiro, diferenciando-se tanto da plena verdade quanto da mera mentira, a ideologia pertence a uma economia de mercado citadina, mesmo que não seja moderna, mas pelo menos desenvolvida, pois ideologia é justificação . Ela requer, tanto a experiência de um estado social já problemático que deve ser defendido, quanto a própria idéia de justiça, sem a qual uma tal necessidade apologética não subsistiria, e que tem seu modelo na troca de coisas comparáveis. Onde imperam relações de poder imediatas, não há propriamente ideologias. (Beitrage 465)

Onde há esse caráter imediato, não haveria uma construção racional minimamente estruturada para dar suporte a uma forma sutil de domínio político. Para que haja crítica da ideologia, é preciso que esta tenha um núcleo racional a ser atacado. Criticar a “ideologia” nazista, por exemplo, seria inocência, segundo Adorno, uma vez que os escritos nazistas estão abaixo de qualquer nível mínimo (fazendo um trocadilho, podemos dizer que eles estariam “abaixo da crítica”). Tratar-se-ia de mera manipulação de poder, e os próprios poderosos não esperavam que se concordasse com eles. Nesses casos, em vez de crítica ideológica, há que se analisar o absurdo da situação. “A crítica ideológica é negação determinada no sentido hegeliano, confrontação do espiritual com sua realização, e tem como pressuposto tanto a diferenciação do verdadeiro e do não-verdadeiro no juízo, quanto a aspiração à verdade no que é criticado” (Beitrage 466). As ideologias totalitárias não devem ser criticadas enquanto tal, pois não têm a pretensão de autonomia e consistência, ou, se o fazem, somente de forma precária. Por isso, há que se analisar quais disposições de espírito dos indivíduos são aproveitadas por elas, quais elas favorecem, além dos motivos sociais que levam as pessoas a precisarem de discursos desse tipo, e não o conteúdo ou a estrutura deles:

O que é ideologia hoje é o estado de consciência e de inconsciência das massas como espírito objetivo, e não os produtos usuais que o imitam e o superam, a fim de o reproduzirem. Para haver ideologia em sentido próprio, são necessárias relações de poder opacas, mediadas e, nessa medida, suavizadas. Hoje, a sociedade que se transformou em injustiça por causa de sua complexidade tornou-se por demais transparente para tal. (Beitrage 466-7)

A autonomização do espírito perante sua origem social é sempre aquilo que configura a falsidade do pensamento ideológico, tal como os críticos da ideologia afirmam. Mas a dialética de Adorno é surpreendente nesse ponto, pois diz que até mesmo isso tem seu momento de verdade, pois esse isolamento do espírito perante a realidade social é o que permite que o pensar não se restrinja a uma mera duplicação do que simplesmente existe tal como é factualmente. Até mesmo no simples pensamento de identidade, na ligação de um sujeito a um predicado, de forma a se dizer que “S é P”, sem consideração para com as contradições que cercam a vida real dos entes, “nele encontra-se também o momento de verdade da ideologia, a indicação de que não deveria haver nenhuma contradição, nenhum antagonismo” (ND 152-3).

Por outro lado, a dinâmica histórica da ideologia não mais permite se falar dela como pura hipóstase do espírito: “hoje a marca das ideologias é antes a ausência dessa autonomização do que o engano de sua pretensão” (Beitrage 474). O que é ideológico hoje diz respeito à manipulação técnica e fixação da mentalidade dos indivíduos sob a indústria cultural. O conteúdo ideológico desta é a produção e

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manutenção do conformismo, da adequação da consciência individual às normas e aos padrões implícita- ou explicitamente veiculados pela mídia. “A fixidez do pensamento incapaz de fazer experiência imperante na sociedade de massas é enrijecida ainda mais por essa ideologia, enquanto, ao mesmo tempo, um extremo pseudorealismo, que oferece em todo exterior a cópia exata da realidade empírica, impede que aquilo que é oferecido seja compreendido como algo já preformado no sentido do controle social” (idem).

Apesar do empobrecimento crasso da mentalidade sob a manipulação dos meios de comunicação, uma vez mais Adorno surpreende-nos, ao afirmar que isso contribui para que se veja aí um enfraquecimento do poder ideológico do sistema, na medida em que, ao ter como seu conteúdo mais próprio, a idéia de que as coisas são assim, tal como já se configuram na realidade, “sua própria inverdade se afunila ao estreito axioma de que as coisas não poderiam ser de outro modo além do que são” (Beitrage 477). Dado esse entrelaçamento raso entre a mera existência e a ideologia, “o espírito necessita apenas de um pequeno esforço para retirar de si a ilusão poderosa e ínfima” (Beitrage 477).

Como dissemos no início, Adorno não se interessou em delinear especificamente o conceito de ideologia. Podemos, entretanto, salientar algumas das noções envolvidas em suas reflexões que contribuiriam para fornecer uma possível definição do conceito.

1o: a ideologia configura-se na ausência de consideração da dinâmica histórica, tanto da realidade, quanto do pensamento sobre esta; 2o: a ideologia diz respeito a uma situação complexa de relações de poder, em que é necessário um processo de justificação do exercício de domínio, que não aparece nua e cruamente, mas, sim, mediado por idéias que visam legitimá-lo; 3o: o problema dialético da ideologia é o de que ela é falsa consciência, mas não apenas isso. “O véu que reside necessariamente entre a sociedade e sua introspecção em sua essência exprime, ao mesmo tempo, devido a essa necessidade, essa própria essência. As próprias ideologias tornam-se falsas somente através de sua relação com a realidade subsistente. Elas podem ser verdadeiras ‘em si’, tal como as idéias de liberdade, de humanidade, de justiça, o são, mas elas se mostram como se já estivessem realizadas” (Beitrage 472-3); 4o: é ideológica a má relação entre o espírito e a natureza, na medida em que este, ou se separa absolutamente desta, cristalizando-se acima de todas as contradições dos seres viventes, ou se reduz a mera duplicação do âmbito natural, absorvendo em si, como seus determinantes, as relações entre causa e efeito naturais, como se a história do espírito fosse, inevitavelmente, história natural: “a legalidade natural da sociedade é ideologia, na medida em que ela é hipostasiada como um dado natural imutável. Mas a legalidade natural enquanto lei de movimento da sociedade a-consciente é real, como O Capital expõe, desde a análise da forma da mercadoria até a teoria da ruptura conjuntural em uma fenomenologia do contra-espírito” (ND 349); 5o: o que é ideológico nas formas de comunicação de massa é o atrelamento da consciência àquilo que já existe pura e simplesmente, sem possibilidade de saída dos padrões de comportamento e de percepção já estipulados previamente.

Cremos, ao contrário da tendência adorniana de evitar definições, poder delinear um conceito de ideologia que abrange todos esses aspectos e que permite pensar o caráter ideológico de várias formas de pensamento e da própria racionalidade ocidental tout court.

c) O pensamento ideológico: tabu reflexivo

Antes de qualquer coisa, seria preciso dizer que não se deveria referir à ideologia, mas, sim, à qualificação de ideológico de algo, seja um discurso, a racionalidade, etc. O conceito “ideologia” já é uma reificação, e já poderia ser qualificada de ideológica em

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alguma medida. Isso se dá pelo fato de que uma determinada representação deveria ser considerada ideológica pelo aspecto funcional que possui em relação ao que se refere. A expressão “ideologia burguesa” já tira a atenção daquilo que realmente conta, que é o fato de a representação de mundo burguesa ser usada, ter uma função, ter um sentido, no meio social. A palavra “ideologia” é uma reificação, entre outros motivos, também pelo fato que não há ideologia, mas, sim, discursos, racionalidades, representações, etc., que são ideológicos. Se se usa essa palavra, como, por exemplo, em “a ideologia soviética”, ela tende a enfocar o aspecto do que já existe de representação de mundo, do que já está cristalizado nela, ao passo que as idéias soviéticas devem ser consideradas ideológicas pelo fato de que elas estabelecem uma determinada forma de operar com o mundo. Além disso, o substantivo tende facilmente a retirar o caráter perverso, reificador, mistificante, presente no emprego do adjetivo, como em “esse partido político não tem ideologia consistente” ou “cada um tem sua própria ideologia”. Nesses casos, o caráter ideológico foi totalmente dissimulado, ou extinto, na medida em que o substantivo se iguala a “princípio gerais de ação ou de visão de mundo”. O adjetivo, por outro lado, tende a evitar isso, pois ninguém diria que sua própria visão de mundo é ideológica; isso se dá precisamente pelo fato de que ele conserva o aspecto operacional em jogo nessa noção. Se uma determinada forma de conceber a realidade é ideológica, ela o é pelo fato de fazer com que nossa relação com o mundo seja realizada de alguma maneira, em alguma direção, etc. O que faz algo ser ideológico é o efeito funcional que ele tem.

Consideramos ideológica alguma forma de representação, cuja aparência de verdade produz, e/ou depende do, progressivo obscurecimento da reflexão sobre a fonte de legitimidade do valor que se dá ao que é objeto dessa representação ou que está vinculado ele.

Como toda definição sucinta, esta precisa ser explicada. O que pode ser ideológico é uma forma de representação da realidade, ou seja,

um discurso, uma forma de racionalidade, uma obra de arte, etc. Isso exclui as ações como podendo ser ideológicas. Por mais diferentes que possam ser os conceitos de ideologia, não creio que algum considerasse a tomada da bastilha como ideológica, mas, sim, que ela estivesse ancorada em um discurso ideológico. A explicação que os revolucionários dariam para sua ação poderia ser ideológica, mas não sua ação em si mesma. Esta poderia ser tomada como tal, somente se considerássemos que os meios empregados para efetivar uma idéia que qualificamos como ideológica também o fossem. Mas, nesse caso, fica claro que a qualificação de ideológico está dirigida fundamentalmente para o modo de compreender a realidade, e não para a ação decorrente dela.

Devido a desse aspecto eminentemente representacional, as formas arcaicas de conhecimento mimético não seriam ideológicas, uma vez que não podem ser consideradas uma representação strictu sensu, pois a imagem presentifica a realidade de modo a não haver espaço de consciência suficiente para que a representação pudesse ser vivida enquanto tal. Um construto discursivo ou um modo de pensar a realidade somente é ideológico, se se constitui como uma representação destacada do objeto a que se refere. Isso também já poderia ser visto na concepção de Adorno de que somente onde as relações de poder admitem ou exigem mediações discursivas, razoavelmente racionalizadas, pode-se falar de ideologia.

O efeito propriamente ideológico de uma concepção do real reside, por um lado, no enfraquecimento progressivo de um processo de reflexão por parte daqueles que estão sob a ação dela. Mas pode ser que seu caráter ideológico resida no fato de que ela dependa, viva, da ausência de tal atitude reflexiva, que seria vinculada àquilo que diz, que estabelece, que o valor que damos a uma atitude, a um modo de vida, a uma idéia, a um pensamento, etc., é legítimo, é aceitável, tem razão de ser, está justificado.

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Por causa desse enfraquecimento da reflexividade, da rememoração, da explicitação, daquilo que dá a base para a legitimidade que está em jogo no discurso sobre a valoração de algo, o aspecto ideológico está vinculado a: (1) reificação. Segundo Adorno, toda reificação é um esquecimento, uma hipóstase de algo que tende a se cristalizar na consciência como algo natural, inevitável, inteiro, quando, na verdade, constitui-se como em processo, em mudança, em devir, etc. Trata-se de um esquecimento da dimensão histórica do que é objeto da representação ideológica; (2) manutenção astuciosa do poder. A mistificação envolvida na ausência da reflexividade mostra os construtos ideológicos como estratégias — conscientes ou não — de engodo em relação ao olhar dos que são alvo deles. Como tendem a evitar a reflexão sobre a sua própria legitimidade, fazem com esta se mantenha como a única aceitável, ou até se perpetue como tal; (3) distanciamento progressivo do construto ideológico em relação à vivência concreta, conflituosa, ligada à natureza de ser vivente dos seres humanos. Ou seja, ele tende a se cristalizar muito acima das vicissitudes dos seres humanos, resolvendo-as, mas de modo ilusório.

Cremos que nossa definição do caráter ideológico de uma representação seja suficientemente boa para esclarecer a questão da relação entre ideologia e falsidade, que tortura os filósofos que se dedicam a pensar o conceito de ideologia, tal como torturou Terry Eagleton em seu livro que citamos, e que até mesmo Adorno tomou como o problema dialético da ideologia, ou seja, o fato de que esta é falsa consciência, mas não apenas isso. É evidente que nem tudo que é falso é ideológico, como, por exemplo, “o sol é quadrado”. Mas, por outro lado, também é evidente que o aspecto mistificador, deturpador, dos discursos ideológicos pode ser pensado como falsidade, na medida em que contribui para uma atitude violentadora das vivências a que se está sujeito. Esta é a solução adotada por Eagleton para esclarecer a relação entre os dois conceitos. Ela está de acordo com nossa definição, mas lhe falta um esclarecimento mais abrangente, conceitual, da relação entre os dois termos. Cremos que a falsidade158 seja ideológica quando envolve a questão de um desvio em relação ao que consideraríamos ser a verdade, de tal modo que esse desvio tem o sentido gnosiológico de barrar, de frustrar, de dificultar, de obscurecer, etc., o acesso ao que seria a verdade. Assim, o que deveria ser considerado ideológico, em sentido estrito, não é a falsidade, mas a falsificação. Por causa disso, a verdade positiva sobre algo pode ser tão ideológica quanto a falsidade, na medida em que também poderia provocar esse desvio mistificador sobre o que realmente interessa em algum caso.

A partir dessas considerações, vejamos alguns exemplos do que se poderia considerar como ideológico.

Ao contrário de Adorno, que considera o Nazismo como um exercício imediato de poder, este seria ideológico, pelo fato de que seu discurso tende a mistificar, obscurecer, a tomada de consciência crítica de seus doutrinados, sobre o que fundamenta o processo de legitimação de suas atrocidades. Ele toma estas últimas como justificadas pela colocação do judeu como o outro, como o radicalmente diferente, como ameaça que deve ser extinta a bem do povo considerado saudável, digno, etc. Para que ele sobreviva, ele tem que evitar que seus dominados reflitam sobre os fundamentos de seu processo de auto-legitimação. Para fazer isso, ele constrói toda uma imagerie de perdições, de inautenticidades e de perigos dos quais a única saída é apresentada como sendo a acomodação à clareira instaurada pelo ser autenticamente engajado na constituição do verdadeiro destino do povo. (Qualquer semelhança com algum filósofo — apologeta da

158 As idéias de falsidade e de verdade, aqui, pressupõem, é claro, que se possa assegurar o que seja verdadeiro e falso. Entrar no mérito dessa distinção nos desviaria de nosso argumento principal.

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autenticidade como o que é próprio do modo de existência do que seria a clareira do ser; que diz que sábio é “aquilo que se pode ater àquilo a que foi destinado, nele pode instalar-se e pôr-se a caminho por amor a ele”159 — não é mera coincidência: “(…) para os filósofos do fascismo, confessos ou não, valores como autenticidade, perseverança heróica na existência individual ‘lançada ao mundo’, situação-limite, tornam-se meios de usurpar o páthos religioso-autoritário desprovido de qualquer conteúdo religioso” (MM §99, p. 134).160)

O cristianismo é ideológico porque funda seu discurso também nessa relação de tertium non datur entre o inferno da vida desregrada, sujeita a luxúrias, pecados, etc., e a bem-aventurança do sofrimento justificado pela ascese em relação a um reino espiritual situado muito além da vida concreta, temporalmente localizada, dos homens. Ele vive da aceitação incondicional de seus dogmas, dizendo, inclusive, que o que dá valor ao homem seria precisamente o fato de se acreditar sem provas, como quando Santo Agostinho disse que, se Deus nos desse provas de sua existência, nossa fé nele perderia todo o seu valor. A idéia de podermos asseverar que Deus tenha desígnios, embora tenhamos que aceitar a adversativa de que não podemos saber quais eles são, mostra que a doutrina cristã somente pode subsistir como um construto que resolve as contradições da vida ao colocar o núcleo fundante de sua construção em um ponto que, apesar de irrevogavelmente além da visão racional humana, determina, de lá, o sentido de toda a vivência carnal, sofrida, dos homens.

Os preconceitos acríticos, como as idéias de que “toda mulher dirige mal”, “todo político é corrupto”, “os homens são superiores às mulheres”, “uma raça é superior à outra”, etc., são ideológicos, pelo fato de conterem uma disposição perene de manipular os fatos de modo apenas a constituírem um material para reforçar a si próprios. Eles vivem do exercício de uma percepção seletiva viciada dos fatos. Ou seja, selecionam-se aqueles que entrariam na “estatística” de acordo com um impulso interno que faz essa seleção ser viciada, tendenciosa. O mundo é lido a partir de algo que já determina, de antemão, o que ele vai ser. O vício da percepção consiste em que o fato já traz a marca interna, subjetiva, que determina o que será percebido, de modo semelhante a um dado com seis faces numeradas que dizemos ser “viciado”, pois tem mais peso em uma das faces, de modo a que o resultado já esteja conhecido antes de seu lançamento. É precisamente esse ímpeto inercial da percepção que dá seu caráter ideológico. A idéia de que “todo político é corrupto” é insistentemente veiculada pelos meios de comunicação de massa, de modo a viciar a percepção das pessoas, pois estas tendem a levar em consideração somente os fatos políticos que a confirmam: se se descobre um caso de corrupção, isso confirma a idéia em jogo; se é executado um projeto de urbanização de uma favela, isso é simplesmente negligenciado ou é anulado com a idéia de que o governante não fez nada mais do que a obrigação. Ou seja: o que vai a favor da idéia, confirma-a, e o que vai contra, não a enfraquece. Desse modo, todo o mundo acaba sendo relegado a um enorme e mero pretexto, apenas e tão-somente um substrato razoavelmente indiferenciado, para que escrevamos nele o texto que gostaríamos de ler, avessos à necessidade imperiosa de refletir sobre o que nos motiva a fazer essa leitura.

A ciência seria, segundo essa nossa concepção, o que há de mais ambiguamente ideológico. Por um lado, ela seria bastante anti-ideológica, na medida em que 159 Martin Heidegger. Logos. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Abril, 1973, p.122. (Col. Os Pensadores) 160 Sobre o caráter fascista da filosofia de Heidegger, cf. Victor Farias, Heidegger und der Nationalsozialismus. Frankfurt am Main: 1989 e Theodor W. Adorno. Jargon der Eigentlichkeit . Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1972. Para um comentário sucinto da crítica adorniana, cf. Rodrigo Duarte. Mímesis e racionalidade. São Paulo: Loyola, 1995, pp.61-5.

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desmistifica as concepções preestabelecidas de senso comum, em que cada uma das que apontamos acima poderia ser desmascarada através de uma investigação que tenha parâmetros de objetividade científica. Por outro lado, essa mesma objetividade tem um preço bastante alto: ela é comprada com a negligência de todo o elemento de reflexão sobre a dimensão histórico-social que se decanta nos fatos que são estudados objetivamente por ela. Por isso, ela é profundamente ideológica, posto que o status de objetividade de seu saber — glorificado nos sete continentes — funciona precisamente como uma armadura contra nossas investidas à sua irreflexão sobre a historicidade imanente aos fatos. Paradoxalmente, quanto mais objetivamente anti-ideológica ela é, mais ela se afunda em seu aspecto ideológico, na medida em que perde a consciência reflexiva sobre as motivações mais profundamente históricas para os fatos serem aquilo que eles são. Mas sua ambigüidade é ainda maior, posto que o que faz ela precisamente progredir — para que o leitor possa, por exemplo, atender ao telefone celular transmitido via o ndas de rádio em algum momento dessa leitura — é precisamente aquilo que dá seu aspecto ideológico. A desconsideração imediata da teoria em relação ao aspecto prático do mundo é conditio sine qua non para sua excelência de iluminar a prática e fornecer-lhe os meios para melhorá-la. Isso vale inclusive para a própria teoria filosófica, embora, como veremos mais abaixo, a filosofia não contenha, necessariamente, aquele elemento ideológico de meta de objetividade não-histórica. Como diz Adorno:

Precisamente aquelas teorias que não foram concebidas com vistas à sua aplicação são as que têm maior probabilidade de serem frutíferas na prática, mais ou menos analogamente ao que ocorreu nas ciências naturais entre a teoria do átomo e a cisão nuclear: o geral, o relativo a uma práxis possível estava contido na razão orientada em sentido tecnológico, e não porque esta tivesse em vista a aplicação.161

Cremos que seja por causa dessa profunda ambigüidade ideológica que haja uma querela infindável sobre a relação entre ciência e ideologia, em que se chega a dizer que a primeira é o oposto radical da última.

Talvez o exemplo mais pregnante de uma representação intencionalmente ideológica seja — como parte da indústria cultural analisada por Adorno — a publicidade. Segundo Jean Baudrillard, a realidade publicitária é a produção de um âmbito imagético que tem força mítica, através da manipulação técnica, tecnológica, de um conjunto de imagens, de códigos, de sinais, de signos, que ganham autonomia, vida própria, a partir do próprio meio em que são produzidos, e que são avaliados, medidos, não por sua referência ao real histórico, conflituoso, mas pela tecnicidade de sua estruturação, acabando por “substituir” a este último. Não se trata de uma interpretação “tendenciosa” do que seria o conteúdo autêntico da realidade historicamente vivida, mas da produção de uma nova realidade, uma “neo-realidade” (termo de Baudrillard), que pode influenciar na vivência diária, ser avaliada e gerar prognósticos acerca de sua eficácia.

Não é uma questão válida, em relação à publicidade, se o que se diz é verdadeiro ou falso. O objeto (a ser vendido) é tratado como se fosse um acontecimento, é louvado como um fato substancial, digno, elevado, que vale por si mesmo, pelo fato de ser narrado, referido pelo discurso publicitário. Se os publicitários mentissem, seria fácil desmascará-los. O que acontece, efetivamente, é que eles produzem miticamente a realidade que dizem apenas enunciar. É uma profecia que se cumpre pelo simples fato de ser 161 Theodor W. Adorno. “Notas marginais sobre teoria e práxis”. In: Palavras e sinais. Modelos críticos 2. Tradução de Maria Helena Ruschel. Petrópolis: Vozes, 1995, p.228. O próprio Marx, diz Adorno, contrário ao aspecto excessivamente contemplativo da filosofia, não quis fazer de sua teoria um instrumento de aplicação imediata na práxis: “não se poderia deduzir da teoria da mais-valia de que modo haveria de ser feita a revolu ção” (idem).

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pronunciada no meio reluzentemente técnico e será tornada real no ato de compra, que apenas testemunha a veracidade (isto é, a força de constrição imagética) já contida na narrativa publicitária. Esse discurso é tautológico, ou seja, gira em torno de si mesmo, referindo-se a si próprio o tempo todo como meio de reforçar o caráter de evento primordial do objeto, cuja imagem deverá ser resgatada no ato de compra. Pode haver propaganda enganosa, mas não publicidade enganosa, uma vez que esta não se vincula, ao contrário daquela, à transmissão de conteúdos, mas, sim, à glorificação imagética da marca.162

Mas, de todos os exemplos de representações ideológicas, o que nos é mais importante — e que justifica a inserção desse item sobre ideologia nesse capítulo — é o da racionalidade ocidental (esclarecimento).

Como procuramos mostrar, a abstração do pensamento — marca da razão esclarecida —, nasceu da sedimentação das relações de poder como configurando o reino do espírito. Ora, todo exercício de poder exige a unificação da sede de comando em contraposição ao que deve ser o material a ser pensado, ou seja, sintetizado, de modo a ser absorvido na esfera da consciência: “É índice da falsidade da identidade, de que o concebido absorve-se no conceito. E, no entanto, a aparência da identidade reside intrinsecamente no próprio pensamento, em sua forma pura. Pensar significa identificar” (ND 16). Essa operacionalidade fundamental do conceptum que precisa reunir para gerar163 mostra que, originando-se precisamente da hipóstase do poder nas formas de pensamento — que, nesse processo, se distanciaram daquilo a que se referem —, a racionalidade ocidental constituiu, nessa separação, o espaço próprio do que veio a ser sua essência ideológica. Desse modo, a racionalidade esclarecida não tem como negar em termos absolutos aquilo que lhe dá a condição de possibilidade de sua existência: a falsificação do pensado como conditio sine qua non de ele ser pensado.

Assim, podemos tomar as Meditações cartesianas como sendo a declaração da essência ideológica da racionalidade ocidental, na medida em que, como vimos, a filosofia de Descartes procurou conceber, gerar, produzir, a partir de sua pura atividade, o ponto arquimediano da dimensão racional da realidade. Nessa visão absolutamente introspectiva, o pensamento procurou esquecer completamente do quanto a certeza de si depende do objeto, tentando, a partir desse esquecimento, arrancar de seu puro vazio o que há de mais indubitavelmente real em tudo o que pode existir!

Mas é por essa fenda primeira entre o pensamento e a realidade, sob a qual se descortina o mais lúgubre abismo da mistificação da onipotência subjetiva, que podem passar os raios tímidos da luz da verdade.

Se o processo de abstração marca toda formação de conceitos com a ilusão de grandeza, nele também se encontra preservado — graças à sua distância do objeto da ação, graças à reflexão e à transparência — o antídoto: a autocrítica da razão é sua mais autêntica moral. (MM §81, p.110)

Ao mesmo tempo em que eleva à consciência de si sua essência ideológica, o pensamento pôde afastar-se de si mesmo para poder discernir em si aquilo que lhe é inerentemente falso. Quando Ulisses, ao descobrir que seu nome era apenas uma coisa, teve que se tornar uma coisa como preço por essa descoberta, o pensamento passou a ser objetivamente ideologia; quando Descartes, ao descobrir que o espírito é diferente das

162 Cf. Jean Baudrillard. A sociedade de consumo . Tradução de Artur Morão. Elfos: Porto, 1998, pp.132-6 163 “Conceito” deriva do latim concipere (compreender; tomar para si; compor em palavras), que deriva de capere (pegar, tomar); derivou o verbo português conceber, ou seja, gerar.

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coisas, teve que se reconhecer como coisa, o pensamento absorveu a objetividade de sua essência ideológica, trazendo-a para o âmbito da consciência.

Se a ideologia tem seu momento de verdade na assunção de que o pensamento difere da realidade, de que, afinal de contas, sujeito e objeto não são a mesma coisa — o que aponta para a possibilidade de as coisas serem diferentes —, e se, na mímesis arcaica (preanimismo, magia e mito), palavra e objeto são o mesmo, então ela não pode ser ideologia. Assim, ela é verdadeira, pois diz que homem e natureza co-pertencem; mas, ao mesmo tempo, ela é falsa, pois não tem consciência desse co-pertencimento. O esclarecimento objetivo (mito grego, lógos pré-socrático e metafísica) tem seu momento de verdade em que fez essa descoberta da diferença entre ser e pensar164; mas sua falsidade reside em que essa diferença foi estabelecida pela supremacia do segundo em relação ao primeiro, como sedimentação de relações de poder; mas, mesmo aí, ele ainda continha sua verdade na medida em que tal sedimentação refletia a dinâmica social de tais relações, e mostrava a imbricação de natureza e de cultura. O esclarecimento subjetivo de Descartes a Hegel é verdadeiro, na medida em que o pensar pôde refletir sobre si próprio como sendo distinguido do objeto, tomando consciência da distância que o separa do mundo na tentativa de recobri-la; mas ele é falso, na medida em que hipostasiou-o como âncora absoluta do sentido de toda a realidade, mas contendo aí mais um momento de verdade, na medida em que reflete, filosoficamente, o caminho socialmente real que o espírito tomou para se auto-conhecer. O esclarecimento francês da revolução e o materialista dialético são verdadeiros na medida em que puderam reconhecer claramente a falsidade inerente à hipóstase do espírito como contraparte abstrata da natureza, denunciando-a e fazendo de sua superação o mote da ação transformadora: foram os revolucionários franceses que cunharam a palavra “ideologia” e foi Marx que a celebrizou; mas eles têm sua falsidade em sua insuficiência de reflexão sobre os subterrâneos da formação do pensamento através das relações de poder — o que favoreceu a hipóstase das relações de poder econômico-político das democracias ocidentais e do socialismo do leste europeu. O “esclarecimento sombrio” de Adorno e de Horkheimer tem seu momento de verdade quando pretende aclarar a magnitude insondável das trevas subjacentes ao exercício de poder decantado em toda forma de pensamento; mas tem seu momento de falsidade na medida em que hipostasiou a falsa consciência como substância de toda dominação.

Desse modo, é preciso ver a dinâmica do pensamento e sua essência ideológica como etapas sucessivas de uma dialética da alteridade entre sujeito e objeto, que considere a mediação entre eles como o fulcro que determina a qualidade do pensamento como aquilo que leva à descoberta de si como exercício de poder, ao mesmo tempo em que mostra como a razão ainda não perdeu totalmente o vínculo com a natureza.

Nessa trajetória, podemos ver que a filosofia, enquanto definida como pensamento eminentemente crítico é aquilo que pode ser considerado mais propriamente anti-ideológico. Qualquer texto de filosofia é, segundo seu conceito, crítico não apenas de seu objeto de estudo, mas também do modo como ele está sendo abordado. A reflexão filosófica é, nesse sentido, crítica inclusive de si mesma, ou seja, sempre de novo coloca a questão sobre a legitimidade da própria maneira de criticar — não é suficiente, de um ponto

164 O fragmento de Parmênides de que ser e p ensar são o mesmo apenas mostra a consciência do que, na verdade, já não era.

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de vista filosófico, colocar-se criticamente em relação a algo: é preciso criticar a própria maneira como que se faz essa crítica.

Apesar das inúmeras diferenças existentes entre as diversas concepções de filosofia ao longo da história, a idéia de que a Filosofia deve ser crítica não apenas do mundo, mas também da própria maneira de exercer essa crítica, perpassa a todas. A não-aceitação do dado da tradição, daquilo que nos chega como verdadeiro, legitimado por algum tipo de autoridade, é condição indispensável para o exercício da filosofia. A nossa posição, diferente da de Adorno, consiste em considerar que o importante é que inclusive as próprias perguntas pretensamente críticas podem ser oriundas ilegitimamente da tradição, e as respostas, pelo fato de se vincularem a questões “viciadas”, giram em torno de um padrão e não chegam às vezes àquilo que mais precisaria ser questionado: os pressupostos envolvidos nas questões.165

Como nem mesmo essa crítica constante é um antídoto para o caráter reificado do pensamento, que tende a hipostasiar sua diferença e sua supremacia perante a mera realidade empírica, é preciso que este se volte constantemente sobre si próprio. A verdade do discurso filosófico reside precisamente aí: nesse re-fluir do pensar sobre si mesmo, que é o que Adorno se propôs a fazer em sua obra individual. Segundo pensamos, toda a Dialética negativa pode ser pensada como a tentativa de cumprir a tarefa posta pelos autores do livro de 1947, ou seja, fazer com que o esclarecimento volte a si, ou seja, que ele finalmente possa cumprir aquilo que sempre foi seu Leitmotiv mais fundamental: livrar os homens da servidão.

Não alimentamos dúvida alguma — e nisso reside nossa petitio principii — de que a liberdade na sociedade é inseparável do pensamento esclarecedor. Contudo, acreditamos ter reconhecido com a mesma clareza que o próprio conceito desse pensamento, tanto quanto as formas históricas concretas, as instituições da sociedade com as quais está entrelaçado, co ntém o germe para a regressão que hoje tem lugar por toda parte. Se o esclarecimento não acolhe dentro de si a reflexão sobre esse elemento regressivo, ele está selando seu próprio destino. (DA 3/13)

Todos os intricados passos seguidos na Dialética de 1966 constituem talvez a mais pujante demonstração da tentativa do pensamento de se desenredar da trama funesta em que assumidamente se encontra devido à sua própria estrutura conceitual. Ora, de acordo com nossa definição de ideologia, podemos considerá-la o mais enfático movimento anti-ideológico da razão. O programa de filosofia de Adorno consiste precisamente em apropriar-se do movimento das idéias que se sedimentaram na história, de modo a que se consiga, com base em uma justaposição radicalmente reflexiva delas, fazer-lhes uma crítica imanente, a fim de que o conjunto como um todo possa explicitar e combater a falsidade inerente a cada uma delas e ao próprio pensamento que as critica.

Para mostrar em que consiste propriamente esse processo de auto-reflexão crítica do pensar, vamos dividir nossa abordagem em duas partes. Na primeira, veremos como Adorno assume e, ao mesmo tempo, nega a dimensão imagética do mito. Na segunda, vamos investigar o processo de negação determinada daquilo que constitui o

165 Segundo Adorno, “certamente deve-se negar a problemática filosófica tradicional, mas acorrentados [gekettet ] a suas perguntas” (ND 28). Parece-nos inevitavelmente estranho que um filósofo tão expressivamente crítico como Adorno tenha dito que se deva permanecer acorrentado às questões da tradição. A questão de Descartes nas Meditações de se Deus é bom; a questão pré-escolástica de se os nomes estão ligados substancialmente às co isas; a questão pré-crítica de se podemos conhecer positivamente a Deus — são questões que nós consideraríamos válidas para nós hoje? Com certeza elas giram em torno de problemas atuais, e têm interesse histórico, mas cada uma coloca um problema que julgamos necessário ou útil resolver? Não se nega, aqui, a relevância de questões tradicionais como um possível estímulo para a reflexão. Mas dizer que elas sejam o referencial obrigatório não nos parece realmente adequado.

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núcleo de toda a racionalidade ocidental: a identidade, mostrando como isso explicita a dimensão intra-temporal do pensamento filosófico.

3. Negação determinada da imagem: a dialética particular-universal

a) Eikón, conceptum e sema

Como essa primeira abordagem do movimento crítico do pensamento é em relação à imagem mítica, o elemento mais próprio que deve ser explicitado é precisamente a inter-relação entre imagem, símbolo, signo e conceito.

Em linhas gerais, o que pretendemos investigar é em que medida a experiência comum dos homens ainda ressoa o caráter imagético do mito. Trata-se de explicitar o que seria a herança da constrição imagética de sua duplicação infinita na relação entre conceito e coisa. A idéia mais geral que pretendemos advogar é a de que a insolubilidade do real empírico no conceito é a sublimação da impossibilidade mítica de o particular resgatar imagem simbólica. Ou seja, que a particularidade do objeto e a universalidade do conceito não sejam coincidentes, mas tenham que ser, é uma forma sublimada da força de presentificação onto-gnosiológica da imagem simbólica. Naquela relação entre imagem, símbolo e signo que apontamos no item 2-c, este último nunca chegou a ser puro sema, pois somente é o que é pelo fato de que é, ao mesmo tempo, um conceptum, que “arrasta” para si algo do eikón, a saber: o poder de atrair o particular para se repetir nele — e, nisso, fazer com que o particular “respire” a possibilidade de ser o que precisa.166

Como vimos, a imagem mítica é caracterizada pela força de presentificação do sentido das coisas através de sua duplicação. Essa força de re-produção infinita da imagem está ligada à transcendência, a um poder de geração e de morte infinito, incomensurável. Ora, cada ser ou acontecer que é explicado miticamente por sua remissão a um evento primordial carrega a eterna mácula de ser apenas um, em contraste com a presença distentida ad infinitum do evento primordial. É por isso que Adorno e Horkheimer dizem que o destino mítico funda uma rede infindável de relações de culpa:

A inevitabilidade mítica é definida pela equivalência entre essa maldição [das figuras míticas – vf], o crime que a expia e a culpa que dele resulta e reproduz a maldição. A justiça traz até hoje a marca desse esquema. No mito, cada ponto do ciclo faz reparação ao precedente e ajuda assim a instalar como lei as relações de culpa [Schuld]. (DA 66/63)

“Schuld” é a palavra alemã que designa igualmente dívida e culpa (Nietzsche). O culpado é o devedor que não saldou sua dívida. No mito, o evento primordial é sempre mais do que qualquer ser ou acontecer profano, que somente se torna inteligível, real, digno, se referido àquele. Como há sempre um resto (infinito, a bem dizer) entre a pobreza e insignificância do particular e a magnitude incomensurável da origem, todo particular é sempre visto como estando em uma dívida impagável perante o evento primordial. Todo o cosmo mítico é essencialmente deficitário, posto que a realidade empírica encontra-se sempre em um minus ontológico perante as potências teo-numênicas. Ora, mas não é precisamente isso que se exprime de modo absolutamente enfático nas filosofias de Platão, de Agostinho, de Santo Tomás, de Kant e de Hegel? A escassez ontológica das sombras da caverna e a abundância substancial da luminosidade 166 É preciso salientar, aqui, que essa idéia, apesar de ser afim aos conceitos de Adorno, não foi explicitada por ele, muito menos a de que suas noções de nome, de idéia e de reconciliação sejam uma negação determinada da imagem mítica correspondente a cada um dos elementos da imagem que iremos ver. Trata-se de uma hipótese de leitura algo exógena à Dialética negativa. O que é combatido explicita- e longamente nesta última é aquele prolongamento da coerção mítica na identidade conceitual que procuramos desenvolver no capítulo II.

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do eidos solar — certidão de nascimento de toda a filosofia ocidental — nada mais exprime que essa relação deficitária mítica da particularidade em relação à universalidade: “o universal cuida para que o particular a ele submetido não seja melhor do que ele. Esse é o núcleo de toda a identidade produzida até hoje” (ND 306 – grifos nossos). Essa supremacia do universal necessário em contraste com a deficiência do particular está muito bem expressa em Hegel:

O que é da natureza do contingente, a ele cabe o contingente, e este destino é precisamente a necessidade tal como, em geral, o conceito e a filosofia fazem desaparecer o ponto de vista da mera contingência e reconhecem nela, em sua aparência, sua essência, a necessidade. É necessário que o finito, a posse e a vida sejam postos como contingentes, porque é este o conceito do finito. Esta necessidade tem, por sua parte, a forma da violência da natureza e todo finito é mortal e efêmero. (Passagem de Die Vernunft in der Geschichte, citada em ND 350)

A falta de determinidade concreta do conceito de subjetividade é explorada como vantagem de uma objetividade mais elevada de um sujeito eximido da contingência; isso facilita a identificação de sujeito e de objeto à custa do particular (ND 343).

Ou seja, segundo Hegel, não apenas é da natureza do particular que ele seja contingente, como sua continuidade mesma o é, sendo a tarefa da filosofia perceber na sua morte, no seu desaparecimento a necessidade inelutável que subjaz ao curso do mundo. Adorno comenta: “não foi nada diferente disso que os mitos ocidentais da natureza ensinaram aos homens” (ND 350; grifos nossos).

Como a filosofia platônica marca a origem da razão ocidental propriamente dita, livrando-se da dimensão claramente cosmológica do lógos pré-socrático, é instrutiva a determinação da fonte de inteligibilidade do real como eidos (aspecto exterior, forma, figura; forma mental, idéia, conceito). Esse substantivo deriva do verbo eído (ver; olhar, observar; imaginar, representar), que mostra claramente o teor imagético-visual na dimensão metafórica do aparato conceitual da metafísica platônica. A tarefa filosófica de Platão poderia ser sintetizada enquanto intenção de retirar do lógos seu caráter de eikón, de modo a constituí-lo tendencialmente como sema. A linha divisória dos entes e de sua respectiva hierarquia ontológica na República mostra as idéias como estando acima das entidades matemáticas, que primam pela unicidade do vínculo semântico. Mas, como pôde ser comentado inumeráveis vezes, esse projeto platônico é marcado por um malogro constitutivo, uma vez que o próprio discurso socrático construído pelo filósofo usa, em seus momentos decisivos, não apenas metáforas, mas, também, mitos, como a alegoria da caverna, essa linha dos entes e de sua realidade ontológica, o mito de Er, etc. Ora, dito de uma maneira um tanto poética e retórica, podemos dizer que esse fracasso inerente à filosofia platônica seria índice do que acompanha todo e qualquer conceito como sua sombra, ao ser empregado para iluminar o mundo: a intelecção conceitual da realidade empírica ressoa a constrição de resgatar a imagem simbólica.

Esse resgate, no mito, tem tripla determinação temporal: a origem é pensada (seria melhor dizer vivida) como sendo o instante em que a infinitude do poder da transcendência era atual, atuante, presente, sem a cisão para com a particularidade insuportavelmente precária do existente empírico; por outro lado, cada ritual pretende selar a conjunção do sagrado e do profano no tempo fraco, cotidiano, na presentificação do poder criacionista no agora, garantindo a continuidade do ser e de sua inteligibilidade; por último, o próprio mito configura a dimensão da escatía (extremidade, último confim, limite extremo), ou seja, o destino a se realizar nos confins da realidade através da

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acoplagem entre o lúmen teo-numênico e a aspereza grísea da multiplicidade dos entes, sob o influxo incomensuravelmente forte da constrição imagética da origem.167

Devido à herança mítico-imagética de todo conceito, dizemos que, mesmo iluminado pela dissecação analítica das palavras para torná -las fichas neutras (cf. DA 11/21), unívocas — aliás, tão unívocas quanto o próprio fatum mítico —, esse mundo ainda está virtualmente saturado de infindáveis motivos de culpa, de dívida, de insatisfação, etc., pois cada objeto, cada ente, cada sensação, é sempre percebido como deficitário em relação ao que estabelece sua inteligibilidade. Mas alguém poderia redargüir: mas na pura relação entre as idéias, como na lógica silogística, esse déficit não existe; muito bom! É precisamente nessa acoplagem perfeita entre sema e ón (signo e coisa) da tautologia do pensamento lógico, expurgado da grosseria do particular, que a plenitude do contato do deus consigo mesmo da narrativa mítica se realiza sublimada.

Como toda imagem mítica possui, como seu conteúdo mais substancial, a força de unificação da sociedade, essa herança imagética do conceito é aquilo que ressoa o peso da coletividade, da história, do devir conflituoso da vida dos homens; peso que a filosofia analítica quer expurgar das palavras, dissecando-as de modo a retirar delas o repugnante aspecto pegajoso da relação promíscua com a alteridade da natureza e dos homens, que não as permite constituir sua cristalinidade unidimensional, apta ao desejo de tornar a pura existência factual a única medida de si mesma.

Mas essa vinculação entre a imagem mítica e o conceito não é algo que pode ser experimentado com uma vivacidade e nitidez suficientes para tornar essa sua concepção teórica algo plausível de ter ressonância verificacional na práxis. E isso tem uma explicação bastante clara: ninguém pode experimentar a mesma coisa através da lente conceitual que o outro usa. Cada um se percebe como origem primeira do ato constitutivo do significado das coisas. Dado esse isolamento monadológico, a infinita diversidade entre as leituras conceituais do mundo (levando-se em conta inclusive as diferenças entre culturas: do Tibet à Califórnia) não pode ser sentida, experimentada. A diferença perceptiva do outro é sempre vista de fora, como algo exótico, a ser compreendido, aceito, tolerado, etc., mas nunca pode ser vivenciado.168 O nosso argumento é que, quanto mais nos defrontamos com a diferença de percepção do outro, mais a dimensão valorativa imagético-societária da própria percepção ganha evidência. É o solipsismo da própria percepção que torna opaca essa dimensão imagética/mítica dos conceitos para a consciência individual. Mas ele é, como vimos, causado objetivamente:

Para que o interesse individual determinado funcionalmente se satisfaça de alguma forma sob as formas subsistentes, ele tem que se tornar em algo primário; o indivíduo tem que confundir aquilo que lhe é imediato com a próte ousía. Tal ilusão subjetiva é causada objetivamente: somente através do princípio da autoconservação individual, com toda a sua teimosia, o todo funciona. Este força o indivíduo a olhar somente para si mesmo, deturpa sua compreensão da objetividade e transforma-se, por isso, objetivamente em algo ruim. (ND 306-7)

Tal como procuramos mostrar longamente no segundo capítulo, todo universal contém elementos de constrição social, “mas o nominalismo difundido como consciência pré-científica, que hoje comanda, de lá, novamente a ciência, e que faz da sua ingenuidade sua profissão (…), não se importa com os coeficientes históricos na relação entre universal e particular” (ND 307). Tal negligência é ideológica: “ela esconde o quanto o particular tornou-se função do universal” (idem), o quanto as reações subjetivas “são, 167 Sobre a dimensão temporal do mito, cf. capítulo IV, item I. 168 É precisamente através da idéia desse enclausuramento monadológico das experiências que explicaríamos a idéia de Adorno de que a comunicação atualmente não é uma comunicação entre homens, mas entre sujeitos.

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há muito, apenas restos fetais [Nachgeburten] daquela universalidade, que enfeitiça ativamente os homens para esconder-se melhor atrás deles, a fim de manipulá-los melhor” (ND 308). Assim, a opacidade do sujeito em relação ao teor imagético-mítico dos conceitos seria algo sistemicamente provocado e proveitoso.

Talvez o que seja mais opaco à visão introspectiva em relação ao caráter imagético do conceito é precisamente o aspecto de culpa, ou seja, de dívida não paga, de déficit resgatável, que as coisas e acontecimentos em geral teriam. Explicitemos melhor, com base nessas últimas considerações, como podemos perceber isso.

Como vimos em diversas ocasiões, o poder de unificação social prolonga-se na constituição identitária individual, que precisa unificar e comandar suas sensações e seus impulsos para ser um Eu. Essa cristalização da identidade subjetiva é, então, o ponto de inflexão entre o universal coletivo e as coisas concretas, que são assimiladas, unificadas, individualmente através do aparato cognitivo social introvertido pelo sujeito. O isolamento monadológico do sujeito produz a ilusão sistematicamente cultivada de que “eles, os indivíduos, seriam o substancial” (ND 306), e configura-se como um véu em relação ao peso da coletividade sobre o indivíduo. Mas é interessante notar como essa afirmação da ipseidade, que dá ao sujeito a aparência de que ele seja a origem de seus impulsos, ou seja, que ele seja livre, é, ao mesmo tempo, a fonte do sentimento de inferioridade perante a sociedade e perante o que ele espera de si, ou seja, fonte de culpa:

Quanto mais liberdade o sujeito e a comunidade dos sujeitos atribuem a si mesmos, maior sua responsabilidade, e, perante essa, o sujeito fracassa na vida burguesa, cuja práxis nunca garante ao sujeito a autonomia plena que lhe é passada teoricamente. Por isso, ele tem que se sentir culpado. Os sujeitos percebem os limites de sua liberdade, tanto em seu próprio pertencimento à natureza, quanto, de modo total, em sua impotência frente à sociedade que se autonomizou perante eles. (ND 220)

Vê-se, nessa passagem, que a inadequação entre a auto-concepção do sujeito e seu pertencimento à sociedade entrelaçam-se de modo a fazer com que o agir humano seja sistematicamente percebido como deficitário, o que é vivido como culpa, uma vez que o indivíduo já sempre se formou como um projeto de se fazer corresponder ao que seu conceito lhe dizia que ele era: dono de si. Colocar a culpa na sociedade sempre foi ouvido como declaração de impotência, de derrota, de não-ser, posto que a identidade sempre foi alcançada através da igualação entre a capacidade de burlar o outro e a unidade individual. O indivíduo tem que se virar: essa é a lei da sociedade individualista; é preciso dar um jeito de escapar, de sobreviver, de obter a melhor parte, etc. Dada a contingência infinita da vida na sociedade comandada abstratamente de cima ou entregue ao mecanismo cego do mercado — o que dá no mesmo —, essa efetivação da identidade como ego vencedor das batalhas está virtualmente sempre acompanhada do sentimento de culpa por um lado e, por outro, da necessidade de se conformar, de se resignar, etc.

O indivíduo é marcado, então, pela contingência de seu ser, pelo déficit que ela produz, ou seja, pela inadequação ao que ele era para ser e pela culpa de não conseguir efetivar sua essência devido precisamente à contingência do mundo. Algo muito parecido é o que vemos na idéia aristotélica da relação entre a ousía (essência, substância) e os ónta (coisas).

Em um convincente e esclarecedor artigo, Maria do Carmo Bettencourt de Faria propõe que se traduza a expressão de Aristóteles tò tí ên einai — que normalmente é traduzida como simplesmente essência ou qüididade — como o que era para ser169 169 “O que era para ser. Ensaio sobre uma nova leitura da essência”. In: Classica. Suplemento 1. Belo Horizonte: Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, 1991, pp.53-61.

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Apoiando-se em vários autores, como Heidegger e Aubenque, a autora explicita o que eles enfatizam como próprio do ên naquela expressão: que algo deveria ser alguma coisa, mas cuja contingência material o impediu. Essa última coloca uma opacidade inelutável em relação àquilo que constitui sua ousía, tomada como algo anterior à existência atual da coisa. Heidegger diz:

A coisa deve necessariamente ser vista em relação à sua realidade, pois ela somente pôde ser efetivamente realizada, atualizada, na medida em que ela seria pensável a título de possibilidade, devendo ser atualizada. (…) Na essência, no tò tí ên einai, o momento do passado, da anterioridade encontra-se implicado.170

Segundo a autora do artigo, tò tí ên einai diz que todos os entes devem ser entendidos a partir de um horizonte que determina o que eles deveriam ser. “Por outro lado, designa uma frustração, um projeto não integralmente realizado”171. Dado esse entrelaçamento entre o elemento prospectivo do que era para ser e o retrospectivo, de que era para ser, mas acabou não sendo, a autora diz:

podemos afirmar que o que é tende inexoravelmente [a,] e baliza-se sobre[,] isto que era para ser, frente ao qual, por um olhar retrospectivo, manifesta-se sua carência. O ente move-se por si mesmo, por um movimento espontâneo, em direção ao seu télos, a essa plenitude projetada pela definição como horizonte, da qual estará por outro lado irredutivelmente separado por um hiato intransponível.172

Como respaldo para essa tradução, a autora expõe algumas passagens do livro VII da Metafísica em que o tò tí ên einai é usado:

“Da substância [ousía] se fala em pelo menos quatro sentidos principais: com efeito, o que era para ser, o universal e o gênero parecem ser a ousía de cada coisa.” (VII, 3, 1028b 35)

“Em primeiro lugar, façamos acerca disso alguns esclarecimentos de caráter lógico, a saber, que o que era para ser cada coisa é o que diz que ela é por si mesma.” (VII, 4, 1029b 20)

“Pois o que era para ser é o mesmo que a qüididade [ tí estí].” (VII, 4, 1030a 5)

“Há ciência de uma coisa quando conhecemos o que era para ser essa coisa.” (VII, 6, 1031b, 6)

“E chamo o que era para ser à substância [ousía] sem matéria” (VII, 7, 1032b, 14)

Vemos que o tò tí ên einai, além de ser realmente bem traduzido pela expressão proposta, está de acordo com essa idéia de colocação das coisas efetivamente existentes entre dois pólos: um que o antecede como projeto não realizado e seu télos, uma vez que todas coisas tendem a um bem, como já citamos na passagem da Ética a Nicômaco. Uma vez situado entre esses dois termos, o particular é tomado como carente em termos ontológicos, tendo o conceito do que era para ser como sua possibilidade de compreensão. O que ressoa, uma vez mais, aquela determinação mítica tríplice da transcendência em relação ao profano.

A determinação da carência do particular por sua contingência material é algo que, no plano da obra aristotélica, apesar de explicitar a cumplicidade cósmica de todos os entes, é pensado em termos propriamente teóricos, epistemológicos. Na experiência comum dos homens, ela permaneceu, transmutada, como lamento constante em relação à imperfeição do mundo, ou seja, com um conteúdo prático, vivencial, que 170 Martin Heidegger. Les Problèmes fondamentaus de la phenomenologie. Paris: Gallimard, 1975, p.56. Apud Maria do Carmo Bettencourt de Faria. “O que era para ser. Ensaio sobre uma nova leitura da essência”. In: Classica. Suplemento 1. Belo Horizonte: Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos, 1991, p.56. 171 Maria do Carmo Bettencourt de Faria. Op. cit., p.58. 172 Maria do Carmo Bettencourt de Faria. Op. cit., p.58.

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tende a fazer com que leiamos todas as coisas a partir, não apenas do que era para elas serem, mas, sim, do que queríamos que elas fossem. No uso comum dos conceitos na vida cotidiana, esse déficit ontológico transforma-se em um déficit lógico-volitivo. O prisma não é o do theorós aristotélico, mas de um oréxis [desejo], que coloca como substrato da coisa o desejo que se tem do que ela fosse.

Talvez possamos ver aí algo que caracteriza propriamente a burrice, como uma poluição emocional, volitiva, do nosso contato com o mundo, em que, em vez de nos abrirmos à objetividade das coisas, à sua verdade, usamos de um idealismo de quinta categoria, espraindo os tentáculos de nossa ânsia de colar nosso desejo a elas.

No último fragmento do livro de 1947, Adorno e Horkheimer falam da burrice como cicatriz, como algo decorrente de inumeráveis impedimentos de algum exercício de contato com o mundo, que acabam enrijecendo uma porção de nossa mente que queria se dirigir a esse locus da realidade. Tal como um caracol, que retira sua antena de um lugar que o agride, e demora cada vez mais a colocá-la para fora se o perigo se repete, a burrice seria o resultado do entrave constante em relação a nosso desejo em relação ao mundo, fazendo com que as perguntas sobre o mundo se tornem desajeitadas, sem rumo definido, como se quiséssemos escapar daquele perigo vivenciado outrora (cf. DA 274-5/239-40).

Essa idéia dos autores está de acordo com o que falamos, só que ela limita a genealogia da burrice ao que contraria os desejos em relação à nossa atuação no mundo. Cremos que a falta de inteligência também residiria naquele aspecto mais amplo, em que o desejo se alastra por todo o campo perceptivo, de tal modo que o valor gnosiológico das coisas é, ao mesmo tempo, o volitivo. A incapacidade de resolver um problema, de achar uma saída, uma solução, estaria vinculada a um medo de que o objeto se mostre como aquilo que não queríamos que fosse ou — o que é psicanaliticamente mais forte — que ele seja exatamente o que esperávamos, mas para o qual nos impedimos sistematicamente.173

Cremos que essa argumentação seja suficiente para que vejamos que a dimensão imagética do mito continua a existir na assimilação conceitual do mundo, mesmo sem que seja percebida, uma vez que ela produz sistematicamente uma opacidade em relação à nossa percepção de sua presença.

É preciso ver, agora, como Adorno nega dialeticamente cada um dos elementos que vimos na relação entre a imagem mítica e a realidade. b) Nome, idéia e reconciliação

Nossa hipótese de leitura do pensamento adorniano a partir da sublimação da imagem mítica no conceito nos parece assaz profícua hermeneuticamente, porque, a partir dela, podemos delinear com clareza os três pólos através dos quais se estende o processo de reflexão crítica do pensamento na Dialética negativa. São eles: a dimensão pregressa do conhecimento preenchido ontologicamente, a condição atual de carência do particular em relação ao que possibilita sua intelecção e a escatía de salvamento desse 173 Uma das vantagens do pensamento racionalizado parece residir precisamente no cultivo da abstração do valor emocional das idéias que nós temos para explicar o mundo. O velho lema de Max Weber teria seu co nteúdo de verdade, não na pretensa ausência de valores para ler os fatos, mas, sim, na perspectiva axiológica de que, embora todos os nossos conceitos contenham valores de várias espécies, nossa explicação do mundo não deve conter um valor emocional, sentimental, para nós, de tal modo a que não nos sintamos abalados emocionalmente por termos tais idéias jogadas por terra. Querer proteger essas idéias como se elas fossem parte daquilo que estabelece o valor para nossa pessoa somente polui o discurso teórico, científico, filosófico. É precisamente esse curto-circuito entre saber e viver que produziu todos os horrores da inquisição: se você está co ntra mim, fogueira, se está a meu favor, riquezas.

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particular. Cada um desses é assumido e, ao mesmo tempo, negado. Ao primeiro, Adorno relaciona o nome, ao segundo, o vínculo entre o particular e a idéia, e ao terceiro, a reconciliação. Vejamos cada um deles.

α) Nome

A Dialética negativa tem, como seu fio condutor mais geral, aquilo que Carl Braun falou em relação à filosofia de Adorno como um todo: pensar a relação entre o particular e o universal. Como procuramos mostrar longamente no segundo capítulo, a abstração tende a exercer um achatamento das particularidades, uma violência em relação à sensibilidade, que é subsumida em um meio abstrato que toma cada coisa como exemplar do que é explicitado no conceito. Mas e o nome próprio? Não seria algo puntual, algo que aponta para o tóde tí (isso aí)? Ora, os nomes próprios atuais, embora tenham sua aplicação particular, não estão ligados intrinsecamente a seus objetos. Segundo Walter Benjamin, a linguagem pode ser entendida como se tivesse possuído, em um tempo primordial, a mesma força de presentificação gnosiológica das coisas, quanto a possuía o verbo divino de criação delas. O homem conhecia as coisas na medida em que lhes dava nomes, como extensão do poder divino de criar a partir da fala, ao passo que as próprias coisas também possuíam uma linguagem, mas sem palavras, muda. A queda do paraíso representou uma mudança radical, em que a linguagem passou a ter o seu teor semântico externo a ela, na medida em que passou apenas a transmiti-los, ao passo que no ato primevo de nomeação, tratava-se de algo inerente à palavra. Em vez de presentificação gnosiológica, tem-se agora mera comunicação.174

Essa concepção de verdade da linguagem enquanto nomeação é propriamente mítica, na medida em que a verdade seria concebida como uma espécie de restauratio do ato primevo de criação da particularidade a partir da infinitude do poder divino de gerar a partir do verbo. A justiça ao particular está vinculada ao fundamento rememorativo de uma conjunção imediata entre o universal divino e a particularidade da criatura. Destarte, a puntualidade do nome é pensada como ideal de verdade do conceito filosófico, uma vez que é aquilo que, na palavra, relembra aquele ato original de criação.

A reflexão de Adorno é uma secularização e uma negação determinada dessa idéia benjaminiana altamente religiosa. Segundo ele, um pensamento que não fizesse violência ao particular “tem seu longínquo e obscuro modelo no nome, que não sobrecarrega categorialmente a coisa, mas ao custo de sua função cognitiva” (ND 61). Ele toma da formulação de Benjamin a idéia de que o ato de nomeação/criação toma o particular como fim em si, ao passo que a síntese intelectiva, como material.

Adorno não pode assumir a dimensão religiosa do pensamento benjaminiano, segundo cremos, porque ela ressoa perigosamente algo que vimos na origem da razão esclarecida: o reconhecimento do poder como fonte de intelecção de tudo, em que os homens puderam reconhecer a si mesmos e ver-se diferentes do mundo na medida em que se igualaram aos criadores de todas as coisas.

A gratuidade da criação, estampada na auto-teleologia do próprio ato criacionista/nomeante, é que coloca, ao mesmo tempo, aquilo que fará com que o nome sirva a Adorno como modelo do pensamento filosófico, mas que o leva, segundo essa nossa leitura, a ter que rejeitá-lo. Ela ressoa fortemente um constituinte da relação da narrativa mítica com o mundo, pois a mesma dívida que a criatura passa a ter em relação ao criador, o objeto, de modo sublimado, continua a ter em relação ao sujeito. Essa graça 174 Cf. Rodrigo Duarte. “Expressão como fundamentação”. In: Adornos. Nove ensaios sobre o filósofo frankfurtiano. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997, p.176.

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do ponto de vista do objeto é introvertida, assumida de modo sublimado pelo sujeito como orgulho de ter podido dar ao obiectum aquilo que lhe subjaz como condição de sua possibilidade: o poder criacionista do conceptum. Quanto mais autotélico o ato de criação/nomeação, tanto mais o sujeito, proud of himself, espelha a imagem de um deus que se contenta em ser puro poder. Nossa idéia é que Benjamin somente considerou o lado do objeto no conceito de ónoma/génesis/gnose. Do lado do sujeito, essa força de instauração onto-epistemológica do nome é devedora de tudo aquilo que leva a uma negação abstrata da natureza.

O distanciamento de Adorno frente a essa assunção do poder cognoscente do nome já se mostra na qualificação de “longínquo e obscuro” para o vínculo paradigmático do nome para o conceito filosófico. Além disso, o nome, enquanto desprovido desse poder mágico/místico, não tem poder epistemológico, pois, apesar de se dirigir para o objeto, não retorna dele como extraindo-lhe uma determinação objetiva. Mas a crítica explícita e decisiva ao poder cognoscente do nome reside na falta total de abstração frente ao objeto: “um conhecimento não-restringido almeja aquilo perante o qual foi adestrado a resignar-se e para o qual os nomes ofuscam, pois estão próximos demais; resignação e ofuscamento completam-se ideologicamente” (ND 61). Tanto a extrema abstração do número da fórmula da física matemática, quanto a imersão do nomen na particularidade do hic et nunc não fazem justiça ao particular, posto que ambos acabam por suprimir a distância mediada entre o sujeito e o objeto, que é necessária para que nenhum dos dois seja sacrificado em função do outro.175

A puntualidade do nome tem sua maior importância para Adorno como índice de insuficiência do conceito, que situa-se abstratamente além da espessura ontológica do particular. Mas como renunciamos a um contato mágico/criacionista com as coisas, resta-nos assumir que temos que nos haver com a universalidade conceitual, mesmo com toda a injustiça que sua abstração comete contra o singular:

Somente conceitos podem realizar, o que o conceito impede. O conhecimento é um τρωσας ιασεται176. O erro determinável de todo conceito obriga a invocar outros; nisso surgem aquelas constelações, nas quais unicamente sobrevive algo da esperança do nome. A este aproxima-se a linguagem da filosofia através de sua negação. O que ela critica nas palavras, seu anseio de verdade imediata, é sempre quase a ideologia da identidade positiva, existente, entre palavra e coisa. (ND 63)

A consciência da necessidade de colocar os conceitos de forma constelatória, advém do reconhecimento de que a identidade mítica entre palavra e coisa, que ressoa como pretensão muda em cada ato identificatório, é falsa. A própria tarefa auto-reflexiva de Adorno é realizada, em termos de sua performance escritural — já na Dialética do esclarecimento, mas de modo programaticamente enfático na Dialética de 1966 —, através de um esforço de distensão dos limites da linguagem como um todo, dos conceitos, das idéias, das palavras, das frases, dos parágrafos, etc. Trata-se de trazer para a escritura — usando um termo de Derrida — algo da imagem: um conjunto de elementos sensíveis (conceituais no caso da filosofia) em uma inter-relação que não seja subsumida em uma totalidade maior e externa.

Somente constelações representam, de fora, o que o conceito retirou no interior, o “mais”, que ele tanto quer ser, quanto não pode sê-lo. Na medida em que os conceitos se agrupam ao redor da coisa a ser conhecida, determinam potencialmente seu interior, alcançam, pensando, o que o

175 Isso é mais um dos indícios que mostram o quanto são equivocadas as interpretações de Adorno que o vêem como fazendo a apologia de um retorno à natureza. 176 Ferida aberta.

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pensamento necessariamente extirpou de si. O interno do não-idêntico é sua relação com o que ele mesmo não é e com o que sua identidade com si mesmo organizada e congelada lhe recusa. (ND 164-5)

O que pôde ser assumido por Adorno da idéia benjaminiana do ato nomeante/cognoscente é a teleologia particularizante do nome e sua inevitável consciência da insuficiência do conceito perante o particular. É precisamente esse minus essencial do conceito em relação ao particular que está envolvido na idéia da metafísica tal como Adorno a considera em sua validade.

β) Idéia

A identidade conceitualmente estabelecida não pode ser negada abstratamente. Na predicação conceitual, lógica, de algo em relação a um sujeito, do tipo A é B, “isso é um livro”, existe uma relação tensa, dialética, entre o que é empiricamente determinado e aquilo que o ultrapassa:

Já no juízo identificador simples, o elemento pragmático, dominador da natureza, é aco mpanhado de um elemento utópico. A deve ser aquilo que ele ainda não é. Tal esperança vincula-se contraditoriamente ao lugar onde a forma da identidade predicativa é interrompida. Para isso a tradição filosófica teve a palavra “idéias”. Elas não são, nem χωρις177, nem eco vazio, mas, sim, sinal negativo. A inverdade de toda identidade alcançada é a forma reversa da verdade. As idéias vivem nos espaços entre o que as coisas aspiram a ser e o que elas são. (ND 153)

A posição de Adorno é bastante parecida ao que vimos no tò tí ên einai de Aristóteles. A recusa da separação platônica das idéias já é algo que o estagirita havia enfaticamente realizado, colocando sua exigência de pensar a essência manifesta. A negatividade da determinação ontológica das coisas, ou seja, de sua falta de ser comparada ao conceito já está explícita no que era para ser. Mas, é evidente, já não se compartilha, desde Kant, o anseio metafísico de querer alcançar a própria essência das coisas. Adorno coloca as idéias em uma posição intermediária, entre a concretude das coisas e a transcendência conceitualmente estabelecida. Esta última, como já em Aristóteles, estabelece um télos de plenitude de ser, a que as coisas aspiram. Isso é assumido enfaticamente por Adorno, que liga tal idéia à noção de esperança, a que já tivemos a oportunidade de nos referir como essencial para a idéia de verdade.

Dado o estado de opressão dos homens e da natureza, dada a violência cognitiva e prática a que ambos estão sujeitos, o conceito, com sua universalidade, contém uma determinação bem mais ampla, irrestrita, que o singular oferece em sua particularidade concreta. Esse plus do conceito perante este último é que estabelece aquilo que Adorno qualifica como a esperança do singular em vir a ser mais do que ele é, através da idéia que se tem dele. Isso é exemplificado por ele através do conceito de liberdade. Que se diga de um homem que ele seja livre, isso não diz da especificidade multifacetada de suas experiências, pois estas são sempre mais difusas e sobredeterminadas do que uma expressão conceitual seria capaz: “o conceito de liberdade permanece sempre atrás de si tão logo é aplicado empiricamente” (ND 154). Mas, por outro lado, se nosso conceito de liberdade somente tivesse validade na adequação do tipo positivista dessa idéia àquilo que nós experimentamos no mundo atual como liberdade, então somente teríamos um conceito muito pobre de liberdade. Entre o que estipula o conceito universal e a coisa concreta há um espaço, que é o da esperança de as coisas serem diferentes.

177 Separadas.

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Essa esperança tão fundamental em Adorno é algo pensado como tarefa conscientemente colocada para o pensamento filosófico. Por causa disso, vemos que a carência do particular na sublimação conceitual da relação com a imagem mítica difere da que Adorno fala, devido ao fato de que, lá, a força de presentificação do sentido do mundo foi transmutada em uma dimensão cognitiva que é ofuscante em relação à sua dimensão prática latente. No caso de Adorno, essa dimensão prática subterrânea é uma vez mais sublimada, e, agora, em vez de abandonar ao ente singular essa dimensão pseudo-prática, toma-a como uma tarefa do ser humano. O aspecto filosófico dessa ressublimação mostra uma reflexão de segundo grau, na medida em que centra aquela dimensão prática de carência no conceito, deixando ao particular a carência onto-epistemológica, a qual a dialética negativa se esforça por desnudar aos nossos olhos. Trata-se de uma re-cognitivização que extrai a dimensão prática da carência do ente para elevá-la à consciência de si como constituinte objetivo do pensamento. O mundo das coisas se desfaz de sua indigência mítico-imagética, passando a ser visto como carente objetivamente, ou seja, não como projeção da carência vital do ser humano, de sua visão lógico-volitiva, mas, sim, como refletindo o sofrimento objetivamente imposto a todo particular pelo todo. A contradição do todo e do particular não mais se faz como culpa deste em relação àquele, mas, sim, como resultado da ação do primeiro em relação ao segundo. É tarefa precisamente do pensamento expor o quanto essa contradição pesa sobre o particular: é preciso fazer-lhe justiça. Nessa re-cognitivização operada em relação ao mito, ganha -se em termos prático-filosóficos com a desmistificação da praticidade inconfessa dos conceitos.

Mas a originalidade adorniana é mais visível no outro lado da moeda: o singular é mais que sua determinação universal, porque o conceito é uma forma de compreensão abstrata, ou seja, que abstraiu, retirou, muito das coisas para que possam ser pensadas. Por isso, o conceito é sempre visto como ultrapassando a contingência das coisas, mas como sendo insuficiente em relação a elas:

O singular é mais e menos que sua determinação universal. Mas porque somente através da superação daquela contradição, através, portanto, da identidade alcançada entre o particular e seu conceito, o particular, o determinado, viria a ser si mesmo, é o interesse do singular assegurar para si não apenas o que o universal lhe subtrai, mas, também, aquele “mais” do conceito em comparação com sua carência [Bedürftigkeit]. Ele experimenta isso, até hoje, como sua própria negatividade. A contradição entre universal e o particular tem por conteúdo que não há ainda individualidade e ela é ruim, onde se estabelece. (ND 154)

Essa identidade é ruim, porque obscurece o quanto o particular é oprimido, amputado,

nivelado, para que alcance tal identificação, que é algo da ordem da necessidade de

sobrevivência, de continuidade. Por isso Adorno pôde dizer que

identidade é a forma primeva de ideologia. Ela é fruída como adequação na coisa oprimida nesse contexto; adequação sempre foi também submissão a objetivos de domínio, e, assim, sua própria contradição. (…) A identidade torna-se instância da doutrina da adaptação, na qual o objeto, para o qual o sujeito deve se orientar, devolve a este aquilo que o sujeito lhe concedeu. Ele deve aceitar a razão contra a sua razão. Por isso a crítica da ideologia não é algo periférico e interno à ciência, algo limitado ao espírito objetivo e aos produtos do espírito subjetivo, mas, sim, filosoficamente central: crítica da própria consciência constitutiva. (ND 151)

Aquilo contra que Adorno mais se esforça por lutar é precisamente a aparência de resolubilidade do mundo em sua conformação e conformidade atuais. Ou seja, que este seja a medida da verdade de si mesmo, que é, talvez, a conseqüência mais

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funesta do positivismo aos olhos de toda a Teoria Crítica. Por isso a metafísica, com sua imagerie eidética, de essências que não se recobrem ao mundo como conjunto de fatos, não pode ser negada, segundo Adorno, pois “contestar que haja uma essência significa colocar-se no lado da aparência, da total ideologia, na qual, entretanto, a [própria] existência se transformou” (ND 171).

Nesse ponto, Adorno faz uma crítica um tanto surpreendente a Nietzsche, que, “opositor irreconciliável da herança teológica na metafísica, rejeitou a diferença entre essência e fenômeno, e relegou o mundo escondido [Hinterwelt] aos que se escondem nas florestas [Hinterwäldler], unificando-se ao positivismo em geral. Em nenhum outro lugar, talvez, seja tão perceptível o quanto os homens sombrios se utilizam do esclarecimento infatigável” (ND 171). Naturalmente que não é o caso, aqui, de adentrarmos naquilo que seria uma resposta nietzscheana a essa crítica, mas queremos observar que a comparação entre o filósofo da Gaia ciência e o positivismo é inadequada, uma vez que este último, como vimos, nega a transcendência das idéias metafísicas devido ao anseio de considerar o mundo como conjunto de fatos manipuláveis cognitiva e tecnologicamente. Não entra em jogo, em hipótese alguma, a consideração valorativa da tensão entre os particulares, como situados em um campo de força, que, segundo Nietzsche, estabelece o fluxo da vida que quer se afirmar. Esse plus de ordem prática como constituindo o sentido da doutrina de Zaratustra, a transmutação de todos os valores, faz com que a negação da transcendência metafísica em Nietzsche não possa ser igualada, sem mais, à dimensão gnosio-tecnológica da consideração positivista do mundo dos fatos como medida de si mesmo. Vamos além: talvez a radicalidade da negação nietzscheana da transcendência metafísica possa ser pensada como um corretivo para a herança religiosa que permanece em Adorno, a qual pode ser claramente vista em sua idéia de reconciliação, que é o tópos filosófico da utopia, da liberdade para o particular, de sua liberação frente ao domínio da universalidade.178

γ) Reconciliação

A tarefa de Adorno de constituir um pensamento que vá além da dicotomia entre identidade e diferença tem como mola propulsora a consciência daquela insolubilidade recíproca entre o particular e o universal. No particular determinado conceitualmente, “o conceito é sempre, ao mesmo tempo, seu negativo; ele amputa o que aquele próprio é e o que, todavia, não se pode dizer imediatamente, e o substitui através da identidade. Este ‘negativo’, ‘falso’, mas ao mesmo tempo ‘necessário’, é o palco da dialética” (ND 175). Se esse é o palco, o roteiro que dá a direção a ser seguida é a da idéia de uma identificação não-forçada entre o conceito e o objeto:

A dialética desenvolve a diferença, ditada pelo universal, entre o universal e o particular. Como a diferença, a ruptura entre sujeito e objeto que penetrou em toda a consciência, integra necessariamente o sujeito e rompe tudo que ele pensa, até o que pensa de objetivo, só pode encontrar seu fim na reconciliação. Esta emanciparia o não-idêntico, o desembaraçaria da coação espiritualizada, inauguraria a multiplicidade do diverso sobre a qual a dialética não mais teria qualquer poder. A reconciliação seria a rememoração deste múltiplo, que hoje aparece como anátema à razão, mas que estará então desprovido de hostilidade. À reco nciliação é que serve a dialética. Ela desmonta o caráter de coação lógica a que obedece; eis porque a acusam de

178 Mas note-se: falamos de correção , não de uma negação pura e simples, posto que a idéia de reconciliação, embora influenciada pela idéia judaica de proibição das imagens, não se iguala à dimensão religiosa desse pensamento. Dito de um modo paradoxal, podemos pensar a filosofia da vida de Nietzsche como negação determinada da idéia de reconciliação de Adorno. Entretanto, não temos como desenvolver essa idéia nesse nosso texto, pois extrapolaria demais seus objetivos. O que faremos é explicitar como a própria idéia de reconciliação em Adorno é pensada por ele como negação determinada da coerção mítica da identidade.

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panlogismo. (ND 18; tradução de Newton Ramos-de-Oliveira, inédita)

A reconciliação de que fala Adorno não significa, em hipótese alguma, uma identificação total entre sujeito e objeto, tal como uma imersão no indiferenciado, como se se tratasse de uma nostalgia por um estado de natureza perdido, ao qual se devesse voltar. A tão famosa quanto mal compreendida “rememoração da natureza no sujeito” de que já falavam os autores da Dialética de 1947 deve ser pensada como resultado da auto-reflexão do pensamento que tenta perceber o que há de múltiplo, de disperso, de contingente, de não totalmente unificado, na própria racionalidade, de modo a que a leitura simbólica que fazemos da natureza, tanto externa, quanto interna, não exerça a violência que o conceito sempre lhe impinge ao ser usado. Relembrar a natureza significa fazer justiça ao particular que é sempre o conteúdo da consciência que se forma a partir do aparato analítico-conceitual inelutável, ou seja, trata-se de um processo de auto-reflexão do pensar que, voltando-se sobre si mesmo, pode medir a injustiça que pratica aos entes que são seu objeto: “através dessa rememoração179 da natureza no sujeito, cuja realização contém a verdade elidida de toda a cultura, o esclarecimento contrapõe-se à dominação em geral” (DA 47/50 – tradução própria).

A natureza tout court nunca é, para Adorno, índice de verdade sobre o sujeito. É uma brutal incompreensão de seu pensamento considerar a natureza, em seu movimento espontâneo, como algo que seria qualquer modelo, mesmo que distante, para o agir humano. A natureza segue um fluxo cego, sem nenhuma forma de reflexão, sem nenhuma dimensão crítica, de distanciamento. Seu desenvolvimento, suas formas de ação nos animais, por exemplo, encerram o total sortilégio, que é o que se prolonga na cultura sob a forma da imagem mítica e de seu remanescente no conceito, a identidade conceitualmente imposta aos entes particulares. O conceito de reconciliação do espírito com a natureza deve ser visto do ponto de vista que o autor quis lhe dar, não de outro, saudosista, que é devedor da idéia de retour à la nature de Rousseau. Este último, sim, valoriza positivamente a natureza como modelo de vida, através da idéia do bom selvagem, por exemplo. Adorno, ao contrário, está definitiva- e absolutamente afastado dessa valoração. Contrariaria flagrantemente todo o esforço hercúleo de Adorno, e, a bem dizer, de toda a Teoria Crítica, tomar a natureza como parâmetro de vida para o ser humano. É certo que a expressão “rememoração da natureza no sujeito” pode, realmente, dar ensejo a interpretações rousseauísticas, mas o contexto em que ela é usada, já pela primeira vez na Dialética do esclarecimento, mostra que o que é entendido por natureza é tudo aquilo que se constitui como obiectum para a consciência, tanto interna, quanto externamente. Relembrá-lo significaria reconciliar-se com ele, ou seja, medir, através de um processo reflexivo, a distância que o conceito colocou entre a unidade da autoconsciência e seu objeto, para poder dar voz a ele.

Se se pensasse a natureza como modelo de vida para o homem, isso significaria a supressão da subjetividade, que seria propriamente o que apregoa o positivismo pretensamente desprovido de preconceitos, que anula o poder da subjetividade de transcender a factualidade do mundo. A auto-reflexão do pensamento, ao contrário, exige um plus de subjetividade, um fortalecimento do sujeito, não seu enfraquecimento ou sua naturalização. Sem esse reforço, não se poderia pensar uma reconciliação da consciência com a diferença qualitativa da natureza, que é o que está em jogo no pensamento que pretende a utopia.

179 Nesse ponto, Guido de Almeida traduziu Eingedenk por simplesmente “consciência”. A bem dizer, toda frase está mal traduzida.

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Na coisa, o potencial de suas qualidades espera pelo sujeito qualitativo e não por seu resíduo transcendental, ainda que o sujeito só se fortaleça para isto através da limitação própria da divisão do trabalho. Quanto maior a censura às reações do sujeito como meramente subjetivas, tanto maior é o número de determinações qualitativas da coisa que escapam ao conhecimento. (…) [No postulado da diferenciação qualitativa] de fazer a experiência do objeto (e a diferenciação é tornar a experiência do objeto uma forma de reação subjetiva), encontra guarida o momento mimético do conhecimento, o momento da afinidade eletiva entre o sujeito cognoscente e o conhecido. No processo total do esclarecimento, esse momento gradualmente vai se dissolvendo, mas nunca desaparece completamente enquanto não aceita anular a si mesmo. (…) Se esse momento se extinguisse completamente, a possibilidade de o sujeito conhecer o objeto se tornaria simplesmente incompreensível e a racionalidade desenfreada se tornaria irracional. (ND 54-5; tradução de Newton Ramos-de-Oliveira, inédita)

Dito de uma maneira paradoxal, quanto menos do sujeito se exige, como um mero poder calculador e “colecionador” dos dados sensíveis estampados no pensamento como borboletas empalhadas sob o título de sentenças protocolares, mais reificação e mais subjetivismo, pois toda a atividade do espírito fica reduzida a um instrumento de exercício do poder de manipulação do material amorfo da natureza. Tal como psicologismo é o excesso da consideração psicológica em um fenômeno, ou o sexismo o é em relação ao aspecto da diferença de gênero, etc., o subjetivismo seria precisamente a preponderância exacerbada da teleologia social na lida com a natureza. Quanto menos sujeito individual, mais a violência dos fins impostos socialmente têm espaço para se fazerem presentes, esmagando tendencialmente as possibilidades de crítica deles. O que Adorno quer mostrar — e talvez isso seja o objetivo mais importante da Dialética negativa — é em que consiste o que ele chama de Vorrang des Objekts [primado, primazia, preponderância, do objeto].

A Dialética negativa, como um movimento do pensar que pretende romper sua ilusão de auto-suficiência, pretende apontar para a reconciliação entre sujeito e objeto, na medida em que, invertendo a prioridade subjetiva de todo o idealismo alemão de Kant a Hegel, almeja mostrar como o sujeito, que se percebe constituinte do objeto, é na verdade, mediado por este. Isso não significa que o objeto tenha um acesso franco e direto à consciência, como se não houvesse a necessidade da mediação subjetiva em relação ao objeto. Não se trata de restaurar aquilo que a escolástica pretendia como uma intentio recta, ou seja, um dirigir-se não-mediado ao obiectum, à sua essência — isso está totalmente fora de questão; o que se pretende é fazer justiça ao particular através da intentio obliqua da intentio obliqua, ou seja, uma refração sobre a refração que o conceito exerce sobre o objeto.180 O que Adorno quer dizer é que um é mediado pelo outro: “o sujeito não é, na verdade, nunca totalmente sujeito; o objeto, nunca totalmente objeto; entretanto, nenhum é parte de um terceiro que os transcendesse” (ND 177). Ora, mas se há essa dupla mediação, porque Adorno fala da preponderância da mediação objetiva em relação ao sujeito? Por que ele não quis falar de um nivelamento dos dois nessa interdependência recíproca?

Primeiramente, o sujeito deve ser pensado como também objeto, na medida em que, sendo uma consciência que opera com um obiectum, precisa ser algo. Mesmo para ser pura atividade como quer o idealismo transcendental de Kant, é preciso que o sujeito seja algo, posto que qualquer atividade somente pode ser exercida se referida a um agente. E isso não depende das circunlocuções racionalistas de Descartes que pretendia chegar à idéia de res cogitans pela negação de todo e qualquer conteúdo do pensamento. Pelo contrário. O que mostra precisamente esse aspecto de coisa do pensamento é o fato de

180 Cf. Theodor W. Adorno. “Sujeito-objeto”. In: op. cit., p.188.

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que ele sempre e inelutavelmente está ligado algo sobre o qual exerce seu poder de intelecção. O fato de necessitar da ligação com alguma coisa para se conhecer como agente mostra que o sujeito é também mediado pelo objeto. Se toda e qualquer atividade da consciência somente pode ser o que é pelo fato de que há, existe, alguma referência a um objeto, então a conseqüência que Adorno tira é a de que, se o conceito é uma mediação intransponível para o objeto, a matéria deste também é uma mediação para o sujeito.

O sujeito é radicalmente mediado pelo objeto, também, pelo fato de que todas as categorias e formas intuitivas de que se serve o indivíduo já são preformadas pela dinâmica histórica do contato do homem com o mundo. Essa dinâmica é propriamente social: “a sociedade é imanente à experiência e não allo genos181. Somente a tomada de consciência do social proporciona ao conhecimento a objetividade que ele perde por descuido enquanto obedece às forças sociais que o governam, sem refletir sobre elas. Crítica da sociedade é crítica do conhecimento, e vice-versa”182. O homem aprende a lidar com as coisas lidando com elas, e o modo como se pensa, hoje, reflete precisamente o que se aprendeu ao longo de milhares de anos com tal contato. Logo, ao se ver um objeto, todo o arsenal intuitivo e intelectual já está formado pela história da coisa que se sedimentou nele. O mundo, tanto da natureza, quanto dos homens é uma realidade sócio-empírica:

Que os dados, segundo sua pretensão, sejam percebidos assim e não de outra maneira é algo pelo qual se preocupa a ordenação pressubjetiva, que, por sua vez, constitui essencialmente a subjetividade que seria a constituinte segundo a teoria do conhecimento. (ND 173)

Nesse ponto, a análise adorniana do sujeito transcendental kantiano é instrutiva. Ele é a suma inverdade, pois coloca todo o fulcro de rotação do real no âmago recôndito da alma humana, que teria precedência absoluta sobre toda consciência individual, empiricamente determinada. Mas essa suprema falsidade é índice precisamente de sua verdade mais pujante, posto que a conformação do particular é tão imposta por uma universalidade dominadora, que toda a sociedade acaba contendo realmente esse caráter apriorístico extremamente opaco em relação a todo e qualquer sujeito singular.

O a priori e a sociedade estão entrelaçados. A universalidade e a necessidade dessas formas, sua glória kantiana, não é outra coisa do que aquela que constitui como unidade os homens. Estes necessitariam dela para sua survival. Seu cativeiro foi interiorizado: o indivíduo não está menos cativo dentro de si que dentro da universalidade, da sociedade. Daí o interesse em reinterpretar sua prisão como liberdade. O cativeiro categorial da consciência individual reproduz o cativeiro real de cada indivíduo.183

A Dialética negativa tem como tarefa quebrar o encantamento [Bann] que o sujeito lança sobre o objeto e sobre si próprio, esse enclausuramento categorial, herdeiro da rigidez do destino mítico, que ele toma como a verdade mais pura. Essa ruptura é, ao mesmo tempo, uma forma de abrir o sujeito à objetividade do mundo, fazendo justiça ao objeto. Desse modo, não se pode pensar em justiça ao particular, às contradições, às diferenças qualitativas, etc., sem a idéia de reconciliação. Trata-se de duas noções entrelaçadas em Adorno. Não se faria justiça ao particular oprimido sem que se pensasse, ao mesmo tempo, que o sujeito tenda a se reconciliar com ele. “Reconciliação” e “justiça ao particular” significam praticamente a mesma coisa.

181 De outra espécie. 182 Theodor W. Adorno. “Sujeito-objeto”. In: op. cit., p.189. 183 Theodor W. Adorno. “Sujeito-objeto”. In: op. cit., p.192.

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(…) a dialética se lança sobre o conteúdo como algo que está aberto e não pré-fixado pela estrutura, ou seja, é oposição ao mito. O mito é o que é sempre igual e que, assim, acaba se diluindo na legalidade formal do pensamento. Um conhecimento que quer o conteúdo, quer a utopia. Esta utopia, a consciência da possibilidade, liga-se ao concreto como aquele que não está deformado. Quem barra a utopia é o possível e não o imediatamente real; no meio do que está estabelecido este aparece, portanto, como abstrato. O colorido que não pode ser apagado procede do não-ser. Quem o serve é o pensar, uma parte da existência [Dasein] que, por via negativa, alcança o que não é. A proximidade só começa na distância mais extrema; a filosofia é o prisma que capta seus coloridos. (ND 66; tradução de Newton Ramos-de-Oliveira, inédita)

Dois momentos chamam à atenção nessa passagem: 1) A idéia de que “quem barra a utopia é o possível e não o imediatamente real”. Ora, isso, segundo pensamos, somente pode significar que o estabelecimento positivo do possível obscurece mais a busca pela utopia, pelo diferente, pelo melhor, do que o olhar categorial dirigido ao existente empírico, pois este, mesmo prensado sob a armadura conceitual subjetiva, ainda não foi totalmente anulado em sua diferença, que ainda é perceptível, até mesmo pelo pensamento mais reificado; como vimos em uma citação acima, se o pensar extinguisse todo o seu conteúdo mimético, isso significaria a impossibilidade tout court do conhecimento — lembrando, aqui, aquela indicação que demos ao início do primeiro capítulo do gignóska, que tem, como um de seus significados, precisamente o de travar relações íntimas com. O estabelecimento positivo do que seria a reconciliação entre sujeito e objeto é propriamente ideológico, posto que falsifica aquilo a que se deve aspirar, mesmo se a realidade atual não deixe entrever o que ela seria. A esperança de um mundo melhor somente pode ser legitimada, segundo Adorno, através da negação obstinada de todo e qualquer conteúdo positivo para esse télos:

O que seria diferente ainda não começou. Isso afeta todas as determinações singulares. Cada uma que aparece como não contraditória mostra-se tão contraditória quanto os modelos ontológicos Ser e Existência. Nada positivo é alcançável pela filosofia que fosse idêntico a sua construção. No processo de desmitologização, a positividade deve ser negada até o cerne da razão instrumental, que almeja a desmitologização. A idéia de reconciliação proíbe sua colocação positiva no conceito. (ND 148-9)184

2) O outro momento daquela passagem acima que deve ser ressaltado é a idéia de que é somente a abstração conceitual que pode fazer justiça à utopia do pensamento; somente ela poderia extrair da factualidade do mundo aquilo que subjaz a ele como o que não foi deformado. A utopia liga-se necessariamente àquilo que a obscurece. A continuação da última passagem que acabamos de citar é: “entretanto, a crítica ao idealismo não despreza aquilo que a construção alcançou em discernimento a partir do conceito, e o que a condução dos conceitos ganhou em energia a partir do método” (ND

184 Esse tabu da positividade da reconciliação foi de certa forma quebrado por Adorno na Minima Moralia, em que ele diz que não se deveria pensar um estado reconciliado em que todas as potencialidades humanas fossem desenvolvidas e exercitadas, em que toda a riqueza interior do homem se atualizasse, etc., pois tudo isso ressoa a ânsia de produção cada vez maior inerente ao estágio capitalista da humanidade. Em vez disso, trata-se simplesmente de que “ninguém passe fome”.

Ora, mesmo que não houvesse ninguém no mundo que passasse fome, que não houvesse mortes por desnutrição, que houvesse alimentos suficientes para todos, mesmo assim — chega até a ser evidente — toda a humanidade poderia não passar de um fantoche nas mãos dos grandes trustes internacionais, que talvez pudessem, em um vislumbre de um futuro possível, sustentar sua primazia e poderio econômico -político precisamente através do discurso ideológico de que ninguém mais no mundo tem fome: “vejam como é bom que estejamos no poder! Antes, muitas pessoas morriam de fome, mas hoje nenhuma nem sequer chega a senti-la!”. Toda a desgraça do depauperamento da sensibilidade através da indústria cultural e da publicidade poderiam elevar-se a escalas telúricas, acompanhadas pela ideologia do “alimento para todos” — o que está, evidentemente, anos-luz de qualquer coisa que se conceba como reconciliação.

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149). É precisamente essa necessidade de se utilizar dos conceitos que nos leva ao último item desse capítulo, que se dedica a mostrar em que consiste a constituição da verdade como algo processual. 4. Negação determinada da identidade: a dimensão intra-temporal do pensamento

A posição adorniana em relação ao que a razão tem de falso é muito clara: não se trata de negar a força imanente ao pensamento identificatório. Toda a “energia” do conceito que é capaz de sintetizar o múltiplo e dar-lhe uma unidade espiritual deve ser aproveitada. De várias críticas que se lhe fazem, a de irracionalista talvez seja a menos adequada de todas. Adorno não nega abstratamente a identidade conceitual. O que é necessário é o reconhecimento da falsidade envolvida nessa unificação violenta dos particulares, de tal modo que o pensamento se coloque em marcha para se corrigir:

Devemos nos opor à totalidade, na medida em que ela é demonstrada não-idêntica a si mesma. Por isso, a dialética negativa está ligada, em seu início, à mais elevada categoria da filosofia da identidade. Nessa medida, ela também permanece falsa, lógico -identitária, permanece até mesmo aquilo contra o qual ela pensa. Ela tem que se corrigir em sua démarche crítica, que afeta aqueles conceitos, os quais ela trabalha como se fossem, também para ela, os primeiros. (ND 150)

Apesar de o próprio Adorno ter sido sempre avesso a definições, elas podem ser úteis em um texto que pretenda explicitar seus argumentos. Embora qualquer conceito de verdade a partir de Adorno seja bastante múltiplo e com várias determinações, nesse aspecto que estamos enfocando nesse item, uma das definições que poderíamos lhe dar com base na Dialética negativa e que condensa algumas idéias que já expusemos é: a verdade das coisas reside apenas no processo reflexivo de desfalsificação do discurso por si mesmo. Essa expressão contém diversas idéias-chave do pensamento adorniano:

1) O real, e não apenas o pensamento, é falso; isso porque aquele é resultado de um processo histórico de supressão das diferenças, da liberdade, em função da integração homogeneizadora ao todo social, “onde nada é realmente real porque tudo obedece à lei de troca”185. O pensamento que se queira verdadeiro por sua adequação ao real empírico imediato é falso por duplicar a injustiça subjacente aos próprios fatos. — Nesse ponto vemos uma semelhança curiosa entre Platão e Adorno, uma vez que ambos consideram a factualidade do mundo como residuais em relação ao âmbito universal do pensamento, só que por motivos totalmente diferentes, pois o primeiro fala desse minus ontológico do real a partir da comparação frente a uma plenitude congregada na Idéia, ao passo que o outro fala da carência do particular como resultado objetivo da violência imposta a ele pelo pensamento.

2) É inicialmente necessário que o pensar tome consciência dessa falsidade do real, ou seja, do que, em termos históricos, decantou-se nas coisas como sua determinação atual e que é tomada como verdade factual para o pensamento alheio à reflexão segunda sobre si mesmo. A ciência, diz Adorno, tem uma reflexão primeira; ela é, na verdade, mais um fluxo ditado pela premência de domínio cognitivo-operatório, do que um re-fluir da razão sobre si mesma. É preciso dar um segundo passo: “a dialética, ao mesmo tempo cópia do contexto universal de ofuscamento e sua crítica, tem que se voltar contra si mesma em um último movimento” (ND 397).

3) A verdade (digna desse nome, para além dessa constatação da falsidade do real e do pensamento) somente pode ser alcançada como mediação no interior do próprio pensamento; isso significa que seria ilusório tentar perceber a verdade de modo imediato

185 Lambert Zuidervaart. Adorno’s Aesthetik Theory. The Redemption of Ilusion. Cambridge: MIT Press, 1991, p. 181.

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na realidade, como se ela já existisse: “não há vida correta na falsa” (MM §18, p.33). Através dessa idéia de inevitabilidade de mediação do pensamento em relação a si próprio, com sua conseqüente assunção de sua falsidade, poderíamos lembrar a falsidade da tentativa habermasiana de conceber uma racionalidade não-repressiva na esfera da comunicação. A oposição dos dois autores é bem explícita: enquanto Habermas tenta escapar da violência do pensamento, procurando na intersubjetividade um refúgio contra ela, Adorno assume, reelabora e nega a violência armazenada nas formas conceituais.

4) Tal mediação é algo processual, ou seja, algo que está imbricado com a historicidade imanente ao próprio discurso. Aquela filosofia que nega essa determinação histórica negaria, como conseqüência direta, a única possibilidade de fazer justiça ao conceito de verdade. Tal historicidade também é prospectiva, como tarefa, como télos imanente ao discurso, que se realiza em uma marcha cujo fim não necessariamente tem que ser vislumbrado para que possamos conceber a legitimidade de seu próprio caminhar. Mas além disso: essa dupla determinação temporal, ou seja, de retrospecção histórica e de prospecção teleológica, dizem respeito ao próprio homem: “o que o ser humano deva ser em si é sempre aquilo que ele foi: ele é preso nas rochas de seu passado. Mas ele não é apenas o que foi e é, mas, também, o que ele pode vir a ser; nenhuma determinação é suficiente para antecipar isso” (ND 6).

5) Trata-se de uma verdade das coisas, ou seja, não se trata de mero construto idealista que se fecharia em si e atribuiria sua verdade aos objetos: “a verdade é objetiva e não plausível” (ND 52). Ela não é nem imediatamente perceptível, nem dispensa a mediação subjetiva. Não inclui a idéia de uma junção total de sujeito e objeto. A separação entre estes é algo, ao mesmo tempo, real e falso, pois, em termos históricos, ela realmente se sucedeu como única forma viável de auto-compreensão do sujeito, e reconhecer essa cisão faz parte do conhecimento verdadeiro, mas é falsa enquanto hipostasiada em um construto que ignora as determinações de natureza no próprio pensamento, ou seja, que mascare o quanto o sujeito é mediado pelo próprio objeto.186

6) Tal processo somente pode ser pensado a partir do próprio pensamento, o que significa considerar que a racionalidade ainda deve ser predicada nele, apesar de ele voltar-se contra sua positividade primeira. Isso exclui qualquer possibilidade de intuições originárias da essência, da apreensão de dados imediatos para a consciência, etc. Além disso, recusa totalmente a possibilidade de que seria possível que se tivesse um acesso ao que é múltiplo, disperso, de modo direto: “A mera tentativa de voltar o pensamento filosófico ao não-idêntico em vez de à identidade seria absurdo; ele reduziria a priori o não-idêntico a seu conceito e o identificaria assim” (ND 158).

Embora tenhamos insistido no item anterior na expressão “justiça ao particular”, a auto-reflexão quer, também, fazer justiça ao próprio pensamento, na medida em que pretende fazer com ele realmente alcance aquilo para o qual não obteve sucesso: instituir o reino da liberdade.

O que não suporta nenhum particular denuncia a si mesmo como o que domina de modo particular. A razão universal disseminada já é a limitada. Ela não é apenas unidade dentro da multiplicidade, mas, sim, como colocação frente à realidade, imposta, unidade sobre algo. É, assim, segundo sua pura forma, antagônica em si. Unidade é a cisão. A irracionalidade da ratio efetivada particularmente dentro da totalidade social não é externa à ratio, não é culpa apenas de seu emprego. É, antes, imanente a ela. Confrontada a uma razão plena, a vigente revela-se já, em si, segundo seu princípio, como polarizada e, nessa medida, irracional. (…) A razão onipotente, que se instala sobre um outro, estreita-se necessariamente a si mesma. O princípio de identidade absoluta é em si contraditório. Ele perpetua a não-identidade como oprimida e prejudicada. (ND

186 Cf. Theodor W. Adorno. “Sujeito-objeto”. In: op. cit., p.182-3.

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312-3)

Essa opressão prejudica, tanto o sujeito, quanto o objeto, pois mantém-nos em um sortilégio que exime da consideração da multiplicidade qualitativa em ambos. Como vimos, a hipóstase da unidade subjetiva leva a uma des-historicização da cultura. O próprio conceito é algo que tende sempre, segundo sua própria constituição, a reforçar a continuidade, a invariância, em detrimento da diferença, da efemeridade, da historicidade. Isso, segundo Adorno, é um arcaísmo do conceito, na medida em que ressoa aquela invariância eterna do fatum mítico (cf. ND 156), o sempre-igual [das Immergleich]. Ou seja, a diferença qualitativa está ligada ao processo, ao devir, enquanto a identidade, ao estático, ao fixo. Isso já havia sido falado até mesmo por Platão, no Teeteto, quando ele diz que a teoria da verdade de Protágoras como aparência, como aquilo que aparece a cada um se ligava ao fluir incessante de todas as coisas em Heráclito, ao passo que Parmênides se ligava àqueles que diziam da unidade e da perenidade do real.

A idéia de um primado do objeto como passo para a reconciliação com o sujeito inclui, portanto, dois elementos, tanto no lado objetivo, quanto subjetivo: a explicitação das diferenças qualitativas e a percepção da historicidade imanente. O pensamento somente pode fazer jus à sua ânsia de verdade, na medida em que percebe que, tanto o real, quanto o pensamento, são mediados historicamente. É preciso perceber que a aparente fixidez e naturalidade que o real possui é, embora socialmente necessária, mera aparência, posto que tudo o que existe somente tem a forma que possui devido ao fato de que se tornou assim sob condições específicas, historicamente determinadas.

Este devir desaparece e habita a coisa, e não deve ser, nem imobilizado, nem separado de seu resultado e nem esquecido. A ele assemelha-se a experiência temporal. Na leitura do ente como texto de seu devir convergem a dialética idealista e materialista. (…) Aquilo com que a dialética penetra seus objetos enrijecidos é a possibilidade sobre a qual a realidade efetiva lhes enganou e que, entretanto, se reflete em cada um deles. (ND 62)

Para poder explicitar essa história sedimentada nos objetos, o pensar precisa assumir a historicidade imanente a ele mesmo. Isso significa que, apesar de toda a crítica à tradição ter seu momento esclarecedor na medida em que se livra da hipóstase de elementos petrificados, ela pode redundar na falsidade de que o pensamento poderia começar ab ovo, sem perceber que toda a força que ele possui deriva precisamente da energia armazenada ao longo da história do pensamento:

Mesmo em sua forma subsistente sem conteúdo, o conhecimento participa da tradição como uma recordação inconsciente. Nenhuma pergunta poderia sequer ser formulada se o conhecimento do passado nela não estivesse se conservado e não continuasse atuante. A configuração do pensamento como intratemporal, motivado por movimento em processo, iguala antecipada e microcosmicamente a configuração macrocósmica, histórica, que está entranhada na estrutura do pensamento. (ND 63; tradução de Newton Ramos-de-Oliveira, inédita)

Toda a formação da racionalidade ocidental é contada pelo modo como se relacionaram as dimensões de devir e de estaticidade no pensamento. Via de regra, preponderou a segunda delas. Mesmo em Hegel, cujo projeto de filosofia inclui precisamente a ânsia de elevar o saber à consciência de si como desdobramento da verdade na história, acabou sucumbindo à estaticidade do fatum mítico, na medida em que todas as etapas da experiência da consciência estão a serviço do autoconhecimento do absoluto, que deve já estar pressuposto no início do trajeto, para que todas as outras figuras se mostrem como formas imprecisas do que ele é. Por isso é que Hegel pôde falar de uma astúcia da razão, que nega o particular como efêmero, contingente e que deve necessariamente perecer em vista da verdade congregada no Todo.

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Mas a estaticidade do pensamento está muito mais claramente visível na abstração lógica da ciência moderna matematizada e em sua contraparte funesta na filosofia, o positivismo. O projeto da dialética adorniana é o de reverter isso: “o processo da objetivação filosófica seria, metaforicamente dito, vertical, intratemporal, contraposto à quantificação horizontal, abstrata, da ciência” (ND 57).

Por outro lado, como já dissemos, a ausência de toda determinação identificadora, que pereniza o real, acaba degenerando no contrário do que pretendia: “a duração tornada absoluta, o puro devir, o actus purus se confunde na mesma atemporalidade, censurada por Bergson na metafísica desde Platão e Aristóteles” (ND 20).

Analisando a Dialética do esclarecimento, Friedrich Schmidt diz há que se ampliar a abrangência da negação da natureza enquanto pulsões, para negação da morte, que faz com que uma mortalidade terrena seja negada em função de um além da vida que a falsifica: “A história do desencantamento, da desmitologização e do esclarecimento fracassa até hoje não apenas na repressão da natureza no homem, mas, também, na negação da morte”187. Segundo o autor, a religião faz parte do processo de esclarecimento e sucumbe à sua dialética, uma vez que nega, não apenas a multiplicidade dos desejos e dos sentidos, mas, também, a experiência da própria finitude. Em relação a isso, embora sem se referir diretamente a Schmidt, Simon Jarvis diz que a morte já está inclusa na determinação da natureza enquanto algo a ser negado, posto que a natureza contém, em seu próprio conceito, o de efemeridade, de transitoriedade. Por nossa parte, dizemos que a dialética funesta do esclarecimento teve como seu elemento mais próprio, em relação a esse aspecto, o obscurecimento, a falsificação, o entrave, em relação àquilo que pudesse ser uma forma verdadeira de percepção da dimensão histórico-temporal do mundo, não apenas em relação a uma forma dessa historicidade se manifestar, como é o caso da morte.

Ora, se Kipfer está certo quando diz que a Dialética do esclarecimento “vê na marginalização e na liquidação do indivíduo, de sua individualidade, o signo essencial da negatividade do estado social (…)” e se os escritos posteriores de Adorno procuram “fazer justiça ao indivíduo, recuperar a individualidade através de uma teoria adequada a ela”188; se, como diz Adorno, a tarefa essencial da filosofia é a da objetivação intra-temporal, que pretende compreender a história sedimentada nos entes; se essa objetivação é aparentada à experiência temporal; se, como diz Kant, o tempo é a condição de possibilidade de todos os fenômenos, tanto internos, quanto externos; se Hegel está certo ao dizer que “o eu existe no tempo, e o tempo é o ser do próprio sujeito” (citado por Adorno, ND 325); e se, como dizem os próprios autores da Dialética de 1947, “a forma de organização interna da subjetividade” é o tempo (DA 54/56) — então não causaria surpresa no nosso leitor que Adorno não tenha se dedicado a explicitar em que consiste precisamente a experiência temporal, ou seja, a fornecer um conceito enfático de tempo? — É a isso que nos dedicaremos no último capítulo de nosso texto.

187 Friedrich Schmidt. “Die Vergeblichkeit des Opfers und die Irrealität des Todes”. In: Willem van Reijen & Gunzelin S. Noerr Verizig Jahre Flaschenpost: “Dialektik der Aufklärung” 1947 bis 1987. Frankfurt a. M.: Fischer, 1987, p.142. 188 Daniel Kipfer. op. cit., p.111.

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Capítulo IV

A experiência mimética do tempo

Nesse capítulo, pretendemos fazer uma aplicação dos conceitos que desenvolvemos ao longo das partes precedentes, de modo a construirmos um conceito da experiência histórico-temporal. Esse objeto de estudo tem sua relevância precisamente devido às noções importantíssimas vinculadas a ele que levantamos ao final do capítulo III — tanto no âmbito da identidade subjetiva, quanto na construção do discurso filosófico que transcenda as agruras da racionalidade instrumental. É preciso que se tenha claro, entretanto, que, embora trabalhemos com a noção de tempo, não pretendemos fornecer um conceito que faça justiça a toda a amplitude dos elementos envolvidos nela. Não nos interessamos em nada pela dimensão objetiva do tempo, tal como é, por exemplo, a intenção da física newtoniana e da teoria da relatividade. O que pretendemos tratar é propriamente da experiência dele, e isso em duas partes: primeiro, no processo de formação da consciência perceptiva do tempo dividido em passado, em presente e em futuro; segundo, na experiência do tempo histórico em termos de experiência estética.

Na primeira parte, nosso campo temático ainda é o da genealogia da esfera da subjetividade. Por causa disso, trataremos, basicamente, de três momentos da gênese da percepção histórico-temporal: a imagem mítica da origem, a teleologia da autoconservação na emergência da subjetividade na Odisséia e a interioridade distendida entre o paraíso, a queda e juízo final do homem cristão. Consideraremos ainda, sem muita ênfase, o papel do tempo enquanto forma da intuição pura em Kant e a história como desenrolar das etapas de autoconhecimento do Espírito em Hegel.

Na segunda parte, trataremos daquilo que consideramos a experiência do tempo histórico tal como fazendo justiça à importância filosófica desse conceito. Para isso, tomaremos a arte moderna como aquilo que estabelece os parâmetros para o que chamamos de uma experiência mimética do tempo, que, segundo pensamos, é o que foi falsificado, obscurecido, deturpado, ao longo do processo de constituição da subjetividade no ocidente no que concerne à experiência da percepção histórico-temporal. Dado que a arte tem, segundo Adorno, um enorme significado filosófico para se refletir sobre a própria racionalidade, pensar sobre a dimensão histórico-temporal da sua experiência congrega todos os conceitos que procuramos desenvolver até o presente momento de forma a percebermos a concretude do télos do pensamento como sua tarefa mais própria: ultrapassar, através de sua démarche crítica, a falsidade do real e de si mesmo. 1. A genealogia da percepção temporal

Falar sobre o tempo é algo realmente difícil. A enorme oscilação para seu estatuto ontológico: como algo objetivo, como uma realidade em si, como uma propriedade das coisas, como uma relação, como um modo de percepção, como simplesmente inexistente, como mera abstração, etc. — tudo isso mostra como sempre foi difícil um acordo sobre sua natureza, sobre sua especificidade. Tal é a inquietude de Santo Agostinho ao dizer o que é o tempo: “se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei”189. É como se nossa vivência mais imediata já estivesse satisfatoriamente esclarecida por nossa compreensão irrefletida, operacional, prática e pragmática com as coisas. Ao pretendermos fornecer um conceito

189 Santo Agostinho. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos. São Paulo: Abril, 1973, p.244. (Livro XI, item 14)

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da natureza do tempo já assumimos algo que nossa consciência cotidiana não precisava assumir: que o tempo tenha uma determinada natureza, uma qualitas. A vivência cotidiana pode assumir tacitamente que o tempo exista enquanto valor agregado ao fluxo das coisas, sem que seja preciso concebê-lo como existindo per se.

A questão que nos move é a de como se originou a percepção do tempo como dividido entre o passado, o presente e o futuro. Para isso, precisamos distinguir, inicialmente, três conceitos vinculados a essa questão: o devir, o tempo e a hi stória. a) O devir, o tempo e a história

O devir pode ser localizado, em termos de experiência com o mundo, em duas acepções básicas: 1) a percepção do fluxo incessante das coisas e de seus estados: o transformar-se, o vir-a-ser, o tornar-se, a mudança; 2) a consciência da continuidade, da perenidade, da permanência, do perseverar. Essas duas noções parecem contraditórias, pois dizem respeito, em sua formulação inicial, a dois elementos objetivamente situados de forma antagônica, isto é, o movimento e o repouso. Entretanto, algo as une: do ponto de vista interno, é a representação mental que considera uma linha de desdobramento variável possível para o que se tem como seu objeto. O devir seria vinculado propriamente à percepção de inquietude latente ou explícita para o que é objeto da consciência. Essa possibilidade intrínseca àquilo com o qual nos defrontamos marca a consciência de que, mesmo não se realizando, a mudança é sempre sentida como possível. Mas, como essa possibilidade é sempre presente, atual, o fluxo do tempo instaura-se como esse valor agregado à consciência da mesmidade da representação. Devido a essa definição, vemos que a eternidade, definida em Santo Agostinho como um eterno presente, sempre atual em toda sua extensão, é o contrário do devir, uma vez que ela exclui precisamente a possibilidade de mudança.

O devir pode ser caracterizado como algo essencialmente prático, de ação, posto que se relaciona à expectativa de mudança (ou de manutenção) de algum estado de coisas. Trata-se de um modo de se posicionar perante as coisas, um modo de percepção vinculado à vivência corporal, mental, a um exercício de atenção para com o fluir, com a instabilidade latente de todas as coisas. Diríamos que o devir é o aspecto mais concreto da percepção temporal, vinculado a um modus vivendi em relação a toda a realidade, interna e externa à consciência. Por isso, dizemos que ele seria algo que estaria, de alguma forma, já presente nos animais. Por mais precária que seja a conformação cerebral dos animais superiores se comparada à consciência humana, vemos que eles podem estimar instintivamente relações entre mais de um movimento de modo rudimentar, mas que já nos indicam que sua percepção do fluxo das coisas não é total e absolutamente caótico. Quando, por exemplo, um jaguar começa a correr em direção a um antílope, tem que ser capaz de estabelecer uma relação entre o deslocamento próprio e o da vítima, pois, se não conseguisse fazer um “cálculo” mínimo das coordenadas atuais e as que decorrem das velocidades, dificilmente as situações de caça teriam o sucesso que têm em várias situações bastante complexas. Quando, também, vemos um cão deixar de atravessar a rua porque um carro está próximo demais ou chega a atravessar quando o veículo está longe, isso somente pode ser entendido se pressupomos que ele possui, mesmo que de modo bastante precário, uma capacidade de vincular o movimento do carro com seu próprio movimento corporal. Em todos esses casos, vemos que a percepção atual do fluxo das coisas pode existir, mesmo sem nenhuma consideração abstrata, como a de uma representação das dimensões do futuro ou do passado enquanto tais.

Embora o devir possa ser dito como existindo para os animais, diríamos que o tempo não existiria para eles, e isso precisamente por causa do aspecto um tanto

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abstrato envolvido dessa noção. Para que possamos falar do tempo, é preciso que se tenha um parâmetro que possibilite avaliar, mensurar, o fluxo do devir de um ponto minimamente afastado dele. Embora não precisemos considerar o tempo como mera relação, ele possui, entretanto, uma dinâmica propriamente relacional, na medida em que somente se tem a consciência do tempo, não mais meramente como devir, quando é percebido como contendo, de alguma forma, mesmo que elementar, a sedimentação do locus do futuro e do passado. A nossa tese é que essa fixidez teve, como sua origem mais remota, a ação de produzir imagens do mundo. Uma vez que toda a realidade somente pôde ser apreendida inicialmente através de sua duplicação imagética, a cristalização do ícone que duplicava a realidade propiciou o ponto de partida para a gênese da consciência de referencialidade ao fluxo constante das coisas. A consciência somente pôde surgir no momento em que o devir pôde ser deslocado da vivência íntima do si-mesmo. Foi preciso que se cristalizasse um hiato entre o âmbito da consciência e o fluir de todas as coisas, de modo a que se pudesse estabelecer a transitividade referencial, que contém um elemento de in-tencionalidade para com a mudança dos estados das coisas. O elemento de duplicidade imagética fornece essa ponte, mas ainda fortemente vinculado ao próprio devir, uma vez que ela ainda é um produto que não se distingue radicalmente da própria ação de produzir, e do ser que é duplicado. Somente na cristalização imagética da palavra, da linguagem, é que podemos dizer que há a emergência do teor referencial forte para com o devir, de modo a que já se possa falar de tempo propriamente dito, pois somente na dimensão da linguagem é que temos uma âncora razoavelmente bem estabelecida para que se possa estabelecer uma relação entre elementos heterogêneos: idéia e coisas, ou seja, entre o fixo e o móvel.

Mesmo que as primeiras palavras ainda estivessem carregadas de forte teor imagético, entretanto elas obrigatoriamente já possuíam alguma abstração do meio lingüístico, pois senão não seriam palavras, e sim, imagens físicas. A abstração do elemento imagético strictu sensu operada na palavra não pode ser desconsiderada simplesmente. Trata-se de um passo importante, pois a palavra pôde congregar alguma coisa que não mais existe no âmbito dos animais, que é a noção de valor. Que os animais utilizem coisas como instrumentos, isso é indiscutível, pois até mesmo pequenos pássaros servem-se de gravetos para construir ninhos, atrair insetos, etc. Até mesmo a teia da aranha pode ser considerada um instrumento, pois é algo que somente vale em relação a uma outra coisa, que é a imobilização da vítima. Mas, dado o aspecto essencialmente prático, de ação, envolvido na vivência dos animais irracionais, todos esses objetos somente são instrumentos aqui e agora. Sua utilização está adstrita ao ímpeto de se servir dele dado pelo instinto, que deve sempre existir para que o objeto também seja percebido como vinculado a sua função. Essa pontualidade da relação prática com a coisa pode ser vista em casos nos quais um primata consegue manipular um objeto em uma situação até mesmo complexa de relacionar meios e fins, sendo que, após o uso, o instrumento é jogado fora. O primata, por mais surpreendentes que sejam suas ações de lidar com instrumentos, não os toma como ferramentas, ou seja, como algo em que se deposita uma relação um tanto abstrata que é a de valer, não somente aqui e agora para essa coisa, mas para outras do mesmo tipo e para outros fins, como instrumento de defesa, de caça, de moradia, etc. Desse modo, que algo possa valer de infinitos modos em situações passadas, agora e no futuro, isso depende de um modo de percebê-lo através de um ponto que não pode estar no mesmo âmbito material da própria coisa. Esse valor somente poderia se decantar em algo abstraído do fluxo dos fenômenos físicos. Esse tópos da estabilidade do ponto de vista “privilegiado” é dado precisamente pelo conceito, pela palavra, que pôde

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se desligar minimamente da unicidade da representação imagética sensível. Em outras palavras, para haver tempo, é preciso haver conceito. Sem este, o que se pode ter é o devir.

O mundo do animal é um mundo sem conceito. Nele nenhuma palavra existe para fixar o idêntico no fluxo dos fenômenos, a mesma espécie na variação dos exemplos, a mesma coisa na diversidade das situações. Mesmo que a recognição seja possível, a identificação está limitada ao que foi predeterminado de maneira vital. No fluxo, nada se acha que se possa determinar como permanente e, no entanto, tudo permanece idêntico, porque não há nenhum saber sólido acerca do passado e nenhum olhar claro mirando o futuro. O animal responde ao nome e não tem um eu, está fechado em si mesmo e, no entanto, abandonado; a cada momento surge uma nova compulsão, nenhuma idéia a transcende. (DA 263/230)

Aqui o leitor poderia objetar: mas se o devir é caracterizado como fluxo das coisas e de seus estados, e se todo fluxo sempre supõe algo fixo para poder ser percebido como tal, como os animais poderiam experimentar o devir, se não há essa âncora conceitual da fixidez à qual o fluir pudesse ser referido? Como dissemos anteriormente, há de se supor que eles tenham a capacidade de estabelecer conformações imagéticas minimamente unitárias para os dados sensíveis, pois senão seria inviável que eles tivessem modos de comportamento baseados no “reconhecimento” de características peculiares a algum ser, como o dono de um cachorro, aquela fêmea específica no caso dos pombos, que são monogâmicos, etc. É precisamente essa unidade imagética que dá a possibilidade de percepção do devir. Mas como ela é algo físico, submetida às mesmas vicissitudes do fluxo de mudança dos estados físicos, não há propriamente o tempo, mas tão-somente o devir.

O tempo poderia ser distinguido conceitualmente do devir pela decantação da ruptura qualitativa entre os planos do futuro, do presente e do passado. Usando uma metáfora que desenvolveremos nos três itens seguintes, podemos dizer que o devir seria caracterizado pela imersão em um meio, ora pacífico, ora agitado, acompanhada da eterna premência de lidar com as coisas em um mesmo nível, posto que todas as coisas parecem atritar-se reciprocamente de modo contínuo. O tempo seria caracterizado pelo distanciamento mínimo propiciado pela superfície desse meio, em que se pudesse vislumbrar, minimamente que seja, os movimentos tais como foram, são e serão. É evidente, por outro lado, que isso se deu em diversos graus, de diversas maneiras e nem sempre de modo unívoco, de modo que se poderia falar de uma interpenetração do presente, do passado e do futuro em um continuum em diversas de suas manifestações. Dizemos que essa ruptura somente se deu de modo enfático quando o conceito se desfez de sua dimensão imagética, no surgimento da racionalidade ocidental helênica. Nesse momento, é que surge aquilo que podemos considerar o tempo histórico, em que o passado pôde ser apropriado a partir de uma narrativa que o coloca distanciado do presente, afastado da vivência do aqui e do agora.

Apesar da irrupção dessa consciência histórica, poderíamos ainda dizer que a unidimensionalidade linear do tempo tal como experimentamos na modernidade é algo que não necessariamente existe. Isso somente será possível a partir da colocação enfática do tópos do futuro, vinculada ao espelhamento, na consciência, da distensão do passado irrecuperável até o futuro inexistente. — O que veremos agora são três momentos da genealogia dessa percepção do tempo histórico, começando pela decantação do passado na origem mítica. b) A profundidade imagética do tempo: o mito

Como vimos no primeiro capítulo, o mito é caracterizado pelo aprofundamento epistemológico através da sedimentação do núcleo de intelecção do real no tópos da origem. Embora a linguagem tout court já fosse, segundo nossa conceituação

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anterior, suficiente para que se pudesse falar da existência do tempo, a flutuação mimética do preanimismo e da magia não permite que falemos de uma expressiva fixidez do ponto de vista necessário para cindir de modo claro o sedimento do passado em relação ao fluxo do presente. Ao dizer da hipóstase ontológica do real em um âmbito deslocado para o passado, o mito mostra sua preeminência na percepção do tempo pela colocação desse âmbito a partir da imagem solidificada lingüisticamente. O evento primordial é isolado do fluxo incessante das coisas e passa a constituir aquele ponto de vista razoavelmente mais fixado para que a consciência da distinção passado-presente exista minimamente. Mas, como dissemos, essa origem ainda é carregada do poder de constrição imagético, e deve se atualizar em cada ser e acontecer no tempo do agora:

A singularidade do evento mítico, que deve legitimar o evento factual, é ilusão. Originariamente, o rapto da deusa identificava-se imediatamente à morte da natureza. Ele se rep etia em cada outono, e mesmo a repetição não era uma seqüência de ocorrências separadas, mas a mesma a cada vez. Com o enrijecimento da consciência do tempo, o evento foi fixado como tendo ocorrido uma única vez no passado, e tentou-se apaziguar ritualmente o medo da morte em cada novo ciclo das estações com o recurso a algo ocorrido há muito tempo. Mas a separação é impotente. Em virtude da colocação dessa ocorrência única do passado, o ciclo assume o caráter do inevitável, e o medo irradia-se desse acontecimento antigo para todos os demais como sua mera repetição. (DA 34/39)

O deslocamento do evento primordial para o passado é ambíguo, pois, apesar desse deslocamento, a origem é vivida como explicação, como razão de ser, do agora, que é vivido em função dessa referência ontológica ao passado. Cada acontecimento presente é vivido, no ritual, a partir da rememoração forte do que ocorreu há muito tempo. Resgatar a imagem do passado vincula-se à constrição imagética de atualização perene do significado que deve se manter. Digamos que o passado não morre, não se esvazia da força vívida do presente; pelo contrário: é precisamente por agregar, na memória, o sumo dos acontecimentos vividos, que ele vai arrastando para si o núcleo de dignidade (ontológica) das coisas presentes. Ora, a memória é essencialmente imagética. Os fatos passados vão se acumulando em uma imagem que os congrega em um todo que irradia, do ponto distante do passado, a conditio sine qua non para tudo existir e ser compreendido.190

Se o tempo seria visto, naquela metáfora acima, como a superfície que se destacou da imersão do devir, a consciência mítica poderia ser considerada como um sulco operado nessa superfície a partir do aprofundamento epistemológico do recuo temporal da origem. Dado o teor ainda fortemente imagético do mito, essa profundidade do passado pôde apenas ser vivenciada concretamente, ou seja, estaria adstrita a um modo concreto de relacionamento com o mundo, faltando-lhe aquele momento da dialética hegeliana da consciência de si. A dimensão tátil presente nessa metáfora da constituição do passado explicita um elemento importante: o espaço, “esquema irrevogável de todo tempo mítico” (DA 54/57). Segundo Ernst Cassirer,

Toda orientação no tempo pressupõe a orientação no espaço (…) É uma e mesma intuição fundamental concreta, é a mudança de luz para escuridão, de dia para noite, em que se fundamentam a intuição primitiva do espaço e o desmembramento primitivo do tempo. O mesmo esquema da orientação, a mesma diferença, sentida inicialmente de modo puro, entre as regiões e direções do céu, domina igualmente a partição do espaço e do tempo em porções individuais determinadas. Tal como as relações espaciais mais simples, como esquerda e direita, para frente e

190 Esse processo é o que poderia explicar a dinâmica da transformação de alguma coisa em tradição . Um processo, uma atitude, um evento, vira t radição quando deve ser feito por já ser feito há algum tempo. Essa transformação mostra como o passado pode pesar sobre o presente pelo simples fato de já cristalizar os fatos ocorridos em um núcleo cuja densidade ontológica prepondera sobre a contingência da fluidez do presente. Este alcança sua dignididade por repetir aquilo que ele mesmo foi outrora.

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para trás, separam-se devido a que o curso do sol determina uma linha fundamental, a do leste-oeste, e esta é então dividida verticalmente por uma segunda, a do norte-sul, assim toda a apreensão das partes temporais remete a essa separação e a esse cruzamento.191

Algumas elaborações culturais mais avançadas dão testemunho dessa espacialização do tempo na linguagem, que é o caso da palavra tempus, derivada de templum, que indica propriamente um cruzamento, uma cisão espacial. Do mesmo modo que se pode indicar um caminho que vai para leste ou oeste em um entroncamento, pode-se indicar as “direções” da manhã ou da tarde, a partir da mesma percepção do deslocamento do astro diurno. “A separação do espaço em direções e regiões individuais é paralela à separação do tempo em fases singulares — ambas representam apenas dois momentos distintos naquele processo da progressiva iluminação do espírito, que emerge da intuição do fenômeno físico primevo da luz” 192.

Poderia parecer difícil conciliar essa origem espacial do tempo com aquela dimensão interiorizada da imagem do evento primordial, mas não é o caso. É preciso lembrar que toda configuração imagética — e mesmo ainda a do mito — depende de uma conformação física, espacial, concreta. O ritual, elemento mais propriamente mítico, na medida em que visa a presentificar a substancialidade profunda do real, também acontece quando o sacerdote traça o círculo mágico, dentro do qual se pode sentir a influência atuante do poder oriundo do evento primordial. As danças, as máscaras, os movimentos, o deslocamento ritmado dos instrumentos de imolação, os arremessos dos objetos rumo ao centro do círculo, etc., tudo isso mostra como que a presentificação da origem é vivida em termos espaciais. “Regiões do tempo” e “regiões do espaço” são algo que não se separam — ao contrário: a vivência do sagrado, que se vincula sempre à rememoração do tempo forte da origem, apenas se dá em um processo de delimitação espacial, em uma configuração imagética, em que a força divina se fará vívida. É precisamente essa imbricação do sagrado, do tempo e do espaço que nos mostra que as divisões do tempo não são separações em um meio indiferenciado, homogêneo, tal como virá a ser a temporalidade na época moderna. Trata-se de um fluxo temporal plenamente qualitativo, em que o número ainda não é, com sua abstração, o que poderia dar a medida da existência temporal.

Da mesma forma que o passado configura-se, no mito, a partir de uma época que se destaca das outras, a origem, assim todo o curso do tempo profano também se configura em fases, que estabelecem ciclos de morte e de renascimento. Assim como vários mitos narram o tempo da origem como dividido em fases, em épocas, em dias, etc., o tempo profano, para ser entendido a partir do sagrado, é também dividido em fases caracterizadas por rupturas qualitativas, como o início da puberdade, em que a criança “morre” para fazer “nascer” o jovem, e este “morre” para “nascer” o homem maduro, etc.193 Podemos dizer que o aspecto cíclico experimentado na natureza é introjetado na cultura como processo de manutenção da possibilidade de com-preender o fluxo das coisas, na medida em que as transformações são acorrentadas a medidas específicas com que são vistas em um olhar de sobrevôo. É isso que ainda podemos ver no processo de comemoração ritualístico no aniversário, no reveillon, nos dias dedicados à mulher, ao trabalhador, etc., em que a memória da dignidade do real ou de porções dele deve ser revivida periodicamente, de modo a que não se perca o contato com a própria realidade. 191 Ernst Cassirer. Philosophie der symbolischen Formen. Vol. II. Berlin: Bruno Cassirer, 1925, p.135-6. 192 Ernst Cassirer. Op. cit., p.136. 193 Cf. Ernst Cassirer. Op. cit., p.138.

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Embora o que seja mais característico do mito seja o aprofundamento rumo ao passado, nele também está presente, como vimos, a dimensão da escatía, do extremo confim das coisas. Mas mesmo este está marcado pela eterna repetição, uma vez que o fatum somente pode se realizar com base naquilo que já se projeta a partir da origem. “Na consciência temporal mítico-religiosa concreta vive-se sempre uma determinada dinâmica do sentimento — uma intensidade variada, com a qual o eu se entrega ao presente, ao passado ou ao futuro, e a move, nesse ato de entrega e através dele, em relação a um ou a outro numa relação determinada de dependência ou de pertencimento”194. Dada essa imbricação do passado, do presente e do futuro, podemos dizer que não haveria, no mito, aquilo que podemos perceber como tempo histórico, que é o que começa a se delinear com o surgimento da abstração conceitual, que podemos ver na interpretação de Adorno e de Horkheimer da Odisséia.

c) A tridimensionalidade temporal através da abstração

Quando falamos da constituição da identidade subjetiva na figura de Ulisses, um elemento importantíssimo foi elidido: a individualidade emerge com a distinção clara dos três domínios do tempo. Isso é explicitado no encontro de Ulisses com as sereias. O poder de sedução das cantoras é percebido como a irresistibilidade de se perder no passado.

Mas o herói a quem se destina a sedução emancipou-se com o sofrimento. Nos perigos mortais que teve de arrostar, foi dando têmpera à unidade de sua própria vida e à identidade da pessoa. Assim como a água, a terra e o ar, assim também separam-se para ele os domínios do tempo. Para ele, a preamar do que já foi recuou da rocha do presente, e as nuvens do futuro estão acampadas no horizonte. O que Ulisses deixou para trás entra no mundo das sombras: o eu ainda está tão próximo do mito de outrora, de cujo seio se arrancou, que o próprio passado por ele vivido se transforma para ele num outrora mítico. É através de uma ordenação fixa do tempo que ele procura fazer face a isso. O esquema tripartido deve liberar o instante presente do poder do passado, desterrando-o para trás do limite absoluto do irrecuperável e colocando-o à disposição do agora como um saber praticável. (DA 39/43-4)

A sedução do passado é a da imagem mítica: imiscuir-se naquilo que, ao passar pelo presente, arrastou consigo o peso ontológico do real. A sedução das sereias consiste na tentação de voltar a ser o que se foi, recuperando a substância que escoou no fluxo do tempo, congregando-se na imagem do canto, e atraindo, de lá, aquele que ainda se identifica mimeticamente com a natureza. É preciso quebrar esse encanto através da recusa da imagem como substrato encantador, atraente, que oferece o retorno do passado ao preço de seu futuro. A unidade de consciência vem para romper essa flutuação do presente em relação ao passado. Este não deve ser algo vivido em sua pregnância vital, mas, sim, como algo que deve ser assimilado como valendo como uma ex-periência, em que o perigo aponta para aquilo que pode ser usado como material, que, uma vez digerido, assimilado, serve como baliza para os acontecimentos vindouros. O futuro dá a medida da legitimidade do aproveitamento em relação ao passado. O pro-gresso é caracterizado precisamente como essa consciência da justificativa que se dá para a manipulação das imagens do passado, que devem ser despotencializadas em vista da construção do futuro.

O sacrifício a que Ulisses se submete para formar a rigidez de seu caráter somente tem a função de unificar a consciência devido ao fato de a preservação do futuro estar vinculada ao amor de si. É a vinculação entre o tópos conceitualmente estabelecido do futuro e a própria pessoa que mostra como o presente e o passado foram sendo

194 Ernst Cassirer. Op. cit., p.150.

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iluminados cada vez mais pelo ponto de vista de sua empregabilidade em função da manutenção da identidade. A noção de história nasce precisamente da enformação conceitual do futuro como um processo de legitimar a ação presente, embasado pela memória enfraquecida mimeticamente em relação ao passado. Segundo Adorno,

Historicamente, o próprio conceito de tempo formou-se tendo por base a ordenação da propriedade. Mas a vontade de possuir reflete o tempo como angústia diante da perda, diante do irrecuperável. Fazemos a experiência do que é em relação à possibilidade de seu não-ser. Com isso, é aí que ele se torna mesmo uma posse, e é precisamente nessa rigidez que se torna algo funcional, passível de ser trocado por outra posse equivalente. (MM §49, p.68)

Ora, é preciso ver que o sentido de posse sempre existiu em certa medida, até mesmo já nos animais, que, obviamente defendem aquilo que lhes dá prazer, que os alimenta, os próprios filhotes, a fêmea, etc. Desse modo, se se vincula a noção de tempo à de posse tout court, na medida em que ela aponta para a percepção da efemeridade (leia-se: da perda), então essa noção é bastante antiga, primordial, em nada distinguindo da estruturação da identidade delineada na Dialética do esclarecimento, em que é elaborada a história primeva da subjetividade. O que de original é esboçado aí é uma determinada concepção de tempo, que é o que estamos chamando de tempo histórico, em que o passado e o futuro são concebidos como patrimônios do sujeito, que se concebe a partir deles. Ora, a noção de propriedade, como se pode saber claramente por qualquer doutrina jurídica mais elementar, diferencia-se da de posse pela legitimidade (social) da posse. O que faz, então, com que o tempo alcance um novo estatuto no despertar da subjetividade no ocidente é precisamente a maneira nova com que o passado e o futuro são tomados como propriedade, e não apenas como posse, ou seja, é preciso ver qual é o ingrediente que fez com que o tempo no esclarecimento passasse pelo crivo de uma legitimação inusitada. A especificidade da filosofia ocidental, claramente delineada em Platão, é a consciência da necessidade de legitimação atual do discurso (e, por extensão, da posse, ou vice-versa, isto é, o próprio discurso pode ser pensado como um caso particular do que cai sob a percepção de propriedade ou como expressão sublimada do senso de posse em geral), ou seja, sem apelo à tradição ou ao peso das forças míticas. É evidente que não foi a Grécia que inventou a legitimação da posse rumo à consciência da propriedade, mas instituiu uma maneira nova de fazê-lo, através da abstração do discurso que legitima tal posse. A legitimação do discurso que se pretende verdadeiro se dá na atualidade lógica de sua estruturação.

Baseando-nos nessa distinção entre a profundidade imagética no mito, a materialidade do devir das sensações atuais e o escalonamento abstrato do futuro, podemos dizer, metaforicamente, que o passado é vivenciado como imagem, o presente, como sensação e o futuro, como conceito. O passado está vinculado a uma cristalização do que ocorreu como presente, ou seja, contém a materialidade do presente, mas já sedimentada em uma totalidade, uma vez que já é tomado como um todo, definido pelo fato de não ser, nem absolutamente fugidio, como a sensação, nem fixável de modo abstrato como conceito. O passado, nesse sentido, não é, nem absolutamente distante, nem totalmente perto. Reivindica uma presença como algo a ser retomado, resgatado, mas impossível de ser presentificável na sua materialidade. O passado diferencia-se do futuro pelo fato de ser mais real, na medida em que contém a concretude distanciada do presente, já digerida, embora não totalmente real. O presente vincula-se à torrente incessante das sensações195. O fato de o tempo não parar, de ser impossível a consciência 195 “Incessante”, aqui, é usada para qualificar, algo fenomenologicamente, o fato de a consciência ser caracterizada pelo seu preenchimento constante.

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sem que haja o fluxo do tempo, é algo que marca a qualidade própria da sensação como algo materialmente preenchido, ou seja, como algo que flui incessantemente, que precisa de outra coisa, além dele, para ser moldado, para que tenha um sentido razoavelente estável. O futuro, como algo que não contém preenchimento material, situando-se na esfera da mera prospecção, é algo eminentemente vinculado ao conceito, à idéia do que o mundo deva ou virá a ser.

É evidente que todas essas três dimensões do tempo estão vinculadas às noções de imagem e de conceito. O que está em jogo com a vinculação da imagem ao passado e do conceito ao futuro é o apelo que estes produzem em relação ao presente. O passado como algo a ser recordado é eminentemente imagético, ao passo que o futuro é essencialmente algo idealizado, próprio de uma idéia. Embora a palavra “idéia” tenha, como vimos, a origem etimológica de eidos, que significa propriamente “forma” em grego, ou seja, algo vinculado à experiência sensível, imagética, o sentido que eidos e “idéia” ganharam no vocabulário filosófico é o de uma abstração radical, em que se fez a retirada de quase todo o conteúdo sensível ou imagético. O pensamento fundante da metafísica ocidental, ou seja, de toda a Filosofia, a ontologia do Bem de Platão, incumbiu-se de forjar a abstração da imagem no conceito de um ponto de vista filosófico. Ela mostra como a experiência do ideal, vinculado ao futuro, solidificou-se com a tomada de consciência do caráter abstrato do conceito. Mas como é resultado de um processo de depuração imagética, instituído social- e individualmente, o futuro ainda mantém-se vinculado ao peso da imagem — o que, uma vez mais, é ironicamente mostrado na malfadada tentativa platônica de dizer conceitualmente das coisas sem recorrência ao mythos, ou seja, à imagem. De qualquer forma, a consciência ocidental do futuro mostra sua pregnância precisamente na tendência à depuração do teor imagético em direção ao caráter abstrato do conceito. Na medida em que foi tomando consciência dessa depuração, o pensamento ocidental foi se apercebendo da diferença entre passado, presente e futuro. A abstração conceitual favoreceu o destacamento do futuro e do passado em relação ao presente.

A leitura qualitativa do cosmos — como na física aristotélica — é um resquício da assimilação simpatética da imagem a todas as coisas. A física das quantidades inclui um passo no processo de racionalização na medida em que extirpou essa assimilação imagética ao outro. Isso está vinculado à consciência da desconecção do futuro em relação ao presente e ao passado. Tal momento pode ser clara- e inequivocamente exemplificado no empirismo de Hume, que diz que as relações entre fatos são totalmente contingentes, de tal modo que não haveria como estabelecer-se relações necessárias entre os fatos presentes e os futuros, sendo o conceito de causa algo meramente derivado do hábito de presenciar repetidas associações de fatos semelhantes com fatos semelhantes, gerando a crença de que o futuro será igual ao passado. Não é mera coincidência que essa convicção da ruptura do futuro em relação ao presente esteja em um conjunto de reflexões que separa tão nitidamente “questões de fato” e “relações entre idéias”, pois é precisamente a tomada de consciência da diferença entre conceito e sensação que permite a consciência da diferença entre futuro e presente. Essa mesma ênfase na contingência absoluta dos fatos pode ser vista no Tractatus Logico-Philosophicus de Wittgenstein, que, no aforismo n.º 6.3, diz que nenhum fato tem relação de necessidade com nenhum outro, e que só há necessidade no âmbito da lógica. Essa esfera, das idéias, que representa o espaço próprio do sujeito, de sua unidade de consciência, assimilou, introverteu, como vimos, toda a carga de inexorabilidade do fluxo das coisas no tempo que a natureza possuía nos tempos mágico e mítico.

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A distinção das três dimensões do tempo é o modo como o homem pôde distanciar-se do mundo e percebê-lo como mundo, ou seja, como diferente dele, podendo abarcá-lo com sua perspectiva conceitual. Ora, como o mito era uma fase em que o homem ainda não se distanciara totalmente do mundo, o passado reinvindicava sempre sua quota do presente e do futuro. O tempo mítico não permitia a separação conscientemente clara das três esferas. Apesar disso, algo da diferenciação temporal já existe, na medida em que a imagem do passado, embora hipostasiada e enrijecida como repetição, contém um elemento que a distingue do eterno presente em que vivem os animais, na medida em que o passado é vivido como profundidade, como um sulco na realidade, eliminando a planura absoluta da vida animal. Nessa medida, o passado seria o elemento mais originário do tempo — não mais como mero devir —, e, não, o presente, posto que, historicamente, o tempo constituiu-se a partir da profundidade imagética do real. Mas foi preciso o conceito abstrato para que tal profundidade ganhasse o relevo que deveria ganhar no desenvolvimento da história do ocidente. Somente a partir da luminosidade elevada do conceito é que o vinco da imagem pretérita pôde ser percebido em sua amplitude e em sua significação. Sem essa luminosidade, a imagem pretérita como que traga todo elemento significativo de diferenciação, na medida em que as semelhanças e as diferenças dissolvem-se em um torvelinho de relações mágico-místico-animistas. A consciência de futuro introduz o ponto luminoso a partir do qual as sombras podem ser colocadas onde devem ser, sem cobrarem o presente e o futuro como pagamento pela culpa da diferença perante o fato originário.

A tripartição passado-presente-futuro é, assim, o que caracteriza mais propriamente o tempo, pois, sem ela, este virtualmente não existe. Assim concebido, o tempo mostra-se como a etapa de constituição da subjetividade que faz com que o mundo, instituído com a diferenciação do sujeito em relação a ele, fosse visível como mundo, como objeto, como aquilo que ob-jaz ao sujeito. O mundo somente ganha tal visibilidade a partir da lente da tripartição do tempo, que é aquilo que estrutura intimamente o sujeito. Somente do ponto de vista dessa consciência é que o mundo tem substância. O tempo (tripartite) é aquilo que, distanciando o mundo, faz com que ele possa ser vivido, vivenciado, como mundo propriamente.

Entretanto, a realidade grega ainda não conhecia a profundidade interior da individualidade. O saber continha a exterioridade do compromisso político que se espelhava em todos os diálogos de Platão e nos tratados de Aristóteles. Essa qualitas do entrelaçamento relacional dos homens presente no conhecimento espelha-se na concepção grega de tempo ainda circular, presente até mesmo na elaboração filosófica platônica. O aspecto imagético do passado, por exemplo, era tomado em um sentido propriamente mítico-religioso, que continha a dimensão coletiva das imagens: “o eu ainda está tão próximo do mito de outrora, de cujo seio se arrancou, que o próprio passado por ele vivido se transforma para ele num outrora mítico” (DA 39/44). Foi com o advento do homo interiors cristão que se pôde, suprassumindo a abstração grega, falar de uma linearização da experiência temporal, em que as três dimensões do tempo foram interiorizadas.

d) A distensão interna do tempo: Santo Agostinho

Como citamos anteriormente, a reflexão agostiniana do tempo se inicia com a explicitação de um estranhamento, que é o da inefabilidade da natureza do próprio tempo. A passagem do intelectualismo político grego para a interioridade religiosa cristã, em referência à temporalidade, é marcada pela tomada de consciência de que o tempo não pode ter uma existência per se, como algo objetivo, mas, sim, apenas vinculado à dimensão

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subjetiva. A rigor, pergunta-se Agostinho, como se pode falar do futuro como uma “coisa”, se ele, propriamente falando, não existe? O que se dizer do presente, se ele não tem dimensão, isto é, não se demora, posto que, se o fizesse, o tempo não seria o que é, como um fluxo constante? Como se pode referir ao passado como “algo”, se ele não tem mais existência? “Deste modo, é uma tentativa frustrada conceber-se o tempo unicamente a partir da sucessão dos acont ecimentos, pois ele seria a passagem de algo que ainda não existe, através de algo que não tem dimensão para desaparecer em algo que não mais existe”196.

Apesar desse paradoxo, diz Santo Agostinho, falamos do tempo, de fatos passados, presentes e futuros. Como isso pode ocorrer, sem que estejamos falando absurdos? Segundo o filósofo, embora o passado não tenha uma realidade em si mesma, como algo objetivamente forte, algo dos fatos que passaram pelo presente continua, permanece, de modo a que possamos nos referir a eles como algo real: a lembrança que temos deles. A meminisse é aquilo que, no sujeito, dá o fundamento da qualitas do passado como algo a que se possa referir como real, isto é, como presente, atual. É a referência à faculdade de presentificação das imagens do passado que confere sentido ao discurso sobre a realidade delas. Embora o presente não contenha dimensão alguma, tratando-se de um fluxo incessante, cuja especificidade é propriamente ser a-dimensional, outra faculdade subjetiva pode ser usada como âncora referencial para sua realidade: a atenção. No attendere, o sujeito pode perceber a continuidade do ser do presente, posto que, embora o próprio presente sempre escoe, aquilo onde ele sempre se realiza em sua efemeridade radical permanece de modo enfático. Apesar de o futuro ser marcado enfaticamente pela inexistência, uma vez que nem sequer passou pelo presente, é possível referirmo-nos a ele também na esfera da faculdade subjetiva: na expectativa. O exspectare atualiza o possível, o ainda-não-existente, de modo que se faça real, contínuo e presente, ao ser antecipado no animus. “Assim pode-se conceber o tempo como a passagem do que se espera, através do que é intuído para o que se lembra”197.

Essa reflexão é o ponto de partida para responder à questão da medida do tempo. Pois, com efeito, como medir o passado e o futuro, se eles mesmos não existem? – como medir o presente, se ele carece de dimensão? Entretanto, diz Agostinho, medimos o tempo, dizendo que uma viagem foi mais longa que outra, que um som é mais curto que outro, etc. Como isso é possível? Responde o filósofo: “in te, anima meo, tempore messui”. Se dizemos que o passado foi mais longo que outro, isso significa dizer que, comparando dois eventos na memória, um deles se mostra mais longo. Se dizemos que um passeio será mais curto que outro, é porque podemos presentificá-los na expectativa atual, e compará-los.

Mas tais considerações pressupõem uma identidade do sujeito percipiente que permanece, apesar da incessante passagem do tempo. Caso contrário, o tempo não poderia ser apreendido nem mesmo através de sua relação com o sujeito, pois se tudo passasse, se tudo não fosse nada mais que apenas transitoriedade, não seria, por exemplo, possível medir-se o tempo. (…) Se não houvesse essa medida que se mantém, não haveria algo a que o tempo pudesse ser referido, e nem mesmo o próprio sujeito teria uma continuidade que pudesse constituir sua própria identidade. Ou seja, subjetividade e temporalidade estão intimamente relacionadas, imbricadas, e o sujeito somente tem a capacidade de não se perder no turbilhão incessante dos acontecimentos que escoam, na medida em que reflete a estrutura triádica do tempo como constituidora de sua própria identidade. Sem transcender sua temporalidade, a passagem ininterrupta dos fatos do futuro ao

196 Rudolph Berlinger. Augustinus dialogische Metaphysik. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1962, p.53. 197 Rudolph Berlinger. Augustinus dialogische Metaphysik. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1962, p.53.

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passado, o homem não alcança sua identidade. 198

Seguindo, uma vez mais, a idéia adorniana de perceber a história sedimentada em uma dada realidade, que dinâmica histórica se sedimentou nessa concepção agostiniana do tempo, com sua correlativa constituição da identidade subjetiva?

O indivíduo cristão possibilitou a consciência interior da separação entre passado, presente e futuro, porque a figura do Cristo colocou uma mediação entre a transcendência, tomada como intemporal, e a vida profana, percebida em seu devir incessante. Propiciando essa mediação entre a universalidade da transcendência em relação à particularidade do profano, o cristianismo forçou a emergência da consciência de que era necessário a concepção de uma mediação de uma espécie bem determinada entre os dois âmbitos. Ora, o Cristo é um ser que faz essa mediação de uma maneira tal que a idéia de um resgate da dívida passada através do sofrimento presente, tendo em vista a redenção no futuro, estabelece uma Versinnbildlichung199 da eternidade de modo temporal. A figura de Cristo é uma forma de mediação imagética — com toda a sua carga vivencial forte — entre a eternidade plenamente conceitual e a sensibilidade plenamente material. Se o intelectualismo grego ainda não era capaz de estabelecer uma profundidade da consciência do fulcro de rotação do tempo histórico, ou seja, o homo interiors, a “remitificação” da consciência temporal no cristianismo propiciou as condições para esse passo. Por que essa remitificação, em vez de retroceder na consciência do tempo histórico, fê-la progredir?

Como vimos, foi precisamente o deslocamento do centro de gravidade do tempo, do presente para o passado, que possibilitou a tridimensionalização da consciência temporal. Ora, uma vez tendo absorvido a consciência de si de tal tridimensionalidade, ou seja, tendo passado pela abstração conceitual grega, essa mitificação em segunda potência do tempo tomou essa dimensão iluminante do futuro conceitual e aprofundou-a, ou seja, o futuro ganhou um preenchimento vivencial aprofundado, de modo análogo ao que o passado ganhou com sua escavação no solo do presente. Mas não só o futuro, mas o próprio presente sofreu essa granulação de experiência interna com tal remitificação, uma vez que ele passou a se colocar estirado, tensionado, entre dois momentos que passaram a exercer sobre ele uma força, não apenas de um saber acerca do futuro — próprio do eidos platônico — e do passado como algo a se apropriar como material — presente no esforço ulissiano de se livrar da sedução da imagem irrecuperável do já foi e refletido na ιστορια de Heródoto —, mas, sim, de dois campos que, na consciência presente, colocam-se como imagens cuja atração emocional, afetiva, sentimental, ou seja, de forma mítica, pôde fazer com que o sujeito se estendesse por essa malha — viva em cada uma de suas células —, determinando-se, fundando sua identidade nesse movimento de aprofundamento imagético-mítico nos dois pólos fundamentais do tempo histórico: a memória do passado e a expectativa do futuro. O que permitiu a Santo Agostinho a consciência clara do passado como memória foi a memória da culpa; o que lhe permitiu a consciência clara do futuro como expectativa foi a expectativa da redenção.

Mas essas duas figuras, da culpa primordial e da redenção, já existiam no judaísmo, só que não mediadas pela consciência abstrata, conceitual, da transcendência. Essa mediação foi importante, imprescindível. Ela colocou, como vimos, o elemento de 198 Rudolph Berlinger. Augustinus dialogische Metaphysik. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1962, p.54. 199 Difícil falar essa idéia em língua portuguesa: “simbolização de uma noção abstrata em uma configuração intuitiva, imagética”

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reflexão, de tomada de consciência indispensável para a consciência de legitimação radical do presente a partir da idéia abstrata do futuro. Percebemos que essa legitimação diferenciava-se de todas as outras, pelo fato de instaurar uma legitimidade atual do presente em função de sua vinculação com o eidos do futuro. O que o cristianismo fez foi aproveitar a anulação do vínculo prático imediato do futuro em relação ao presente, de modo a fazer com que a legitimação atual do presente pelo futuro constituído abstratamente se convertesse na fonte da conscientização da dinâmica existencial do tempo profano. O fluxo do tempo presente passa a ser assimilado a partir de uma consciência abstrata, que, uma vez tornada prática, interioriza a vinculação de futuro e de passado na consciência do que motiva o fluxo do presente. O cristianismo colocou de essencial, em relação a esse aspecto, um elemento reflexivo, que aponta sempre na direção da interioridade, de tal modo a perceber que a legitimação atual do presente pelo eidos do futuro possibilita ver o que subjaz à linha de continuidade do tempo profano como algo que lhe serve de Leitmotiv, como mola propulsora. Devido a essa interioridade reflexionante acerca dos subterrâneos da relação vivencial entre os momentos do fluxo do tempo, o sujeito pôde reconhecer-se como sede privilegiada de constituição do próprio tempo, dada a posição privilegiada do olhar sobre a torrente de momentos que constituem a vida.

Dito de forma sumamente paradoxal, o cristianismo estabelece uma relação mimética mediada conceitualmente do eu consigo mesmo: percebe-se como outro de si e consigo se identifica no medium da representação imagética que tem de si próprio através da figura de um deus crucificado. A divindade — que não mais é algo pura- e plenamente imagético, mítico, mas, sim, estabelecido a partir de um edifício conceitual — é arrastada para o fluxo do tempo, imiscuindo-se na materialidade conflituosa do presente. A crucificação do Deus racionalizado é a ambivalência fundamental estabelecida para a concepção, para a fundação, do homem interior do cristianismo: este se concebe a partir de um Deus que não é mais ligado em termos práticos diretamente a si no meio mimético-mítico, mas, sim, através da abstração, da separação, conceitual; e, ao mesmo tempo, com-padece desse Deus pelo sofrimento imediato, carnal. Esse movimento de aproximação e de afastamento de si mostra a ambigüidade da concepção de si próprio, na medida em que, distanciando-se de si através da absorção do momento conceitual grego, voltou a ganhar uma proximidade imagética desse seu outro, constituído conceitualmente, através da figura da mediação corporal de cristo. Esse movimento ambíguo é o que possibilitou perceber o aspecto linear do tempo profano, só que de modo transparente, de modo a enxergar a atração recíproca de todos os momentos que constituem tal linha. O que virá a ser a planura da linha do tempo ainda possuía uma profundidade existencial.

Por que a intelectualidade grega não possibilitou essa tomada de consciência do tempo tal como no cristianismo? A mesma coisa que formava a rede que tecia a dimensão política grega é a que não deixava que sua construção imergisse no âmbito da interioridade, ou seja, a abstração conceitual formava um arcabouço contra esse aprofundamento vivencial intimista da doutrina cristã.200 Dito metaforicamente — o que, aliás, tem acontecido amiúde nesse capítulo —, a distensão do indivíduo cristão possibilitou

200 Mas essa nossa reflexão não deveria ser lida tal como uma fenomenologia hegeliana, como se a interioridade cristã fosse uma espécie de etapa necessária para o auto-reconhecimento do Espírito. O que fazemos é uma análise de como a consciência do tempo efetivamente se constituiu. — Uma especulação algo ociosa em termos históricos, mas interessante, é a de pensarmos como seria possível a constituição da subjetividade aos moldes da modernidade sem que se tivesse passado pelo cristianismo. Como isso é algo apenas imaginável em termos ficcionais, continuemos a exposição levando em conta o desdobramento histórico real.

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que ele imergisse no âmbito subjetivo, tal como a dispersão das partes pesadas de uma embarcação a faz afundar. O realismo exagerado de Platão é índice dessa exterioridade logocêntrica, na medida em que as Idéias são tomadas como estando, nem no sujeito, nem nas coisas, mas em um reino separado. Esse kóris, que é o que possibilitou a iluminação conceitual para elevar a profundidade do sulco do passado à consciência de si, é o mesmo que impediu que essa tridimencionalidade pudesse ser vivida internamente. Foi preciso um outro ponto de vista, que não o da potência solar ofuscante, mas, sim, o da penumbra interior, para que toda essa construção tridimensional fosse tomada apenas como projeção daquilo que o sujeito experiencia em si mesmo: a lembrança do talho na carne que pecou, o sofrimento atual que demora para passar e a expectativa de cura da ferida que um dia se fechará totalmente.

Entre a terra de Canaã do judeu, a República platônica e a Civitas Dei de Santo Agostinho, pode-se fazer uma comparação instrutiva a esse respeito. Todas as três dizem respeito à constituição, no pensamento, de um ideal. A primeira é eminentemente prática, concreta, pois trata-se de uma figura que tem um forte apelo de ordem vivencial, ou seja, mítica. A segunda é claramente abstrata, ainda espelhando o entrelaçamento entre ontologia e ética, mas esforçando-se por fundar o éthos no lógos epistêmico. A terceira reassumiu a dimensão vivencial do vocativo teológico, mas expurgado de seu aspecto imagético-mítico imediato, tendo passado pela experiência do esforço de legitimação atual-lógico do pensamento racionalizado.

Mas, apesar de se aproximar bastante daquilo que será a experiência do tempo linear quantificado dos modernos, o tempo agostiniano ainda está marcado por distinções qualitativas de ordem subjetiva. A memória e a expectativa são marcos de vivência que cunham, no próprio conceito de tempo, a carga imagética que ambos possuem, com todo o seu apelo existencial. O começo cartesiano da modernidade, que o próprio Hegel já havia visto, também pode ser empregado para esclarecermos o desenvolvimento do conceito de tempo. Descartes marca o ponto de inflexão necessário para a consciência matematizada do tempo: a consideração do ego como poder, como atividade auto-determinante. A desqualificação da capacidade de apreender as coisas a partir do cogito — desprovido de relação de alteridade como fundante do próprio ego — mostra o passo que foi dado rumo à desqualificação do substrato para o tempo, o qual pôde passar a ser concebido como mera forma, como intuição pura.

e) A apropriação burguesa do tempo: Kant e Hegel

Segundo Kant, o tempo não é uma propriedade das coisas, nem tem uma realidade objetiva, desligada do sujeito. Trata-se de uma forma de nossa sensibilidade, juntamente com o espaço. O tempo não é um conceito empírico, que pudesse ser deduzido das coisas, pois é condição de possibilidade de todo e qualquer fenômeno, seja ele interno (do movimento da mente) ou externo (em que somos afetados pelos objetos do mundo). Ele é a condição de que se possa perceber a anterioridade, a simultaneidade ou a posteridade dos fenômenos. Segundo Kant, não se pode abstrair o tempo dos objetos, mas se poderia abstrair todos esses dele, ou seja, pode-se pensar o tempo sem nenhum objeto, mas não algum objeto que não seja determinado temporalmente. O tempo nada mais seria do que uma maneira inevitável através da qual podemos ter consciência de qualquer fenômeno. Trata-se de um ponto de vista propriamente humano de intuir qualquer coisa. Apesar de o próprio tempo não ser intuível, pois é anterior a qualquer intuição, a melhor maneira de representá-lo, diz Kant, é a linha, que, não tendo nenhuma extensão lateral, expressa, nesta unidimensionalidade, que não é possível haver mais de um tempo simultâneos, mas, sim, sucessivos.

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Apesar de excessivamente breve — porque contamos, aqui, com a familiaridade da Estética Transcendental ao leitor —, essas características da concepção kantiana podem servir de estímulo para uma reflexão, também sucinta, sobre sua motivação histórica.

A Filosofia de Kant é marcada por ser a expressão conceitual da vivência de um iluminismo não-revolucionário, pelo menos não em termos de prática de vida. Distante do centro conturbado da Europa da revolução burguesa, no interior da Prússia oriental, marcado pela vida ascética do puritanismo pietista e pela predileção individual para com as formas abstratizantes platônicas (incluindo as matemáticas), Kant operou o que podemos conceber como uma “re-teorização” radical da concepção do fluxo do tempo, mediada pela existencialidade temporal cristã.

Uma vez estirado o sujeito entre os pólos atrativos do passado e do futuro, o que o iluminismo kantiano fez foi retirar esse elemento de atratividade destes. O que sobrou foi a consciência da planura do tempo a partir do ponto de vista privilegiado da interioridade subjetiva, sem a vinculação à dinâmica motivacional da existência. Uma vez dando-se um salto a mais na escalada abstracional, nada mais evidente que aquele movimento de consciência da determinação tripartite do tempo propiciada pelo conceito helênico se fizesse em escala telúrica, uma vez liberto da rugosidade existencial do sofrimento cristão. O que propiciou essa planura absoluta de um tempo como mera forma do sujeito foi a leitura do mundo a partir do número, que é o que de mais abstrato há em termos de pensamento aplicável ao mundo. Lembre-se, a esse respeito, que o próprio Kant quis escrever sua Crítica da razão pura como fundamentação da matemática e da física newtonianas, todas as duas fundadas na noção de tempo e de espaço absolutos e contínuos, concebidos numericamente. Além disso, o próprio número é pensado por ele a partir do tempo: “o número não é senão a unidade da síntese do múltiplo de uma intuição homogênea em geral, mediante o fato de que produzo o próprio tempo na apreensão da intuição”201. Em suma: foi a suprema abstração numérica, como chave de leitura do mundo, que serviu de âncora para a visada globalizante do sujeito, exercida sobre um tempo estirado em um plano infinito e totalmente desprovido da espessura de qualquer conteúdo, tal como vazio é o próprio número.

Hegel, por sua vez, não vive um iluminismo idealista pré-revolucionário, mas, sim, um romantismo que comemora a vitória do sujeito sobre a exterioridade opressiva. Sua Filosofia é fruto do vínculo entre sua formação teológica cristã, sua proximidade com os eventos vitoriosos da revolução e a influência da filosofia formalista de Kant. Em vez do projeto de um eidos futuro a se realizar sob a égide do rigor conceitual (tal como a República platônica ou o reino dos fins na vida moral kantiana), tem-se o olhar de Minerva que pretende ver, no rio (e não na linha) do tempo heraclítico, a imagem de si mesmo mediada pela torrente de acontecimentos em seu fluxo incessante rumo ao mar infinito do saber que superou todos os limites.

O tempo é tomado como o medium por excelência do desdobramento da identidade subjetiva, mas um tempo preenchido, um tempo histórico strictu sensu. Trata-se de uma repraticização do tempo, só que, agora, em termos da mirada retrospectiva resultante do ligamento daquela abstração à materialidade sobre a qual ela é exercida. O caráter pro-jetual do iluminismo é apropriado como enformador do passado, constituindo, erigindo, um saber que se percebe, a um só tempo, como instaurador e executor de uma

201 Immanuel Kant. Crítica da razão pura. Tradução de Valerio Rohden e de Udo Baldur Moosburger. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p.147 (“Do esquematismo dos conceitos puros do entendimento”, §9)

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tarefa de resgatar o que existiu como algo que mostra o que o pro-jeto do futuro pode conter como verdadeiro, real.

A questão que Adorno coloca a essa concepção é que todo o fluxo histórico é sempre visto, investigado, sob o prisma do universal. Diríamos que, paradoxalmente, a mesma abstração do eu kantiano é transposta para esse olhar astucioso da razão teológica universal que pretende reconhecer-se no embate cego da forças particulares em Hegel:

Seu espírito universal [Weltgeist ] é a ideologia da história da natureza. Ela se chama espírito universal por causa de sua violência. A dominação torna-se absoluta, projetada no próprio ser, que é o espírito. Mas a história, a explicação de algo que sempre já deve ter sido, adquire a qualidade do anistórico. Hegel volta-se, em meio à história, para o lado do imutável, do sempre-o-mesmo, da identidade do processo, cuja totalidade é glorificada. Ele deve ser vinculado de modo não-metafórico à mitologia da história. (ND 350)

Contra Kant, Adorno diz que o tempo não deve ser concebido como forma pura:

De fato, seria academicismo ruim se a dialética fosse atribuída ao conceito de tempo expurgado de todo conteúdo temporal. O tempo dialetiza-se à reflexão crítica, entretanto, como unidade mediada de forma e de conteúdo. A estética transcendental de Kant não teria nada a responder à objeção de que o caráter puramente formal do tempo como “forma da intuição”, seu “vazio”, não corresponde a qualquer intuição que seja. (…) O tempo absoluto como tal, alienado de todo e qualquer substrato fático que existe e transita nele, não seria mais absolutamente o que, segundo Kant, o tempo, inapelavelmente, tem que ser: dinâmico. Nenhuma dinâmica sem aquilo no qual ela se realiza. Por outro lado, não há como representar-se alguma facticidade que não possuísse sua posição no continuum do tempo. A dialética carrega essa reciprocidade até mesmo no âmbito mais formal: nenhum dos momentos essenciais e que se contrapõem aí existe sem o outro. (ND 325-6)

A mesma objeção que se fez ao cogito cartesiano, de que o pensamento somente pode se conceber como tal a partir de seu objeto, a consciência do tempo somente pode ser o que é pelo fato de que há coisas que estão no tempo. Ora, a concepção do preenchimento material do tempo está vinculada diretamente à concepção da alteridade em relação ao sujeito, a suas formas de intuição e de pensamento. A marcha do pensamento esclarecido teve a direção prioritária de ratificar a autonomia do espírito. O capitalismo não apenas empobreceu nossos sentidos físicos em função da hipóstase do sentido abstrato do ter, como disse Marx, mas, também, o do sentido, da percepção, do tempo histórico, devido à tendência majoritária da razão em hipostasiar sua autarquia frente a seu outro, orientada pela idéia de progresso, que sempre teve, como sua conditio sine qua non, o isolamento frente ao outro: “o momento mítico do progresso intramundano está em que, como o reconheceram Hegel e Marx, ele ocorre sempre sobre as cabeças dos sujeitos e os forma à sua imagem”202. Que o leitor nos permita citar um trecho um tanto longo do artigo “Progresso”, em que Adorno sintetiza de modo absolutamente didático e magistral a imbricação entre o solipsismo do espírito e a negação de seu caráter dinâmico:

A realidade produz a ilusão de desenvolver-se para cima e, no fundo, permanece sendo o que era. O espírito que quer algo novo, enquanto ele mesmo não é mais que uma engrenagem, dá com a cabeça na parede em cada tentativa desesperadamente reiterada, tal como um inseto que se chocasse contra o vidro ao voar para a luz. O espírito não é o outro, tal como ele se entroniza a si mesmo, transcendente em sua pureza, mas, também, é parte da história natural. Já que esta se apres enta como dinâmica na sociedade, o espírito — desde os Eleatas e Platão — crê possuir em si mesmo o outro, em imutável identidade consigo mesmo, apartado da “civitas terrena”, e suas formas — antes de mais nada a lógica, intrínseca em estado latente a todo o espiritual em geral — são feitas sob medida para esse padrão. Nelas, o espírito cai sob o poder estacionário, ao qual resiste, e do qual, mesmo assim, continua fazendo parte. Pelo feitiço que a realidade impõe ao

202 Theodor W. Adorno. “Progresso”. In: Palavras e sinais. Modelos críticos 2. Tradução de Maria Helena Ruschel. Petrópolis: Vozes, 1995, p.54.

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espírito, fica-lhe vedado fazer aquilo que, em oposição ao meramente existente, o seu próprio conceito quer: voar. Sendo mais delicado e fugaz, é também muito mais suscetível à opressão e à mutilação.203

É precisamente esse nó entre o solipsismo do espírito e o empobrecimento da historicidade que pretendemos desfazer em termos teóricos no restante desse capítulo, e isso através da investigação do vínculo que se pode estabelecer entre um modo de experienciar a alteridade em que esteja em jogo a irrupção da dinâmica histórico-temporal. Essa tarefa será cumprida em duas etapas, em que investigaremos o que consiste o contato com essa alteridade de modo enfático — a experiência do sublime — e o caráter de historicidade para tal experiência na arte a partir da Teoria estética de Adorno. 2. Transcendência e alteridade: o sublime em questão

a) A pertinência do conceito de sublime

Dentro de um movimento que qualificaríamos como próprio da tendência contemporânea de desfazer diferenças qualitativas, o conceito de sublime — tradicionalmente vinculado à grandeza, à imponência, à desmesura física e intelectual — é visto como não mais nitidamente distinguível do de beleza — tradicionalmente vinculado à idéia de harmonia, de ordem, de limitação, de continência —, carecendo, assim, de relevância como categoria per se. A arte moderna é que teria propiciado o impulso para essa homogeneização das duas noções, posto que os elementos negativos nela presentes, tais como a cacofonia e a dissonância na música, a ininteligibilidade da poesia, o feio e desordenado na pintura, etc. — que se vinculariam à noção mais tradicional de sublime —, acabam entrando em um continuum, em uma totalidade, que acaba passível de ser açambarcado pelo conceito de beleza. O próprio Adorno situa-se nessa tendência, posto que, na Teoria estética, fala do belo natural e do sublime como se ambos se fundassem em um mesmo solo comum, o da alteridade indeterminável conceitualmente em relação ao sujeito. Em relação ao poder da arte moderna de lidar com o feio, ele diz:

O peso deste elemento aumentou na modernidade de tal forma que surge daí uma nova qualidade. Segundo a estética tradicional, aquele elemento contradiz a lei formal que domina a obra, é integrado por ela e a confirma através disso, aliado à força da liberdade subjet iva na obra de arte frente aos temas. Estes, entretanto, tornar-se-iam belos em um sentido mais elevado: através de sua função na composição pictórica, por exemplo, ou na produção de um contrapeso dinâmico (…). (ÄT 74-5/60)

Ora, uma vez que nossa argumentação se funda precisamente no conceito de sublime, é de se esperar que possamos argumentar a favor da possibilidade de distingui-lo de modo legítimo do de beleza. A pergunta que se faz é: por que se deve fazer essa distinção? Por que ela é boa, necessária, pertinente ou verdadeira? Cremos que a melhor maneira de responder a isso seja mostrando, inicialmente, que tal distinção pode ser clara no âmbito da natureza, para, depois, questionar sua aplicação no caso da arte.

Há coisas na natureza que chamaríamos sem nenhuma dúvida de belas, mas não de sublimes? Tomamos como certo que a resposta seja sim: uma folha de árvore caída no outono; um canário; uma margarida; uma flor de laranjeira; um peixe de aquário simples; uma pedra pequena de cristal e uma infinidade de outros seres são exemplos de seres a que normalmente atribuímos o adjetivo “belo”, mas não o “sublime”. Por seu turno, há coisas na natureza chamaríamos sem nenhuma dúvida de sublimes, mas não de belas?

203 Theodor W. Adorno. “Progresso”. In: op. cit., p.55-6.

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Novamente tomamos como inequívoco que a resposta é sim: um trovão ocorrido perto de nós; a fúria de um elefante; um furacão que arrasa uma cidade; um leão devorando um antílope que agoniza; um terremoto avassalador e vários outros são exemplos de eventos e de seres naturais em que o sublime é inequivocamente aplicável e em que o conceito de belo não o é.204 Isso nos indica, de início, que, mesmo que não tenhamos uma definição clara de belo e de sublime, nossa concepção prévia, cotidiana, de ambos já nos capacita a dizer que, em muitos casos, eles são nitidamente excludentes entre si. Por outro lado, haveria casos em que poderíamos inequivocamente aplicar ambos os conceitos? Novamente temos que dizer que sim: o céu estrelado; o mar, visto em sua profundidade sem limites e em relativo repouso; uma cordilheira imensa; uma planície que se perde ao longe, etc., são casos em que tanto podemos dizer que há beleza e sublimidade. Esse entrelaçamento de ambos as noções deveria nos levar a desconsiderar a diferença entre eles? – faz com que tenhamos que descartar tal distinção?

Ora, que haja a aplicação simultânea das duas idéias em vários casos não nos autoriza a desprezar a consciência clara de que, como conceitos e em casos concretos, eles podem ser distinguidos de modo satisfatório. E isso se dá não apenas em relação a conceitos complexos como esses, mas, também, a outros simples e usados normalmente no cotidiano: que haja várias coisas no mundo que não sejam perfeitamente legíveis sob o conceito de “árvore”, situando-se entre um arbusto, uma planta grande, etc., evidentemente não nos autoriza a descartá-lo; e assim com todos os conceitos que temos. Eles não podem ser tomados como responsáveis únicos pelo fato de não serem aplicáveis clara e distintamente a tudo o que nos cerca. Esse mal-estar um tanto paranóico, típico da mentalidade científica positivista em relação à ambigüidade do conceito, expressa visivelmente um elemento do discurso teórico em geral que Adorno combate através da idéia da forma de escrita filosófica do ensaio. Este é contra o procedimento filosófico que opera através de definições prévias:

Sem apologia, assume a objeção de que é impossível saber acima de qualquer dúvida que idéia se deveria fazer dos conceitos. Pois percebe que exigir definições estritas contribui há muito tempo para eliminar, mediante a manipulação dos significados dos co nceitos através de sua fixação, o elemento irritante e perigoso das coisas, que vive nos conceitos.205

Embora seja necessário considerar esse elemento de opacidade do conceito, é preciso, entretanto, considerar que isso não leva a simplesmente negar abstratamente nossa capacidade de defini -lo, como Adorno também o afirma. A seguinte passagem, relativa ao conceito de belo, bem pode servir para todo e qualquer conceito da estética ou filosófico em geral:

Tão pouco se deve definir o belo, quanto desistir de conceituá-lo — uma estrita antinomia. Sem categorias, a estética seria disforme, descrição relativístico -histórica do que foi visado alhures, em diversas sociedades ou em diversos estilos, como beleza; uma unidade de caracteres destilada a partir daí transformar-se-ia inevitavelmente em paródia e destruir-se-ia a seguir perante algo escolhido concretamente. (ÄT 82/66)

Dado que há, como podemos perceber claramente pelos exemplos acima, uma diferença substancial nas aplicações dos conceitos de sublime e de beleza, a pergunta 204 Em ambos os casos, entretanto, há que se notar que não se pode falar em geral que todas as margaridas são belas e que todos os furacões são sublimes, seguindo-se a idéia kantiana de que o juízo estético é sempre singular, pois é preciso ver, em cada caso se tais conceitos são efetivamente aplicáveis. Os exemplos mostram apenas aqueles seres e eventos que normalmente são considerados belos ou sublimes devido à sua relativa homogeneidade de formas. 205 Theodor W. Adorno. “O ensaio como forma”. In: Theodor W. Adorno. Tradução de Flávio R. Kothe et ali. São Paulo: Ática, 1986, p.176.

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que resta a responder — que é a tarefa mais difícil e que ficará para o próximo item — é a de se tais distinções podem ser percebidas também na arte.

Há que se considerar, também, uma questão que pode ser considerada periférica, mas que se torna importante por envolver toda a determinação do âmbito da estética. No exemplo que demos acima do leão devorando um antílope, alguém poderia dizer que o conceito de belo seria aplicável na medida em que percebemos nesse ato toda a “beleza” da ordem natural, que faz com que ela siga seu curso, com a luta pela sobrevivência das espécies mais aptas, etc. Ora, esse argumento não é válido, simplesmente porque a “beleza” que se pretende ver nele é propriamente conceitual, e, não, estética. Trata-se de tomar o ato dos animais como figuração de alguma coisa que é pensada como mais digna, nobre, elevada, que é a noção de ordem, de harmonia. Não se trata de uma beleza estética, que é a que nos interessa. Mas poder-se-ia objetar, ainda, que não há experiência estética pura, isenta de relações conceituais. Isso é correto, mas há algumas maneiras de o elemento conceitual relacionar-se ao estético de modo a prejudicá-lo ou até mesmo destruí-lo, como é o caso de se condenar uma obra de arte porque os valores morais que ela veicula são abjetos, como racismo, etc. A arte não tem função moral direta, ela não deve ser medida pela qualidade de seus enunciados cognitivos ou morais. Que ela tenha elementos dessa espécie, isso é verdade, mas eles devem ser considerados partes de sua constelação de momentos, não tomados como seu sentido total ou critério de valor.

Quanto ao entrelaçamento das noções de belo e de sublime, poderíamos fazer uma comparação com os de forma e de conteúdo na Teoria estética de Adorno. “Contra a divisão pedante da arte em forma e em conteúdo, é preciso insistir em sua unidade e contra a concepção sentimental de sua indiferença na obra de arte, insistir no fato de sua diferença subsistir ao mesmo tempo na mediação” (ÄT 221-2/169). Naturalmente, a relação entre forma e conteúdo não é a mesma entre os dois conceitos que examinamos, mas algo dessa idéia de Adorno poderia ser aplicada a estes, na medida em que somente faremos justiça a ambas as idéias se concebermos, tanto sua diferença, quanto sua semelhança, ou somente faremos justiça à diferença entre elas se concebermos sua identidade e vice-versa.

Para caracterizarmos a especificidade do sublime, não há autor mais significativo do que Kant, que forneceu uma concepção tornada modelo — ou, pelo menos, referência obrigatória — para todas as reflexões contemporâneas sobre o tema.

b) A introversão da transcendência: o sublime kantiano

Vejamos, primeiro, a concepção kantiana da beleza para contrapor-lhe, depois, o sublime.

O belo, em Kant, diz respeito a um comprazimento em relação a uma forma de um objeto que nos parece possuir uma finalidade sem que, ao mesmo tempo, tenhamos como explicar conceitualmente por que temos essa percepção. Parece que tal forma foi feita para nos dar prazer, para se adequar a nós, sem que consigamos estabelecer intelectualmente um fundamento para essa percepção. Em termos de estruturação formal do objeto, isso significa, nas palavras de Kant, que ele é conforme a fim (final, finalístico) sem que haja um fim estabelecido conceitualmente: “beleza é a forma da conformidade a fim de um objeto, desde que ela, sem representação de um fim, seja percebida nele” (KdU B 61).

A beleza em Kant é propriamente formal, na medida em que diz respeito a um processo de contemplação do objeto, sem que esteja em jogo o prazer que tenhamos pela materialidade dele. Isso significa que não é a sensação advinda do contato com a coisa que é fonte do prazer da beleza, mas, sim, a mera forma do objeto, a qual provém de uma

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postura ativa do sujeito no seu contato com o mundo. Nas palavras de Kant, o gosto, a faculdade de apreciar a beleza das coisas, não tem interesse pela existência material do objeto que julgamos belo. Tal interesse existe quando julgamos algo agradável (que agrada mediante a mera sensação) ou bom (útil para alguma coisa ou bom moralmente); nesse primeiro caso, o objeto agrada meramente em termos materiais, no segundo, através do preenchimento material de algum conceito determinado.

Diferentemente do prazer do agradável, que é meramente individual, a beleza contém universalidade. O prazer da beleza é de tal modo constituído, que gostaríamos que todas as pessoas concordassem com nosso juízo sobre a beleza do objeto. Essa concordância, todavia, não é baseada em conceitos, como é o caso do prazer do bom, ou de qualquer juízo sobre as propriedades objetivas de algo. Ela se funda no fato de que, numa representação sensível pela qual um objeto é trazido a nossa consciência, a imaginação, a capacidade de formar imagens das coisas, fornece uma unidade para o múltiplo da representação, cuja unidade contém aquela conformidade a fim, sem que o entendimento, a faculdade dos conceitos, consiga abranger essa conformidade a fim com um conceito determinado (de fim). Essa situação, em que a faculdade imaginativa não está submetida — ao contrário do que normalmente acontece — a uma determinação conceitual, caracteriza o que Kant chama de livre jogo entre ela e o entendimento. A universalidade do juízo de gosto, pelo qual atribuímos beleza a um objeto, reside precisamente em que esse livre jogo se dá em um âmbito que escapa das determinações individuais da esfera da sensibilidade. Trata-se de uma atividade meramente formal, diz Kant, que ocorre em uma esfera na qual todos os homens podem concordar entre si, sem a mediação dos conceitos. É como se todos nós possuíssemos um sentido comum, uma faculdade universal de sentir, de perceber, nosso estado mental como prazeroso.

Mas note-se: por mais universal que o juízo sobre a beleza pretenda ser, há duas observações importantes. A primeira diz respeito à factualidade da concordância intersubjetiva. Não se trata de dizer que os homens efetivamente concordem que esse objeto específico seja belo, pois o que acontece normalmente é que eles discordem. A universalidade da beleza é tal que ela é o fundamento do juízo de gosto, ou seja, um dos elementos que fazem com que tal sentimento seja prazeroso, é o fato de que gostaríamos que todos estivessem julgando como nós nesse momento, isto é, conta como um determinante de nosso prazer o fato de nos vermos livres, momentaneamente, da nossa limitação individual no uso de nossas faculdades. Pode existir — o que é, aliás, mais freqüente — que haja mais concordância entre algo considerado agradável, como o sabor de um vinho, do que sobre algo belo, como uma obra de arte. A outra observação diz respeito ao fato de que, embora a sensação não conte como fundamento para o juízo de gosto, ela é necessária para que este aconteça. Somente numa representação sensível é que podemos experimentar aquele livre jogo de imaginação e de entendimento. A beleza é, para Kant, algo que somente seres sensíveis e racionais podem sentir. Nem animais, nem deuses, poderiam fazê-lo.

Como a arte pode ser bela? Ela inclui um determinado conceito de fim, posto que é o resultado da atividade humana, não da natureza, nem do mero acaso. Entretanto, esse conceito não transparece na forma da obra. Segundo Kant, as belas-artes têm sua especificidade precisamente pelo fato de que nós, conscientes de que se trata de um produto humano, não percebemos esse fim em sua forma, o que significa dizer que as belas-artes, embora sejam resultado de uma atividade orientada a um fim específico, parecem ser natureza. O artista, para produzir essa obra, tem que possuir um talento, um dom natural, em que ele coloca uma conformidade a fim nela sem que esteja consciente

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das regras que segue ao fazer isso. Segundo Kant, esse talento é a genialidade, que é o meio através do qual a natureza dá as regras à arte. Fazendo um contraponto, Kant diz que a natureza, ao parecer bela, é tomada como arte (como se tivesse sido feita por um ser sobre-humano para nos agradar), e a arte, ao parecer bela, é tomada como natureza (pois não conseguimos discernir o fim humano posto em seus produtos).206

Diante dessa caracterização sumária, podemos tirar dois elementos argumentativos importantes sobre o belo: 1) ele é pensado essencialmente como harmonia entre nós e o mundo e entre as faculdades da mente, e 2) diz respeito à delimitação formal do objeto, uma vez que, para ajuizar beleza de algo, devemos poder apreender sua forma em uma unidade da representação sensível. Ambas as características são negadas no sublime.

Podemos dizer que as concepções kantianas do sublime e da moral compartilham das duas características que vimos na negação do nome de Deus judaica: negam ao âmbito sensível a positividade gnosiológica ou prática, ao mesmo tempo em que a deslocam para o âmago recôndito da alma humana. Assim, ambas estão ligadas intimamente. Como dissemos antes, Kant considerava sublime a proibição judaica de formar uma imagem de Deus:

Este mandamento pode explicar o entusiasmo que o povo judeu sentia por sua religião em sua época de civilidade, quando se comparava a outros povos, ou aquele orgulho que o maometismo inspirou. Precisamente o mesmo vale também para a representação da lei moral e da disposição para a moralidade em nós. É uma preocupação totalmente equivocada pensar que, se se retira dela tudo aquilo que ela pode recomendar aos sentidos, então ela não perceberá em si nenhuma outra aprovação além de uma fria e enfraquecida, nem alguma força motriz ou comoção. É exatamente o contrário; pois lá, onde os sentidos não vêem nada mais diante de si e, entretanto, ainda resta a inelidível e indissolúvel idéia de eticidade, seria necessário moderar o ímpeto de uma imaginação ilimitada, para não deixá-lo alçar o entusiasmo, mas, em vez disso — por medo da fraqueza dessas idéias —, ajudá-las com imagens e um aparato infantil. (KdU B 125-6)

A depreciação hiperbólica da intuição frente à infinitude do espírito está na base, tanto da moralidade — como já tivemos a oportunidade de comentar —, quanto do sublime kantianos. Vejamos como esse último está delineado na Crítica da faculdade do juízo.

Em Kant, o sentimento do sublime, como um juízo estético puro, ou seja, que se funda somente na relação entre as faculdades da mente (no caso, imaginação e razão), e não em conceitos ou nas sensações provenientes dos sentidos, caracteriza-se primeiramente pela insuficiência da imaginação em fornecer uma unidade para o múltiplo dos dados da sensibilidade. Ou seja, na contemplação do objeto, aquela faculdade experimenta um fracasso essencial na atividade que lhe é própria, a de fornecer uma totalidade do que lhe é apresentado pelos sentidos, isto é, a de dar uma forma para aquilo que é objeto da intuição sensível. Nesse primeiro momento, tal objeto (e conseqüentemente a própria atividade da imaginação) parece ser contra-final [zweckwidrig] para a mente considerada em sua totalidade, ou seja, o esforço [Bestrebung] da imaginação em apresentar numa totalidade intuitiva a infinidade (ou quase infinidade) do que lhe vem através dos sentidos é percebido como desarmonia entre ela e a razão, o que nos mostra que o estado da mente do sujeito é de desprazer. O papel desse fracasso é importante, tanto para nossos argumentos, quanto para a interpretação do texto kantiano como um todo. Lyotard enfatiza tal momento como essencial e fundante do sentimento do sublime:

(...) essa grandeza [da natureza — vf] só é bruta, e só suscita o sentimento sublime, porque escapa da forma, porque é ‘informe, formlos oder ungestalt ’ (KdU 128). E é esta ‘ausência de forma, esta

206 Sobre a beleza artística em Kant, veja-se todo o primeiro capítulo de nossa dissertação de mestrado, intitulado precisamente “O conceito de forma da obra de arte na Crítica da faculdade do juízo de Kant”.

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Formlosigkeit ’, que Kant evoca para começar a análise do sublime pela quantidade (KdU 90).207

Outro autor que também pensa desta forma é Wolfgang Bartuschat, que diz: “O sublime ganha (...) sua característica primeiramente através da posição que resulta da tendência de quebrar toda estrutura [Gestalt] formada tal como o belo a apresenta”208. Entretanto, se formos considerar a letra do texto da Crítica, como nos mostra Allan Lazaroff, aquela insuficiência imaginativa não seria sempre necessária. O seguinte trecho da Crítica da faculdade do juízo mostra essa ambigüidade:

O belo da natureza concerne à forma do objeto, que consiste na limitação; o sublime, ao contrário, deve ser encontrado também (grifos nossos) em um objeto sem forma, desde que seja representada ilimitação nele, ou por sua ocasião, mas que seja pensada, além disso, totalidade dessa ilimitação (...) (KdU B 75).

Lazaroff chega a dizer, baseado nessa passagem e em sua interpretação do final da seção sete da Introdução, que o sublime “concerne antes a algo diverso de forma e, assim, não se relaciona a forma ou a sua ausência”209. Seguindo-se toda a “Analítica do sublime”, todavia, podemos perceber que a ênfase que Lyotard coloca na impossibilidade da imaginação em conceber a forma do objeto deve ser considerada mais pertinente do que a importância conclusiva que Lazaroff dá à passagem que citamos acima. Com efeito, mesmo que possamos dizer que Kant considere a possibilidade de algo com forma proporcionar o sentimento de sublimidade, o que desperta tal sentimento é antes a impossibilidade, em uma determinada situação, de a imaginação fornecer uma totalidade intuitiva do objeto. Nesse ponto, Adorno concordaria com essa concepção kantiana que estamos enfatizando, pois diz que o sublime se relaciona ao problema da apresentação do infinito, e este, enquanto tal, naturalmente não comporta a idéia de uma totalidade formal.210

Mas isso é apenas o começo — e que assim o seja é, como veremos, de grande importância. A impossibilidade de a imaginação fornecer uma limitação para a multiplicidade intuitiva não é ainda o sentimento do sublime. Se fosse, este seria um sentimento de desprazer apenas, e não de prazer. Este último vem, segundo Kant, do fato de que, embora a atividade da imaginação seja, em um primeiro momento, contra-final, entretanto o próprio fracasso da imaginação é considerado como conforme a fim [zweckmäßig] para a razão, em que há “a exigência de totalidade absoluta, como de uma idéia real” (KdU B 85); trata-se de idéias práticas da razão: Deus, liberdade e imortalidade da alma. Devido precisamente ao entrelaçamento entre o esforço — constitutivamente irrealizado — da imaginação de um progresso ao infinito e tal exigência da razão de tornar sua idéia algo real, efetivo, então “aquela inadequação mesma da nossa faculdade da estimativa da grandeza das coisas do mundo dos sentidos é, para aquela idéia, o despertar do sentimento de uma faculdade supra-sensível em nós” (idem). Que a

207 Jean-François Lyotard. Lições sobre a Analítica do Sublime. Tradução de Constança Marcondes Cesar. São Paulo: Papirus, 1993, p. 78. 208 Wolfgang Bartuschat. Zum systematischen Ort von Kants Kritik der Urteilskraft. Frankfurt: Vitorio Klostermann, 1972, p.120. (Grifos nossos) 209 Allan Lazaroff. “The Kantian sublime: aesthetic judgement and religious feeling”. In: Kant-Studien, Berlin: Walter de Gruyter, 1980, vol. 71, caderno 2, p. 206. 210 Devido exatamente a essa dificuldade é que Lyotard formula da seguinte maneira, sem responder, a questão: “(...) é possível, e como, testemunhar o absoluto por meio de representações artísticas e literárias, que são sempre submetidas a formas?” Jean-François Lyotard. Lições sobre a Analítica do Sublime. Tradução de Constança Marcondes Cesar. São Paulo: Papirus, 1993, p.144.

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imaginação, diante de seu fracasso, passe a ter uma finalidade que lhe escapa, ou seja, apresentar o que ela não mais consegue delimitar formalmente como uma representação das idéias da razão, aí precisamente surge o sentimento do sublime, pois, nesse momento, o uso que a faculdade do juízo faz do objeto é grande acima de toda comparação, ou seja, infinita- e absolutamente grande. Mas a descoberta dessa faculdade supra-sensível, que é auto-referente tanto por estar acima dos dados sensíveis quanto por ser grande acima de toda comparação, somente é alcançada porque o sujeito está em contato com algo que lhe é exterior, que é um outro em relação a ele. A ipseidade absoluta daquela faculdade apresenta-se, portanto, paradoxal — o que foi muito bem delineado por Bartuschat:

(...) a maneira em que o sublime pode se tornar objeto do sujeito é aquela em que o sujeito tem que tornar intuitivo o sublime como expressão de um poder residente no sujeito, isto é, tem que relacionar expressamente este poder a um outro, para sentir, a partir de lá, o que ele pode como sublime. (...) O sublime é um tal [ser sentido, Gefühlwerden — vf] que traz à apresentação uma determinada faculdade do sujeito no “outro” do sujeito e somente nisso deixa ver a faculdade enquanto faculdade. 211

O sentimento do sublime resulta, portanto, de uma dupla reflexão: primeiramente da inadequação da atividade imaginativa em relação ao nosso ímpeto de conhecer as coisas, em que a tentativa frustrada da imaginação de abarcar numa totalidade intuitiva o infinito parece ser contra-final para a razão — o momento do desprazer, como mediação do sublime; depois, de uma nova reflexão, em que o próprio fracasso da imaginação é tomado como conforme a fim para as idéias da razão; ou seja, o jogo das faculdades, que, considerado em si mesmo, somente pode suscitar desprazer, é prazeroso apenas na medida em que é referido a algo “para o qual o próprio fracasso é fonte de prazer, e que não pode ser o próprio jogo-comum [Zusammenspiel] dos poderes na forma de um jogo imanente de imaginação e razão”212, que é, segundo Kant, “o sentimento de nossa determinação supra-sensível” (KdU B 98) enquanto faculdade que está em nós e que, assim, ultrapassa as determinações sensíveis. O sublime, portanto, não deve ser referido a nenhum objeto sensível, mas somente a um determinado estado da mente, que se mostra destarte auto-referente.

Essa caracterização deve ser pensada em relação às duas possibilidades de a natureza despertar o sentimento de sublimidade: o matematicamente-sublime e o dinamicamente-sublime. O primeiro está ligado à infinitude atual da grandeza física dos objetos, como o céu estrelado, uma cordilheira que se perde no horizonte, etc.; o segundo, à infinitude de poder do objeto frente ao sujeito, o qual se vê totalmente desprovido de forças físicas para resistir minimamente, que é o caso da visão das forças de uma catarata gigantesca, da fúria de um tornado, etc. Nesse último caso, salienta Kant, é necessário que o espectador esteja em segurança, sem estar ameaçado de modo real em sua integridade física, pois, caso contrário, não seria possível haver o elemento próprio dos juízos estéticos, que é a contemplação. O perigo real retiraria esse distanciamento necessário para configurar-se a esfera da esfera estética propriamente dita. Em ambos os casos de sublimidade, trata-se daquela dinâmica subjetiva que apontamos, em que a impossibilidade de abarcar a infinitude (seja de magnitude ou de poder) em uma representação sensível faz a imaginação tomar essa sua insuficiência como uma apresentação negativa da infinitude das idéias da razão.

211 Wolfgang Bartuschat. Op. cit., p.126-7. 212 Wolfgang Bartuschat. Op. cit.,, p.122.

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Mas há varias representações do que seria o sublime em que tal sentimento estaria vinculado precisamente a um delineamento positivo do objeto que nos causaria tal comoção. Seria o caso do mal sublime, que parece sempre ligado a uma imagem positiva da transcendência, como Kant diz sobre algumas religiões e sobre alguns governos (Cf. KdU B 126), nos quais o elemento de consolo, de compensação, pela fraqueza ou pela nulidade física é absorvido e utilizado como manipulatório.

Entretanto, apesar de negar veementemente toda positividade para a atividade da imaginação, insistindo na negatividade do prazer do sublime, a concepção kantiana fornece a estrutura teórica acabada da introjeção secularizada dessa imagem positivamente posta nas religiões. A força moral e o caráter de absoluto do sujeito são, não apenas afirmados — como sublinha Adorno (cf. ÄT 396/297) —, mas, também, tomados como aquilo que tomou, na ética protestante, o lugar da fonte privilegiada da lei divina, que, no catolicismo, assumia uma exterioridade cristalizada na figura da Igreja. Essa interioridade do sujeito, mesmo negando a positividade do transcendente, transformou-se na fonte de compensação e de consolo para sua própria fraqueza física. A positividade da imagem, embora recusada inicialmente, permaneceu, dissimulada pela negação da imagem externa, mas traída na constituição de uma interna: a afirmação da autonomia moral corrompe a intenção de tomar a sério a negatividade da imagem no sublime. O que Baldine Sint Girons diz do sublime kantiano, que ele deixou de ser estético para se tornar intelectual213, pode ser expresso de uma maneira mais enfática e aguda pela qualificação de ensejo para a apologia do sentimento cristão-pietista de reforço hiperbólico da interioridade do sujeito que tem fé, alheio à sociedade. Kant diz explicitamente que a recusa do convívio social é, ela própria, sublime: “ser suficiente para si mesmo, portanto não precisar da sociedade, sem, entretanto, estar só, isto é, sem fugir dela, é algo que se aproxima do sublime, tal como toda elevação acima das carências” (KdU B 127).

Essa introversão do transcendente tem relação forte com a genealogia imagética da própria transcendência. Uma vez que a morte é o obstáculo intransponível, que atesta a superioridade da natureza (cujos reflexos, atualmente, fazem-se presentes na ameaça constante do desemprego no capitalismo, no qual o trabalhador é efetivamente livre para morrer de fome), não resta ao indivíduo, diz Schiller, nenhuma outra alternativa frente ao desespero da nulidade que não

suprimir total e absolutamente uma relação que lhe é desvantajosa e aniquilar, segundo o conceito , uma violência que ele, de fato, tem que sofrer. Aniquilar uma violência segundo o conceito, entretanto, significa nada mais do que se submeter a ela espontaneamente. A cultura que o torna capaz disso chama-se a [cultura] moral.214

Nós experienciamos, através do sentimento do sublime, que o estado de nosso espírito não se guia necessariamente pelo estado dos sentidos; que as leis da natureza não necessariamente são também as nossas; e que temos em nós um princípio autônomo que é independente de toda comoção sensível.215

213 Baldine Sint Girons. “Sublime (Philosophie)”. Paris: Encyclopaedia Universalis, 1990, p.724. 214 Friedrich Schiller, “Über das Erhabene”, In: Sämtliche Werke. München: Carl Hanser, 1989, p.794. Estamos apoiando nossa interpretação crítica de Kant na leitura que Schiller faz do sublime kantiano, porque, como o próprio Kant já afirmara e Heidegger também disse, ele foi “o único que, relativamente à doutrina kantina do belo e da arte, compreendeu o que lhe era essencial” (fala de Heidegger citada por Lacoue-Labarthe em “La verité sublime”, in: Jean-François Courtine et al. Du sublime. Belin, 1988.) 215 Friedrich Schiller, op. cit., p.796.

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O sujeito, que tem sua ipseidade ancorada no sentimento moral, é tomado como consolo metafísico para a impotência de sua condição de um ser de natureza. A faculdade moral acaba usurpando o lugar da transcendência religiosa ao glorificar sua independência perante a natureza. Como diz Adorno,

(…) o que é fixo, permanente, impenetrável do Eu é mímesis do que é percebido pela consciência primitiva como impenetrabilidade do mundo exterior para a consciência que o experiencia. A impotência real do sujeito tem seu eco na onipotência deste. O princípio do Eu imita sua negação. (…) Sua auto-elevação é reação à experiência de sua impotência, que impede a auto-reflexão; a consciência absoluta é a-consciente. A filosofia moral de Kant fornece um grande exemplo disso na insofismável contradição de que o mesmo sujeito, que, segundo ele, é livre e sublime, é, enquanto ente, uma parte do contexto natural, a que sua liberdade se subtrai. (ND 181)

Na Crítica da razão pura, como já vimos, Kant diz que retirou espaço do saber para dar lugar à fé; no sublime, poderíamos dizer que ele retirou o espaço da fé — tomada como impulso determinado à idéia de um Deus efetivamente existente —, para dar lugar à autonomia do sujeito, à moral. Mas a fé permanece nessa autonomia moral, posto que ela já é resultado do deslocamento copernicano na apreensão do mundo, ou seja, a fé participa da constituição do mundo a partir das categorias subjetivas e está precisamente ancorada na diminuição do espaço do saber; o que acontece no sublime é a reaplicação — ou se se quiser, a radicalização — do giro copernicano da esfera cognitiva, agora no âmbito da fé, que fica expurgada do resíduo “realista” que poderia ainda impregnar-lhe na constituição imagética daquilo que é objeto da fé.

A redenção kantiana da esfera inteligível não é apenas, como todos sabem, apologética protestante, mas, sim, gostaria também de intervir na dialética do esclarecimento onde esta culmina na demissão da razão. Mas o quanto a ânsia kantiana de redenção se funda somente no desejo crédulo de manter algo das idéias tradicionais em meio ao nominalismo e co ntra ele é testemunhado pela construção da imortalidade como um postulado da razão prática. Isso condena a insuportabilidade do existente [ Bestehenden] e reforça o espírito, que a conhece. (ND 377-8)

Na concepção kantiana, a transcendência foi positivamente colocada no âmbito interno da moral, o que pode ser visto de modo claro, também, na insistência de Kant pelo cultivo de idéias morais como condição para a experiência do sublime (Cf. KdU B 112). Mas se nem o objeto nem o sujeito devem se situar nesse ponto que delineia, mesmo que de modo sublimado ou transfigurado, o que transcende a imanência natural, então o que poderia fazê-lo?

c) Da transcendência à alteridade

A resposta a essa questão será dada, aqui, através de uma mudança de paradigma conceitual. Embora a concepção de Kant não seja a única forma aceita nas estéticas moderna e contemporânea, ela estabeleceu um paradigma importante, que foi a vinculação entre a grandeza e o poder desmesurados a uma qualidade espiritual mediatizada. Adorno vê, nesse ponto específico, uma qualidade louvável da estética kantiana, na medida em que essa interiorização do significado da imponência natural exprime uma concepção progressista do sujeito:

Kant já não elidia de forma alguma que o quantitativamente grande não era sublime como tal: com toda razão [mit tiefem Recht] ele definiu o conceito de sublime através da resistência do espírito contra o poder. O sentimento do sublime não se aplica imediatamente ao que aparece; as altas montanhas falam como imagens de um espaço liberto de cadeias e de entraves, e da possível participação nessa liberdade, não na medida em que esmagam. (ÄT 296/225; tradução própria)

Embora a estética de Adorno possa ser perfeitamente compreendida como uma apologia da arte moderna, com sua recusa reiterada dos ideais clacissistas, a estética da natureza desempenha um importante papel na conceituação do que seja a própria

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arte.216 Segundo Adorno, a estética da natureza foi relegada a uma posição francamente desfavorecida a partir da estética de Hegel, cuja apologia das formas espiritualizadas da beleza levou a uma supremacia irrestrita da arte como manifestação do espírito absoluto. A última manifestação enfática da importância estética da natureza teria se dado no pensamento de Kant. No que toca ao conceito de sublime, segundo Adorno, a admiração kantiana pela natureza em sua grandeza e em sua imponência foi, na história da arte, efêmera. A auto-reflexão artística tomou consciência de que a grandiosidade na arte, enquanto figuração de temas pomposos, era índice de amusia, pois o que a arte cada vez mais tomou para si como próprio dela não coincidia com o que se pode ler imediatamente em seus temas e materiais. “Também a grandeza abstrata da natureza, que Kant ainda admirava e comparava à lei moral, é olhada como reflexo da megalomania burguesa, do gosto pelo record, da quantificação, e também do culto burguês dos heróis” (ÄT 110/86). Apesar de esse elemento de grandiloqüência existir efetivamente na concepção kantiana, ele não deve nos fazer ignorar um outro que aponta para um conteúdo de verdade presente nela. Segundo Adorno, “acima de tudo, não se vê que esse momento na natureza proporciona ao espectador algo de inteiramente diferente, algo onde a dominação humana tem seus limites e que recorda a impotência da empresa [Getriebe] humana” (ÄT 110/86; tradução modificada).

Os dois elementos importantes que ressaltamos acima constituem dois pontos de apoio fortes para os argumentos que serão explicitados em detalhes posteriormente, a saber, o fortalecimento da esfera subjetiva e a ruptura para com o contexto de entrelaçamento funesto da natureza e do espírito na rede categorial subjetiva. Por enquanto, o que nos interessa é o tom geral da concepção do sublime derivada da idéia de que este não tem seu momento de verdade vinculado à positividade da transcendência, mas, sim, à relação de alteridade radical entre sujeito e objeto representada na experiência estética.

Nesse ponto, é preciso focalizar um conceito que marca a diferença entre uma e outra concepções, que é o de infinito. A tese que se pretende defender aqui é a de que, em vez de pensar que o sublime seja uma relação com a infinitude, é de se conceber, inicialmente, que o seja com a impossibilidade: de conceber um sentido, de empatia, de conhecer, etc. A concepção metafísica do sublime, que Kant inaugurou, restringiu essa impossibilidade à infinitude (matemática e de força) porque esta carrega uma especificidade afim à herança religiosa (isto é, de transcendência positivamente dada) que grande parte da filosofia possui, e que oblitera a consideração do sublime no âmbito do humano por excelência. Precisamente por isso é que Th. Weiskel diz ser o sublime intra-humano algo contraditório: “sem noção alguma do além, ou discurso plausível do sobre-humano, o sublime soçobra ou torna -se um ‘problema’. Isso é verdadeiro tanto para o Romantismo quanto para a Antigüidade. Diz Schiller: ‘o belo é valioso apenas em relação ao ser humano, mas o sublime o é em relação ao puro demônio [dämon]’ no homem, ‘aos estatutos do espírito puro’. Um sublime humanístico é um oxímoro”217. Diríamos que a história da filosofia tornou-o um oxímoro por sua própria conta, afunilando a noção de alteridade radical para a de infinitude (de grandeza e de força), o que favoreceu a

216 Veja-se, a esse respeito, a definição da arte que Adorno reelabora a partir de Valéry como um movimento de determinação da indeterminidade da beleza natural: “A arte não imita nem a natureza, nem um belo natural singular, mas o belo natural em si. (...) ‘O belo exige talvez a imitação servil do que é indefinível nas coisas’ (Valéry)” (ÄT 113/89). 217 Thomas Weiskel. O sublime romântico. Estudos sobre a estrutura e psicologia da transcendência. Tradução de Patrícia Flores da Cunha. Rio de Janeiro: Imago, 1994, p.17.

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consideração de Kant de que somente a natureza (e em seu aspecto disforme, bruto) é capaz de suscitar o sentimento de sublimidade. É preciso perceber que não rejeitamos in totum idéia kantiana de considerar o sublime como resultado de uma reflexão segunda por parte do sujeito: recusamos a consideração do momento de negatividade como residindo no conceito de infinitude, e também, a consideração de que essa reflexão segunda seja causada por uma espécie de compensação pela negatividade do fracasso de nossas faculdades físicas ou intelectuais.

A nossa tese é: nem a natureza em sua sublimidade, nem a arte moderna, dizem respeito à idéia de impossibilidade de apresentação do absoluto ou do infinito. Trata-se, antes, de uma alteridade radical, isto é, não-conciliada. Ela retém alguma coisa da transcendência metafísica que é a de distanciamento, de impossibilidade de conciliação cognitiva, imaginária, de compreensão, etc., ou seja, trata-se de uma ruptura qualitativa essencial entre sujeito e objeto. O afunilamento dessa ruptura qualitativa na infinitude de grandeza e de força favoreceu a interpretação da reflexão segunda como sendo vinculada àquilo que, no sujeito, ecoa a transcendência positivamente colocada no mundo através da idéia de Deus. Por que esse favorecimento? Porque o infinito contém uma ruptura qualitativa em relação ao sujeito que pôde ser apropriada pela metafísica como ameaça de morte. Nesse aspecto, a interpretação schilleriana do praticamente-sublime como sendo mais expressivo que o teoricamente-sublime — e isso devido ao fato do primeiro incluir uma ameaça a toda a nossa dimensão sensível, leia-se: à nossa vida — é expressão inequívoca disso. Mas essa morte também pode ser lida com toda a clareza na infinitude matemática ou de grandeza. “O céu estrelado sobre mim” é uma imagem enfática de um abismo em que o “retorno” do olhar não existe, como uma expiração que jamais se finda para permitir que se aspire novamente para continuar vivendo. A vida é algo fundado essencialmente na idéia de retorno, de possibilidade de voltar, de fazer de novo, de recomeçar um ciclo, de chamar e de ser ouvido, de interagir, de comunhão, etc.; em outras palavras, ela se funda em relações finitas — tudo isso é tragado pela infinitude do cosmo. Essa é a imagem com que se leu a natureza de modo a projetar nela aquilo que, afinal de contas, é o resultado do medo dos homens perante a própria natureza: a divindade. Em suma: o medo perante a natureza é a origem da idéia de deuses, que, sublimada, modificada e transformada, deu origem à idéia de transcendência, a qual, no sublime, foi projetada na natureza como infinitude, que ressoa aquele mesmo perigo de morte que a natureza infligia à mente dos homens infinitamente fracos perante ela — ou seja, trata-se de uma série de ciclos viciosos, em que cada um deles sublima o anterior, mantendo a mesma estrutura fundamental de superlativização da natureza perante os homens.

A nossa tarefa, de agora em diante, é a de dizer em que consistiria, então, a experiência do sublime como desvinculando-se desse contexto metafísico e voltando-se para a idéia de uma alteridade radical entre sujeito e objeto — o que será feito através da análise do conceito adorniano do sublime.

3. O sublime na Teoria estética

Diversos comentadores de Adorno propuseram uma interpretação do conceito de sublime presente na Teoria estética.218 De todos eles, três merecem destaque

218 Veja-se, por exemplo, Martin Seel, “Dialektik des Erhabenen. Kommentare zur ‘ästhetischen Barberei heute’”. In: Willem van Reijen & Gunzelin S. Noerr. Verizig Jahre Flaschenpost: “Dialektik der Aufklärung” 1947 bis 1987. Frankfurt a. M.: Fischer, 1987, pp.11-40; Wolfgang Welsch. “Adornos Ästhetik: eine implizite Ästhetik des Erhabenen”. In: Ästhetisches Denken. Stuttgart: Reclam, 1993, pp.114-156 (esta edição é uma reimpressão de um artigo

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por sua originalidade: Welsch, Wellmer e Rosiek. Embora sua concepção seja a mais antiga, Welsch é o que mais se aproxima do espírito geral de nossa tese de considerar o sublime na sua qualidade de experiência estética propriamente dita, motivo pelo qual será objeto de nossas considerações separadamente.

Wellmer, ao comentar o conceito de sublime na Teoria estética, vincula as idéias de Adorno ao conceito de comunicação, concebido à luz da racionalidade comunicativa de Habermas. Para Wellmer, o sublime adorniano poderia ser concebido propriamente como um momento em que as relações não resolvidas entre o absurdo e o sentido que se estabelece lingüisticamente adquirem a oportunidade de comunicação através da arte: “comunicação do incomunicável, representação do irrepresentável são características da arte, através das quais esta pode lidar com todos os possíveis aspectos de nossa experiência do mundo”219. Apesar de essa concepção mostrar-se em grande parte fiel ao texto adorniano e ser muito bem construída, ela tem uma estrutura argumentativa que faz com que ela não tenha muita importância para nossos argumentos, uma vez que os conceitos de falta de sentido e de comunicação que a sustentam derivam de um paradigma filosófico muito distante da concepção filosófica de Adorno, que é o da racionalidade comunicativa de Habermas. Wellmer quer substituir o pessimismo sombrio que ele vê presente nas filosofias de Nietzsche e de Adorno pelo otimismo da concepção política habermasiana. Não nos cabe, aqui, pois extrapolaria em muito os limites dessa tese, entrar na questão de quanto os paradigmas filosóficos de Adorno e de Habermas são inconciliáveis em vários aspectos; para uma abordagem desses aspectos já se tem uma literatura farta.

O terceiro desses comentadores, Rosiek, produziu um verdadeiro tratado sobre o conceito de sublime, tanto no que concerne a Heidegger, quanto a Adorno. De todas as concepções sobre o sublime em Adorno, é a mais abrangente — dado que já no número de páginas tem enorme vantagem, posto que, enquanto todos os outros comentadores dedicaram apenas um artigo ou capítulo ao tema, Rosiek relegou-lhe mais de 220 páginas. Apesar dessa proeminência, sua leitura está seriamente comprometida pelo conceito geral de sublime que serve de baliza para toda sua obra, que é o da “tradução religio-literária do metafísico”220. O autor procura, em vários momentos, ressaltar as ligações do sublime com a experiência religiosa e teológica, fazendo com que aquilo que é concebido como o totalmente outro seja absorvido pela experiência do sagrado. Trata-se de perceber a sublimidade como expressão estética do contato com a transcendência religiosa. Com base nessa opção geral, ao tratar do sublime em Adorno, Rosiek subjuga todos os elementos de ruptura da subjetividade à idéia geral de um contato (positivo) com a transcendência.

Como o próprio autor diz, a partir do posfácio da edição original da Teoria estética, esta obra foi escrita em um estilo paratático, em que vários conceitos posicionam-se igualmente distantes de um centro temático, expresso por meio de uma constelação de noções sem hierarquia definitória. Por causa dessa característica, qualquer abordagem de

publicado originalmente em 1989); Allbrecht Wellmer, “Adorno, Modernity, and the Sublime”. In: Max Pensky (edt.). The Actuality of Adorno. Crit ical Essays on Adorno and the Postmodern. New York: State of New York Press, 1997, pp.112-134 (esta edição é uma tradução de um artigo publicado originalmente em 1991); María Isabel Peña Aguado. “Theodor W. Adorno. Die Transformation des Erhabenen in der Ästhetischen Theorie”. In: Ästhetik des Erhabenen. Wien: Passagen-Verlag, 1994, pp.73-90; Jan Rosiek. Mantaining the sublime. Heidegger and Adorno. Berna: Peter Lang, 2000. 219 Allbrecht Wellmer, op. cit., p.131. 220 Jan Rosiek, op. cit., pp.3 ss.

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algum tema específico dessa obra poderá facilmente priorizar alguma tendência argumentativa ou outra, dependendo daquilo que se “colher” no emaranhado de conceitos.

Falando sobre o sublime como uma promessa de um outro em relação ao atual estado de coisas, Rosiek diz que

Adorno reitera que a própria forma da obra de arte é uma articulação da promessa que abre para o outro; mas, mais que isso, a promessa é vista como uma garantia atual de sua possibilidade, embora não ainda como uma garantia de sua existência atual. A articulação dessa pequena esperança não é típica do discurso de Adorno sobre promessas; ele é mais apto a enfatizar as rupturas do que sua realização potencial.221

Abordando a ligação entre a obra de arte e a transcendência, diz o comentador:

A transcendência sugerida pela obra de arte é sua “fala” ou “escrita”, mas fala e escrita que, deve-se observar, são “sem significado” — ou, para ser mais preciso, e, de fato, faz muita diferença — “com um significado truncado ou velado” (ÄT 122/96). O adjetivo “velado”, zugehängter, indica uma cobertura por uma cortina de teatro e a ocultação da cena da transcendência mencionada anteriormente. (…) no que se segue, tentarei levantar a cortina.222

A primeira passagem mostra o reconhecimento por parte de Rosiek de que Adorno está mais próximo da negação de uma efetividade da promessa da alteridade transcendente do que de sua afirmação, e insiste, apesar disso, em ressaltar o aspecto afirmativo em sua análise. A segunda passagem mostra como Rosiek opta, explicitamente, por romper com o paradigma adorniano de manutenção da idéia de que o significado transcendente da arte permanece velado. Ora, como veremos, essas duas opções interpretativas ferem totalmente o cerne da filosofia de Adorno.

Embora todo o texto de Rosiek seja muito bem elaborado, com muitos detalhes, com muitas referências textuais e bem argumentado, todo seu vigor interpretativo foi dirigido em prol de uma concepção parcial e, principalmente, tendenciosa. Não é por mero acaso que a primeira metade do livro seja dedicada a Heidegger, um filósofo que Adorno procurou combater em vários momentos, principalmente em Jargon der Eigentlichkeit e em toda a primeira seção de sua principal obra, a Dialética negativa. O livro de Rosiek pretende interpretar a ontologia fundamental de Heidegger e a dialética negativa de Adorno a partir de uma mesma concepção religiosa do sublime, chegando até, no final do livro, a apontar convergências filosóficas dos dois pensadores.

No início da abordagem sobre o sublime em Adorno, Rosiek faz um apanhado das concepções de Wellmer e de Bohrer, deixando de lado o texto de Welsch, que, segundo ele, não compartilha da idéia diretiva geral do sublime como vinculado à metafísica. Ora, precisamente esse motivo que levou Rosiek a desconsiderar a concepção de Welsch leva-nos a toma-lo como significativo para estudarmos o sublime em Adorno. a) Sublime como justiça ao particular

Segundo Wolfgang Welsch, toda a filosofia da arte de Adorno é uma “estética implícita do sublime”223; ele interpreta toda a Teoria estética como concebendo a 221 Jan Rosiek, op. cit., p.383. 222 Jan Rosiek, op. cit., p.390-1. 223 Wolfgang Welsch. “Adornos Ästhetik: eine implizite Ästhetik des Erhabenen”. In: Ästhetisches Denken. Stuttgart: Reclam, 1993, (doravante referido como ÄD no corpo do texto), pp. 114.

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arte essencialmente a partir dessa categoria. Tal interpretação tem sua validade em algumas de suas colocações, mas se mostra equivocada em algumas passagens, principalmente no que concerne à sua concepção do conceito de reconciliação em Adorno.

Aquilo que caracteriza de modo mais resumido a posição de Welsch é a de que a Teoria estética deve ser lida como um abandono crescente da idéia de reconciliação [Versöhnung] na arte em favor da de justiça [Gerechtigkeit] ao particular, às suas contradições, movimento em que o sublime se mostra como o ponto teórico mais relevante e inequívoco a este respeito. Welsch estabelece as relações Versöhnung-belo e Gerechtigkeit-sublime. O conceito de belo estaria ligado à idéia de reconciliação dos conflitos dos particulares, e o sublime, à de exposição não-conciliada das contradições e antinomias entre eles: o foco da arte passaria então “da reconciliação para a irreconciliabilidade, do nivelamento das contradições para sua articulação, da aparência de salvação [Erlösung] para a evidência do conflito” (ÄD 134). Segundo o autor, a idéia de reconciliação na obra de arte deve ser enfraquecida até se tornar apenas uma figura de pensamento, apenas uma maneira (cada vez menos potente) para se pensar a arte na Teoria estética. O belo seria, “segundo toda sua estrutura, apenas um pseudônimo para o sublime” (ÄD 122), ou seja, onde Adorno fala da beleza estaria em jogo propriamente este último, que seria, por assim dizer, o que caracteriza mais essencialmente todo o pensamento de Adorno sobre a arte.

Para fundamentar sua posição, Welsch parte da crítica explícita que Adorno faz aos procedimentos sublimes em algumas formas de arte, as quais tomam objetos já considerados sublimes enquanto matéria ou tema [Stoff], o que caracterizaria o que Adorno chama de sublime oco [hohles Erhabenes] (cf. ÄT 294):

Que obras adquiram a sua dignidade ao ocuparem-se de quaisquer acontecimentos sublimes — cuja sublimidade é quase sempre apenas fruto de ideologia, de respeito do poder e da grandeza — é desmascarado desde que Van Gogh pintou uma cadeira ou alguns girassóis de tal modo que os quadros ribombam com a tempestade de todas as emoções, em cuja experiência o indivíduo da sua época registrava pela primeira vez a catástrofe histórica. (ÄT 224/171)

Mas não é toda concepção de sublime que deve ser evitada, mas sim aquelas que deturpam a verdadeira. Como início histórico dessa categoria, considerou-se sublime um conceito bombástico de espírito, considerado um dominador e opressor da natureza, como Adorno vê em Kant: “a ‘grandeza do homem como um espiritual e que oprime a natureza’ (ÄT 295) forma o ponto de partida da carreira do sublime” (ÄD 118). Segundo Welsch, Adorno nega essa concepção em favor de sua transformação: “da dominação sobre a natureza para a experiência da própria naturalidade” (idem). Essa passagem seria feita a partir da concepção da natureza como um poder infinito que não pode ser dominado, em que ela é vista não como aquilo que oprime efetivamente, mas que participa em uma libertação da constrição subjetiva. Haveria, assim, um duplo movimento rumo à liberdade: “emancipação do sujeito da obrigação de domínio soberano sobre a natureza”, experimentado por ele como um abalo [Erschütterung] de sua subjetividade, “e libertação da natureza da ‘conexão perversa da naturalidade [Naturwüchsigkeit] e soberania subjetiva’ (ÄT 293)” (ÄD 120). Tais momentos se ligariam aos de desprazer e prazer no sublime:

Pois o que o sujeito que pretende subsistir experimenta como desprazer de seu abalo, tal apresenta-se para o saber mais profundo, que acompanha subterraneamente toda a tensão subjetiva, como uma felicidade [Glück], como realização propriamente de sua ‘nostalgia’ p elo ‘que é vetado ao sujeito pelo bloco subjetivo’ (ÄT 396)”. (ÄD 121)

Mas tudo isso concerne até agora à interpretação que Adorno faz em relação ao sublime na natureza em Kant. Vejamos então como Welsch interpreta a Teoria estética considerando a arte como sublime.

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O esquema geral da interpretação de Welsch é o seguinte: já que o que é experimentado como sublime na natureza é a negação feita por esta sobre a dominação subjetiva sobre ela, a arte é considerada sublime quando nega a dominação subjetiva precisamente ao negar seu próprio conceito, o qual exige dela uma disposição racional dos particulares na obra, uma vez que estes não aceitam de antemão o que lhes é imposto. Se para a obra se afirmar como arte é necessário o elemento de dominação racional, a arte sublime exerce uma dominação que tende a negar aquele, expondo e articulando as contradições em vez de conciliá-las (o que seria o caso da arte bela). Sem essa negação do elemento de dominação que toda arte tem, a obra apenas afirmaria a perniciosa dominação externa, prática, da natureza. “A arte se completa não em sínteses, mas sim ao rompê-las, mas ela o faz ‘com a mesma força’ (ÄT 209) que antes as realizava” (ÄD 126). Segundo Welsch, a negação interna da dominação racional na arte é índice da “reprodução da natureza oprimida e entrelaçada na dinâmica histórica” (ÄT 198, cf. ÄD 126), o que já se afigurara como pertencente ao sublime como libertação da natureza do contexto de dominação subjetiva. Assim, conclui o autor, “a arte, como a Teoria estética a pretende, realiza a estrutura não do belo, mas do sublime. A estética de Adorno representa tanto em seu coração [Herzen], como em suas leis [Gesetzen], uma estética do sublime” (ÄD 127).

O restante do texto de Welsch é dedicado a mostrar o enfraquecimento do conceito de reconciliação em favor do de justiça ao particular, em que a arte se mostra como uma reconciliação de contradições radicalmente recusada. A ascendência do sublime na arte seria, nesse movimento, índice da “dissolução do ideal de reconciliação” (ÄD 132). Tal ideal reconciliador teria sido promovido pela estética filosófica, que acolheu em seu interior antes a estética do belo, que se realizou sob a égide da reconciliação (entre o reino da liberdade e da natureza, em Kant, por exemplo), em detrimento da do sublime, que rejeitou tal ideal, pois “articulou contraposições, rupturas e momentos de conflito que resistiam a uma última integração” (ÄD 138).224

Ao fazermos uma análise da interpretação de Welsch, o primeiro ponto que nos parece problemático é justamente uma tese central sua de que a reconciliação em Adorno somente deve ser tomada como válida na medida em que se enfraquece para dar lugar à idéia de justiça ao particular, em que o ideal reconciliatório cede sua vez à articulação das contradições.

A fraqueza de sua concepção está, inicialmente, na unilateralidade do conceito de reconciliação. Welsch toma esta noção como vinculada quase exclusivamente à idéia de resolução de antagonismos, de fim das contradições. É claro que esse significado é pertinente para aquele conceito, mas ele não expõe algo mais difícil de perceber no pensamento de Adorno — que procuramos mostrar no capítulo III —, que é a idéia de que a reconciliação significa a consciência da distinção entre sujeito e objeto. Mas, mesmo tomando-se apenas o primeiro sentido para o conceito de reconciliação, a idéia de Welsch mostra-se inadequada. Como muito bem apontou Klaus Baum, as noções de utopia e de reconciliação, estreitamente ligadas em Adorno, recebem na Teoria estética a determinação de que elas incluem necessariamente em si a negação do que elas prometem, ou seja, na própria idéia de reconciliação o seu não-cumprimento é signo de sua verdade225. Naturalmente tal concepção não é a mesma que se pode ler em Kant, por 224 Há ainda mais uma seção no texto de Welsch em que são comparadas as concepções de Adorno e Lyotard; mas em relação ao que nos interessa, o que é dito nesta última parte não acrescenta nada de importante. 225 Cf. Klaus Baum. Die Tranzendierung des Mythos. Zur Philosophie und Ästhetik Schellings und Adornos. Würzburg: 1988, pp. 261-275.

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exemplo, mas o que parece escapar a Welsch é que a recusa da efetividade da reconciliação na arte não acontece em favor da justiça ao particular (que se lhe oporia) e em detrimento da própria idéia de reconciliação, mas sim em favor de si própria, ou seja, somente porque a época de hoje recusa mais do que qualquer outra a efetividade da reconciliação, é que sua presença na arte se faz premente, como testemunha da possibilidade do possível, caso contrário a arte seria tão indiferente ao sistema quanto o seria se o afirmasse acriticamente. Deste modo, propomos uma inversão do estabelecimento valorativo que Welsch dá a esses dois conceitos: a justiça ao particular é compreendida em sua força justamente porque se coloca no horizonte de compreensão estabelecido pela idéia de reconciliação, que, segundo pensamos, é o elemento conceitual na Teoria estética que nos permite conceber a possibilidade — mesmo que não mais do que isso — de superação do estado de inconciliação subsistente. O que funda a possibilidade de a justiça ao particular, de sua articulação em suas contradições e conflitos, ser verdadeira, é que ela se dá no interior de um movimento conciliatório na obra de arte, ou seja, ela somente existe enquanto verdade em relação aos próprios particulares porque aponta para a possibilidade de superação dos próprios antagonismos. Se o conceito “justiça aos particulares” é concebido como negação da reconciliação (tal como a concebe Adorno) então aquele conceito é autocontraditório e anula a si mesmo, pois negaria a-dialeticamente o que lhe garante a verdade. Cremos que a leitura de Welsch peca por não apreender a dialeticidade presente na cisão, na negatividade, interna do conceito de reconciliação. Tal aspecto dialético foi assim descrito por Alo Allkemper:

Na estruturação de seus momentos reside o elemento utópico e, inseparável dele, o crítico da arte: na medida em que ela torna os elementos do ente real em momentos de um idêntico reconciliado, ela exerce a crítica ao que é, e cai em conflito com o existente, ao mostrar o que poderia ser.226

Uma vez colocada essa primeira crítica, fica claro que as relações que Welsch estabelece tão nitidamente para belo-reconciliação e sublime-justiça ao particular se mostram problemáticas. Cremos que elas tenham uma maior validade em relação às suas análises referentes às estéticas anteriores à Adorno227, mas, frente a este, elas são equivocadas, e isso de modo mais claro ainda se consideramos que o conceito de reconciliação inclui a idéia-mestra de uma primazia do objeto, de uma quebra do encantamento que o sujeito lança sobre o objeto e sobre si mesmo, de tal modo a se perceber, na distância mediatizada de ambos, o espaço que pode configurar o solo da liberdade. Como dissemos no capítulo anterior, a justiça às contradições do particular exprime praticamente a mesma coisa contida na idéia de reconciliação. A unilateralidade do ponto de vista de Welsch pode ser explicada a partir da crítica que Rosiek lhe fez, ou seja, que ele estaria interessado em aproximar a concepção adorniana do sublime à de Lyotard, tomado por ele como expoente e fundador da filosofia pós-moderna.228

O ponto forte da concepção de Welsch, entretanto, é sua ênfase na dimensão constitutiva da experiência estética como conflituosa, contraditória, não apelando para estruturas situadas em outras esferas (como a da comunicação ou da teologia) a fim de “apreender” o significado dessas contradições. Mas, mesmo nessa

226 Alo Allkemper. Op. cit., p. 130. 227 Em relação a essas análises, que são realmente muito interessantes, cf. pp. 137-143. 228 Mas, falando em unilateralidade, vemos que tanto Wellmer quanto Rosiek também padecem desse mal. O primeiro, procura ler Adorno sob o parâmetro da racionalidade comunicativa de Habermas, e o último, a partir da perspectiva religiosa, metafísica. (Talvez aqui o leitor se faça a questão de se esta tese também teria um ponto de apoio que gerasse uma interpretação unilateral; mas isso ficará por ser decido pelo próprio leitor.)

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“vantagem” de sua concepção, ele tem uma fraqueza, pois, embora a subjugação do movimento de negatividade da arte por um âmbito extra-estético para sua apreensão de sentido não nos pareça válido, algo deve ser pensado como situando-se nesse ponto. Aqui podemos invocar novamente a idéia de Thomas Weiskel de que o sublime humano é um oxímoro: é preciso ver que esse oxímoro reside apenas no modo de conceber a alteridade. Nossa intenção é a de mostrar como que a transcendência pode ser negada dialeticamente no interior da obra de arte, e, mesmo sendo negada, pode constituir o medium para o reconhecimento da alteridade no processo de constituição da identidade subjetiva.

b) A experiência da alteridade: abalo, comoção

As obras de arte representam as contradições enquanto todo, a situação antagonista enquanto totalidade. Só através de sua mediação, não mediante seu parti pris direto, é que são capazes de transcender, graças à expressão, a situação antagonista. As contradições objetivas sulcam o sujeito; não são por ele postas, nem produzidas por sua consciência. Eis o verdadeiro primado do objeto na composição interna das obras de arte. (...) Os antagonismos são tecnicamente articu lados: na composição imanente das obras, que torna a interpretação translúcida às relações de tensão no exterior. As tensões não são copiadas, mas dão forma à coisa; só isto constitui o conceito estético da forma. (ÄT 479/355-6)

Essa passagem contém dois elementos importantes para se ver o sentido geral da presente interpretação: a negatividade estética é algo que deve ser procurado no movimento de constituição da obra de arte de arte como um todo organizado, em cuja unidade formal se decantam os antagonismos sociais vividos pelo sujeito, e a ultrapassagem dessa negatividade situa-se no âmbito da própria estruturação da obra: as obras de arte “produzem sua própria transcendência, não são seu palco, e, por isso, estão novamente separadas da transcendência. O lugar desta última nas obras de arte é a articulação [Zusammenhang] de seus momentos” (ÄT 122/95-6; tradução própria).

Inicialmente, é preciso ver o que configura aquela sulcagem das contradições objetivas no sujeito. “A experiência da arte enquanto experiência de sua verdade ou inverdade é mais do que uma vivência subjetiva: é a irrupção da objetividade na consciência subjetiva” (ÄT 363/274). Tal irrupção é a marca daquilo que Adorno chama de Erschütterung (abalo, comoção, estremecimento). Trata-se do momento em que o sujeito deixa de estar fixado à sustentação causada pela inércia da condição normal de ser vivente: “ele perde o solo sob seus pés; a possibilidade da verdade que se incorpora na imagem estética torna-se-lhe concreta [leibhaft]” (ÄT 363/274; tradução própria). Trata-se de uma perda do referencial previamente estabelecido, como que uma invasão da esfera da subjetividade por um processo alheio, em que a consciência percebe-se como determinada intimamente através de algo que lhe retira o centro de sua própria fixidez identitária. É um momento de desprazer, associado à dor da ruptura da consciência em relação às mediações usuais em relação ao mundo em geral e ao próprio corpo. Nessa medida é um instante de imediatidade, mas, paradoxalmente, causado por uma mediação radical, operada pelo contato com a obra de arte. Segundo Adorno, todo esse processo solicita do sujeito não apenas uma parte de si, como se se tratasse de uma vivência, de uma emoção localizável em meio a várias possíveis, como se fosse possível uma determinação psicológica dele; está em jogo a necessidade de o sujeito distender-se, fazer-se presente com toda a extensão da consciência. O sujeito deve responder ao peso da objetividade com que a obra de arte se afirma perante ele. Adorno usa como exemplo a imponência do vigor da entrada da reprise da Nona Sinfonia de Beethoven: “ela retumba como um grandioso ‘é assim’. (…) A reação espontânea do receptor é mímesis da imediatidade desse gesto” (idem; tradução modificada). Mas tal imediatidade não necessariamente é verdadeira. É preciso submetê-la à crítica: “a experiência plena,

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desembocando no juízo sobre a obra desprovida de juízo, exige a decisão a seu respeito e, por conseguinte, o conceito” (ÄT 364/274).

Esse abalo tem uma dimensão filosó fica importante: é o instante que marca uma espécie de anulação do Eu, de ruptura dos contornos da subjetividade como absolutos, inquestionáveis. Nesse momento, o Eu percebe a nulidade de sua pretensão de colocar-se como ponto de ancoragem do sentido do real. Mas, de modo paradoxal, é precisamente nesse instante de nulidade e de finitude que o sujeito mais experimenta sua constituição subjetiva como sua força: “a fim de olhar apenas um pouquinho para lá da prisão que ele próprio é, o eu precisa, não da dispersão, mas da mais extrema tensão; isso preserva o abalo, de resto um comportamento involuntário, da regressão” (idem; tradução modificada). Adorno considera a teoria kantiana do sublime precisamente um momento em que essa tensão no sujeito é tomada como condição para que a sublimidade seja possível, mas em vez de ligar o momento de prazer na experiência do sublime a uma determinação moral íntima, vinculada ao reforço da autonomia do sujeito perante a natureza, Adorno vê a tomada da consciência do sujeito de seu poder de resistência perante o estado de coisas que se lhe defronta.

Essa idéia foi muito bem expressa por Etienne Souriau, quando diz que “o sublime é o que é, tanto porque ele transporta e transtorna as almas de qualidade, quanto porque ele repugna aos corações indisponíveis e porque ele coloca em fuga as mentalidades pequenas. Os três são apenas um”229. Ele, entretanto, não deve ser confundido com tudo o que causa emoções fortes e que abalam a sensibilidade: “o sublime não é o patético. E menos ainda o melodramático”230.

Há algo de conflituoso no sublime, mas não é um conflito entre nossas faculdades, mas, sim, “entre nós mesmos e a coisa sublime, desde que ela exige demais de nós, e o exige de uma maneira por demais urgente, imediata. Ela pode requerer de nós muitas coisas a longo prazo; mas já imediatamente ela o exige muito. Ela exige que nós sejamos capazes dela. Ela exige que nós nos coloquemos no mais alto de nós mesmos para acolhê -la. Ela exige que dilatemos nosso psiquismo à sua dimensão espiritual”231. O que explicaria que muitos recusem o sublime, devido à incapacidade de tal esforço de grandeza de alma.

Em Adorno, essa concepção, entretanto, ainda conserva o duplo movimento de desprazer e de prazer que Kant já apontava, mas com a ressalva de que ambos os momentos se entrelaçam em uma dialética vertiginosa, em que é precisamente a ruptura com as próprias auto-determinações que se situa o prazer do sujeito, mas vinculado também à dor da perda da referência empírica:

O prazer subjetivo na obra de arte aproximar-se-ia, não da empiria, mas do estado que se esquiva da empiria enquanto totalidade do ser-para-outro. (…) A felicidade nas obras de arte é uma fuga súbita, não um fragmento daquilo a que a arte se subtraiu; é sempre acidental, mais inessenci al para a arte do que a felicidade do seu conhecimento. O co nceito de deleite artístico enquanto constitutivo deve ser eliminado. (…) Poder-se-ia objetar ao hedonismo estético a passagem da doutrina kantiana do sublime que ele, timidamente, recusa à arte: a felicidade da nas obras de arte seria, quando muito, o sentimento de resistência que elas mediatizam. (ÄT 30-1/27)

De modo semelhante a como Kant diz que a violência presenciada na natureza em sua força deve ser neutralizada, posta à distância, pois senão não haveria uma

229 Etienne Souriau. “Le sublime”, Vocabulaire d'esthétique. Presses universitaires de France, p.275. 230 Etienne Souriau, op. cit., p.275. 231 Etienne Souriau, op. cit., p.280.

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experiência estética, mas, sim, física, materialmente afetada, Adorno diz que o aniquilamento do eu no abalo estético não é literal. Não se trata de dizer que o sujeito efetivamente desvaneça e perca a unidade de consciência que o constitui como pessoa: isso tornaria impossível a própria experiência estética. Mas também não é o caso de se afirmar que as emoções do sujeito sejam fictícias, pois elas são reais. “Não é o abalo estético que é aparência, mas sua posição em relação à objetividade: na sua imediatidade, sente o potencial como se estivesse atualizado” (ÄT 364/275; tradução modificada). O que é ilusório, então, é a transposição que se pode fazer da ruptura qualitativa na relação com a obra de arte com a objetividade tout court. Aqui ressoa uma vez mais a idéia da arte como uma promessa de transcendência interrompida. Dito de um modo sumamente paradoxal, podemos dizer que a ruptura em relação ao imperialismo subjetivo na arte é efetivo enquanto momento em que o objeto solicita do sujeito um excesso de suas forças subjetivas, para que possa ir além daquilo que ele mesmo já sempre foi capaz de conceber de si mesmo, mas é irreal por que o sujeito não pode deixar de apoiar em uma unidade de consciência, pois senão cessaria de existir como tal; mas esse abalo é também real na medida em testemunha a favor de uma relação possível com o objeto, e isso exatamente mediado pela constituição subjetiva; mas esse movimento também é ilusório se lido a partir do contexto geral do que se confronta ao sujeito como ser vivente, que recusa a este a experiência de ir além de si próprio.

Todo esse processo traz à tona o mote da Dialética do esclarecimento da rememoração da natureza no sujeito, ou seja, de uma nova relação entre sujeito e objeto. c) A dialética espírito-natureza

A emergência da arte moderna é um momento em que o caráter espiritual da obra de arte deixou de se vincular à exclusividade com que os princípios formais imperavam sobre um material amorfo, que, sem dignidade alguma enquanto tal, precisava passar pela enformação subjetiva ditada pelos cânones de estruturação do artefato. A modernidade testemunha o desejo do espírito de acolher em si algo da naturalidade crua dos materiais. Estes não parecem mais confinar-se aos ditames estabelecidos pela unidade previamente espiritualizada da obra. A nova arte pretendeu elevar a esfera espiritual a uma nova dimensão, em que seu conteúdo de verdade não fosse legível na estrutura imediatamente definida pela unidade formal. A arte passou por um processo de espiritualização enquanto natureza, ou seja, o espírito começou a tomar consciência de si a partir da intromissão do elemento natural em um meio tradicionalmente reservado às suas categorias. Nesse ponto, o que salta aos olhos é o gosto da arte moderna pelo sensivelmente abjeto, socialmente não aprovado, como se o agradável acabasse espelhando a aprovação social em relação ao prazer da continuidade do estado de coisas existente.

O primado do espírito na arte e a infiltração do outrora proibido são dois lados do mesmo estado de coisas. Ele vale para o que não está ainda aprovado e preformado socialmente e torna-se uma relação social de negação determinada. A espiritualização realiza-se, não através de idéias que a arte apresenta, mas, sim, através da força co m que ela penetra camadas não-intencionais e que vão contra idéias. Esse não é o último motivo pelo qual o que é condenado e proibido atrai o gênio artístico. (ÄT 144/112)

A dissonância, a cacofonia, o feio, acolhidos em um medium inicialmente não suscetível a tal negatividade, tornam-se meios de constituição do conteúdo de verdade da obra, que passa a exprimir, em sua totalidade, a consciência do espírito de sua própria naturalidade. Mas, diferentemente da estética kantiana, que absorve a negatividade no âmbito sensível na positividade do eu numêmico, e da dialética hegeliana, que a

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suprassume numa negação positiva, tal movimento conflituoso do espírito e da natureza não conhece uma resolução, nem um ponto de apoio fixo, sólido:

A ascendência do sublime confunde-se com a necessidade de a arte não triunfar sobre as contradições fundamentais, mas de as combater em si até ao fim; a reconciliação não é para elas o resultado do conflito, mas apenas que este encontra uma linguagem. (…) A arte que insiste num conteúdo de verdade em que se esvanece o aspecto heterogêneo das contradições não é senhora daquela positividade da negação, que animava o conceito tradicional do sublime como algo de presentemente infinito. (ÄT 294/223)

O sublime é o momento na arte em que se torna visível o estremecimento entre o espírito e a natureza, e esse abalo é que configura a liberdade (mesmo que apenas vivida como imagem no âmbito estético), e não a idéia que o sujeito pretende fazer de si como um eu livre muito acima da natureza. Essa elevação do indivíduo, ao mesmo tempo preso às contingências de sua dimensão sensível e concebendo-se como portador do espírito absoluto, é o esquema do cômico. Neste, a incapacidade de o finito açambarcar a carga significativa do infinito mostra seu fracasso como algo lúdico, como mera puerilidade de um ser que, abandonando a seriedade da vida do trabalho, dedica-se ao prazer de regozijar-se com seu poder imaginário de vencer as agruras do cotidiano: “o sublime e o jogo convergem” (ÄT 295/224).

Mas essa dialética entre espírito e natureza tem também outra face, que é a relação entre o sublime na natureza e na arte. Como vimos, Kant considerava que somente a natureza é que proporcionaria o sentimento do sublime, e não a arte. Adorno, repetidas vezes (nove, ao todo), referiu-se explicitamente ao fato de que Kant recusava o sublime à arte (cf. ÄT 29, 79, 101, 292, 293, 295, 296, 401, 496), e, o que é mais significativo, considerou essa recusa uma grande limitação histórica: “excetuando-se a doutrina do comprazimento, que resulta do subjetivismo formal da estética kantiana, a limitação histórica desta é mais visível em sua teoria de que o sublime caberia somente à natureza, e não à arte” (ÄT 496-nota/367-nota). Nenhum dos comentadores que se referiram ao sublime em Adorno consideraram importante essa questão. Ela, entretanto, pode ser considerada de capital importância, ao situar-se em um “nó” conceitual que estabelece um significado relevante para essa dialética entre espírito e natureza no sublime.

Embora Adorno diga expressamente que “em qualquer experiência da natureza está envolvida toda a sociedade” (ÄT 107/84), o aspecto histórico do belo da natureza está mesclado ao aspecto natural, sem preponderância para nenhum dos lados: “no belo natural, entram em jogo intimamente unidos, ora de modo musical, ora à semelhança de um caleidoscópio, elementos naturais e históricos. Um deles pode assumir o lugar do outro e é nesta flutuação, não na univocidade da relações, que vive o belo natural” (ÄT 111/87-8). Essa indeterminação do belo na natureza é sua marca segundo Adorno, e um dos elementos característicos da arte é precisamente fornecer uma determinação para essa indeterminidade: “com efeito, na arte, o incaptável é objetivado e intimado à duração: nesta medida é conceito, só que não à maneira da lógica discursiva” (ÄT 114/89). Situado nesse situs de fugacidade sui generis, de indeterminidade, “o belo natural é história suspensa, devir interrompido” (ÄT 111/88).

A arte, diferentemente, é, no contexto do estremecimento estético, “metamorfoseada no que ela é em si, porta-voz histórico da natureza oprimida e, em última análise, crítica perante o princípio do eu, agente interno da opressão” (ÄT 365/275; grifos nossos). A vinculação da arte à dimensão histórica é absolutamente enfática em Adorno: “a história pode se chamar o conteúdo das obras de arte” (ÄT 132/103); “o conteúdo de verdade das obras de arte, do qual sua qualidade depende finalmente, é histórico até o

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mais profundo de si mesmo. (…) A história é imanente às obras, não é nenhum destino exterior, nenhuma avaliação flutuante” (ÄT 285/217). A verdadeira experiência frente à obra de arte enquanto arte passa pela apreensão da historicidade que se decanta nela como seu conteúdo de verdade: “analisar as obras artísticas eqüivale a perceber a história imanente nelas armazenada” (ÄT 132/103).

Assim, dado esse inelidível entrelaçamento enfático entre a determinação radical da arte como determinada pela história e o sublime como expressão de um processo de reflexão radical sobre as relações entre sujeito e objeto, podemos exprimir a tese de que o que estabelece a distinção entre o sublime na natureza e na arte reside precisamente no fato de que, na esfera artística, a irrupção da sublimidade tem, como um de seus momentos, uma determinada forma de consciência do processo histórico de constituição da realidade.

Ora, diz Adorno: “as obras em que a forma estética se transcende sob a pressão do conteúdo de verdade ocupam o lugar que outrora o conceito de sublime significava” (ÄT 292/222). Como é possível falar-se de uma auto-transcendência na arte? E como isso se liga à sua dimensão histórica?

d) A transcendência secularizada

Como dissemos brevemente acima, a natureza é aquilo que estabelece o ponto de fuga da alteridade indeterminada a que a arte aspira alcançar através de um movimento de objetivação. O belo natural é precisamente o momento em que a natureza parece manifestar um mais para além de sua determinação empírica: “o belo natural é o vestígio do não-idêntico nas coisas, sob o sortilégio da identidade universal. Enquanto este agir, nenhum não-idêntico existe positivamente. Por isso, o belo natural permanece tão disperso e incerto quanto o que ele promete ultrapassa todo o intra-humano” (ÄT 114/90; tradução modificada). A idéia da arte está associada à tarefa de objetivar a indeterminação fugidia da natureza, apoderando-se de sua transcendência, a que o belo natural aponta de uma maneira velada: “como linguagem humana que dispõe das coisas tanto quanto é reconciliada, a arte gostaria de alcançar novamente aquilo que é obscuro aos homens na linguagem da natureza” (ÄT 120/94; tradução própria). Ao contrário da obscuridade do mais da beleza natural, a transcendência estética na arte é algo fabricado, posto. Ela vincula-se diretamente ao contexto em que se articulam todos os momentos que constituem a obra. Essa totalidade estruturada não é apenas um espaço em que a transcendência se manifestaria, como seria o caso dos símbolos religiosos, em que a epifania se dá de forma positiva. As obras de arte, devido a seu caráter de artefato, separam-se dessa transcendência.

A ultrapassagem da obra por si mesma diz respeito à eloqüência com que ela fala, na medida em que é algo espiritual, ou seja, que não se confina a sua determinação como coisa na realidade empírica. Essa espiritualização, entretanto, não pode ser destilada diretamente de seus significados diretamente. Essa transcendência espiritual mostra-se como um significado descontínuo, interrompido, tal como uma cifra em cujo código nos faltam alguns de seus elementos.

Um critério legítimo para a qualidade da arte contemporânea reside em que ela não pode renunciar à meta de apontar para sua própria transcendência — sob pena de se tornar insignificante —, mas, também, não pode afirmar que possui a transcendência por si mesma. A completude de seu sentido torna -se ou um engodo teológico-religioso, ou uma mera coleção de elementos justapostos sem valor.

O mais das obras de arte não é simplesmente aquilo que a totalidade possui além da soma de suas partes. Essa determinação psicológica do todo como transcendendo

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o conjunto de seus momentos não toca na determinação da obra como incorporando, como lei de sua constituição, a ruptura desse mais, em favor da força que seus elementos materiais obtêm através precisamente pelo fato de serem mediados pela totalidade da obra. Na medida em que a totalidade necessariamente entra em conflito com o aspecto cru e disperso dos elementos que a constituem, a arte viu-se enredada, na modernidade, em uma antinomia histórico-filosófica, pois a transcendência não pode ser negada pura e simplesmente, mas a arte moderna tem, como seu princípio, a negação daquilo que Benjamin caracterizou como aura, como sua “atmosfera”. A desartização da arte tornou-se lei de seu movimento, de constituição de sua identidade. Exemplo de como esse movimento de negação da própria transcendência não pode ser tomado como absoluto são as poesias de Brecht, que, mesmo comportando-se como descrições de mundo, alcançam um nível artístico tal que as distingue de algumas de outros artistas que, negando todo elemento aurático, regridem a um âmbito pré-estético.

A mais enfática convergência da transcendência com seu desencantamento pode ser vista na obra de Beckett, em que a linguagem proíbe a colocação de um sentido legível a partir da articulação dos momentos que compõem a obra. A expressão estética é radicalmente mediada por seu mutismo, pela recusa enfática de ter seu sentido dado positivamente. Nesse movimento, a arte toma como seu télos implícito a tentativa de deixar aflorar a pura materialidade de seus elementos como índice da natureza que ela pretende resgatar. Estes, entretanto, por mais que queiram situar-se como contendo valores expressivos por conta própria, somente alcançam sua eloqüência através do momento objetivador, o qual, devedor da difusão material de seus elementos, acaba denunciando a obra de arte como irreal, fictícia: “as obras de arte tornam-se aparições em sentido pregnante, isto é, aparições de um outro, quando o acento incide sobre o irreal de sua efetividade” (ÄT 123/97; tradução própria). Isso faz a obra de arte tornar-se um instante, algo momentâneo, surpreendente. Essa característica vincula-se a seu caráter de ato, de um movimento que dá vida a seus elementos materiais.

A arte é um processo de secularização da transcendência, o que não significa uma negação abstrata desta, mas, sim, determinada. A arte é um momento de objetivação do que é radicalmente outro e efêmero em relação à existência empiricamente determinada. Segundo Adorno, a arte é uma cópia [Nachbild] do estremecimento [Schauer] perante a incomensurabilidade do mana. Essa duplicação objetivadora expõe a arte como esclarecida, pois torna o estremecimento comensurável ao homem, devido à força da enformação subjetiva que preside radicalmente a constituição da obra como artefato. A alteridade in extremis com que o mana era vivido outrora liberta-se, nesse processo, de ilusão de ser literal, posto que é cristalizada em um confinium humano. Esse cerceamento da suprema ilusão metafísica corporificada no estremecimento mítico é um momento de alienação corretiva, em que a obra se defronta ao espectador como anamnese de um radical outro, mas mediada pelo espírito subjetivo. “As obras de arte são epifanias neutralizadas, e, assim, qualitativamente modificadas” (ÄT 125/98).

O deslocamento aprofundado do núcleo ontológico do cosmo em um ponto originário da criação no mito, a fluidez do poder infinito e amorfamente disperso pelos poderes naturais no preanimismo e na magia são aquilo que empresta à alteridade radical da natureza sua evanescência suprema. A arte é um momento que procura conjurar essa efemeridade ao por-se como sua cópia objetivadora: prolongamento do transitório no artefato. Nisso as obras de arte aproximam-se da apparition, a aparição celeste, momento de manifestação enobrecida de algo que se subtrai às coisas empíricas e à intenção humana.

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A imagem prototípica do caráter momentâneo da arte é a do fogo de artifício: uma aparição celeste que rompe repentinamente com o peso da duração empírica. Ao passo que toda a tradição metafísica sempre enfatizou o mero ente como transitório e efêmero, e glorificava a transcendência eterna do mundus inteligibilis, aqui Adorno enfatiza a alteridade radical frente à empiria através da efemeridade absoluta da apparition. As obras de arte não se separam da realidade empírica por sua suprema perfeição incorruptível, mas, sim, tal como o fogo de artifício, por terem, como sua determinação intrínseca, a necessidade de atualizarem-se como aparições, fenômenos, manifestações de uma outra coisa: “elas não são apenas o outro da empiria: tudo nela torna-se um outro” (ÄT 126/99).

O conceito de imagem foi, talvez, como instrumento analítico, o mais usado de todos os que foram empregados nessa tese. Como parte concludente de toda a argumentação, é importante circunscrever de modo enfático o caráter de imagem da arte na Teoria estética como elemento que configura o núcleo da argumentação na passagem da transcendência estética para o caráter processual, histórico, imanente às obras.

A obra de arte é imagem, não porque copia, duplica, uma outra, mas por colocar-se como momento de irrupção pontual de um outro. A alteridade radical no mundo pré-histórico sempre esteve associada à relação entre a universalidade do poder infinito do mana e a contingência dos seres individuais. Esse antagonismo visceral reproduz-se na “simples” polaridade sujeito-objeto. A radical impossibilidade pós-kantiana de assenhorar-se do objeto, relegado a um contexto que dita sua essência como objeto de uso, de troca, como signo de status, etc., reflete a incomensurabilidade do mana. O caráter de imagem da arte não simplesmente evoca o poderio revelado do espírito que se move, difuso, pela natureza: ele é um momento de explicitação dessa alienação perante o objeto. Ao tornar intuível essa contradição, a arte não apenas a denuncia, como tenta torná-la comensurável à experiência. A imagem estética é o nó entre a universalidade opressora e a particularidade que, tal como uma mônada leibniziana sem janela, reflete essa universalidade. A face subjetiva desse enlace é o estremecimento mítico que a arte seculariza. Como oposta ao desenrolar funesto do esclarecimento, que labora no sentido de ocultar as contradições insuperáveis no processo de busca da verdade, a arte coloca-se como irracional, ao exprimir, com suas dissonâncias, cacofonias e degenerações, a irresolubilidade conflituosa entre sujeito e objeto. Nesse sentido, a arte é verdadeira enquanto movimento de objetivação da irracionalidade da sociedade completamente coletivizada. Na arte, a denúncia da inverdade é um lado da moeda; o outro é a antecipação de uma reconciliação com o objeto que advém da tomada de consciência da antinomia inconciliada entre sujeito e objeto.

O caráter de imagem da arte é um momento de sua determinação como não redutível à mera efemeridade ou à pura duração. Trata-se de uma paradoxal cristalização do momentâneo, através da experiência em relação à obra como em processo de objetivação. Que as obras sejam algo objetivo em sentido pleno contradiz sua lei de movimento, embora não possa ser negado in totum, posto que senão de nada contariam como coisas. A experiência perante a arte como algo objetivo diz respeito à circunstância de ela tentar tornar comensurável à intuição uma universalidade que se coloca tal como um absoluto acima dos indivíduos, que lhes escapa por entre as tramas dos conceitos e da intuições. O caráter de imagem da arte é o instante em que essa fluidez é objetivada no totum do artefato.

O redemoinho dessa dialética, entretanto, dá mais giros. Dado que toda imagem, como uma totalidade intuitiva, carrega o fardo de

ter que se completar para ser o que é, a imagem estética é acompanhada da ruptura

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substancial de sua carga de universalidade que tinge sua configuração. A arte não apenas se erige sobre o campo fecundo de sua imagerie: ela se determina, também, pela explosão dessa sua pretensão à dignidade de apreender o universal em sua fuga do campo de força empírico. O choque que as obras de arte recentes causam no espectador são indícios de uma certa decepção constitutiva da arte, que se recusa como receptáculo de um poder absoluto de instauração de um significado pleno. Nesse momento, é como se fizesse parte da lei de movimento da arte que ela negue a transcendência estética — uma estrita antinomia. Mas como faz parte do pensamento dialético conceber o desenvolvimento histórico como movido intrinsecamente pelas contradições internas, diz Adorno:

O aparecer e sua explosão na obra são essencialmente históricos. A obra de arte é em si — não como agrada ao historicismo, segundo sua colocação na história real — não um ser subtraído ao devir, mas, sim, enquanto ente, algo em devir. O que nela aparece é seu tempo interior, e a explosão da aparição rompe sua continuidade. Ela é mediada para a história real através de seu núcleo monadológico. A História pode chamar-se o conteúdo das obras de arte. Analisar obras de arte significa tanto quanto perceber a história imanente nelas armazenada. (ÄT 132/103; tradução própria)

Vejamos, agora, como se dá essa historicidade imanente à obra como elemento dinâmico de sua estrutura formal. e) A historicidade como forma

É preciso ver, inicialmente, o que Adorno concebe como uma falsa concepção da historicidade artística: “O contrário de uma genuína relação com o elemento histórico das obras como seu próprio conteúdo é a sua apressada subsunção na história, sua remissão ao lugar histórico” (ÄT 290/220;tradução própria). Essa tomada de posição condenada pelo autor da Teoria estética é o que ele chama de historicismo [Historismus]. Ela consiste nessa subsunção da obra na história enquanto um dos elementos de uma seqüência que se desdobra temporalmente. De acordo com essa concepção, a arte seria histórica porque faria parte de um continuum histórico que unifica e dá sentido a todos os seus integrantes. Podemos interpretar o qualificativo “apressada” [eilfertige] para o ato dessa subsunção como a eliminação de uma série de considerações que devem ser feitas, de várias mediações que devem ser levadas em conta para apreender-se o caráter histórico da obra de arte. Sem tais mediações, a história se apresenta para a arte como um destino exterior (cf. ÄT 285/217), ou seja, como algo que englobaria o que há de legítimo na seqüência das manifestações estéticas. Dado que no historicismo há, como na concepção hegeliana da história, um desdobramento de um sentido que subjaz aos acontecimentos, ou remetemos a obra de arte para a seqüência histórica, ou então ela não vale nada por si como verdade acerca do espírito232, ou seja, perde sua legitimidade em si mesma.

Contra essa concepção historicista assim delineada, a historicidade da arte é tomada como imanente a ela, como um caráter processual [Prozeßcharakter] constitutivo da identidade da obra enquanto obra de arte. Há que se perceber em que consiste o que Adorno chama o núcleo temporal [Zeitkern] da obra, pois “o caráter processual das obras de arte não é outra coisa que seu núcleo temporal” (ÄT 264/201; tradução própria).

“A obra de arte é processo essencialmente na relação do todo e das partes. Não podendo reduzir-se nem a um nem a outro momento, essa relação é, por sua parte,

232 “Se não se sabe nada dessa [a verdade eterna do espírito — vf], então não se sabe nada de Verdadeiro, Justo ou Ético”. Georg W. F. Hegel. Vorlesungen über die Philosophie der Weltgeschichte. Vol. I: Die Vernunft in der Geschichte. Hamburg: Felix Meiner, 1970, p. 45.

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um devir” (ÄT 266/202; tradução própria). A impossibilidade de a arte manter-se enquanto tal optando ou pela totalidade fechada de seus momentos, ou pela dispersão absoluta de suas partes obriga-a a buscar um equilíbrio instável, que não se resolve em definitivo para nenhum dos dois pólos. Os antagonismos reinantes entre as particularidades dos elementos introduzem um fator de destruição e morte no núcleo da arte que tende a desfazer a sua própria identidade. Mas a ânsia mítica pela sobrevivência por sobre o desconhecido, o não capturado através da malha dos fios tecidos com elementos de universalidade, ânsia de imortalidade, herdada das origens mágicas da arte, leva-a a separar-se da empiria multiforme e dispersa através da colocação de uma esfera idêntica a si mesma, no “‘reino autóctone do espírito’”, mas que precisa, para conservar tal auto-identidade, do seu “não-idêntico, heterogêneo, não-ainda-formado” (ÄT 263/200). Por isso Adorno diz que o próprio conceito de “equilíbrio” para definir esse estado se contradiz a si mesmo (cf. ÄT 266/202), posto que deveria se situar onde, a rigor, não pode, ou seja, onde pode tornar visível a tensão entre as partes e o todo. Mas tal posição exige uma certa totalidade, pois sem ela como falar de uma “obra”, um ser, um algo que efetivamente existe? O resultado, portanto, é, paradoxalmente, um equilíbrio em devir:

Se a obra de arte não é em si nada fixo, definitivo, mas sim algo móvel, então sua temporalidade imanente se comunica às partes e ao todo no fato de que a relação destes se desdobra no tempo, e de que eles podem denunciá-la. Se as obras de arte vivem, graças a seu caráter processual, na história, então elas podem se perder nela. (ÄT 266/202; tradução própria)

A dinâmica da obra de arte é precisamente esse caráter de irreconciliabilidade entre o aspecto de dispersão, de multiplicidade, de alteridade, em relação ao espírito e a necessidade de a obra se constituir como algo idêntico a si, como algo de espiritual, de fabricado, que, portanto, precisa encerrar-se em um todo. Sem poderem inclinar-se definitivamente para nenhum dos dois pólos, sob pena de perderem-se em meio à mera contingência sem pretensão a voz, ou igualarem-se à violência do universal abstrato da razão instrumental, a única chance de prosseguirem na história é exporem seu “núcleo temporal”, o que as torna, por outro lado, frágeis, diante da necessidade reinante de uma universalidade definitiva (petrificada porque instrumental) no sistema de autoconservação da dialética do esclarecimento. Essa característica da arte — uma dialética irrealizável —, agudizada na modernidade, reflete-se, segundo Adorno, em procedimentos como o de Stockhausen, em que a música eletrônica não possui anotação, é “realizada” diretamente sobre o material e se esvanece com ele: “uma arte de ambição enfática, que entretanto estaria pronta para se desfazer” (ÄT 265/202).

Mas se o sentido da obra — e isso tomado em um significado forte: o sentido de existência da arte — é referido por Adorno à construção de sua unidade (cf. ÄT 229-235/175-179), e se tal unidade não é o ponto definitivo por meio de que a obra alcança a duração, mas, como vimos, em um equilíbrio insatisfeito entre os antagonismos dos particulares e a totalidade formal, a consecução e o alcance de um sentido para a própria arte seria a anulação de si mesmo. Assim, “seja o que for que no artefato se pode chamar a unidade de seu sentido não é estático, mas sim processual (...)” (ÄT 262/200; tradução própria), ou seja, o sentido da própria arte não é algo dado de antemão, nem possível de ser alcançado em definitivo através de seu desdobramento “histórico”233.

233 Colocamos essa palavra entre aspas, porque o sentido com que ela está aqui empregada não é o que Adorno lhe confere, e sim próxima do historicismo por ele criticado.

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Adorno faz um jogo com a polissemia da palavra “processo”, dizendo que “é objetivo o caráter de processo imanente das obras de arte — mesmo antes que elas assumam um partido qualquer—, o processo que elas promovem contra o que lhes é exterior, o mero subsistente” (ÄT 264/201). A palavra ganha uma conotação jurídica, em que a radical separação da obra de arte em relação à existência reificada exterior procura fazer justiça ao que é oprimido na realidade empírica, mostrando a esse “que ele mesmo deve ser de outro modo: esquema a-consciente de sua modificação” (idem). Daí o caráter polêmico de toda a obra de arte autêntica, mesmo as que aparentemente mostram em sua totalidade formal uma harmonia que é signo do puro caráter espiritual das obras, como em Mozart, mas cuja “reconciliação, que elas presentificam, tem sua doçura dolorosa, porque a realidade até hoje a recusou” (idem).

Esse caráter processual, histórico, das obras, traduzido em termos das relações entre o todo e as partes é transposto por Adorno também para o conjunto das obras: “Imanentemente dinâmicas, entretanto, são não apenas as obras de arte individuais, mas também sua relação recíproca” (ÄT 263/200; tradução própria). Ora, se a dinâmica das obras se faz nas relações de antagonismo entre os particulares, que, assim, “não se encontram em justaposição, mas atritam-se ou atraem-se mutuamente, um querendo ou repelindo o outro” (ÄT 275/209; tradução própria), e se essa dinâmica está presente na esfera das relações entre as obras — o que, diga-se de passagem, nos parece bastante razoável —, então se nos afigura totalmente incompreensível como Adorno pode dizer, em seqüência à primeira citação deste parágrafo, que “a relação da arte é, entretanto, histórica somente através das obras individuais, imóveis em si, não através de sua relação exterior, ou mesmo através da influência que elas devem exercer uma sobre a outra” (ÄT 263/200; tradução própria, grifos nossos). Ora, como seria possível perceber uma dinâmica, um caráter histórico, processual, portanto, em que haja atrito, repulsão e atração, sem que os elementos em jogo — no caso as obras individuais — exerçam influência uma sobre a outra, sem que isso contribua na constituição da identidade de cada obra? Em outras palavras: que sentido faz dizer que as relações entre as obras individuais tenham também uma dinâmica imanente e que tais relações não contribuam para o caráter histórico, ou seja, de uma dinâmica imanente, para a arte? – e que as influências recíprocas das obras também não contribuam para a dinamicidade de cada uma delas?

Esse impasse, para o qual não vemos solução dentro da argumentação de Adorno, não possui, entretanto, segundo pensamos, grande importância, dado que podemos, sem grandes prejuízos para sua concepção global acerca do caráter de processo da arte, abstrairmo-nos dessas passagens conflitantes.

Mas se é problemático o estabelecimento das relações entre as obras particulares como histórico, processual, por outro lado é importante para nossos propósitos o fato de que Adorno considera esse caráter processual como algo objetivo, ou seja, não se trata apenas de um desdobramento temporal tomado apenas do ponto de vista da recepção:

As obras de arte não se modificam apenas com o que a consciência reificada considera a atitude dos homens, que varia de acordo com a situação histórica, relativamente a elas. Tal transformação é superficial frente à que se produz nas obras: o destacamento de seus estratos um após o outro, imprevisível no instante de seu aparecimento; a determinação de tal transformação através de sua lei formal emergente e com isso dissociante; o endurecimento das obras tornadas transparentes, o seu envelhecimento, seu mutismo. (ÄT 266/203; tradu ção própria, grifos nossos)

Que as obras de arte se modifiquem isso é devido, segundo Adorno, devido à sua lei formal, ou seja, essa modificação tem seu fundamentum in re, é uma característica

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objetiva delas, de forma alguma acontece somente de acordo com a recepção que se tem delas em cada época histórica. Que as obras estejam na história isso é devido ao caráter de devir gerado pelas tensões internas da obra, na relação, como vimos, do campo de forças antagônico entre sua totalidade e as contradições reinantes no seio das particularidades. Ora, tais relações constituem a própria lei formal da obra. Ao contrário de Kant, que considerava nosso juízo sobre a arte e a beleza em geral fundado apenas na disposição das faculdades da mente, e que, portanto, possuía validade universal apenas subjetiva, para Adorno nosso discurso sobre a arte (que, diga-se de passagem, inclui mais do que o atributo de beleza) tem valor objetivo, ou seja, sua universalidade é tomada em sentido forte234.

Mas temos em Adorno ainda várias outras considerações acerca desse caráter de universalidade. Ele é tomado em conta também pelo lado da recepção, por exemplo. Adorno concorda com Benjamin, quando este cita Proust ao dizer dos vestígios “que os incontáveis olhos dos contempladores deixavam em várias obras” , ou seja, “não se deve abstrair esquematicamente da recepção” (ÄT 288/219; tradução própria). Embora as obras de arte tenham uma parcela da vontade mítica de sobrevivência espelhada em sua “fixação na pedra, na tela, no texto literário ou de notas musicais”, elas não escapam da modificação temporal, pois “o fixado é signo, função, não em si; o processo entre ele e o espírito é a história da obra” (idem — grifos nossos). Aqui entra em jogo uma dimensão nova: a historicidade da obra se dá entre ela e o espírito, o que significa que a lei formal da obra, isto é, aquilo que determina seu caráter processual, é por sua vez determinada também pela recepção, pela crítica, pela interpretação que se faz dela: “se as obras de arte acabadas tornam-se o que elas são porque seu ser é um devir, então elas são por seu turno remetidas a formas em que aquele processo se cristaliza: interpretação, comentário e crítica” (ÄT 289/220; tradução própria). Se como vimos, o ponto de equilíbrio instável que caracteriza as obras como um devir (seu núcleo temporal) não reside nem no seio da particularidade por si só, nem na unidade de todos os seus momentos, mas em um lugar a rigor inconceituável, de forma semelhante esse mesmo caráter histórico, processual, das obras não se situa nem na própria obra, nem na própria soma das formas de sua recepção, mas entre esses dois planos. Tais formas de recepção não são, assim, elementos exteriores ao que constitui a própria identidade (histórica) da obra, mas são

o palco do movimento histórico das obras em si e por isso formas por direito próprio. Elas se prestam ao conteúdo de verdade das obras como a algo que as ultrapassa e separam-no — a tarefa da crítica — dos momentos de sua inverdade. Que o desdobramento das obras seja bem sucedido, para isso aquelas formas de recepção devem agudizar-se até a filosofia. (idem)

Essa vinculação entre a historicidade da arte e a filosofia também pode ser pensada diretamente em relação ao sublime. Segundo Adorno, “o sublime, que Kant reservou à natureza, tornou-se após ele um constituinte histórico da própria arte” (ÄT 293/222-3; tradução própria). Ou seja, a grande arte subjetiva burguesa absorveu tudo aquilo que a natureza prometia como sublime, ou seja, como expressão de um absolutamente outro, de uma liberdade do âmbito das relações concretas de produção. Isso, como vimos, é o que se deu na arte com a antinomia fundante da arte moderna da

234 Essa expressão se deve ao fato de que a universalidade subjetiva em Kant não admite provas e/ou argumentos conceituais; ela, como diz o próprio autor, deveria apenas ser chamada de validade universal (Allgemeingültigkeit ). Ao julgarmos algo belo imputamos (ansinnen) tal juízo a todos os outros homens, mas não podemos exigi-lo, tal como o podemos em relação a um resultado de uma operação matemática. A rigor poderíamos dizer a universalidade no juízo de gosto kantiano é apenas um horizonte descortinado pelo atual jogo das facu ldades subjetivas, mas não indubitavelmente presente.

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necessidade de produzir sua própria transcendência, sem poder situar-se para além dos limites do artefato humano, nem desistir da persecução desse ideal de transcendência. Mas a interpretação que fizemos do vínculo entre tal transcendência secularizada e a historicidade na arte permite-nos, por outro lado, fazer uma paráfrase da idéia de Adorno citada acima, dizendo que, diferentemente da natureza, na arte a história tornou-se um constituinte do próprio sublime.

f) A arte moderna como historicamente-sublime

Ao definir o sublime na natureza, Kant, como vimos, dividiu-o em dois momentos: o matematicamente-sublime [Mathematisch-Erhabene], que diz respeito à natureza em sua infinidade de grandeza física, e o dinamicamente-sublime [Dynamisch-Erhabene], que se relaciona à incomensurabilidade da força física das potências naturais. Schiller rebatizou-os como teoricamente-sublime e praticamente-sublime.235 De acordo com os conceitos que usamos para circunscrever a arte moderna como sublime, poderíamos dizer que ela seria historicamente-sublime. Apesar do vínculo aparente que essa denominação tem com a concepção kantiana, há uma diferença fundamental. Em Kant, os advérbios que antecedem “sublime” dizem respeito ao que provoca o sentimento em jogo, ou seja, as infinidades de grandeza e de força naturais. Em nossa definição, o advérbio “historicamente” vincula-se mais propriamente ao efeito que a experiência de contato com a obra proporciona, embora também se ligue ao que a provoque.

Segundo Adorno, a categoria do sublime é aplicável à arte como um todo, e não a cada obra particular. Em dois momentos ele afirma isso:

Dever-se-ia contrapor ao hedonismo estético aquela passagem da teoria kantiana do sublime, que ele, timidamente, recusa à arte: a felicidade nas obras de arte seria, quando muito, o sentimento da resistência, que elas mediatizam. Isso vale antes para o domínio estético como um todo do que para a obra de arte individual. (ÄT 31/27; tradução própria)

Frente a obras de arte concretas não se deveria falar mais do sublime sem a ladainha da religião cultural, e isso é derivado da dinâmica da própria categoria. (ÄT 295/224)

O sublime em relação a cada obra singular, portanto, somente poderia ser considerado como oco, vazio, já apontado por Welsch, em que a sublimidade reside antes em procedimentos e temas de antemão considerados grandiosos, pomposos, e que, com justa razão, são rechaçados por Adorno.

A idéia de que o domínio estético como um todo, historicamente considerado, reserva um lugar para o sublime na arte nos parece correta, mas que esse lugar somente existe se se considera a totalidade desse domínio, tal concepção se apresenta incompatível com a que apontamos acima de que “obras em que a forma estética se transcende, sob a pressão do conteúdo de verdade, ocupam o lugar que outrora o conceito de sublime significava”. Com efeito, se se pode perceber que há essa auto-transcendência da forma nessas obras, por que não se poderia falar delas adequadamente segundo a categoria do sublime? Por que a interpretação filosófica não seria capaz de perceber, em cada uma dessas obras em que a forma se transcende, o seu caráter de sublimidade?

Aqui seguimos, não como argumento, é verdade, mas como mais do que uma mera indicação, a exigência enfática do próprio Adorno de que “a estética pressupõe

235 Schiller acrescenta outro, o pateticamente-sublime, que diz respeito à relação de empatia com o sofrimento alheio. Cf. “Vom Erhabenen”. In: Sämtliche Werke. München: Carl Hanser, 1989, pp.489-512.

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incondicionalmente a imersão na obra de arte individual” (ÄT 268/204 — grifos nossos). A questão reside, assim, em dizer qual o significado que tal transcendência possui em termos de experiência com cada obra de arte.

De acordo com todo o desenvolvimento temático dos itens anteriores, dizemos que essa transcendência está ligada a um modo de percepção histórico-temporal diferente da que fazemos na experiência comum. Vimos, mais de uma vez, que o solipsismo engendrado pelas formas herdeiras da racionalidade ocidental liga-se estreitamente à ausência da apreensão da dinâmica histórica de si e do mundo. Como mostramos no item sobre ideologia, a razão tout court, tal como se desenvolveu no esclarecimento, contém uma opacidade fundante em relação a si mesma, pois o cerne de sua constituição — pari passu com a identidade individual — são as relações de poder. Considerando toda a dinâmica do movimento de alteridade radical proporcionado pela obra de arte, vemos que a experiência estética na modernidade proporciona um modo de apreensão do objeto como não vinculado estritamente à ânsia de determinar o sentido das coisas em um “fictício e unidimensional agora”. Para a percepção temporal cotidiana, o passado e o futuro, uma vez abstraídos do presente através do desencantamento radical da realidade, permanecem meras idéias e/ou imagens, que servem de parâmetros para avaliar o instante atual. O que dizemos em relação à arte é que, nela, o fluxo histórico em que o presente se insere é vivido como determinação viva, atual, fundante da própria experiência, uma vez que o olhar que pretende apreender o objeto não é capaz de fazê-lo a partir de um ponto de referência onipotente. A percepção cotidiana é já enformada historicamente, como diz Horkheimer:

Os homens não são apenas um resultado da história em sua indumentária e apresentação, em sua figura e seu modo de sentir, mas também a maneira como vêem e ouvem é inseparável do processo de vida social tal como este se desenvolveu através dos séculos. Os fatos que os sentidos nos fornecem são pré-formados de modo duplo: pelo caráter histórico do objeto percebido e pelo caráter histórico do órgão perceptivo.236

Entretanto, essa historicidade é surda, subterrânea; podemos ignorá-la simplesmente — o que normalmente se faz —, e se a levamos em consideração, esse é um conhecimento que, embora altere substancialmente o modo como encaramos as coisas, continua por demais abstrato, continua um saber sobre o desenvolvimento histórico do mundo. A experiência estética da arte moderna é aquela em que a historicidade do mundo e do eu invade a percepção. De um modo um tanto análogo a como Kant diz que a imaginação, em seu fracasso constitutivo em fornecer uma totalidade intuitiva do objeto em sua infinidade, passa a tomar esse fracasso como uma apresentação negativa das idéias da razão, dizemos que a experiência de alteridade para com a obra de arte é o momento em que o abalo do solipsismo subjetivo constitui-se como a mediação radical para descentrar a experiência de sua referência temporal puntiforme. Na arte, a história não é mera enformadora pressuposta para a experiência: ela é trazida à tona por um estiramento do sujeito em relação a um objeto que escapa ao poder de conhecimento abstrato, centralizado nas relações de poder.

O absurdo que a obra de arte parece nos colocar como desafio, a irresolubilidade essencial de seu enigma, o prolongamento de nossa relação com ela, a promessa interrompida de uma transcendência, o impasse entre o universal e o particular, a exigência de interpretação continuada, a necessidade de sua inserção no contexto

236 Max Horkheimer. “Teoria tradicional e teoria crítica”. In: Benjamin, Horkheimer, Adorno, Habermas. Tradu ção de Edgard a. Malagodi e Ronaldo Pereira Cunha. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p.125 (Col. Os Pensadores).

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histórico, a crítica ao estado de coisas e ao sujeito, a paradoxal fixação da evanescência do transcendente em uma imagem que se recusa o caráter simbólico mágico-animista, os choques surpreendentes que o novo nos coloca na arte — tudo isso, que procuramos desenvolver brevemente nos itens anteriores, leva-nos a dizer que a arte nos proporciona uma experiência mimética do tempo histórico e, nesse sentido, é historicamente-sublime.

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Conclusão

O percurso dessa tese foi trilhado nas linhas que demarcam os limites da ipseidade subjetiva, instituídos historicamente na produção do conhecimento, que, ao mesmo tempo em que possibilitou a apreensão do objeto enquanto outro, levou ao enredamento do sujeito na mesma malha estreita que este lançava sobre tudo o que se contrapõe à esfera da consciência.

Para caracterizar essa dialética, começamos com a apresentação daquilo que foi sendo desenvolvido de forma drástica na história da civilização ocidental: a abstração. O ser humano jamais existiria como tal se não tivesse havido uma ruptura fundamental entre o núcleo diretivo de suas ações e os impulsos que o levam a agir. Toda a alteridade que o homem poderá experimentar pelo resto de sua história somente veio a ser possível porque ele tornou-se estranho a si mesmo. Essa estranheza não existe nos animais, uma vez que podemos observar neles um recobrimento expressivo do ímpeto para agir e a forma como ele será satisfeito. É exatamente porque o homem não trouxe da natureza aquilo que dá forma à sua pulsão, que ele teve que aprender a ser o que ele é, e, assim, pôde instaurar esse véu entre o si e o outro. Foi preciso que ele encontrasse algum ponto que servisse de âncora para gerenciar o redemoinho de ímpetos desconexos que recebia e produzia em seu corpo. Esse nexo entre a profusão interna de movimentos e aquilo que viria a ser a tão acalentada Consciência não foi nem a materialidade das sensações, nem a abstração do conceito.

No início, a imagem… Para vir a ser si mesmo, o homem precisou imitar o outro. O mimetismo foi o elemento mais rudimentar dessa interação imagética, mas algo meramente automático, pouco mais que um ato reflexo em alguns momentos. A mímesis em sentido pleno pôde ser qualificada quando o exercício contínuo dessa imitação acabou por evidenciar a imagem como sendo forte, pesada, ganha ndo uma densidade cognitiva tal, que aquilo que viria a ser o sujeito já possuía uma superfície para ver sua face refletida nela.

Medo de tudo e do todo… O antílope “sabe” como escapar da morte. O leão já está “programado” pela natureza para fazer o que precisa para não morrer de fome. Mas e o homem? Como acabar com a dor? O que evita a morte? A indistinção de seus ímpetos internos e de suas sensações tinha como correlato a indiferenciação de tudo lá fora, e a fonte generalizada do perigo foi, aos poucos, apreendida como poder infinito da natureza, tal como um ápeiron de eflúvios poderosos, o mana. Como uma alteridade radical, na verdade o próprio indivíduo entrelaçava-se nesse turbilhão de forças e sentia-se concretamente subjugado a elas.

O poder da imitatio… A limitação imagética da potência natural difusa deu origem à magia. Foi assim que os poderes naturais tornaram-se especificações do mana, e os ícones que duplicavam tais poderes foram vividos como sedes de forças anímicas. Em vez de uma totalidade indivisa, rituais que invocavam os poderes da natureza a serviço dos fins humanos.

O evento primevo… Em um outro tempo, cravado no âmago abissal do universo tecido por forças poderosíssimas, os espíritos foram encontrar o puncto originário, o foco instaurador da verdade ôntica de tudo. O mythus da origem sedimentou a fonte de compreensão da realidade no evento primordial, de onde promana a substância de todo ser e acontecer relegados a meras cópias. A méthexis platônica em relação às idéias já era vivida de forma concreta, sem a abstração metafísica, no terror que resplandecia a partir da incomensurabilidade assustadora perante aquilo que rememorava a transcendência infinita do poder da origem. Quanto mais longe do instante do agora, mais

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o evento primordial cobrava a dívida pela existência, com a força com que o abismo atrai aquele que ousa medir-se com o que não conhece medidas. O curso do mundo segue a trilha que se desdobra a partir da palavra que não se separa do ser: o fatum incorpora a substancialidade da origem que se eterniza, garantindo a permanência do significado coletivo estampado no horror do símbolo das forças naturais.

Para além da natureza…A Grécia Antiga estabeleceu um modus vivendi e cognoscendi sui generis: o esclarecimento. Sua mitologia institui uma cisão qualitativa frente às outras através do plano de clivagem que fez os deuses abstraírem-se das forças da natureza. Das primeiras divindades ctônicas até os deuses da luz olímpica, a abstração teo-numênica perante a esfera phýsico-aisthética foi cada vez mais reforçada. O que virá a ser o lógos filosófico já povoava a imaginação abstrativa dos mitos gregos. A mera representação mental reconheceu-se como depositária do que configura a fonte de intelecção do real: as relações de poder. O espírito nasce com a autoconsciência de sua separação perante o contexto dos mais fracos. A aristocracia logocêntrica helênica firmou-se a partir da vinculação do poder à âncora cognitiva unitária da Idéia, que expulsa da utopia cristalina da unidade política sem conflitos a promiscuidade mimética com o outro no medium por demais granuloso da imagem estética.

A res operandi… Apesar de sua suprema abstração, as metafísicas grega e medieval ainda espelhavam um mundo teleologicamente estruturado, ao mesmo tempo em que denunciavam a injustiça das relações de poder no chorismós do eidos perante a phýsis. O mundo cartesiano não conhece tal teleologia, e o fato de o autor das Meditações não construir uma ética fundada na res cogitans, propondo apenas uma moral provisória, é emblemático da suprema abstração que se delineava: procurou-se a ratio essendi do sujeito na pura atividade cognoscendi. “Não quero precisar do outro para saber que eu sou”, diria Cartesius — uma falácia.

Wissen zur Macht… O mundo que se abre com a consciência do saber como coisa desnuda aquilo que sempre foi o cerne do esclarecimento: o saber orienta-se para o exercício distanciado de poder sobre a natureza e sobre os outros. A ciência moderna nasceu com o universo burguês não por acaso. Ambos originam-se da consciência de que a idéia de universalidade deve valer para tudo: desde o movimento do servo para fora do feudo até o refinamento absoluto da extrema simplicidade lógica do “Eu=Eu” de Fichte. O saber como técnica desvela a disseminação social da abstração cognitiva, espelhada na hierarquia da divisão do trabalho.

Senhor de si…Mas essa divisão já se podia ver na formação do mundo grego, e também de um modo microscópico no sujeito mesmo. Este emerge precisamente, em sua forma proto-burguesa, no reconhecimento de que as relações de poder devem ser internalizadas. O núcleo da subjetividade a se formar, expresso alegoricamente na Odisséia, é conquistado na medida em que se rompe o nexo com a imagem beatífica e sedutora da natureza, lida como um prazer de dissolução a ser evitado a todo custo. A força enrijecida do caráter é o prêmio para uma razão suficientemente astuciosa para desmistificar o engodo ambivalente da imagem mítica.

O retorno do recalcado… Qual uma neurose coletivamente monstruosa, o poderio militar que desaba sobre o mundo na 2a. Guerra Mundial pôde ser lido como uma vingança da natureza, como um retorno da onipotência do radicalmente diferente, que, negado abstratamente em sua alteridade, instaura-se sem espaço para a constituição livre do si. A própria neurose em termos individuais pode ser lida como um mimetismo que se dá em termos compulsivos, posto que o ser humano passa a não mais determinar a si mesmo livremente, mas, sim, a partir de impulsos naturais descontrolados.

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A opacidade da representação… O grande problema filosófico que se delineia nesse quadro não é que ele seja uma descrição catastrófica relativo a uma situação pretérita, pois ele não é apenas isso. A racionalidade como tal contém algo da instrumentalização do saber como sua espinha dorsal, posto que se funda em relações de poder na apreensão do objeto. A razão tout court é ideológica, pois contém uma opacidade inamovível sobre seu solipsismo constitutivo.

Pensar mimeticamente… A tarefa filosófica de Adorno: instaurar um processo crítico radical sobre o próprio pensamento, a fim de encontrar, nos interstícios paratáticos dos conceitos não-hierarquizados, o reflexo monadológico de um objeto que insiste — para nossa sorte — em não se enquadrar na trama conceitual de nosso pensamento, podendo, então, ser conceituado em sua diferença — o oxímoro adorniano. Entre a decepção constitutiva de abocanhar o objeto por inteiro em sentenças protocolares e a idéia metafísica que flutua “chorismática” para além de todo sensível, há o espaço que a filosofia preenche com sua noção de esperança, que é a única que nos permite constituir, com algum direito, a idéia do que seja verdadeiro.

O devir no pensamento… O esclarecimento teve como um elemento bem próprio a negação da dinâmica histórica como fundante da relação para com o objeto. A dialética negativa de Adorno pretende fazer o pensamento mover-se através da negação determinada da força com que as categorias sintetizam aquilo que se encontra no objeto como algo a ser moldado. Trata-se de perceber a história sedimentada nas coisas, como índice da violência perpetrada contra elas ao longo da civilização.

Quid tempore est?…O tempo tem uma longa história. Nasce com a abstração ainda fraca dos primeiros conceitos, aprofunda-se com a imagem mítica e ilumina-se com a abstração conceitual grega. Alcança a intimidade subjetiva necessária com a inquietação agostiniana sobre esse ponto que sempre passa, nunca pára e jamais volta, que parece não existir, mas que é sempre falado… A modernidade aplainou-o bem ao gosto da ciência matematizada e, com a teodicéia pseudo-secularizada do espírito absoluto, passou a ter como sentido o desdobramento de uma história teleologicamente estruturada rumo à Liberdade. Mas nem a planura do tempo unidimensional, nem uma História como palco do espírito que se auto-reconhece, faz justiça à historicidade constitutiva e inalienável do próprio pensamento que deve reconhecer a si como constituído pelo objeto. É preciso pensar o que seria um tempo mimeticamente constituído.

A imagem do tempo…A arte moderna é um momento em que o espírito atrita-se com a natureza em um continuum de tensões não-resolvidas. A herança do sublime como um estremecimento entre o reino da liberdade e da natureza, que Kant retirou da arte, é, na modernidade, a vivacidade com que a dissonância integra a obra de arte como um de seus momentos inalienáveis. A degeneração da arte, a perda de sua atmosfera aurática, tornou-se para ela o que a faz ter alguma chance de sobrevivência em um mundo totalmente desencantado. A negação da transcendência estética é o modo com que a arte procura escavar à procura de sua própria transcendência, posto que resignar-se a não fazê-lo seria sua capitulação frente ao próprio sistema que pretende denunciar. Com essa estrita antinomia histórica, a arte é sempre uma irrupção momentânea e cristalizada de uma alteridade radical fugidia, em que o todo e o particular, não encontrando repouso, obrigam a um estiramento do sujeito por sobre si mesmo, suprassumindo a experiência cotidiana do tempo puntualmente determinado em uma experiência mimética do tempo.

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Nesse trajeto que percorremos, é possível extrair quatro teses fundamentais, que são os fios condutores de cada um dos capítulos respectivamente.

1) O conceito de mímesis, bastante discutido em geral, e muito mal compreendido entre os comentadores de Adorno, foi delineado, aqui, através da idéia de que a representação mimética, fundada em uma imagem que duplica o mundo, possibilitou um substrato físico, material, por meio do qual o sujeito pôde criar um meio-termo entre a esfera mental, diretiva de suas ações e a materialidade de seus impulsos sensíveis e motores. A indeterminação desse conceito, até mesmo na obra de Adorno, pode ser explicada pelo fato de que não se atentou para o fato de que a duplicação imagética sempre representou para o sujeito um momento de expressão, uma vez que, ao produzir a imagem duplicada da realidade, ele precisou projetar-se nela. Por mais rudimentar que seja o processo de expressão de algo interno que, a rigor, nem sequer se formou ainda, é preciso que se tenha claro que o movimento de pro-dução da imagem deve ter sido realmente muito significativo para seres que não possuíam um vínculo de “curto-circuito” entre o que dirige suas ações e os ímpetos motores. O entrelaçamento de sujeito e de objeto é compreendido facilmente a partir desse conceito de mímesis, pois o sujeito ainda está totalmente mediado pelo medium material da imagem, que congrega de forma enfática o que seria o objeto e a esfera subjetiva.

O processo de formação do conhecimento instaura-se de forma definitiva com a autonomização da imagem, que adquire cada vez mais um peso próprio na relação com a realidade. O fato de a imagem ser vivida como poderosa frente ao real é um momento revelador da dívida que o sujeito sempre contraiu para se formar. Do preanimismo até o mito, a imagem cristaliza-se cada vez mais em um núcleo explicativo do mundo, mas nunca deixando de exercer uma força atrativa como princípio vivencial.

2) A Dialética do esclarecimento opera com dois conceitos distintos do que seja “esclarecimento”. Um deles, usado normalmente pelos críticos vinculados a Habermas, diz que se trata de um processo sem começo nem fim. Buscar uma etapa “anterior” a ele caracterizaria precisamente o que ele é, ou seja, um modo de taxar alguma coisa de não-esclarecida em contraste com uma “nova” fase, em que a luz de uma racionalidade especial teria brotado na mente humana. Em vez de alguma ruptura decisiva, essa vertente apela para o vínculo imediato entre poder, coletividade, conhecimento, opressão. Dada a relação constitutiva entre conhecimento e poder, faz-se igualar a formação do saber ao esclarecimento tout court. O outro conceito desse processo de racionalização, que, segundo pensamos, é o que norteia a primeira parte da Dialética de 1947, diz do mito grego como seu início. O que marca a mentalidade “esclarecida” não seria simplesmente um exercício do poder através de alguma forma de representação do real, mas, sim, a abstração do pensamento perante toda a massa de seres que deve se subjugar a ele. A astúcia esclarecida consiste precisamente em tomar consciência cada vez mais clara dessa cisão radical. A emergência da subjetividade proto-burguesa em Ulisses é emblemática para isso. Somente com a abstração fundamental da força unívoca da razão perante a ambigüidade do comportamento mimético é que o sujeito pôde emergir do seio indistinto da natureza, ao mesmo tempo bem-aventurança e dissolução.

Podemos admitir que a dominação seja parte do pensamento; que ela constitua a falsidade dele; mas ela não pode ser tomada como algo que caracterizou a falsidade do pensamento indistintamente, ou seja, sem que se considere a mediação da especificidade do saber.

3) Por outro lado, essa falsidade não é um destino inamovível, que condena o homem à passividade perante as forças sociais, que, condensando e dirigindo esse núcleo de opacidade do pensamento perante si mesmo, perpetuam a injustiça como algo

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natural. Chamamos de ideológica essa propriedade de uma determinação representação em dificultar o processo de reflexão sobre o que legitima o valor que se dá a alguma porção da realidade. Trata-se de algo próprio da constituição do todo social que ele procure instituir modos de os indivíduos esquecerem, negligenciarem, os porquês, as causas, os fundamentos, de sua existência. O olhar dirigido para frente, ancorado em uma consciência razoavelmente satisfatória de que a vida vale a pena ser vivida, de que há um sentido para tudo — inclusive para o sofrimento —, é o elemento propriamente ideológico da estrutura social como um todo.

Mas ideológicos não são apenas determinados construtos, inseridos em contextos sociais específicos, mas a própria racionalidade ocidental. Adorno queixa-se de falta de historicidade no trato com o conceito de ideologia. Mas perceber-se uma raiz comum a todas as formas ideológicas não é ser anistórico, pois tal raiz é precisamente aquilo que nos permite aplicar essa qualificação a todas elas. Se não fosse possível distinguir esse fundamento comum a elas, como poderíamos dizer que todas são “ideológicas”? A rigor, podemos dizer que o próprio Adorno é que desprezou a historicidade desse conceito, ao imputar até mesmo à manifestação do desejo do predador de devorar sua vítima como ideológica, caso ele tivesse consciência, como se todo e qualquer exercício de poder fosse ideológico.

Com base em nosso conceito do caráter ideológico do pensamento, pode-se conceber a tarefa da Dialética negativa como sendo a de voltar-se radicalmente contra essa opacidade da razão perante seu outro, através da marcha crítica dos conceitos contra a dureza de sua abstração, que nivela as diferenças e as particularidades em prol da constituição da única coisa que permite pensar: a identidade. É precisamente essa démarche que caracteriza a assunção de uma temporalidade para o pensamento, que procura ler nas coisas a história armazenada nelas como uma escrita.

4) Aliando as três temáticas anteriores: a constituição mimética da consciência, a abstração solipsista da razão esclarecida e a historicidade do pensamento como conseqüência da crítica do pensamento a si mesmo, somos levados a tematizar o vínculo entre a alteridade e o tempo histórico. A tese mais ou menos implícita que governava os três capítulos iniciais era que a ipseidade subjetiva reforçava tendencialmente a anistoricidade da representação do mundo. O cogito cartesiano e o formalismo de Kant mostram muito bem como que o tempo do qual se abstraiu a história é a contraparte de uma filosofia que pretende fundar o sujeito a partir da mera atividade do pensamento. A ciência moderna positiva, fundada em abstrações crescentes, e alheia a uma investigação crítica de seus pressupostos, trabalha com uma noção de tempo des-historicizado.

Somente a arte moderna, sob o signo da alteridade radicalmente experimentada no sublime, é o meio que se abre a uma experiência do tempo histórico que não é puramente abstrata, como um agora a-dimensional. A tese que tentamos mostrar é que no sublime artístico a história é trazida para o âmbito da própria experiência, não permanecendo mera forma subterrânea com que o mundo é vivido. Para isso, não basta “reconhecer” a história pregressa do objeto, nem inseri-lo em um saber positivo sobre seu desenvolvimento histórico; é preciso que a própria apreensão do objeto inclua uma nova maneira de situá-lo nesse desdobramento de seu sentido. Como a mímesis foi, durante toda a tese, o “campo” conceitual privilegiado para determinar as relações entre sujeito e objeto que não se resumiam ao pólo doador de sentido por parte do primeiro, e considerando a imbricação de alteridade e a dinâmica histórica da arte, dizemos que a arte moderna proporciona essa experiência mimética do tempo.

*

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Para finalizar, invocamos a tese central do segundo capítulo, que foi, desde as primeiras leituras, aquela que resultou, após seus desdobramentos, na presente tese.

Se Adorno e Horkheimer tivessem mesmo que reescrever o livro que analisamos em parte, eles deveriam começar pelo título. Pois não se trataria, propriamente, de uma dialética do esclarecimento, como se todas as etapas de constituição da racionalidade humana fossem apenas fases de uma dinâmica que se perde “até o passado mais remoto” e que hipostasia a dominação enquanto má-fé inerente a toda forma de exercício de poder. Tratar-se-ia, em vez disso, de um processo em que a identidade e a diferença entre homem e natureza conheceu diversas facetas, diversas maneiras de se estabelecer mediações entre o si mesmo e o outro, de modo a constituir a identidade através da separação crescente em relação ao que se lhe contrapõe como espírito. No desenrolar da racionalidade, o esclarecimento é apenas um minuto, o “mais soberbo e mais mentiroso da ‘história universal’”, mas que se diferencia radicalmente dos demais, pois pode medir, com seu olhar de fênix, a distância que o separa da felicidade. A partir desse prisma, ele pôde vislumbrar as cores refratadas do que seria um mundo melhor; mas, da mesma maneira que a luz branca, em sua totalidade, in vero facto, não tem cor alguma, essas cores somente são visíveis a nós pela refração, pela quebra, que nosso conhecimento produz ao tentarmos ver de onde elas poderiam provir. A consciência dessa refração está irmanada à satisfação de sabermos que, na verdade, a beleza reside em que não conhecemos a luz branca: não somos nem deuses, nem natureza; é precisamente esse o prazer da autoconsciência reflexiva humana: o reconhecimento de que é na penumbra, entre a claridade solar do théos e o abismo uterino da phýsis que o redemoinho instável dessas cores preenche a imagem que o ánthropos faz de um “diferente”, de um além do fatum. Na experiência estética do transcendente secularizado pelo poder da enformação subjetiva não-arbitrária, o sujeito se estende por sobre um tempo prenhe de seu outro, crítica radical de uma violência surda contra o diverso, contra o que se subtrai ao domínio categorial esclarecido. — No processo percorrido sucintamente nessas páginas, todos os conceitos, idéias e argumentos constituíram os degraus hesitantes dessa contribuição para uma dialética da alteridade.

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Resumo

A tese interpreta o conceito de alteridade a partir do pensamento de Th. Adorno, analisando a constituição histórica da subjetividade. A primeira parte analisa detalhadamente a mímesis desde suas manifestações mais rudimentares até o pensamento mítico. A segunda parte fala da racionalização ocidental, o esclarecimento, usando o conceito de abstração como base da ruptura desse processo em relação à mímesis. O terceiro capítulo enfoca a proposta adorniana de um pensamento radicalmente crítico em relação ao solipsismo da razão esclarecida, com sua exigência de conceber a historicidade do real e do pensamento. O último capítulo aborda a emergência e desenvolvimento da consciência do tempo histórico, vinculando o conceito de sublime à sua manifestação na arte moderna como expressão de uma experiência mimética do tempo.

Abstract

The thesis interprets the otherness concept from the thought of Theodor Adorno, analyzing the subjectivity historical constitution. The first part analyzes in details the mimesis since its more rudimentary manifestations until the mythical thought. The second part boards the occidental rationalization, the enlightenment, using the abstraction concept as rupture base of this process in relation to mimesis. The third chapter focuses the Adornian proposal of a radically critical thought regarding solipsism of the enlightened reason, with its exigency of conceiving the real and thought historicity. The last chapter boards the historical time conscience emergency and development, entailing the concept of sublime to its manifestation in the modern art as expression of a mimetic experience of time.