Parasitoses Caninas Transmitidas por Ixodídeos

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UNIVERSIDADE TCNICA DE LISBOA

Faculdade de Medicina Veterinria

PARASITOSES CANINAS TRANSMITIDAS POR IXODDEOS

MARISA DA FONSECA FERREIRA

CONSTITUIO DO JRI Doutor Jos Augusto Farraia e Silva Meireles Doutora Isabel Maria Soares Pereira da Fonseca de Sampaio Doutora Maria Constana Matias Ferreira Pomba Dra. Joana Filipa Paiva de Ferreira Gomes Carneiro

ORIENTADORA Doutora Isabel Maria Soares Pereira da Fonseca de Sampaio CO-ORIENTADORA Dra. Joana Filipa Paiva de Ferreira Gomes Carneiro

2008 LISBOA

UNIVERSIDADE TCNICA DE LISBOA

Faculdade de Medicina Veterinria

PARASITOSES CANINAS TRANSMITIDAS POR IXODDEOS

MARISA DA FONSECA FERREIRA

DISSERTAO DE MESTRADO INTEGRADO EM MEDICINA VETERINRIA

CONSTITUIO DO JRI Doutor Jos Augusto Farraia e Silva Meireles Doutora Isabel Maria Soares Pereira da Fonseca de Sampaio Doutora Maria Constana Matias Ferreira Pomba Dra. Joana Filipa Paiva de Ferreira Gomes Carneiro

ORIENTADORA Doutora Isabel Maria Soares Pereira da Fonseca de Sampaio CO-ORIENTADORA Dra. Joana Filipa Paiva de Ferreira Gomes Carneiro

2008 LISBOA

Agradecimentos minha Orientadora, Professora Doutora Isabel Maria Soares Pereira da Fonseca de Sampaio, Professora Associada da Faculdade de Medicina Veterinria (FMV), por toda a disponibilidade, orientao, instigao e transmisso de conhecimentos que permitiram a realizao desta dissertao. minha Co-Orientadora, Dra. Joana Filipa Paiva de Ferreira Gomes Carneiro, Mdica Veterinria a exercer medicina interna no Hospital Escolar da FMV, pelo apoio ao desenvolvimento deste tema, pela excelncia de conhecimentos proporcionados na rea da Clnica de Animais de Companhia e pelo esforo incansvel em realar a importncia da relao Mdico Veterinrio Proprietrio. Ao Professor Doutor Antnio Jos Almeida Ferreira, director do Hospital Escolar da FMV, pela oportunidade de estgio concedida, bem como pela sabedoria transmitida. A toda a equipa do Hospital Escolar da FMV, incluindo Mdicos Veterinrios, Auxiliares e Colegas estagirios, pela aprendizagem proporcionada e pelo ambiente de profissionalismo e camaradagem vivido. Aos proprietrios dos animais objecto deste estudo, pela amabilidade em colaborar com a resposta aos inquritos realizados. Aos familiares e amigos, pela pacincia, apoio e incentivo demonstrados durante todo o perodo de estgio e execuo desta dissertao.

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PARASITOSES CANINAS TRANSMITIDAS POR IXODDEOS

ResumoA presente dissertao refere-se ao perodo de Setembro de 2007 a Janeiro de 2008, durante o qual foi desenvolvida a componente prtica do Estgio do Curso de Mestrado Integrado, no Hospital Escolar da Faculdade de Medicina Veterinria. Foi possvel acompanhar uma casustica variada na rea da Clnica de Animais de Companhia, dentro da qual foi escolhido o tema Parasitoses caninas transmitidas por ixoddeos para desenvolvimento. Existem vrias parasitoses, sensu lato, transmitidas por ixoddeos, que afectam a espcie canina, focando-se aquelas cujos agentes etiolgicos incluem as espcies dos gneros: Rickettsia, Babesia, Ehrlichia, Anaplasma e Theileria. Tipicamente, estas so caracterizadas por sinais clnicos no especficos como febre, letargia e anorexia. Podem tambm verificarse, entre outros, perda de peso, mucosas plidas, linfadenomeglia, claudicao, ictercia, hepatoesplenomeglia, edema subcutneo, discolorao da urina, tendncias hemorrgicas, manifestaes oculares e neurolgicas. A alterao laboratorial mais consistente a trombocitopnia, sendo tambm frequente a anemia, hipoalbuminmia e hiperglobulinmia. O diagnstico baseia-se em mtodos serolgicos, moleculares e/ou de microscopia ptica. O tratamento etiolgico de eleio nas riquetsioses, erliquioses e anaplasmoses realizado com doxiciclina ou minociclina. Nas babesioses e teilerioses utiliza-se imidocarb ou diminazeno. A forma primria de preveno destas parasitoses assenta no controlo dos vectores, existindo imunoprofilaxia apenas contra B. canis. Adicionalmente, algumas espcies que infectam candeos tm tambm potencial zoontico. No mbito do tema escolhido, foi realizado um estudo, relativo a 28 ces, que evidenciaram contacto prvio com Rickettsia spp. (23/26), B. canis (14/24), Ehrlichia sp. (10/24) e A. platys (1/1), determinado atravs de imunofluorescncia indirecta, reaco em cadeia da polimerase, ou microscopia ptica. A descrio geral da populao, os aspectos epidemiolgicos e clnicos e, a dificuldade de diagnstico destas parasitoses, aquando da presena de doenas concomitantes, foram abordados. Palavras-chave: Rickettsia, Babesia, Ehrlichia, Anaplasma, co, ixoddeo

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CANINE TICK-BORNE PARASITIC DISEASES

AbstractThis thesis concerns the period between September 2007 and January 2008, during which took place the curricular training of the Integrated Master degree in Veterinary Medicine, at the Faculty of Veterinary Medicine Teaching Hospital. In this training, it was possible to follow a diverse caseload in the Small Animals Medicine field, including cases regarding the selected subject Canine tick-borne parasitic diseases. There are many tick-borne parasitic diseases, sensu latu, which can affect dogs. The ones caused by species of the genera Rickettsia, Babesia, Ehrlichia, Anaplasma and Theileria, are reviewed and discussed. Typically, these diseases are characterized by non-specific clinical signs like fever, lethargy and anorexia. Other signs may be apparent, including weight loss, pale mucous membranes, lymphadenomegaly, lameness, icterus, hepatosplenomegaly, subcutaneous oedema, urine discoloration, bleeding tendencies, ocular and neurological signs. The most consistent laboratory abnormality is thrombocytopenia, but anemia, hypoalbuminemia and hyperglobulinemia are also common. The diagnosis is based on serologic, molecular and/or optical microscopy methods. Specific treatment of choice includes doxycycline and minocycline, for rickettsiosis, ehrlichiosis and anaplasmosis. Imidocarb and diminazene are indicated for babesiosis and theileriosis. Vector control represents the primary mean of prevention for these diseases. At present, vaccination is available against B. canis only. In addition, it is important to highlight that some of these canine diseases also have a zoonotic feature. On the subject of the selected theme, it was carried out a study involving 28 dogs, showing previous exposure to Rickettsia spp. (23/26), B. canis (14/24), Ehrlichia sp. (10/24) and A. platys (1/1), determined by indirect immunofluorescence, polimerase chain reaction or optical microscopy. The general description of the population, the epidemiological and clinical aspects and, the challenge in diagnosing canine tick-born parasitosis when concurrent diseases are present, were discussed. Keywords: Rickettsia, Babesia, Ehrlichia, Anaplasma, dog, tick

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ndice geralAgradecimentos _____________________________________________________________ i Resumo ___________________________________________________________________iii Abstract___________________________________________________________________ v ndice de tabelas ____________________________________________________________ ix ndice de grficos ___________________________________________________________ ix ndice de figuras ____________________________________________________________ x ndice de abreviaturas e de smbolos ____________________________________________ xi I. Introduo _______________________________________________________________ 1 1. Actividades desenvolvidas durante o estgio__________________________________ 2 2. Riquetsioses ___________________________________________________________ 5 2.1. Etiologia e epidemiologia _____________________________________________ 5 2.2. Fisiopatologia ______________________________________________________ 7 2.3. Sinais clnicos ______________________________________________________ 8 2.4. Diagnstico _______________________________________________________ 11 2.5. Teraputica _______________________________________________________ 14 2.6. Prognstico _______________________________________________________ 15 2.7. Preveno ________________________________________________________ 16 2.8. Implicaes para a Sade Pblica ______________________________________ 17 3. Babesioses e teilerioses _________________________________________________ 18 3.1. Etiologia e epidemiologia ____________________________________________ 18 3.2. Fisiopatologia _____________________________________________________ 21 3.3. Sinais clnicos _____________________________________________________ 24 3.4. Diagnstico _______________________________________________________ 25 3.5. Teraputica _______________________________________________________ 29 3.6. Prognstico _______________________________________________________ 31 3.7. Preveno ________________________________________________________ 31 3.8. Implicaes para a Sade Pblica ______________________________________ 33 4. Erliquioses e anaplasmoses ______________________________________________ 33 4.1. Etiologia e epidemiologia ____________________________________________ 33 4.2. Fisiopatologia _____________________________________________________ 36 4.3. Sinais clnicos _____________________________________________________ 39 4.4. Diagnstico _______________________________________________________ 42 4.5. Teraputica _______________________________________________________ 46 4.6. Prognstico _______________________________________________________ 48 4.7. Preveno ________________________________________________________ 49 4.8. Implicaes para a Sade Pblica ______________________________________ 50 5. Estudos de prevalncia e perigos potenciais em co-infeces ____________________ 51 6. Controlo de vectores____________________________________________________ 53 II. Estudo das parasitoses caninas transmitidas por ixoddeos, observadas no Hospital Escolar da FMV UTL, no perodo de Setembro de 2007 a Janeiro de 2008_________ 57 1. Materiais e mtodos ____________________________________________________ 57 2. Resultados ___________________________________________________________ 59 2.1. Prevalncias dos agentes etiolgicos____________________________________ 59 2.2. Caracterizao da populao em estudo _________________________________ 59 2.3. Estudo clnico _____________________________________________________ 64 3. Discusso ____________________________________________________________ 68 3.1. Prevalncias dos agentes etiolgicos____________________________________ 68 3.2. Caracterizao da populao em estudo _________________________________ 72 3.3. Estudo clnico _____________________________________________________ 74 III. Concluses ____________________________________________________________ 80 vii

IV. Bibliografia ____________________________________________________________82 V. Anexos_________________________________________________________________93 1. Assistncia a apresentaes de temas clnicos durante o perodo de estgio curricular no Hospital Escolar da FMV ______________________________________________93 2. Apresentao realizada durante o perodo de estgio curricular: Transfuses sanguneas, terapia de componentes sanguneos e solues transportadoras de oxignio (Marisa Ferreira) _______________________________________________94 3. Inqurito realizado aos proprietrios da populao canina estudada________________98

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ndice de tabelasTabela 1 Espcies de Babesia e Theileria observadas em ces, vectores e distribuio geogrfica ____________________________________________________________ 21 Tabela 2 Erliquioses e anaplasmoses caninas, espcies envolvidas, tropismo celular predominante, vectores e distribuio geogrfica _____________________________ 34 Tabela 3 Prevalncia de vrios agentes transmitidos por ixoddeos, observada em trs estudos realizados na Siclia, Itlia_________________________________________ 53 Tabela 4 Identificao, sexo, idade e positividade a agentes transmitidos por ixoddeos, na populao estudada __________________________________________________ 58 Tabela 5 Distribuio dos ces seropositivos por ttulo de anticorpos ________________ 59 Tabela 6 Caracterizao da populao estudada de acordo com a aptido e a raa ______ 60 Tabela 7 Caracterizao da pelagem dos animais estudados _______________________ 60 Tabela 8 Distribuio da populao estudada por distrito e concelho de residncia _____ 61 Tabela 9 Caractersticas do acesso a espaos pblicos dos ces estudados (n=25) ______ 61 Tabela 10 Distribuio de resultados do inqurito relativos a controlo de vectores, antes e aps o diagnstico _____________________________________________________ 63 Tabela 11 Resultados dos hemogramas de 25 animais, obtidos antes da pesquisa dos agentes etiolgicos _____________________________________________________ 65 Tabela 12 Alteraes dos parmetros bioqumicos no soro dos animais estudados ______ 66 Tabela 13 Presena de doenas concomitantes nos animais submetidos a pesquisa de agentes transmitidos por ixoddeos ________________________________________ 67

ndice de grficosGrfico 1 Frequncia relativa de positividade por agente etiolgico e por sexo em 23 soros de ces analisados por IFI ___________________________________________ 59 Grfico 2 Resultados do tipo de provenincia dos ces em estudo ___________________ 61 Grfico 3 Frequncia absoluta e frequncia relativa dos sinais clnicos observados nos 28 ces estudados ________________________________________________________ 64

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ndice de figurasFigura 1 Aspecto de mielografia, evidenciando hrnia discal cervical em co __________ 2 Figura 2 Dermatite grave generalizada em quelnio ______________________________ 2 Figura 3 Sndrome de Horner em gato _________________________________________ 2 Figura 4 Sarcoma de Sticker em cadela, com localizao vulvar_____________________ 3 Figura 5 Pustulose eosinoflica estril em cadela _________________________________ 3 Figura 6 Prolapso cloacal em osga ____________________________________________ 3 Figura 7 Prolapso da glndula da membrana nictitante em co ______________________ 4 Figura 8 Abcesso supra-orbitrio em canrio ____________________________________ 4 Figura 9 Aspecto da tcnica de avano da tuberosidade tibial em co _________________ 4 Figura 10 Necrose do plano nasal em co com riquetsiose por R. rickettsii_____________ 9 Figura 11 Petquias na mucosa oral em co com riquetsiose por R. rickettsii ___________ 9 Figura 12 Imagem de imunofluorescncia indirecta positiva para anticorpos anti-R. conorii ______________________________________________________________ 13 Figura 13 Eritrcitos parasitados por B. vogeli, em vrias formas morfolgicas ________ 19 Figura 14 Eritrcito evidenciando merozotos de B. canis. Colorao por Giemsa ______ 19 Figura 15 Eritrcitos parasitados por B. gibsoni_________________________________ 20 Figura 16 Eritrcitos parasitados por T. annae. Colorao por Giemsa _______________ 20 Figura 17 Ictercia em co com babesiose _____________________________________ 29 Figura 18 Hemorragia cerebral disseminada em co com babesiose cerebral por B. rossi 29 Figura 19 Mrula de E. canis em moncito. Colorao por Giemsa _________________ 35 Figura 20 Mrula de A. phagocytophilum em neutrfilo. Colorao por Giemsa _______ 35 Figura 21 Mrula de A. platys em plaqueta. Colorao por Giemsa _________________ 35 Figura 22 Petquias no abdmen ventral em co com erliquiose monocitotrpica canina (EMC) ______________________________________________________________ 40 Figura 23 Epistaxis em co com EMC ________________________________________ 40 Figura 24 Uvete anterior unilateral crnica em co com EMC _____________________ 41 Figura 25 Uvete e glaucoma secundrio em co com EMC _______________________ 41 Figura 26 Exame do fundo do olho. Hemorragia e descolamento exsudativo da retina___ 41

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ndice de abreviaturas e de smbolos> Maior Maior ou igual < Menor Menor ou igual % Percentagem C Graus Celsius L Microlitro m Micrmetro AAS Amilide A Srica Ac Anticorpo ADN cido Desoxirribonucleico Ag Antignio AGC Anaplasmose Granulocitotrpica Canina AHIM Anemia Hemoltica Imunomediada ALT Alanina aminotransferase AST Aspartato aminotransferase ATC Anaplasmose Trombocitotrpica Canina BID A cada doze horas CHCM Concentrao de Hemoglobina Corpuscular Mdia CID Coagulao Intravascular Disseminada CK Creatina quinase CRP Protena C Reactiva DAPP Dermatite Alrgica Picada de Pulga DDO Doena de Declarao Obrigatria dL Decilitro EGC Erliquiose Granulocitotrpica Canina ELISA Enzyme-Linked Immunosorbant Assay EMC Erliquiose Monocitotrpica Canina EV Endovenosa FAS Fosfatase Alcalina Srica fL Fentolitro g Grama GGT Gama Glutamil Transpeptidase xi

HCM Hemoglobina Corpuscular Mdia HT Hematcrito IFD Imunofluorescncia Directa IFI Imunofluorescncia Indirecta IFN- Interfero- Ig Imunoglobulina IL Interleucina IM Intramuscular IRA Insuficincia Renal Aguda kg Quilograma mg Miligrama mmol - Milimol L Litro LCR Lquido Cfalo-Raquidiano LIV Vrus da Louping Ill MHC-II Classe II do Complexo Maior de Histocompatibilidade PCR Reaco em cadeia da polimerase PFA Protena de Fase Aguda PDFs Produtos de Degradao da Fibrina/Fibrinognio pg Picograma PIO Presso Intra-ocular PO Por via oral QID A cada seis horas RFLP Restriction Fragment Length Polymorphism SC Subcutnea SID A cada vinte e quatro horas SNC Sistema Nervoso Central TBEV Vrus da encefalite transmitido por ixoddeos TCA Tempo de Coagulao Activada TID A cada oito horas TP Tempo de Protrombina TT Tempo de Trombina TTA Avano da Tuberosidade Tibial TTPA Tempo de Tromboplastina Parcial Activada VCM Volume Corpuscular Mdio xii

I. IntroduoParasitismo, sensu lato, define uma interaco biolgica entre dois organismos, na qual um deles beneficia em detrimento do outro. Neste contexto, o parasita pode ser representado por qualquer agente etiolgico, nomeadamente por um protozorio, uma bactria, um vrus, entre outros. As parasitoses transmitidas por ixoddeos so consideradas cada vez mais um problema emergente em climas temperados e ambientes urbanos. Esta situao deve-se em parte s alteraes climticas, utilizao dos solos para actividades de agricultura e lazer e ecologia dos ixoddeos e dos hospedeiros reservatrios, nomeadamente sua movimentao para reas previamente no endmicas. Adicionalmente, tem-se assistido a uma rpida evoluo das tcnicas de diagnstico molecular, permitindo uma deteco mais exacta e sensvel dos microorganismos (Shaw, Day, Birtles & Breitschwerdt, 2001; Genchi, 2006). Os candeos domsticos so susceptveis a infeco por vrios agentes transmitidos por ixoddeos, nomeadamente: protozorios Babesia spp. e Hepatozoon spp.; bactrias Ehrlichia spp., Anaplasma spp., Rickettsia spp., Coxiella burnetii, Borrelia spp., Mycoplasma haemocanis, Bartonella spp., Francisella tularensis; e vrus vrus da encefalite transmitida por ixoddeos (TBEV) e vrus da Louping Ill (LIV), ambos do gnero Flavivirus (Shaw et al., 2001). As babesioses, as erliquioses e as riquetsioses caninas so doenas infecciosas causadas por agentes intracelulares obrigatrios, e so as doenas transmitidas por ixoddeos mais frequentemente diagnosticadas no Hospital Escolar da Faculdade de Medicina Veterinria (FMV). A sua importncia deve-se no s ao carcter mais ou menos patognico no que concerne espcie canina, mas tambm ao papel potencialmente zoontico de algumas destas doenas. A presente dissertao traduz o culminar do Estgio do Curso de Mestrado Integrado em Medicina Veterinria, cuja componente prtica assumiu a forma de estgio de natureza profissional na rea da Clnica de Animais de Companhia. Assim, ser feita uma descrio resumida das actividades desenvolvidas durante o estgio, seguida de uma reviso bibliogrfica do tema proposto. Na segunda seco proceder-se- ao estudo de um conjunto de casos observados no decurso do estgio, em que se verificou contacto prvio com os agentes etiolgicos das doenas descritas. Por fim, sero salientadas as concluses obtidas.

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1. Actividades desenvolvidas durante o estgioA componente prtica do estgio curricular foi desenvolvida no Hospital Escolar da FMV, entre o dia 24 de Setembro de 2007 e o dia 25 de Janeiro de 2008, com uma carga horria total de 776 horas. As actividades consistiram principalmente na observao e participao nos servios de Medicina Interna, Cirurgia, Imagiologia e Internamento, em turnos rotativos. Ao todo foram observados 402 animais, a maioria (67%) correspondendo espcie canina, e o restante espcie felina (30%) e aos novos animais de companhia (3%) como aves, pequenos mamferos e rpteis. No servio de Medicina Interna foi possvel iniciar consultas externas, realizando a histria pregressa e o exame fsico. De seguida, eram discutidos com o mdico veterinrio assistente os diagnsticos diferenciais, os exames complementares de diagnstico e a teraputica a instituir. Para alm de consultas de primeira opinio, assistiu-se tambm a consultas de referncia de dermatologia, oftalmologia, cardiologia, ortopedia e reproduo. Excluindo as consultas de primovacinao e vacinao, observaram-se com maior frequncia casos de neoplasias, insuficincia renal, gastroenterites, fracturas sseas, leishmaniose, parasitoses transmitidas por ixoddeos, hrnias discais (Figura 1), derrames pleurais, displasia coxofemoral, otites e dermatites (Figura 2). Figura 1 Aspecto de mielografia, evidenciando hrnia discal cervical em co

Figura 2 Dermatite grave generalizada em quelnio

Figura 3 Sndrome de Horner em gato

Entre os casos mais interessantes e menos frequentes salientam-se os seguintes: priapismo em gato, hipoadrenocorticismo primrio em cadela, sndrome de Horner (Figura 3) em gato, sarcoma de Sticker em cadela (Figura 4), leptospirose em cachorro, pustulose eosinoflica estril em cadela (Figura 5), megaesfago em co, estenose artica em co complicada com hemoptise e edema pulmonar, neoplasia qustica da tiride associada a processo inflamatrio 2

piogranulomatoso em gata, prolapso cloacal em osga (Figura 6), uvete anterior bilateral secundria a pimetra em cadela, prolapso da glndula da membrana nictitante em cachorro (Figura 7), avulso parcial traumtica do plexo braquial em co, edema vulvar secundrio a quisto ovrico em cadela, reaco adversa vacinao em cachorro, tumor pediculado do tipo mixoma no ventrculo direito do corao de um co, fractura patolgica secundria a hipocalcmia em psitacdeo, e hifema unilateral secundrio a insuficincia renal hipertensiva em gato. Figura 4 Sarcoma de Sticker em cadela, com localizao vulvar

Figura 5 Pustulose eosinoflica estril em cadela

Figura 6 Prolapso cloacal em osga

Em Cirurgia as tarefas consistiram na preparao dos pacientes, auxlio do cirurgio, monitorizao da anestesia e do ps-operatrio. Foram observados vrios tipos de cirurgias dentro das reas de tecidos moles, ortopedia e neurocirurgia. A participao em consultas de seguimento ps-operatrio traduziu-se por remoo de pontos de sutura, aplicao de vrios tipos de pensos e fisioterapia. As cirurgias observadas com maior frequncia consistiram em orquiectomias electivas em gatos, ovariohisterectomias electivas e mastectomias secundrias a neoplasias mamrias, em cadelas e gatas. Cirurgias menos comuns incluram: herniorrafia de hrnia perineal em dois ces; drenagem cirrgica de abcessos supra e infra-orbitrios em dois canrios (Figura 8); execuo da tcnica de avano da tuberosidade tibial (TTA) para resoluo de ruptura de ligamento cruzado cranial em co (Figura 9); uma amputao por desarticulao escpuloumeral devido a neoplasia ssea maligna em co, uma ventral slot e uma hemilaminectomia para resoluo de hrnia discal cervical e toracolombar, respectivamente, em dois ces. No servio de Imagiologia houve a oportunidade de observar e participar em vrios tipos de diagnstico imagiolgico como radiologia, ultrasonografia e tomografia axial computorizada. Em radiologia foram praticados o posicionamento animal, a seleco de constantes 3

radiogrficas e a revelao de pelculas. Na ultrasonografia foi possvel praticar a colocao e movimentao da sonda no animal. Acresce ainda a observao de um exame de ressonncia magntica realizado no centro de Ressonncia Magntica de Caselas, num gato com sintomatologia neurolgica, no qual se verificou uma rea de mielomalcia, secundria a uma malformao congnita do processo odontide do xis.

Figura 7 Prolapso da glndula da membrana nictitante em co

Figura 8 Abcesso supra-orbitrio em canrio

Figura 9 Aspecto da tcnica de avano da tuberosidade tibial em co

No servio de Internamento as tarefas consistiram em turnos de vinte e quatro horas cada, nos quais era realizado todo o maneio dos animais, desde a monitorizao, administrao de medicao, alimentao, aos cuidados de higiene e ao exerccio/passeio no exterior. Ao longo de todo o estgio houve oportunidade de participao directa em actividades de triagem hospitalar, preparao e administrao de frmacos, recolha, preparao e envio de amostras para anlise laboratorial ou para observao local ao microscpio, realizao de testes rpidos de diagnstico, recepo e maneio de urgncias, entre outras. Adicionalmente, foram realizadas discusses semanais de carcter didctico com a CoOrientadora Dra. Joana Gomes Carneiro, sobre vrios temas na rea Clnica como insuficincia renal, insuficincia heptica, exame neurolgico, doenas endcrinas, doenas infecciosas, doenas cardiovasculares, gastroenterologia e oftalmologia. ainda de salientar a assistncia a sesses semanais organizadas pelo Mestre Nuno Flix, a Dra. Ana Mafalda Loureno e o Dr. Gonalo Vicente, as quais consistiram na apresentao de temas pelos alunos estagirios do Hospital Escolar, bem como por mdicos veterinrios convidados (Anexo 1). A participao activa nestas sesses foi realizada com o tema Transfuses sanguneas, terapia de componentes sanguneos e solues transportadoras de oxignio (Anexo 2).

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2. Riquetsioses2.1. Etiologia e epidemiologia

Os organismos do gnero Rickettsia so bactrias Gram negativas pleomrficas, intracelulares obrigatrias, com distribuio cosmopolita, pertencentes ordem Rickettsiales, famlia Rickettsiaceae (Parola, Paddock & Raoult, 2005). Estes cocobacilos podem infectar vrios mamferos como humanos, candeos, feldeos e roedores. A maioria das espcies conhecidas est distribuda em dois grandes grupos: o grupo exantemtico (spotted fever group), incluindo por exemplo as espcies R. conorii, R. rickettsii, R. japonica, R. felis e R. akari; e o grupo do tifo (typhus group), incluindo por exemplo as espcies R. prowazeckii e R. typhi. As espcies do primeiro grupo so transmitidas por ixoddeos, pulgas (no caso de R. felis) ou caros (no caso de R. akari), enquanto que as do segundo grupo so usualmente transmitidas por pulgas e piolhos (Greene, 2006). A distribuio das doenas transmitidas por ixoddeos , geralmente, o reflexo da distribuio dos ixoddeos que as transmitem. Contudo, tal comea a alterar-se, devido movimentao de candeos infectados para reas no endmicas, aumentando grandemente a distribuio geogrfica destas doenas (Varela, 2003). Existem vrias espcies que podem infectar candeos, mas a maioria considerada no patognica, com excepo de R. rickettsii, agente da febre das Montanhas Rochosas (Rocky Mountain spotted fever). Todavia, o papel das riqutsias no patognicas em indivduos imunodeprimidos ainda no foi clarificado (Greene, 2006). Apesar da espcie R. conorii ser geralmente reconhecida como no patognica em candeos, foi recentemente associada a infeco clnica aguda natural, na Siclia, atravs de PCR (reaco em cadeia da polimerase), sequenciao de ADN e seroconverso imunolgica, verificada por imunofluorescncia indirecta (IFI). At ento, apenas tinha sido detectado ADN desta riqutsia no sangue de ces europeus, mas sem evidncia de doena clnica. Em infeces experimentais, os nicos sinais observados foram linfadenopatia regional e dor, eritema e edema no local de inoculao (Solano-Gallego et al., 2006b). Adicionalmente, foi tambm verificada seroconverso em trs candeos sintomticos em Israel, suportando o diagnstico de infeco aguda por este agente. Contudo, no foi referida a existncia de infeco concomitante por outros agentes infecciosos que, existindo, poderia contribuir para os sinais clnicos observados (Baneth, Breitschwerdt, Hegarty, Pappalardo & Ryan, 1998). A distribuio desta espcie verifica-se na rea mediterrnica da Europa, bem como em muitas zonas do continente Africano e Asitico e o seu vector primrio e hospedeiro 5

reservatrio o ixoddeo Rhipicephalus sanguineus, sendo os candeos os hospedeiros primrios do vector (World Health Organization [WHO], 2004). considerado que ocorre infeco subclnica e riquetsimia transiente em ces e roedores, tendo estes o papel de portadores e reservatrios ocasionais do agente. A deteco de anticorpos (Ac) anti-R. conorii em candeos tem sido utilizada em estudos epidemiolgicos devido aos nveis elevados de exposio ao vector e resposta imunitria humoral intensa. Os dados de seroprevalncia podem ser utilizados como indicadores sensveis do risco de infeco nos humanos. Em Itlia, a seroprevalncia varia entre 30-80% e os ttulos mais elevados foram verificados em ces com idade superior a dois anos (Genchi, 2006). Em Portugal, a seroprevalncia variou entre 38,5% numa populao de 400 ces com cuidados mdicos na regio do Algarve (Alexandre, 2005), a 85,6% numa populao de 104 ces do canil municipal de Setbal (Bacellar, Dawson, Silveira & Filipe, 1995). Em Espanha verificou-se que os animais com seroprevalncias significativamente mais elevadas pertenciam aos grupos de reas rurais, utilizao para guarda de rebanhos e propriedades, e com elevada carga de ixoddeos. A frequncia de ces seropositivos aumentou nos meses de Vero, o que coincidiu com o perodo de maior actividade do vector (WHO, 2004). Pode ser necessria a ocorrncia de uma deficincia imunolgica ou metablica para que haja desenvolvimento da doena em vrias raas caninas, aps infeco com R. conorii. Contudo, existem outras explicaes plausveis para a discrepncia entre elevadas taxas de seroprevalncia em animais saudveis, que sugerem grande exposio ao agente, e a ausncia de notificao da doena clnica. Por exemplo, a natureza aguda, no especfica e potencialmente autolimitante da infeco, combinada com um baixo ndice de suspeita e com a falta de tcnicas especficas de diagnstico, podem ter contribudo para o impedimento da associao prvia entre os sinais clnicos e a infeco (Solano-Gallego et al., 2006b). A possibilidade de ocorrncia de doena clnica por esta espcie foi recentemente reforada, pela associao entre seropositividade e anemia, num estudo seroepidemiolgico em Espanha. Torna-se assim necessria a recolha adicional de dados que evidenciem at que ponto R. conorii causa doena clnica em candeos (Solano-Gallego, Llull, Osso, Hegarty & Breitschwerd, 2006a). A ocorrncia de Rickettsia rickettsii est descrita no continente americano. A sua distribuio relaciona-se com a distribuio dos ixoddeos que servem como hospedeiros invertebrados naturais, reservatrios e vectores: Dermacentor variabilis, D. andersoni, Amblyomma cajennense e R. sanguineus. A transmisso transovrica a principal forma de manuteno desta riqutsia na natureza. Adicionalmente, tambm se verifica transmisso transtadial e venrea nos ixoddeos (Greene, 2006), bem como transmisso horizontal ao se alimentarem 6

em pequenos roedores silvticos, durante os estadios de larva e ninfa. Dentro da populao global de ixoddeos, a prevalncia da infeco menor que 2%, sugerindo que a maioria dos hospedeiros de ixoddeos adultos, como os candeos, raramente desenvolvam riquetsimia de durao e magnitude suficiente, que permita a infeco subsequente de um grande nmero de ixoddeos. A infeco clnica pode ocorrer em candeos e humanos e verifica-se nos meses mais quentes do ano (Maro a Outubro), em que os ixoddeos so mais activos. Contudo, esta sazonalidade no to marcada em regies de baixa latitude (Shaw & Day, 2005). de notar que esta bactria nunca foi isolada em humanos, candeos ou ixoddeos na Europa, tendo sido apenas diagnosticada a doena em indivduos que regressaram dos Estados Unidos da Amrica (EUA) (Genchi, 2006).

2.2.

Fisiopatologia

A transmisso das bactrias ocorre atravs da saliva do ixoddeo, inoculada aquando da refeio sangunea. Foram descritos numerosos componentes incluindo vasodilatadores, factores anticoagulantes e imunossupressores, que facilitam a sua alimentao e a entrada dos agentes infecciosos na circulao do hospedeiro vertebrado. A caracterizao destes factores de crescente importncia, devido ao potencial de utilizao em vacinas (Varela, 2003). O agente tambm pode ser disseminado atravs de tecidos, hemolinfa ou fezes de ixoddeos que entrem em contacto com solues de continuidade da pele. O microorganismo estvel em tecidos ou sangue de ixoddeo temperatura ambiente, mantendo-se vivel por um ano (Center for Food Security and Public Health [CFSPH], 2005b). Para que ocorra infeco, necessrio que a fixao do ixoddeo persista por 5-20 horas, pois o processo de alimentao estimula a replicao das riqutsias nas glndulas salivares. Aps entrada no sistema circulatrio, a bactria replica-se nas clulas endoteliais de pequenos vasos e capilares sanguneos, lesionando directamente estas clulas e resultando em vasculite. Ocorre activao plaquetria e dos sistemas de coagulao e fibrinoltico, com diminuio dos nveis de antitrombina III e plasminognio e aumento dos produtos de degradao do fibrinognio (PDFs). O consumo de factores de coagulao no geralmente suficiente para resultar em hipofibrinogenmia ou coagulao intravascular disseminada (CID) (Greene, 2006). A vasculite induz o consumo plaquetrio, levando diminuio do nmero de plaquetas no sangue, mas a patognese da trombocitopnia associada s riquetsioses pode ser multifactorial (Gasser, Birkenheuer, & Breitschwerdt, 2001). Por exemplo, a deteco de nveis elevados de Ac anti-plaquetrios em ces, experimental e naturalmente infectados, sugere a existncia de 7

destruio plaquetria imunomediada. A vasculite necrotizante progressiva e o aumento da permeabilidade vascular levam a passagem de sangue para o espao intersticial, originando edema, hemorragia, hipotenso e choque. Os rgos com circulao endarterial como a pele, o crebro, o corao e os rins, so os mais afectados (Greene, 2006). Em casos severos, a diminuio da perfuso dos tecidos, devido hipotenso, pode resultar em insuficincia renal aguda (IRA) e a inflamao do miocrdio pode ser fatal (Varela, 2003). Adicionalmente, a infeco fulminante pode resultar em colapso vascular perifrico e morte na primeira semana de infeco, antes de ocorrerem as leses trombticas e proliferativas. O desenvolvimento de sinais neurolgicos e morte pode estar relacionado com a depresso cardio-respiratria, devido ao edema que envolve os centros medulares (Greene, 2006). As alteraes a nvel ocular reflectem a presena de infiltrados de clulas inflamatrias e hemorragia na retina (Varela, 2003).

2.3.

Sinais clnicos

Embora a severidade da doena difira entre as vrias espcies, os achados clnicos e laboratoriais so marcadamente semelhantes entre as riquetsioses existentes. Todas as riquetsioses do grupo exantemtico so caracterizadas por doena aguda de progresso rpida, geralmente acompanhada de febre e trombocitopnia (Breitschwerdt, 2007b). No existe evidncia que suporte uma infeco vascular crnica ou induo de doena crnica, pois h desenvolvimento de imunidade protectora, o que explica a manifestao da doena por R. rickettsii em animais com idade igual ou inferior a trs anos (Varela, 2003). Todavia, num estudo retrospectivo em 30 ces naturalmente infectados por R. rickettsii, 50% dos animais tinha mais de sete anos de idade (Gasser et al., 2001). A susceptibilidade canina a R. rickettsii foi descrita pela primeira vez por Badger em 1933. Trata-se de uma doena muito mais comum do que anteriormente reconhecido e, quando no tratada, pode resultar em morbilidade severa e mortalidade, cuja taxa foi avaliada em 4% (Mikszewski & Vite, 2005). Contudo, os casos subclnicos e ligeiros so mais comuns e os animais no tratados recuperam, geralmente, em menos de duas semanas (CFSPH, 2005b). A severidade da doena est relacionada com a quantidade de inculo e com a raa. Foi relatada doena severa nas raas Pastor Alemo (Greene, 2006) e Husky Siberiano, enquanto que na raa Deerhound Escocs foi verificado um elevado ttulo de anticorpos, sem evidncia prvia de doena associada (Breitschwerdt, 2007b). Verificou-se tambm que os ces da raa Springer Spaniel Ingls com deficincia hereditria em fosfofrutoquinase desenvolveram um

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quadro mais severo da doena e eram mais susceptveis a necrose cutnea, tal como os animais cujo tratamento foi tardio (Greene, 2006). possvel que os ces machos tenham um risco mais elevado de infeco com R. rickettsii e R. conorii, estando tambm mais predispostos a serem seropositivos a R. conorii (SolanoGallego et al., 2006b). Em cerca de 17-40% dos casos verifica-se a presena de ixoddeos durante a consulta ou existe histria recente de exposio a ixoddeos (Gasser et al., 2001; Mikszewski & Vite, 2005). A febre, um dos primeiros e mais consistentes sinais, pode ocorrer 2-3 dias aps a fixao do ixoddeo. O perodo de incubao de R. rickettsii de 2-14 dias e a durao da doena geralmente curta, compreendendo duas semanas ou menos (Varela, 2003). apresentao do animal so tambm tpicos os sinais de anorexia e depresso ou letargia. Adicionalmente verifica-se perda de peso, sinais oculares, linfadenomeglia perifrica, edema subcutneo e hipermia de vrias extremidades, taquicardia, taquipneia, dispneia, ictercia, hepatomeglia, mialgia, artralgia, dificuldade em se levantar, edema e rigidez articulares, alteraes neurolgicas, vmito, diarreia, dor abdominal, corrimento nasal mucopurulento, tosse, petquias, equimoses e necrose cutnea (Figura 10). As hemorragias petequiais (Figura 11) e equimticas no so frequentes nos candeos (Shaw & Day, 2005), mas quando ocorrem so mais comuns nos casos agudos e na mucosa oral, ocular e genital, em vez de na pele. Na mucosa oral foram tambm observadas vesculas discretas e mculas eritematosas focais (Greene, 2006). Pode ainda notar-se epistaxis, melena e hematria, nos animais severamente afectados. As tendncias hemorrgicas so mais frequentes quando o diagnstico e o tratamento so realizados mais de cinco dias aps o incio dos sinais clnicos, devendo-se geralmente vasculite e no trombocitopnia (CFSPH, 2005b, Breitschwerdt, 2007b).

Figura 10 Necrose do plano nasal em co com riquetsiose por R. rickettsii (Shaw & Day, 2005)

Figura 11 Petquias na mucosa oral em co com riquetsiose por R. rickettsii (Greene, 2006)

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Em machos, frequente observar edema do escroto, bem como dor, hipermia e hemorragia do epiddimo (Breitschwerdt, 2007b). Estes sinais esto muitas vezes associados a uma locomoo relutante e rgida, como resultado da inflamao articular, muscular e menngea. As leses oculares so comuns e tendem a ser bilaterais, podendo contudo ser assimtricas. Os sinais mais frequentes so hemorragias. Pode verificar-se corrimento mucopurulento, conjuntivite, congesto ou hemorragia conjuntival e dos vasos episclerais, uvete anterior, hifema, hemorragias e edema da retina, exsudados coriorretinais e descolamento da retina (CFSPH, 2005b). Os sinais neurolgicos so observados em cerca de 43% dos casos e os animais com elevado ttulo de Ac apresentao podem ter uma incidncia superior de sintomatologia neurolgica severa, anomalias da coagulao e necrose cutnea. A disfuno vestibular pode ser a anomalia neurolgica especfica mais comum (Gasser et al., 2001; Mikszewski & Vite, 2005), ocorrendo na fase inicial da doena e frequentemente como estmulo iatrotrpico. Outros sinais incluem estupor, ataxia, paraparsia ou tetraparsia, hiperestesia generalizada ou localizada, tremores de inteno da cabea e convulses. Em estadios terminais da doena podem ocorrer convulses, dfices da funo dos nervos cranianos, miocardite, coma, colapso cardiovascular, oligria e choque. Em casos severos verificou-se necrose das extremidades, leses necrotizantes na pele e CID. Pensa-se que a CID fulminante apenas ocorre em casos complicados por sepsis (Gasser et al., 2001). Devido escassez de informao no que concerne apresentao clnica da riquetsiose por R. conorii e potencial importncia que este agente tem em Portugal, sero descritos de seguida os sinais clnicos observados na Siclia, em trs Yorkshire Terriers machos no relacionados, cuja doena aguda foi confirmada. Os casos ocorreram entre os meses de Maio e Setembro, a idade mdia foi de 4,3 anos e todos os candeos tinham histria recente de exposio a ixoddeos. Os sinais clnicos incluram febre (40,1-41 C) (n=3), anorexia (n=3), letargia (n=3), linfadenomeglia perifrica (n=2), claudicao intermitente com dor articular (n=1), locomoo rgida e cifose (n=1), blefarite (n=1), conjuntivite (n=1), taquicardia (n=1), ptialismo (n=1), vmito intermitente com dor abdominal e desidratao (n=1). de salientar que um destes animais revelou serologia positiva para Anaplasma phagocytophilum, podendo haver sobreposio de sinais clnicos (Solano-Gallego et al., 2006b).

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2.4.

Diagnstico

A variao marcada na apresentao clnica do animal leva possibilidade de vrios diagnsticos diferenciais, dentro das doenas infecciosas e no infecciosas. Adicionalmente, a co-infeco com outros agentes etiolgicos transmitidos por ixoddeos, deve ser considerada em animais com quadros severos ou atpicos. A alterao hematolgica mais consistente a trombocitopnia, geralmente ligeira, com observao frequente de megatrombcitos. Num estudo retrospectivo, 83% dos animais infectados revelaram trombocitopnia e 40% tinham trombocitopnia severa, inferior a 75103 plaquetas/L (Gasser et al., 2001). Normalmente, ocorre leucopnia ligeira nas primeiras 24-48 horas, seguida de leucocitose progressiva, aumentando proporcionalmente severidade da doena. Pode verificar-se ainda neutrofilia moderada com desvio esquerda, granulao txica de neutrfilos, metamielcitos (neutrfilos imaturos), eosinopnia, linfopnia, monocitose, e anemia normoctica e normocrmica ligeira a moderada (Greene, 2006; Breitschwerdt, 2007b). A nica anomalia de coagulao observada pode ser um ligeiro prolongamento do tempo de coagulao activada (TCA), embora tambm se verifique prolongamento do tempo de tromboplastina parcial activada (TTPA) e aumento dos PDFs (Gasser et al., 2001). Geralmente verifica-se hiperfibrinogenmia nos casos ligeiros a moderados, como resultado da reaco fase aguda. Contudo, o fibrinognio pode estar diminudo em casos severos devido a um rpido consumo, secundrio vasculite. As anomalias bioqumicas podem incluir um ligeiro aumento da glicmia e das enzimas hepticas fosfatase alcalina srica (FAS), alanina aminotransferase (ALT) e aspartato aminotransferase (AST). A hipercolesterolmia tem sido uma das alteraes mais consistentes nos animais afectados. Frequentemente verifica-se hipoalbuminmia, devendo-se provavelmente extravaso associada a leso endotelial vascular generalizada. A hiponatrmia, hipoclormia e acidose metablica so achados variveis. Pode verificar-se uma hipocalcmia artefactual, que normaliza aps a correco da hipoalbuminmia. A ureia srica pode aumentar em estadios terminais da doena, devido a oligria e insuficincia renal (Greene, 2006). Pode verificar-se proteinria e hematria, como resultado de alteraes na coagulao, ou de leso glomerular e tubular. Em alguns animais ocorre bilirrubinria e hiperbilirrubinmia, geralmente ligeiras, bem como aumento da creatina quinase (CK), ligeiro a moderado. A anlise do lquido cfalo-raquidiano (LCR) geralmente normal, podendo contudo observarse ligeiro aumento da fraco proteica e celular (neutrfilos ou moncitos), sinais de meningite supurativa. O lquido sinovial em animais com poliartrite demonstra alteraes 11

inflamatrias, com aumento predominante de neutrfilos, revelando poliartrite supurativa. Radiografias torcicas podem evidenciar um padro intersticial difuso, especialmente em ces com dispneia e tosse (Greene, 2006). No traado electrocardiogrfico pode verificar-se alteraes da conduo relacionadas com miocardite, incluindo disfuno do nodo sinoatrial, depresso do segmento ST e da onda T e contraces ventriculares prematuras (Shaw & Day, 2005). As modificaes hematolgicas e bioqumicas descritas na riquetsiose canina por R. conorii incluram trombocitopnia, anemia, hipoproteinmia, hipoalbuminmia e neutrofilia com ou sem desvio esquerda. Uma semana aps o incio do tratamento verificou-se neutrofilia, linfocitose, hipoalbuminmia, hiperproteinmia com hiperglobulinmia, aumento da ureia e da actividade das enzimas hepticas ALT e gama glutamil transpeptidase (GGT), com ausncia de sinais clnicos (Solano-Gallego et al., 2006b). A confirmao do diagnstico requer serologia, amplificao de ADN por PCR ou pesquisa de antignios (Ag) em biopsias tecidulares ou post mortem por imunofluorescncia directa (IFD). A cultura destas bactrias apenas realizada em actividades de investigao, pois a sua utilizao como mtodo de diagnstico impraticvel, devido ao longo perodo necessrio para o isolamento (Varela, 2003). O diagnstico por PCR tornou possvel a deteco de ADN, a partir de um pequeno nmero de microorganismos, no sangue total ou em amostras de tecidos. de salientar que a persistncia de ADN de riqutsias no viveis pode levar a resultados positivos por longos perodos de tempo, aps o tratamento (Greene, 2006). Adicionalmente, os primers utilizados para amplificar estes agentes abrangem vrias espcies de riqutsias, s sendo possvel estabelecer a verdadeira espcie implicada atravs de sequenciao de ADN (Torina & Caracappa, 2006). A serologia o mtodo primrio de confirmao da doena na prtica clnica. Os mtodos mais adequados para a testagem de R. rickettsii no soro canino parecem ser a IFI (Figura 12), o mtodo de ELISA (Enzyme-Linked Immunosorbant Assay) e a aglutinao em ltex. Os dois primeiros mtodos tm a vantagem de necessitar apenas de pequenas amostras de soro e reagentes, revelando elevada sensibilidade e diferenciando os Ac em imunoglobulinas (Ig)G ou IgM (Greene, 2006). A anlise semi-quantitativa de IgG anti-R. rickettsii, baseada em ELISA, permite um resultado rpido no local de consulta (Mikszewski & Vite, 2005). O diagnstico confirmado quando o ttulo de IgG aumenta quatro ou mais vezes, entre a fase aguda e a fase de convalescena, trs semanas depois. Devido a diferenas nos resultados obtidos entre laboratrios e no mesmo laboratrio em datas posteriores, recomendado que as duas amostras sejam enviadas juntas. A produo de IgG anti-R. rickettsii ocorre em 1-3 12

semanas aps a exposio. Assim, um ttulo negativo no elimina a possibilidade de infeco (Shaw & Day, 2005). No existe consenso quanto ao ttulo de IgG mnimo em que se considera estar presente uma infeco activa, quando feita uma nica medio por IFI. Para R. rickettsii foram sugeridos ttulos > 512 ou > 1024, quando a medio realizada sete ou mais dias aps o incio dos sinais clnicos. Contudo, num estudo experimental com Beagles previamente seronegativos, verificaram-se sinais de doena com picos de IgG 160 (Mikszewski & Vite, 2005). Figura 12 Imagem de imunofluorescncia indirecta positiva para anticorpos anti-R. conorii (Alexandre, 2005).

Os ttulos elevados de IgG em animais activamente infectados decrescem geralmente ao fim de 3-5 meses, embora se verifique em alguns casos ttulos de 128, durante pelo menos dez meses. A avaliao simultnea dos ttulos de IgG e IgM pode providenciar um resultado mais exacto, quando se envia apenas uma amostra. Em infeces naturais e experimentais com R. rickettsii, os ttulos de IgM aumentam durante a primeira semana e diminuem aps 4-8 semanas ou menos. No mesmo animal, o ttulo mximo de IgM geralmente inferior a 2-4 vezes o ttulo de IgG (Greene, 2006). Em ces infectados experimentalmente com R. conorii, o ttulo de IgM aumenta rapidamente e desaparece ao fim de 35 dias (Solano-Gallego et al., 2006b). Uma nica titulao de IgM igual ou superior a 64, em conjunto com sinais clnicos sugestivos, tambm suporta o diagnstico (Varela, 2003). Contudo, a presena de IgM no prova a infeco aguda, pois so detectados ttulos elevados de IgM anti-R. rickettsii em candeos que no seroconvertem, baseando-se nos valores de IgG (Solano-Gallego et al., 2006b). importante referir que a seroconverso a R. rickettsii pode ser retardada ou suprimida pela administrao de antimicrobianos no incio da doena (Greene, 2006).

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Adicionalmente, a interpretao dos resultados serolgicos pode ser dificultada se houver reaco cruzada com espcies no patognicas de Rickettsia spp., se houver exposio repetida a ixoddeos com o agente infeccioso, ou ainda se houver infeco persistente com um organismo actualmente no caracterizado, tornando ainda mais importante e fidedigna a titulao na fase aguda e de convalescena (Gasser et al., 2001). Relativamente ocorrncia de reaces cruzadas, o ttulo de Ac contra a riqutsia especfica, responsvel pela infeco patente, geralmente o mais elevado. A IFD permite um diagnstico rpido, sendo mais fcil encontrar a bactria em zonas de leses hemorrgicas, no incio da doena e antes do tratamento. Contudo, a IFD no realizada com frequncia, devido incidncia relativamente baixa de leses cutneas e indisponibilidade do mtodo em vrias localizaes geogrficas (Shaw & Day, 2005). As leses macroscpicas post mortem podem incluir hemorragias petequiais e equimticas disseminadas por todos os tecidos, linfadenomeglia hemorrgica generalizada, esplenomeglia, trombos e ocluses venosas, necrose isqumica focal, endocardite valvular e edema pulmonar (CFSPH, 2005b). Histologicamente pode observar-se vasculite necrotizante e infiltrados perivasculares de clulas inflamatrias na maioria dos tecidos, meningoencefalite aguda com vasculite e gliose nodular focal, necrose heptica e miocrdica, e pneumonia intersticial aguda (Greene, 2006).

2.5.

Teraputica

imprescindvel iniciar o tratamento imediatamente aps a colheita das amostras para diagnstico, de modo a obter uma boa resposta clnica. Pode ser feito um diagnstico presuntivo, com base na ocorrncia sazonal e nas alteraes clnicas e laboratoriais. Os antibiticos utilizados so considerados riquetsiostticos. Os frmacos de eleio so as tetraciclinas: doxiciclina (10-20 mg/kg, por via oral (PO), a cada doze horas (BID), durante 7 dias) ou tetraciclina (22-30 mg/kg, PO, a cada oito horas (TID), durante 7 dias). Alternativamente, estes frmacos podem ser administrados por via endovenosa (EV). A sua utilizao, na fase inicial da doena, pode atenuar a resposta imunolgica, mas na maioria dos casos no interfere com a confirmao serolgica (aumento do ttulo de Ac em quatro ou mais vezes) (Greene, 2006). Estes frmacos devem ser administrados conjuntamente com alimento, de forma a evitar possveis efeitos gastrointestinais secundrios. A doxiciclina no afecta a funo renal nem afectada por esta, sendo preferida tetraciclina nestes casos. tambm recomendada em fmeas gestantes ou

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cachorros com menos de seis meses de idade, devido discolorao amarelada do esmalte dentrio, provocada pela tetraciclina (Tennant, 2005). As quinolonas enrofloxacina (3 mg/kg, PO ou por via subcutnea (SC), BID, durante 7 dias) ou trovafloxacina so tambm eficazes. Contudo, o seu uso deve ser restrito a adultos, por possvel leso cartilagnea nos animais em crescimento. A terapia de suporte necessria nos animais em choque, com alteraes da coagulao e evidncia clnica ou laboratorial de insuficincia orgnica. A fluidoterapia endovenosa deve ser utilizada com cautela, pois o aumento da permeabilidade vascular e expanso do volume extracelular podem resultar em edema pulmonar e cerebral (Greene, 2006). Os corticosterides sistmicos, utilizados frequentemente aquando da presena de envolvimento ocular, so controversos pois foram associados a necrose gangrenosa em alguns animais tratados com doses imunossupressoras. Contudo, no foram verificados efeitos deletrios no seu uso, em conjuno com antibioterapia, em animais infectados experimentalmente, manifestando doena ligeira a moderada (CFSPH, 2005b). Podem tambm ser teis no maneio da trombocitopnia imunomediada concomitante, no sendo recomendados devido eficcia da antibioterapia apropriada (Greene, 2006).

2.6.

Prognstico

O prognstico depende grandemente da progresso da infeco aquando da instituio da antibioterapia, bem como da eficcia da terapia de suporte. Devem ser diagnosticadas com eficincia e tratadas concomitantemente a desidratao, a anemia, as alteraes da coagulao e as manifestaes secundrias como a insuficincia de vrios rgos (Varela, 2003). A infeco por R. rickettsii no tratada frequentemente fatal. Aps o incio do tratamento em animais sem sintomatologia neurolgica ou grave disfuno de rgos, a resposta clnica rpida. Caso haja desenvolvimento de sinais neurolgicos, a recuperao pode ser retardada e os dfices podem tornar-se permanentes (Shaw & Day, 2005). Num estudo retrospectivo em cinco animais com sintomatologia neurolgica, com incio precoce do tratamento, o prognstico foi bom, recuperando todos os animais em menos de 15 dias (Mikszewski & Vite, 2005). Em casos de tratamento tardio podem verificar-se sinais severos devido ocorrncia de meningite e progresso para encefalomielite (Greene, 2006), bem como uvete, necrose dos tecidos afectados e poliartrite progressiva crnica (Gasser et al., 2001; Fossum et al., 2007). Os antibiticos apenas so eficazes se forem administrados antes do desenvolvimento de alteraes patolgicas graves, como trombose e necrose tecidular. As extremidades dos animais que desenvolvem gangrena acabam eventualmente por 15

recuperar, embora possam permanecer com desfigurao e leses cicatriciais permanentes. Em estados agudos da doena, a morte pode ocorrer devido a ditese hemorrgica ou trombose de rgos vitais. As causas mais consistentes de morte ou disfuno permanente de rgos so devidas a leso cardiovascular, neurolgica e renal. Em alguns animais severamente afectados a morte ocorreu por meningoencefalite rapidamente progressiva e disseminada (Greene, 2006). Estudos com infeces experimentais indicam que a diminuio da febre ocorre em 24-48 horas aps incio do tratamento e que a imunidade persiste pelo menos durante trs anos. Assim, animais com manifestaes clnicas persistentes aps o incio da antibioterapia apropriada, devem ser avaliados para outras causas de doena ou presena concomitante de outros agentes infecciosos transmitidos por ixoddeos (Gasser et al., 2001).

2.7.

Preveno

O desenvolvimento de imunidade a riquetsiose por R. rickettsii foi observado em estudos experimentais, com durao de pelo menos trs anos. Em ces naturalmente infectados nunca foi verificada reinfeco por esta riqutsia. A infeco experimental com riqutsias no patognicas parece no proteger de infeco subsequente com R. rickettsii. Contudo, em certos grupos de candeos com grande carga de ixoddeos, a exposio crnica a Rickettsia spp. no patognicas ou a infeco subclnica por R. rickettsii, parecem contribuir para a preveno da forma severa da doena. Este facto evidenciado pela elevada seroprevalncia de Ac verificada na populao saudvel (Greene, 2006). At data, no existe vacina comercialmente disponvel para a preveno da doena, mas resultados experimentais com vacinas baseadas em protenas recombinantes da membrana exterior de R. rickettsii e de R. conorii evidenciaram imunoproteco em roedores. A diminuio da exposio canina a reas infestadas por ixoddeos, bem como a remoo rotineira destes vectores, representam os meios mais eficazes de preveno (Greene, 2006). Aps remoo de um ixoddeo, deve ser realizada a antisspsia do local de fixao com solues alcolicas ou base de iodo, uma vez que as riqutsias so sensveis a estas substncias (CFSPH, 2005b). O uso de acaricidas profilcticos eficazes constitui um dos passos mais importantes para a preveno, contribuindo tambm para a diminuio do risco de transmisso da doena para os humanos. Ao diminuir a populao de vectores, interrompido o ciclo biolgico e consequentemente, a transmisso do agente ao hospedeiro vertebrado (Varela, 2003).

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2.8.

Implicaes para a Sade Pblica

Vrias so as riquetsioses consideradas como zoonoses. As do grupo exantemtico so importantes pela sua natureza endmica, elevada prevalncia e severidade, especialmente quando mal tratadas ou diagnosticadas. As riquetsioses caninas mais importantes so igualmente zoonoses. A espcie R. rickettsii o agente da febre exantemtica das Montanhas Rochosas, nos EUA. A prevalncia de reaces seropositivas em candeos de uma dada rea geralmente proporcional ao risco de infeco humana, demonstrando assim o papel de sentinela da espcie canina para a doena humana. Vrias so as notificaes de doena concomitante entre candeos e os seus proprietrios, devido a exposio simultnea a ixoddeos infectantes (Greene, 2006). A transmisso directa do agente nunca foi documentada (CFSPH, 2005b). A riqutsia R. conorii o agente da febre escaronodular (mediterranean spotted fever), causando febre, prostrao, cefaleias, mialgia, artralgia, erupo cutnea maculopapulosa generalizada e uma escara tipicamente negra com halo eritematoso, no local de fixao do ixoddeo vector. Embora a doena seja geralmente ligeira, as formas severas, como as associadas a encefalomielite, esto conotadas com uma elevada taxa de mortalidade (WHO, 2004; Silva, Santos, Formosinho & Bacellar, 2006). A proximidade de candeos seropositivos um factor de risco para a doena em humanos (Solano-Gallego et al., 2006b). A febre escaronodular, tambm conhecida como febre botonosa, uma Doena de Declarao Obrigatria (DDO) em Portugal desde 1950 e o laboratrio de referncia nacional para as riquetsioses o Centro de Estudos de Vectores e Doenas Infecciosas, do Instituto Nacional de Sade Dr. Ricardo Jorge (Galvo et al., 2005). A taxa de incidncia tem vindo a diminuir de 7,6 casos por 100.000 habitantes em 1995, para 3,42 casos por 100.000 habitantes em 2006 (Direco-Geral da Sade [DGS], 2006; DGS, 2007). No ano de 2006, o nmero total de casos notificados foi de 362, correspondendo 134 casos regio Centro e 21 regio do Algarve, regies com maior e menor nmero de casos notificados, respectivamente. Os grupos etrios maioritariamente atingidos corresponderam s idades entre 1-14 anos, seguidos dos cidados com mais de 65 anos de idade. A maior parte dos casos verificou-se em cidados do sexo masculino, nos meses de Maio a Outubro, sendo Agosto o ms onde se registou maior frequncia (DGS, 2007). Os candeos podem aumentar o risco de infeco por riqutsias, ao transportarem ixoddeos para ambientes no endmicos ou para a proximidade dos humanos. A remoo de ixoddeos em candeos deve ser cautelosa, de modo a evitar a contaminao da pele ou conjuntiva com hemolinfa ou excrees infectantes (Greene, 2006). Os animais infectados devem ser manuseados com cuidado, durante a introduo de cateteres endovenosos e a colheita de 17

sangue. As amostras suspeitas devem conter etiquetas indicando perigo de zoonose a fim de evitar uma infeco inadvertida pelo pessoal de laboratrio (Breitschwerdt, 2007b).

3. Babesioses e teilerioses3.1. Etiologia e epidemiologia

Os organismos do gnero Babesia e Theileria so protozorios ubiquitrios, com distribuio cosmopolita. Pertencem ao filo Apicomplexa, ordem Piroplasmida e famlias Babesiidae e Theileriidae, respectivamente (Vial & Gorenflot, 2006). Actualmente, os parasitas pertencentes a estes dois gneros esto sujeitos a intensa investigao e recaracterizao molecular, podendo ser necessria a criao de novos gneros (Uilenberg, 2006). Como ser referido adiante, existem espcies do gnero Theileria que parasitam candeos, podendo ocorrer teileriose canina. Contudo, por questes de uniformizao e melhor compreenso do texto, os termos babesiose e pequenas babsias, quando aplicados espcie canina, sero utilizados para designar respectivamente, a doena e os agentes, pertencentes aos gneros Babesia e Theileria. Dado que a babesiose uma doena emergente em vrias regies, a determinao precisa das espcies que induzem doena clnica em cada localizao geogrfica de extrema importncia. O sucesso do tratamento pode depender de tal facto, uma vez que a maioria dos frmacos utilizados tem eficcia limitada contra diferentes espcies de Babesia spp. Assim, torna-se necessria a utilizao de Ag especficos em testes serolgicos, de modo a diminuir o risco de obteno de resultados falsos negativos ou falsos positivos durante a pesquisa (Shaw & Day, 2005). At data, todas as espcies conhecidas so transmitidas por ixoddeos e, por definio, existe transmisso transovrica em Babesia spp., enquanto que no caso de Theileria spp. apenas se verifica transmisso transtadial. Os hospedeiros vertebrados susceptveis a infeco incluem vertebrados domsticos e selvagens como grandes e pequenos ruminantes, equdeos, sudeos, candeos e feldeos. Relativamente aos candeos, at h pouco tempo apenas eram reconhecidas duas espcies, B. canis e B. gibsoni, grande e pequena babsia, respectivamente, capazes de produzir doena. Contudo, desde o fim dos anos 80, a espcie B. canis foi reclassificada em trs novas espcies com base em imunidade cruzada, serologia, especificidade de vectores e filogenia molecular: B. vogeli (Figura 13), ligeiramente patognica; B. canis (Figura 14), moderadamente patognica; e B. rossi, altamente

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patognica. Todavia, na maior parte da literatura estas trs espcies ainda so referidas como subespcies distintas de B. canis (Uilenberg, 2006). Adicionalmente, foi descrita uma nova grande babsia na Carolina do Norte, nos EUA, Babesia sp. n.d.. Esta espcie foi inicialmente detectada num animal imunodeprimido, com alteraes clnicas e hematolgicas consistentes com babesiose (Birkenheuer, Neel, Ruslander, Levy & Breitschwerdt, 2004). Desde ento, foram verificados mais cinco casos de infeco natural, sugerindo que a espcie canina o hospedeiro vertebrado natural deste organismo. A forma de infeco permanece desconhecida, incluindo vectores e hospedeiros reservatrios (Lehtinen, Birkenheuer, Droleskey & Holman, 2008).

Figura 13 Eritrcitos parasitados por B. vogeli, em vrias formas morfolgicas (Shaw & Day, 2005)

Figura 14 Eritrcito evidenciando merozotos de B. canis. Colorao por Giemsa (Ramsey & Tennant, 2001)

Relativamente s pequenas babsias, existem actualmente pelo menos quatro espcies, gentica e clinicamente distintas, que afectam a espcie canina. A pequena babsia B. gibsoni (Figura 15), apesar de ser endmica na sia, tem ocorrido esporadicamente em vrias localizaes do mundo. J foi descrita em Itlia e em Espanha e pode alcanar brevemente uma prevalncia considervel na Europa, devido crescente mobilizao de candeos entre zonas endmicas e no endmicas (Bourdoiseau, 2006). de salientar que no se verifica transmisso transovrica nesta espcie, nem existem provas definitivas que identifiquem os seus ixoddeos vectores (Greene, 2006). Em 2006, foi identificada a babsia B. conradae, no estado da Califrnia, cujo vector ainda desconhecido, apesar de ter sido observada transmisso transtadial por R. sanguineus (Kjemtrup, Wainwright, Miller, Penzhorn & Carreno, 2006). Os sintomas clnicos so semelhantes aos da infeco por B. gibsoni, apesar de poder verificar-se maior patogenicidade, resultando em parasitmia e anemia mais pronunciadas (Kjemtrup & Conrad, 2006). 19

A espcie T. annae (Figura 16) parece ser hiperendmica no noroeste de Espanha, causando doena severa, com maior incidncia no Outono e Inverno (Garca, 2006). Esta espcie foi identificada em ces, raposas e gatos, sendo importante referir que foi detectada por PCR em dois gatos residentes em Portugal, com sintomas de imunodepresso, secundria a infeco pelo vrus da leucemia felina (Criado-Fornelio, Martinez-Marcos, Buling-Saraa & BarbaCarretero, 2003b).

Figura 15 Eritrcitos parasitados por B. gibsoni (Shaw & Day, 2005)

Figura 16 Eritrcitos parasitados por T. annae. Colorao por Giemsa (Garca, 2006)

A espcie T. equi foi detectada por PCR e sequenciao de ADN em quatro candeos, um sintomtico e trs saudveis, provenientes de trs provncias diferentes de Espanha, em habitats rurais e urbanos. A presena maioritria em animais assintomticos pode ser indicativa de baixa patogenicidade neste hospedeiro vertebrado (Criado-Fornelio, MartinezMarcos, Buling-Saraa & Barba-Carretero, 2003a). Recentemente, foi tambm identificada a espcie T. annulata num candeo sintomtico, proveniente da regio da Andaluzia, em Espanha, considerada rea endmica desta parasitose bovina (Criado et al., 2006). Existe assim a ideia de que os agentes relativamente prximos so capazes de infectar vrios hospedeiros vertebrados, facto que veio desafiar a percepo anterior de especificidade de hospedeiros para estes parasitas, com potenciais implicaes clnicas no que respeita patogenicidade, diagnstico e tratamento (Criado-Fornelio et al., 2003b). Na Tabela 1 so resumidas as espcies de Babesia e Theileria observadas em ces at data, seus vectores e distribuio geogrfica. Existe uma variao sazonal na ocorrncia da infeco por B. canis, verificando-se um pico na Primavera e outro no Outono (Schetters et al., 2006). A prevalncia da infeco fortemente afectada pela humidade relativa, que influencia a abundncia dos ixoddeos no ambiente (Genchi, 2006). Foi verificada uma prevalncia maior em machos (Shaw e Day, 2005). Em reas endmicas, como em Frana, a prevalncia desta babesiose variou entre 2030% a 85%. Num estudo retrospectivo no norte de Itlia verificou-se que 19 em 23 animais 20

infectados eram ces de caa, 13 dos quais da raa Setter Ingls. A maioria (74%) dos animais tinha estado numa caada 5-15 dias antes da apresentao e 43,5% tinham ixoddeos visveis durante a consulta (Furlanello, Fiorio, Caldin, Lubas & Solano-Gallego, 2005).

Tabela 1 Espcies de Babesia e Theileria observadas em ces, vectores e distribuio geogrfica (Criado-Fornelio et al., 2003a; Birkenheuer et al., 2004; Bourdoiseau, 2006; Criado et al., 2006; Garca, 2006; Greene, 2006; Kjemtrup et al., 2006; Uilenberg, 2006)Espcie B. canis B. vogeli B. rossi Babesia sp. n.d. B. gibsoni B. conradae T. annae T. equi T. annulata Vector D. reticulatus R. sanguineus Haemaphysalis leachi ? R. sanguineus (?); H. bispinosa (?) R. sanguineus (?) Ixodes hexagonus ? ? Distribuio Europa, sia Cosmopolita frica Carolina do Norte Cosmopolita Califrnia Norte de Espanha Espanha Andaluzia

de salientar que reconhecido, h muito, a possibilidade de transmisso destes parasitas atravs de sangue infectado, como por exemplo por transfuses sanguneas (Greene, 2006). Adicionalmente, estudos recentes com B. gibsoni mostraram uma elevada prevalncia de parasitismo entre machos de raas reconhecidas por agresso intra-espcie, como American Staffordshire Terrier, American Pitt Bull Terrier e Tosa, sugerindo que as lutas de ces e consequente contacto com sangue contaminado, podem ser um modo de disseminao importante desta espcie nos EUA, Austrlia e certas reas do Japo (Jefferies et al., 2007b). Nas infeces por B. rossi foi tambm verificada maior prevalncia nestas raas, com mortalidade elevada, sugerindo uma susceptibilidade acrescida doena ou um risco de exposio mais elevado. Suspeita-se que possa ocorrer transmisso transplacentria em relao a B. canis, podendo observar-se fraqueza nos descendentes, embora no esteja provada (Greene, 2006). Este tipo de transmisso foi demonstrado experimentalmente na infeco crnica com B. gibsoni, resultando em babesiose congnita fatal em toda a ninhada (Fukumoto, Suzuki, Igarashi & Xuan, 2005).

3.2.

Fisiopatologia

A transmisso do agente ao hospedeiro vertebrado ocorre geralmente alguns dias aps a fixao do ixoddeo, pois necessria a maturao dos esporozotos, antes de se tornarem infectantes. Durante a alimentao do vector, os esporozotos so veiculados juntamente com a saliva, fixam-se membrana eritrocitria e penetram no interior dos eritrcitos por endocitose, diferenciando-se em merozotos e trofozotos. A multiplicao destes, resulta 21

geralmente em duas clulas filhas, por vezes quatro, danificando a clula hospedeira em fases repetidas de reproduo assexuada, saindo depois para infectar outros eritrcitos (Uilenberg, 2006). Por definio, os organismos do gnero Babesia apenas se multiplicam nos eritrcitos, enquanto que no gnero Theileria os esporozotos, numa primeira fase, penetram nos linfcitos ou macrfagos, desenvolvendo-se em esquizontes. Os merozotos libertados dos esquizontes penetram ento nos eritrcitos e multiplicam-se dando origem a quatro clulas filhas ou ttradas, frequentemente com a forma de cruz de Malta. A replicao em ttradas ou cruz de Malta tambm observada em B. conradae, embora raramente (Kjemtrup et al., 2006). A fisiopatologia da babesiose canina consiste em dois processos paralelos: um processo hemoltico e um processo inflamatrio (Matijatko et al., 2007). A resposta imunolgica tem o papel mais importante. Os organismos desencadeiam um mecanismo de destruio citotxica dos eritrcitos circulantes, mediada por Ac, sendo depois removidos pelo sistema mononuclear fagocitrio. A anemia e a parasitmia so mais severas em animais esplenectomizados. Os Ac so dirigidos contra Ag parasitrios incorporados nas membranas de eritrcitos infectados, mas tambm contra componentes endgenos das membranas eritrocitrias, ocorrendo hemlise intravascular e extravascular, com anemia e hemoglobinmia (Zygner, Gjska, Rapacka, Jaros & Wedrychowicz, 2007). A anemia hemoltica resultante das infeces por Babesia spp. assim devida diviso binria intraeritrcitria dos organismos, anemia hemoltica imunomediada secundria, s leses oxidativas dos eritrcitos e presena de um factor hemoltico no soro, descrito na infeco por B. gibsoni, ambos aumentando a susceptibilidade fagocitose (Gopegui et al., 2007). O segundo mecanismo fisiopatolgico resulta numa sndrome de choque hipotensivo, induzido pelos mediadores inflamatrios e representando uma resposta imunitria exacerbada infeco (Gopegui et al., 2007). A reaco do organismo na fase aguda de uma infeco desenvolve-se aps qualquer leso inflamatria tecidular e pode levar a vasodilatao, hipotenso e hemodiluio. considerada como parte da imunidade inata e caracteriza-se por alteraes profundas na concentrao plasmtica das protenas de fase aguda (PFAs), concentrao esta que est relacionada com a severidade da condio subjacente, providenciando um meio de avaliao da presena e extenso da infeco, bem como da resposta ao tratamento. Foi demonstrada a ocorrncia de uma resposta marcada na fase aguda da infeco por B. canis, com elevao significativa da concentrao das principais PFAs (Matijatko et al., 2007). A ocorrncia de um processo inflamatrio agudo tambm sugerida pela elevao do fibrinognio, achado comum na babesiose canina. Adicionalmente, a fase 22

aguda caracterizada por anemia no hemoltica e parasitmia ligeira (Furlanello et al., 2005; Gopegui et al., 2007). A trombocitopnia que se verifica na maioria dos animais infectados deve-se provavelmente destruio imunomediada, sequestro no bao (Zygner et al., 2007) e ao resultado da libertao excessiva de mediadores inflamatrios, durante o processo de lise eritrocitria (Jefferies, Ryan, Jardine, Robertson & Irwin, 2007a). As alteraes da hemostase verificam-se em alguns indivduos e podem dever-se a uma resposta fase aguda da infeco, a leso endotelial induzida pela hemlise e a um aumento da interaco dos eritrcitos parasitados com as clulas endoteliais (Gopegui et al., 2007). A ocorrncia de glomerulonefrite membranoproliferativa verificada em alguns animais e pode ter uma patognese imunomediada. Nas infeces por T. annae tambm sugerida uma componente glomerular da doena, com base nas alteraes marcadas dos parmetros da funo renal dos animais afectados. Foram propostos dois mecanismos para esta leso renal: a) a anemia hemoltica intensa uma causa potencial de leso tubular, nefrite intersticial e glomerulopatia; b) a resposta imunomediada pode resultar na deposio de complexos imunes no glomrulo, com subsequente glomerulonefrite (Garca, 2006). A hipxia tecidular contribui grandemente para muitos dos sinais clnicos, induzidos pelas estirpes mais patognicas. As causas de hipxia incluem anemia, choque, estase vascular, excessiva produo endgena de monxido de carbono, e alterao da hemoglobina pelos parasitas, com diminuio da sua capacidade transportadora de oxignio. Em infeces experimentais, a hipxia parece ser mais importante do que a hemoglobinria, na progresso da leso renal. A formao de cido lctico, devido hipxia tecidular, considerada a principal razo de ocorrncia de acidose metablica. A alcalose respiratria resulta em parte, da compensao da acidose metablica, mas mais directamente da hiperventilao causada pela hipoxmia. A peroxidao lipdica que ocorre durante a infeco, aumenta a rigidez dos eritrcitos parasitados e no parasitados, tornando mais lenta a sua passagem pelos leitos capilares. Adicionalmente, a presena de proteases parasitrias solveis, induz a formao de protenas tipo fibrinognio que tornam os eritrcitos mais aderentes, diminuindo ainda mais a velocidade do fluxo sanguneo. Pensa-se que esta estase vascular contribui para a anemia aguda e para muitos outros sinais clnicos potenciais, sendo mais intensa no sistema nervoso central (SNC) e msculos. No caso de infeces por B. rossi, apenas descritas em frica, podem desenvolver-se vrios sinais atpicos ou complicaes. Estas alteraes no so directamente explicadas pela hemlise, parecendo resultar da resposta inflamatria do hospedeiro. A leso tecidular resultante leva provavelmente libertao de citoquinas, provocando inflamao disseminada e leso adicional em mltiplos rgos. Verifica-se assim 23

uma sndrome de disfuno multi-orgnica, resultante da resposta inflamatria sistmica (Greene, 2006). O sistema imunitrio parece no conseguir eliminar completamente a infeco por estes parasitas. Assim, os animais que sobrevivem tornam-se portadores permanentes dos agentes, que ficam sequestrados nos capilares esplnicos, hepticos e de outros rgos, sendo libertados periodicamente para a circulao (Shaw & Day, 2005). As consequncias clnicas da infeco crnica permanecem pouco clarificadas. Apesar da maior parte dos ces parecer tolerar este estado de premunio, os animais permanecem em risco de desenvolver complicaes imunomediadas e recrudescncia da parasitmia e da doena clnica, teoricamente, em caso de comprometimento imunolgico, como na terapia imunossupressora ou nas doenas concomitantes. A infeco crnica em alguns indivduos pode no ter consequncias, tornando-se potencialmente benfica em hospedeiros de zonas endmicas, na proteco de doena futura. Contudo, uma situao inaceitvel em dadores de sangue ou em animais para exportao para zonas no endmicas (Irwin, 2007).

3.3.

Sinais clnicos

O primeiro caso de babesiose canina foi descrito por Hutcheon, na frica do Sul em 1885 (Lobetti, 2004). Os sinais clnicos variam consoante a espcie, idade, estado imunitrio e doenas concomitantes do hospedeiro. Clinicamente, a doena pode classificar-se em forma complicada e no complicada ou pode ser descrita como hiperaguda, aguda, crnica ou subclnica (Gopegui et al., 2007). Apesar de se manifestar em animais de todas as idades, os jovens com menos de um ano de idade so mais susceptveis, podendo ser uma causa significativa e subdiagnosticada de morbilidade e mortalidade em cachorros de colnias reprodutoras de reas endmicas. A apresentao hiperaguda, caracterizada por leso tecidular extensa, rara (Greene, 2006). O perodo de incubao da doena por B. canis de 4-21 dias (Furlanello et al., 2005). Os casos no complicados apresentam sinais clnicos relacionados com hemlise aguda. Pode observar-se febre, depresso, letargia, anorexia, fraqueza, palidez das membranas mucosas, taquipneia, dispneia, taquicardia, pulso hipercintico, linfadenomeglia, esplenomeglia, ictercia, desidratao, choque, vmito, oligria e discolorao da urina devido a hematria, hemoglobinria ou bilirrubinria macroscpicas. As doenas primrias que devem ser diferenciadas da apresentao aguda da babesiose so: outras causas de anemia hemoltica imunomediada (AHIM) e lpus sistmico eritematoso. A forma complicada da babesiose canina est predominantemente relacionada com B. rossi, mas 24

tambm foi descrita em casos de B. canis e infeco por pequenas babsias. Possveis complicaes incluem IRA, coagulopatia, hepatopatia, AHIM, edema pulmonar, hipotenso, hemoconcentrao, pancreatite aguda, reaces leucemides, rabdomilise e alteraes neurolgicas centrais relacionadas com babesiose cerebral ou hipoglicmia. Complicaes raras incluem distrbios gastrointestinais, mialgia, envolvimento cardaco, manifestaes oculares, sinais do tracto respiratrio superior, necrose das extremidades e ascite. A sobreposio de complicaes pode tambm ocorrer (Bourdoiseau, 2006; Greene, 2006; Gopegui et al., 2007). As manifestaes crnicas da infeco esto fracamente caracterizadas, como j foi referido. Os animais infectados com B. vogeli so maioritariamente portadores subclnicos. Manifestaes subclnicas ou de baixo grau so tambm verificadas noutras espcies, mais frequentemente com B. gibsoni. Pode observar-se febre intermitente, letargia, anorexia parcial, perda de condio corporal, membranas mucosas plidas, esplenomeglia, hepatomeglia e linfadenomeglia.

3.4.

Diagnstico

A anomalia hematolgica mais consistentemente verificada nos animais infectados a trombocitopnia, com prevalncia superior dos animais com erliquiose (Greene, 2006). Frequentemente verifica-se anemia, inicialmente ligeira, normoctica e normocrmica, tornando-se depois macroctica, hipocrmica e regenerativa, medida que a doena progride. A reticulocitose proporcional severidade da anemia. Esta ltima, no se correlaciona com o grau de parasitmia. As anomalias leucocitrias so inconsistentes e de pouca sensibilidade nesta doena, sendo mais comum a neutropnia e linfopnia. O teste de Coombs positivo na maioria das vezes e a auto-aglutinao eritrocitria frequente. Nos casos crnicos pode observar-se linfcitos reactivos, indicativos de estimulao antignica (Shaw & Day, 2005). Em trs estudos retrospectivos realizados em Itlia (Furlanello et al., 2005), Espanha (Gopegui et al., 2007) e na Polnia (Zygner et al., 2007), respectivamente com 23, 45 e 248 animais naturalmente infectados com Babesia canis, as alteraes hematolgicas mais frequentes incluram trombocitopnia ligeira a severa (99,5-100%) e anemia normoctica e normocrmica ligeira a moderada (26-74%). As alteraes mais comuns dos parmetros eritrocitrios foram anisocitose (60,5%) e poiquilocitose (25%), sugerindo que a hemlise era imunomediada na maioria dos casos. O aumento do volume plaquetrio mdio ocorreu entre 15,3-67% dos animais, sugerindo resposta da medula ssea, com libertao de plaquetas

25

imaturas. A alterao do leucograma observada com maior frequncia foi a neutropnia, numa percentagem de 36,3-74%. Nos estudos espanhol e italiano, foram tambm analisados outros parmetros de hemostase. As alteraes observaram-se com frequncia no estudo espanhol e incluram prolongamento do tempo de protrombina (TP), do TTPA e do tempo de trombina (TT) em 20% dos animais, e fibrinlise (aumento do dmero-D) em 49%. Diagnosticou-se CID em 20% dos ces. No estudo italiano o TTPA estava significativamente elevado apenas num caso e, em 17% dos animais, verificou-se aumento dos PDFs e do dmero-D, testes sensveis para o diagnstico de CID. As alteraes bioqumicas relacionaram-se com a forma e severidade da doena e com o grau de hipxia. Verificou-se elevao da ALT, AST e FAS, hiperbilirrubinmia, hipoproteinmia, hipoalbuminmia, hipocalimia, hiperclormia, acidose metablica, diminuio do ferro total e da capacidade total de fixao do ferro. A hiperfibrinogenmia foi verificada em 74-100% dos animais. Adicionalmente, no estudo italiano, foi verificada -hiperglobulinmia, sugerindo uma resposta das IgM, IgA e/ou complemento estimulao antignica. O aumento da ureia srica, mantendo-se a creatinina dentro dos valores normais, foi verificado em 35-47% dos animais. A elevao da ureia deveu-se provavelmente hemlise, com libertao de amnia. Por outro lado, pode ser explicada por um catabolismo muscular aumentado, tendo em conta que se verificou aumento da CK na maioria dos animais, podendo ocorrer leso muscular por B. canis, j descrita na infeco por B. rossi e na babesiose bovina. No estudo retrospectivo em Espanha, foi verificada uma hiperglicmia no severa em 47% dos animais. A hiperglicmia pode ocorrer em doenas hipermetablicas, como a babesiose canina, devido ao aumento da mobilizao da glucose e ao stress, podendo ser marcadamente aumentada devido elevao da secreo de cortisol. A urianlise pode evidenciar bilirrubinria, hemoglobinria, proteinria, cilindros granulares e clulas do epitlio tubular renal, evidenciando leso renal (Greene, 2006). As PFAs protena C reactiva (CRP) e amilide A srica (AAS) tm uma sensibilidade de 100% na infeco por B. canis. Contudo, a sua especificidade muito baixa, limitando o seu uso no diagnstico da infeco. Todavia, a contagem de plaquetas tem tambm 100% de sensibilidade, devendo haver uma suspeita de babesiose acrescida aquando da presena concomitante de alterao destes trs factores (Matijatko et al., 2007). Relativamente aos sinais imagiolgicos, foi realizado na Galiza, um estudo de ultrasonografia abdominal, com 38 animais infectados naturalmente por B. canis. A maioria apresentava leses esplnicas, seguida de anomalias do parnquima renal e, em menor proporo, leses hepticas. As alteraes renais mantiveram-se indetectveis ao exame clnico e nas anlises 26

bioqumicas, demonstrando-se a utilidade da ultrasonografia na deteco precoce de envolvimento renal na babesiose (Fraga, Goicoa, Fraga, Seoane & Barreiro, 2007). O diagnstico definitivo de babesiose assenta na demonstrao dos parasitas em eritrcitos infectados, amplificao de ADN extrado de sangue ou tecidos, ou serologia positiva. Os organismos de forma piriforme ou amebide, singulares ou aos pares e de dimenses entre 2,4-34-5 m so caractersticos da infeco por grandes babsias. As pequenas babsias ocorrem geralmente isoladas, por vezes em ttrada, so mais pleomrficas, podendo ter forma piriforme, redonda ou oval e dimenses entre 0,3-22,5-4 m (Garca, 2006; Kjemtrup et al., 2006; Gopegui et al., 2007). A parasitmia geralmente observada a partir do 6-20 dia, ps-infeco natural (Brando, Hagiwara & Myiashiro, 2003). Os esfregaos sanguneos devem ser corados com derivados do mtodo de Romanowsky, como o corante May-Grnwald/Giemsa, em que se observa o ncleo do parasita corado de vermelho e o citoplasma de azul, encontrando-se maior nmero de eritrcitos parasitados periferia e no final do esfregao. de salientar que alguns dos corantes rpidos disponveis nas clnicas so considerados como inadequados na colorao destes parasitas. possvel obter parasitmias mais elevadas em amostras sanguneas colhidas da extremidade do pavilho auricular ou das unhas, devido ao aumento da rigidez dos eritrcitos e acumulao nos leitos capilares. Adicionalmente, devido diminuio da densidade dos eritrcitos parasitados por grandes babsias, estes tendem a concentrar-se na camada imediatamente abaixo do buffy coat num tubo de hematcrito (HT) (Shaw & Day, 2005). Embora a observao do parasita em esfregaos sanguneos seja considerada desde h muito o mtodo gold standard, o gentipo destes agentes no pode ser determinado pelo seu fentipo, havendo limitaes reconhecidas na sensibilidade e especificidade do mtodo. A parasitmia associada a Babesia spp. frequentemente muito baixa, especialmente com grandes babsias, durante a infeco crnica ou nos portadores assintomticos, passando facilmente despercebida e sendo necessrio um exame completo e cuidado do esfregao (Greene, 2006). A incapacidade de detectar o parasita, em animais com anemia hemoltica ou trombocitopnia, levou a diagnsticos incorrectos em casos documentados, geralmente quando a suspeita clnica de babesiose era fraca. Dada a possibilidade de transmisso horizontal, deve-se sempre certificar se houve histria de mordedura por outro co nas ltimas 4-8 semanas, independentemente da raa (Irwin, 2007). A introduo do diagnstico por PCR mostrou-se eficaz na deteco de casos agudos, podendo existir falsos negativos, na deteco de casos crnicos ou subclnicos de infeco por B. gibsoni, se apenas for realizada uma pesquisa, pois a positividade nestes casos 27

intermitente. A IFI provavelmente o mtodo de diagnstico serolgico mais especfico e utilizado com maior frequncia. A sua principal limitao a incapacidade de diferenciar infeco aguda de crnica, o que tem importncia acrescida nas regies endmicas. Adicionalmente, a IFI pode no ser eficaz em infeces recentes por B. gibsoni, apesar de se mostrar fidedigna em casos crnicos de animais portadores. A combinao de IFI com PCR parece ser assim o mtodo mais promissor de diagnstico, devido s limitaes apontadas (Jefferies et al., 2007a). Em animais muito jovens ou cuja anlise foi realizada no incio da doena, pode verificar-se uma serologia negativa, tornando necessria, em alguns casos, a anlise de uma amostra em perodo de convalescena. A seroconverso verificada sete dias, ps-infeco experimental com B. canis, com ttulos crescentes at ao dia 21 (Brando et al., 2003), mas em casos raros no observada. Embora haja variao entre os mtodos laboratoriais, ttulos nicos de Ac anti-B. canis 80, so geralmente suficientes para o diagnstico. Foi estabelecido um ttulo mnimo de 320 para infeces por B. gibsoni. Em alguns estudos foi considerado um ttulo mnimo de 1280 para aumentar a certeza de infeco (Greene, 2006). A titulao de Ac para o diagnstico de doenas infecciosas apenas faculta uma evidncia indirecta de infeco, podendo ser difcil a interpretao dos resultados devido a reaco cruzada, variaes antignicas entre estirpes/isolados, e variao interlaboratorial. A utilizao de ttulos mnimos para os casos clnicos tambm pode levar a um diagnstico incorrecto, pois nem sempre esto presentes Ac anti-Babesia spp. em ces cuja confirmao da infeco foi realizada por PCR, microscopia ou ambos. Adicionalmente, a titulao de Ac para diagnstico especfico da espcie de Babesia presente num animal infectado deve ser cautelosa, uma vez que o ttulo mais elevado nem sempre se correlaciona com os resultados de microscopia e PCR (Birkenheuer, Levy, Stebbins, Poore & Breitschwerdt, 2003). de salientar que o mtodo de ELISA evidencia resultados muito mais sensveis que a IFI, mas menos especficos, sendo utilizado mais frequentemente em estudos seroepidemiolgicos do que no diagnstico clnico (Greene, 2006). Os achados anatomopatolgicos e histopatolgicos incluem colorao tecidular com hemoglobina ou bilirrubina (Figura 17), hepatoesplenomeglia, linfadenopatia e colorao vermelha escura nos rins. Nos casos mais severos verifica-se edema e hemorragia (Figura 18), principalmente nos pulmes, indicativos de leso vascular e oxigenao tecidular insuficiente. Podem observar-se grandes nmeros de parasitas no bao e nos leitos capilares, especialmente no crebro. Os eritrcitos no parasitados revestem normalmente o endotlio, localizando-se os parasitados no lmen. Nos animais com CID, podem evidenciar-se microtrombos. Nos casos crnicos, a esplenomeglia pode ser a nica alterao verificada (Greene, 2006). 28

Figura 17 Ictercia em co com babesiose (Day, Mackin & Littlewood, 2000)

Figura 18 Hemorragia cerebral disseminada em co com babesiose cerebral por B. rossi (Jacobson, 2006)

3.5.

Teraputica

Os frmacos utilizados no tratamento da babesiose resultam no melhoramento dos sinais clnicos, mas raramente alcanam uma verdadeira esterilizao do agente. At data, poucas so as alteraes nas opes disponveis e eficazes para o tratamento da babesiose. O dipropionato de imidocarb (5-6,6 mg/kg, por via intramuscular (IM) ou SC, repetido 14 dias depois; 7,5 mg/kg, IM, administrao nica) e o aceturato de diminazeno (3,5-5 mg/kg, IM, administrao nica) so os frmacos mais eficazes no tratamento contra as grandes babsias (Greene, 2006). Os efeitos secundrios do imidocarb no so comuns e so consistentes com inibio das colinesterases, observando-se ptialismo transiente, vmito, diarreia, tremores musculares, agitao, taquicardia e dispneia, podendo ser aliviados com a administrao de atropina (0,05 mg/kg, SC) (Shaw & Day, 2005). Pode verificar-se tambm dor no local de injeco (Bourdoiseau, 2006). Adicionalmente, este o frmaco mais utilizado no tratamento da babesiose animal, sendo provvel o desenvolvimento de resistncias (Vial & Gorenflot, 2006). O diminazeno est associado a uma taxa elevada de efeitos secundrios, devido a um reduzido intervalo teraputico, podendo observar-se hepatotoxicidade, dor, inflamao e necrose no local de injeco, hemorragia cerebelar, irritao gastrointestinal e sintomatologia neurolgica, potencialmente irreversvel (Shaw & Day, 2005; Suzuki et al., 2007). de referir que este frmaco foi retirado do mercado europeu por razes de marketing (Vial & Gorenflot, 2006). O aceturato de diminazeno (3,5-5 mg/kg, IM, repetido 24 horas depois) tambm utilizado na teraputica contra pequenas babsias, apesar da sua eficcia ser maior nas grandes babsias (Greene, 2006). O tratamento eficaz das infeces por pequenas babsias tem sido difcil de alcanar. O uso combinado de um macrlido, como a azitromicina (10 mg/kg, PO, a cada vinte e quatro horas 29

(SID), durante 10 dias), com uma hidroxinaftoquinona como a atovaquona (13,3 mg/kg, PO, TID, durante 10 dias), contra a infeco por B. gibsoni, tem demonstrado uma verdadeira eficcia clnica e grande segurana, ap