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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Faculdade de Filosofia e Ciências da Religião Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião PARA UMA POÉTICA DA VITALIDADE: religião e antropologia na escritura machadiana (Uma leitura de Memórias póstumas de Brás Cubas , de Machado de Assis) por Douglas Rodrigues da Conceição Orientador: Prof. Dr. Antonio Carlos de Melo Magalhães Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da UMESP, como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor. São Bernardo do Campo, SP março de 2007

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO Faculdade de Filosofia e Ciências da Religião

Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião

PARA UMA POÉTICA DA VITALIDADE: religião e antropologia na escritura machadiana

(Uma leitura de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis)

por

Douglas Rodrigues da Conceição

Orientador: Prof. Dr. Antonio Carlos de Melo Magalhães

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da UMESP, como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor.

São Bernardo do Campo, SP março de 2007

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BANCA EXAMINADORA

________________________________________ Prof. Dr. Antonio Carlos de Melo Magalhães

Presidente UMESP

______________________________________ Prof. Dr. Etienne Alfred Higuet

UMESP

__________________________________________ Prof. Dr. Eduardo Gross

UFJF

________________________________________

Profª. Drª. Salma Ferraz UFSC

_____________________________________ Prof. Dr. Paulo César Silva de Oliveira

UNIG

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Dedicatórias

[....] À memória de Meus Pais, Jacira da Silva Rodrigues da Conceição e Ary Paulo da Conceição. Lamento por não estarem aqui neste momento. Queria que soubessem que a vida jamais será mesma. Um duro golpe me foi desferido quando partiram para sempre em 2003. As minhas gavetas, quando abertas, revelam o tempo que a saudade perdura. Resta -me agora somente a estação da saudade. O trem da minha vida ficará – eu vos prometo – estacionado eternamente nesta estação esperando por vocês [....]

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Para Elaine da Cruz, minha companheira e

amiga, e meus filhos, Ramon Oliveira e Júlia Rodrigues, por admitirem a minha presença ausente durante todos esses anos.

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Ao meu irmão, Bruno Rodrigues [...]

Reconheço que de meus pais ele é o único palimpsesto que me resta.

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Para Machado de Assis (1839-1908) e para a comemoração do centenário de sua morte em 2008, dedico esta Tese.

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Agradecimentos Ao meu Orientador e grande Amigo professor

Antonio Carlos de Melo Magalhães pelos anos de amizade e orientação sempre segura. Lembrarei sempre de tua companhia e serás sempre minha fonte de inspiração.

Ao professor Etienne Alfred Higuet pela

participação cuidadosa em minha trajetória acadêmica. Talvez eu não saiba mensurar o respeito e a admiração que tenho por ti. Seu brilho e sua serenidade muitas vezes serviram de inspiração para que eu prosseguisse meu caminho.

Ao Professor Lauri Emílio Wirth, porque

acreditou neste trabalho quando ainda era Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião. Em nome da amizade que nos aproxima, também o agradeço.

Ao meu Grande Amigo Luiz Antonio de Souza,

Bibliotecário Chefe da Academia Brasileira de Letras, agradeço pelo franco respeito que dispensou ao meu trabalho com a literatura de Machado de Assis.

Aos Professores Eduardo Gross (UFJF), Paulo

César Silva de Oliveira (UNIG) e à professora Salma Ferraz (UFSC) por terem aceitado participar da banca de avaliação desta tese.

Aos meus amigos Manoel Ribeiro e Josias da

Costa pela companhia na estrada da vida. Ao meu grande amigo Prof. Dr. Paulo César

Silva de Oliveira pelas inúmeras recomendações que, ao meu modo, estão incorporadas ao texto final da presente tese. Sua dedicação será inesquecível para mim, creio nisso. Devo-te muito!

À Bruna de Oliveira, porque com certa

admiração por Machado de Assis ouviu atentamente as reflexões contidas nesta tese. Sua sincera paciência é digna de um agradecimento. A você também agradeço pelo incentivo e pela força.

À Ana Maria Fonseca...Amiga nas horas

difíceis!!! A você, caríssima Ana, agradeço do fundo do peito.

À Márcia Leme pela condução exemplar da

vida acadêmica dos alunos da UMESP. À CAPES pela Bolsa de Pesquisa concedida

durante meu doutoramento.

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Ao IEPG por ter financiado parte do meu programa de pesquisas.

À livraria Leonardo da Vinci (Milena, Renato e

Mário), no Rio de Janeiro, pelo apoio e o carinho que concedeu a este projeto que agora termina.

Aos que a mim, durante estes 29 anos de vida,

dispensaram uma amizade sincera. Espero com esta canção poder dizer muito obrigado.

Beaucoup de mes amis sont venus des nuages

Avec soleil et pluie comme simples bagages Ils ont fait la saison des amitiés sincères

La plus belle saison des quatre de la terre

Ils ont cette douceur des plus beaux paysages Et la fidélité des oiseaux de passage

Dans leurs cœurs est gravée une infinie tendresse Mais parfois dans leurs yeux se glisse la tristesse

Alors, ils viennent se chauffer chez moi

Et toi aussi tu viendras

Tu pourras repartir au fin fond des nuages Et de nouveau sourire à bien d'autres visages

Donner autour de toi un peu de ta tendresse Lorsqu'un autre voudra te cacher sa tristesse

Comme l'on ne sait pas ce que la vie nous donne Il se peut qu'à mon tour je ne sois plus personne S'il me reste un ami qui vraiment me comprenne

J'oublierai à la fois mes larmes et mes peines

Alors, peut-être je viendrai chez toi Chauffer mon cœur à ton bois

Composição de Jean-Max Rivière

Música de Gérard Bourgeois Interpretada por Françoise Hardy

Muitos de meus amigos vieram das nuvens, Com o sol e a chuva como bagagem.

Fizeram a estação da amizade sincera, A mais bela das quatro estações da terra.

Têm a doçura das mais belas paisagens, E a fidelidade dos pássaros migradores.

E em seu coração está gravada uma ternura infinita, Mas, as vezes, uma tristeza aparece em seus olhos.

Então, vêm se aquecer comigo, e você também virá.

Poderá retornar às nuvens, E sorrir de novo a outros rostos,

Distribuir à sua volta um pouco da sua ternura, Quando alguém quiser esconder sua tristeza.

Como não sabemos o que a vida nos dá,

Talvez eu não seja mais ninguém. Se me resta um amigo que realmente me compreenda,

Me esquecerei das lágrimas e penas.

Então, talvez eu vá até você aquecer Meu coração com sua chama.

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“Queria provar a tese de que a literatura é (ou foi) uma forma dissimulada de profetizar no mundo da razão, um mundo esvaziado de mitos; que ela é (ou foi) um substituto moderno das profecias, agora que elas se tornaram ridículas, antes que a própria literatura se tornasse ridícula.”

Bernardo Carvalho

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“[...] poderíamos deduzir que os seres humanos são, acima de tudo, romancistas, autores de um romance único cuja escrita dura toda a existência e no qual assumimos o papel de protagonistas.”

Rosa Montero

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“[...] tenho dezessete anos e minha saúde é

perfeita e sobre esta pedra fundarei minha igreja particular, a igreja para meu uso, a igreja que freqüentarei de pés descalços e corpo desnudo, despido como vim ao mundo, e muita coisa estava acontecendo comigo pois me senti num momento profeta da minha própria história, não aquele que alça os olhos para alto, antes o profeta que tomba o olhar com segurança sobre os frutos da terra, e eu pensei e disse sobre esta pedra me acontece de repente querer, e eu posso! [...]”

Raduan Nassar

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“– Viver, não te peço mais nada. Quem me

pôs no coração este amor à vida [...]?”

Brás Cubas

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CONCEIÇÃO, Douglas Rodrigues da. Para uma poética da vitalidade: religião e antropologia na escritura machadiana (Uma leitura de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis). Tese de Doutorado. São Bernardo do Campo, SP: Universidade Metodista de São Paulo, 2007.

RESUMO A literatura de Machado de Assis foi revisitada nesta tese porque tínhamos a convicção de que o tema da religião e suas implicações para o ser humano machadiano se constituíam como uma tarefa de investigação que esperava por ser feita. Para localizar o objetivo central da presente tese no campo das discussões travadas entre religião e literatura construímos, na primeira parte, um caminho que nos levou a constatação da efetiva aproximação entre elas. Amparados pela inabarcável discussão que trata das imagens religiosas e teológicas presentes nos textos literários, bem como pelas inúmeras construções metodológicas que visam a propiciar uma aproximação mais profícua entre religião e literatura, buscamos uma interpretação da literatura machadiana que apontasse para a expressão religiosa do ponto de vista de sua antropologia. O nosso eixo interpretativo foi construído a partir da teoria hermenêutica de Paul Ricoeur, mais especificamente a partir do conceito de metáfora. A reflexão que construímos em torno da expressão religiosa da antropologia machadiana foi inicialmente devedora do conceito de vitalidade de Jürgen Moltmann. A expressão religiosa da antropologia machadiana emergida do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) apresenta-se sob a perspectiva de uma incondicionalidade a partir da qual a vida de Brás Cubas é tomada. Esta característica da antropologia machadiana fez com que estabelecêssemos um recurso conceitual para dar conta de sua particularidade. Propomos, portanto, que o ser humano do espaço literário machadiano seja chamado de homo vitalis.

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CONCEIÇÃO, Douglas Rodrigues da. Towards a poetics of the vitality: the religion and anthropology in the machadian écriture (A reading of Memórias póstumas de Brás Cubas, by Machado de Assis). Doctorate’s Degree. São Bernardo do Campo, SP: Universidade Metodista de São Paulo, 2007.

ABSTRACT The literature of Machado de Assis is being revisited in this thesis, due to our belief that the theme of religion and its implications to the human being conceived by Machado required an investigative task that was awaiting to be accomplished. In order to centralize the main issue of the present thesis in the discussion field that is constituted by the debates between literature and religion, we structured, in the first part of our text, a path that enabled us to conclude that the approximation of both literature and religion is truly effective. Supported by the extensive discussion on the religious and theological images contained in the literary texts, as well as the several methodological constructions that aim at appeasing a more profitable approach between religion and literature, we proceeded to an interpretation of Machado’s literature in which the religious manifestation, on the viewpoint of the anthropology of his works, could be truly detached. The starting point of our interpretative basis was Paul Ricoeur’s hermeneutics, more specifically his concepts on the metaphor. Our reflection on the religious expression of the machadian anthropology was, initially, centered on the concept of vitality, coined by Jürgen Moltmann. The religious expression of the machadian anthropology manifested in the novel Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) is represented under the perspective of an unconditionality from which Brás Cubas’ life is comprised. This characteristic of the machadian anthropology encouraged us to create a new concept that could express the originality of Machado’s thought accordingly. Therefore, we propose homo vitalis as the key concept to define the human being represented by Machado de Assis in his literary space.

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Lista de abreviaturas DC – Dom Casmurro (1889) IG – Iaiá Garcia (1878) MpBC – Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) MA – Memorial de Aires (1908) QB – Quincas Borba (1891)

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 17

CAPÍTULO I

Caminhos para uma vocação teológico-religiosa da literatura

1.1 Tópicos de Hermenêutica ......................................................................................... 21 1.2 Um momento extraordinário: diluição da imagem religiosa do mundo...................... 31

1.2.1. Pequeno excurso sobre a morte de Deus: considerações sobre o momento extraordinário........ ......................................... 39

1.3 Escritura ou reescritura de Deus e do ser humano: metodologias e tematizações entre teologia e literatura .......................................... 41

1.3.1. Literatura e cristologia ................... ........................................................... 44

1.3.2. O drama da salvação ............................................................................... 49

1.3.3. O nascimento de Jesus-Severino: hermenêutica transtexto-discursiva ... 52

1.3.4. Deus no espelho das palavras ................................................................. 55

1.3.5. Os escritores e as escrituras .................................................................... 60

1.4. Tópicos de religião, antropologia literária e arte ....................................................... 66

CAPÍTULO II

Experiência religiosa e a literatura machadiana

2.1. Recepção da antropologia machadiana ................................................................... 79

2.2. Faces de um mundo sem Deus na estética machadiana ......................................... 90

2.3. Paradoxos nas representações da experiência religiosa da estética machadiana .. 106

CAPÍTULO III

Vitalidade: dimensão religiosa da antropologia machadiana 3.1. Finitude e o ser humano machadiano ....................................................................... 110

3.2. Vitalidade ................................................................................................................... 119

3.3. O homo vitalis ............................................................................................................ 129

3.3.1. As expressões da incondicionalidade no homo vitalis ............................... 131

CONCLUSÃO .............................................................................................................. 140

BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................... 143

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INTRODUÇÃO

Quando esta pesquisa ainda se encontrava em estado inicial, fazíamos muitas

visitas à Academia Brasileira de Letras com o objetivo de encontrar obras

referenciais que nos indicassem ou que nos dessem pistas sobre os aspectos

religiosos na literatura machadiana. Enclausurada sob a perspectiva das leituras

sociológicas, confinada à recepção das principais correntes de pensamento presentes

da Europa do século XIX, percebíamos que a literatura machadiana carecia de um

estudo crítico que lhe conferisse certa originalidade; percebíamos também que a

erupção das questões religiosas precisariam de processo de escavação um pouco mais

profundo para emergir à superfície.

Ao concluir o trabalho de mestrado, intitulado Fuga da promessa e nostalgia

do divino, dissertação de mestrado apresentada à UMESP em novembro de 2003,

sabíamos que, naquele momento, algumas lacunas passavam a existir em função de

vários fatores. Um deles – o mais visível pelo menos – era lidar com a complexidade

da literatura machadiana não por engano, todavia por ela ter em torno de si uma

inabarcável fortuna crítica que, se não fosse pelas mãos de Hugo Bressane Araújo

(1939) e Raimundo Faoro (1974), teria totalmente silenciado o problema da religião.

Mas este fator, para nossa pesquisa, não a tornava menos decifrável. Sabíamos

também que, a partir do romance Dom Casmurro, ao circunscrevê- la no interior do

que hoje convencionalmente se chama de diálogo entre teologia e literatura, existia a

possibilidade da identificação de problemáticas de natureza religiosa. A melhor

prova dessa observação foi recente apontada por Alfredo Bosi, em seu livro

intitulado O enigma do olhar (2003), ao afirmar que ainda está por se “fazer um

estudo sem preconceitos das imagens diversas com que o agnóstico Machado de

Assis representa as múltiplas faces do homem religioso.”

A presente tese buscará, mais especificamente no romance Memórias

póstumas de Brás Cubas (1881), a expressão da experiência religiosa na antropologia

da escritura machadiana. Antes de iniciar as reflexões que incidem mais

propriamente sobre o romance de 1881, buscaremos estabelecer, no primeiro

capítulo, as bases interpretativas e contextuais que atuarão como linha de

circunscrição da escritura machadiana no âmbito das discussões sobre a religião e

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literatura. A partir da teoria hermenêutica de Paul Ricoeur, pretendemos criar a

possibilidade de perceber que a oscilação de sentido que se apresenta sobre a

antropologia emergente da literatura machadiana se dá mais propriamente através da

atuação metafórica. Com a sutil e evidente recepção do problema da morte de Deus

pelo mundo moderno tardio, buscaremos em Nietzsche não as raízes das crises

vividas no âmbito do cristianismo, mas sim o aporte capaz de indicar que, diante do

senso de auto-referência nutrido pelo ser humano nos espaços desse mundo, se

estabelece também a caducidade e o fenecimento das antigas formas de manifestação

da experiência religiosa outrora mantida por ele.

Ainda do primeiro capítulo, visitaremos obras que referencialmente

circunscreveram a escritura literária dos poetas e escritores no cruzamento com as

discussões sobre religião e no diálogo com a teologia. Neste entroncamento

encontra-se a fronteira dos saberes que se cruzam. As obras de Antonio Magalhães

(Deus no espelho das palavras) e Karl-Josef Kuschel (Os escritores e as escrituras)

e a tese de Eli Brandão (O nascimento de Jesus Severino...), além de problematizar

os temas teológicos presentes na escritura de escritores da tradição literária ocidental

como forma de reintepretação dos conteúdos clássicos da fé, indicam também

metodologias próprias e criativas para uma a aproximação menos conflituosa entre

literatura e teologia.

As relações entre arte e religião e a inscrição do ser humano no interior da

literatura ficarão sob a responsabilidade das reflexões que empreenderemos em torno

da noção tillichiana de teologia da cultura e da possibilidade de construção de uma

antropologia literária tal como a entende Antonio Blanch. Neste ponto,

pretenderemos ressaltar que a imagem humana inscrita na literatura machadiana é

potencialmente passível de uma interpretação que tome a experiência religiosa como

ponto de partida.

No segundo capítulo, inicialmente, travaremos um diálogo com a tradição

crítica que ancorou suas discussões sobre determinados aspectos da antropologia da

literatura machadiana. Figurarão de forma mais expressiva neste diálogo as obras de

Octávio Brandão, Afrânio Coutinho e Raimundo Faoro. A crítica que desferiremos

em direção a obra de Octávio Brandão (O niilista Machado de Assis) tem a ver com a

redução que ele promove da inscrição do ser humano machadiano no mundo como

uma nítida expressão do ideário burguês oitocentista. A obra de Afrânio Coutinho (A

filosofia de Machado de Assis) uma vez mais será alvo de nossas críticas por admitir

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que, em torno da escritura machadiana, só há um negativismo-pessimista a partir do

qual o ser humano que nela se inscreve toma a sua vida. Já o trabalho de Raimundo

Faoro nos conduzirá parcialmente ao tema central de nossa tese. Perceberemos que

em A pirâmide e o trapézio existe um olhar atento sobre a realização das

experiências religiosas do ser humano machadiano, todavia Faoro não consegue dar

conta da oscilação de sentido que tais experiências revelam no espaço literário do

autor de Brás Cubas. Há uma luta constante de Faoro pela preservação de uma forma

de experiência religiosa não mais capaz de se realizar diante de um mundo onde o

centro de toda referência é o próprio ser humano e por isso não conseguiu enxergar

que esta auto-referência não dissipa totalmente a possibilidade de novas experiências

religiosas. Faoro na verdade se comporta como se quisesse dizer ao ser humano

machadiano aquilo que disse o padre Melchior a Estácio, ambos personagens do

romance Helena: “o que a moral e a religião reprovam, não deve achar guarida na

alma de um homem honesto e cristão.” Ainda no segundo capítulo, retomaremos

uma questão que ficou entreaberta em nosso trabalho anterior (Fuga da promessa e

nostalgia do divino). Veremos que o distanciamento do ser humano machadiano da

experiência religiosa regida pelas instituições e pelos processos instrumentalizadores

da vida, sobretudo da forma como são expostos pelo viés da promessa presente no

romance Dom Casmurro, não o impede de ser tomado incondicionalmente por algo

que o transcende, que o escapa.

No terceiro capítulo, as nossas discussões se concentrarão mais

expressivamente em torno do romance Brás Cubas. Temos a convicção de que o ser

humano machadiano, ao se encontrar totalmente lançado sobre a vida que acontece,

ao reconhecer que todo esforço para dissipar o senso de finitude é vão e que, ao

admitir que a sua vida precisa ter uma intensidade ininterrupta, abre-se para aquilo

que Jürgen Moltmann ousou chamar de transcendência imanente. Toda experiência

que se realiza na vida pode ter um dentro transcendente. O ser humano machadiano,

sob o imperativo da incondicionalidade que uma vida intensa requer, toma o amor

erótico como dimensão última e incondicional de sua existência. É debaixo desse

imperativo que a literatura machadiana inscreve Brás Cubas, Marcela e Virgília,

quando interpretados a partir dessa expressão vital (com este amor incondicional à

vida), no mundo referencial do texto. Poucos foram os escritores que, diante dos

escombros e da idéia de fracasso relacionado ao mundo moderno, revelaram que a

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experiência religiosa, aquela que nos toma incondicionalmente, subsistiria tão

particularmente diante do que nomeamos ser o homo vitalis.

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CAPÍTULO I

CAMINHOS PARA UMA VOCAÇÃO TEOLÓGICO-RELIGIOSA

DA LITERATURA

“Um texto só é um texto se ele oculta ao primeiro olhar, ao primeiro encontro, à lei de sua composição e à regra

de seu jogo. Um texto permanece, aliás, sempre imperceptível.”

Jacques Derrida

1.1. Tópicos de hermenêutica

As primeiras suspeitas que cercam a forte presença dos temas clássicos da

teologia no interior da literatura fizeram com que ela assumisse um novo papel no

palco da cultura ocidental. Esta afirmação tem apenas um caráter de diagnóstico, pois

muitas pesquisas não nos deixam em dúvida sobre a relação das imagens dos temas

clássicos da teologia e a sua aguda presença na literatura.1 Nisto reside nossa

1 Cf. Antonio MAGALHÃES. Deus no espelho das palavras: teologia e literatura em diálogo. São Paulo: Paulinas, 2000; Karl-Josef KUSCHEL. Os Escritores e as escrituras: retratos teológico-literários. São Paulo: Edições Loyola, 1999; Waldecy TENÓRIO. A bailadora andaluza: a explosão do sagrado na poesia de João Cabral. São Caetano do Sul: Ateliê Editorial, 1996; Antonio MANZATTO. Teologia e Literatura: reflexão teológica a partir da antropologia contida nos romances de Jorge Amado. São Paulo: Loyola, 1994; Charles MOELLER. Literatura do século XX e cristianismo . São Paulo: Flamboyant, 1959; Jean-Pierre JOSSUA. Pour une histoire religieuse de l’expérience littéraire. Paris: Beauchesne, 1985; Olegário GONZÁLEZ DE CARDEDAL. Cuatro poetas desde la outra ladera : Unamuno, Jean Paul, Machado, Oscar Wilde. Madrid: Trotta, 1996; Juan Cózar CASTAÑAR. Modernismo teológico y modernismo literario. Madrid: BAC, 2002; Douglas Rodrigues da CONCEIÇÃO. Fuga da promessa e nostalgia do divino. Rio de Janeiro: Horizonal, 2004; José Carlos BARCELLOS. O drama da salvação: espaço autobiográfico e experiência cristã em Julien Green. Rio de Janeiro: PUC – Rio, Tese. Departamento de Teologia. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2000; Salma FERRAZ, As faces de Deus na obra de um ateu – José Saramago. Juiz de Fora: UFJF; Blumenal: Edifurb, 2003.

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primeira questão: porque os temas da teologia de alguma maneira são retomados a

partir da literatura mais fortemente no panorama da cultura tardomoderna?

Se tomarmos como referência as características das formas artísticas que

emergiram na transição do século XIX – XX, talvez seja possível entender o

elemento motor de uma estética que não comportou somente uma proposta artística

inovadora, mas que também não deixou apontar para o esvaziamento de uma

compreensão religiosa do mundo. Contudo, antes de empreendermos uma relação

entre o suposto esvaziamento de uma compreensão religiosa do mundo e o tipo de

manifestação literária que surgiu em tal época – tarefa que retomaremos mais adiante

–, queremos inicialmente apresentar a forma pela qual entendemos as possíveis

operações textuais, a fim de que somente a partir deste fato se possa então atribuir

um determinado sentido ou entrever a representação que um texto ou um conjunto

textual pode evocar.

Um aspecto dessa questão é levantado com muita clareza por Antonio Blanch

em seu estudo sobre a possível construção de uma antropologia literária a partir de

obras clássicas do cânone ocidental. Blanch chama-nos a atenção sobre a pouca

importância que o sentido dos textos teria para os trabalhos de crítica e teoria da

literatura nos últimos decênios. Destaca-se neste tipo de abordagem o enfoque

formalista, especialmente, os relativos à lingüística, à semiologia e ao

estruturalismo.2

Distanciando-se de uma compreensão mais estrutural do texto, notamos que o

ponto de partida de Blanch nos é muito caro. A percepção de Blanch acerca da

literatura e a compreensão que esta nos dá do homem e do mundo transforma-a em

uma forma não-teórica de conhecimento da realidade.3 Podemos ver expressa a

crítica de Blanch sobre outras formas de conhecimento nos seguintes termos:

Afortunadamente, ya pasaron los tiempos cuando la reflexión sobre el hombre se realizaba exclusivamente en los altos niveles de la abstracción metafísica, combinando teóricamente algunas de sus esencias más características (racionalidade, corporeidad, liberdad, etc). Y, a pesar de ello, no parece haber prevalecido del todo el deseo de conocer al hombre de forma concreta y vital. La epistemologia, em

2 Cf. Antonio BLANCH, El hombre imaginario, p. 9. Blanch recupera uma citação de Emile Benveniste, onde há a seguinte afirmação: “En semiótica nunca nos ocupamos de la relación del signo con las cosas denotadas, ni de las relaciones entre el lenguaje y el mundo.” Citado por Blanch a partir da obra La forme et le sens dans le langage. Loc. cit. 3 José Carlos Barcellos também compartilha desta afirmação. Cf. José Carlos BARCELLOS, O drama da salvação, p. 17.

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efecto, y la teoría general de las Ciencias del hombre están presididas hoy todavía por formulaciones analíticas, que terminan reduciendo las grandes cuestiones sobe el hecho humano a un baile de abstraciones e cifras. Pues bien, cualquiera que sea la propuesta que la Filosofia y las Ciencias puedan dar a esta pergunta, quisiera recordar que existe otro camino de accesso al conocimiento del hombre, que no es ni metafísico ni físico ni lógico y que no por ello resulta menos satisfactorio [...] Se trata, em efecto, del conocimiento simbólico. 4

Na esteira desta afirmação está uma tese de Ernst Cassirer. Ele define o

homem como animal simbólico5, o que equivale dizer que a essência do homem é

algo dinâmico, em constante processo de expressão e de comunicação por meio das

múltiplas faces da linguagem.6 Com alguma razão poderemos então fazer concordar

com esta possível imagem da literatura – que seria de antemão uma forma autônoma

de dizer a realidade – o parecer de Antonio Manzatto. Para Manzatto, a verdade da

literatura trata da compreensão do sentido da vida e do ser humano no mundo.

Assim, para Manzatto, mesmo que no nível ficcional, uma invencionice pode ser

uma espécie de canal transmissor de uma ve rdade sobre o homem ou sobre sua

realidade.7 Caberia, portanto, uma pergunta: já que a literatura deixa de ser de

alguma forma encarada como pura representação do real, qual a natureza da verdade

ou do sentido que a literatura pode operar em direção à realidade? A tentativa de

responder a tal pergunta torna-se importante se vista sob o imperativo do objetivo

central desta tese. É preciso responder de que maneira a literatura machadiana, no

interior dos séculos XIX-XX, conseguiria retomar, do ponto de vista de sua

antropologia, certa imagem religiosa do ser humano e do mundo. Consideramos que

esta etapa está, antes de tudo, alocada numa compreensão hermenêutica. O problema

hermenêutico reside na atribuição de sentidos que podemos conferir, em nosso caso,

aos textos machadianos.8 A questão central de um tratamento hermenêutico dado a

determinados textos deixou de se constituir a partir do sentido verdadeiro

4 Antonio BLANCH, El hombre imaginario , p. 14. 5 Cf. Ernst CASSIRER, Antropología filosófica, p. 49. 6 Cf. Antonio BLANCH, El hombre imaginario , p. 15. 7 Cf. Antonio MANZATTO, Teologia e literatura , p. 21. 8 Antonio Magalhães fez uma importante advertência em relação à recepção dos textos dos poetas e escritores no ocidente. Em sua obra Deus no espelho das palavras, Antonio Magalhães afirma que “o trabalho dos poetas e autores, dentro do que passou a ser considerado como literatura, foi, quase sempre, colocado na esfera da motivação estética e não da hermenêutica, servindo, portanto, mais para momentos de fruição e devaneio do que para os de análise e reflexão.” Cf. Antonio MAGALHÃES, Deus no espelho das palavras, p. 49.

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previamente existente nos textos. Esta virada no campo da interpretação é bastante

devedora dos estudos de Paul Ricoeur.

O problema da significação que um texto pode evocar tem a ver, inicialmente,

com a compreensão que Ricoeur promove acerca do termo texto. Em primeiro lugar

deve-se entender, segundo Ricoeur, que o texto é uma unidade complexa de discurso

cujos caracteres não se pode reduzir aos da unidade de discurso ou frase.9 O

problema formado pelo par interpretação/significação, que pode ser visto no nível do

evento texto, passa a ter uma dinâmica que requer mais cuidado quando o evento

texto se tratar de uma obra literária. O excesso de sentido que uma obra literária

carrega consigo é, para Paul Ricoeur, um ponto pacífico.10 Todavia, diante de tal

certeza abre-se ainda uma questão. É preciso saber se o chamado excesso de sentido

das obras literárias possui valor cognitivo. Para Ricoeur, na obra literária, o discurso

desvela sua denotação como uma denotação de segunda ordem, graças à suspensão

da denotação de primeira ordem do discurso.11 Isto quer dizer que existem elementos

que participam do texto no nível da significação e que tais elementos atuam como

condicionantes do processo operatório de sentidos. Para Ricoeur, esta hipótese só

pode ser verificada se vista sob o prisma da metáfora. O enunciado metafórico é

para Ricoeur precisamente aquele que mostra com clareza a relação entre a

referência suspensa e a referência desvelada.12 Portanto, para Ricoeur, se for

possível mostrar que o estabelecimento de novos sentidos é uma condicionante da

atuação da metáfora no interior do texto, poder-se-á dizer que a literatura (poesia,

ensaio e ficção em prosa) cria um novo campo significação não em direção a uma

referência já dada (mimeses), mas em direção a uma referência de segunda ordem

(mundo da obra). A noção de metáfora, portanto, é vista sob a ótica de um conflito

entre duas interpretações opostas. A emergência de um sentido oriundo do

acionamento de uma interpretação metafórica estabelecer-se-á a partir de um

processo de autodestruição daquilo que Ricoeur chama de sentido literal. A

interpretação metafórica só pode ser obtida através da abolição do sentido literal do

enunciado. A nova pertinência semântica do texto se abre sob as ruínas do sentido

9 Cf. Paul RICOEUR, Metáfora viva, p. 336. “Por texto não entendo somente nem principalmente a escritura, embora a escritura ponha por si mesma problemas originais que interessam diretamente ao destino da referência; mas entendo, prioritariamente, a produção do discurso como obra.” 10 Cf. Paul RICOEUR, Teoria da interpretação, p. 57. 11 Cf. Paul RICOEUR, Metáfora viva, p. 338. 12 Cf. Loc. cit.

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literal, afirma Ricoeur.13 Essa inovação de sentido é chamada por Ricoeur de

metáfora viva. A metáfora viva se configura como uma criação oscilante, que não se

determina ou se cristaliza no plano do enunciado. Ela sempre será um elemento

indispensável ao processo polissêmico que o texto literário evoca. A metáfora se

constituirá sempre numa e por uma interpretação.14 Nas palavras de Ricoeur:

[...] uma metáfora é uma criação instantânea, uma inovação semântica que não tem estatuto na linguagem já estabelecida e que apenas existe em virtude da atribuição de um predicado inabitual ou inesperado. Por conseguinte, a metáfora assemelha-se mais à resolução de um enigma do que a uma associação simples baseada na semelhança; é constituída pela resolução de uma dissonância semântica. [...] Em suma, uma metáfora diz-nos algo de novo acerca da realidade.15

Sentido e referência, no horizonte de uma obra literária, sob a ótica de

Ricoeur, ganham novas equivalências funcionais no que diz respeito à construção de

uma nova significação. A obra literária passa a ter um mundo autônomo, que por sua

vez consegue se estabelecer para além da antiga compreensão aristotélica em torno

da mimeses. É no apelo por uma interpretação mediada pela leitura que uma obra

literária reinscreve-se num jogo de significação que está além da pura representação

do real.

Ao assinalar que a metáfora viva instaura uma predicação inabitual ao operar

tal circunstância na superfície do texto, Ricoeur, de alguma forma – ele mesmo

reconhece – afirma que a metáfora não possui estatuto da linguagem já

estabelecida.16 Isto não seria nenhum problema, pois a função da metáfora tenderia à

instauração de um novo dado (sentido) dentro do seu próprio campo de

referenciação, o que, por sua vez, na superfície do texto, despertaria novo(s)

sentido(s) para o texto a partir do processo interpretativo. Esta apreciação referenda a

tese ricoeuriana – anteriormente exposta – sobre a significação literal e a significação

metafórica. Consideramos, portanto, importante reconhecer que a teoria de Ricoeur

sobre a metáfora ganharia mais densidade se vista na relação com a compreensão que

ele mesmo propôs em torno do que vem a ser um símbolo.

13 Cf. Paul RICOEUR, A metáfora viva, p. 351. 14 Cf. Paul RICOEUR, Teoria da interpretação, p. 62. 15 Cf. Paul RICOEUR, Teoria da interpretação, p. 63. 16 Cf. Paul RICOEUR, Teoria da interpretação, p. 63.

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Em primeiro lugar, para Ricoeur, é necessário afirmar que todo símbolo

possui uma condição bidimensional: uma dimensão pré-verbal ou não- lingüística e

uma outra percebível na superfície da linguagem. 17 A segunda dimensão – a que

permite a emergência do símbolo na superfície da linguagem – atesta a possibilidade

de conferir aos símbolos sua especificidade semântica em termos de sentido e

significação. A possibilidade de estabelecer relações entre a dimensão metafórica e o

símbolo se aloja na capacidade que a metáfora possui de trazer à superfície da

linguagem o aspecto do símbolo que possui afinidade com a estrutura lingüística. Ou

seja, a metáfora é o reagente apropriado para dar ao símbolo a possibilidade de

existência de seu campo semântico no nível verbal.18 Portanto, para Ricoeur é

possível identificar o cerne semântico característico de todo símbolo, com base na

estrutura do sentido operante nas expressões metafóricas.19 Crendo que não há

oposição entre a dimensão semântica e a não-semântica do símbolo, mas sim uma

condição de complementaridade entre elas, concluímos, juntamente com Paul

Ricoeur, que a dimensão semântica se presta a uma análise lingüística e lógica em

termos de significação e interpretação.20

Torna-se claro que há uma subordinação do aspecto semântico do símbolo

em relação à metáfora. Porém, só o símbolo é capaz de possuir uma região não-

verbal. Se esta subordinação é de fato possível, cabe-nos dizer que há uma cúmplice

relação entre metáforas e símbolos. Sendo as metáforas a superfície lingüística dos

símbolos e ainda uma inovação discursiva, poderíamos, portanto, afirmar que o

campo semântico que a metáforas expressam se deve a um reservatório de sentido

que os sistemas simbólicos constituem de alguma maneira.21 Poderemos também

dizer que a elucidação de um novo sentido de um texto literário operado pela atuação

metafórica pode promover um processo de equivalência entre o sentido manifesto e

as profundidades simbólicas de nossa existência. As metáforas responsáveis por esta

relação de equivalência são nomeadas metáforas insistentes.22

17 Cf. Paul RICOEUR, Teoria da interpretação, p. 65. 18 Cf. Paul RICOEUR, Teoria da interpretação, p. 66. 19 Cf. Paul RICOEUR, Teoria da interpretação, p. 66. 20 Cf. Paul RICOEUR, Teoria da interpretação, p. 69. 21 As chamadas metáforas dominantes são as responsáveis pela geração das junções entre o nível simbólico e sua lenta evolução e o nível metafórico que é por sua vez mais volátil. Cf. Paul RICOEUR, Teoria da interpretação , p. 76. 22 Cf. Paul RICOEUR, Teoria da interpretação, p. 80.

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Podemos ressaltar, oportunamente, que Paul Tillich também compreende de

forma semelhante o processo pelo qual um símbolo se manifesta. Para ele, os

símbolos possuem uma característica essencial que seria a de indicar algo que está

manifestamente revelado fora deles.23 Ou seja, Tillich admite que os símbolos nos

remetem a algo que não é da ordem do tangível; diz em outras palavras que os

símbolos possuem uma dimensão não-verbal ao afirmar que a segunda característica

de um símbolo é o fato de ele participar daquilo que indica. Uma terceira

característica dos símbolos apresentada por Tillich tem a ver com a capacidade que

eles possuem de nos dar acesso a níveis da realidade que permaneceriam inacessíveis

sem o seu auxílio. Tillich exemplifica esta característica reportando-nos à dimensão

que é aberta pelas obras de arte. A quarta característica pode ser conjugada com a

que acabamos de apresentar, pois para Tillich um símbolo é capaz de conectar

elementos da estrutura de nossas almas às estruturas da realidade. Outra

característica apresentada manifesta a impossibilidade de se criar um símbolo

arbitrariamente. Por isso, cremos ser importante atentar para a noção de metáfora

como entende Ricoeur, pois para ele a dimensão semântica do símbolo é revelada

num processo de subordinação à metáfora. Por fim, Tillich entende que a presença

marcante de um símbolo será de alguma forma devedora da noção de história. Em

suma, os símbolos emergem e desaparecem de acordo com épocas.24

Esta última questão apresentada por Tillich – a noção de época – também nos

é muito cara, pois se as obras literárias são de fato um importante solo para o

processo de amadurecimento e fertilização dos símbolos25, poderemos dizer que

torna-se necessário – para que não corramos o risco de violentar o texto literário –

que respeitemos a época histórica em que elas emergem. Isto não quer dizer que a

obra literária só poderá dizer algo no nível da referência segunda se interpretada à luz

de seu tempo. Cremos, portanto, que se as envolvermos de alguma forma com os

problemas, as crises e outros elementos de seu tempo poderemos ter uma

proximidade maior de sua significação. É nesse sentido que pretendemos dar a obra

machadiana uma outra perspectiva interpretativa.26 Não podemos afastar do corpo

23 Cf. Paul TILLICH, Dinâmica da fé , p. 31. 24 Cf. Paul TILLICH, Dinâmica da fé , p. 32. 25 Cf. Paul RICOEUR, Teoria da interpretação , p. 77. “[...] este estrato profundo apenas se torna acessível a nós na medida em que se forma e articula a um nível lingüístico e literário [...]”. 26 Embora esta não seja nossa metodologia para a leitura da obra machadiana, vale dar destaque ao que disse Daniel Piza, em sua recente biografia de Machado de Assis: “Ao relacionar na devida dose a obra e a vida de Machado de Assis, podemos, para dar outro exemplo, conferir o peso adequando ao

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literário machadiano os problemas suscitados na tardomodernidade, sobretudo, os

que nos reportam a um olhar perspectivo sobre sua antropologia e posteriormente

direcionando-o a uma questão de pertinência religiosa. Queremos dizer com esta

exposição que nenhum processo interpretativo deverá ter como horizonte a captura

final do universo de significação de um texto literário. Como sublinha Horst

Steinmetz, referendado por Barcellos, toda interpretação deve ressaltar as diferenças

entre os universos que a recepção dos textos literários quer dissimular. Toda

interpretação deve ressaltar o caráter provisório e parcial das estratégias de recepção

e da tensão que existe entre estas e a indeterminação literária.27

As condições operatórias oriundas das noções de símbolo e de metáfora

segundo os postulados de Paul Ricoeur recaem, preponderantemente, sobre o que

podemos chamar de texto literário. Esta afirmação quer tão somente sublinhar o

caráter plurissignificacional dos textos de natureza literária. Afirmando Ricoeur, na

obra Interpretação e ideologias, que o que deve ser interpretado num texto é sua

proposição de mundo28, pudemos entender que o texto literário cria um mundo

autônomo quando abole e destrói toda referência ao chamado mundo real. Ricoeur

afirma que o maior papel da literatura parece ser o de destruir o mundo.29

Certamente, o processo interpretativo (hermenêutico) constrói um mundo diverso

daquele que propõe a restrita relação entre sentido e referência como queria as

clássicas reflexões de Frege.30 A abolição de uma referência de primeiro nível abre

caminho para uma referência de segundo nível, que por sua vez atinge o mundo não

porque se identifica com aquilo que é manipulável, mas porque estabelece múltiplas

formas do poder-ser.31 Esse processo é chamado por Ricoeur de variações

imaginativas que a literatura opera sobre o real.32 A este mundo possível – mundo

entrecruzado pela ficcionalidade do texto e o mundo real do leitor – Ricoeur chama

tema da religião em sua ficção, que aparece já escolha dos nomes de personagens. Machado era crítico contumaz da Igreja, da manipulação pela fé, da crença numa ordem divina que pressupõe o perdão a tudo.” Cf. Daniel PIZA, Machado de Assis: um gênio brasileiro, p. 15. 27 Cf. José Carlos BARCELLOS, O Drama da salvação, p. 38. Ver também Horst STEINMETZ, Interpretação e recepção. In A. Kibédi VARGA, Teoria da literatura , p. 156. 28 Cf. Paul RICOEUR, Interpretação e ideologias, p. 56. (grifo nosso) 29 Cf. Paul RICOEUR, Interpretação e ideologias, p. 55. 30 Cf. Paul RICOEUR, Metáfora viva, p. 332-333. Cf. também G. FREGE, Écrits logiques et philosophiques, Paris, 1971. 31 Cf. Paul RICOEUR, Interpretação e ideologias, p. 56-57. 32 Paul RICOEUR, Interpretação e ideologias, p. 56-57.

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de mundo do texto.33 Cremos, portanto, juntamente com Eli Brandão que a tarefa

maior do chamado mundo do texto consiste na reconstrução e na projeção de

sentidos dos textos e dos mundos que por meio deles são revelados.34 Abre-se com

isso – em nosso favor – uma ampla porta; por ela visamos descortinar o possível

sentido religioso de que a obra machadiana, em seu complexo formativo, pode ser

portadora.

Poderemos afirmar o seguinte, com o foi tecido até aqui:

1. Ao estarmos diante de um texto literário não podemos desprezar

certas noções como as de sentido e significado por eles possuírem um

caráter plurissignificacional.

2. Que há mútua interdependência entre as noções de símbolo e metáfora

na forma como as entende Ricoeur. Pelo fato do símbolo possuir uma

natureza bidimensional, dependerá da metáfora – na superfície do

texto – para revelar o seu cerne semântico. A metáfora, por outro lado,

não possuindo estatuto na linguagem, apresenta-se como elemento

promotor de uma inovação de sentido quando operar como fio

condutor do reservatório semântico de que os símbolos são

portadores.

3. Com Tillich, foi possível perceber a importância de descortinar o

sentido do símbolo com a noção de época.

4. Por fim, com Ricoeur foi possível compreender que a suspensão de

uma referência de primeiro nível, que é estabelecida por uma obra

literária implica o estabelecimento de uma referência de segundo nível

como pressuposto de criação de um mundo autônomo, denominado

mundo do texto. Neste mundo, entretanto, é possível perceber as

operações imaginativas que a literatura efetua sobre o real.

5. A apreensão do sentido religioso da obra literária de Machado de

Assis dar-se-á pelo que concebemos ser um percurso hermenêutico,

nascido da descoberta ou da identificação do lugar que propicia as

variáveis interpretativas do texto (relação símbolo vs metáfora) e que

incide sobre o mundo criado por esta capacidade de evocar novos

33 Paul RICOEUR, Tempo e narrativa (Tomo III), p. 276. 34 Cf. Eli BRANDÃO, O nascimento de Jesus Severino..., p. 99.

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sentidos que o texto literário possui. A interpretação que

promoveremos do texto machadiano reconhece a impossibilidade de

captura do sentido primeiro ou definitivo de uma obra literária.

Se foram expostos os nossos pressupostos hermenêuticos a partir dos quais

tomaremos a literatura machadiana, poderemos seguir adiante com alguns elementos

que apresentarão certas tensões eclodidas mundo tardomoderno.

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1.2. Um momento extraordinário: diluição da imagem religiosa do mundo

Uma das principais preocupações emergidas no ocidente sob o ponto de vista

do advento da modernidade foi o problema que aqui desejamos nomear de

desteificação do mundo. Com a noção de desteificação queremos apontar os

resultados causados preponderantemente pela questão da morte de Deus e seu

impacto sobre a experiência religiosa cristã. Um dos objetivos do ressalto que

pretendemos dar ao problema tradicionalmente atribuído a Nietzsche tem a ver com

os incômodos que a morte de Deus causou, nesse mesmo itinerário, à teologia cristã.

Outro fator que poderíamos apontar como de grande importância, reside na

descoberta da literatura construída por escritores e poetas como lugar de reflexão

teológica. Não podemos, entretanto, provar – e este não será o nosso principal

objetivo – se há relações entre a recepção do problema da morte de Deus como

diagnóstico da desteificação mundo e a emergência da literatura e de outras

expressões artísticas como lugar teológico ou de manifestação da religião. Um fato

deve ser considerado diante das reações que o pensamento teológico construiu ao

longo do século XX: a teologia cristã pareceu ter sido golpeada duramente em sua

função de interlocutora entre o anúncio da revelação de Deus e os homens. Se nos

cabe uma afirmação inicial, deveríamos, pois, afirmar que a morte de Deus trouxe

certo esvaziamento para a antiga compreensão de Deus.

A equivalência entre o processo de tecnificação e o da perda dos valores

sagrados tornou-se um diagnóstico plausível para explicar um mundo em decadência.

O mundo ocidental passou por um processo de despovoamento de uma compreensão

religiosa na mesma medida em que o ser humano, quando visto no interior de tal

processo, também se viu isolado e dessacralizado.35

A morte de Deus em Nietzsche seria apontada por nós como principal via

diagnóstica de um mundo em que a compreensão tradicional de história e de Deus –

considerando nesses aspectos questões teológicas relacionadas com o pecado, a

queda e a salvação – tornava-se cada vez mais dispensável em favor de um mundo

movido pela autonomia humana. Romano Guardini entendeu da mesma forma o

destino para onde caminhava o homem do mundo tardomoderno ao dizer que tal

35 Cf. Gianni VATTIMO, Acreditar em acreditar, p. 39.

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momento propiciou o aparecimento daquilo que é extraordinariamente humano.36 À

luz do pensamento de Nietzsche, o problema da morte de Deus emerge com maior

força no aforismo 125 da obra A gaia ciência. O aforismo é iniciado com a imagem

de um homem que sai à rua com um candeeiro aceso à procura de Deus:

Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus!”? – E como lá se encontrassem muitos daqueles que criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Ele está perdido? perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? disse o outro. Ele está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? – gritavam e riam uns para os outros. 37

O anúncio da morte de Deus ocupa o lugar central do aforismo de Nietzsche.

É possível compreender que o chamado homem louco não aceita o fato de os outros

homens não saberem o que verdadeiramente acontecera a Deus e com isso não tarda

em dizer: Deus está morto!

O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. “Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós, ao desatar a terra do seu sol? Para onde ele se move agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para todos os lados, para frente, em todas as direções? Existem ainda ‘em cima’ e ‘em baixo’? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que ascender lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos!38

Casanova assinala que o elemento Deus possui duas dimensões importantes

se entendido dentro da tradição cultural e de pensamento ocidentais. Deus, na

tradição metafísico-cristã de pensamento, além de ser entendido como entidade

religiosa também sintetiza o conteúdo significativo de uma das partes da cisão entre

36 Cf. Romano GUARDINI, O fim da idade moderna, p. 37. 37 NIETZSCHE, A gaia ciência, p. 147. 38 NIETZSCHE, A gaia ciência, p. 147-148.

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o mundo verdadeiro e o mundo aparente.39 Deus, portanto, enquanto criador de todas

as coisas, através da força de seu verbo, concentraria em seu interior o poder de

harmonização da totalidade. Poderíamos afirmar que a morte de Deus em Nietzsche

fez com que Ele, enquanto causa sui e fundamento inconcusso do real, regulador do

caráter aporético do princípio, perdesse tais atributos e ainda o de divino.40 Para

Casanova, as insistentes buscas humanas em direção a apreensão de todo conteúdo

verdadeiro do mundo manteve uma profunda relação de dependência com a função

que Deus exerce de sentido último de toda realidade.41 Porém, ressalta Casanova, as

tentativas repetidas de acesso ao mundo verdadeiro são tentativas fracassadas.

Quando se chega ao ápice de tal odisséia – a cisão entre mundo verdadeiro e mundo

aparente – se inicia um processo que culmina na ruína Daquele que concentrava em

si todo conteúdo ontológico e divino do mundo em si: Deus.42 Para Casanova, a nova

posição do homem no mundo advinda da morte de Deus não tem a ver com uma

postura arbitrária do próprio homem, mas sim com os próprios desdobramentos do

pensamento metafísico.43 O homem, portanto, encontra-se à deriva!

O acontecimento – a morte de Deus – é a completa dissolução da dicotomia entre verdade e aparência: a total supressão da transcendência constituída teologicamente a partir da idéia de um Deus único enquanto sentido (télos) derradeiro da realidade.44

Esse novo momento vivido pela dimensão antropológica provoca a perda de

todo horizonte verdadeiro antes garantido por Deus. Como podemos bem observar

no aforismo 125, as palavras do homem louco nos reporta aos acontecimentos

oriundos de um novo momento humano ao trazer à tona o significado da morte de

Deus. Podemos, portanto, vê- la no esvaziamento do mar, em nossa queda constante

em direção a um infinito abismo e também na perda de toda referência transcendente.

Tomando o advento da morte de Deus sob uma perspectiva teológica, poder-se-á

perceber que todo sentimento de abandono, de desamparo absoluto em meio ao nada

39 Cf. Marco A. CASANOVA, O instante extraordinário, p. 193. 40 Cf. Marco A. CASANOVA, A religião da terra: o lugar do sagrado no pensamento de Friedrich Nietzsche. In. A fidelidade à terra, p. 337. 41 Cf. Marco A. CASANOVA, O instante extraordinário, p. 193. 42 Cf. Marco A. CASANOVA, O instante extraordinário , p. 194. 43 Cf. Marco A. CASANOVA, O instante extraordinário, p. 194. Cf. também Marco A. CASANOVA, A religião da terra: o lugar do sagrado no pensamento de Friedrich Nietzsche. In. A fidelidade à terra, p. 338. 44 Marco A. CASANOVA, A religião da terra: o lugar do sagrado no pensamento de Friedrich Nietzsche. In. A fidelidade à terra, p. 339.

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e de ameaça que sobrevém ao homem é possivelmente diagnosticável a partir do

apagamento da imagem divina de Deus que sua própria morte também provoca. O

assassinato de Deus pode ser percebido não como algo que está por acontecer,

todavia como algo já realizado, feito. Yves Ledure, em excelente artigo, afirma que

este processo de autoreferenciação ao qual o homem é acometido significa que este

mesmo homem perdeu sua referência divina e suas raízes ontológicas.45 A angústia

promovida pelos acontecimentos gestados no interior da Idade Moderna – da

maneira como a entende Romano Guardini – é devedora em grande parte ao

sentimento de não ter nenhum lugar simbólico, nem um refúgio que seja

imediatamente convincente; e também – afirma Guardini – da experiência sempre

renovada de não encontrar no mundo um lugar para a existência e que satisfaça a sua

necessidade de sentido.46

A concretização do processo que ousamos chamar de desteisificação pode ser

visto no aforismo 346. Esse possível momento que o homem viu nascer diante de si

pode ser entendido como ápice de um processo de auto-deificação.47 O aforismo

sinaliza que este novo momento humano nasce irrestritamente da morte de Deus.

Nossa interrogação – Mas vocês não entendem isso? De fato, custa esforço nos entender. Nós buscamos palavras, talvez busquemos ouvidos. Quem somos nós, afinal quiséssemos simplesmente nos designar, como uma expressão mais velha, por ateu ou ímpio, ou ainda imoralista, não acreditaríamos nem de longe estar caracterizados com isso: somos as três coisas num estágio muito adiantado para que se compreenda, para que vocês compreendessem, senhores curiosos, em que estado de ânimo alguém assim se encontra. Não, não mais com a amargura e a paixão de quem se soltou violentamente, que ainda tem de compor para si uma fé, um propósito, um martírio a partir da sua descrença! Nós nos aguçamos e tornamos-nos frios e duros com a percepção de que nada que sucede no mundo é divino, ou mesmo racional, misericordioso e justo pelos padrões humanos: sabemos que o mundo que habitamos é imoral, inumano e “indivino” [...]48

O refúgio humano se esvaiu com o princípio nietzschiano sobre a morte Deus.

Enquanto se tem uma preocupação constante com o abismo infinito que se abre

diante do homem, deveríamos também observar que a lei eterna se dissipa e, por isso,

45 Cf. Yves LEDURE, O pensamento cristão face à crítica de Nietzsche. In Nietzsche e o cristianismo, p. 61. 46 Romano GUARDINI, O fim da idade moderna, p. 37-38. 47 Cf. Claude GEFFRÉ; Jean-Pierre JOSSUA, (Editorial). In Nietzsche e o cristianismo , p. 5. 48 NIETZSCHE, A gaia ciência, p. 238-239.

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torna-se justificada a plena liberdade humana. A imagem auto-deificadora do homem

emerge quando este percebe que não há nenhuma legislação extrínseca que faça

restrições à concretização de suas ações. Em outras palavras, o homem, pela primeira

vez, sente-se senhor de si. 49 De Lubac – embora um dos principais críticos do

pensamento nietzschiano – foi capaz de reconhecer que o chamado humanismo ateu,

sob o ponto de vista antropológico, promoveu a eliminação de Deus para que o

homem pudesse tomar posse da grandeza humana.50 Esta nova imagem do homem e

do mundo, vista pela ótica da morte de Deus, fez com que tanto o homem quanto o

mundo passassem de finito a infinito. Diante da infinitude – nova condição da

dimensão antropológica – poderíamos nos perguntar o que fazer com ela.51

Na busca de uma compreensão do mundo contemporâneo, o que poderia

servir de espelho para as ressonâncias do pensamento nietzschiano, Gianni Vattimo

observou que a morte de Deus trouxe também certa desestabilidade ao homem:

‘Deus morreu, mas o homem não vai muito bem’.52 Há nesta afirmação a intenção de

estabelecer nexos entre a morte de Deus e a crise do humanismo.53 A crise que

Vattimo observa no humanismo tem a ver com o fato de que ele não pode mais se

resolver num apelo a um fundamento transcendente.54 Neste mesmo caminho,

Vattimo afirma que

[...] a morte de Deus – momento culminante e, ao mesmo tempo, final da metafísica – também é, inseparavelmente, a crise do humanismo. Em outras palavras ainda: o homem só mantém a posição de “centro” da realidade, a que alude a concepção corrente de humanismo, por força de uma referência a um Grund que lhe garante papel.55

49 Cf. Marco A. CASANOVA, O instante extraordinário, p. 195. 50 Cf. Henry DE LUBAC, O drama do humanismo ateu, p. 21. Para De Lubac, ao matar o Deus Cristão – símbolo de razão e de luz que exalta o elemento mais pessoal em cada homem – Nietzsche acreditava e queria libertar o homem de todos os entraves e oferecer-lhe a possibilidade de uma realização total. Cf. Yves LEDURE, O pensamento cristão face à crítica de Nietzsche. In. Nietzsche e o cristianismo , p. 63. 51 O próprio aforismo 125 da obra A gaia ciência nos remete a esta questão: “O mais forte e o mais sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará este sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós. Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos nos parecer dignos dele?”. Cf. NIETZSCHE, A gaia ciência , p. 148. 52 Cf. Gianni VATTIMO, O fim da modernidade, p. 17. 53 Não podemos esquecer que os referenciais de Vattimo são principalmente influenciados pelo pensamento de Heidegger. Cf. Gianni VATTIMO, O fim da modernidade , p. 18. 54 Cf. Gianni VATTIMO, O fim da modernidade, p. 18. 55 Gianni VATTIMO, O fim da modernidade, p. 19. (Grifo do autor)

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Uma questão que desejamos problematizar, posteriormente, no horizonte da

literatura machadiana, é a seguinte: de que forma o homem machadiano responde à

dissolução do conteúdo transcendente do mundo? Será que o homem machadiano

sobrevive em meio a um humanismo radical, advindo de uma crise generalizada que

se concretizou com morte do fundamento supremo do mundo, Deus?

A tecnificação do mundo apareceria, segundo a interpretação heideggeriana

que Vattimo empreende, como causa de um processo geral de desumanização, que –

para ele – compreende o obscurecimento dos ideais humanistas da cultura em favor

de uma formação do homem centrada nas ciências e nas habilidades produtivas

racionalmente dirigidas, como também compreende, no plano da organização social

e política, as marcas de uma acentuada racionalização.56

O estado atual do mundo talvez aponte, aparentemente, que as expectativas

humanas de sua plena liberdade sob a ótica da morte de Deus e a partir disso a

conquista de sua emancipação tenham de fato sucumbido em função de um quadro

de extrema dissolução do sentido de Deus. Aqui retomamos o que chamamos

anteriormente de equivalência entre o processo de tecnificação do mundo e a perda

de seus valores sagrados.57 Cabe-nos, portanto, pelo que temos dito, afirmar que a

crise que se arrasta do mundo tardomoderno até o atual é de fato também uma crise

espiritual, religiosa. Para Romano Guardini, quando Deus perde seu lugar no mundo

simultaneamente o homem perde o seu. Categoricamente, pergunta-se Guardini:

“Onde está Deus!”58

O colapso do mundo moderno do ponto de vista religioso foi ricamente

apontado pelo teólogo alemão Paul Tillich. Os analisar os desencadeamentos da

cultura e da sociedade ocidentais, Tillich percebeu que não haveria outra forma de

definir a cultura senão de por meio daquilo que chamou de cultura autônoma.

Chamamos de autônoma a cultura empenhada em criar formas de vida pessoal e social sem qualquer referência a algo supremo e incondicional, seguindo apenas as exigências da racionalidade técnica e prática. [...]

56 Cf. Gianni VATTIMO, O fim da modernidade, p. 20. Cremos que Adorno e Horkheimer também tocam nesta questão. Cf. A dialética do esclarecimento, 1985. 57 Cf. idem, Acreditar em acreditar, p. 45. 58 Romano GUARDINI, O fim da idade moderna , p. 44. Se esta pergunta puder ser respondida por Nietzsche, talvez saibamos a resposta: “Deus está morto!”

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[...] Chamamos de autônoma a cultura secularizada que já perdeu a substância espiritual e seu significado central, e não mais possui referencial transcendente.59

Diante da crise que se inicia no século XIX e que se arrasta até o século XX,

Tillich procura entendê- la como um processo explicável primordialmente pela

dissolução da imagem religiosa do mundo. De forma muito interessante, Tillich

afirma que, quando alguém o interpelava acerca da queda do mundo, sua resposta

apontava para a crise religiosa como fundamento do caos.

É a religião que o prova (mundo em queda), ou seja, a existência de uma cultura religiosa ao lado de uma secular, o templo ao lado da prefeitura, a Ceia do senhor ao lado das nossas ceias diárias, a oração ao lado do trabalho, a mediação ao lado da pesquisa e, finalmente, caritas ao lado de eros .60

Tillich, naquele momento, olhava para as atrocidades das guerras e para a

insurreição de uma cosmovisão que trazia para vida a experiência do fim. Entre o

senso de reconstrução que sobreveio à Europa logo após a primeira guerra e o de

destruição total emergido após a segunda, Tillich compreendeu que a única

experiência que sobrevivia era a de um profundo vazio; vazio que representava no

horizonte da cultura um vazio sagrado. Para Tillich, este vazio, ainda que

dilacerador, nos reporta a algo supremo que de algum modo expressa o ainda não.61

O mundo do século XX não refletiu todo otimismo da cultura iluminista e,

por isso, poderíamos nos perguntar, na esteira de Romano Guardini, o que acontece a

Deus e à sua soberania?62 As referências religiosas passaram, na transição do século

XIX para o século XX, por uma profunda crise, que se estende em certa medida até o

mundo contemporâneo. A morte de Deus, o senso de finitude, a auto-referência do

sujeito no horizonte do conhecimento, da ética e da arte são alguns pontos que

fundamentam a imagem de um mundo fragmentado; um mundo desteificado. O

momento extraordinário que se abriu diante do ser humano, ou seja, a capacidade de

sentir-se senhor de si mesmo por meio do diagnóstico da morte de Deus propiciou

momentaneamente um senso de infinitude que, por sua vez, transformou-se, sob a

ótica do caótico século XX, em um animal indomável. Tudo indica que o ser 59 Paul TILLICH, A era protestante, p. 85-86. 60 Paul TILLICH, A era protestante, p. 87. (grifos do autor) 61 Cf. Paul TILLICH, A era protestante, p. 88. (grifo nosso) 62 Cf. Cf. Romano GUARDINI, O fim da idade moderna, p. 51.

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humano, ao perder suas referências religiosas, decalcou sobre si mesmo uma

experiência espiritual negativa que reivindica ainda hoje um processo de

revitalização. Conforme indica Romano Guardini, “a conseqüência de tudo isto é o

aparecimento de uma experiência profana, autônoma, afastada das influências

cristãs.”63

Sem o elemento religioso a vida torna-se como um motor sem óleo. Está em perigo de se queimar, a qualquer momento. As partes que deveriam estar ligadas desprendem-se. A existência desorganiza-se – então realiza-se este curto circuito [...] Transforma-se em violência. E é através dela que impotência procura uma saída.64

Com o que foi exposto até aqui, torna-se nossa tarefa principal encontrar no

espaço literário machadiano uma resposta aos dilemas emergidos no mundo

tardomoderno, por entendermos que subsistiam naquele momento, a partir da

antropologia do texto machadiano, elementos que expressavam de forma modelar

determinadas experiências em nível incondicional ou religioso. Em outras palavras,

nosso caminho será o de perceber como a estética machadiana, de forma particular,

resguardou, a partir de sua antropologia, essa dimensão originariamente

incondicional. Respaldados na possível compreensão de que a manifestações

artísticas resguardam em si certa imagem religiosa do mundo que poderia não ser

mais visível na própria realidade, cabe-nos concordar com Paul Tillich ao dizer que

“nenhuma criação cultural consegue esconder seu fundamento religioso.”65 A

caricatura que Nietzsche produziu do mundo e do ser humano é coincidentemente

paralela à imagem que deles (o mundo e o ser humano) a literatura machadiana

também produziu. Ao assistirmos, a partir das lentes de Nietzsche, a desteificação do

mundo, devemos também nos perguntar se é possível reabilitarmos na literatura

machadiana uma dimensão transcendente do ponto de vista de sua antropologia. Que

elementos da literatura machadiana determinam, no interior de um mundo

dilacerado, esta configuração de experiência religiosa?66

63 Romano GUARDINI, O fim da idade moderna, p. 79. 64 Romano GUARDINI, O fim da idade moderna, p. 81. 65 Paul TILLICH, A era protestante, p. 85. 66 Esta pergunta tem uma razão de ser. Por exemplo, grande parte das artes emergidas nesse período de transição (Século XIX-XX) sofre a acusação de terem reproduzido um estética da dissolução.

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1.2.1. Pequeno excurso sobre a morte de Deus: considerações sobre o

momento extraordinário

No pensamento de Nietzsche, a morte de Deus pôde significar a emergência

de uma experiência extraordinária do ser humano a partir de uma existência

totalmente imanente. Como aponta Roberto Machado, Nietzsche não quer com a

morte de Deus provar que Ele não existe ou deixou de existir. A morte de Deus é a

constatação do niilismo da modernidade; é o fato de que a fé no Deus cristão deixou

de ser plausível; é a evidência de que a fé em Deus, que servia de base à moral cristã,

se encontra minada, de que desapareceu o princípio em que o homem cristão fundou

sua existência; a morte de Deus significa também o diagnóstico da ausência cada vez

maior de Deus no pensamento e nas práticas do Ocidente moderno.67

Esse momento extraordinário que envolve todas as dimensões acima

relacionadas deve ser vivido por meio da emergência de um novo advento

antropológico: o super-homem. A morte de Deus, na compreensão de Roberto

Machado, representa a efetiva condição para a existência dessa nova dimensão

antropológica.68 Porém, inversamente ao pensamento de Roberto Machado e de

tantos outros como Henry de Lubac, no que tange aos efeitos da morte de Deus sobre

a fé cristã, Maurice Blanchot percebeu que a ação do pensamento de Nietzsche só

produziu os tais efeitos porque ela não foi bem compreendida, embora reconheça que

a morte permitiu ao ser humano conhecer seus verdadeiros limites, abandonar o seu

67 Cf. Roberto MACHADO, Zaratustra, tragédia nietzschiana, p. 47. A despeito de concordarmos com os pressupostos de Roberto Machado, seria importante dizer que Maurice Blanchot tem uma compreensão bem particular dos problemas que envolvem a questão da morte de Deus em Nietzsche, a partir de uma leitura que empreende da literatura de Kafka. Mesmo que o interesse principal não fosse o de encontrar uma discussão de natureza teológica nos escritos de Franz Kafka, Maurice Blanchot, em sua coletânea de estudos intitulada A parte do fogo , não foi capaz de deixar para trás a possibilidade de rever criticamente a suposta acusação de ateísmo no legado literário do autor de O processo . A representação de um mundo em processo de dissolução – dissolução que é lida a partir da morte de Deus – encontraria na obra de Kafka uma confortável verossimilhança com o mundo da realidade extraliterária. Todavia, a morte de Deus, se for entendida através de processos como a dissolução dos parâmetros da moral, o aparelhamento do poder Estatal (O Castelo) (visto pelo seu conjunto de práticas punitivas) e ainda como desmaterialização do sujeito que tinha no ser humano burguês seu espelho (A metamorfose) e finalmente como a submersão da própria soberania de Deus em relação ao mundo, Maurice Blanchot aposta que na obra de Kafka os possíveis desdobramentos da morte de Deus fez com que Ele encontrasse uma espécie de revanche impressionante. Estaríamos lidando, segundo Blanchot, com uma transcendência morta, mas que não deixa de estar presente sob outras formas e disfarces. “[...] Pois sua morte não o priva nem do seu poder nem da sua autoridade infinita, nem mesmo da sua infalibilidade: morto, ele é ainda mais terrível, mais invulnerável, num combate onde não existe mais a possibilidade de vencê-lo [...] Deus está morto, e isto pode significar esta verdade ainda mais dura: a morte não é possível.” Cf. Maurice BLANCHOT, A parte do fogo, p. 15-16. 68 Cf. Roberto MACHADO, Zaratustra, tragédia nietzschiana , 46-47.

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refúgio para pôr à prova apenas suas possibilidades e, por fim, tornar-se responsável

por si mesmo, isto é, ser criador.69 Há, portanto, para Blanchot, certa ambigüidade na

afirmação “Deus está morto”. É possível entendermos a morte de Deus como um

corte histórico e como a chegada de uma fase do mundo em que a solidão e o deserto

serão para cada um como tarefas para viver e superar, o que não significa que a

humanidade tenha definitivamente ultrapassado seu momento fundamental. 70 A

imagem que nos remete a um aspecto da ambigüidade do enigma da “morte de Deus”

é o fato de o homem louco do aforismo 125 ter jogado sua lanterna ao chão para

apagá- la e de ter dito: “Cheguei cedo demais”. Para Blanchot, o “Deus está morto”

de Nietzsche não é apenas uma resposta para o provável ocaso de Deus, mas sim a

recusa de uma resposta, a negação de uma salvação, o não à permissão grandiosa de

repousar e de se descarregar de si mesmo sobre uma verdade eterna, que para o

filósofo alemão não é outra coisa senão Deus.71 Tal aspecto torna-se mais claro se o

ser humano, após o advento da morte de Deus, puder ser sempre igual ao Deus que o

ultrapassava. Ou seja, se por lado um Nietzsche admite para sua concepção

antropológica a possibilidade de ser como Deus ao negá-lo como fundamento para

daí encontrar a liberdade, por outro lado recusa tudo aquilo que em Deus é resposta:

podemos ser como Deus, mas para isso devemos assassinar o fundamento do mundo.

Como vê Blanchot, o confronto de Deus, que desaparece com o ser humano que

também é responsável por tal desaparecimento, é necessário a Nietzsche para viver o

poder de nega-Lo até o fim de maneira pura, na angústia e no risco. O

desmoronamento infinito de Deus permite à liberdade – afirma Blanchot – tomar

consciência do nada que é seu fundamento. Ser cúmplice de Deus foi o maior drama

vivido por Nietzsche.72 É preciso negar o Deus infinitamente para que a liberdade de

viver sem Ele seja um sempre um momento maior na história da humanidade.

69 Cf. Maurice BLANCHOT, No caminho de Nietzsche. In A parte do fogo, p. 277. 70 Cf. Maurice BLANCHOT, No caminho de Nietzsche. In A parte do fogo, p. 280. 71 Cf. Maurice BLANCHOT, No caminho de Nietzsche. In A parte do fogo, p. 281. 72 Cf. Maurice BLANCHOT, No caminho de Nietzsche. In A parte do fogo, p. 285.

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1.3. Escritura ou reescritura de Deus e do ser humano: metodologias e

tematizações entre teologia e literatura

“O reconhecimento da correspondência é também um pressuposto para o reconhecimento de que o

Deus que adoramos e nomeamos tramita no espelho das palavras. Nenhuma palavra é mera

realização de outra. Palavras se correspondem na força da experiência, na precisão do alcance da

nomeação e na coragem de escrever sobre o mistério de nossas vidas.”

Antonio Magalhães

Seria quase impossível esgotarmos, neste trabalho de tese, a inabarcável

produção intelectual que gravita em torno das discussões teológicas e religiosas a

partir do texto literário, já que nossa busca recai sobre tal questão. Quando

estabelecemos, a partir de Paul Ricoeur, as bases hermenêuticas do nosso trabalho

fizemos uma escolha acima de tudo metodológico-conceitual para a procura do dado

religioso subjacente ao texto machadiano. Com isto afirmamos que as obras

consideradas de certo modo referenciais foram construídas sob múltiplos aspectos

metodológicos. A maior parte delas foi escrita por teólogos que vislumbraram a

possibilidade de se fazer teologia ou de capturar o dado transcendente a partir do

texto literário. Jean-Pierre Jossua e Johann Baptist Metz entenderam que um

importante caminho para a realização dessa tarefa seria o de descobrir na literatura o

seu conteúdo teológico explícito ou latente.73 Entretanto, não caberia fazer da

literatura uma espécie de lugar teológico onde somente poder-se-ia ver determinados

traços de um teologia imutável ou imagens religiosas cristalizadas em nossas

tradição. Temos antes, segundo Jossua e Metz, que perguntar o que é que só a

73 Cf. Jean-Pierre JOSSUA; Johann B. METZ. Editorial. In Teologia e literatura (Concilium), p. 3.

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literatura e nenhuma teologia conceitual será capaz de dizer e expressar

eficazmente.74

Este percurso, que muitos autores trilharam, trata de uma virada no discurso

teológico e, conseqüentemente, de sua compreensão de ser humano e de mundo.

Com a relativização dos antigos paradigmas de conhecimento emergida

simultaneamente ao advento do mundo moderno, o pensamento teológico nos parece

ter percebido a necessidade de uma auto-reflexão tanto do ponto de vista de seu

objeto quanto do ponto de vista de seu método.75

Na esteira de Claude Geffré, a compreensão de teologia como o intellectus

fidei só pode apresentar, no panorama do mundo atual, certa caducidade.76 A

questão que se coloca subterraneamente na afirmação anterior deve ser

compreendida pela ineficiência que o intellectus fidei ofereceria para a compreensão

e a decifração da experiência do ser humano no mundo contemporâneo.77 Isto não

isenta, todavia, o mundo atual, o ser humano e seus dilemas de serem compreendidos

à luz da tradição cristã, como também não significa a criação de um tribunal de

acusação para a teologia. O que se tem na verdade, segundo Geffré, são novas formas

de compreensão do trabalho que a teologia deve realizar. A teologia deve ser

comprometida, para Geffré, cada vez mais com uma tarefa crítico-interpretativa da

tradição cristã.78 Enquanto hermenêutica, a teologia apresentaria, portanto, uma

profunda afinidade com o discurso literário, pois tanto a teologia, sob esta nova ótica,

quanto a literatura empreendem – a partir da capacidade que elas possuem em lidar e

de identificar as regiões simbólicas – formas de conhecimento do ser humano e do

mundo, que por vezes fazem apelo às operações de natureza hermenêutica para a

revelação do excesso de sentido que caracteriza a maneira pela qual são

representados por elas. Talvez seja essa a percepção que Jossua e Metz tenham ao

dizer que

De qualquer modo não se trata de dar continuidade às tentativas duma teologia ‘poética’ ou da ‘espiritualidade’, conhecidas de todas as épocas

74 Cf. Jean-Pierre JOSSUA; Johann B. METZ. Editorial. In Teologia e literatura (Concilium), p. 4. 75 Segundo Claude Geffré, “como, por definição, Deus escapa aos limites da razão[...] A teologia tende a ser compreendida não simplesmente como um discurso sobre Deus, mas como um discurso que reflete sobre a linguagem sobre Deus, um discurso sobre uma linguagem humana que fala humanamente.” Cf. Claude GEFFRÉ, Crer e interpretar, p. 32-33. 76 Cf. Claude GEFFRÉ, Crer e interpretar, p. 32. 77 Cf. Claude GEFFRÉ, Como fazer teologia hoje , p. 7. 78 Cf. Claude GEFFRÉ, Como fazer teologia hoje , p. 7.

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e caracterizadas pelo vago e arbitrário. O que se pretende, pelo contrário, é encontrar na forma literária um novo rigor de trabalho peculiar, numa época que não se parece nem com a da abstração nem com a do sistema. É evidente que o que está em causa é mais que um certo estilo, é um mudança na própria maneira de pensar, é uma preocupação dominante em recorrer à experiência cristã, à observação profunda dos intercâmbios incessantes entre essa experiência e a confissão de fé.79

Indubitavelmente, a literatura emerge no mundo contemporâneo como

instância que propicia novas aberturas de interpretação – do ponto de vista teológico

e religioso – acerca do ser humano e do mundo e por isso pode ter o seu trabalho

comparado ao que realiza uma teologia de corte hermenêutico. Hervé Rousseau,

reportando-se a Pie Duployé, compartilha da mesma percepção ao afirmar, por

exemplo, que os romances de Georges Bernanos são muito mais que narrações; são

na verdade interpretações da existência e da revelação na perspectiva do mundo

contemporâneo; são também interpretações fundadas sobre sua própria existênc ia.80

Prova da importância da literatura pode ser vista também no pronunciamento da

Constituição Pastoral Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II.

A literatura e as artes são também, segundo a maneira que lhes é própria, de grande importância para a vida da Igreja. Procuram elas dar expressão à natureza do homem, aos seus problemas e à experiência de suas tentativas para conhecer-se e aperfeiçoar-se a si mesmo e ao mundo; e tentam identificar a sua situação na história e no universo, dar a conhecer as suas misérias e alegrias e necessidades e energias, e desvendar um futuro melhor. Conseguem assim elevar a vida humana, que exprimem sob muito diferentes formas, segundo os tempos e lugares. Por conseguinte, deve trabalhar-se por que os artistas se sintam compreendidos, na sua atividade, pela Igreja e que gozando duma conveniente liberdade, tenham mais facilidade de contatos com a comunidade cristã.81

A afirmação da importância das artes e da literatura como forma legítima de

interpretação do mundo e das experiências vividas pelo ser humano, entre elas a

experiência de Deus e as de natureza religiosa, dissipa a invisibilidade das questões

autênticas que ambas construíram ao logo de muitos séculos. Trata-se não só de um 79 Jean-Pierre JOSSUA; Johann B. METZ, Editorial. In Teologia e literatura (Concilium), p. 5. Caberia perguntar aos autores o porquê de se pretender criar um novo rigor para o trabalho teológico. (Grifo nosso). 80 Cf. Hervé ROUSSSEAU, A literatura: qual é o seu poder teológico? In Teologia e literatura , p. 8. Hervé Rousseau menciona a clássica obra de Pie Duployé intitulada La religion de Pègui, Paris, 1965. 81 Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II, p. 618.

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reconhecimento público da força que elas possuem ao lidar com as dimensões, os

dilemas e as crises propriamente humanas, mas também de reconhecer seu estatuto

de conhecimento sobre tais esferas que nos atingem diretamente.

À aproximação entre a teologia e a literatura – por meio da capacidade

enunciativa que ambas possuem de dizer a realidade, o ser humano e tudo aquilo que

ele aspira, deseja e o toca incondicionalmente – poderá, verdadeiramente, entre elas,

estabelecer uma forma paralela e não conflitiva de discurso. Poderemos dizer

também que o objeto mesmo da teologia passaria a ser a revelação de Deus, dentro

da tradição cristã, segundo a localização, as aspirações e experiências humanas

historicamente construídas.

1.3.1. Literatura e cristologia

O primeiro trabalho a ser apresentado aqui é a obra do espanhol Olegário

González de Cardedal. Cuatro poetas desde la otra ladera teve como preocupação

principal a pergunta pela pertinência da cristologia nos séculos XIX e XX, a partir do

legado literário de quatro escritores: Unamuno, Jean Paul Richter, Antonio Machado

e Oscar Wilde. O seu exaustivo trabalho apresenta com detalhes a tessitura do tema

cristológico no espaço literário dos autores mencionados. Daríamos centralidade às

análises que González de Cardedal realiza da obra El Cristo de Velázquez de Miguel

de Unamuno. A primeira justificativa que apresenta pela escolha de Unamuno reside

na afirmação de que os problemas em torno de Deus, Cristo e homem, no horizonte

da eternidade, sempre estiveram presentes na obra escritor espanhol. 82 Na tentativa

de superar o Unamuno da obra Do sentimento trágico da vida, Cardedal de González

verá no poema El Cristo de Velázquez uma transmutação temática, pois o poema,

começado em 1912 e terminado em 1922, resgataria a contemplação, a oração e

esperança.83

Uma questão levantada por González de Cardedal recaiu sobre o porquê da

escolha da tela de Diego Rodríguez de Silva Velázquez como elemento de

“inspiração” de Unamuno. Problemas em torno de uma questão que não se pode

resolver facilmente: Unamuno pretendia falar do Cristo pintado por Velázquez ou do

Cristo da tradição cristã? Parte desse pequeno enigma se deve à variedade de

82 Cf. Olegario GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Cuatro poetas desde la outra ladera , p. 7. 83 Olegario GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Cuatro poetas desde la outra ladera , p. 27.

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expressões que retrataram a imagem de Jesus nas artes plásticas da Europa. Uma

tensão é posta: entre os Cristos trágicos e os Cristos que retratam certa majestade

universal, Unamuno escolheu uma expressão cristológica apolínea, majestática, mais

luz e céu, como é o Cristo de Velázquez, afirma González de Cardedal. 84

O tema cristológico parece, em González de Cardedal, ser um problema a se

resolver na contemporaneidade. Ele se interroga acerca do fundamento que

justificaria a possibilidade de a palavra humana sobre Cristo ser mais que uma

rememoração psicológica e nostálgica de um passado esgotado. Entretanto, González

de Cardedal se refugia numa imagem de Cristo que lhe permite afirmar o Cristo

ressuscitado como algo pertencente a um universo transtemporal.

E se questiona:

¿Nos es posible a nosotros hoy mirarle a la cara, ver en su rosto la gloria del Eterno, reconecer en su humanidad nuestra humanidad y en su muerte nuestra salvación?85

González de Cardedal reconhece que três são as vias de recuperação de uma

realidade (Cristo) que, sendo no tempo, pertencem a uma ordem transtemporal ou

eterna: a liturgia, a mística e a arte. A liturgia seria o caminho que constitui a

celebração representadora dos mistérios. A mística seria a contemplação de Deus

como mistério de amor pessoal comunicado e dos mistérios de Jesus. E a arte?

González de Cardedal não responde de forma tão explícita a função da arte em

relação à maneira como apresenta as funções da mística e da liturgia. Todavia,

entende que tanto a mística, a liturgia quanto a arte são momentos criadores em que o

espírito de Deus e o espírito dos homens juntos fazem reviver a criação originária.

Para ele: “En ella el hombre se asoma al abismo del ser, se reencuentra a sí mesmo

en la luz y recobra capacidad de vivir”.86 González de Cardedal chega à conclusão de

que a contemporaneidade de Cristo é a condição necessária para que o homem, que é

corpo, viva.

Notamos um ponto interessante na apreciação inicial que González de

Cardedal realiza da obra Unamuno. O seu interesse – nos ocorreu de tal maneira –

reside numa espécie revitalização do tema cristológico. González de Cardedal tem

84 Olegário GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Cuatro poetas desde la outra ladera , p. 32. 85 Olegário GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Cuatro poetas desde la outra ladera , p. 33. 86 Olegário GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Cuatro poetas desde la outra ladera , p. 35.

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preocupações acerca das várias formas de recepção (interpretação) do tema

mencionado, parecendo buscar elementos que clarifiquem uma forma de recepção

mais autêntica. Ele percebe que tanto o catolicismo quanto o protestantismo tiveram

compreensões um pouco divergentes quanto ao que Jesus representou e legou para a

história; todavia, seriam elas entre si aceitáveis. Cremos que para González de

Cardedal as divergências de interpretação das duas principais tradições cristãs

incidem também sobre a função mediadora que elas representam.87 Entretanto,

percebe que a própria literatura de Unamuno intenta, como que a partir de uma

dimensão metalingüística, explicar determinadas formas de mediação e de acesso a

Cristo. Unamuno enumera três formas de mediação, entre elas a arte. A fé, o Espírito

Santo e a arte seriam para Unamuno as três formas de mediação que revelam o Cristo

vivo.88 Recuperaremos aqui um pequeno trecho do poema de Umamuno:

los ojos de la fe en lo más recóndito del alma, y por virtud del arte em forma te creamos visible. Vara mágica nos fue el pincel de Don Diego Rodríguez de Silva Velázquez. [...] consolador a nos el Santo Espíritu, ánimo de tu grey,que obra en el arte y tu visón nos trajo

Um dos evidentes esforços de González de Cardedal é o de apresentar certo

ajuste entre o que entende ser o cerne da teologia católica e a teologia que é expressa

no poema de Unamuno. Para tanto, é preciso distanciar Unamuno das possíveis

influências dos temas do protestantismo de Harnack89, sobretudo sua cristologia,

como também compreender que a teologia protestante é toda calcada na audição da

palavra. Para ele, a teologia do poema de Unamuno estaria mais alinhada à teologia

católica, pois esta se encontra assentada sob o esplendor das realidades materiais e

institucionais, portanto mais próxima do mundo grego, com suas produções

artísticas, enquanto que a teologia protestante teria como preocupação a dimensão

sola palabra e certo descompromisso com o mistério da encarnação.90 Portanto,

González de Cardedal entende, assim como Unamuno, que a fé, a arte e o Espírito

87 Cf. Olegário GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Cuatro poetas desde la outra ladera , p. 37. 88 Olegário GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Cuatro poetas desde la outra ladera , p. 37. 89 As referências a Harnack têm sua origem nas possíveis influências desse teólogo protestante no pensamento de Unamuno. Cf. Op. cit., p. 53. 90 Olegário GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Cuatro poetas desde la outra ladera , p. 38.

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Santo unidos são a perfeita mediáción-representación visibilizadora de Cristo.91 Sua

crítica ao protestantismo pôde ser expressa da seguinte maneira:

[...] a la fe nuda o desnuda del protestantismo (sola fides), que lleva consigo una ínsita voluntad de iconoclasmo permanente, y rechaza las representaciones visivas, táctiles y de outro orden para dejar sólo las auditivas de ahí la significación de la lectura, la exégesis, la música y la predicación para el protestantismo [...]92

Em suma, a arte – ‘este verbo silencioso y blanco’, disse Unamuno – tem a

sagrada missão de representar a Deus: “Nuestra palabra es válida para hablar de él,

porque él existió encarnado; y válido serán también el color y la línea.93

Sem aprofundar a questão, Cardedal de González tenta entender o poema de

Unamuno na linha das grandes epopéias do mundo europeu. El Cristo de Velázquez

revelaria uma preocupação de Unamuno com os aspectos políticos, poéticos e

religiosos do povo espanhol. Para González de Cardeal, Unamuno pôde expressar a

catolicidade do povo espanhol neste poema. Há uma espécie de mistura que resulta

num Unamuno profeta e poeta.94 O próprio Unamuno se expressaria dizendo que

A mi me ha dado ahora formular la fe de mi pueblo, su cristología realista, y... lo estoy haciendo en verso. Es un poema que se titulará Ante el Cristo de Velázquez, y del que llevo escritos más de setecientos endecasílabos. Quiero hacer cosa cristiana, bíblica y española.95

O enigma do porquê da escolha do quadro de Velázquez como pintura base

para o poema de Unamuno encontra uma resposta nas reflexões de González de

Cardedal. O quadro de Velázquez revelaria a essência do catolicismo. O

distanciamento de Unamuno da reconhecida influência da teologia de Harnack e

Ritschl sobre seu pensamento até 1910, para González de Cardedal, exigiu o retorno

aos problemas cristológicos e teológicos em El Cristo de Velázquez, como a

eucaristia, a Igreja, a divinização do homem e a ressurreição da carne. A retomada de

tais questões no El Cristo de Velázquez seria uma forma de resposta às lacunas que a

91 Olegário GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Cuatro poetas desde la outra ladera , p. 40. 92 Olegário GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Cuatro poetas desde la outra ladera , p. 40. 93 Olegário GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Cuatro poetas desde la outra ladera , p. 41. 94 Olegário GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Cuatro poetas desde la outra ladera , p. 59-63. 95 Trecho retirado de González de Cardedal, op. cit., 63. Carta de 28 de julho de 1913 ao poeta português Teixeira de Pascoaes.

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influência da teologia liberal de Harnack – sobretudo – haveria de ter deixado em

Unamuno.96

Por ser um poema que trata do tema cristológico, El Cristo de Velázquez será

alvo de determinadas digressões por parte de González de Cardedal. Em primeiro

lugar, pergunta por uma clareza da possível teologia da encarnação no poema.

González de Cardedal parece exigir da teologia cristológica do poema de Unamuno

um determinado aparato conceitual que é próprio da teologia clássica. Suas

interrogações incidem sobre certa indiferenciação entre as dimensões da trindade.

Para ele, a teologia clássica pôde diferenciar e compreender o que realmente revela

cada uma das pessoas da trindade, ao passo que a teologia de Unamuno não foi capaz

de mostrar tal exatidão. Esta “incapacidade” de clarificar o conteúdo do dogma

cristológico acarretaria a impossibilidade de definir o conteúdo aceitável nas

expressões como corpo de Deus, humanidade de Deus, sofrimento de Deus, morte de

Deus.97 A segunda objeção desferida por González de Cardedal tem a ver com a não

fixação da extensão dos limites do homem Jesus enquanto Judeu, messias de um

povo. Ou seja, não uma determinação da sua dimensão humana ou divina.98 A

terceira questão se aloca no horizonte de uma ausência explícita sobre a historicidade

de Jesus. Cabem nesta questão, segundo González de Cardedal, perguntas sobre a

maneira pela qual há implicações da vida humana na vida divina de Cristo. A quarta

e última ponderação se abriga na falta de uma cristologia pneumatológica ou uma

reflexão sobre a ação do Espírito Santo sobre Jesus. Para Cardeal de González, não

há em Unamuno uma clareza sobre ação do Espírito Santo sobre a humanidade

Jesus.99

A crítica que nos permitiríamos fazer em relação à obra de González de

Cardedal tem a ver com seu estreito interesse em aproximar a literatura da teologia.

Sua preocupação parece estar concentrada em ver na literatura de Unamuno uma

“autêntica” teologia. Cremos que González de Cardedal não consegue perceber que a

arte (literatura, artes plásticas etc.), independentemente das formas de apropriação

que se pode fazer dela, pode ser um importante meio de abrigo e de transmissão de

determinados símbolos ou elementos da cultura cristã. Cremos que, antes de tudo,

esta percepção pode ser inteiramente afirmada diante do poema de Unamuno. Outro

96 Olegário GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Cuatro poetas desde la outra ladera , p. 108. 97 Cf. Olegário GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Cuatro poetas desde la outra ladera , p. 169. 98 Cf. Olegário GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Cuatro poetas desde la outra ladera , p. 170. 99 Cf. Olegário GONZÁLEZ DE CARDEDAL, Cuatro poetas desde la outra ladera , p. 170-171.

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apontamento é a sua necessidade de exigir da arte um rigor conceitual próprio da

teologia clássica. Um parêntese apenas nos será permitido: temos visto em muitos

trabalhos que se constituem em torno do enfoque teologia e literatura, certo

ressentimento. Parece-nos que inicialmente a literatura surge, no espaço de discussão

teológica, como um importante campo de interlocução, que todavia acaba, em muitos

autores, em uma das seguintes situações: 1. ou é incapaz de apresentar uma teologia

rigorosa; 2. ou compreendida dentro dos esquadros de uma teologia pré-concebida.

1.3.2. O drama da salvação

Outro trabalho de grande importância é a tese de José Carlos Barcellos,

intitulada O drama da salvação: espaço autobiográfico e experiência cristã em Julien

Green, que foi defendida, em 2000, no Departamento de Teologia da Pontifícia

Universidade Católica do Rio de Janeiro. Com o objetivo de investigar a literatura de

Julien Green, José Carlos Barcellos se valeu, durante o seu percurso, do conceito de

drama da salvação. A hipótese norteadora da tese reside na afirmação de que a

literatura de Julien Green se constitui através de um pacto autobiográfico entre ele,

autor, e sua literatura. Por isso, a possível expressão teológica da obras de Green

seria também sua expressão teológica enquanto teólogo.

A noção de drama da salvação, admitida como expressão máxima de sentido

da literatura de Green, permite que José Carlos Barcellos a identifique com a

mensagem evangélica de salvação. Para Barcellos, quando Julien Green afirma que

“spirituellement ma vie est un désastre”, há o reconhecimento explícito do caráter

dramático, trágico mesmo, da frustração existencial e religiosa vivenciada no seio

mesmo dos mais altos projetos e desígnios.100 Segundo Barcellos,

Essa teologia dramática tem uma consciência aguda da indisponibilidade de Deus em relação a todos os planos e previsões humanas, mesmo aqueles supostamente baseados na fé. Nesse sentido, é uma teologia cujo centro será sempre o grito de Cristo na cruz: ‘Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?’101

O tema do pecado será visto na literatura de Green como dimensão a serviço

da graça e da salvação, porque, segundo Barcellos, o pecado é responsável por situar 100 Cf. José Carlos BARCELLOS, O drama da salvação, p. 126. 101 José Carlos BARCELLOS, O drama da salvação, p. 126.

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o ser humano na sua verdade existencial mais profunda e que, de forma pungente,

evoca a nostalgia da comunhão com Deus. Para Barcellos, Julien Green tratará em

sua literatura – que também é o seu espaço teológico – o mundo como o espaço do

mal. A salvação se torna, no espaço literário de Green, do ponto de vista de sua

galeria de personagens, dramática porque passa necessariamente pela destruição

física ou moral do herói e das ilusões que este porventura tivesse acerca da felicidade

ou da possibilidade da reconciliação neste mundo.102

Entendendo que a noção de drama da salvação preside a leitura de Barcellos

em torno da obra de Green e que ela mantém uma relação com o conceito de espaço

autobiográfico, surge na tese a afirmação de que a experiência do fracasso de um

projeto de vida – experiência esta presente tanto no eu do diário de Green quanto em

Jeunnes Années (sua obra autobigráfica) – será o fundamento humano dessa visão

dramática da relação entre o ser humano e Deus. Dessa forma,

[...] o que há de frustrado e inacabado na esmagadora maioria das vidas humanas pode ser subtraído à lógica mundana do fracasso existencial e histórico para ser projetado no mundo invisível, em que esse mesmo fracasso pode se converter, afinal, em ocasião de encontro com o dom da graça.103

Na afirmação de Barcellos, subjaz a idéia de que de algum modo o ser

humano “topará” em sua vida com a salvação que emana de Deus por meio de Jesus

Cristo. Barcellos apresenta um exemplo dessa perspectiva em obra de Green

intitulada L’Autre. A história tem como protagonistas Roger e Karin. Os jovens se

conheceram no verão de 1939, em Copenhagen, cidade para qual o jovem francês

fora buscar aventuras eróticas. Karin era uma moça cristã que foi seduzida por

Roger. Depois de se desiludir com Roger, Karin, além de perder a fé, se deixa levar

por uma vida marginalizada e de hostilização, por entregar seu corpo aos soldados

alemães durante a ocupação nazista. Roger toma conhecimento dos acontecimentos

ao voltar à Dinamarca e se sente culpado por ter seduzido e abandonado a jovem. Em

razão dos acontecimentos, Roger se torna profundamente cristão ao se converter

durante os anos que passara num campo de prisioneiros na Alemanha.104 Para

Barcellos, a teologia dramática de Green se vale da graça através do pecado que por

102 Cf. José Carlos BARCELLOS, O drama da salvação, p. 137. 103 Cf. José Carlos BARCELLOS, O drama da salvação, p. 142. 104 José Carlos BARCELLOS, O drama da salvação, p. 150.

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sua vez faz a salvação transparecer pelo caminho do mal. Embora Barcellos

demonstre com muita propriedade os relevos da teologia de Julien Green, não tarda

em dizer que esta teologia é uma teologia alinhada aos pressupostos teológicos do

cristianismo no mundo moderno. A própria idéia de drama da salvação nos aponta,

de alguma forma, uma percepção caótica do mundo moderno. O cristianismo, afirma

Barcellos, seria para o mundo moderno a cruz que impede que este se degrade no

desespero, no absurdo, no nada.105 O que está subjacente a esta questão é a denúncia

que o tecido literário de Julien Green faz da superação da angústia humana um

projeto da salvação em Cristo.106

As personagens de Julien Green, para Barcellos, demonstram a luta diária

contra a banalidade da vida, contra as pequenas e as grandes tragédias. Tal luta

figura-se, numa perspectiva cristã, como uma concepção dramática da salvação que

se efetiva na renovação cotidiana da Paixão de Cristo, sob a ação do espírito. Se o

pacto autobiográfico entre Green e sua literatura for de fato considerado, Barcellos

afirma que Jeunes Annés apresenta o ápice da teologia de seu autor.

Na conclusão de seu trabalho, Barcellos defende a idéia de que a teologia de

Green nos lança à compreensão da revelação de maneira desvinculada de uma

teologia de corte mais racionalista. Ou seja, a teologia de Green nos faz perceber o

mistério da revelação de Deus em um momento específico da história, entretanto se

alinhando às raízes da experiência fundamental da tradição cristã.

Admitir que a teologia apenas seja um veículo de “comunicação” de uma

experiência primeira, de uma determinada comunidade, é também admitir que a

revelação não possui força para se apresentar através de outras dinâmicas de

escoamento do seu sentido, embora pretenda com isso certa preservação do sentido

primeiro dos símbolos fundamentais da fé cristã.

Dar à teologia de Green a tarefa de transmissão do sentido dos símbolos da fé

cristã da maneira como Barcellos figura em sua tese, significa também dizer que os

símbolos cristãos já foram “decifrados” e que a nossa tarefa recai apenas sobre o

trabalho de dizer onde eles se manifestam. A literatura seria então um receptáculo do

sentido já determinado dos símbolos da fé cristã, independente do contexto da sua

revelação, que lhes dá suporte e sentido.

105 Cf. José Carlos BARCELLOS, O drama da salvação, p. 160. 106 Cf. José Carlos BARCELLOS, O drama da salvação, p. 165.

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1.3.3. O nascimento de Jesus-Severino: hermenêutica transtexto-discursiva

A tese de Eli Brandão, defendida em 2001 na UMESP, trouxe uma dupla

tarefa construída a partir da interface teologia e literatura. A primeira se desenvolve

no campo da problematização de temas teológicos a partir da literatura de João

Cabral de Melo Neto. A segunda pauta-se na construção de uma estrutura

metodológica denominada hermenêutica transtexto-discursiva. Aliada à primeira

tarefa está a magnífica percepção do tema da esperança no poema cabralino Morte e

Vida Severina. A intenção de Eli Brandão se aloja, portanto, na construção de uma

leitura da obra Morte e Vida Severina, tomado para sua tese como obra poético-

teológica. Trata-se, pois, de apresentar, a partir do texto cabralino, uma eventual

confusão entre revelação poética e revelação teológica como ponte entre teologia e

literatura.107

A obra de João Cabral de Melo Neto é percebida como esfera hipertextual108

dos evangelhos de Mateus e Lucas. A idéia de reescritura (palimpsesto), apresentada

na tese de Eli Brandão, segundo Gérard Genette, nasce exatamente de uma possível

realização do tema da esperança (segundo os evangelhos de Lucas e Mateus) no

poema de João Cabral de Melo Neto. Dessa forma, os evangelhos de Lucas e Mateus

apresentam-se na tese de Eli Brandão como dimensão hipotextual, texto de origem

do processo de transformação ou reescritura de um outro texto.109

As condições operatórias e de realização do tema da esperança, entretanto,

são precedidas de um percurso hermenêutico nascido da associação de um ou mais

textos, pois, do ponto de vista da interpretação empreendida pelo leitor, existe um

pré-conhecimento dos textos envolvidos e do sentido que eles evocam. Há, portanto,

na identificação do hipertexto uma configuração semântica. Este dado fundamenta o

que Eli Brandão chama de hermenêutica transtexto-discursiva, porque a relação

contratual entre os textos não existe somente por uma ação transtextual – de

107 Cf. Eli BRANDÃO, O nascimento de Jesus-Severino no auto de natal pernambucano..., p. 180. 108 O conceito de hipotexto deve ser visto dentro de uma das chamadas categorias transcendentais do texto, mais especificamente a categoria denominada hipertextualidade. Tal conceito nos remete à relação de um determinado texto B (Hipertexto) com um texto A (Hipotexto), por meio de imitação ou transformação do texto primeiro. Cf. Gérard GENETTE, Palimpsestes. La littérature au second degré, p. 14. 109 Cf. Eli BRANDÃO, O nascimento de Jesus-Severino no auto de natal pernambucano..., p. 14.

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transposição ou transferência de um texto para dentro de outro –, mas também por

uma tentativa de compreensão do campo de sentidos que eles carregam consigo.110

Além da proposta de uma hermenêutica transtexto-discursiva, Eli Brandão

apresenta uma forma muito particular de aproximação do texto cabralino. Para ele,

há a necessidade de se privilegiar o texto enquanto porta de entrada para o próprio

texto, entendendo com isso que o campo semântico do texto pode se dar por

elementos que ele mesmo (texto) dispõe. Essa orientação permitiu que, a partir do

conceito de paratextualidade, Eli Brandão pudesse identificar as melhores portas de

entrada para o poema-obra Morte e Vida Severina. A paratextualidade é

necessariamente, segundo Genette, um conjunto de elementos ostensivos que

permitem um acesso imediato ao texto.111

O principal paratexto escolhido por Eli Brandão foi o próprio título e o

subtítulo da obra de João Cabral de Melo Neto: Morte e Vida Severina: Auto de

Natal Pernambucano. Conforme indicação do próprio subtítulo há, no plano

temático, uma referência à dialética entre “a morte como convite do desespero e a

vida como convite à esperança.”112 Do ponto vista estrutural, o subtítulo nos remete

ao gênero dramático na forma de Auto. Para Eli Brandão, somos informados tanto

pelo título quanto pelo subtítulo de que se trata de um Auto de Natal, cujas raízes se

fundam em tradições pernambucanas que, por sua vez, fazem parte da relação

dialética morte/vida.113

A hipótese da tese também reside na certeza de encontrar a imagem do

menino Jesus em algum lugar. É através da atuação paratextual do subtítulo que

nasce a possibilidade de emergir as narrativas sobre o nascimento de Jesus no texto

cabralino. Tais narrativas serão vistas sob a ótica de um processo de reescritura que

fazem do texto de João Cabral de Melo Neto um palimpsesto produzido por meio da

dissimulação dos textos subscritos. Através desse mesmo processo, Eli Brandão

pretendeu encontrar os textos dos evangelhos de Mateus e Lucas, pois o fundamento

de ambos inaugurou a tradição natalina.114

110 Cf. Eli BRANDÃO, O nascimento de Jesus-Severino no auto de natal pernambucano..., p. 181. 111 Cf. Dentre os principais elementos paratextuais estão os títulos, subtítulos, intertítulos, prefácios, posfácios, avisos, notas marginais, além de outros elementos. Cf. Gérard GENETTE, Palimpsestes, p. 10. 112 Cf. Eli BRANDÃO, O nascimento de Jesus-Severino no auto de natal pernambucano..., p. 195. 113 Eli BRANDÃO, O nascimento de Jesus-Severino no auto de natal pernambucano..., p. 195. 114 Cf. Eli BRANDÃO, O nascimento de Jesus-Severino no auto de natal pernambucano..., p. 197.

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A tese de Eli Brandão aponta, nos planos teórico-metodológico e temático,

para uma profícua aproximação entre teologia e literatura. A construção da ponte

entre elas se fundamenta a partir de um processo de harmonização entre os textos dos

escritores e textos cujo monopólio se restringiu à tradição da Igreja (textos bíblicos).

Com esta tarefa, a tese de Eli Brandão mostrou também que os textos fundamentais

da tradição literária ocidental possuem uma dimensão de co-pertença e de mútua

cumplicidade em favor dos temas que dão sentido à dimensão humana. Esta

afirmação só terá validade quando observamos, sob a ótica dos conflitos e tensões

que marcaram, o distanciamento entre teologia e literatura.115 Não nos esqueçamos,

pois, de uma importante advertência que Antonio Magalhães faz em sua obra Deus

no espelho das palavras. Para este teólogo, torna-se importante ressaltar que o

cristianismo, entre tantos outros, também sobreviveu às várias intempéries pelas

quais passou ao logo de vinte séculos porque contou e recontou “histórias” por meio

de seus textos fundantes.

O Severino que emerge do texto de João Cabral de Melo Neto não é outra

coisa senão – conforme sublinha Eli Brandão – a representação do coletivo e do

individual ao mesmo tempo: “é como o rio e como todos os incontáveis Severinos,

que vêm do sertão para desaguar nos mangues do recife; é o que nomeia tudo o que é

vinculado, pela igualdade do anonimato, à dialética morte/vida.”116 Portanto, o

Severino de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, é mais que um

representante do homem que emigra do nordeste brasileiro. O Severino do poema-

obra “incorpora aspectos do homem universal na medida em que simboliza, também,

todos que, sob a tensão morte/vida, desesperados e em busca da vida, da esperança,

emigram, em qualquer parte do mundo e em qualquer época.”117

Cabem aqui algumas considerações em direção à tese de Eli Brandão:

1. A chamada hermenêutica transtexto-discursiva apresenta-se como

exemplar instância metodológica e conceitual para elucidação das

múltiplas formas de reescrituras oriundas de textos pertencentes a

uma mesma tradição.

115 Cf. Karl-Josef KUSCHEL, Os escritores e as escrituras: retratos teológico-literários. São Paulo: Edições Loyola, 1999. 116 Eli BRANDÃO, O nascimento de Jesus-Severino no auto de natal pernambucano..., p. 208. 117 Eli BRANDÃO, O nascimento de Jesus-Severino no auto de natal pernambucano..., p. 208.

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2. A bricolagem do texto cabralino nos reporta à existência de um

palimpsesto, fruto dos múltiplos apagamentos e reescrituras que

por sua vez, na tese de Eli Brandão, encontrou nos textos de

Mateus e Lucas seus “fiéis” hipotextos.

3. Ao encontrar os prototextos teológicos, a tese de Eli Brandão

estabeleceu também uma espécie de transposição dimensional do

texto cabralino; ou seja, sendo um texto poético, Morte e Vida

Severina passa também a ser um texto bíblico-teológico através da

relação hipotextual que mantém com os evangelhos de Mateus e

Lucas. Essa dupla dimensão poético-teológica permite – segundo

Eli Brandão – a realização de um fazer teológico, normativo ou

não.

4. Ao descobrir as camadas textuais que ligam o texto de João Cabral

de Melo Neto aos evangelhos de Mateus e Lucas, a tese de Eli

Brandão encontrou o tema da esperança como prova da

compatibilidade temática existente entre eles e a tradição cristã.

5. Talvez não seja possível falar em textos distintos, porque, diante de

tudo que foi dito por Eli Brandão, tanto a obra de João Cabral de

Melo Neto quanto os evangelhos nos permitem desconfiar de que

se trata, na verdade, de um único texto, encontrado sob a ruína dos

vários apagamentos e reescrituras sofridos durante um longo

tempo. Entretanto, não nos arriscaríamos defender esta hipótese

aqui.

1.3.4. Deus no espelho das palavras

Estabelecer indicadores de questões de ordem metodológica no âmbito da

discussão teologia e literatura foi sem dúvida uma das preocupações da obra de

Antonio Magalhães, intitulada Deus no espelho das palavras. Buscando conferir

densidade à aproximação entre literatura e teologia, Magalhães inicia sua obra

tecendo uma afirmação de suma importância: “o cristianismo é uma religião do

livro.”118 Esta primeira postulação consiste, noutras palavras, em afirmar que o poder

de influência e de sobrevivência do cristianismo, através dos séculos, pode ser

118 Cf. Antonio MAGALHÃES, Deus no espelho das palavras, p. 5.

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tributado, em grande parte, aos efeitos que seus textos escritos imprimiram sobre a

civilização ocidental, tendo alguns desses textos alcançado o status de canônicos

(oficiais). Por exemplo, Antonio Magalhães afirma ainda que

A capacidade que o cristianismo teve de expandir seus valores éticos residiu em grande parte na força que as narrativas sobre esses valores tiveram ao serem contadas em diferentes culturas. Se o cristianismo tivesse iniciado em forma de uma rígida teologia moral, ele jamais teria alcançado os corações de diferentes pessoas e culturas [...]119

Esta afirmação traz também consigo alguns rastros do que será proposto

como “o estar” entre a teologia e a literatura. A característica de ser religião do livro

e, por isso, ser também literatura, é com certeza uma das mais importantes do

Ocidente, pois tal condição pôde evocar questões de ordem hermenêutica como

dimensão crítica ou de revisão da teologia cristã fossilizadora de temas e

experiências. Afirmamos que houve durante muito tempo, no interior da constituição

do imaginário religioso do Ocidente, um esquecimento da literatura dos poetas ou

escritores como forma de expressão ou da revelação de Deus e das experiências dos

seres humanos com Ele. A teologia cristã tradicional não percebeu que restringir a

possíve l revelação de Deus aos textos da Bíblia promoveria a imposição de limites às

novas interpretações, percepções ou experiências com o próprio Deus.

A partir de uma visão crítica daquilo que representa hoje o chamado diálogo

entre teologia e literatura, o teólogo brasileiro ressalta alguns aspectos que devemos

sempre considerar:

1. Magalhães acredita que há uma espécie de concorrência entre teologia e

literatura, entre religião e arte, entre estética literária e estética religiosa.

2. Esta atitude diante da teologia ratifica a necessidade de se criar critérios

diferenciados entre teologia e literatura. Se por um lado a teologia não

pode ser determinada na sua reflexão pelo campo literário, por outro lado

a literatura não pode estar sob quaisquer tipos de domínio eclesiástico.

3. A literatura não deve ser serva do dogma da Igreja para narrar princípios

considerados teologais, nem a teologia deve perder-se em tentar ser

somente narrativa religiosa.

119 Antonio MAGALHÃES, Deus no espelho das palavras, p. 182.

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4. A literatura deve manter-se como algo que pode refletir a complexidade

da existência humana.120

Um dos importantes momentos da obra Deus no espelho das palavras está

nas discussões em torno da leitura teológica da obra literária. Para Magalhães, esta é

a primeira grande possibilidade de aproximação entre teologia e literatura. Ele indica

dois pontos, cujo objetivo de cada um seria o de estabelecer possibilidades de leitura

teológica de uma obra literária.

1. Identificação e problematização dos temas que emergem na obra literária

como centrais, por meio de suas formas, seus estilos e suas interpretações.

Nesse processo de identificação, há o estudo atencioso das diversas

maneiras como os mesmos temas foram tratados pelo mesmo autor ou em

livros afins, no caso de pertencerem à mesma escola literária. Isso requer

do método teológico um conhecimento considerável não só da obra

escolhida como objeto material, mas também das tendências da escola à

qual o texto pode ser incluído. O texto literário é visto como amostra da

realidade humana e, como tal, não possui aparentemente consistência

teológica, mesmo que não seja negado o valor teológico que ele possui. 121

2. O segundo aspecto do método teológico pauta-se nos horizontes da

tradição considerada normativa, sem que isto implique uma distinção

entre teologia católica ou teologia protestante. Aqui a teologia estaria

obrigada a se engendrar numa linguagem viva e dinâmica, considerando

todos os elementos da fé estabelecida no passado. Outro ponto está no

olhar da teologia sobre a literatura como interpretação da realidade

humana. O primeiro aspecto nos garantiria uma espécie de revisão

teológica das verdades estabelecidas pela Igreja. No segundo, há uma

tentativa de transformação dos conteúdos que foram cristalizados pela

teologia normativa.122

120 Antonio MAGALHÃES, Deus no espelho das palavras, p. 46-47. 121 Antonio MAGALHÃES, Deus no espelho das palavras, p. 190. 122 Antonio Magalhães esclarece que tais propostas são caminhos possíveis para a relação entre teologia e literatura, porém questionáveis. Cf. Antonio MAGALHÃES, Deus no espelho das palavras, p. 192.

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Para Antonio Magalhães, o Deus que emerge dessa visão cristalizadora é

aquele que dá respostas via teologia normativa. Portanto, deixa de ser presença para

se tornar conceito, descarta o espelho onde o envelhecimento dos anos vai-se

tornando nítido e dando lugar ao retrato 3x4, em preto e branco, do sistema teológico

endurecido pelos jogos de poder institucional e pelas fabricações lingüísticas que a

tradição, do passado da história, quis eternizar para todos os seus amanhãs.123

Há uma importante advertência que devemos considerar ao submeter um

texto literário à leitura teológica. Em primeiro lugar, não podemos elevar os textos

literários ao lugar dos textos tradicionais da fé, pois estaríamos “forjando um

encontro marcado pela desigualdade, pois os textos bíblicos possuiriam mais

dignidade para confidenciar a revelação de Deus por terem sido os primeiros a dizer

as ações de Deus na história.”124 Tal dessimetria pode ocorrer se considerarmos, por

exemplo, que a revelação separa a ação de Deus de toda experiência humana, mesmo

aquelas resguardadas pelos textos dos poetas. Dessa forma, teríamos os textos

tradicionais da fé enquadrando as experiências humanas com Deus, enquanto que os

textos literários seriam apenas objetos de análises para verificar as repetições de tais

experiências condicionadas pela tradição teológica cristã normativa. Por outro lado,

não se deve também superpor os textos literários aos textos da fé como pressuposto

de desestabilização de uma tradição interpretativa. A tradição cristã de interpretação

dos textos bíblicos deve ser apenas um ponto de partida para uma reflexão teológica,

mas não o único. 125 Isto é um dado que não se deve jamais desprezar. Cabe aqui uma

longa citação de Antonio Magalhães sobre a articulação da linguagem poética

(literária) e suas associações com a questão revelacional:

A Bíblia é um poema e, como todo discurso poético, incluindo aqui a ficção narrativa, o lirismo e o ensaio, não se presta a uma análise do mundo dentro das categorias que comumente erigimos dentro da modernidade como mais adequadas para um real conhecimento do mundo. [...] A linguagem poética não deve ser confundida como mera balbúcie emotiva. Ao contrário, ela é a linguagem por excelência para questionar a mera descrição dos objetos como forma superior de relação do ser humano como o seu mundo e com seu Deus, isso porque nela estamos dentro do mundo, e não separado dele analiticamente; estamos dentro do mistério de Deus, e não separado pela distancia entre sujeito e objeto tão

123 Cf. Antonio MAGALHÃES, Deus no espelho das palavras, p. 192. 124 Cf. Antonio MAGALHÃES, Deus no espelho das palavras, p. 194. 125 Cf. Antonio MAGALHÃES, Deus no espelho das palavras, p. 194.

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característica da modernidade. Nisso reside, em grande parte, aquilo que chamamos de revelação, de nos vermos e reconhecermos dentro das coisas, Deus próximo com o gesto de amor, a palavra de misericórdia, o convite à justiça, a crítica à barbárie. Por um momento, sentimo-nos dentro do mistério de Deus, amor dos amores, sol que ilumina nossas vitais esperanças, força que impulsiona à vida, coragem que enfrenta todos os medos e temor que desequilibra toda segurança. Revelar é ter essa percepção de que aquilo que estava oculto pelas diversas formas de manipulação diária de nosso mundo torna-se agora descoberto, como outra e estranha palavra por ser tão próxima de nosso primordial enraizamento. Revelação, neste sentido, designa a emergência de um conceito de verdade diverso da verdade-adequação, regrada pelos critérios de verificação e de falsificação: um conceito de verdade-manifestação, no sentido de deixar ser o que se mostra. O que se mostra é cada vez a proposição de um mundo, de um mundo tal que eu possa projetar nele meus possíveis mais próprios. É nessa revelação que os textos se desdobram, se tornam, porque livres de seus autores (tendência da pesquisa textual genética), de seus primeiros destinatários (tendência da escola da redação) e do seu mundo ( tendência da escola das religiões comparadas, para se tornar um mundo descoberto, no qual desejo habitar.126

Das muitas particularidades que apresenta a obra de Antonio Magalhães,

queremos aqui ressaltar o que ele denomina de método da correspondência. O

método proposto por Antonio Magalhães pode ser inicialmente confrontado com o

chamado método da correlação127. Para ele, no método da correlação há uma

dinâmica pressuposta entre pergunta e resposta, enquanto que na correspondência

parte-se do princípio de que essa relação precisa ser radicalmente superada na

teologia e que precisamos encarar a possibilidade de propiciar um diálogo no qual,

seguindo o conceito de correspondência em matemática, a cada elemento de um

conjunto são associados um ou mais elementos de outro. Em suma:

Numa formulação mais voltada para o mundo da teologia, a cada elemento considerado da revelação na Bíblia e na tradição teológica, podem ser associados um ou mais na literatura mundial. A cada narrativa considerada compreensão da fé, há que se associar outra dentro da literatura. A cada forma de anúncio de uma verdade considerada fonte de fé, há que se associar outra na experiência das pessoas e nas interpretações literárias.128

126 Antonio MAGALHÃES, Deus no espelho das palavras, p. 203. 127 Sobre o método da correlação, cf. Paul TILLICH, Teologia Sistemática, p. 57-64. 128 Antonio MAGALHÃES, Deus no espelho das palavras, p. 205.

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No centro do método da correspondência129 destacaríamos o seu caráter

dialógico, pois a teologia não entra na relação de forma suprema e preserva-se a

alteridade da literatura. Mantém-se, portanto um “equilíbrio” entre tradição teológica

e literatura. Para Magalhães, abrir mão da Bíblia e da tradição seria ufanismo

literário e desconhecimento dos aspectos performativos da religião e da fé das

pessoas. Ao mantê- las como referenciais únicos de análise, aferição e juízo sobre as

vidas das pessoas estaríamos assumindo compromissos com o claustro teológico da

Igreja.”130 Portanto, a literatura dos poetas e escritores encarna-se no método da

correspondência como um terceiro elemento que, associado aos textos bíblicos e à

tradição teológica, se comporta como reagente imprescindível para a identificação de

novas experiências com Deus e releituras reflexivas da compreensão que a tradição

produziu em torno do cristianismo e suas expressões de fé. Como bem afirma

Magalhães: “A literatura assume papel importante, nesse particular, para a teologia,

porque preserva um quadro narrativo da experiência e da história humana.”131

1.3.5. Os escritores e as escrituras

Karl-Josef Kuschel, professor de Teologia da Cultura e Diálogo Inter-

religioso na Universidade de Tübingen, teve sua obra Vielleicht hält gott sich einige

Dichter...: Literarisch-theologische Portränts traduzida para a língua portuguesa em

1999. Destacaríamos o tratamento de cunho metodológico que Kuschel apresenta

para a aproximação entre teologia e literatura. Na parte final da tradução brasileira,

intitulada A caminho de uma teopoética, Kuschel procura estabelecer certas

comparações entre os chamados métodos confrontativo e correlativo. Antes de

promover as tensões entre os dois métodos mencionados, Kuschel ressalta que o

trabalho da teologia não é o de produzir experiências de fé, mas torná- las possíveis

hoje. A legitimidade da teologia – afirma Kuschel – só pode nascer por meio da

129 Antonio Magalhães estabelece uma distinção entre método da correspondência e modelo da realização. Para ele, não se deve reconhecer que na literatura há somente uma atualização ou realização de uma mensagem que se encontra codificada de forma mais religiosa na Bíblia. E, portanto, afirma: “não parto do princípio de que a dinâmica da relação se concentre entre significado do primeiro texto, no caso da Bíblia, e realização do segundo texto, no caso da literatura. Realizar não é bem aquilo que acontece nos textos bíblicos, mesmo pensando numa perspectiva messiânica. Um texto nunca é desdobramento de outro, ele é também sua ampliação ou redução. O evento Jesus Cristo não é mera realização da figura de Moisés, é sua correspondência.” Cf. Antonio MAGALHÃES, Deus no espelho das palavras, p. 206. 130 Cf. Antonio MAGALHÃES, Deus no espelho das palavras, p. 205. 131 Cf. Antonio MAGALHÃES , Deus no espelho das palavras p. 181.

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mensagem do Novo Testamento, que se fundamenta em Jesus de Nazaré, o

crucificado e ressuscitado e messias.132 Portanto:

A ‘criatividade’ da teologia cristã reside em perscrutar as experiências de Deus relatadas nos testemunhos originais em todas as suas dimensões, para então levá-las adiante de maneira criativa, de acordo com as diversas circunstâncias de época.133

A afirmação de Kuschel, de certa forma, é uma tentativa de blindagem da

revelação de Deus e da tradição teológica do discurso empreendido pela literatura

dos escritores e poetas, pois, para ele, não se pode negar a existência de um conflito

entre a arte e a religião, logo uma espécie de concorrência entre elas.134 Analisemos a

epígrafe retirada de um texto de Kurt Marti, que Kuschel traz na abertura do último

capítulo de Os escritores e as escrituras:

Talvez Deus mantenha alguns poetas à sua disposição (vejam que digo poetas!), para que o falar sobre Ele preserve a sacra irredutibilidade que sacerdotes e teólogos deixaram escapar de suas mãos.135

O que resta à teologia e a Deus depois de Nietzsche, Auschwitz e das

guerras? Embora esta não seja propriamente uma pergunta de Kuschel, não

deixaremos de registrá- la, porque o que defendemos nesta tese é a possibilidade de

ver renascer da literatura dos poetas e escritores as dimensões próprias das

experiências originariamente religiosas.

O método confrontativo busca, para Kuschel – na linha de Kirkegaard e de

Karl Barth – opor radicalmente as imperfeições da escritura literatura produzida pelo

ser humano à sagrada palavra de Deus. Cabe aqui retomar literalmente a

compreensão que Kuschel produz:

A teologia cristã poderá utilizar o método confrontativo e distanciar-se da religiosidade dos escritores e de seus produtos, a partir da posição de uma teologia antitética da revelação. Ela considerará a crítica feita pelos

132 Cf. Karl-Josef KUSCHEL, Os escritores e as escrituras, p. 218. 133 Cf. Karl-Josef KUSCHEL, Os escritores e as escrituras, p. 218. 134 As tensões entre arte e religião são aludidas por Kuschel na primeira parte de seu livro. Para o teólogo alemão, nos primeiros decênios do século XX, subsiste no imaginário dos escritores dessa época a necessidade de banir Deus do mundo para considerá-lo um péssimo princípio estilístico. Destacam-se nessa compreensão autores como Gottfried Benn e Bertold Brecht, por exemplo. Cf. Karl-Josef KUSCHEL, Os escritores e as escrituras, p. 14-22. 135 Epígrafe de abertura do Livro Os escritores e as escrituras de Karl-Josef Kuschel.

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escritores ao cristianismo algo deturpado por fatores individual-biográficos, as visões de mundo de cada um deles, ecléticas e a compreensão de religião que ai se apresenta, subjetivista. (...) Na melhor das hipóteses, permitirá que a religião dos escritores tenha alguma validade como um ‘negativo’, em contraste com o qual pode surgir de maneira ainda mais cabal a verdade da revelação divina em Jesus Cristo. As perguntas que uma teologia como essa propõe aos escritores são: A verdade do Deus único não terá sido preterida aqui, em favor das verdades dos poetas? A seriedade da vontade de Deus não terá sido ignorada, em favor do ludismo e da falta de seriedade dos poetas? A arte não terá se transformado no único instrumento de verdade? Deus não acaba por abandonado às experiências subjetivas do ser humano? Ou seja: a subjetividade e a estética modernas não terão vencido aqui a verdade eterna do Deus vivo? A experiência vem substituir a revelação? Não é o homem que se torna aqui a constante, e Deus a variável? A experiência vem substituir a revelação? A antropologia não substitui a teologia? E a estética, a transcendência?136

Em posição às características do método confrontativo está o método da

correlação, que foi ricamente desenvolvido por Paul Tillich.137 Para Kuschel, Paul

Tillich entendeu plenamente as condições para o estabelecimento de relações e

referências entre revelação e realidade humana. O método correlativo entende que as

respostas alocadas no evento da revelação só podem ter sentido pleno na medida em

que estiverem também em correlação com perguntas pertencentes ao todo da

existência humana.138 A teologia, diante da correlação, ofereceria uma análise da

situação humana decorrente das perguntas existenciais do próprio humano, como

também teria a tarefa de apontar que os mecanismos simbólicos da fé cristã são as

respostas para tais perguntas.139 Quando fizemos menção à Constituição Pastoral

Gaudium et spes, do Concilio Vaticano II, fazíamos também alusão ao esforço que

arte e a literatura promovem para entender a condição humana em um determino

momento histórico.

A teologia quando vista por este viés estará, para Kuschel, aberta para toda

crítica ao cristianismo por parte do discurso dos poetas e escritores, pois a literatura

será mais seriamente compreendida como instância reveladora de experiências

humanas autênticas. Haverá para a teologia a tarefa de ser também autocrítica de si

mesma, porque se colocará na frente de um espelho para se perguntar que

transformações precisa sofrer para responder mais adequadamente aos escritores,

136 Karl-Josef KUSCHEL, Os escritores e as escrituras, p. 218-219. 137 Cf. Paul TILLICH, Teologia sistemática, p. 57-64. 138 Cf. Karl-Josef KUSCHEL, Os escritores e as escritura , p. 219. 139 Cf. Paul TILLICH, Teologia sistemática, p. 57-64.

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mas também para responder às experiências humanas que ela (a teologia) – num

mundo em frangalhos como foi os primeiros decênios do século XX no caso da

Europa – não conseguia mais abarcar.

Sistematicamente, o método confrontativo reduz – para Kuschel – o diálogo

entre teologia e literatura a um conflito entre ideologia e verdade. Nele, a literatura

não poderia ser vista como forma não-teórica de conhecimento e acesso à verdade e

os poetas teriam seu discurso silenciado pelas inverdades que compõem seus textos.

Já o método da correlação, embora considerando sensivelmente os dados emanados

da cultura, impõe um jogo de perguntas e respostas. A debilidade que este método

aponta, na visão de Kuschel, é que ele não se dá conta de que as perguntas últimas do

ser humano não são suspensas pela revelação, mas formuladas pela própria

revelação.140 Diríamos que essas possíveis perguntas existenciais, da maneira como

Kuschel as entende, são na verdade condicionadas pela revelação.

Vendo-se diante de um impasse, Kuschel propõe o método da analogia

estrutural. Com esse método

[...] torna-se possível considerar seriamente também a experiência e interpretação literária em suas correspondências com a interpretação da realidade, mesmo quando a literatura não tem caráter cristão ou eclesiástico. E buscar correspondências não significa ‘cooptar’ o objeto analisado, apropriar-se dele. Pensar em termos de analogias estruturais significa justamente evitar que a interpretação literária da realidade seja cooptada como cristã, semi-cristã ou anonimamente cristã. Quem pensa estrutural-analogicamente é capaz de encontrar correspondências entre o que lhe é próprio e o que lhe é estranho. Quem pensa segundo esse método constata também o que é contraditório nas obras literárias em relação à interpretação cristã da realidade, ou seja, o que é estranho à experiência cristã de Deus. Pois justamente quem consegue reconhecer e aceitar o outro como outro, o estranho como estranho, torna-se capaz diante da contradição, capaz de protestar e de delinear uma alternativa. Só assim a relação entre teologia e literatura se transforma em uma relação de tensão, diálogo e disputa acerca da verdade.141

Para Kuschel, somente pensa em correspondências estruturais quem percebe a

tensão, a ligação e as contradições; ou seja, quando se consegue acentuar os traços

comuns, mas também sem vacilar no apontamento dos traços distintivos entre o

discurso da teologia cristã e dos escritores e poetas.

140 Cf. Karl-Josef KUSCHEL, Os escritores e as escrituras, p. 221. 141 Cf. Karl-Josef KUSCHEL, Os escritores e as escrituras, p. 222.

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Percebemos que Kuschel permanece, de forma sutil, reivindicando para a

teologia cristã o lugar de padrão para interpretação das experiências humanas com

Deus. Há um congelamento de uma determinada experiência cristã demarcadora de

todas as outras posteriores a ela. O que vence na observação teológica de Kuschel é o

fator da anterioridade. Basta dizer que, nas palavras dele, o que se objetiva (com a

analogia estrutural) é uma teologia que, estabelecendo determinados critérios

literários, possa produzir um discurso confiável do Deus cristão.142 No fundo,

Kuschel reconhece que, em última instância, no diálogo entre teologia e literatura o

que se deve ver é o aclaramento do mistério da existência humana. Por isso devemos

sempre nos perguntar: “Qual das duas vislumbrou-o mais fundo? Quem analisou os

abismos da existência humana de forma mais exata? Quem descreveu seu mistério de

forma mais adequada? Quem terá lançado o olhar mais isento por trás das máscaras,

papéis, e poses da existência dos homens e das mulheres? Quem levou o ser humano

a confrontar-se de maneira mais drástica consigo mesmo?”143

“Como disseram alguns de vossos poetas”. Eis as palavras do apóstolo Paulo

no Areópago. Para Kuschel, este trecho do livro dos Atos, capítulo 17, é o nexo

necessário entre a tradição bíblica e as artes. Esta é a única passagem no Novo

Testamento em que os poetas são mencionados. Kuschel, portanto, entende que a

existência de um nexo entre arte e religião deve ser respeitado por dois grandes

motivos. O primeiro vem da necessidade de jamais confundir a palavra de Deus com

a dos textos dos poetas e escritores, mesmo que a teologia leve a sério o discurso da

literatura para uma melhor compreensão do homem e Deus nos dias de hoje. O

segundo nasce do grito que deve ecoar quando a crítica teológica se tornar hostil para

com a arte e justificação para a imbecilidade que também serviu para afastá-las.144

Reportando-se a J. Roloff, Kuschel recupera a seguinte afirmação:

As palavras dos poetas ganham aqui a função de comprovação da Escritura! Da convergência entre as palavras dos poetas e a Palavra da Escritura, Lucas conclui que as primeiras também podem ser reconquistadas como testemunho normativo da verdade sobre Deus, o mundo e o ser humano, e de forma semelhante ao que se dá com a Palavra da Escritura. Lucas ainda desconhece quaisquer conceitos teológicos formalizados da revelação, e pode tomar as palavras dos poetas, sem qualquer prevenção, como testemunhos da unidade e da

142 Cf. Karl-Josef KUSCHEL, Os escritores e as escrituras, p. 223. (Grifo nosso) 143 Cf. Karl-Josef KUSCHEL, Os escritores e as escrituras, p. 228. 144 Cf. Karl-Josef KUSCHEL, Os escritores e as escrituras, p. 229.

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integridade da verdade em que Deus se fez comunicar a suas criaturas, os homens e as mulheres.145

Tomaremos por empréstimo uma questão de José Carlos Barcellos: será que

as tensões entre teologia e literatura, as correlações, os confrontos, as

correspondências e as hermenêuticas transtexto-discursivas não seriam tentativas de

escrever um capítulo que foi esquecido, tanto na história da teologia quanto na

história da literatura?

145 Karl-Josef KUSCHEL, Os escritores e as escrituras, p. 230. Cf. J. ROLOFF, Apostelgeschichte-Kommentar, p. 264, 1981.

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1.4. Tópicos de religião, antropologia literária e arte

Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões, não falaria em Deus nem no Pecado — muito menos no Anjo Rebelado

e os encantos das suas seduções,

não citaria santos e profetas: nada das suas celestiais promessas

ou das suas terríveis maldições... Se eu fosse um padre eu citaria os poetas.

Rezaria seus versos, os mais belos,

desses que desde a infância me embalaram e quem me dera que alguns fossem meus!

Porque a poesia purifica a alma

...e um belo poema — ainda que de Deus se aparte — um belo poema sempre leva a Deus!

Mário Quintana

A busca pela identificação dos aspectos religiosos da cultura é

comprometidamente devedora dos esforços de Paul Tillich. O otimismo de Paul

Tillich recaía sobre a possibilidade da percepção do(s) elemento(s) revelador(es) de

uma substância espiritual que fosse capaz de indicar, a partir da cultura e de suas

múltiplas expressões, algo incondicional e sagrado, mesmo que sua interpretação da

realidade estivesse confrontada com um ambiente claramente desteificado tal como

os primeiros decênios do século XX.146 O empenho de Paul Tillich em construir uma

análise do dado religioso na cultura considera, portanto, como ele mesmo aponta, o

desaparecimento da fenda que supostamente separa o sagrado do secular.147

No pensamento de Paul Tillich, a percepção de que a cultura encontra-se

impregnada de um conteúdo que assume um sentido incondicional, sagrado ou

absoluto pode ser manifestamente revelada através das artes. A noção tillichiana de

teonomia seria responsável pela estrita relação entre a revelação de conteúdos

146 Kandinsky faz o seguinte comentário crítico em sua obra de 1910, intitulada Do espiritual na arte: “Nessas épocas mudas e cegas, os homens atribuem um valor especial e exclusivo aos êxitos exteriores. Apenas os bens materiais têm importância; cada progresso técnico que só serve e só pode servir ao corpo é saudado como uma vitória. As forças puramente espirituais passam despercebidas.” Cf. KANDINSKY, Do espiritual na arte, p. 37. 147 Cf. Paul TILLICH, Teología de la cultura y otros ensayos, p. 45.

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religiosos e cultura. No interior da cultura, tal responsabilidade pode recair sobre as

manifestações artísticas. O que Tillich chama de cultura teônoma tem a ver com o

sentido transcendente expresso e que se encontra presente em determinados

elementos da cultura, pelo fato mesmo de tal sentido ser o fundamento da cultura.

Portanto, a revelação do sentido incondicional de uma manifestação artística não

poderá se comportar como um corpo estranho no interior de uma cultura teônoma,

pois para Tillich a religião é a substância da cultura e a cultura a forma mesma da

religião, que por seu turno se manifesta através de múltiplas expressões como nas

artes.

Religión, como preocupación última, es la sustancia que confiere significado a la cultura, y esta es la totalidad de las formas em que se expresa la preocupación fundamental que constituye la religión. Em resumen: la religión es el contenido de la cultura, y la cultura es la forma de la religion.148

A importância de se reconhecer a dimensão teônoma da cultura pode ser

atribuída ao evento da secularização e pela conseqüente perda dos referenciais

transcendentes da vida que tal advento provocou. Paul Tillich analisava a fragilidade

do mundo ocidental salvaguardando, porém, uma compreensão teônoma da cultura e

conseqüentemente de suas expressões artísticas, tanto que via, nos movimentos

expressionista e surrealista, com suas aparentes representações de um real

desmaterializado, a manifestação de certa base religiosa relacionada a uma rebelião

que se produzia a partir do lado vital humano e que fazia oposição ao idealismo

burguês (na arte e na literatura).149 Uma análise teônoma da cultura identificava, sem

fazer qualquer referência à religião organizada, o elemento religioso oculto nesses

movimentos que eram cons iderados anti-religiosos e anticristãos. Para Tillich, “em

todos esses movimentos havia certa preocupação suprema, incondicional, decisiva,

absolutamente séria e, portanto, sagrada, mesmo ao se expressar por meio de termos

puramente seculares.”150 Uma observação de Kandisnky serve de complemento ao

apontamento de Paul Tillich quando aquele afirma que a religião, a ciência e a moral

são abaladas pela rude mão de Nietzsche e, quando os apoios externos que

sustentavam tais dimensões ensaiam desmoronar, o homem passa a desviar seu olhar

148 Paul TILLICH, Teologia de la cultura y otros ensayos, p. 45. 149 Cf. Paul TILLICH, A era protestante, p. 86. 150 Cf. Paul TILLICH, A era protestante, p. 86.

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das contingências exteriores para si mesmo e que as principais conseqüências dessa

movimentação são assimiladas pela literatura, pela música e pela arte. Embora tais

manifestações refletissem uma grande escuridão que se anunciava, deixavam por

outro lado pressentir certa grandeza e desviavam-se, naquela época, do conteúdo sem

alma da vida presente.151 Talvez seja essa a constatação que Kandinsky encontra para

o esvaziamento de um conteúdo presentificador daquilo que ele chama de espiritual

na arte, ao afirmar que o objeto material que a arte busca deve ser o próprio conteúdo

da arte, sua essência, sua alma, sem a(s) qual(is) os meios que a servem nunca serão

mais do que órgãos lânguidos e inúteis. Esse conteúdo, afirma Kandinsky, só a arte

pode captá- lo e exprimi- lo claramente com os meios que lhe pertencem.152

A experiência de um vácuo afirmou-se como uma necessidade eminente de

perguntar em que dimensão da realidade encontrava-se uma porta para uma

experiência com o incondicional. Tillich argumentou que pouca coisa restava à

civilização ocidental que não representasse a presença de um vazio. Mesmo uma

teologia da cultura apontava, com base na maioria das expressões culturais, uma

experiência do fim e um de profundo abismo. Contudo, as experiências radicais do

vazio e de um mundo desmaterializado municiam-se de um poder que habita,

segundo Tillich, num fundamento mais profundo que a própria cultura. Tal

fundamento é a profundidade de uma preocupação suprema. Mesmo dentro de num

quadro em que se experimenta o vazio, as manifestações artísticas conseguem,

através da criação, expressar o que Tillich chama de vazio sagrado. Uma afirmação

deve, portanto, ser apresentada: a experiência do fim, do vazio e de tudo que

representa determinados estados de dissolução da concretude da vida não afetam,

para Paul Tillich, a idéia de teonomia.153

A compreensão tillichiana de que a cultura é originalmente teonoma desfaz

também a caduca tentativa de situar a religião numa única dimensão do espírito

humano ou como uma das funções dele. Parece-nos, de maneira muito clara, que

Tillich recusa a idéia de enquadrar a religião em uma dimensão isolada do espírito

humano como a moral e a estética, por exemplo. Diante de um mundo em franco

processo de desteificação, como aquele que se revelava para Tillich durante as

primeiras décadas do século XX, cabe, portanto, e assim cremos, uma pergunta pela

151 Cf. KANDINSKY, Do espiritual na arte, p. 45. 152 Cf. KANDINSKY, Do espiritual na arte, p. 38. 153 Cf. Paul TILLICH, A era protestante, p. 88.

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religião, que para ele não poderia ser uma função ou estar apenas numa dimensão do

espírito, porque a religião “no es una función especial de la vida espiritual del

hombre, sino la dimensión de la profundidad en todas sus funciones.”154 Essa

compreensão sustenta a metáfora que faz existir, no nível do sentido, uma

comparação eqüitativa entre o que o próprio Tillich chamou de Realidade Última e o

que também nomeou de Incondicional. Como afirma Etienne Higuet,

esse sentido – aquele que expressa a incondicionalidade por meio de símbolos e mitos presentes nas manifestações artísticas ou por meio dos dogmas da própria teologia , não pode ser apreendido por uma análise objetiva e científica: só é acessível a uma ‘percepção ou intuição imaginativa’ e pressupõe uma atitude de participação pessoal e existencial no Fundamento do Sentido, que é ao mesmo tempo a Realidade Última.155

A estética, por meio de suas expressões, conseguiria presentificar o

Incondicional mesmo que seu desejo não fosse o de mantê- lo sob seu domínio. A

experiência estética revelaria o Incondicional através do impacto que a obra de arte,

por exemplo, provoca sobre o sujeito. Ao apontar para o abismo que separa o ser

humano de sua Realidade Última, as expressões artísticas apontariam também para o

senso de finitude, traço característico da condição humana, e também para

possibilidade transcendê- lo. Portanto, a arte seria portadora da propriedade de nos

impressionar e de nos fazer conscientes de algo (que pode ser o Incondicional ou o

que Tillich chama de Realidade Última) que, de outra forma, não seríamos capazes

de atingir.156 Por isso o próprio movimento expressionista foi muito caro a Paul

Tillich não porque se configurava como uma degenerada expressão artística, mas

porque era portador de elementos que, através da desfiguração da superfície do real,

representavam a restauração do poder do simbólico e a busca pelo fundamento da

realidade, num momento específico e historicamente construído.157 Seria a religião,

por meio das expressões criativas do ser humano, o estado em que o ser humano

passaria ser tomado por algo incondicional, sagrado e absoluto, em suma, sua

preocupação última. A religião, se vista pelas lentes tillichianas, deixaria de ser um

154 Cf. Paul TILLICH, Teología de la cultura y otros ensayos, p. 15. 155 Cf. Etienne HIGUET, A atualidade da teologia da cultura de Paul Tillich, Revista Eclesiástica Brasileira , nº. 213. Petrópolis, ITF, 1994, p. 52. 156 Cf. Carlos Eduardo B. CALVANI, Teologia e MPB, p. 80. 157 Cf. Paul TILLCH, A era protestante, p. 96.

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lugar de enraizamento de sistemas simbólicos rígidos ou de ritos para se tornar o

espaço mesmo de nossa preocupação suprema.158 Como afirma Paul Tillich:

La religión es la dimensión de la profundidad en todas ellas, es el aspecto de la profundidad en la totalidad del espíritu humano [...] En el sentido más amplio y fundamental del término, religión es preocupação última. Y la preocupación última se manifiesta en absolutamente todas las funciones creativas del espíritu humano.159

As reflexões de Paul Tillich nos deixam várias portas abertas para a

identificação dos aspectos religiosos particulares à literatura de Machado de Assis,

embora privilegiasse, em suas análises, as artes plásticas. Cabe-nos a tarefa de

entender a dinâmica interna da presença do aspecto religioso e a forma pela qual se

traveste, se metamorfoseia, se deixa representar ou se expressa na estética

machadiana.

Determinadas manifestações artísticas dos séculos XIX e XX recriaram de

maneira peculiar as aspirações e os desejos mais profundos de um ser humano que

permitiu ser retratado ou criado artisticamente pela literatura, isto porque a

imaginação do artista não inventa arbitrariamente as formas das coisas; ela nos

mostra estas formas em sua verdadeira imagem, fazendo-as visíveis e

reconhecíveis.160 A insistência da imagem humana na literatura nos encaminha,

como sugere Antonio Blanch, para a formação de uma antropologia literária. Uma

antropologia que é construída pela capacidade criativa e enunciadora que a literatura

tem quando projeta artisticamente determinadas imagens humanas. O estudo

apresentado por Antonio Blanch em sua obra El hombre imaginario trouxe uma

importante contribuição ao processo de sistematização de certos temas presentes na

literatura ocidental, pois entender a literatura para além dos seus aspectos formais e

estruturais significa também acentuar o seu conteúdo, sua intencionalidade e

principalmente seu campo de significação. Isto porque:

[...] la literatura ha ejercido en la cultura de todos los pueblos y de todas las épocas la función primordial de traducir simbólicamente las experiencias, más o menos profundas, del individuo humano, con la evidente intención de comunicarlas a los demás.161

158 Cf. Paul TILLICH, A era protestande, p. 87. 159 Paul TILLICH, Teología de la cultura y otros ensayos, p. 16-17. 160 Cf. Ernst CASSIRER, Antropología filosófica, p. 218. 161 Cf. Antonio BLANCH, El hombre imaginario , p. 9-10.

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A idéia de construção de uma antropologia literária nos serve, portanto, como

abertura para a compreensão de uma das múltiplas faces do humano e de suas

experiências de maior profundidade. Experiências que podem ser interpretadas como

de natureza religiosa. Diante do que Antonio Blanch chamaria de forças de coesão da

literatura e, em nosso caso, tal coesão dar-se- ia através da presença de certa imagem

do ser humano na literatura machadiana, destacaríamos as que apontam para o

aspecto que demarca a incondicionalidade da vida do humano no espaço ficcional.

Sem dúvida, o desejo de viver, por exemplo, apresenta-se como um traço da imagem

humana que se metamorfoseia em muitas outras expressões notadamente humanas e

que podem perfeitamente ser interpretadas como expressões incondicionais no

sentido tillichiano. Portanto, tais experiências podem ser relacionadas aos humanos

criados artisticamente como experiências fundamentais. Assim, podemos entender

que a literatura é, de algum modo, o lugar de sobrevivência de determinadas

experiências relacionadas à existência humana. Neste locus de sobrevivência residem

certamente múltiplas formas de experiência religiosa. A literatura e tantas outras

manifestações artísticas têm conservado para cada época histórica um maravilhoso

arcabouço de imagens e representações que correspondem aos mais genuínos desejos

e temores do ser humano.162 Uma advertência, porém, deve ser considerada: não

podemos correr o risco de ver a imagem do ser humano atomizada, já que, durante a

idade moderna, as representação estéticas incumbiram-se de apresentar importantes e

incontáveis faces do enigma humano; todavia temos de reconhecer que tais

representações, mesmo que múltiplas, não são reproduções de uma realidade dada.

Constituem uma das vias que nos conduzem a uma visão mais objetiva das coisas, do

nosso entorno e principalmente da vida humana. Trata-se, pois, não de uma imitação,

mas de uma forma de desvelamento de uma realidade.163 Por isso, entendemos que as

manifestações artísticas – as que chamaríamos de mais “autênticas” – renunciam ao

simples caminho de emulação da realidade dada para assumir um processo de

recriação e de interpretação dessa mesma realidade, o que gera, conseqüentemente, a

revelação de uma outra realidade. Por exemplo, engana-se artisticamente ou não verá

a obra de arte, afirma Ortega y Gasset, quem procura comover-se com os destinos de

João e Maria. A questão subjacente é que só pode se comover com a desgraça

162 Cf. Antonio BLANCH, El hombre imaginario , p. 27. 163 Cf. Ernst CASSIRER, Antropología filosófica, p. 213-214.

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humana presente na literatura ou, por exemplo, com os destinos das persona gens dos

irmãos Grimm, enquanto expressão artística, quem a toma como realidade. Todavia,

a arte ou o objeto artístico só poderá ser artístico na medida em que não for

totalmente real.164 Construir algo que não seja cópia do “natural” e que, não obstante,

possua alguma substantividade, implica, segundo Ortega y Gasset, o dom mais

sublime.165 Poderíamos dizer, na esteira de Ernst Cassirer, que as expressões

artísticas podem ser também uma intensificação da realidade. Paul Tillich entende

que a intenção de encontrar a verdade deve ser apenas um elemento na função

estética da arte e a intenção principal deve ser a de expressar qualidades do ser que

podem ser captadas somente pela criatividade artística. O conflito que é

brilhantemente problematizado por Tillich e que também retoma o ponto de vista de

Ortega y Gasset tem a ver com o que é autenticamente artístico. Para Tillich, poder-

se-ia falar da verdade ou inverdade artística. Todavia, entendia ser melhor falar da

autenticidade da forma expressiva ou de sua inautenticidade. A arte, segundo Tillich,

pode ser inautêntica porque copia a superfície em vez de expressar a sua

profundidade; ou porque expressa a subjetividade do artista criador em vez de

expressar seu encontro artístico com a realidade; e autêntica quando expressa o

encontro da mente e mundo no qual uma qualidade, de outra forma escondida de uma

porção do universo (e implicitamente do próprio universo), está unida ao poder

receptivo doutro modo escondido (e implicitamente da pessoa como um todo). 166

Por isso, o olhar que vamos perspectivar sobre a literatura machadiana não

deve se manter necessariamente em torno dos aspectos que a tornam impecavelmente

verossímil; todavia, devemos mantê-lo sobre os aspectos que dão à estética de

Machado de Assis determinada força de coesão temática para que se consiga,

portanto, encontrar um caminho até as particularidades de natureza religiosa, que

certamente não estão à primeira vista na superfície do texto. Um elemento, portanto,

representaria de maneira modelar as expressões humanas construídas artisticamente

no espaço literário de Machado de Assis. Este elemento, inicialmente suspeitamos,

manifesta-se como um desejo fundamental, que por sua vez se revela sob a forma de

um árduo desejo de viver, de ser e de permanecer, em oposição à possível condição

existencial de não-ser.

164 Cf. José ORTEGA Y GASSET, A desumanização da arte, p. 27. 165 Cf. José ORTEGA Y GASSET, A desumanização da arte, p. 43. 166 Paul TILLICH, Teologia sistemática, p. 434.

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A tentativa de Blanch de mapear a imagem humana dentro do espaço literário

do mundo moderno – e aqui por nossa conta incluímos o legado machadiano – fez

com que entendêssemos que a expressão artística deste momento não estava mais

preocupada em representar somente os ideais ou os desejos de auto-realização do ser

humano, todavia expressava de maneira contundente as fatalidades da idéia de

progresso em todas as suas dimensões (ciência, política, economia, religião etc.).

Este mesmo espaço literário também dá lugar a um tipo de “herói” que tentou

separar-se das leis da moral burguesa, elegendo-se a si mesmo como lugar de

desenvolvimento dos valores da própria consciência individual frente a uma

sociedade inautêntica e negadora do humano.167 Esta imagem humana poderia ser

bem representada, segundo Antonio Blanch, pelas personagens de Nietzsche

(Zaratustra, Dionísio e o Super-homem) e as suas evidentes exaltações das

expressões vitais. Há uma outra imagem humana representada no espaço literário

que é a do desencanto. A imagem do ser humano triste e degradado é uma imagem

da época pós-romântica. O precursor deste movimento, que faz desta imagem

humana uma imagem possível na literatura do século XIX, é Charles Baudelaire.

Él fue, en efecto, uno de los en acusar en su alma el desencanto ante el progreso material del siglo, que generaba una alarmante decadencia espiritual y um triste embotamiento de aquella sensibilidad y de aquellas vivencias primarias del individuo, que el romantismo había restaurado con tanto vigor.168

Para Baudelaire, o herói seria o homem da multidão, o homem-massa,

marginalizado pelo progresso e por ele inativo e derrotado. As personagens de

Baudelaire assumiram a forma do homem desfigurado pela vida cosmopolita. A

literatura de Baudelaire apresentava conteúdo desencantado, porém com uma ênfase

em sua forma sedutora. A beleza estética transforma-se, num espaço sem Deus, no

lugar de onde se podia esperar a salvação do indivíduo. Podemos dizer que a vida das

personagens de Baudelaire se mantém presentificada num espaço de profunda

desteificação ao apresentar, por meio de sua miséria espiritual e desapego moral, a

imagem de um ser humano enraizado na volatilidade do mundo. O poema em prosa

de Baudelaire, intitulado A perda da auréola, certamente consegue dizer mais que

nossa breve apreciação. 167 Cf. Antonio BLANCH, El hombre imaginario, p. 114. 168 Antonio BLANCH, El hombre imaginario., p. 115-116.

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‘O quê! Você aqui, meu caro? Você, num lugar desses! Você bebedor de quintessências!, O comedor de ambrosia! Francamente, é de surpreender.’ ‘Meu caro, bem conhece o pavor que tenho dos cavalos e dos coches. Agora há pouco, quando atravessava apressado o bulevar, saltando sobre a lama, através desse caos movente em que a morte chega a galope, por todos os lados ao mesmo tempo, minha auréola, num movimento brusco, escorregou de minha cabeça para o lodo do macadame. Não tive coragem de apanhá-la. Julguei menos desagradável perder minhas insígnias do que quebrar os ossos. E depois pensei cá comigo, há males que vêm para bem. Agora posso passear incógnito, praticar ações baixas, entregar-me à devassidão como os simples mortais. E aqui estou eu, igualzinho a você, como pode ver.’ ‘Deveria ao menos dar parte do desaparecimento dessa auréola, comunicar o ocorrido ao comissário.’ ‘Ah, não. Me sinto bem. Só você me reconheceu. Aliás, a dignidade me aborrece. Depois, penso com alegria que algum poeta medíocre vai achá-la e com ela, impudentemente, se cobrir. Fazer alguém feliz, que prazer! E principalmente um felizardo que faça rir! Pense em X ou Z! Hein? Como vai ser engraçado!’169

Ao lado do desencantamento das personagens de Baudelaire e da

desumanização das personagens de Beckett frente a um mundo colapsado daríamos

ressalto à imagem do homem de expressão dionisíaca e a do homem do absoluto,

como os conceitua Antonio Blanch. O homem de expressão dionisíaca surge, para

Blanch, num cenário onde as coordenadas culturais recaíam sobre as múltiplas

formas de repressão sexual, sobre o processo de industrialização do mundo e sobre o

esgotamento do racionalismo.170 Como já dissemos, Nietzsche é o grande

representante desta importante corrente cultural que fez renascer a liberdade artística

diante de tantos processos repressores. A criação de humanos portadores de energias

vitais e poderes sobre-humanos foi uma das principais contribuições de Nietzsche à

imagem vitalista do homem.

Capturar a imagem do homem absoluto significa compreender que o ser

humano, de algum modo e em algum momento de sua vida, deixa-se mover em

direção à indefinível presença ou ausência de algo que o transcende.171 O homem

absoluto – já que as investigações de Blanch vão em direção à construção de uma

antropologia literária – aparece na história da literatura carregando consigo a

polivalência do próprio termo absoluto. Algumas imagens deste traçado

169 Charles BAUDELAIRE, O spleen de Paris, p. 137-138. 170 Cf. Antonio BLANCH, El hombre imaginario , p. 190. 171 Cf. Antonio BLANCH, El hombre imaginario , p. 409.

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antropológico criado por vários escritores remetem Blanch à percepção daquilo que

chama de absoluto. Em linhas gerais, por absoluto, em efeito, segundo Blanch,

podemos entender como o ilimitado, tanto no tempo (o eterno) como no espaço (o

infinito).172 Muitos artistas explicitamente religiosos expressaram a dimensão

absoluta de suas personagens a partir de uma realidade supranatural. Outros

escritores, de maneira muito particular, expressaram o absoluto através da

perplexidade de viver entre a nostalgia e o pressentimento de uma possível presença

do absoluto ou ainda através do temor de um vazio total. 173 Esta imagem humana

presente no espaço artístico de alguns escritores revela uma particularidade do nosso

espírito humano que pode ser encontrada na relação entre ser e não-ser. Na galeria de

tais escritores, estaria, notadamente, Rilke. Determinados aspectos da literatura de

Rilke conseguem mostrar que o ser humano, desde sua solidão e seu abandono

existencial, experimenta uma profunda tensão entre a realidade visível (insatisfatória)

e o interior invisível. Daí surge a necessidade de transformar a primeira realidade.

Uma análise bem atenta da literatura de Rilke perceberá uma espécie de ruptura, que

vai da exaltação à função e à orientação que Deus tinha de forma bem definida para o

ser humano até à supressão total da palavra Deus em seu espaço poético.174

Entretanto, o desaparecimento das referências a Deus problematizam ou escondem

de maneira sutil a questão religiosa subjacente aos seus poemas. O absoluto no

espaço literário de Rilke, afirma Blanch, é de todo imanente à existência; é a forma

pela qual a existência se intensifica e se plenifica.175 Tal imanência do absoluto pode

ser vista nitidamente no fragmento abaixo:

‘Eu agradeço, mas vou ficar em meu leito, vou tirar proveito

deste mundo aqui’176 As Elegias de Duíno parecem também, de alguma maneira, reverenciar a

permanência do homem na efemeridade desse mundo. Há na VII Elegia uma

172 Cf. Antonio BLANCH, El hombre imaginario., p. 414. 173 Cf. Antonio BLANCH, El hombre imaginario , p. 421. 174 Ver o excelente trabalho de análise elaborado por Karl-Josef Kuschel. Karl-Josef KUSCHEL, Rainer Maria Rilke e as metamorfoses da essência religiosa. In. Os escritores e as escrituras: retratos teológico-literários. São Paulo: Edições Loyola, 1999. 175 Cf. Antonio BLANCH, El hombre imaginario , p. 422-423. 176 Cf. Karl-Josef KUSCHEL, Os escritores e as escrituras, p. 70.

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evidente resposta a certo tipo redenção e ao mesmo tempo há a celebração de uma

vida ancorada na imanência:

[...] Não, não acrediteis que o Destino seja mais do que a infância e do que ela contém; quantas vezes o amado ultrapassastes, ofegando, ofegando após a corrida venturosa, sem outro fim que o livre espaço. Estar aqui é esplendor. E vós sabíeis, ó jovens, e também vós, decaídas de aparências indigente, vós, ulceradas em ruas miseráveis, abertas ao abandono.177

A sétima elegia não desaprova a pertinência da revelação de Jesus Cristo

como salvador da humanidade. Entretanto, reconhece que o estar aqui é uma espécie

de resposta à condição trágica do ser humano e que pode haver uma via para a

compreensão do homem no mundo que esteja além da concepção cristã de salvação.

A resposta à preocupação última do ser humano vem da diluição de um porvir e da

emergência de uma imanência radical: “Não, não acrediteis que o Destino seja mais

do que a infância [...]”. As representações da experiência do absoluto que não

estejam alinhadas aos pressupostos da teologia cristã (ao mistério) não devem ser

simplesmente consideradas como pretexto para o esvaziamento da mensagem cristã.

Talvez a própria revelação de Deus ultrapasse em extensão e magnitude a maneira

pela qual a teologia quis entendê- la e cristalizá- la. Erram os que entendem que as

experiências em nível incondicional só podem emergir nos esquadros eclesiais, que

por sua vez são retro-alimentados por uma teologia da Igreja condicionadora. Há um

fragmento no Livro da vida monástica, de Rilke, que expressa de forma literária o

que afirmamos agora, o que significa também uma compreensão muito particular de

Deus.

Não queres brigar com toda astúcia Nem queres buscar o amor da luz; pois não te despertam qualquer atenção os cristãos. E nada de igrejas que circunscrevam a Deus como um refugiado, e que lamuriem ao ouvido seu como animais feridos e presos –

177 RILKE, As elegias de Duíno, p. 67 (VII Elegia). Romano Guardini afirma que em Rilke há, em sua última fase, uma intensa vontade de abolir toda referência transcendente da revelação para dar à existência do ser humano um fundamento exclusivamente terreno. Cf. Romano GUARDINI, O fim da idade moderna , p. 85.

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as casas dão a todos boas-vindas mas um sentimento de sacrifíc io sem fim trafega em mim, em ti, no que fazemos. Nada de esperar o além, lançar o olhar adiante; Apenas o desejo, ante a morte, de não a profanar, e de manter-se solícito nesse mundo, e atuante, para não ser mais novo às mãos dela quando lá [...]178

(I, 329)

Paul Tillich também criticou duramente o protestantismo quando este, de

certa forma, transformou Deus em uma pessoa ao desprezar os elementos não

pessoais presentes no ser humano, como a mística e o lado vital, em razão da

consciência. Certo excesso de racionalismo, assim como a restrição de outras

representações e manifestações de Deus fizeram com que o próprio Deus se

transformasse numa pessoa, embora com uma personalidade autônoma ao lado de

outras personalidades, excedendo-as apenas em poder e valor.179 O que Tillich

criticou foi o desaparecimento da dimensão simbólica de onde Deus emerge, dentro

da tradição cristã, como Realidade Última. Queremos afirmar que é necessário

pensar que as experiências com Deus podem ultrapassar os fatores fundacionais das

experiências religiosas apresentadas e construídas pela tradição cristã. De certa forma

é isto que a literatura de Rilke afirma ao dizer: “E nada de igrejas que circunscrevam

a Deus [...]”.

A pretensão de apontar com tamanha densidade as imagens humanas que

surgiram nas obras literárias de diversos autores do mundo ocidental certamente não

dá conta de dizer o todo que o ser humano representa; em outras palavras, sabemos

que não é possível traçar uma imagem unívoca e verdadeira do ser humano (homem

ou mulher). A verdade que existe nesta odisséia é que este ser humano, exposto no

interior de mais de vinte séculos de história da literatura, permitiu que fosse

fotografado pelas mãos de escritores e poetas.

Embora Antonio Blanch tenha omitido de suas análises os textos literários da

Bíblia, não nos parece haver problemas em perceber que a presença de uma

experiência religiosa num texto literário ou considerado sagrado não se limita à

178 Para Karl-Josef Kuschel este poema representa uma fase de Rilke cuja estética revelava uma evidente vontade de recuperação do discurso sobre Deus por meio da literatura. Depois do despovoamento do céu através da recepção da morte de Deus como Nietzsche a preconizou, Kuschel compreendeu que esta fase de Rilke buscava, sobretudo, uma acomodação da realidade Deus, mesmo que debaixo de certas restrições, no âmbito da literatura. Cf. Karl-Josef KUSCHEL, Os escritores e as escrituras, p. 95. 179 Cf. Paul TILLICH, A era protestante, p. 90-91.

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reprodução sistemática das experiências que as personagens que compõem esses

textos realizaram. Há nos textos sagrados imagens singulares que revelam muitos

aspectos do ser humano literariamente construído. Talvez o diagnóstico mais preciso

dessa omissão apenas nos revele com alguma verdade o distanciamento existente,

talvez agora mais evidente, entre literatura sagrada e a dos escritores e poetas.

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CAPÍTULO II

EXPERIÊNCIA RELIGIOSA E A LITERATURA MACHADIANA

“[...] Digo te que tens uma raiz de má erva no coração; esta é a cruel verdade [...]

A poesia trágica pode fazer do assunto uma ação teatral; mas o que a moral e a religião reprovam,

não deve achar guarida na alma de um homem honesto e cristão.”

Pe. Melchior

2.1. Recepção da antropologia machadiana

Já não podemos mais falar de maneira tão simples em determinação de temas

religiosos na literatura por entender, depois do que já foi exposto, que há elementos

muito complexos que justificam uma interpretação da(s) expressão(ões) religiosa(s)

de um ou num texto literário. O exemplo mais próximo do que estamos afirmando é

a própria estética de Paul Tillich. Cremos, antes de tudo, que a busca pelo religioso e

de suas múltiplas configurações de manifestação no espaço das expressões artísticas

são, antes de qualquer análise, devedoras de uma perspectiva hermenêutica, mas não

estritamente. Não queremos com essa afirmação subtrair o que foi possível

compreendermos da estética de Paul Tillich. Queremos dizer que a dimensão

religiosa subjacente às expressões artísticas podem não prescindir ao apelo por um

processo interpretativo que eleve à superfície da realidade o que antes só poderia ser

percebido pela intuição. Trata-se, em outras palavras, de uma questão de óptica. Para

ver o que desejamos enxergar, levados inicialmente ao objeto de análise pela

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intuição, é necessário a acomodação da nossa visão por meio de processos

interpretativos.180 É necessário mirar.

Realizamos nossa primeira aproximação do texto machadiano por meio do

romance Dom Casmurro, obra de 1899, com a elaboração do texto intitulado Fuga

da promessa e nostalgia do divino. Já que nosso atual interesse em torno da obra

machadiana é o de explicitar a evidência de uma autêntica experiência religiosa

advinda mais propriamente da antropologia do romance Memórias Póstumas de Brás

Cubas, talvez antes disso, nos caibam duas tarefas, a saber: 1. apresentar algumas

críticas a partir de certos trabalhos sistemáticos que se apropriaram do texto

machadiano como campo de reflexão. 2. apresentar os nossos pressupostos de

investigação, que se iniciam nas obras da primeira fase culminando no romance

Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) e que suspeitam da existência da

manifestação de uma experiência religiosa do ponto de vista da antropologia

machadiana.

Comecemos por um trabalho de 1939. A obra de Bressane Araújo, Os

aspectos religiosos na obra de Machado de Assis, foi publicada por ocasião do

centenário do nascimento de Machado de Assis, como primeira tentativa de analisar

as questões religiosas na literatura machadiana. A tentativa de Bressane Araujo de

desvendar o mistério da religião na obra de Machado de Assis foi construída com

base em inúmeros recortes biográficos do autor de Brás Cubas. Fazer coincidir a

biografia de um autor com os temas e questões que emergem de sua literatura talvez

seja um fator comprometedor da revelação de uma determinada expressão artística

como obra de arte. No primeiro capítulo, intitulado Na sacristia, nasce a afirmação

da filiação religiosa de Machado de Assis desde os tempos de menino. Para Bressane

Araújo, Machado de Assis teve por preceptor o padre-mestre Silveira Sarmento. O

poema de 1858, intitulado A morte no calvário, e publicado na semana santa em

homenagem ao padre Sarmento, dá a Bressane Araújo a primeira resposta sobre a

religião em Machado. A publicação do poema é acompanhada da seguinte

dedicatória: “Ao meu amigo o padre Silveira Sarmento”. A dedicatória por sua vez é

acompanhada da expressão latina Consummatum est!

Ei-lo vai sobre o alto do calvário Morrer piedoso e calmo numa cruz!

180 Cf. José ORTEGA Y GASSET, A desumanização da arte, p. 27.

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Povos! Naquele fúnebre sudário Envolto vai um sol de eterna luz. Ali toda descansa a humanidade. É o seu salvador, o seu Moisés! Aquela cruz é o sol da liberdade, Ante o qual são iguais povos e reis!

Povos, olhai! – As fachas mortuárias São-lhe os louros, as palmas, e os troféus! Povos, olhai! – As púrpuras cesáreas Valem acaso em face o Homem-Deus?

Vêde! Mana-lhe o sangue das feridas Como o preço de nossa redenção. Ide banhar os braços parricidas Nas águas desse fúnebre Jordão.181

O processo de investigação realizado por Bressane Araújo ressalta a análise

biográfica, que por sua vez distancia-se, no caso do poema acima, de uma possível

construção cristológica a partir do próprio poema. As análises de Bressane Araújo

buscam alguns comprovantes na literatura do autor, como expressão de suas

intuições. Bressane retoma mais uma vez o método que faz a correspondência entre

biografia e literatura. Vai buscar numa tradução que Machado fizera do Salmo 137 a

filiação do autor de Brás Cubas à religião cristã.

Machado de Assis buscou nas Escrituras, como em Dante ou Shakespeare, tão somente belezas literárias e usava com freqüência das reminiscências, episódios ou versetos do livro Santo. Como roupagem elegante dos humorismos que aos milhares marchetam seus livros.”182

O apontamento acima pode nos dar com alguma precisão a certeza de que a

construção de um extenso conjunto literário como o de Machado de Assis se constrói

a partir de suas múltiplas influências literárias. Entretanto, Silviano Santiago aponta

que durante muito tempo fomos inclinados a perceber a dívida que a literatura

brasileira contraíra com suas fontes. Tal discurso, afirma Santiago, reduzia a criação

dos artistas latino-americanos à condição de obra parasita, obra esta que se nutria de

uma outra sem nunca lhe acrescentar algo de próprio; “uma obra cuja vida é limitada

181 MACHADO DE ASSIS, Poesias coligidas, I,Vol. III, p. 290-291. Cf. PUJOL apud ARAÚJO, Os aspectos religiosos na obra de Machado de Assis, p. 8. 182 Hugo Bressane ARAÚJO, O aspectos religiosos na obra de Machado de Assis, p. 19.

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e precária, aprisionada que se encontra pelo brilho e pelo prestígio da fonte [...]”183.

Caso a obra machadiana – que foi pelos seus principais críticos enclausurada em suas

fontes européias – consiga por meio de nossas análises demonstrar certa

independência em relação a estas intermináveis fontes às quais a filiamos e ao

mesmo tempo atribuímos sua universalidade ao tratar dos problemas emergidos no

mundo moderno, poderemos entendê-la como discurso crítico que rejeita tais

impostas filiações, não negando, obviamente, a sua capacidade de diálogo com seu

tempo e, potencialmente, a sua capacidade de ser influenciada.184 O centro das

questões deve ser a expressividade da literatura machadiana e não as suas

influências. Não nos caberá, portanto, produzir um exercício exegético que imprima

sobre a literatura machadiana aquilo que dela esperamos no que toca à questão

religiosa. Todavia, nos caberá, a partir de medidas teóricas adequadas, dar voz ao seu

campo de sentido que, se visto sob os dilemas do mundo moderno, poderá expressar,

de forma particular, um olhar sobre o ser humano e suas experiência mais profundas.

Outra forma que Hugo Bressane buscou para comprovar o que denominou de

aspectos religiosos na obra machadiana restringiu-se às anotações de Machado para

alguns periódicos da época. Como Machado certa vez anunciou a Joaquim Nabuco

sua ligação com Pascal185, e estas declarações tinham uma espécie de valor

hermenêutico, Bressane entendeu que as posturas religiosas de Machado em tais

periódicos serviam de comprovantes de sua filiação religiosa, biográfica e literária.

Isto fica claro no quinto capítulo da obra em questão, intitulado Não era anti-

clerical. Para Bressane, a seguinte declaração serve de comprovante do não anti-

clericalismo de Machado de Assis:

Monsenhor Reis era um dos sacerdotes mais populares entre nós; ele, Mon’Alverne, monsenhor Marinho, Frei Antonio, o franciscano, foram nomes que a nossa infância ouvia pronunciar com mais freqüência e veneração, sem esquecer o bispo, o excelso conde de Irajá. Quase todos

183 Silviano SANTIAGO, Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural, p. 20. Um trabalho que representa bem a questão das influências da literatura de Machado de Assis é obra de Eugênio Gomes. Cf. Eugênio GOMES. Machado de Assis: Influências inglesas . Rio de Janeiro: INL, 1976. 184 A influência poética, afirma Bloom, deve ser vista como uma representação do ciclo vital de um poeta como poeta, o que preserva aspectos como a originalidade de um poeta sem fazê-lo(s) menos original(is) ou melhor(es) que seu(s) predecessor(es). Cf. Harold Bloom, A angústia da influência, p. 57-58. 185 Machado de Assis confessa em carta a Joaquim Nabuco o seguinte: ‘Desde cedo li muito Pascal, para não citar mais que este, e afirmo -lhe que não foi por distração’. Cf. Raimundo MAGALHÃES JÚNIOR. Ao redor de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, p. 153 [s.d]

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já se foram por aquela eterna e única porta. O que se retirou esta semana honrou o hábito que vestiu e a Igreja de que foi ornamento e lustre. Soube ser caridoso e útil, pacífico e bom.186

Talvez Bressane Araújo desejasse construir um trabalho semelhante ao que

José Carlos Barcellos construiu em torno da literatura de Julien Green. Barcellos, em

primeiro lugar, tratou de fazer coincidir a literatura de Green com determinados

aspectos de sua autobiografia, utilizando um denso aparato teórico que transformou o

espaço biográfico e o espaço literário de Green em um pacto autobiográfico. A

conclusão de Barcellos é a de que Julien Green, por meio de sua literatura, assume-se

como teólogo. Certamente, esse não é o nosso objetivo. Cremos que também não seja

exatamente o de Bressane Araújo. Defendemos de antemão que a literatura de um

escritor pode até ser constituída por intermédio de um mosaico de influências;

todavia a literatura, para que se reconheça sua autenticidade, não deve ser exposta tão

fortemente à subjetividade criativa do autor a ponto de percebê-la tão facilmente e

com tamanha nitidez. Há na obra de Dom Hugo Bressane a insistência de revelar o

aspecto religioso através da biografia do autor de obra literária. A literalidade das

declarações de um autor, mesmo as palavras que saem da boca de suas personagens

se entendidas como declarações do próprio autor, de pouco valem para as análises de

temas complexos ou para a elucidação da dimensão criativa de expressão artística.

As críticas que temos a fazer à obra de Dom Hugo Bressane se direcionam,

sobretudo, à ausência de um campo conceitual e teórico, que pudessem estabelecer

uma teia hermenêutica para sustentar o olhar sobre a questão religiosa na obra de

Machado de Assis. Um problema notado é a separação entre o que é cristão ou não

no texto machadiano. Percebe-se que muitas posições pessoais de Machado de Assis

definem, em quase todos os aspectos, para Dom Hugo Bressane, o caráter cristão ou

não-cristão dos textos machadianos.187 Este problema poderia gerar discussões

acerca da intenção do autor em escrever textos impregnados de temas religiosos.

Mesmo assim, Bressane, para o seu trabalho, admite como princípio de suas

reflexões os elementos biográficos do autor de Dom Casmurro. A via metodológica

de Bressane não faz o texto machadiano perder a sua densidade por dar mais voz ao 186 MACHADO DE ASSIS, Crônicas, 19, VII de 1 de setembro de 1878, p. 408. 187 Sobre o caráter cristão dos textos machadianos, com base nas suas opiniões pessoais, cf. Hugo Bressane ARAÚJO, O aspecto religioso da obra de Machado de Assis, p. 25-27. Dom Hugo defende a tese de que Machado não era anti-clerical, todavia ele chega afirmar que “sem o lume da fé, a obra de Machado de Assis, profundamente humana, não é cristã”. Nota-se mais uma vez a retomada das categorias sagrado e profano diante dos textos.

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seu aspecto biográfico, porém obscurece o que é potencialmente relevante. Neste

caso, destacaríamos a ausência de uma reflexão sobre as questões religiosas do ponto

de vista das personagens machadianas.

O trabalho de José Carlos Barcellos demonstra bem a possibilidade de

conjugar literatura e biografia recorrendo a outros elementos que não sejam

necessariamente a biografia do autor refletida no texto literário.188 Barcellos foi

capaz de perceber que há um pacto autobiográfico entre Julien Green e sua literatura.

Mesmo que não concordemos com a identificação que Barcellos produz entre a

“teologia” de Green e a teologia católica, enclausurando sistematicamente a

expressão teológica da literatura de Green, consideramos ser legítima a metodologia

empregada na investigação. Embora Barcellos não parta de pressupostos teológicos

definidos, ao encontrá- los na literatura de Green, os identifica como de natureza

católica. Queremos mais uma vez defender que um texto literário não pode ser

apenas um receptáculo dos aspectos subjetivos, biográficos ou mesmo ideológicos do

autor que lhe deu vida, mas sim um lugar de infinitas sondagens, para que a cada

escavação se produzam novas realidades a partir de um único texto.

Octavio Brandão também está presente na galeria dos críticos mais corrosivos

da obra machadiana, embora haja visivelmente em O niilista Machado de Assis uma

espessa confusão entre o que representa a estética do autor de Brás Cubas e sua

biografia. Ressaltamos a importância do trabalho de Brandão pelo fato dele dar

atenção ao que mais nos interessa na literatura de Machado de Assis, que é sua

antropologia. Com lentes nitidamente marxistas, Octávio Brandão só conseguiu

manter seu olhar sobre a literatura machadiana debaixo de sua ideologia particular.

Os textos machadianos eram tidos por Brandão como uma espécie de reflexo do

burguês que para ele fôra Machado de Assis. As pistas que Brandão nos oferece têm

a ver com sua a percepção de que as personagens machadianas viveram mergulhadas

num mundo decadente e em iminente colapso. Esta é, por exemplo, a avaliação que

realiza do romance Helena de 1876. Filiando arbitrariamente Machado de Assis ao

movimento romântico brasileiro, Octávio Brandão entendeu que os elementos

centrais do referido romance destacavam a representação de um romantismo

decadente, insípido, sentimentalista, cheios de suspiros e lágrimas.189 Afrânio

188 Cf. José Carlos BARCELLOS, O drama da salvação: espaço autobiográfico e experiência cristã (tese de doutorado). PUC–Rio, 2000. 189 Cf. Octávio BRANDÃO, O niilista Machado de Assis, p. 28.

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Coutinho, ao tentar compreender a antropologia machadiana, aproximou-se muito

das percepções de Octávio Brandão ao afirmar que o ser humano de Machado de

Assis é um ser doente, moral e psicologicamente. E mais:

Dentro dele só há abismo, contradição, enigma; tarado, cheio de vícios, incerto, dubitativo, inconstante e incoerente, contraditór io, flutuante, agitado, de espírito volúvel e inteligência fraca, sem nenhum apoio moral, com um tendência imperiosa para o mal e o crime; escravo da sensibilidade e da imaginação que extraviam e enganam, de leis arbitrárias, de um hábito tirano, da opinião; desordenado pelas paixões, cheio de misérias, vive eternamente atrás de uma quimera, figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação. As suas ações, que formam o tecido da tragicomédia humana, têm sempre no fundo, mesmo as boas, um motivo secreto, que as explica e origina, ordenado pela felicidade, interesse, amor-próprio. Sempre o egoísmo, os sentimentos vis e a concupiscência são os móveis secretos de toda a vida no mundo. A concupiscência domina o caráter das personagens machadianas.190

Os dramas, os dilemas vividos pelo ser humano da literatura machadiana

jamais poderiam ser representações de uma forma de sentimento crítico da própria

existência.191 Deveriam, para Octávio Brandão, sempre ser percebidos pela

problemática da divisão de classes, interesses econômicos ou financeiros, políticos e

sociais.192 Este é um dos princípios que utiliza para dar ao romance Memórias

póstumas de Brás Cubas um tom pessimista. Machado de Assis teria escrito, sob

uma nefasta influência pessimista, os romances de 1881 e 1908. A complexidade da

estética machadiana no romance Memórias póstumas de Brás Cubas foi interpretada

sob a égide da morbidez, da decadência e de experiência sepulcral do ser humano. Os

heróis de Machado de Assis – assim afirma Octavio Brandão – vegetavam na mais

triste mediocridade dourada. Arrastavam uma vida cinzenta, chata, vulgar, prosaica e

mesquinha, envenenada pelo tédio e a ociosidade.193 Temos de reconhecer que tais

adjetivos são contrapostos ao que verdadeiramente nos interessa na análise de

Octávio Brandão. Para ele, as personagens machadianas seriam representações

190 Cf. Afrânio COUTINHO, A filosofia de Machado de Assis, p. 96. 191 A arte, afirma Herbert Read, se ocupa da com o mistério da existência no sentido humano e metafís ico. “Essa é a razão fundamental pela qual nenhuma sociedade imaginável do futuro, por mais livre que esteja das necessidades materiais, jamais poderá passar sem arte”. Cf. Herbert READ, Arte e alienação, p. 37. 192 Cf. Octávio BRANDÃO, O niilista Machado de Assis, p. 31. 193 Cf. Octávio BRANDÃO, O niilista Machado de Assis, p. 33.

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humanas que também cultuavam o que denomina ser luxúria. A lúxuria, dimensão

que revela o que há de mais vital no ser humano, foi vista por Octávio Brandão como

um dos fatores da degradação da sociedade oitocentista por promover certa

decomposição moral. Nesta mesma linha, a caricatura que Octávio Brandão

construiu das personagens femininas de Machado de Assis, embora encorpadas por

questões de gênero e preconceito, nos ajudam a perceber que, mesmo debaixo de

uma dura crítica que ofusca os aspectos determinantes de sua literatura, a vitalidade

aparece como expressão marcante das representações humanas machadianas.

Só viu uma triste coleção de adúlteras e aventureiras, grandes burguesas e latifundiárias, escravas do sexo e da vida fútil. [...] Na vida, êle (sic!) era o espôso (sic!) da meiga Carolina. Na imaginação, era um galante que se comprazia no lôdo (sic!) dessas adúlteras e aventureiras. Sua imaginação, viciosa. Suas “musas inspiradoras”, as Virgilias e Capitus.194

Octávio Brandão também desconsiderou que a literatura machadiana fosse

uma literatura realista. Talvez estivesse contaminado pela ideologia marxista

presente no realismo socialista, que exigia das expressões artísticas uma

representação fiel de uma realidade política supostamente ocultada. Certamente,

Octávio Brandão diminuiu demasiadamente as suas lentes de análise da literatura

machadiana. A crítica de Octávio Brandão sobre a religião encontrou uma

possibilidade de aproximação entre Machado de Assis e Dostoiévski. Ao deixar

escapar de suas obras determinados elementos cristãos como a submissão, a

resignação, a consolação, a moral, Dostoiévski teria renegado, segundo Brandão, à

luta revolucionária em favor do aniquilamento da dignidade e personalidade

humanas e da conservação do ser humano à eterna subserviência. Portanto, se o

ponto de partida é a religião, o ponto de chegada não pode ser outro senão a política.

Por isso, a aproximação entre Machado de Assis e Dostoiévski se dá, de acordo com

Octávio Brandão, na representação que ambos desenvolviam do regime dominante.

O primeiro por ser um representante fiel da burguesia e o segundo por exprimir

determinados elementos de sua literatura que suprimem as forças revolucionárias dos

indivíduos. O desafio maior que o trabalho de Octávio Brandão nos deixa toma

194 Octávio BRANDÃO, O niilista Machado de Assis, p. 35.

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corpo a partir da afirmação de que a literatura machadiana não indicou nenhuma

saída real para a desgraça humana. Certamente, responderemos a Octávio Brandão

mais adiante.

Essas imagens humanas que tanto Octávio Brandão quanto Afrânio Coutinho

compartilham em certa medida se opõem à imagem que desejamos retratar da

antropologia machadiana. O que se esconde na estética machadiana e que não foi

totalmente percebido pelos estudos críticos de Machado Assis é o anúncio das

transformações de mundo que não corresponde mais ao compacto e ideal mundo

burguês. Afirma Kátia Muricy que o século XIX brasileiro viu surgir, através da

literatura machadiana, novas formas de organização social que de algum modo nos

aproximava do processo de racionalização.195 A dimensão cética que comumente se

atribui à estética machadiana não deve ser vista como a representação do avesso de

uma sociedade que respirava de forma otimista os ares da modernidade, mas antes

como uma crítica demolidora principalmente ao romantismo e ao naturalismo, o qual

assimilou facilmente o cientificismo oitocentista. A dimensão cética da literatura

machadiana consegue ainda, sob a ótica de seus personagens libertinos, mundanos ou

mesmo celibatários, de forma mais radical, ser crítica diante das noções de ciência,

de progresso, de verdade, construídas por um tipo de racionalidade em colapso.196

Para Kátia Muricy, a literatura machadiana interpretou criticamente o momento

vivido pelo Brasil do século XIX ao apontar os descaminhos de um tipo de

racionalidade dominante ao mesmo tempo em que refletiu a fragmentação inexorável

do indivíduo criado pelo modelo social burguês. Ao se situar dentro do Brasil

oitocentista, a literatura machadiana ultrapassa as fronteiras territoriais e assume sua

originalidade e universalidade ao se propor intérprete e porta-voz dos problemas e

dilemas próprios do mundo moderno europeu do século XIX. Machado de Assis,

numa crônica de 1895, como sugere Kátia Muricy, pode interrogar a sua atualidade:

Por isso digo que o mundo não vai bom, e desconfio que há algum plano divino, oculto aos olhos humanos. Talvez a terra esteja grávida. Que animal se move no útero desta imensa bolinha de barro, em que nos despedaçamos uns aos outros? Não sei; pode ser uma grande guerra social, nacional, política ou religiosa, uma deslocação de classes ou de

195 Cf. Kátia MURICY, A razão cética: Machado de Assis e as questões de seu tempo, p. 16. 196 O conto O alienista e o romance Quincas Borba, de Machado de Assis, são exemplos de uma crítica contundente à ciência do século XIX e às correntes de pensamento que a sustentava. O alienista, por exemplo , critica as instituições de saúde mental e seu programa de confinamento do indivíduo, que era autorizado pela psiquiatria.

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raças, um enxame de idéias novas, uma invasão de bárbaros, uma nova moral, a queda dos suspensórios, o aparecimento dos autos.197

Devemos nos voltar para a literatura machadiana buscando entendê- la como

dimensão artística que antecipou, desvelou e expôs, por meio da ação criativa (por

meio de uma poética), a falta de sentido que era iminente ao mundo moderno. Ao

lado de um mundo que silenciava o seu otimismo por meio dos processos

despotecilizadores do ser humano enquanto dimensão autoreferente, emergia também

um mundo que desejamos chamá-lo, sem muitas delongas, de mundo sem Deus. Se

há um projeto estético no interior da literatura machadiana de antecipação de

algumas expressões do sem sentido, este projeto não silenciou o que poderia ser, do

ponto de vista de uma compreensão própria do ser humano e de sua posição no

mundo, um mundo sem Deus. Tal foi nossa compreensão preliminar ao concluirmos

Fuga da promessa e nostalgia do divino. Deve permanecer válida a afirmação que

fizemos no primeiro capítulo de que a morte de Deus em Nietzsche nos servia como

via diagnóstica de um mundo movido pela autonomia do ser humano em relação ao

esfacelamento do principal centro gravitacional do Ocidente: Deus. Não há uma

superposição de interpretações (Nietzsche ou Machado) a partir do que cada uma

delas buscou apresentar acerca do mundo, da posição do ser humano e de Deus no

século XIX quando fazemos referência a um mundo sem Deus tendo como ponto de

partida o texto machadiano. Há apenas o reconhecimento de que uma expressão

artística como a literatura de Machado de Assis não recriou a realidade por meio da

linguagem literária, todavia a antecipou, a revelou e pôs em evidência o

desconhecido de forma autêntica com sua força de expressão. Como bem afirmou

Herbert Read, as expressões artísticas são sempre perturbadoras e permanentemente

revolucionárias. 198 Por nossa conta eximiríamos o termo revolucionária(s) de seu

possível sentido político. Indubitavelmente, vale, aqui, recuperar uma importante

citação cunhada por Herbert Read da obra Reflections on history, de Jakob

Burckhardt:

Desde o começo dos tempos vemos que os artistas e poetas se situam numa relação de solenidade e grandiosidade com a religião e a cultura [...] só eles podem interpretar e dar forma imperecível ao mistério da beleza. Tudo o que por nós passa na vida, tão depressa, com tal raridade

197 MACHADO DE ASSIS, Crônicas, A Semana, outubro de 1895. 198 Cf. Herbert READ, Arte e alienação, p. 27.

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e desigualdade, é por eles reunido num mundo de poemas, em quadros e grandes ciclos pictóricos, em cor, pedra e som, para formar um segundo e sublime mundo na terra [...]199

A ascensão de uma sociedade tecnificada, o obscurecimento dos ideais

humanistas por meio de atividades cada vez mais reificadoras da condição humana,

bem como a simultaneidade de tais processos com a perda do sentido de Deus, não

conseguiram – se este era o projeto oculto da modernidade – dissipar o senso trágico

da vida, mas sim potencializá- lo. Por isso, o ser humano não deixou de ser suscetível

às experiências em nível incondicional. A emergência da dimensão religiosa diante

da vida não se dá apenas por meio das garantias que supostamente superam nosso

senso de finitude, mas também nas experiências do vazio, nas experiências negativas,

nas experiências do nosso absurdo e do sem sentido. Um olhar em torno das

expressões artísticas como espaço próprio de reflexão sobre a condição humana

tornou-se cada vez legítimo, e isto é uma constatação, porque é a arte e não a ciência

ou a tecnologia que confere significado à vida ou aponta a sua precariedade. Isto se

torna possível porque parece haver no ser humano, mesmo no humano criado

artisticamente, algo em sua natureza que anuncie, a despeito de tudo que o entorpece

e o aniquila, a presença de um vácuo existencial a ser preenchido. Portanto, é na

poética machadiana que encaminharemos a nossa busca do sentido que a experiência

do incondicional – sem pretensões de personificá- lo ou substantivá- lo – poderá

assumir.

199 Cf. BURCKHARDT apud READ, Arte e alienação, p. 25.

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2.2. Faces de um mundo sem Deus na estética machadiana

Em Fuga da promessa e nostalgia do divino elegemos como foco de análises

a antropologia machadiana, que foi ordenada pela relação ser humano vs Deus.

Deparamo-nos naquele momento com uma questão particular relacionada à

personagem Bento Santiago, do romance Dom Casmurro, que era a questão da

promessa. O problema que se descortinou com a presença da promessa no referido

romance foi auxiliado pelas noções de mundo do texto e paratextualidade. O

chamado mundo do texto nos fez, com certa segurança, pensar nas questões internas

do romance de 1899 sem que necessariamente tivéssemos que recorrer às discussões

sobre verossimilhança e a relação direta da obra com a realidade objetiva. O mundo

que a literatura projeta para fora de si por meio da leitura e do significado que é

produzido por tal ação é o que entendemos ser o chamado mundo do texto, seguindo

Paul Ricoeur. O que é comunicado, em última instância, afirma Ricoeur, é, para

além do sentido da obra, o mundo que ela projeta e que constitui seu horizonte de

acordo com o que o ouvinte ou o leitor, segundo sua própria capacidade (do ouvinte

ou do leitor) de acolhimento.200 O mundo que é projetado para além do mundo da

realidade objetiva cria um espaço de sentido no que Ricoeur chamou de referência de

segundo nível. 201 Dissemos em Fuga da promessa e nostalgia do divino que, desta

dimensão referencial que a poesia ou ficção são capazes de criar, se origina o

problema hermenêutico mais fundamental, que seria o de perceber que o campo de

sentido de um texto literário é de sobremaneira devedor da capacidade que ele

próprio possui em dizer o mundo que ele cria no plano da referência. Com razão

Ricoeur chega a afirmar que pela ficção ou pela poesia são abertas novas

possibilidades de ser-no-mundo através do que ele mesmo chamaria de variações

imaginativas que a literatura, exemplarmente, opera sobre o real.202 Este foi um dos

caminhos que utilizamos para ter acesso à estética machadiana.

Outro caminho percorrido foi o de buscar os elementos mais ostensivos da

narrativa de Dom Casmurro. Sabemos que tais elementos serviriam inclusive para

justificar a infinidade de temas já trabalhados a partir do texto machadiano. Por isso,

temos convicção de que a pergunta pelo que é verdadeiramente ostensivo numa obra

200 Paul RICOEUR, Tempo e narrativa, p. 119. Tomo I. 201 Cf. Paul RICOEUR, Tempo e narrativa, p, 275. Tomo III. 202 Cf. Paul RICOEUR, Interpretações e ideologias, p. 57.

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literária teria certa razão de ser. Determinamos, portanto, que o elemento mais

ostensivo e reluzente do romance de 1899 era a questão da promessa, que participa

da narrativa do texto, mas que também é o titulo do capítulo XI do referido romance.

Chegamos à promessa por meio do caráter ostensivo-significativo do título do

capítulo XI. À ostensividade que determinados elementos textuais possuem, Gérard

Genette nomeou de paratextualidade.203 Esses elementos paratextuais, note-se,

também mantêm, segundo Genette, relações de significação com o texto a que

pertencem. Daí a segura observação de Eli Brandão quando afirma que uma das

provas do poder revelador do título como elemento paratextual, embora se referindo

ao título de uma obra, é que mesmo quando se pretende ocultar os sentidos

dominantes de um texto ou revelá- los por enigma, persiste tanto o seu poder de

concentrar a atenção do leitor, que toda a leitura passa a ser a busca do seu sentido

oculto ocasionando, portanto, uma pluralidade de interpretações, o que em parte

desprezaria as inúteis discussões sobre o sentido intencional do autor. Se fosse o caso

poderíamos começar pelo próprio título da obra: Dom Casmurro. Por se tratar de

uma obra autodiegética, o autor-personagem nos incita pensar o sentido em que é

empregado o termo, pois no primeiro capítulo explica que o termo Dom “veio – por

parte dos amigos – por ironia para atribuir-me fumos de fidalgo.”204 Todavia, diz ao

leitor de seu “testamento biográfico” que não é necessário consultar no dicionário a

expressão Casmurro: “Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido

que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo.”205

Observemos que há uma questão a ser resolvida em relação ao sentido que podemos

dar ao romance se consideramos seu o título. Qual é o Casmurro que se revela aos

amigos que assinam os bilhetes a ele endereçados? Que sentido os amigos do

Casmurro dão a sua alcunha? Que sentido o rapaz conferiu à expressão ao dizer, no

dia seguinte ao encontro que narrado, “os nomes feios” que culminou na alcunha

Casmurro? Queremos chamar atenção para o fato de que o narrador-personagem

intenta uma explicação do nome de suas memórias. Contudo, antes que elas sejam

expostas, temos a indicação paratextual sobre a escolha do nome do livro, já título do

203 Cf. Gérard GENETTE, Palimpsestes, p. 7-14. A paratextualidade se configura por meio de elementos indicadores de sentido ou através da relação do texto com outros elementos que o remete a ele mesmo como os títulos, subtítulos, prefácios, posfácios entre outros elementos. Os paratextos seriam formas de integração do texto num dado contexto ou formas de indicação do percurso hermenêutico, que, de certa forma, desempenham funções semânticas. 204 DC, p. 810. 205 DC, p. 810.

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próprio primeiro capítulo, que foi intitulado Do título. Tais articulações de sentido

seriam oriundas, se nossas anotações servirem de exemplo, da teoria da

paratextualidade retirada das chamadas categorias da transcendência textual, segundo

Genette.206

A existência da dimensão paratextual do capítulo A promessa provocou um

efeito potencializador da questão teológica no romance Dom Casmurro, que era por

sua vez o foco inicial da nossa pesquisa naquela ocasião. Revelava-se,

circunscritamente à promessa, uma imagem de Deus, uma imagem do ser humano

capaz de abrir-se ao transcendente e uma crise existencial deste mesmo ser humano

em razão da forma com que foi posto em relação com esse Deus. Vejamos em que

termos a promessa foi realizada:

Capítulo XI / A PROMESSA

Tão depressa vi desaparecer o agregado no corredor, deixei o

esconderijo, e corri à varanda do fundo. Não quis saber de lágrimas nem

da causa que as fazia verter a minha mãe. A causa eram provavelmente

os seus projetos eclesiásticos, e a ocasião destes é a que vou dizer, por

ser já então história velha; datava de dezesseis anos.

Os projetos vinham do tempo em que fui concebido. Tendo-lhe nascido

morto o primeiro filho, minha mãe pegou-se com Deus para que o

segundo vingasse, prometendo, se fosse varão, metê-lo na Igreja. Talvez

esperasse uma menina. Não disse nada a meu pai, nem antes, nem

depois de me dar à luz, contava fazê-lo quando eu entrasse para a escola,

mas enviuvou antes disso. Viúva, sentiu o terror de separar-se de mim;

mas era tão devota, tão temente a Deus, que buscou testemunhas da

obrigação, confiando a promessa a parentes e familiares. Unicamente,

para que nos separássemos o mais tarde possível, fez-me aprender em

casa primeiras letras, latim e doutrina, por aquele Padre Cabral, velho

amigo do tio Cosme, que ia lá jogar às noites.

Prazos largos são fáceis de subscrever; a imaginação os faz infinitos.

Minha mãe esperou que os anos viessem vindo. Entretanto ia -me

afeiçoando à idéia da Igreja; brincos de criança, livros devotos, imagens

206 Cf. Gérard GENETTE. Palimpsestes. La littérature au second degré. Paris: Seuil, 1982.

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de santos, conversações de casa, tudo convergia para o altar quando

íamos à missa, dizia -me sempre que era para aprender a ser padre, e que

reparasse no padre, não tirasse os olhos do padre. Em casa, brincava de

missa, – um tanto às escondidas, porque minha mãe dizia que missa não

era cousa de brincadeira. Arranjávamos um altar, Capitu e eu. Ela servia

de sacristão, e alterávamos o ritual, no sentido de dividirmos a hóstia

entre nós, a hóstia era sempre um doce. No tempo em que brincávamos

assim, era muito comum ouvir à minha vizinha: “Hoje há missa?” Eu já

sabia o que isto queria dizer, respondia afirmativamente, e ia pedir

hóstia por outro nome Voltava com ela, arranjávamos o altar,

engrolávamos o latim e precipitávamos as cerimônias. Dominus, non

sum dignus... Isto, que eu devia dizer três vezes, penso que só dizia uma,

tal era a gulodice do padre e do sacristão. Não bebíamos vinho nem

água; não tínhamos o primeiro, e a segunda viria tirar-nos o gosto do

sacrifício.

Ultimamente não me falavam já do seminário, a tal ponto que eu

supunha ser negócio findo. Quinze anos, não havendo vocação, podiam

antes o seminário do mundo que o de S. José. Minha mãe ficava muita

vez a olhar para mim, como alma perdida, ou pegava-me na mão, a

pretexto de nada, para apertá-la muito. 207

Procuramos entender a promessa como questão central do romance. Da

promessa até a malograda vida de Bentinho ao lado de Capitu, o romance passou a

ter como fator de significação, segundo nosso olhar, a forma como o Deus da

promessa se revelava para dona Glória, mãe de Bentinho e autora da promessa, e a

maneira com que Bentinho, o prometido, se relacionava com Deus e Este com ele.

Como ele mesmo denuncia: “Minha mãe era temente a Deus; sabes disto, das suas

práticas religiosas, e da fé pura que as animava.”208 E ainda: “A promessa, feita com

fervor, aceita com misericórdia, foi guardada por ela, com alegria, no mais íntimo

do coração. Penso que lhe senti o sabor da felicidade no leite que me deu a

mamar.”209 Do ponto de vista teológico, não pretendíamos perceber a revelação de

Deus às personagens religiosas como um processo condicionado pela própria

207 DC, p. 819-820. 208 DC, p. 889. 209 DC, p. 889.

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antropologia emergente do romance, o que significa dizer que não desejávamos ver a

forma com que o Deus da promessa se manifestava em razão da vontade do ser

humano. Mesmo que em alguns momentos o Deus da promessa figurasse no romance

com funções específicas na vida de Bentinho e de dona Glória, ao atender aos

pedidos encaminhados aos céus, diríamos que Ele, antes de ser morto com o fim da

promessa, transparecia no texto machadiano como mantenedor e organizador da vida

das personagens e também como centro de referência e de sentido nos momento de

crise existencial. Havia nas personagens machadianas certa esperança na efetivação

da presença de Deus diante das questões trágicas de suas vidas. Observemos a atitude

de dona Glória ao ver nascer morto o seu primeiro filho: “Tendo-lhe nascido morto o

primeiro filho, minha mãe pegou-se com Deus para que o segundo vingasse,

prometendo, se fosse varão, metê-lo na Igreja.” Percebamos a significação do ato de

apegar-se a Deus. A experiência negativa de dona Glória reverte-se, sob a égide do

mistério de Deus, numa forma manifesta de esperança e de consolação. As vidas das

personagens machadianas envolvidas na promessa, inegavelmente, estão ligadas ao

Deus cristão.

A consciência de ter sido prometido faz de Bentinho, o menino, um ser que

reconhece em Deus o ponto de chegada de suas experiências religiosas. Buscava os

céus com muita intensidade quando menino. Os aspectos relacionais homem vs Deus

e Deus vs homem, em determinadas partes do romance Dom Casmurro representam,

do ponto de vista teológico, a capacidade de Deus em revelar-se ao ser humano. Do

ponto de vista antropológico, a relação homem vs Deus denuncia a dimensão do ser

humano aberta às experiências com o que o ultrapassa. Trata-se, pois, do

reconhecimento do aspecto finito do ser humano. Bentinho é uma personagem

machadiana que notadamente carrega consigo a certeza de sua impotência diante das

contradições de sua vida e por isso, em muitos momentos, pôde reconhecer os céus

como elemento representativo de suas experiências religiosas. O capítulo XX de

Dom Casmurro espelha emblematicamente a dimensão experiencial da vida de

Bentinho:

Capítulo XX / MIL PADRE-NOSSOS

E

MIL AVE-MARIAS

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Levantei os olhos ao céu, que começava a embruscar-se, mas não foi

para vê-lo coberto ou descoberto. Era ao outro céu que eu erguia a

minha alma; era ao meu refúgio, ao meu amigo. E então disse de mim

para mim: “Prometo rezar mil padre-nossos e mil ave-marias, se José

Dias arranjar que eu não vá para o seminário”.

A soma era enorme. A razão é que eu andava carregado de promessas

não cumpridas. A última foi de duzentos padre-nossos e duzentas ave-

marias, se não chovesse em certa tarde de passeio a Santa Teresa. Não

choveu, mas eu não rezei as orações. Desde pequenino acostumara-me

a pedir ao céu os seus favores, mediante orações que diria, se eles

viessem. Disse as primeiras, as outras foram adiadas, e à medida que se

amontoavam iam sendo esquecidas. Assim cheguei aos números vinte,

trinta, cinqüenta. Entrei nas centenas e agora no milhar. Era um modo de

peitar a vontade divina pela quantia das orações; além disso, cada

promessa nova era feita e jurada no sentido de pagar a dívida antiga.

Mas vão lá matar a preguiça de uma alma que a trazia do berço e não a

sentia atenuada pela vida! O céu fazia-me o favor, eu adiava a paga.

Afinal perdi-me nas contas.

“Mil, mil” , repeti comigo.

Realmente, a matéria do benefício era agora imensa, não menos que a

salvação ou o naufrágio da minha existência inteira. Mil, mil, mil. Era

preciso uma soma que pagasse os atrasados todos. Deus podia muito

bem, irritado com os esquecimentos, negar-se a ouvir-me sem muito

dinheiro... Homem grave, é possível que estas agitações de menino te

enfadem, se é que não as achas ridículas. Sublimes não eram. Cogitei

muito no modo de resgatar a dívida espiritual. Não achava outra espécie

em que, mediante a intenção, tudo se cumprisse, fechando a escrituração

da minha consciência moral sem deficit. Mandar dizer cem missas, ou

subir de joelhos a ladeira da Glória para ouvir uma, ir à Terra Santa,

tudo o que as velhas escravas me contavam de promessas célebres, tudo

me acudia sem se fixar de vez no espírito. Era muito duro subir uma

ladeira de joelhos; devia feri-los por força. A Terra Santa ficava muito

longe. As missas eram numerosas, podiam empenhar-me outra vez a

alma...210

210 DC, 830-831.

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Um fato marcante neste trecho de Dom Casmurro é a imagem de um céu

possivelmente mudo em razão de uma inicial ausência do sentido de Deus na vida de

Bentinho: “Era ao outro céu que eu erguia a minha alma; era ao meu refúgio, ao

meu amigo.” Raimundo Faoro, diante do mesmo trecho, sugere que a imagem do céu

contida neste fragmento representa a dissolução do amparo dos símplices, servindo

para mascarar a consciência, desviar os remorsos e barganhar, de má fé, favores e

esperanças.211 Dissemos em Fuga da promessa e nostalgia do divino que as situações

de natureza existencial da vida de Bentinho, até mesmo as minoritárias, eram

resolvidas por meio dos pedidos aos céus e sempre tributárias da promessa feita por

sua mãe.212 Queríamos com isto dizer que se pôde perceber, descritivamente, em

Dom Casmurro, uma imagem de Deus semelhante a de um Deus controlador e

mantenedor da vida. O mundo que chamamos há pouco de mundo sem Deus é

exatamente o mundo que se abre diante da vida de Bentinho quando este o imaginou

livre da promessa realizada por sua mãe. A imagem do Deus da promessa passou a

sofrer um processo de fenecimento. Ela foi se apagando no momento em que

Bentinho percebeu que os novos imperativos de sua vida eram a liberdade, a

autonomia e o amor por Capitu; tais imperativos substituíam o lugar do Seminário

São José, ou seja, substituíam a promessa.

Seguindo por este caminho, pudemos perceber que a precariedade que se

abria diante da vida de Bentinho revelava também a presença de um ser humano

individualizado dentro do romance Dom Casmurro. Para Faoro, esta constatação

deve ser interpretada como a dissolução da imagem do homem religioso e do cristão

católico por terem perdido de alguma forma as raízes que os alimentavam e que em

algum momento lhes insuflaram o sentimento da divindade. A imagem desta

antropologia machadiana pode ser vista como a do ser humano que desejou ver sua

vida fora dos domínios da Igreja, autônoma e que se bastava em si mesma.213

Poderíamos falar numa perda do sentido de Deus. Em diversos momentos essa

imagem da antropologia machadiana emerge de sua estética como no seguinte trecho

do romance Helena (1876). O fragmento é relacionado à personagem Dr. Camargo:

“Quanto aos sentimentos religiosos, a aferi-los pelas ações, ninguém os possuía

211 Cf. Raimundo FAORO, A pirâmide e o trapézio, p. 400. 212 Cf. Douglas CONCEIÇÃO, Fuga da promessa ..., p. 93. 213 Cf. Raimundo FAORO, A pirâmide e o trapézio, p. 392.

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mais puros. Era pontual no cumprimento dos deveres de bom católico. Mas só

pontual; interiormente, era incrédulo.”214

O ocaso do sentido de Deus para as personagens da estética machadiana

parece-nos ser um dos elementos que compõem circularmente a sua poética. A

insistência de determinados temas em figurar no legado machadiano pode ser

entendida, sem maior esforço, como o que nomearemos de circularidade temática da

escrita. Como sugere Faoro, o fenecimento de Deus pode ser visto através da muda

constelação de estrelas em que se tornou o céu que era antes povoado pelo Deus de

Abraão.215 Contudo, devemos ressalvar mais uma vez que, antes da crise do sentido

de Deus figurar na estética machadiana, é possível observar a significação que Ele

constituía para a vida das personagens. Em Helena, romance de 1876, percebe-se a

notável presença do padre Melchior. À guisa de digressão, vale dizer que as obras

machadianas estão povoadas por padres, protonotários, cônegos etc. O padre

Melchior, um dos testamenteiros do Conselheiro Vale, com um discurso moralizador,

o que nos remete às amarras instrumentalizadoras da vida que a fé institucionalizada

sempre trouxe consigo, profere um interessante e duro discurso a Estácio:

Capítulo XXIII

— És forte? perguntou o padre. — Sou. — Crês em Deus? Estácio estremeceu e olhou para o ancião, sem responder. Melchior insistiu: — Crês? — Essa pergunta... — É menos ociosa do que parece. Não basta supor que se crê; nem basta crer à ligeira, como na existência de uma região obscura da Ásia, onde nunca se pretende pôr os pés. O Deus de que falo, não é só essa sublime necessidade do espírito, que apenas contenta alguns filósofos; falo -te do Deus criador e remunerador, do Deus que lê no fundo de nossas consciências, que nos deu a vida, que nos há de dar a morte e, além da morte, o prêmio ou o castigo. Crês? — Creio. — Pois bem, tu transgrediste a lei divina, como a lei humana, sem o saber. Teu coração é um grande inconsciente; agita-se, murmura, rebela -se, vaga à feição de um instinto mal-expresso e mal compreendido. O mal persegue-te, tenta-te, envolve-te em seus liames dourados e ocultos; tu não o sentes, não o vês; terás horror de ti mesmo, quando deres com ele de rosto. Deus que te lê, sabe perfeitamente que entre o teu coração e

214 Helena, p. 275. 215 Cf. Raimundo FAORO, A pirâmide e o trapézio, p. 398.

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tua consciência há um véu espesso que os separa, que impede esse acordo gerador do delito. — Mas que é, padre-mestre? Melchior inclinou-se e encarou o moço. Os olhos, fitos nele, eram como um espelho polido e frio, destinado a reproduzir a imagem do que lhe ia dizer. — Estácio, disse Melchior pausadamente, tu amas tua irmã.216

A nítida imagem que o padre Melchior apresenta de Deus é a imagem do

Deus mantenedor, organizador da vida e que pune; trata-se do Deus que dá, mas que

também cobra: “O Deus de que falo, não é só essa sublime necessidade do espírito,

que apenas contenta alguns filósofos; falo-te do Deus criador e remunerador, do

Deus que lê no fundo de nossas consciências, que nos deu a vida, que nos há de dar

a morte e, além da morte, o prêmio ou o castigo.”217 Raimundo Faoro entendeu, a

partir desse mesmo fragmento, que o crer e o viver devem ser mantidos como um

importante consórcio ou como duas dimensões inseparáveis.218 O ser humano que as

separar certamente estará diante da agudeza de uma vida que se move por intermédio

das experiências que beiram os limites de um mundo autônomo. O Deus para o qual

se dirige a conjunção entre o crer e o viver é um Deus pessoal, imprescindível à

condição humana e que oferta a garantia de um prêmio ou de um castigo, como

afirma o padre Melchior. Entendemos também que não se deve somente olhar para as

possíveis ações objetivas de Deus em relação à vida do ser humano machadiano, mas

também para o sentido que ele assume. Este sentido é facilmente identificável pela

sua incondicionalidade. Deus se apresenta como símbolo mesmo de resposta ao ser

humano quando a própria condição humana encontra-se em seu trágico limite. Do

ponto de vista da experiência religiosa poderíamos dizer que, em alguns momentos, o

Deus que se revela na estética machadiana assume o sentido de realidade última.

Mesmo com este quadro criado em torno das imagens de Deus e de sua

relação com o ser humano que emerge da literatura machadiana, o nosso foco foi

presidido pelo surgimento de uma imagem gris de Deus, que no caso de Dom

Casmurro foi também acompanhada de um processo de desordenamento do mundo

da personagem Bentinho. A perda do sentido de Deus pode ser constatada ainda nos

chamados romances da primeira fase quando as questões relativas à existência do ser

216 Helena, p. 363-364. 217 Helena, p. 363-364. 218 Cf. Raimundo FAORO, A pirâmide e o trapézio, p. 399.

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humano e Deus aparecem. Um importante exemplo pode ser visto no romance Iaiá

Garcia (1878). Raimundo Faoro vê semelhanças entre a angústia de Estácio do

romance Helena e a que é encontrada na jovem Iaiá, pois diante de seu abismo

existencial não consegue encontrar amparo nem mesmo nos céus. Mergulhada,

possivelmente, na inquietude que o amor provoca, Iaiá percebe-se desamparada por

ter sobre si uma questão existencial em aberto:

Capítulo XIII

A tranqüilidade era aparente. Nessa noite, recolhida aos aposentos, a moça deu largas a dous sentimentos opostos. Entrou ali prostrada. – Que estou fazendo? Disse ela apertando a cabeça entre os punhos. Abriu a veneziana da janela e interrogou o céu. O céu não lhe respondeu nada; esse imenso taciturno tem olhos para ver, mas não tem ouvidos para ouvir. A noite era clara e serena; os milhões de estrelas que cintilavam pareciam rir dos milhões de angústias da Terra. Duas delas despegaram-se e mergulharam na escuridão, como os figos verdes do Apocalipse. Iaiá teve a superstição de crer que também ela mergulharia ali dentro e cedo. Então, fechou os olhos ao grande mudo, e alçou o pensamento ao grande misericordioso, ao Céu que se não vê, mas de que há uma parcela ou um raio no coração dos símplices. Esse ouviu-a e confortou-a; ali achou ela apoio e fortaleza. Uma voz parecia dizer-lhe: – Prossegue a tua obra; sacrifica-te; salva a paz doméstica. Restaurada a alma, ergueu-se do primeiro abatimento. Quando abriu de novo os olhos, não foi para interrogar, mas para afirmar, – para dizer à noite que naquele corpo franzino e tenro havia uma alma capaz de encravar a roda do destino. Tarde conciliou o sono. Já dia claro, sonhou que ia calcando a beira de um abismo, e que uma figura de mulher lhe lançava as mãos à cinta e a levantava ao ar como uma pluma. Pálida, com o olhar desvairado, a boca irônica, essa mulher sorriam, de um sorriso triunfante e mau; murmurava algumas frases truncadas que ela não entendia. Iaiá bradou-lhe em alta voz: – Dize-me que não me amas e eu te amarei como te amava! Mas a mulher sacudindo a cabeça com um gesto trágico, e colando-lhe os lábios nos lábios, soprou ali um beijo convulso e frio como a morte. Iaiá sentiu-se desfalecer e rolou ao abismo [...]219

Poderíamos nos perguntar o que verdadeiramente pode ser encontrado no

coração dos símplices mesmo que em pequena parcela ou apenas como um pequeno

raio. O que é ou quem é esse que a ouviu, a confortou e a apoiou, mesmo sabendo

Iaiá que o céu teria olhos para vê- la, mas nada poderia lhe responder, pois “não tem

ouvidos para ouvir.”220 O desaparecimento da imagem de Deus, bem como o sentido

religioso que deveria rodear as metáforas que servem de sinalização de sua Presença,

219 IG, p. 473. 220 IG, p. 473.

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ficam cada vez mais acentuadamente vazios e desprovidos de significação para o ser

humano da estética machadiana. Seguindo as pistas lançadas por Faoro, uma vez

mais, nos deparamos em Quincas Borba com esta mesma situação. No encerramento

do romance de 1891, Faoro nos induz a perceber que ao grande mudo ou ao grande

misericordioso só cabem o silêncio e que Ele, sendo muitas vezes representado pelas

imagens celestiais, encontra-se indiferente à sorte dos homens. Em Iaiá Garcia

temos nitidamente os indícios de tal indiferença: “os milhões de estrelas que

cintilavam pareciam rir dos milhões de angústias da Terra.” Em Quincas Borba os

céus se transformaram apenas na sede do Cruzeiro:

Capítulo CCI

Eia! chora os dous recentes mortos, se tens lágrimas. Se só tens riso ri-te! E a mesma cousa. O Cruzeiro, que a linda Sofia não quis fitar como lhe pedia Rubião, está assaz alto para não discernir os risos e as lágrimas dos homens.221

Interessante notar que o fenecimento da imagem de Deus em determinados

momentos da estética machadiana revela simultaneamente a debilidade do sentido

que Ele assume diante do ser humano machadiano e o senso de auto-referência que

este ser humano passa a carregar sobre si. A perda do sentido de Deus diante do ser

humano machadiano pode ser descrita como um processo de não reconhecimento de

Deus como fundamento último, todavia como o Deus das relações de causalidade.

Talvez isto responda o porquê de existir no íntimo do coração de Iaiá Garcia um raio

de algo que o próprio narrador do romance não pôde mensurar. Mesmo que os céus

estivessem mudos, Iaiá, imersa em sua finitude, conseguiu ser confortada pelo

sentido de algo que não pode ser corroído e tocado. Certamente, podemos com este

diminuto percurso entender parcialmente o porquê de Deus ter se tornado um alvo

fácil de ser atacado no interior do mundo moderno. Se as representações de Deus

estiverem sempre alocadas nas relações causais e objetivas da própria dinâmica da

vida humana, este ser humano poderá sempre, como pôde exemplarmente com

chamada morte de Deus, pretender experimentar o mundo de forma autônoma,

mesmo reconhecendo sobre si um forte senso de finitude. Paul Tillich fez uma

importante advertência ao cristianismo quando afirmou que a causalidade tornou o

221 QB, p. 806.

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mundo dependente de Deus.222 O que acontece então ao ser humano do universo

machadiano, do ponto de vista de sua experiência religiosa, quando este, a partir de si

mesmo, perde o nexo causal com o Deus pessoal que se revela?

Se respondermos esta pergunta a partir do que foi possível compreender em

nosso estudo anterior, diríamos que a caoticidade seria a expressão representativa do

sentido do mundo do ser humano machadiano. A autoafirmação do ser humano

machadiano frente ao mundo que se descortinava sem o imperativo da promessa feita

por dona Glória e assimilada por Bentinho, já se apresentava de certa forma para o

próprio protagonista do romance. A perda do nexo causal com o Deus da promessa

fez precipitar em Bentinho um sentimento de autorealização. A quebra da promessa

promoveu, segundo nossa interpretação no trabalho anterior, o apagamento de Deus

diante da vida de Bentinho. O fim da promessa veio com a idéia da substituição

daquilo que deveria ser entregue a Deus. Escobar, amigo íntimo de Bentinho, é o

autor da idéia do substituto.

Capítulo XCVI / UM SUBSTITUTO

– Sua mãe fez promessa a Deus de lhe dar um sacerdote, não é? Pois bem, dê-lhe um sacerdote, que não seja você. [...] – Entendo, entendo, é isso mesmo.

Uma observação deve ser feita. A tessitura do fim da promessa é iniciada pelo

amigo e também seminarista Escobar, todavia só levada a cabo com autenticação do

padre Cabral, amigo da família, e posteriormente autorizada pelo Bispo. Note-se que

entre a terra e o céu há mais do que a representação do esvaziamento da imagem de

Deus do ponto de vista do ser humano machadiano. Há também uma explícita

representação dos agenciamentos que são feitos pelos intermediários de Deus. Sendo

a presença da religião um elemento notadamente presente no romance Dom

Casmurro, pudemos então concluir em nosso trabalho anterior que o esfacelamento

das cosmovisões religiosas alcançou, dentro do romance, não o ser humano religioso

(homo religiosus), mas também os emissários da fé. À guisa de digressão, vale notar

a esterilidade da vida sacerdotal que a estética machadiana aponta em diversos

momentos. A separação entre as esferas políticas e religiosas certamente fizeram

222 Cf. Paul TILLICH, Teologia sistemática, p. 201.

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com que o papel do sacerdote se destacasse do centro da vida religiosa. A literatura

machadiana espelha o que poderia ser chamado de decadência da vida sacerdotal.

Um comentário de Faoro é significativo para entender o que estamos afirmando. O

padre Melchior do romance Helena, segundo Faoro, mesmo sendo apresentado pela

narrativa como “verdadeiro varão apostólico, homem de sua Igreja e de Deus,

íntegro na fé, constante na esperança, ardente na caridade”, já se denunciava o

sacerdote incompatível com a missão sacerdotal. De acordo com Faoro, ele é perfeito

em seus caminhos, mas seus caminhos são os da terra. Apresenta-se muito mais

como um mantenedor da moral do que como intermediário da divindade e do

sacrifício. Melchior não converte, admoesta. O padre Cabral de Dom Casmurro é a

paradigmática figura do padre doméstico. O espírito conciliador que o referido

sacerdote apresenta diante do fim da promessa é para Raimundo Faoro um traço

marcante da mundanidade presente nessas personagens.223

Sem a intransigência do missionário, despida a roupeta do herói, o padre de portas adentro quer durar na estima dos filhos, transigindo com suas inclinações, embora velando pela moralidade. Moralidade que é, em regra, o padrão social da família, pelo qual zelam, mas sem admitir que a sociedade se feche, abertos à ascensão social, eles próprios, muitas vezes, fruto da escalada de baixo para cima.224

Se admitirmos que o protonotário Cabral tivesse alguma consciência da

dessacralização da função sacerdotal, poderemos afirmar então que não há mesmo

nenhuma justificativa para que Bentinho seja padre num mundo desteíficado como o

que emerge da narrativa de Dom Casmurro. Como afirma Faoro, o homem religioso,

o cristão, o católico, passam a ser extravagâncias e inutilidades na máquina do

mundo.225

A autorealização de que falavámos pode ser vista, metaforicamente, na saída

de Bentinho do seminário, que é descrita por ele mesmo quando velho em suas

memórias. O imperativo da auto-afirmação que recaía sobre Bentinho surgia em sua

vida sob a frase construída e pronunciada por ele mesmo de maneira inconsciente:

‘Tu serás feliz, Bentinho; tu vais ser feliz.’226

223 Cf. Raimundo FAORO, A pirâmide e o trapézio, p. 448. 224 Cf. Raimundo FAORO, A pirâmide e o trapézio, p. 448. 225 Cf. Raimundo FAORO, A pirâmide e o trapézio, p. 391-392. 226 DC, p. 906.

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Capítulo C / “TU SERÁS FELIZ

BENTINHO”

No quarto, desfazendo a mala e tirando a carta de bacharel da lata, ia pensando na felicidade e na glória. Via o casamento e carreira ilustre, enquanto José Dias me ajudava calado e zeloso. Uma fada invisível desceu ali, e me disse em voz igualmente macia e cálida: ‘tu serás feliz, Bentinho; tu vais ser feliz’. – E porque não seria feliz? perguntou José Dias , endireitando o tronco e fitando-me. – Você ouviu? perguntei eu erguendo-me também, espantado. – Ouviu o quê? – Ouviu uma voz que dizia que eu seria feliz? – É boa! Você mesmo é que está dizendo...227

Pudemos afirmar em tal ocasião que o lançar-se sobre a vida sem garantias

possuía um caráter estéril e efêmero, pois sem as certezas da sustentabilidade de um

mundo construído debaixo dos nexos causais estabelecidos com o Deus da promessa,

não poderiam produzir outras experiências senão as de natureza caótica. Teríamos

nesta mesma parte das memórias outros motivos que poderiam nos levar a pensar

mais detidamente naquilo que insistimos ser o fenecimento da imagem de Deus.

Como vimos anteriormente, é o agregado da família, José Dias, quem denuncia ao

próprio Bentinho o pequeno momento de delírio que é acompanhado da afirmação

“Tu serás feliz”. José Dias o perguntou por que não seria feliz. Bentinho o respondeu

dizendo ter ouvido uma voz que afirmava a sua felicidade: “Ainda agora sou capaz

de jurar que a voz era da fada; naturalmente as fadas, expulsas dos contos e dos

versos, meteram-se no coração da gente e falam de dentro para fora [...]”228. Por

qual motivo Bentinho não associou a voz que falou de dentro para fora como sendo a

voz do Deus da promessa, mas a associou a uma personagem tão fantástica quanto

Deus? Quem poderia acima de Deus garantir- lhe o ordenamento de seu mundo?

Suspeitamos que Bentinho escondia sobre si a certeza de que o Deus da promessa

havia verdadeiramente sido morto. Kuschel, num preciso comentário sobre Rilke,

afirma que, não havendo mais uma contraparte para onde o ser humano pudesse se

dirigir, tornava-se necessário, no auge da modernidade, assumir a escuridão e

reconhecer apenas as estruturas que constituem as relações horizontais neste

227 DC, p. 906. 228 DC, p. 906-907.

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mundo.229 Portanto, o desordenamento da vida de Bento Santiago nos aponta a

pergunta pelo lugar do ser humano no mundo. Comparativamente, podemos dizer

que a auto-percepção do caos diante da vida Bentinho se aproxima do sentimento que

é expresso pelo eu-poético da primeira Elegia de Rilke, pois o eu manifesto,

encontrando-se numa situação similar de abandono, invoca um possível refúgio, não

em Deus, mas noutras imagens fantásticas ou celestiais como os anjos. Se Deus não

pode mais ouvi- los (Bentinho ou o eu da Elegia), quem o poderia fazê- lo. O eu-

poético da primeira Elegia de Rilke se pergunta:

Quem, se eu gritasse, entre as legiões de Anjos me ouviria?230

O flagrante processo de desarmonização incide sobre vida de Bentinho sob a

forma da perda de todas a suas referências, inclusive as referências religiosas, como

vimos. O não reconhecimento do outro e da natureza, sobressaltos que são invocados

por uma sua consciência alienada e individualizada, figuram ainda dentro do

romance Dom Casmurro como representação de mundo em que o ser humano sente-

se em condição de abandono. O que justificaria sentir ciúmes do mar senão uma vida

submetida a um processo de reificação? “[...] mas não é por isso que torno a ela –

afirma o autor das memórias –, é para que não cuides que a vaidade de professor é

que me fez padecer com a desatenção de Capitu e ter ciúmes do mar [...]”231. Com

este percurso, é possível afirmar, juntamente com Lucien Goldmann, que “la voix de

Dieu ne parle plus d’une manière immédiate à l’homme.”232 O que se construiu em

Dom Casmurro foi evidentemente uma representação da perda do sentido de Deus,

sobretudo, se vista a partir de Bento Santiago. O senso de finitude no qual submerge

Bentinho é reconhecido por sua companheira como a perda da fé em Deus. Deus

enquanto símbolo da realidade última, como elemento que imprime sentido a vida

quando esta se depara com possibilidade do não-ser, torna-se ausente para Bentinho.

Portanto, afirma enfaticamente Capitu:

Capítulo CXXXVII / SEGUNDO IMPULSO

[...] É natural; apesar do seminário não acredita em Deus; eu creio. 233

229 Cf. Karl-Josef KUSCHEL, Os escritores e as escrituras, p. 106. 230 Cf. RILKE, Elegias de Duíno, p. 17. 231 DC, p. 912-913. 232 Cf. Lucien GOLDMANN, Le Dieu caché…, p. 45. 233 DC, p. 938.

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A narrativa é seguida pela ida de Capitu à Igreja. Ao regressar confessa a

Bentinho que confiara a Deus todas as suas amarguras. Parece haver em Capitu um

raio do Deus que para Bentinho já é morto. Bento Santiago não omite de suas

memórias a busca de Capitu pelos céus: “– Confiei a Deus todas as minhas

amarguras, disse-me Capitu ao voltar da Igreja [...]”234

Fugir da promessa significa também ir ao encontro de algo. Percebíamos

ainda em Fuga da promessa e nostalgia do divino a existência de uma bipolar

interpretação do ser humano machadiano. A imagem teológica que pudemos

construir em Dom Casmurro nos remeteu às ruínas em que o mundo moderno, do

ponto de vista religioso, se encontrava. A despeito de tudo que pontuamos em

direção ao romance de 1899, não seria possível dizer que, no interior de um mundo

em colapso, não haveria mais a possibilidade da presença de experiências religiosas,

já que nosso foco é presidido pela antropologia da estética machadiana. Queremos

chamar de experiência religiosa toda experiência que toma o ser humano

incondicionalmente. A própria estética tillichiana nos incita a ponderar o material

cultural produzido pelas manifestações artísticas da transição do século XIX para o

século XX. Como vimos no primeiro capítulo, o expressionismo que era visto como

arte degenerada pôde expressar uma incondicionalidade subjacente ao que

representava plasticamente. Não queremos dizer que a estética machadiana deve ser

compreendida a partir dessa perspectiva, até mesmo por que, como se pôde perceber

em Dom Casmurro, o problema da religião e sua relação com o ser humano estão

postos na superfície do texto e não em dimensões subterrâneas. Apenas elegemos

outra porta de entrada para que nossas lentes pudessem ser aumentadas sobre a

questão da promessa. Estamos defendendo que o fato de o ser humano machadiano

ter sido compreendido através do processo desteificação enquanto meio de

diagnóstico da perda do sentido de Deus não anula a possibilidade mesma de se

encontrar, a partir dessa mesma perspectiva antropológica, representações de

experiências religiosas. Essa é a autocrítica que fazemos ao nosso trabalho anterior.

Se o Deus da promessa não pôde mais ser afirmado por Bentinho, bastava a ele então

afirmar a vida como dimensão incondicional.

234 DC, p. 938.

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2.3. Paradoxos nas representações da experiência religiosa da estética

machadiana

Este novo sentido que poderemos atribuir ao texto machadiano, do ponto de

vista teórico, fica a cargo da atuação metafórica.235 O excesso de sentido que um

texto literário carrega consigo necessita de uma sustentação teórica para que sejam

explicitados os meios pelos quais ele se dá. Concluímos o tópico anterior intuindo

que outra via interpretativa da literatura machadiana poderia nos revelar, no interior

de um mundo dilacerado, a emergência de uma experiência de natureza religiosa.

Tomando mais uma vez o ser humano representado ficcionalmente236 como foco,

seria possível perceber que a oscilação do campo semântico que ele (ser humano

criado ficcionalmente) assume no conjunto estético de Machado de Assis nos levará

à representação daquilo que o toma incondicionalmente. Percebemos agora que não

se trata mais de reconhecer a incondicionalidade da revelação de Deus como

expressão da experiência religiosa do ser humano machadiano. O que deve

prevalecer, portanto, são as representações textuais que nos remetam ao que envolve

de maneira última o humano machadiano. No primeiro capítulo estabelecemos, a

partir de Paul Ricoeur, os procedimentos hermenêuticos que adotaremos deste

momento em diante. Em primeiro lugar, cabe dizer que o novo campo de sentido que

a antropologia machadiana pode evocar se deve, como já dissemos, ao processo

metafórico-enunciativo operado pela metáfora.237 A atuação metafórica que

explicaria a oscilação semântica – que pode ser encontrada em Dom Casmurro por

meio da bipolaridade Deus vs vida (imanência) e que por sua vez é estabelecida a

partir da quebra da promessa – manter-se- ia ligada a uma dimensão primordial de

sentido, que poderíamos chamar de simbólica, pelo fato de tais extremidades (Deus

ou vida) nos remeter, através dos elementos pertencentes à superfície textual, ao

reconhecimento das experiências religiosas que procuramos nos escombros da ficção

do desencanto. Portanto, não é possível afirmar que o romance Dom Casmurro seja

apenas uma emblemática representação de uma estética do ser humano sem Deus.

Em Dom Casmurro há também uma estética da incondiciona lidade que se assume

sob a forma de um profundo processo de intensificação da vida. As marcas dessa

235 Supra , p. 21-30. 236 Supra, p. 21-30 237 Supra , p. 21-30.

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incondicionalidade poderão ser vistas sob as lentes de uma vida que precisa ser

afirmada, já que não há mais nada que a sustente. A morte de Deus em Dom

Casmurro fez o ser humano machadiano assumir-se diante da vida de forma

intransitiva. Sem o além e sem as garantias do céu, o que tem de ser afirmado é a

possibilidade de uma vida imanente. Paralelamente ao mundo regido por Deus no

romance Dom Casmurro existe um outro movido pela pulsão erótica do ser humano

da estética machadiana. Não queremos dizer que um mundo regido por Deus ou pelo

Deus da causalidade como Aquele que é revelado em Dom Casmurro exclui a

dimensão erótica da vida humana, contudo o que se que r afirmar é que a quebra da

promessa potencializou nosso olhar em torno de tal questão. “As cinzas de um

incêndio extinto estão em toda parte, em todas as consciências [...]”238 e, portanto,

não há mais Deus no espaço literário machadiano. Portanto, emerge da estética

machadiana um novo eixo em torno do qual passa a girar o ser humano. É a sinfonia

ditirâmbica da vida que passa a ordenar as ações do ser humano do mundo

machadiano. É por causa da promessa de amor à Capitu que Bentinho decidiu

abandonar a promessa de sua mãe. Mesmo mergulhado em suas consternações,

Bento Santiago foi capaz de reconhecer que o amor que sentia por Capitu era de fato

uma ferida aberta e que ainda latejava dentro dele o acorde de Eros. Diante do que

expomos anteriormente, Capitu poderia ser considerada de fato aquilo que tomava

incondicionalmente Bento Santiago: “Capitu era tudo e mais que tudo; não vivia

nem trabalhava que não fosse pensando nela [...]”239. A experiência mais radical da

transcendência, afirma Leonardo Boff, é a experiência do enamoramento ou do amor,

por tocar incondicionalmente a profundidade de nós mesmos. Para Leonardo Boff a

experiência do enamoramento é uma experiência de êxtase, extática, fora da

realidade, portanto, religiosa.240

Capítulo XII / NA VARANDA

Naquele instante, a eterna Verdade não valeria mais que ele, nem a eterna Bondade, nem as demais Virtudes eternas. Eu amava Capitu! Capitu amava-me! E as minhas pernas andavam, desandavam, estacavam, trêmulas e crentes de abarcar o mundo. Esse primeiro palpitar da seiva, essa revelação da consciência a si própria, nunca mais

238 Cf. Raimundo FAORO, A pirâmide e o trapézio, p. 393. 239 DC, p. 919. 240 Cf. Leonardo BOFF, Tempo de transcendência, p. 42. Vale ressaltar que o exemplo usado por Leonardo Boff é a experiência do amor de Bentinho por Capitu.

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me esqueceu, nem achei que lhe fosse comparável qualquer outra sensação da mesma espécie.241

O fenecimento da imagem de Deus e o aparente caos em que a vida de Bento

Santiago mergulhou fez com que ele produzisse um ardente sentimento de morte:

“quando me achei com a morte no bolso senti tamanha alegria como se acabasse de

tirar a sorte grande, ou ainda maior, porque o prêmio da loteria gasta-se, e a morte

não se gasta.”242

A consciência da morte não se apresentava mais como uma questão crucial,

mas como uma possível solução para os escombros de sua vida. O que é importante

notar é o fato de que Bento Santiago reage positivamente diante de seu mundo sem

Deus, admitindo, portanto, certa esperança na vida a partir dela mesma. O narrador

confirma ter assistido a uma representação de Otelo na noite em que seu destino

caminhava para o pleno vazio e que ao regressar à casa escrevera uma carta a Capitu:

“[...] a última [...]” 243 Poderemos observar que Bento Santiago se entrega a

sentimentos opostos e o que prevalece é o sentimento de afastar o senso de finitude

que paira sobre sua vida: “[...] Pois não, senhor: tinha perdido o gosto à morte. A

morte era a solução; eu acabava de achar outra [...] rejeitei a morte [...]”244 Descobrir

a pulsão vital nos escombros de um mundo não mais regido por Deus significa para

as personagens machadianas, entre outras coisas, afirmar a vida diante da

possibilidade do não-ser e da circundante consciência da morte. Podemos afirmar

então que no espaço da estética machadiana pode haver simultaneamente a entrega

da regência da vida para Deus e a emergência de uma expressão vital que é regulada

pela auto-consciência do ser humano, que passa a admitir sobre sua vida seu próprio

arbítrio, sem pensar em Deus, porém sem perder o horizonte de uma experiência de

natureza incondicional. Esta forma de experimentação da vida seria uma expressão

da experiência religiosa da dimensão antropológica da estética machadiana, sem que

necessariamente a identifiquemos como a experiência cristã de Deus. É preciso

resguardar a dimensão simbólica da incondicionalidade que o ser humano

machadiano expressa diante da intensificação da vida num mundo sem Deus. A

representação de uma experiência intransitiva diante da vida, se vista a partir desse

241 DC, p. 821. 242 DC, p. 934. 243 DC, p. 935. 244 DC, p. 938.

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novo traçado da antropologia machadiana poderá ser identificada como resultado de

uma nova interpretação possível através da atuação da metáfora a qual, por sua vez, é

presidida por um simbolismo que nos remete a uma experiência de natureza

religiosa.

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CAPÍTULO III

VITALIDADE: DIMENSÃO RELIGIOSA DA ANTROPOLOGIA

MACHADIANA

“Que significa viver? – Viver – é continuamente afastar de si algo que quer morrer;

viver – é ser cruel e implacável com tudo o que em nós, e não apenas em nós,

se torna fraco e velho[...]”

Nietzsche

3.1. Finitude e o ser humano machadiano

A questão que se abre com a nova perspectiva antropológica da estética

machadiana deve antes se opor a uma estética do desencanto.245 Nos escombros do

mundo tardomoderno torna-se possível entender que a literatura de Machado de

Assis nos obriga a interpretá-la a partir de sua dimensão pendular. Em Dom

Casmurro a ambivalência e a polissemia que acompanham a estruturação dos

aspectos religiosos são apresentadas de um lado pela perda do sentido de Deus e por

outro pelo surgimento de uma forma de transcendência que se dá nos limites da

própria vida. A inauguração da vida como espaço intransitivo de manifestação das

experiências religiosas se realiza mais propriamente, cremos, no romance Memórias

Póstumas de Brás Cubas (1881).

A tentativa de decifração da experiência do ser humano no mundo

machadiano e a busca por sua expressão religiosa terão a colaboração interpretativa

245 Questões em torno de uma estética do desencanto, Cf. Antonio BLANCH, El hombre imaginario, p. 111-120.

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da compreensão que Jürgen Moltmann empreende da condição humana no mundo

tardomoderno.246 Um importante passo dado por Moltmann tem a ver com a

discussão sobre a significação que a dimensão religiosa pôde assumir diante das

ambíguas experiências de vida que o ser humano vivenciou dentro de um mundo

aparentemente colapsado. A tentativa de captar a expressão do dado religioso a partir

do século XX fez que com Moltmann criasse uma esfera dialógica dos seus

pressupostos teológicos com os resultados conferidos aos processos que alavancaram

o mundo moderno. A sua preocupação sobre a tentativa de perguntar sobre o

significado de Deus e da vida diante da autoconsciência humana do mundo moderno

pôs em movimento sua percepção teológica, a ponto de considerar a recuperação do

dado transcendente a partir de uma realidade onde só a imanência seria possível.

No horizonte do romance MpBC e da imagem humana criada artisticamente

(antropologia) emergente, nesta obra, a pergunta que não quer calar pode ser

apresentada a partir dos seguintes termos: sob que expressão poderemos observar as

a dimensão religiosa da vida dos personagens machadianos em MpBC? O problema

subjacente é saber se diante da forte consciência do eu, traço que marca

profundamente a obra de 1881, poder-se-ia perguntar por uma experiência em nível

incondicional. A hipótese que queremos desaprovar – como a que é defendida por

Faoro em determinados momentos de sua obra A pirâmide e trapézio – é a de que

com a chegada do romance MpBC instala-se na estética machadiana a supressão da

presença do autêntico elemento religioso. O que chamamos no capítulo anterior de

apagamento da imagem de Deus seria para Raimundo Faoro a constatação de que a

autêntica presença da religião no espaço literário de Machado de Assis tornava-se

impossível. Fazendo naturalmente menção ao catolicismo oitocentista presente na

literatura machadiana, Faoro afirma que a religião íntima, sem Deus transcendente e

despida do culto e da oração, não é religião.247 O desamparo para o qual é lançado o

ser humano machadiano e a evidente perda das conexões metafísicas seriam os

indícios da perda daquilo que é autenticamente religioso, segundo Faoro, mas

também seria ao mesmo tempo, em nossa ótica, a procura do sentido da vida no

mundo, em face do caos que se abre diante do ser humano machadiano.

246 Cf. Jürgen MOLTMANN. O espírito da vida: uma pneumatologia integral. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. 247 Cf. Raimundo FAORO, A pirâmide e o trapézio, p. 402.

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Ao observar o processo de secularização das sociedades modernas por meio

da literatura machadiana, Faoro procurou equivalências entre a dimensão normativa

que religião exercia sobre a vida humana e o novo paradigma normativo

desempenhado pela ciência, política e pelo direito.248 O pecado, por exemplo, dentro

de uma sociedade racionalizada, transmutou-se, afirma Faoro, em infração moral,

ficando, portanto, esvaziado em seu autêntico conteúdo religioso.249 Entretanto, o

que Faoro não percebe é que a fragmentação da religião e a ascensão de outras

esferas normativas da vida não nos impedem de perguntar pela existência daquilo

que seriam os aspectos mais elementares da religião, sem aqui pretendermos

essencializá- la. Estamos à procura das situações em que a experiência religiosa se

tornaria possível para o ser humano machadiano num mundo onde supostamente não

haveria espaço para as experiências de tal natureza. Na esteira de Tillich, poderíamos

apostar na compreensão de que uma experiência religiosa seria toda e qualquer

experiência que toma o ser humano incondicionalmente.

A crítica que fazemos ao diagnóstico de Faoro recai mais propriamente sobre

sua impossibilidade de perceber que a dissolução da antiga imagem religiosa do

mundo não promove a total supressão do sentido religioso que a vida pode assumir,

mesmo que vista de dentro de um espaço desteificado. Mesmo debaixo das críticas

que desferimos em direção à relação causal que o protagonista de Dom Casmurro

estabeleceu com o Deus da promessa, foi possível constatar em nosso trabalho

anterior que nos escombros da vida de Bentinho havia ambigüamente certa nostalgia

do divino, o que revela a insistência do ser humano pela busca daquilo que a ele

escapa.250

Seguindo Moltmann, a concretização da autoconsciência do sujeito humano a

partir do mundo moderno fez com que o próprio sujeito humano constituísse um

mundo sob a égide de experiências possíveis ou determinadas por ele mesmo. A

própria noção de experiência de Deus, segundo os critérios de constituição do mundo

248 O termo secularização representa a perda de poder e de validade das visões tradicionais de mundo que quando inquiridas em sua substância pelos novos critérios da racionalidade instrumental foram transformadas em convicções e éticas subjetivas [...] A religião encontrar-se-ia, a partir da modernidade, fora deste novo panorama social, pois seu vínculo com o mundo e a sua legitimação pertenceria ao contexto pré-moderno, lugar de onde não se vê de forma clara a separação entre normas éticas e normas jurídicas. Cf. Luiz Bernardo Leite ARAÚJO, Religião e modernidade em Habermas, p. 37. 249 Cf. Raimundo FAORO, A pirâmide e o trapézio, p. 403. 250 Tillich afirmaria que o fato de o homem ter uma preocupação última revela a sua capacidade que – algo que está em sua natureza – de transcender o fluxo contínuo de experiências finitas e passageiras. Cf. Paul TILLICH, Dinâmica da fé , p. 10.

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moderno, não pode mais ser possível, pois Deus não é objetivamente reconhecível ou

experienciável. 251 A noção teológica subjacente ao ponto de partida de Moltmann

admite também que o sujeito humano não mais poderia ser constituído passivamente

por nenhuma experiência.252 Se ao ser humano do mundo moderno não é mais

permitido ter uma experiência objetiva de Deus, para Moltmann somente seria

possível falar em experiência de Deus.253 Não queremos aqui, juntamente com

Moltmann, trazer a imagem de Deus que se constitui a partir das relações de

causalidade, mas sublinhar a incondicionalidade que a realidade Deus pode trazer

consigo. Como afirma Paul Tillich, Deus transcende seu próprio nome.

A nova face do ser humano da estética machadiana deve ser vista no interior

de um mundo onde o conceito de experiência e mais propriamente o de experiência

religiosa deve possuir dimensões um pouco mais alargadas, pois os limites da

possibilidade das experiências não podem ter a marca da imobilidade (centro para o

qual elas se convergiriam), mas antes devem ser mantidos em aberto (novas

possibilidades de experimentar). Portanto, nos é muito cara a intuição de Moltmann,

que admite desistir da estreita referência à autoconsciência moderna como centro

produtor de uma auto-experiência destrutiva para descobrir transcendência em toda

experiência do ser humano. Daqui deriva o conceito de Transcendência Imanente.254

A noção de Transcendência Imanente em Moltmann inclui a compreensão de que a

experiência de Deus constaria de toda forma de experiência do ser humano. O ajuste

que pretendemos dar a esta compreensão reside no tratamento que Moltmann confere

à idéia de Deus. Se toda experiência de Deus no ser humano for uma experiência

com aquilo que Tillich chamava de preocupação última255 – com o que toma o ser

humano incondicionalmente – poderemos dizer que a nova face do ser humano

machadiano poderá ser vista como referência de uma antropologia que estabelece sua

experiência religiosa nos limites da própria vida, transgredindo, dessa forma, a lógica

de um mundo onde a manifestação de uma experiência dessa natureza não seria mais

possível. Chamaremos de religiosa essa dimensão experiencial da antropologia

machadiana, porque o adjetivo que qualifica e caracteriza tal dimensão como algo

extraordinário é nascido das experiências de vida e, portanto, não poderá ser visto

251 Cf. Jürgen MOLTMANN, O espírito da vida , p. 41. 252 Cf. Jürgen MOLTMANN, O espírito da vida , p. 40. 253 Cf. Jürgen MOLTMANN, O espírito da vida , p. 42. 254 Cf. Jürgen MOLTMANN, O espírito da vida , p. 44. 255 Cf. Paul TILLICH, Teologia sistemática, p. 180.

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como uma província isolada na vida secular e diária, mas sim como algo que está

presente em, com e sob todas as experiências de coisas, ocorrências e pessoas.256

A resposta que esta nova imagem do ser humano machadiano dá a si mesmo

deve ser considerada como contraponto de uma consciência que revela um profundo

sentimento de finitude: “[...] Pois não, senhor: tinha perdido o gosto à morte. A morte

era a solução; eu acabava de achar outra [...] rejeitei a morte [...]”257 A rejeição à

morte pode constatar que o problema da finitude também revela uma porta para o

sentimento de infinitude que se abre a partir da vida. Note-se que do ponto de vista

teológico a ultimacidade que cabe ao que Deus representa no nível simbólico se

metamorfoseia numa ultimacidade a partir da qual a vida passa a ser tomada. A

melhor afirmação que poderemos desferir em direção à nova imagem do ser humano

machadiano deve ser estruturada nos seguintes termos: o ser humano machadiano

quer afastar de si todo e qualquer instinto de morte; portanto não quer morrer. Como

bem afirma Paul Tillich, em todo ser consciente, a vida está cônscia de sua

exauribilidade e é a consciência existencial da finitude própria ao ser humano que

validará ou não a continuação de uma existência finita. Enquanto existir vida, afirma

Tillich, o sensor que indica a finitude ao ser humano terá diante de si o contraponto

que se dará através da auto-afirmação da vida e do desejo de manter uma identidade,

mesmo que seja a identidade de um indivíduo finito ou exaurível. 258 Por isso, a

afirmação de Bento Santiago: “[...] rejeitei a morte [...]”259. Por mais que a quebra da

promessa e a vida que não se realizou ao lado de Capitu atuem como elemento

despontecializador da vida, podemos notar que a antropologia machadiana, de forma

criativa, reinventa os impulsos vitais que se manifestam através da intensificação da

vida.

Mas a experiência da morte é uma realidade para o ser humano machadiano.

A auto-experiência do ser humano da estética machadiana constitui-se, nos romances

autodiegéticos (DC, MpBC e MA), a partir de um testamento biográfico- literário.

256 Cf. Jürgen MOLTMANN, O espírito da vida , p. 38. 257 DC, p. 938. 258 Cf. Paul TILLICH, Teologia sistemática, p. 428. Nas Memórias póstumas... há uma preocupação muito forte do protagonista Brás Cubas com a questão da finitude. Diante do ocaso de sua mãe, Brás Cubas espanta-se com a exp eriência da morte: “Mas esse duelo do ser e do não-ser, a morte em ação, dolorida, contraída, convulsa, sem aparelho político ou filosófico, a morte de uma pessoa amada, essa foi a primeira vez que a pude encarar.” Cf. MpBC, p. 545. E ainda: “Jamais o problema da vida e da morte me oprimira o cérebro; nunca até esse dia me debruçara sobre o abismo do Inexplicável; faltava-me o essencial, que o estímulo, a vertigem [...]”, p. 545. 259 DC, p. 938.

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Essa evidência nos faz pensar se o espaço autobiográfico das personagens

machadianas não poderia também ser visto como um espaço de suas experiências

vividas. Particularmente em MpBC, por ser o narrador não um “[...] autor defunto,

mas um defunto autor [...]”260, as memórias assinaladas no livro que carrega o nome

do protagonista são marcadas, já na abertura, pela experiência da morte.261 Essa

inescapável condição dá o tom inicial das inquietações humanas que são

apresentadas dentro das memórias póstumas. Estando sob os domínios dos instintos

que o remete ao senso de vacuidade, o ser humano machadiano será de algum modo

impulsionado, como dissemos acima, a admitir a vida como uma possibilidade,

mesmo que se reconheça sua dinâmica finita.

Se trabalharmos com a idéia de insistência em torno da tematização da morte,

veremos, exemplarmente, no conto O imortal (1882) e na peça Viver! (1886) as

implicações que essa questão apresenta no legado estético de Machado de Assis. O

problema da morte deve ser acompanhado pela tematização da vida, não apenas esta

como extremo ou oposto da morte. Queremos assinalar que a questão apresentada

pela estética machadiana não se debruça necessariamente sobre o problema da

imortalidade, embora ele esteja presente em diversos momentos, mas sim sobre o da

intensificação da vida: “Era absurdo supor que um tal líquido pudesse abrir uma

exceção na lei da morte.”262 A imortalidade, enquanto questão aberta para o ser

humano machadiano, é uma realidade que emerge, pontualmente, como

possibilidade, diante da hipótese do não-ser. Diante da iminência morte, o pai do Dr.

Leão reconsidera o absurdo que seria o elixir, porque o senso de finitude certamente

o afrontava: “Já agora a morte era certa, que perderia ele com a experiência? [...]

Quem sabe, dizia ele consigo se os homens não descobrirão um dia a imortalidade

[...]”263 A descoberta da imortalidade não nos parece ser o ponto nevrálgico da

estética machadiana. Dr. Leão afirma, ao narrar a história do imortal, que a conquista

da imortalidade trouxe também, à alma de seu pai, um grau de profunda melancolia:

“Nada o contentava; nem o sabor da glória, nem o sabor do perigo, nem o do

amor.”264 Mergulhado numa atmosfera de quimera, Ahasverus, personagem do conto

Viver!, compreende que a condenação à vida eterna transforma a própria vida em

260 MpBC, p. 513. 261 Cf. Luiz Costa LIMA, Dispersa demanda, p. 71. 262 O Imortal, p. 889. 263 O Imortal, p. 889-890. 264 O Imortal, p. 899.

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fastio ou em tedium vitae265: “Sou o último homem; posso morrer. Morrer! deliciosa

idéia! [...] Deus me perdoará, se quiser, mas a morte consola-me.”266 A vida nos

parece não poder se realizar sob a égide da eternidade como dimensão teleológica.

Prometeu, personagem mítica e interlocutor de Ahasverus, tenta convencê- lo de que

a imortalidade, se mantida, promoveria a possibilidade de ler todos os capítulos da

história da vida e a não apenas um capítulo. Entretanto, o que deve ser posto no

centro não é senso de conservação da eternidade, mas a intensidade que os finitos

capítulos da vida devem conter: “Ai, ai, ai, está morrendo e ainda sonha com vida

[...] senão porque a amava muito”267, afirmam as águias que passavam no horizonte e

contemplavam o sono de Ahasverus. A profunda dissipação de um sentido

teleológico para a vida não despede a finitude enquanto realidade para o ser humano

machadiano, como também não o obriga a eleger novos horizontes metafísicos ou

mesmo recorrer aos que foram extintos. A dissipação de um sentido prévio para a

existência aponta para os processos intensificação da vida. No conto A segunda vida

(1884), seria indiferente, confessa José Maria ao Monsenhor Caldas, voltar da

eternidade para nova vida como potentado ou mendigo, desde que lhe garantissem a

experiência que imaginava ter faltado à primeira. Todavia, confessa também ao

velho clérigo que a segunda vida era na verdade “uma mocidade expansiva e

impetuosa.”268

A dimensão religiosa que procuramos a partir de MpBC poderá ser

encontrada sob o prisma das relações estabelecidas no horizonte da vida e através da

capacidade de ação e reação que a nova imagem antropológica da estética

machadiana possui quando é defrontada profundamente com senso de finitude. Daí a

importância de se descobrir um significado maior para existência que pudesse

imprimir sobre ela o tom intransitivo peculiar aos processos de intensificação vida e

ao mesmo tempo resguardá- la do pólo metafísico e negativo da eternidade. Podemos

concluir até aqui que a intensificação da vida não deve ser equivalente, no espaço

literário machadiano, ao desejo de eternidade. Se o ser humano for de fato o espelho

no qual se torna nítida a teia de relação construída entre o finito e o infinito269,

certamente, a polaridade do infinito, do ponto de vista da nova imagem do humano

265 Cf. Viver!, p. 564. (In Várias histórias) 266 Viver!, p. 563-564. (In Várias histórias) 267 Viver!, p. 569. (In Várias histórias) 268 A segunda vida, p. 442. 269 Cf. Paul TILLICH, Teologia sistemática, p. 451.

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machadiano, será representada pela intrans itividade da vida. O ser humano

machadiano aceita o risco de transcender à tragédia que se põe diante da vida

humana e ao sentimento de vacuidade e, por isso, se lança para além deles nos

limites da própria vida. O protagonista das memórias póstumas se põe a perguntar o

“Que há entre a vida e a morte?”270 “Uma curta ponte”271 é a resposta que encontra.

É preciso, portanto, lançar-se à travessia dessa ponte. Sem correr os riscos dessa

travessia não há como estabelecer nenhuma forma de experiência.272

Paradoxalmente, dentro das memórias póstumas o centro hermenêutico se constitui a

partir da afirmação da incondicionalidade da vida: “Ânimo, Brás Cubas, não me

sejas palerma [...] trata de saborear a vida; e fica sabendo que a pior filosofia é a do

choramingas que se deita à margem do rio para o fim de lastimar o curso incessante

das águas.”273 Só há um mal para quem se compraz com a festa da vida; “Porquanto,

verdadeiramente há só uma desgraça: é não nascer.”274 A descoberta da

intransitividade da vida significa também, para o ser humano machadiano, em nossa

compreensão, a descoberta da dimensão religiosa nas experiências de vida. Ao tomar

a vida como forma última de realização de sua expressão vital, o ser humano

machadiano inaugura uma dimensão incondicional, porque é a partir desses impulsos

que se consegue superar a finitude e alocar o senso de infinitude nos limites da

própria vida. A intransitividade da vida torna-se, em certa medida, o horizonte para o

qual se dirige o ser humano da estética machadiana. A justificativa para a morte de

Brás Cubas nasceu exatamente de um impulso que pretendia aliviar o absurdo da

vida. Perplexo e diante da possibilidade do nada, lugar para onde a vida do

protagonista parecia se dirigir, Brás Cubas meteu-se a criar um medicamento

sublime, diferente do elixir da eternidade do conto O Imortal, e com efeitos um

pouco mais modestos. A pneumonia que o levou para o outro lado da vida foi apenas

uma conseqüência fortuita do resultado “verdadeiramente cristão”275 que o emplasto

anti-hipocondríaco deveria produzir contra “a nossa melancólica humanidade.”276

A melancólica humanidade de Brás Cubas só foi percebida por ele após ter

vivido intensamente uma vida da qual certamente não desejava se despedir de forma

270 MpBC, p. 620. 271 MpBC, p. 620. 272 Cf. Jürgen MOLTMANN, O espírito da vida , p. 34. 273 MpBC, p. 626. 274 MpBC, p. 614 -615. 275 MpBC, p. 514 -515. 276 MpBC, p. 515.

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tão breve. A idéia do emplasto, que é narrada pelo defunto autor, nos remete a um ser

humano que reconhece sobre si a força da finitude e ao mesmo tempo reconhece

também o desejo de retornar à mesma vida que vivera. O filósofo do Humanitismo, o

desvairado Quincas Borbas, nos dá uma importante pista do significado

incondicional que a vida assume nas memórias póstumas, ao afirmar que ela “é o

maior benefício do universo, e não há mendigo que não prefira a miséria à morte [...];

segue-se que a transmissão da vida, longe de ser uma ocasião de galanteio, é a hora

suprema da missa espiritual.”277 Essa luta contra morte é a expressão de uma

autêntica antropologia que não é movida pelo desejo de eternidade, mas que é

tomado por uma dimensão incondicional no espaço imanente da vida e na realização

das experiências concernentes a ela, como a experiência do amor. Brás Cubas nos

indica, por meio das experiências que podem ser realizadas no horizonte da vida,

uma forma própria de transcender na imanência sem se perder.278 A perda dos

antigos horizontes absolutos, no caso de Brás Cubas, não implica a instalação de

processos despotencializadores da vida destrutivamente ou que a instrumentaliza de

alguma forma.

277 MpBC, p. 615. 278 Cf. Paul TILLICH, A coragem de ser, p. 62.

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3.2. Vitalidade

O reconhecimento da ameaça do não-ser é uma prova de que o ser humano

machadiano se lança à auto-afirmação da vida que acontece na imanência.279 Para

Brás Cubas, a vida não deve se estender à eternidade. A questão da morte dentro das

memórias póstumas deve ser tomada como uma dimensão que impede a continuidade

de tudo que venha a ser uma forma de intensificação da vida e não como uma via

para o salto à eternidade. A idéia das memórias pode ser vista como um recurso

criado pelo narrador defunto para driblar o tempo, que segundo Brás Cubas é o

ministro da morte. A recordação é uma mane ira própria de retornar ao mesmo ou à

experiência vivida e por isso a vida deve ser compreendida a partir de todo esforço

que ofereça a ela a maior intensidade possível, pois a advertência de Cubas é

categórica: “ninguém se fie – apenas – da felicidade presente.”280 “Reagi a mocidade,

era preciso viver. Meti no Baú o problema da vida e da morte [...]”281 O tom da

intensidade das experiências de Brás Cubas é construído através uma paixão pela

vida a partir da qual ela se torna intransitiva. A vida nas memórias póstumas ganha

um significado maior do que a promessa da eternidade. A eternidade é para Cubas a

representação do nada e o lugar para onde o punhado de pó, que é o destino do ser

humano, será espalhado pela morte.282

Sob a ótica do ser humano machadiano, a dissolução da imagem de uma vida

alicerçada na eternidade, imóvel e ordenada demonstra a emergência da afirmação de

uma presença intransitiva no mundo. Esconde-se nessa nova imagem do ser humano

machadiano a necessidade da descoberta de um campo de sentido sobre o qual a vida

finita deve acontecer.283 Mesmo que a efetivação de uma vida intransitiva se dê por

meio de experiências objetivas como na vida de Brás Cubas, a dimensão que deve

permanecer em evidência, intocável ou mesmo indecifrável é o mistério que leva o

ser humano machadiano a ser tomado incondicionalmente pela auto-afirmação da

vida. A vida que se deriva de um processo de auto-afirmação representa de algum

modo a superação de algo que trai ou nega o eu. 284 Poderíamos dizer juntamente com

279 Tillich argumenta que a coragem de ser é a coragem de afirmar a nossa própria natureza por e sobre o que é acidental em nós. Cf. Paul TILLICH, A coragem de ser, p. 10. 280 MpBC, p. 518. 281 MpBC, p. 547. 282 MpBC, p. 518. 283 Cf. Clara ROCHA, As máscaras de Narciso , p. 17-18. 284 Cf. Paul TILLICH, A coragem de ser, p. 19.

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Paul Tillich que a nova imagem do ser humano machadiano se constitui sobre a

coragem de afirmar a vida, a despeito de todas as ambigüidades que ela carrega

consigo, e por isso mesmo esse humano não se acovarda quando é confrontado por

qualquer forma de antecipação da morte. A este intenso processo de amor à vida

chamaremos de Vitalidade.285 De acordo com Moltmann, é através dessa

incondicional manifestação de auto-afirmação que o ser humano machadiano pôde

dissipar toda e qualquer instrumentalização moral da vida e dele mesmo em favor de

um livre intensificação vida.286 A vitalidade é o principal instrumento da sinfonia

ditirâmbica que Brás Cubas compôs.

No capítulo O Delírio, Brás Cubas, antes mesmo de sentir o hálito da morte,

narra a viagem que fez através dos tempos. Sentiu-se transformado na Suma

Teológica de S. Tomás, impressa num só volume. A teologia tomista tornou-se um

alvo do humor machadiano. Brás Cubas dizia que a transformação em Suma

Teológica deu ao seu “corpo a mais completa imobilidade.”287 Levado ao Éden por

um hipopótamo, Brás Cubas viu surgir diante de si o vulto de uma mulher que se

apresentou da seguinte forma:

– Chamam-me Natureza ou Pandora; sou tua mãe e tua inimiga. [...] – Não te assustes, disse ela, minha inimizade não mata; é sobretudo pela vida que se afirma.288

No diálogo que segue, Brás Cubas demonstra certa preocupação com a sua

existência ao perguntar à Pandora se ainda vive:”- Vivo? perguntei eu [...] como para

certificar-me da existência” [...] “– Sim, verme, tu vives”, respondeu Pandora. A

estupefação de Brás Cubas diante da possibilidade do não-ser assume maiores

proporções quando Pandora anuncia que a vida que lhe é cobrada naquele momento

285 Cf. Jürgen MOLTMANN, O espírito da vida , p. 89. 286 Cf. Jürgen MOLTMANN, O espírito da vida, p. 89. A compreensão que temos de vitalidade deve, como aponta Moltmann, se distanciar do espírito hedonista que se instalou nas sociedades modernas. Ela aqui também não deve ser confundida com o impulso que levou a sociedade burguesa tardia ao endeusamento (culto) da saúde, ao culto do corpo e à exaltação da força vital como eficiência. Portanto, a vitalidade que surge do amor à vida deve se opor aos processos que nos entorpecem em nossas rotinas dentro de uma sociedade tecnocrata. Cf. Jürgen MOLTMANN, O espírito da vida , p. 90. 287 MpBC, p. 520. 288 MpBC, p. 521.

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não passa da devolução de algo que a ele foi emprestado: “tu estás prestes de

devolver-me o que te emprestei.”289

Pandora ou Natureza parece de fato conhecer toda a existência de Brás Cubas

ao chamá-lo de grande lascivo. Certamente, ela relaciona a lascívia de Brás Cubas à

sua paixão pela vida, ao intenso amor dispensado à Marcela e depois à Virgília:

[...] Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada.290

A absurdidade que a possibilidade do não-ser apresenta aciona o nosso senso

de auto-afirmação da vida. A vitalidade emerge diante da iminência da morte como

incondicional manifestação de amor, plenificação e conservação da vida. Podemos

nitidamente perceber que a súbita reação de Brás Cubas, ao ouvir de Pandora que o

momento seguinte de sua existência seria o nada, se movimenta sobre essa coragem

de se auto-afirmar.

Quando esta palavra ecoou – “espera-te a voluptuosidade do nada” -,

como um trovão, naquele imenso vale, afigurou-se-me que era o último

som que chegava a meus ouvidos; pareceu-me sentir a decomposição

súbita de mim mesmo. Então, encarei-a com olhos súplices, e pedi mais

alguns anos.291

Observamos que não é a eternidade que é posta em questão, mas sim os anos

a mais que pede a Pandora. Essa atitude de Brás Cubas revela nitidamente a

consciência de que a vacuidade é uma expressão da ameaça do não-ser e que o

resultado da equação apresentada não pode ser outro termo senão um prolongamento,

mesmo que diminuto, da vida que acontece.292 Certamente, nos instantes a mais que

pede para viver, Brás Cubas poderia uma vez mais presentificar as experiências de

maior expressão vital, como por exemplo, a do amor eros. O argumento de Pandora

tenta convencer Brás Cubas de que a vida sempre resulta num vazio. Sendo assim, o

que mais poderia querer o grande lascivo?

Pobre minuto! exclamou. Para que queres tu mais alguns instantes de

vida? Para devorar e seres devorado depois? Não estás farto do

289 MpBC, p. 521-522. 290 MpBC, p. 522. 291 MpBC, p. 522. 292 Tillich chama de ansiedade o que nomeamos consciência do vazio. A ansiedade seria determinada pela autoconsciência do eu finito como finito. Cf. Paul TILLICH, Teologia sistemática, p. 164.

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espetáculo e da luta? Conheces de sobejo tudo o que eu te deparei menos

torpe ou menos aflitivo: o alvor do dia. a melancolia da tarde, a

quietação da noite, os aspectos da Terra, o sono, enfim, o maior

benefício das minhas mãos. Que mais queres tu, sublime idiota?293

Se a vitalidade (o amor à vida) é a categoria a partir da qual poderemos

interpretar aquilo que toma Brás Cubas incondicionalmente, a resposta do grande

lascivo à pergunta derradeira de Pandora (Que mais queres tu, sublime idiota?) não

poderia ser outra senão:

Viver somente, não te peço mais nada. Quem me pôs no coração este

amor da vida [...]294

Paul Tillich tem muita razão ao afirmar que diante da autoconsciência estão

unidas a ansiedade da transitoriedade e a coragem de um presente auto-afirmado. A

experiência de Brás Cubas, cremos, é um emblemático exemplo da conjunção dessas

duas dimensões.295 A experiência radical do ter-que-morrer é o que impulsiona

fortemente Brás Cubas para o enfretamento da magnitude da vida.296 Desse processo

advém a elevação das relações objetivas da vida à categoria de sentido último como

uma espécie de representação do infinito no finito. Em nossa ótica, essa é a

capacidade que Brás Cubas possui de aceitar a finitude que lhe assola, mas também

tal capacidade demonstra que ele não é um ser humano fechado às experiências e por

isso mesmo pode ser tomado incondicionalmente por algo que pertenceria em

princípio ao temporal ou ao efêmero. Paul Tillich chama tal processo de coragem de

afirmação do finito, todavia irá exigir da emergência dessa coragem a denúncia de

sua origem. 297 Optaremos aqui por entender que a vitalidade, enquanto categoria que

nos faz compreender melhor o ser humano machadiano, é a possibilidade mesma de

estabelecer, sob a perspectiva da efetivação das relações de amor (eros), a afirmação

da vida apesar de tudo aquilo que a diminui, apesar das suas fraquezas, de seus

293 MpBC, p. 522. 294 MpBC, p. 522. 295 Dessa percepção deriva, segundo Paul Tillich, o caráter ontológico do tempo. Cf. Paul TILLICH, Teologia sistemática, p. 165. 296 Cf. Paul TILLICH, Teologia sistemática, p. 296. 297 Cf. Paul TILLICH, Teologia sistemática, p. 178.

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obstáculos e apesar de uma das mais radicais experiências que acontece dentro dela,

que é a experiência do embate da vida contra a morte.298

Por mais insensível e despercebido que seja o ser humano dificilmente

deixará, de algum modo e ou em algum momento de sua vida, de sentir a indefinível

presença ou ausência de algo que o transcende ou que o abarca.299 Esta imagem

totalizante do ser humano certamente foi contemplada pela estética machadiana.

Resta-nos saber de fato se esta força estética presente na literatura de Machado de

Assis possui uma singularidade. A exigência que deve ser cumprida diante da

literatura machadiana é a de saber se as operações hermenêuticas que empregamos,

em alguma medida, confrontam ou mesmo confirmam determinadas interpretações

teológicas sobre o ser humano. Dissemos em outro momento que enquanto

hermenêutica, a teologia apresentaria, portanto, uma profunda afinidade com o

discurso literário, pois tanto a teologia, sob esta nova ótica, quanto a literatura

constroem – a partir da capacidade que elas possuem em lidar e de identificar as

regiões simbólicas na realidade – formas de conhecimento do ser humano e do

mundo, que por sua vez fazem apelo às operações de natureza hermenêutica para a

revelação do excesso de sentido que caracteriza a maneira pela qual eles são

representados por elas.300

Observando de forma superficial o interior da cultura ocidental perceberemos

que a história do pensamento, a teologia e as manifestações artísticas sempre

rodearam, cada uma a sua maneira o problema da finitude, e a identificaram como

uma questão que não se resolve facilmente no horizonte do ser humano. Sócrates,

membro perpétuo da cultura grega, aqueceu o problema da finitude, sobretudo, no

Fédon, com as tematizações em torno da imortalidade da alma.301 No interior da

cultura judaica, é marcante a tematização do problema da finitude, até mesmo porque

grande parte da nossa experiência religiosa cristã foi construída a partir dele. A

emblemática presença de Jesus Cristo e as construções soteriológicas que se

298 Cf. Jürgen MOLTMANN, O espírito da vida, p. 90. O conceito de vitalidade de Tillich também nos é muito caro. Para ele esta noção deve ser entendida como o poder que mantém um ser vivo com vida e crescendo. Cf. Paul TILLICH, Teologia sistemática, p. 154. 299 Cf. Antonio BLANCH, El hombre imaginario , p. 409. 300 Supra... 301 “[...] ela – a alma – se dirige, para o que é invisível, para o que é divino, imortal e sábio; é para o lugar onde sua chegada importa para ela na posse da felicidade, onde divagação, irracionalidade, terrores, amores tirânicos e todos os outros males da condição humana cessam de lhe estar ligados,e onde, como se diz dos que receberam a iniciação, ela passa na companhia dos Deuses o resto do seu tempo.” Cf. PLATÃO, Fédon. In Diálogos, p. 86.

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edificaram em torno dele (sobretudo o dogma da ressurreição) são autênticos

testemunhos de que a vida sempre fora confrontada com uma espécie de sentimento

trágico. Gregos, Judeus e nós, homens e mulheres forjados pela bricolagem que

marca o encontro dessas culturas, passamos a reconhecer mais fortemente tal

sentimento trágico da vida quando a morte, que foi possível para o homem que

também era Deus, passou a ser descoberta como uma realidade plausível.302 Não

seria de se espantar se pensássemos que Aquiles, personagens da mais alta mitologia,

preferiu a morte gloriosa a uma vida inglória. O problema que pode ser levantado

reside no fato de termos privilegiado os processos que supostamente nos levariam a

neutralizar o senso de finitude. Em outras palavras, dentro da nossa tradição religiosa

(paulina) e filosófica (socrática) sempre fomos impulsionados a pensar que a

descoberta da finitude deveria ser ofuscada pela descoberta da imortalidade.303 Como

bem afirma Miguel de Unamuno, essa descoberta, a da imortalidade304, preparada

pelos processos religiosos foi especificamente cristã.305 Para Unamuno, a descoberta

da morte é o que nos revela Deus.306 Paul Tillich também aposta que o sentido de

Deus, resguardando as particularidades que essa categoria assume dentro de seu

pensamento nasce da resposta à pergunta que está implícita na finitude do homem. É

claro que o instinto de sobrevivência também está presente e que também ele é

confrontado com o nosso senso de finitude. Unamuno procura compreender que a

morte não pode ser tomada como certeza absoluta, total, completa e como

irrevogável aniquilação da consciência pessoal, pois se assim fosse a vida tornar-se-

302 A morte de Cristo foi para Unamuno a suprema revelação da morte. Cf. Miguel de UNAMUNO, Do sentimento trágico da vida, p. 60. O interlocutor de Equécrates parece-nos também ter tido uma impressão muito semelhante à de Unamuno, a respeito da morte de Sócrates: “Tal foi, Equécrates, o fim de nosso companheiro. O homem de quem podemos bendizer que, entre todos os de seu tempo que nos foi dado conhecer, era o melhor, o mais sábio e o mais justo”. Cf. PLATÃO, Fédon, p. 126. 303 A serenidade de Sócrates frente à morte soa-nos, particularmente, de forma perturbadora: “– Que estais fazendo? – exclamou Sócrates. – Que gente incompreensível! Se mandei as mulheres embora, foi sobretudo para evitar semelhante cena, pois segundo me ensinaram, é com belas palavras que se deve morrer. Acalmai-vos, vamos! dominai-vos!” A inquietude dos discípulos diante da morte do mestre é ofuscada pela certeza de que a vida que se esvai é muito menor do que a vida para onde se destina: “Ao ouvir esta linguagem, ficamos envergonhados e contivemos as lágrimas[...]” Cf. PLATÃO, Fédon. In Diálogos, p. 126. 304 O dogma central para o Apóstolo convertido – afirma Unamuno – foi o da ressurreição de Cristo. “O importante, para ele, era que Cristo se tivesse feito homem e tivesse morrido e ressuscitado, não o que fez em vida, não sua obra moral e pedagógica, mas sua obra religiosa e eternizadora: Ora, se é coerente pregar-se que Cristo ressuscitou dentre os mortos, como, pois, afirmam alguns dentre vós que não há ressurreição de mortos? E, se não há ressurreição de mortos, então Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, é vã nossa pregação e vã a nossa fé... E ainda mais: os que dormiram em Cristo pereceram. Se a nossa esperança em Cristo se limita apenas a esta vida, somos os mais infelizes de todos os homens.”(I Cor., XV, 12-14 e 18-19). Cf. Do sentimento trágico da vida, p. 61. 305 Cf. Miguel de UNAMUNO, Do sentimento trágico da vida, p. 61. 306 Cf. Miguel de UNAMUNO, Do sentimento trágico da vida, p. 60.

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ia impossível. Unamuno desconfia de que a dimensão que se opõe à morte enquanto

aniquilação absoluta da consciência é sempre possível, porque “num esconderijo, o

mais recôndito do espírito, talvez sem o saber, o mesmo que crê está convencido de

que, com a morte, acaba sempre sua consciência pessoal, sua memória, nesse

esconderijo resta- lhe uma sombra, uma vaga sombra de sombra de incerteza, e

enquanto ele se diz: ‘Eia! Vamos viver esta vida passageira, que não há outra!’, o

silêncio daquele esconderijo lhe diz: ‘Quem sabe...!’ Talvez creia não o ouvir, mas

ouve.”307A incerteza ou certeza do se houver outra vida está perenemente presente no

íntimo do ser humano e por isso torna-se incompreensível para Unamuno a

afirmação daqueles que dizem jamais terem sido atormentados pela perspectiva do

além da morte.308

Nesse arco histórico que vai do pensamento grego às construções teológicas

mais atuais parece-nos haver uma insistência de contornar uma questão radical que

não é propriamente a questão da finitude.309 Se a finitude é de fato um dos termos

principais da equação que se aloca no horizonte da vida, certamente ela requererá,

por ser equação, o outro termo. A chamada vida sem ambigüidades é a vida sem

307 Cf. Miguel de UNAMUNO, Do sentimento trágico da vida, p. 115. 308 Seria importante ressaltar que Maurice Blanchot construiu, a partir da literatura de Kafka, uma forma muito particular de compreensão das questões sobre finitude e infinitude. O ocidente conseguiu, através da criação da imortalidade como recompensa de uma vida, acabar com a morte. Não é mais possível morrer. A desgraça do homem ocidental é exatamente a impossibilidade de morrer. Para Kafka, segundo Blanchot, um silêncio agradável após a morte de um homem sobrevém por algum tempo até que os lamentos se iniciem à cabeceira do morto e tenha, no fundo, como razão o fato de que ele não está morto no verdadeiro sentido da palavra. Entre o desespero da vida e a esperança de continuarmos vivos existe a certeza de que a morte termina com a nossa vida, mas não com a nossa possibilidade de morrer. Como não podemos sair da existência, ela não está terminada, ela não pode ser vivida plenamente. Esta forma de descoberta da infinitude nos leva a perceber que a vida sempre será possível ao passo que a morte torna-se apenas uma possibilidade. O impasse desta questão estaria na incapacidade de morrermos, pois a infinitude só pode ser alcançada através da morte: “é a morte que nos domina, mas ela nos domina com a sua impossibilidade, e isto quer dizer que nascemos, mas também que estamos ausentes da nossa morte.” Para Maurice Blanchot, o tema tratado no interior de A metamorfose pode ilustrar a querela infinita da esperança com o desespero, criada pela literatura. Transformando-se num inseto, Gregor permanece vivo num estado de profunda decadência. Próximo da absurdidade e da impossibilidade de viver, Gregor busca, mesmo na condição de inseto, a saída da sua desgraça ao lutar por um lugar sob o sofá. Ao morrer na solidão morre feliz, pois é a chegada a hora da libertação, da esperança de um fim definitivo. Entretanto, a narrativa de A metamorfose não permite que a morte tenha sua vez. Kafka faz ressurgir na irmã de Gregor uma absurda vontade de viver, que para Blanchot significa nada mais que possibilidade de escapar do inevitável. Cf. Maurice BLANCHOT, A parte do fogo, p. 15-18. 309 O trabalho que José Carlos Barcellos constrói em busca de uma teologia dramática a partir da literatura de Julien Green debruça-se, p. ex., sobre a tragicidade da condição humana com único propósito de apresentá-la à mensagem evangélica da salvação. “Assim quando Green afirma “spirituellement ma vie est un désastre”, ele está reconhecendo o caráter dramático, trágico mesmo, da frustração existencial e religiosa vivenciada no seio mesmo dos mais altos projetos e desígnios [...] pois Cristo veio precisamente para o que estava perdido.” Cf. José Carlos BARCELLOS, O drama da salvação..., p. 126.

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contradições.310 Para Paul Tillich, a vida sem ambigüidade é a vida que se realiza

quando se descobre o rumo ao qual ela se auto-transcende. A vida sem ambigüidade

foi, segundo Tillich, muito bem expressada por meio de um processo de estruturação

simbólica, já que é a partir da religião que o ser humano recebe a resposta para o seu

absurdo, para o que está ausente ou mesmo para o que o toma incondicionalmente. O

simbolismo religioso produziu três símbolos principais para expressar a vida sem

ambigüidades: Espírito de Deus, Reino de Deus e Vida Eterna.311 Como bem afirma

Paul Tillich, o material simbólico do simbolismo da Vida Eterna é retirado da

estrutura categorial da finitide e carrega consigo a presença dos outros dois

simbolismos.312 É claro que o domínio de compreensão e do sentido que tais

símbolos são portadores é o domínio da teologia cristã ou nascem do advento Jesus

Cristo, pois o simbolismo da Vida Eterna, por exemplo, deve assumir a direção da

conquista das ambigüidades da vida para além da história.313 Uma tarefa

hermenêutica se esconde no espaço de interpretação dessa estrutura simbólica. Se

couber, portanto, à teologia a tarefa de tematizar aspectos da vida como a finitude,

bem como a de interpretar as construções simbólicas que a religião é capaz de

construir como forma de dar vida às respostas nascidas das ambigüidades, como

chama Paul Tillich, cabe-nos então perguntar, em nosso caso, qual é a função da

literatura machadiana ao exercer o mesmo esforço imposto tanto pela teologia quanto

pela filosofia, ao problematizar as mesmas questões e ao apresentar as respostas

exigidas pelos dilemas humanos travados em sua dimensão propriamente estética.314

Literatura e teologia são formas autônomas de decodificação dos símbolos

universais de onde emergem os aspectos essenciais da vida do ser humano. Quando a

literatura é percebida para além da mímesis e da pura representação do real não há,

no confronto com a teologia, uma relação de subordinação. Quando se descortinou

em Brás Cubas a realização de uma vida intransitiva e impulsionada pelo senso de

auto-afirmação emergente no ser humano machadiano, descortinou-se também,

segundo nossos pressupostos interpretativos, uma singularidade que acompanha esse

310 Cf. Paul TILLLICH, Teologia sistemática, p. 466. 311 Cf. Paul TILLICH, Teologia sistemática, p. 467. 312 Cf. Paul TILLICH, Teologia sistemática, p. 468. 313 Cf. Paul TILLICH, Teologia sistemática, p. 468. 314 Se houver de fato uma função ou funções para a literatura, de algum modo será(ão) devedora(s) do campo de sentido que ela é capaz de criar. Compreender um texto literário, portanto, é acima de tudo torná-lo significativo para nós. Por isso, os textos literários não devem ser vistos como realidades portadoras de um sentido prévio. O sentido de um texto deve ser construído a partir de operações hermenêuticas. Cf. Paul RICOEUR, Do texto à ação, p. 130.

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ser humano. Estando o ser humano machadiano confrontado com questão da finitude,

não há em sua forma de resolver essa questão uma obediência à matriz soteriológica

que permeia nossa tradição religiosa e teológica.

O cristianismo é bom para as mulheres e os mendigos, e as outras religiões não valem mais do que essa: orçam todas pela mesma vulgaridade ou fraqueza [...] Verás – Brás Cubas – o que é a religião humanística [...] é a reconstituição da substância, não o seu aniquilamento315

O que estamos afirmando é que a teologia de Paul Tillich permanece ainda

com uma dívida com a matriz soteriológica construída pela tradição cristã.316

Dissipar a possibilidade da eternidade e o apego radical à vida que acontece

transformariam as memórias póstumas, em nossa ótica, numa grande ode à vida sem

que ela e a plena superação da finitude dependessem de uma dimensão utópica além

da história. O amor incondicional à vida (“Viver somente, não te peço mais nada

[...]”317 ou “Viver não é a mesma coisa de morrer[...]”318), o amor vivido com

Marcela (“Gastei trinta dias para ir do Rossio Grande ao coração de Marcela, não já

cavalgando o corcel do cego desejo [...]”319) e depois a descoberta da paixão por

Vírgília (“Vejam: o meu delírio começou na presença de Virgília; Virgília foi o meu

grão pecado da juventude”320 [...] “Virgília era o presente; eu queria refugiar-me nele

[...]”321 “Virgília era o travesseiro do meu espírito [...]”322) formam o epicentro das

memórias. Observemos apenas como contraponto que a vida sem ambigüidades,

como postula Paul Tillich, deve ter como horizonte o simbolismo religioso que é

construído dentro da matriz religiosa cristã e a ele de certa forma deve se subordinar.

As particularidades da estética machadiana serão mais acentuadamente percebidas

quando observarmos que a questão mais importante do diálogo da teologia ou da

filosofia com a vida não está propriamente na identificação das questões mais

radicais como a finitude, mas sim na resposta que ela – a literatura – apresenta para

315 Esta afirmação é dada por Quincas Borba, amigo de Brás Cubas e criador do humanitismo. Cf. MpBC, cap. 157. 316 Para Paul Tillich a resposta à busca de uma vida sem-ambigüidades é a experiência da revelação e salvação. Cf. Paul TILLICH, Teologia sistemática, p. 469. 317 MpBC, p. 522. 318 MpBC, p. 536. 319 MpBC, p. 534. 320 MpBC, p. 525. 321 MpBC, p. 575. 322 MpBC, p. 575.

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os dilemas que já se tornaram consenso. Não é a exposição da questão radical da

finitude a singularidade da estética machadiana, mas sim a possibilidade de o ser

humano construído artisticamente vislumbrar que a vida pode se despedir das

exigências soteriológicas e mergulhar num processo de auto-afirmação do presente:

“Teria de escrever um diário e não umas memórias, nas quais só entra a substância

da vida.”323 Por mais que o simbolismo da Vida Eterna aponte, a partir de seu

campo de sentido, algo maior do que uma vida perfeita além da história, cremos

haver na antropologia machadiana uma dura crítica à eternidade como efetivação

objetiva de uma vida sem riscos, pois a eternidade seria uma espécie de consolação

suprema ou mesmo de instrumentalização por subordinar a vida de forma repressiva

a um processo de salvação. A antropologia que permite experimentar a dimensão

incondicional a partir da vida sem ultrapassar os limites da imanência não deve ser

inteiramente comparada ao que se convencionou chamar de homo religiosus;324

propomos antes que se deva chamá-la de homo vitalis.

323 MpBC, p. 544. 324 Cf. Mircea ELIADE, O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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3.3. O homo vitalis

O homo vitalis 325não é uma construção categorial criada especificamente em

oposição ao homo religiosus proposto por Mircea Eliade. O homo vitalis é antes, e

assim cremos, um evento metafórico-enunciativo emergido do arcabouço estético da

literatura machadiana, que nos exige tal enquadramento conceitual para uma

compreensão um pouco mais alargada das expressões religiosas sob o ponto de vista

antropológico, depois da chamada morte de Deus.

O cenário caótico do mundo tardomoderno configurado exemplarmente pelas

experiências de destruição movidas pelas mãos das guerras não nos deixaram de

forma clara uma dimensão que pudesse apontar para a presença explícita das

expressões religiosas, quer do ponto de vista antropológico quer do ponto de vista da

natureza. O próprio trabalho de uma teologia da cultura em Paul Tillich, sobretudo

seu esforço de ressignificação da estética da desmaterialização representada pelo

movimento expressionista, pode ser visto como uma tentativa de busca do

incondicional nos escombros de um mundo onde as antigas cosmovisões religiosas

estavam claramente dilaceradas. À guisa de digressão tocaremos de forma sutil no

problema que levantamos aqui. Para autores como Mircea Eliade, seja qual for o

contexto histórico em que se encontra, o homo religiosus acredita sempre que existe

uma realidade absoluta, o sagrado, que transcende este mundo, que aqui se

manifesta, santificando-o e tornando-o real. 326 Essa visão estabelece uma

significação cristalizadora das formas através das quais o ser humano estabelece sua

relação ou é tomado por aquilo que o escapa. A idéia força de Eliade, para justificar

o essencialismo em que o homo religiosus é mergulhado, parte da premissa de que no

mundo moderno o ser humano assume uma nova situação existencial que é marcada

pela rejeição a todo e qualquer apelo à transcendência.327 Tal premissa não se

distancia muito do que trouxemos como fator de discussão da situação religiosa do

ser humano no mundo tardomoderno, nem tampouco se distancia da interpretação

corrente do que foi a relação da religião com a modernidade. O problema que vemos

325 Do Latim vitalis – Adj. – Da vida, relativo à vida [...] 2. Que conserva a vida [...] 3. Fig. Digno de ser vivido [...] - Vitalitas – f. Vitalidade, força vital (Marco Túlio Cícero) - Vitaliter – Adv. Vitalmente, com vida [...] Cf. Antonio Gomes FERREIRA. Dicionário de Latim-Português. Porto: Porto Editora, 1976. Cf. tb. Vitalité (francês) – Vivification – Revivification [...] 326 Cf. Mircea ELIADE, O sagrado e o profano, p. 164. 327 Cf. Mircea ELIADE, O sagrado e o profano, p. 165.

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é que a subsistência do chamado homo religiosus é promovida por uma linha

sucessória que o liga ao que Eliade nomeia de homem a-religoso. Segundo Eliade,

esta seria a maneira própria para classificar o homem moderno. Numa ponta estaria o

homo religiosus e na outra o homem a-religoso. Nessa infinita discussão que se

movimenta dentro das polaridades sagrado vs profano, o homem a-religioso (o

homem moderno), aquele que se dessacraliza, dessacraliza o mundo e que somente

se sent irá verdadeiramente livre quando tiver matado o último Deus, será tão

somente visto por Eliade como uma dimensão antropológica que carrega consigo

apenas alguns vestígios do homo religiosus.328 A questão que se abre para Eliade faz

com ele estabeleça um processo incessante de comparação entre o homem mais

primitivo (homo religiosus) e o mais moderno (homem a-religioso) para justificar a

substancialização que pretende conferir ao homo religiosus . Não estamos convictos

de que esta hipótese, a que determina a expressão religiosa do ser humano através de

uma matriz rígida e primitiva ou mesmo essencialista, mesmo que válida, seja a

melhor maneira de compreender a complexidade e as formas de efetivação das

experiências religiosas dos seres humanos. Não basta provar que o ser humano é um

ser de abertura ao transcendente, porque certamente correríamos o risco de lançá- lo

ao vazio que se apresenta a toda proposta essencialiadora e ao mesmo tempo

perderíamos de vista as particulares expressões religiosas que o ser humano pode

assumir.329

O homo vitalis é uma questão de sentido. Por se tratar de um evento delineado

pelo discurso literário que atinge a realidade através de um processo de

referenciação, o homo vitalis não assumirá a tarefa de enquadrar ou de se propor

como matriz da expressão religiosa do ser humano do mundo tardomoderno. O homo

328 Cf. Mircea ELIADE, O sagrado e o profano, p. 165-166. 329 Essa crítica também pode ser direcionada a determinados trabalhos que, a partir da interface teologia e literatura, constroem imagens engessadas tanto de Deus quanto do ser humano. Alguns trabalhos têm demonstrado, do ponto de vista metodológico e teórico, uma rigidez teológica condicionadora. Este é o caso de trabalhos como o de José Carlos Barcellos e o de Antonio Manzatto. Cf. BARCELLOS. José Carlos. O drama da salvação: espaço autobiográfico e experiência cristã em Julien Green. Rio de Janeiro: PUC – Rio, Tese. Departamento de Teologia. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2000. Cf. MANZATTO, Antonio. Teologia e Literatura: reflexão teológica a partir da antropologia contida nos romances de Jorge Amado. São Paulo: Loyola, 1994. A crítica que fazemos tem um duplo movimento: 1. Ao tematizar as relações entre Deus e o ser humano tais trabalhos não conseguem se desfazer dos rígidos sistemas teológicos como eixo hermenêutico dessa relação. 2. Partem de um princípio teológico que pressupõe uma revelação de Deus definida e delimitada, o que impede a possibilidade da construção de novas percepções religiosas tanto do ponto de vista teológico quanto do ponto de vista antropológico. Deus é comumente visto como resposta para as questões relacionada à condição humana. Sobre tais críticas, cf. tb. Antonio MAGALHÃES. Deus no espelho das palavras. São Paulo: Paulinas, 2001.

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vitalis e suas singularidades são eventos discursivos produzidos pela força poética da

literatura machadiana; de acordo com Paul Ricouer, ele seria uma metáfora viva,

dinamicamente atuante no tecido literário assumindo, segundo nossa perspectiva, no

campo semântico, uma expressão religiosa relacionada ao ser humano.

3.3.1. As expressões da incondicionalidade no homo vitalis

O homo vitalis é tomado incondicionalmente por um amor à vida (vitalidade)

que se apresenta como fator de intensificação da própria vida. A descoberta do amor

por Marcela nos faz lembrar o que Rudolf Otto chama de orgê. Tal dimensão seria a

responsável pelas expressões simbólicas de vida, de paixão, de sensibilidade,

vontade, de força, de movimento, de excitação, de actividade e de impulso.330 O

amor por Marcela revela-se como uma face da incondicionalidade assumida por Brás

Cubas perante a vida, porque esse amor é construído sem que sobre ele recaía

qualquer condição. Brás Cubas chama a linda espanhola Marcela de “meu primeiro

cativeiro pessoal”. 331

De todas porém a que me cativou logo foi uma [...] uma não se diga; este livro é casto; ou se há de dizer tudo ou nada. A que me cativou foi uma dama espanhola, a “linda Marcela”. Como lhe chamavam os rapazes do tempo.332

Não se põe em pauta nas memórias póstumas as questões morais de uma

sociedade conservadora como a que Brás Cubas pertence e representa333, porque a

paixão por Marcela é conservada mesmo que sua descrição denuncie que fosse boa

moça, lépida, sem escrúpulos [...] luxuosa, impaciente, amiga de dinheiro e de

rapazes. O amor por Marcela pode ser reconhecido como um elemento que promove

temporariamente um desgoverno nas ações de Brás Cubas, pois ela assume

momentaneamente, no trânsito de sua vida, o lugar de horizonte último:

330 Rudolf OTTO, O sagrado, p. 34. 331 MpBC, p. 532. 332 MpBC, p. 533. 333 Cf. MURICY, Kátia. A razão cética: Machado de Assis e as questões de seu tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

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Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos.334

Sem poder perpetuar sua paixão por Marcela em razão de uma imposição

familiar, Brás Cubas reconhece que sobre si paira a neblina do amor: [...] “ficando a

sós, derramei todo o desespero do meu coração”335. A bordo do navio que o levava

do Rio de janeiro para Portugal, Brás Cubas confessa intimamente: “o mundo para

mim era Marcela”336 Podemos notar que as ações vitais de Brás Cubas tentam se

esquivar da tirania situações repressivas e instrumentalizadoras da vida. As

ambigüidades da vida enfrentam constantemente o sentido vital a partir do qual a

vida de Brás Cubas se move. Dilacerado, Brás Cubas é visitado pelo senso de

finitude, porque sua vida, a que se pretendia intransitiva, momentaneamente

transitava sobre uma esfera despontencializadora ao se radicar na ausência do amor

de Marcela: “Eu, que meditava ir ter com a morte, não ousei fitá- la quando ela veio

ter comigo.”337 Todavia, o horizonte de Brás Cubas é a vida e o amor eros, que dela

ou por ela emerge, se torna a dimensão que a pontencializa. Como afirma o próprio

defunto autor, diante de um incidente que possivelmente promoveria uma ameaça à

sua vida ou a antecipação de sua morte, “[...] o preço da minha vida [...], - essa era

inestimável”338

Depois do amor dispensado à espanhola Marcela, Brás Cubas descobriu que a

intensidade de sua vida não reconhecia os desvãos, porque “cada estação da vida é

uma edição, que corrige a anterior, e que será corrigida também, até a edição

definitiva, que o editor dá de graça aos vermes.”339 A próxima estação de sua vida

seria Virgília:

Era bonita, fresca, saía das mãos da natureza, cheia daquele feitiço, precário e eterno, que o indivíduo passa a outro indivíduo, para os fins

334 MpBC, p. 536. 335 MpBC, p. 537. 336 MpBC, p. 539. 337 MpBC, p. 540. 338 Cf. MpBC, Cap. XXI, p. 542-543. Neste capítulo, Brás Cubas narra o incidente com o almocreve. Tendo o seu jumento intentado sair em disparada enquanto passeava por Portugal, um almocreve dominou o animal salvando Brás Cubas do que poderia ter sido um desastre. O impasse que se instala é o de saber o que fazer para recompensar aquele que lhe salvou a vida. Mesmo que sua vida fosse inestimável, Cubas recompensa o almocreve com um cruzado de prata depois de ter pensado em lhe oferecer cinco moedas de ouro. Notamos também que o problema da ameaça da vida ou o da antecipação da morte promovem em Brás Cubas um senso de absurdidade e perplexidade diante da vida. 339 MpBC, p. 549.

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secretos da criação. Era isto Virgília, e era clara, muito clara, faceira, ignorante, pueril, cheia de uns ímpetos misteriosos; muita preguiça e alguma devoção, – devoção, ou talvez medo; creio que medo. 340

A ressurreição do corpo uma vez mais retorna ao centro das memórias

póstumas. Para Brás Cubas, reacender-se diante da vida é acima de tudo fugir da

obscuridade e do que é ínfimo.341 Como o ser humano machadiano está lançado à

transcendência de uma vida imanente, o elemento regente dessa vida se configura

notadamente através dos impulsos vitais. Poderíamos dizer que o itinerário de Brás

Cubas é marcado episodicamente pela paixão pela vida e por suas eróticas aventuras

amorosas com Marcela e Virgília.342 A mais nova estação da vida de Cubas passou a

ser a doce Virgília. O casamento de Virgília com Lobo Neves não impediu que a

aproximação de Brás Cubas se realizasse. Eis uma prova de que o ser humano

machadiano busca se esquivar das tutelas das convenções sociais

instrumentalizadoras dos impulsos vitais.343 O casamento com Lobo Neves não

impediu que Brás Cubas afirmasse: “[...] É minha!”344 O amor recíproco vivido por

Brás Cubas e Virgília é descrito da seguinte forma pelo amante:

Há umas plantas que nascem e crescem depressa; outras são tardias e pecas. O nosso amor era daquelas; brotou com tal ímpeto e tanta seiva, que, dentro em pouco, era mais vasta, folhuda e exuberante criatura dos bosques [...] Uniu-nos esse beijo único [...] breve como a ocasião, ardente como o amor, prólogo de uma vida de delícias, de terrores, de remorsos, de prazeres que rematavam em dor, de aflições que desabrochavam em alegria [...] único freio de uma paixão sem freio [...]345

Esse desgoverno ordenado que agora se presentifica através da paixão pela

vida e por Virgília toma incondicionalmente a existência de Brás Cubas. Tornou-se 340 MpBC, p. 549. 341Cf. MpBC, p. 550. 342 Brás Cubas constrói uma brilhante paródia um torno da reflexão aristotélica sobre o primeiro motor imóvel: “Dá-se movimento a uma bola, por exemplo; rola esta, encontra outra bola, transmite-lhe o impulso, e eis a segunda boa a rolar como a primeira rolou. Suponhamos que a primeira bola se chama... Marcela, - é uma simples suposição; a segunda, Brás Cubas; a terceira, Virgília. Temos que Marcela, recebendo um piparote do passado rolou até tocar em Brás Cubas, o qual, cedendo à força impulsiva, entrou a rolar também até esbarrar em Virgília, que não tinha nada com a primeira bola; e eis aí como, pela simples transmissão de uma força, se tocam os extremos sociais, e se estabelece uma cousa que poderemos chamar solidariedade do aborrecimento humano.” Cf. MpBC, Cap. XLII, p 560. 343 “Agora, que todas as leis sociais no-lo impediam, agora é que nos amávamos deveras [...]”. Cf, MpBC, p. 571. 344 MpBC, p. 566. 345 MpBC, p. 569.

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necessário dar cordas ao relógio que antes lhe tirava sono.346 Se a insônia era uma

espécie de metáfora da monotonia e do enfado da vida, diante da recíproca vívida

paixão por Virgília, tornava-se agora a vigília que uma vida intensa requer:

O mais singular é que, se o relógio parava, eu dava-lhe corda, para que ele não deixasse de bater nunca, e eu pudesse contar todos os meus instantes perdidos [...] Naquela noite não padeci essa triste sensação de enfado, mas outra e deleitosa. As fantasias tumultuavam-me cá dentro, vinham umas sobre outras, à semelhança de devotas que se abalroam para ver o anjo-cantor das procissões. Não ouvia os instantes perdidos, mas os minutos ganhados [...] o meu pensamento, ardiloso e traquinas, saltou pela janela fora e bateu as asas na direção da casa de Virgília. Aí achou no peitoril de uma janela o pensamento de Virgília, saudaram-se e ficaram de palestra. Nós a rolarmos na cama, talvez com frio, necessitados de repouso, e os dous vadios ali postos, a repetirem o velho diálogo de Adão e Eva..347

Eis o velho diálogo de Adão e Eva:

BRÁS CUBAS ......................................?

VIRGÍLLA ...............................

BRÁS CUBAS........................................................................................

....................................................................................................

VIRGÍLIA................................................................................!

BRÁS CUBAS .................................

VIRGÍLIA...................................................................................................

..........................................? ....................................................................

.....................................

BRÁS CUBAS.........................................................

VIRGÍLIA.......................................................

BRÁS CUBAS

....................................................................................................................

............................... ................................................... ..!..................

....................................!...............................................................................

.....................................................!

VIRGÍLIA.........................................................? 346 MpBC, p. 569. 347 MpBC, p. 569-570

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BRÁS CUBAS ....................................!

VIRGÍLIA ............................................!348

[...] Sim, senhor, amávamos.349

Distanciando-se cada vez mais dos imperativos morais da sociedade

oitocentista, essa forma de afirmação da vida encontrada por Brás Cubas e Virgília se

tornava a mais autêntica expansão da vontade: “Virgília amava-me com fúria [...] era

a vontade patente.”350A subversão momentânea de tais aspectos morais nos remete a

uma forma de liberação da dimensão vital que é, por seu turno, um fator essencial

para o estabelecimento de relações existenciais um pouco mais livres e pautadas no

afloramento de uma ordem instintiva. Ao contrário do que se poderia esperar, se

tomarmos os dois amantes como arquétipo do ser humano do mundo tardomoderno,

talvez fosse possível perceber que a efetivação de uma vida intransitiva, sem os

processos repressivos e instrumentalizadores não nos conduziria a um retrocesso do

ponto de vista individual ou social, porque segundo Marcuse o estabelecimento de

uma ordem não-repressiva só pode ser possível se os instintos sexuais (traço da

dimensão vital) puderem, em virtude de sua própria dinâmica e sob condições

existenciais e sociais mudadas, gerar relações eróticas duradouras. Essa noção de

uma ordem instintiva não-repressiva deve ser testada, afirma Marcuse, nos mais

desordenados de todos os instintos: os da sexualidade.351 Portanto, torna-se patente

que a dinâmica de intensificação da vida construída por Brás Cubas e Virgília não

oferece riscos à vida. Para Norman Brown, o instinto de vida ou instinto sexual

requer um tipo de atividade que, em contraste com os nossos modos correntes de

atividade, somente pode ser chamado de jogo (sedução). Essa incondicionalidade

assumida diante da vida, alimentada por Brás Cubas e Virgília, é nascida daquilo que

Brown chama de instinto de vida. Essa dimensão instintiva não é baseada na

ansiedade e na agressão do outro ou do mundo, mas no senso narcisista dos seres

humanos e na exuberância do erótico.352 O que os cúmplices amantes experimentam

348 MpBC, p. 570. 349 MpBC, p. 571. 350 MpBC, p. 576. O contraponto que realça a nossa afirmação pode ser feito a partir do discurso do padre feito a Estácio: “[...] Digo te que tens uma raiz de má erva no coração;esta é a cruel verdade [...] A poesia trágica pode fazer do assunto uma ação teatral; mas o que a moral e a religião reprovam, não deve achar guarida na alma de um homem honesto e cristão.” Cf . Helena, p. 365. 351 Cf. Herbert MARCUSE, Eros e civilização, p. 175. 352 Cf. Norman O. BROWN, The resurrection of the body. In Life Against Death, p. 307.

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são, portanto, as forças de afirmação e não os poderes de negação da vida353, porque

para Brás Cubas “a vida é um doce.”354

A vida intransitiva também cria seus mecanismos de autodefesa. A passageira

possibilidade da perda de Virgília ecoou em Brás Cubas como um cortejo fúnebre.

Ao escaparem da possível separação que se daria em face da nomeação de Lobo

Neves a um ministério, Brás Cubas sentiu visceralmente certo desvanecimento de

sua vida que por sua vez o fez reconhecer que: “quem escapa a um perigo ama a vida

com outra intensidade.”355 Portanto: “entrei a amar Virgília com muito mais ardor,

depois que estive a pique de a perder, e a mesma coisa lhe aconteceu a ela.”356

Todavia, “cada estação da vida é uma edição, que corrige a anterior, e que

será corrigida também, até a edição definitiva [...]”357. Rumo à estação da velhice,

notamos que as memórias de Brás Cubas nos lançam de certo modo ao

reconhecimento de que o fluxo intenso no qual sua vida fora construída poderia a

partir de então ser substituído por um fluxo mais perene, mesmo estando ele

consciente de que uma vida pautada num tipo qualquer de ascetismo seria “a

expressão acabada da tolice humana.”358

Sentia-me tomado de uma saudade do casamento, de um desejo de canalizar a vida. Por que não? Meu coração tinha ainda que explorar; não me sentia incapaz de um amor casto, severo e puro. Em verdade, as aventuras são a parte torrencial e vertiginosa da vida [...] 359

A despedida de Virgília marca profundamente a vida de Brás Cubas:

[...] - Custa-me muito. - Mas é preciso; adeus, Virgília! - Até breve. Adeus!360

A partir daquele momento Brás Cubas também reconheceu que uma outra

neblina, não a neblina do amor, mas a neblina da melancolia pairava sobre sua vida:

353 Cf. Jürgen MOLTMANN, O Espírito da vida , p. 11. 354 MpBC, p. 591. 355 MpBC, p. 594. 356 MpBC, p. 594. 357 MpBC, p. 549. 358 MpBC, p. 610. 359 MpBC, p. 609. 360 MpBC, p. 613.

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“Eles lá iam mar em fora, no espaço e no tempo, e eu ficava-me ali numa ponta da

mesa, com os meus quarenta e tantos anos, tão vadios e vazios [...]”361 Brás Cubas

declara: “Fiquei tão triste com fim do último capítulo que estava capaz de não

escrever este, descansar um pouco, purgar o espírito da melancolia que o empacha, e

continuar depois. Mas não, não quero perder tempo.”362 Contudo, o imperativo da

vontade de viver, não obstante as circunstâncias da vida de Brás Cubas, permanece

aceso: “Se a idéia do emplasto me tem aparecido nesse tempo, quem sabe? não teria

morrido logo e estaria célebre. Mas o emplasto não veio. Veio o desejo de agitar-me

em alguma coisa e por alguma coisa.”363 Por sugestão de sua irmã Sabina, Cubas

vislumbrou a possibilidade de um casamento e a de ter filhos. Segundo Quincas

Borba, esse sobressalto dado por Brás Cubas era nada mais que a agitação de

Humanitas no íntimo do nosso protagonista.

Notamos também que o problema da ameaça da vida ou o da antecipação da

morte promove em Brás Cubas um senso de absurdidade e perplexidade diante da

vida. A agitação de Humanitas, traço que marca a presença dos impulsos vitais em

Brás Cubas, provinha de uma paixão em estágio inicial por Nhá- loló. Consternado

com a morte precoce de sua paixão não realizada nada lhe cabe dizer, porque: “O

epitáfio diz tudo.”364

_________ AQUI JAZ

D. EULÁLIA DAMASCENA DE BRITO MORTA

AOS DEZENOVE ANOS DE IDADE!

ORAI POR ELA!

____________ 365

Brás Cubas revela em suas memórias que a morte de Nhá- loló parecia- lhe

ainda mais absurda que todas as outras mortes experimentadas por ele. A jovialidade

de Nhá-loló, abatida pelas mãos do inexplicável, revelava-se nas memórias como a

última aposta de Cubas naquilo que faz da vida algo mais elevado e mais intenso: o

amor. Este mesmo senso de impotência de realização do amor sobreveio também ao

361 MpBC, p. 613. 362 MpBC, p. 614. 363 MpBC, p. 617. 364 MpBC, p. 621. 365 MpBC, p. 621.

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velho Conselheiro Aires em seu memorial. O paradoxo de Aires se constitui no vão

que separa a sua velhice da vívida juventude de Fidélia:

25 de janeiro

Ao vê-la agora, não a achei menos saborosa que no cemitério, e há tempos em casa de mana Rita, nem menos vistosa também. Parece feita ao torno, sem que este vocábulo dê nenhuma idéia de rigidez; ao contrário, é flexível. Quero aludir somente à correção das linhas, — falo das linhas vistas; as restantes adivinham-se e juram-se. Tem a pele macia e clara, com uns tons rubros nas faces, que lhe não ficam mal à viuvez. Foi o que vi logo à chegada, e mais os olhos e os cabelos pretos; o resto veio vindo pela noite adiante, até que ela se foi embora. Não era preciso mais para completar uma figura interessante no gesto e na conversação. Eu, depois de alguns instantes de exame, eis o que pensei da pessoa. Não pensei logo em prosa, mas em verso, e um verso justamente de Shelley, que relera dias antes em casa, como lá ficou dito atrás, e tirado de uma das suas estâncias de 1821:

I can give not what men call love.

Assim disse comigo em inglês, mas logo depois repeti em prosa nossa a confissão do poeta, com um fecho da minha composição: “Eu não posso dar o que os homens chamam amor... e é pena!” Esta confissão não me fez menos alegre [...]366

O que se apontava no horizonte de Brás Cubas, depois da morte da jovem

Eulália, era a certeza de que a vida caminhava para um abismo de onde não poderia

sair nem mesmo pelas mãos do emplasto, embora apostasse na cura de nossa eterna

melancolia. O abismo não era infinito, mas se chamava velhice: “Compreendi que

estava velho, e precisa de uma força [...]”367 Fica mantida, porém, em seu íntimo a

certeza de que não há outra coisa “como a paixão do amor para fazer original o que é

comum, e novo o que morre de velho.”368

366 Memorial de Aires, 25 de março, p. 1.103-1.104. A idéia de aproximar este trecho do romance Memorial de Aires do romance Brás Cubas se sustenta a partir da chamada transtextualité ou transcendance textuelle du texte. A transtextualité seria toda a forma de um texto manter uma relação, manifesta ou secreta, com outro(s) texto(s). Cf. Gérard GENETTE, Palimpsestes, p. 7. Cf. tb. Ana RECIO MIR, Análisis textual de la transparencia.... In. ROMERA, Jose; YLLERA, Alicia; CALVET, Rosa (Orgs.). Escritura Autobiográfica, p. 353: “Toda lectura, toda obra literaria es inevitablemente interpretada a partir de otras [...]”. 367 MpBC, p. 638. 368 Memorial de Aires, 13 de março, p. 1.187. Cabe aqui, sem nenhum esforço, uma aproximação com o aforismo 26 da obra A gaia Ciência de Nietzsche: “Que significa viver? – Viver é continuamente afastar de si algo que quer morrer; viver – é ser cruel e implacável com tudo o que em nós, e não apenas em nós, se torna fraco e velho [...]”, cf. NIETZSCHE, A gaia ciência , p. 77.

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E agora sinto que, se alguma dama tem seguido estas páginas, fecha o livro e não lê as restantes. Para ela extinguiu-se o interesse de minha vida, que era o amor. Cinqüenta anos! Não é ainda invalidez, mas já não é a frescura [...] Tempora mutantur.369

A travessia da vida ainda vige, porém com ela vige também, com a chegada

da velhice, o senso de vacuidade. “Tantos sonhos, meu caro Borba, tantos sonhos, e

não sou nada.”370 A voz que fala em primeira pessoa é a voz de um homem velho,

que tem a consciência de que não é mais possível se projetar sobre a vida com

mesma intensidade de outrora; portanto ‘sabe que morre.’371 O sentido da vida de

Brás Cubas só teve pleno significado quando admitiu que sua vida não deveria se

condicionar a nenhuma dimensão teleologicamente construída. Tendo a consciência

de que a vida humana será sempre confrontada com seu ocaso, Brás Cubas buscou no

emplasto uma metáfora para a cura da melancólica existência humana: “divino

emplasto, tu me darias o primeiro lugar entre os homens, acima da ciência e da

riqueza, porque eras a genuína e direta inspiração dos céus. O acaso determinou o

contrário; e aí vos ficais eternamente hipocondríacos”372 A pergunta “mas que diacho

há absoluto nesse mundo?” pretende-se irônica, porque se tomada no horizonte de

sua vida demonstrará que todas as veleidades na verdade deram a ela uma

significante concretude: “compreendi que estava velho, e precisava de uma força

[...]”373 “A solidão pesava-me, e a vida era para mim a pior das fadigas [...]” Diante

de todas as negativas que recaem sobre uma vida que se pretendeu intensa porém

finita conscientemente, fica por certo um saldo positivo. Como afirma Brás Cubas,

“coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com suor do meu rosto” e ainda a

derradeira negativa, que é o seu pequeno saldo positivo conquistado na vida: “Não

tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.” 374

369 MpBC, p. 625. 370 MpBC, p. 628. 371 MpBC, p. 630. 372 MpBC, p. 639. 373 MpBC, p. 638. 374 MpBC, p. 639.

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CONCLUSÃO

Terminado o percurso através da literatura machadiana, cabe-nos o dever de

perguntar pela contribuição que ela prestou aos estudos de religião quando, no

horizonte da cultura moderna, pôde criar uma hermenêutica particular do sentido da

vida e do ser humano. Reconhecemos, antes de tudo, com tal apontamento, a

dignidade que a literatura carrega consigo enquanto intérprete da existência e da

vida. Reconhecemos também sua força poética, que se expressa na criação de um

mundo referencial e regido pela atuação metafórica capaz de imprimir sobre a

escritura do texto o sentido religioso que buscávamos por meio da leitura. A despeito

de ter havido uma forte recepção da corrente positivista no Brasil do século XIX por

meio da cultura literária, a estética machadiana, ao nos permitir ir do nostálgico

sentido de Deus presente no romance Dom Casmurro até a transcendência imanente

à vida contida nas Memórias póstumas, nos diz que esteve atenta à captura daquilo

que toma o ser incondicionalmente humano e que rejeita uma interpretação da vida

que despreza aquilo que nos escapa. Tal oscilação (operada pela metáfora) reitera tão

somente que a dimensão subterrânea (região simbólica) de onde emergiu o sentido

que capturamos sobre a superfície dos referidos textos por meio de nossa

interpretação é notadamente religiosa.

O afastamento do tema da religião no espaço machadiano foi promovido

parcialmente por um tipo de crítica que buscou ver no interior da literatura do autor

de Brás Cubas somente uma recepção passiva das principais correntes de pensamento

dos séculos XIX e XX, quando em verdade havia a partir do legado machadiano um

franco processo de diálogo com o que estava a sua volta e com as principais questões

da vida. As críticas disparadas por Octávio Brandão e Afrânio Coutinho em direção à

literatura machadiana certamente encontraram outro alvo, pois o que sempre esteve

em jogo não era o pessimismo da antropologia machadiana, mas sim o tema da vida,

como apresentamos.

No primeiro capítulo tivemos a preocupação de construir, a partir da teoria

hermenêutica de Paul Ricoeur, um aparato interpretativo para dar conta das questões

de sentido contidas na indomesticável literatura de Machado de Assis. Tomamos

também referencialmente o problema da morte de Deus em Nietzsche como marco

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contextual de um mundo e de uma expressão humana que urgia por uma nova

interpretação. Nietzsche apontava para o processo de desteificação do mundo ao

mesmo tempo em que indicava o momento extraordinário que emergia diante do ser

humano, configurado pelo senso de auto-referência de si mesmo.

A forte relação da religião e conseqüentemente dos temas teológicos com a

literatura fizeram com que muitos teólogos construíssem metodologias próprias para

dar conta da aproximação entre elas. Negamos com isto a possibilidade de ter na

literatura, apenas um arcabouço de temas teológicos. A aproximação da teologia com

a literatura mesmo que servisse somente para o trabalho da reflexão teológica, talvez

porque a teologia se sentisse, no limiar do século XX, impedida de algum modo de

realizar sua tarefa integralmente, construiu imagens extraordinárias e muito

particulares dos clássicos temas teológicos. Neste contexto estão os trabalhos de José

Carlos Barcellos e o de González de Cardedal.

Cabe, certamente, nesta conclusão um destaque para o que Antonio

Magalhães nomeia de método da correspondência em sua obra Deus no espelho das

palavras. Não há na literatura machadiana uma preocupação em conceituar o que o

dado religioso é. Há na verdade um cuidado em dizer de modo muito particular de

que forma ele se expressa no horizonte da existência humana. Por um outro caminho

trilha a compreensão mais sistemática e conceitual de Jürgen Moltmann ao propor

que o ser humano do mundo moderno seja percebido a partir de um incondicional

amor à vida como expressão de sua nova espiritualidade. Neste ponto, tanto a

concretude que a literatura machadiana dá à vida do ser humano criado por sua força

poética (homo vitalis), quanto a interpretação que a teologia sistemática de

Moltmann confere ao humano da modernidade tardia são formas autênticas de

compreensão de uma antropologia que não se repelem ou se excluem, mas que se

correspondem. Neste caso, a correspondência dar-se- ia entre a imagem antropológica

que a literatura machadiana e a compreensão teológica de Jürgen Moltmann

promovem da condição humana diante de um mundo onde a auto-referência de si

teria em certa medida predomínio. Por reconhecer as diferenças e a importância que

tanto a teologia quanto a literatura possuem enquanto lugares de interpretação do

mistério que é a vida, o método da correspondência distanciaria de ambas, teologia e

literatura, a possibilidade de superposição da relação ente elas.

Particularmente, a literatura machadiana tem sobre si uma forma própria de

fazer emergir através de sua escritura a verdade que deseja que capturemos. Como já

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dissemos, a dignidade da literatura não reside no seu esforço de ser uma

manifestação de pensamento que somente ganha vida quando comparada ou mesmo

submetida aos grandes sistemas conceituais. Fazemos esta alusão por compreender

que, se há correspondências entre a compreensão que tanto a teologia de Moltmann

quanto a literatura machadiana construíram em torno da condição humana, devemos

também observar que a escritura do autor de Brás Cubas nos dá algo que ultrapassa o

sentido evocado por sua força poética e que procuramos ressaltar em nossa análise.

Em primeiro lugar, destacaríamos a antecipação, empreendida pela literatura de

Machado Assis, da forma pela qual o ser humano deveria reconhecer a finitude e

reinventar a sua vida incondicionalmente diante da constante presença dela. Isto

coube ao evento literário que nomeamos de homo vitalis. Em segundo lugar,

ressaltaríamos que o sobressalto promovido pela literatura machadiana sobre sua

condição mesma de obra artística se realiza ao criar, ainda que no plano poético, uma

correspondência conceitual entre o Humanitas do filósofo Quincas Borba e a

Vitalidade de Jürgen Moltmann. Eis aí sua dimensão prospectiva sobre a realidade

que se abria em direção ao século XX. Como bem afirma Antonio Magalhães, ao

acontecer na vida, o texto é sempre algo a se cumprir, um projeto a ser realizado.

Este heterologos poético que escorre da literatura machadiana, esta forma de

dizer poeticamente o que o ser humano é diante daquilo que o escapa, certamente nos

atinge e por isso penetra a nossa realidade, fazendo com que uma vez mais nos

interroguemos sobre o “mistério de nossas vidas”.

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