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Prof. Dr. Juarez Tavares 1 PARECER 1. Consulta-me o ilustre Professor Doutor Daniel Sarmento, Coordenador da Clínica de Direitos Fundamentais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e doravante identificado como consulente, acerca da relação entre as condições concretas de funcionamento do sistema prisional brasileiro e o alcance dos objetivos manifestos da pena, bem como sobre a viabilidade de o Poder Judiciário levar em conta tais condições nos momentos da fixação e execução das penas privativas de liberdade e medidas cautelares de prisão. 2. O consulente apresenta, de forma objetiva, as seguintes indagações: 1. O atual cenário do sistema prisional brasileiro compromete a realização dos objetivos normalmente atribuídos à pena de prisão? 2. Quais são os efeitos do cumprimento da pena, nessas condições, sobre a segurança pública? 3. Pode-se dizer que a pena cumprida nessas condições se afigura, na prática, mais gravosa ao apenado do que aquela prevista em lei e imposta pelo Poder Judiciário? 4. Neste caso, deve o Poder Judiciário levar em consideração esta natureza mais gravosa da sanção, ao fixar a pena e ao decidir os incidentes da execução penal? 5. Estas condições degradantes devem ser levadas em consideração também na imposição de medidas cautelares penais? 3. No presente parecer, busca-se esclarecer algumas questões controvertidas acerca do funcionamento do sistema carcerário, de forma também a propor instrumentos político-dogmáticos de contenção de tendências autoritárias do poder de punir. A resposta aos quesitos seguirá, em síntese, o seguinte roteiro argumentativo: (i) inicialmente, discorrer-se-á brevemente acerca das funções manifestas da pena e da sua atual relevância para uma discussão sobre eficácia; (ii) na sequência, levando em conta Parecer pro bono, redigido em face da relevância da matéria para o direito brasileiro. Gostaria de agradecer, nesta oportunidade, a Ademar Borges, João Marcos Braga de Melo, Patrick Cacicedo, Rafael da Escossia e Tiago Joffily pela colaboração inestimável na pesquisa, coleta de informações e sugestões relacionadas ao tema.

Parecer Sistema Carcerário - Versão Final

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Parecer do Professor Juarez Tavares, que instrui ADPF sobre Sistema Carcerário ajuizada pelo PSOL

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    PARECER

    1. Consulta-me o ilustre Professor Doutor Daniel Sarmento, Coordenador da Clnica

    de Direitos Fundamentais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e

    doravante identificado como consulente, acerca da relao entre as condies concretas

    de funcionamento do sistema prisional brasileiro e o alcance dos objetivos manifestos da

    pena, bem como sobre a viabilidade de o Poder Judicirio levar em conta tais condies

    nos momentos da fixao e execuo das penas privativas de liberdade e medidas

    cautelares de priso.

    2. O consulente apresenta, de forma objetiva, as seguintes indagaes:

    1. O atual cenrio do sistema prisional brasileiro compromete a realizao dos objetivos normalmente atribudos pena de priso? 2. Quais so os efeitos do cumprimento da pena, nessas condies, sobre a segurana pblica? 3. Pode-se dizer que a pena cumprida nessas condies se afigura, na prtica, mais gravosa ao apenado do que aquela prevista em lei e imposta pelo Poder Judicirio? 4. Neste caso, deve o Poder Judicirio levar em considerao esta natureza mais gravosa da sano, ao fixar a pena e ao decidir os incidentes da execuo penal? 5. Estas condies degradantes devem ser levadas em considerao tambm na imposio de medidas cautelares penais?

    3. No presente parecer, busca-se esclarecer algumas questes controvertidas acerca

    do funcionamento do sistema carcerrio, de forma tambm a propor instrumentos

    poltico-dogmticos de conteno de tendncias autoritrias do poder de punir. A resposta

    aos quesitos seguir, em sntese, o seguinte roteiro argumentativo: (i) inicialmente,

    discorrer-se- brevemente acerca das funes manifestas da pena e da sua atual

    relevncia para uma discusso sobre eficcia; (ii) na sequncia, levando em conta Parecer pro bono, redigido em face da relevncia da matria para o direito brasileiro. Gostaria de agradecer, nesta oportunidade, a Ademar Borges, Joo Marcos Braga de Melo, Patrick Cacicedo, Rafael da Escossia e Tiago Joffily pela colaborao inestimvel na pesquisa, coleta de informaes e sugestes relacionadas ao tema.

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    especialmente as teorias da preveno especial positiva e negativa, confrontar-se-o tais

    elaboraes discursivas com dados concretos de funcionamento do sistema carcerrio

    nacional; (iii) por fim, na penltima seo deste parecer, desenvolver-se-o os conceitos

    de pena real, pena ficta e tambm o princpio da flexibilidade da pena, bem como a

    relao entre culpabilidade e individualizao da pena, de forma a no contexto da

    produo de sentenas, imposio de medidas cautelares e incidentes da execuo penal

    propor estratgias de conteno da sistemtica violao aos direitos fundamentais de

    centenas de milhares de pessoas submetidas ao sistema carcerrio brasileiro.

    I As funes manifestas da pena em vista do contexto carcerrio nacional

    4. Acerca da primeira indagao realizada pelo consulente, devem ser traados, para

    fins metodolgicos, alguns questionamentos acessrios:

    (i) Quais so os objetivos normalmente atribudos pena de priso? No contexto de tais objetivos (ou funes manifestas) da pena, quais possuem relevncia terica para a discusso ora apresentada? (ii) Qual a atual situao do sistema carcerrio nacional? (iii) Qual relao pode ser estabelecida entre os questionamentos (i) e (ii)?

    5. Em um primeiro momento, necessrio que se esclaream os possveis sentidos

    de que se pode valer a atuao punitiva. Embora consciente da pluralidade de adeses

    tericas que o tema vem adquirindo, ao longo dos anos, reserva-se este parecer a

    apresentar uma breve digresso histrica do discurso jurdico-penal de legitimao da

    pena.

    6. No decorrer da evoluo do sistema punitivo, encontram-se, de um lado, as

    chamadas teorias absolutas, cuja expresso se consubstancia nos conceitos de expiao

    ou compensao da culpabilidade;1 de outro, identificam-se as teorias relativas ou

    1 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal Parte Geral. 5.ed. Florianpolis: Conceito Editorial, 2012, p. 419.

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    preventivas , estas destrinchveis nas correntes da preveno geral (positiva ou

    negativa) e da preveno especial (tambm positiva ou negativa).

    7. As teorias absolutas, independente da dificuldade em resumi-las em uma nica

    formulao, esto sempre, de algum modo, vinculadas a um mero juzo formal2 ou a

    certos pressupostos normalmente enunciados pela doutrina corrente, tais como o prvio

    cometimento do crime3 ou o problemtico iderio abstrato de justia.4 Pode-se dizer,

    assim, que as concepes absolutas historicamente dispersas no pretendem afirmar,

    em princpio, qualquer tipo de argumento utilitrio da pena.5 Para todos os efeitos, no

    parece lgico que se recorra a dados objetivos de criminalizao a fim de se aferir a

    eficcia concreta (ou as condies para tanto) da sano orientada retributivamente, uma

    vez que o seu objetivo reside, de maneira tautolgica, na prpria represso.6 Depois da

    Segunda Guerra Mundial, especialmente com a edificao de Estados regidos por uma

    Constituio, cuja guarda foi cometida s Cortes Constitucionais, as quais passaram a

    enfatizar a subordinao do poder de punir demonstrao de sua efetiva utilidade para a

    pessoa humana e a sociedade (princpio da idoneidade), a doutrina penal vem

    demonstrando certo desprezo pelas teorias absolutas ou retributivas. Assim, ROXIN

    enumera os seguintes argumentos contra sua adoo: a) a teoria no explica quando se

    tenha que punir, seno afirma sempre a necessidade da punio; b) fracassa diante de

    traar um limite ao poder de punir; c) no impede que se inclua no Cdigo Penal qualquer

    conduta e, d, assim, um cheque em branco ao legislador para criminalizar tudo o que 2 TAVARES, Juarez. La racionalidad, el derecho penal y el poder de penar: los lmites de la intervencin penal en el Estado Democrtico. In: Racionalidad y derecho penal. Lima: Idemsa, 2014, p. 133. 3 BOSCHI, Jos Antonio Paganella. Das penas e seus critrio de aplicao. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2014, p. 88. 4 ROXIN, Claus. Problemas Fundamentais de Direito Penal. Coleo Vega Universidade: Lisboa, 1986, p. 16. 5 Opta-se aqui, pois, por uma adeso tcita o que no se confunde com concordncia ao sentido categorial de punio proposto por Immanuel Kant. A saber: ZAFFARONI, Eugenio Ral; BATISTA, Nilo, et al. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume Teoria Geral do Direito Penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 114. 6 evidente que a busca pela noo abstrata de proporcionalidade pode resultar na coerente indagao acerca da gravidade em concreto da punio frente ao grau de intensidade da leso do bem jurdico. Mais adiante neste parecer, no entanto, tal questo ser abordada sob outro enfoque, qual seja, o do atendimento aos princpios constitucionais e internacionais de proteo pessoa. Para todos os efeitos, tal perquirio no se situa na seara da teleologia e, portanto, no objeto da atual controvrsia.

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    quiser; d) insustentvel a tese de compensao de culpabilidade, pois se baseia num

    atributo indemonstrvel, que a liberdade de vontade; e) mesmo se admitindo a

    possibilidade de uma retribuio, essa ideia s pode ser considerada plausvel mediante

    um ato de f, porque no ser racional pretender excluir um mal por meio de outro mal,

    que sofrer a pena. Relativamente ao ltimo argumento, assim se pronuncia ROXIN: 7

    Certamente, est claro que tal procedimento corresponde ao arraigado impulso de vingana humana, do qual surgiu historicamente a pena; mas que a assuno de retribuio pelo Estado seja algo qualitativamente diverso da vingana, que a retribuio elimine a culpa de sangue do povo, expie o delinquente, etc., tudo s concebido por um ato de f, que, conforme nossa Constituio, no pode ser imposto a ningum, nem vlido para a fundamentao, vinculante a todos, da pena estatal.

    8. Esses argumentos so encampados pela doutrina penal contempornea, que no se

    v autorizada a descartar que ao Estado democrtico cumpre o papel de evitar a vingana

    e buscar todos os recursos a tornar exequvel a convivncia. A crtica de ROXIN

    pertinente, mas, ao contrrio do que enuncia, no corresponde a uma suposta natureza

    humana a subsistncia de um impulso de vingana. Mais correta, nesse ponto, a

    considerao de FROMM, em oposio chamada etologia de LORENZ, no sentido de

    que o ser humano no est cunhado naturalmente por um instinto agressivo, o qual nada

    mais do que a expresso das contradies sociais que se desenvolvem em seu contexto.8

    Essa assertiva, ainda que sob outros enfoques, vem sendo corroborada, com estudos de

    psicologia experimental, efetuados, principalmente, pela Escola de Psicologia de Yale,

    que descartaram a origem instintiva da agresso e consequentemente do chamado

    impulso de vingana.9

    7 ROXIN, Claus. Fundamentos poltico-criminales del derecho penal. Buenos Aires: Hammurabi, 2008, p. 52 e ss. 8 FROMM, Erich. Anatomia da destrutividade humana, Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 22. 9 MEILI/ ROHRACHER. Lehrbuch der experimentellen Psychologie, Stuttgart/ Wien: Hans Huber, 1972, p. 323 e ss.

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    9. Apesar das deficincias das teorias absolutas, centradas na retribuio, h um

    movimento moderno de recuper-las, no sentido de uma teoria de retribuio negativa,

    limitadora, que serviria ao postulado de reduo do poder punitivo sob a gide de uma

    textura tica. Para tanto, indispensvel valer-se, inicialmente, da teoria do bem jurdico

    e s admitir a punio de uma conduta quando se tratar de leso ou de perigo a bens

    essenciais pessoa humana; tambm, ao se contrapor tendncia das teorias relativas ou

    preventivas, que pretendem excluir o conceito de culpabilidade e substitu-lo pela

    periculosidade, o que implicaria uma ampliao desmedida do leque das punies;

    finalmente, deve-se sedimentar a ideia de que uma teoria retributiva s ter validade na

    medida em que esteja vinculada a um conceito substancial de fato punvel, restringido

    quelas hipteses de uma efetiva leso de bens jurdicos essenciais. Assim, diz

    NAUCKE:10

    A proposio de que a pena deve ser retribuio justa no uma forma simples com a qual o mbito de punio, a partir do Direito positivo, ou mesmo a pena possam ser justificados. Essa proposio tem um significado bastante preciso, exigindo ela um conceito determinado de delito. No pode ser uma teoria absoluta da pena sem um conceito estrito de delito.

    10. Mas NAUCKE, por seu turno, admite que o direito penal atual se orienta por

    finalidades, da concebendo que, ao lado de um direito penal retributivista, subsista um

    direito penal utilitrio.11 Este parece ser, assim, o ponto principal a ser enfrentado: como

    superar as teorias retributivistas e como manejar a teoria preventiva, no sentido utilitrio,

    sob o lema da proteo do sujeito.

    11. A anlise das teorias relativas ou preventivas aquelas cuja pena criminal se

    justifica em virtude dos conceitos de segurana social e preveno do crime 12 conduz,

    10 NAUCKE, Wolfgang. O alcance do direito penal retributivo em Kant. In: Greco/Tortima (org.). O bem jurdico como limitao do poder estatal de incriminar? Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 95. 11 NAUCKE, Wolfgang. Op. cit., p. 97. 12 BRUNO, Anbal. Direito Penal: Parte Geral, Tomo 3o Pena e Medida de Segurana. Editora Forense: So Paulo, 1956, p. 34.

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    como consequncia, investigao mais pormenorizada acerca do funcionamento das

    agncias punitivas, especialmente do sistema carcerrio. Com isso ser possvel

    identificar as condies efetivas da execuo, bem como da eficcia da pena sobre a vida

    futura do condenado e sobre o prprio processo criminalizador.

    12. As teorias preventivas tm como caracterstica se estenderem a toda a

    coletividade (preveno geral negativa ou positiva), mediante um ato de coao

    decorrente da ameaa de pena, e tambm aos autores dos fatos punveis (preveno

    especial negativa ou positiva), com sua execuo. Convm observar, todavia, que no

    existe uma teoria preventiva exclusiva. Todas esto mescladas com asseres retributivas

    ou relativas. As teorias da preveno geral negativa (ou dissuaso) foram constitudas,

    sobretudo, pelas contribuies de FEUERBACH, ROMAGNOSI e BENTHAM. 13

    Conforme indicam ZAFFARONI e NILO BATISTA,14 as teorias da preveno geral

    negativa ora se acossam de contedo retributivo,15 ora assumem teor relativo16 mais

    evidente. Em ambas as situaes, a medida da pena uma moderao da

    exemplarizao. 17

    13. Indagaes acerca da eficcia de tal efeito dissuasrio, no entanto, encontram-se

    fora da anlise das condies concretas do sistema prisional18 e devem ser perquiridas

    mediante um estudo conjunto da extenso da programao criminal, da gravidade em

    abstrato das cominaes e da populao carcerria em termos numricos. A avaliao

    13 BRUNO, Anbal. Op. cit., p. 38. 14 ZAFFARONI, Eugenio Ral; BATISTA, Nilo, et al. Op. cit., pp. 115-116. 15 Aproximam-se da retribuio, pois, em duas verses (conforme indicam os autores): quando pretendem dissuadir para assegurar os bens daquelas que poderiam ser futuras vtimas de outros, postos em perigo pelo risco da imitao da leso aos direitos da vtima e, por isso, carentes de retribuio na medida da injustia e da culpabilidade pelo ato ou ainda para introduzir obedincia ao estado, lesionado por uma desobedincia objetiva apenada na medida adequada retribuio do injusto. Idem, p. 115. 16 Assim, quando a dissuaso persegue tanto a obedincia ao estado quanto a segurana dos bens daqueles que no so vtimas, o delito um sintoma de dissidncia (inferioridade tica) e a medida da pena deve ser a retribuio por essa conduo desobediente da vida. Idem, pp. 115-116. 17 Idem, p. 116. 18 de se destacar, ainda mais, que a aproximao do teor retributivo, conforme j foi indicado, implica uma menor potencialidade de verificao teleolgica. Assim, a relevncia da presente investigao deveria, ainda que hipoteticamente, restringir-se ao sentido mais utilitrio possvel acerca do termo dissuaso.

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    acerca da eficcia desse efeito pedaggico geral da pena, de cuja legitimidade se deve

    seriamente duvidar,19 no faz parte do objetivo do presente parecer.20

    14. Na seara da preveno especial, a variante negativa visa, fundamentalmente,

    neutralizao (ou inocuizao) do condenado, consistente na incapacitao para

    praticar novos crime durante a execuo da pena 21 , o que corresponde a um dos

    enunciados do Programa de Marburg, apresentado por VON LISZT.22 Uma corrente mais

    radical postula ainda a eliminao (orgnica) do sentenciado.23 Aqui, cabe atentar para

    dois pontos fundamentais: (i) o primeiro consiste na inviabilidade constitucional, em vista

    dos princpios de proteo pessoa,24 de sustentao do paradigma organicista de

    eliminao do sentenciado, tal como se encontra em GAROFALO;25 (ii) o segundo,

    parte de qualquer indagao acerca da legitimidade legal ou terica de tal corrente

    preventiva, corresponde aferio concreta da ocorrncia de crimes durante o

    19 A preveno geral negativa, defendida por Feuerbach, segundo a qual o objetivo final da norma a intimidao geral, por meio da anulao do impulso da sensualidade de todas as aes delituosas, tambm seriamente criticada, sendo pertinente o alerta de que a preveno geral no oferece limites ao poder punitivo do Estado (QUEIROZ, Paulo. Funes do direito penal. 2.ed. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 36). Essa teoria, ademais, est baseada na mxima de que a intimidao cuja eficcia bastante discutvel atingida com a imposio de um mal a algum para que os outros se omitam de cometer outro mal. No h fundamento vlido de legitimao da aplicao da pena para o desviante. A legitimao estaria fora do fato e do sujeito concreto. Em suma, a teoria poltico-criminalmente discutvel e carece de legitimao (Idem, p. 36). 20 Esboa-se aqui, todavia, a ineficcia da ameaa penal para coibir comportamento criminosos. Tal afirmativa, entretanto, comporta raras hipteses passveis de comprovao, tais quais conforme indicam Zaffaroni e Nilo Batista (Op. cit., p. 118) os crimes de menor gravidade, em que a comprovao emprica do efeito dissuasrio completamente excepcional e nem sequer o prprio protagonista poderia afirm-la com certeza ou ainda os estados de terror caracterizados por penas cruis e indiscriminadas, estas naturalmente vedadas pelo ordenamento ptrio (art. 5o, XLVII, CF). Nesse sentido, ainda: SANTOS, Juarez Cirino dos. Op. cit., p. 427. 21 SANTOS, Juarez Cirino dos. Op. cit., p. 424. 22 LISZT, Franz von. Der Zweckgedanke im Strafrecht, in ZStW, vol. 3 (1883), p. 1-47. 23 GAROFALO, Raffaele. Criminologia. Studio sul delitto e sulla teoria de la repressione, 1891, p. 158. 24 Assim, TAVARES, Juarez. Culpabilidade e Individualizao. In: Cem anos de reprovao. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2011, p. 132. 25Vide dispositivo constitucional: Art. 5o [...] XLVII - no haver penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de carter perptuo; c) de trabalhos forados; d) de banimento; e) cruis;

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    cumprimento de pena.26 Relativamente ao Programa de Marburg, ressalta BAURMANN

    que, independentemente de seu sentido preventivo, que aparentemente implicaria um

    direito penal substancialmente orientado para a proteo de bem jurdico, padece de, pelo

    menos, dois defeitos: a preferncia pelos interesses da sociedade e do Estado, em

    desconsiderao dos direitos e interesses do condenado e do efetivo benefcio que esse

    poderia obter com a execuo da medida, portanto, no sentido puramente epistemolgico

    e intelectualista, e a vinculao da pena a um sistema de valores, que expressam

    sentimentos de pura moralidade.27

    15. No setor das teorias relativas associadas ao sujeito, autor da infrao, desde a

    influncia exercida nos pases ibero-americanos pelo correcionalismo, vm se

    destacando, cada vez mais, as teorias da preveno geral positiva, as quais, ora reforam

    simbolicamente internalizaes valorativas do sujeito no delinquente para conservar e

    fortalecer os valores tico-sociais elementares em fase de aes que lesionam bens

    jurdicos e se encaminham contra esses valores, 28 ora pretendem reforar

    simbolicamente a confiana do pblico no sistema social (criar consenso), a fim de que

    este possa superar a desnormalizao provocada pelo conflito ao qual deve responder a

    pena, na medida necessria para obter o reequilbrio do sistema.29 Essas duas variantes

    correspondem a modelos tericos diferenciados. Enquanto a primeira est vinculada

    obra de WELZEL, 30 a segunda decorre das proposies funcionalistas, desde

    DURKHEIM 31 at JAKOBS. 32 Em qualquer dos casos, a eficcia almejada, seja

    simblica, seja preventivo-integralmente, no pode ser aferida a partir de uma anlise 26 Embora seja comum uma noo ampla de criminalidade possivelmente imiscuda do conceito de delinquncia , opto por restringir o estudo ao cometimento de crimes durante o perodo de encarceramento. No considerarei, portanto, a prtica genrica de faltas como evidncia da ineficcia do projeto preventivo especial negativo. 27 BAURMANN, Michael. Kriminalpolitik ohne Ma. Zum Marburger Programm Franz von Liszts, in Liszt Vernunft, Kriminalsoziologische Bibliographie, 1984, p. 54-79. 28 ZAFFARONI, Eugenio Ral; BATISTA, Nilo, et al. Op. cit., p. 116. 29 Idem, ibidem. 30 WELZEL, Hans. Derecho penal alemn, traduo de Juan Bustos Ramrez e Sergio Yaez Perez. Santiago: Editorial Jurdica de Chile, 1970, p. 12. 31 DURKHEIM, Emile. La divisin del trabajo social, traduo de Carlos Posada, Barcelona: Planeta-Agostini, 1993, p. 136. 32 JAKOBS, Gnther. Norm, Person, Gesellschaft. Berlin: Duncker & Humblot, 1997, p. 52.

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    exclusiva da populao carcerria (e de suas condies de vida), seno mediante uma

    ampla aferio sociolgica.

    16. Os problemas das teorias da preveno especial positiva residem em dois pontos:

    na incapacidade emprica de se obter do condenado um compromisso com a ordem

    jurdica, de no mais delinquir, de aceitar, portanto, as regras de comportamento social

    impostas pelo direito, por um lado, e na impossibilidade jurdica de se exigir dele que

    ajuste sua personalidade e sua concepo do mundo quelas que lhe so ofertadas na

    priso. Se o Estado democrtico se funda na proteo da dignidade humana e na

    liberdade, a qual engloba no apenas a de ir e vir, seno tambm a de crena, de

    conhecimento, de concepes polticas e outras, no ser possvel exigir-se de ningum,

    nem mesmo do condenado, que acolha a ideologia dominante do sistema. A chamada

    ressocializao do condenado e sua reinsero social devem ser delimitadas por atos que

    o possam orientar para a convivncia e a tolerncia. To s. Os demais so acessrios que

    podem lhe ser ofertados como complementos aos procedimentos de reinsero. As teorias

    da preveno especial positiva no podem servir funo de reparar a inferioridade

    perigosa da pessoa para os mesmos fins, diante dos mesmos conflitos,33 como se a

    pessoa do condenado fosse um objeto desprovido de individualidade e personalidade.

    Isso corresponderia ideologia de um estado autoritrio bem prximo ao fascismo. O que

    o sistema pode e deve fazer empreender esforos para que o condenado possa conviver,

    em primeiro lugar, com os demais, sem violar seus direitos subjetivos, depois,

    mostrando-lhe as regras vigentes para que no se aventure a novamente infringir a lei

    penal. Observe-se que, independentemente de qualquer regime ou de qualquer efeito

    supostamente benfico que essa tarefa possa produzir no comportamento do condenado, a

    pena constitui sempre uma humilhao, que no desaparece nunca de sua vida futura.

    Como informa FABRICIUS, a humilhao j decorre da prpria publicidade de sua

    imposio. Por sua vez, a humilhao gera o sentimento de vergonha, que se manifesta

    diante de todos e o qual jamais poder representar um papel juridicamente positivo,

    33 ZAFFARONI, Eugenio Ral; BATISTA, Nilo, et al. Op. cit., p. 116.

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    porque sempre associado a um juzo de reprovao, o qual fortalece cada vez mais os

    traumas internos e impede o procedimento de reinsero.34 O grande passo, portanto, da

    preveno positiva evitar que as regras e tarefas ressocializadoras se transformem em

    mais um puro e simples elemento de represso.

    17. Desde a primeira verso do Cdigo Penal de 1940, advinda da comisso composta

    por NELSON HUNGRIA, ROBERTO LIRA e NARCELIO DE QUEIROS, o Brasil

    demonstra a preferncia por uma teoria mista da pena, ora calcada no classicismo italiano

    de vis retribucionista, ora nos preceitos preventivistas, enunciados pelo positivismo. A

    primitiva redao do art. 42, da antiga Parte Geral, expressava bem essa postura. O

    legislador de 1984, que procedeu alterao da atual Parte Geral, tambm estava,

    primeira vista, orientado por essa concepo, ao dispor no art. 59 que a pena deve ser

    individualizada conforme seja necessrio e suficiente para reprovao e preveno do

    delito. Convm observar, todavia, que, apesar dessa terminologia sustentar essa antiga

    tendncia, uma viso integral da nova da Parte Geral e da ordem jurdica pode indicar que

    aqui se adota uma teoria dialtico-unificadora da pena: no momento da cominao

    (ameaa), prepondera um carter preventivo geral; no momento da aplicao

    (individualizao), desponta o carter preventivo especial positivo e negativo; no

    momento da execuo da pena, sobreleva a funo preventiva especial positiva. Essa

    concluso pode ser bem justificada pela anlise do diploma inspirador do cdigo. A regra

    fixada no art. 59 do Cdigo Penal tem seus antecedentes no Projeto Alternativo alemo,

    de 1966, em cujo 2 (1) estava consignado que a pena deveria ser aplicada de modo a

    servir para a proteo de bem jurdico e para a reinsero do autor na comunidade

    jurdica. A referncia a essas finalidades descartava, portanto, a adoo de uma teoria

    retributiva da pena. A pena deveria ter uma finalidade utilitria, de ser apta proteo do

    bem jurdico e de conduzir o condenado a uma condio que pudesse conviver na

    comunidade jurdica. Essa consigna, no entanto, pelos termos do prprio projeto, que foi

    elaborado por uma pliade de catedrticos renomados, estava associada a um pressuposto

    34 FABRICIUS, Dirk. Kriminalwissenschaften: Grundlagen und Grundfragen, II. Mnster: Lit Verlag, 2011, p. 299 e ss.

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    indeclinvel imposto pela ordem jurdica, de que a pena no poderia, em qualquer caso,

    superar os limites da culpabilidade. Isso significa que, no controle do crime e em sua

    preveno, geral ou especial, o Estado no poder atuar desmedidamente, nem quanto

    definio das condutas e cominao das sanes, nem relativamente aos projetos de

    ressocializao. H, portanto, um limite para a chamada ressocializao. Esse limite

    imposto, desde logo, pela escala da culpabilidade.

    18. Ainda que a culpabilidade constitua um limite da pena, isso no suficiente para

    estabelecer as condies que devero afetar o sujeito, uma vez condenado e submetido

    sua execuo. O Projeto Alternativo vinculou essas condies a um processo de

    reinsero social do autor, quer dizer, queles procedimentos a convenc-lo de poder

    conviver com os demais, uma vez livre da sano.

    19. Est claro que o art. 59 do Cdigo Penal no instituiu uma frmula to incisiva

    como seu antecedente alemo, mas pode comportar uma interpretao conforme a

    Constituio. Ao afirmar, inicialmente, em termos de gradao, que a pena deve ser

    aplicada tendo em vista a culpabilidade do agente, j indicou o caminho para sua prpria

    limitao: a pena no pode ultrapassar os limites da culpabilidade. Nem teria sentido

    outra concluso, porque, ento, de nada valeria a definio e a prpria configurao da

    culpabilidade, que, em lugar de constituir um elemento funcional da ordem jurdica,

    passaria a ser um simples pressuposto formal da condenao.

    20. Observada unicamente a expresso contida no art. 59 do Cdigo Penal, de que a

    pena dever ser aplicada de modo a ser necessria e suficiente para a reprovao e

    preveno do crime, poder-se-ia entender, primeira vista, que aqui se adotou tambm

    uma teoria retributiva da pena. Ocorre, porm, que a Constituio estabeleceu como

    objetivo da Repblica a promoo do bem de todos, sem preconceitos de origem, raa,

    sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de descriminao (art. 3, IV). Isso

    significa que esse objetivo alcana no apenas as pessoas no condenadas, mas tambm

    aquelas que estejam respondendo a processos, que tiverem sido condenadas e estiverem

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    12

    cumprindo pena. Nesse aspecto, a perda ou a restrio de liberdade do sujeito no pode

    implicar sua eliminao como pessoa, a qual deve merecer do Estado todos os benefcios

    destinados aos demais. A adoo de uma teoria retributiva, que pudesse decorrer da

    expresso represso, no pode se contrapor aos objetivos traados pela Constituio, ou

    seja, o Estado no pode simplesmente reprovar o sujeito e nem subordin-lo a um

    procedimento preventivo exclusivo, sem atentar para seu prprio bem. A fim de

    compatibilizar os termos do art. 59 do Cdigo Penal com a Constituio, deve-se

    entender que a expresso represso est a indicar a exigncia de que a medida da pena

    se oriente em funo de critrios de proporcionalidade e no de uma retribuio moral.

    Da ser importante reconstruir o prprio contedo da culpabilidade e de sua relao com a

    medida da pena.

    21. Na moderna concepo da teoria do delito, a culpabilidade no pode estar

    desvinculada do fato injusto. Essa vinculao uma consequncia do princpio da

    legalidade. O juiz, ao aplicar a pena, ao dos-la, no pode criar por si prprio as

    condies e o contedo da culpabilidade. A culpabilidade, como elemento ltimo da

    configurao da conduta como ao criminosa, extrai seu contedo do que a lei

    expressamente estabelea. Norteia-se, assim, inicialmente, pela excluso da

    imputabilidade (art. 26, CP) ou do conhecimento do ilcito (arts. 20, 1, e 21, CP), pelos

    motivos de exculpao legalmente previstos (coao irresistvel e obedincia hierrquica)

    ou decorrentes da ordem jurdica (excesso escusvel de legtima defesa, estado de

    necessidade exculpante, coliso exculpante de deveres e inexigibilidade de outra conduta)

    e se delimita pelo contedo do injusto. No ter sentido afirmar-se a culpabilidade do fato

    doloso, por exemplo, sem levar em conta a diferenciao, feita no injusto, entre dolo

    direto e dolo eventual. O juiz no pode criar parmetros de medida da culpabilidade sem

    atender ao contedo do injusto, que, por sua vez, est amparado na respectiva definio

    do delito e seus elementos.

    22. Por seu turno, se a culpabilidade constitui o limite mximo da pena, os demais

    elementos referidos no art. 59 do Cdigo Penal no podem implicar um aumento alm

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    13

    desse limite, salvo nos casos expressos em lei, como ocorre com as qualificadoras e as

    causas de especial aumento, que esto legalmente previstas, ou das agravantes, respeitado

    o limite da cominao. Nesse ponto, os propsitos preventivos no podem levar em

    conta, por exemplo, a conduta social do ru para aumentar a pena. Em primeiro lugar,

    esse aumento extrapola os limites do injusto, impostos pelo princpio da legalidade. Em

    segundo lugar, viola os termos do art. 3, IV, da Constituio, porque ir avaliar contra o

    ru suas condies de existncia, o que representa uma ntida discriminao. A

    discriminao, aqui, ademais de impor reprimenda ao condenado alm do que a prpria

    lei estabelece, tem tambm outros efeitos malficos, os quais se refletem em todo o

    processo de sua readaptao social.

    23. Essas assertivas correspondem proteo dos direitos das pessoas privadas de

    liberdade, tutelados fundamentalmente na Conveno Americana sobre Direitos

    Humanos (Pacto de So Jos da Costa Rica), a qual entrou em vigor em julho de 1978 e

    que atualmente vinculante para os Estados membros da Organizao dos Estados

    Americanos OEA , da qual o Brasil faz parte.35 No item 5.6 da referida Conveno,

    ressalta-se que a reforma e a readaptao dos condenados, como finalidade essencial

    das penas privativas de liberdade, so garantias da segurana cidad e direitos das

    pessoas privadas de liberdade.36 Assim:

    Artigo 5. Direito integridade pessoal [...] 6. As penas privativas de liberdade tero como finalidade essencial a reforma e a readaptao social dos condenados.

    24. Dessa forma, ao menos normativamente,37 parece-me que a preveno especial

    positiva tal como descrita no dispositivo supracitado e amplamente prevista na

    35 COMISSO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Informe sobre los derechos humanos de las personas privadas de libertad en las Amricas. OEA/Ser.L/V/II. Doc. 64. 31 deciembre 2011. Disponvel em: www.cidh.org, p. 9. 36 Idem, p. 8. 37 Cabe sublinhar, a propsito, que o disposto no item 5.6 do Pacto de So Jos da Costa Rica, norma supralegal, prevalece sobre o disposto no artigo 59 do Cdigo Penal brasileiro. O tema concernente

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    legislao,38 na jurisprudncia39 e na doutrina nacionais deve ser o ponto de partida

    norteador da avaliao do sistema carcerrio nacional.40 Frise-se, em acrscimo, que o

    Subcomit para a Preveno da Tortura e Outros Tratos ou Penas Cruis, Desumanos ou

    Degradantes da Organizao das Naes Unidas, em informe de 2013, afirmou que

    objetivo da execuo penal propiciar as condies (sejam elas educativas, religiosas,

    materiais, sociais) mnimas para que os condenados se reintegrem harmoniosamente

    sociedade, de forma a se evitar a reiterao da prtica criminosa.41

    25. Seguindo, ainda, as recomendaes propostas pela Comisso Interamericana de

    Direitos Humanos, notrio que o crcere est inserido no grupo das chamadas

    instituies totais, isto , estabelecimentos onde se detm controle sobre a maior parte da

    vida das pessoas que l se encontram.42 Tal domnio cronolgico, fsico e epistemolgico

    na locuo de Foucault43 representa, em vista dos princpios constitucionais de

    proteo pessoa e das mencionadas diretrizes internacionais de reforma e

    ressocializao dos apenados, a obrigao de o Estado zelar pela integridade fsica, moral

    e psquica dos internos, bem como de seus visitantes.44 Isso significa, finalmente, o

    reconhecimento de que as pessoas encarceradas se encontram em posio de

    vulnerabilidade e, portanto, devem ser objeto da ateno estatal, de forma a confrontar a

    funo primordial da pena de priso deve ter como balizamento normativo, portanto, a norma convencional. 38 A Lei de Execuo Penal, por exemplo: Art. 1 A execuo penal tem por objetivo efetivar as disposies de sentena ou deciso criminal e proporcionar condies para a harmnica integrao social do condenado e do internado. 39 STJ - HC: 216711 RJ 2011/0200425-3, Relator: Ministra LAURITA VAZ, Data de Julgamento: 10/12/2013, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicao: DJe 03/02/2014; STJ - HC: 277496 SP 2013/0315374-3, Relator: Ministra LAURITA VAZ, Data de Julgamento: 17/12/2013, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicao: DJe 03/02/2014); STJ - AgRg no HC: 283010 PE 2013/0387154-4, Relator: Ministro SEBASTIO REIS JNIOR, Data de Julgamento: 17/12/2013, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicao: DJe 03/02/2014; TJ-RS - AC: 70052584968 RS , Relator: Jorge Lus Dall'Agnol, Data de Julgamento: 27/03/2013, Stima Cmara Cvel, Data de Publicao: Dirio da Justia do dia 01/04/2013. 40 Proponho-me, para todos os efeitos, a fazer comentrios passageiros acerca da eficcia da preveno neutralizadora, nos moldes do que j foi anteriormente proposto. 41 Informe sobre la visita al Brasil del Subcomit para la Prevencin de la Tortura y Otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes Adicin, de autoria da Organizao das Naes Unidas, p. 3. 42 Vide: GOFFMAN, Erving. Manicmicos, Conventos e Prises. So Paulo: Editora Perspectiva, 2001; e COMISSO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Op. cit., p. 19. 43 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurdicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2013, pp. 117-123. 44 COMISSO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Op. cit., p. 17.

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    norma incriminadora com os preceitos de garantia individual centro de convergncia de

    toda a ordem jurdica.45

    El Estado, al privar de libertad a una persona, se coloca en una especial posicin de garante de su vida e integridad fsica. Al momento de detener a un individuo, el Estado lo introduce en una institucin total, como es la prisin, en la cual dos diversos aspectos de su vida se somete a una regulacin fija, y se produce un alejamiento de su entorno natural y social, un control absoluto, una prdida de intimidad, una limitacin del espacio vital y, sobre todo, una radical disminucin de las posibilidades de autoproteccin. Todo ello hace que el acto de reclusin implique un compromiso especfico y material de proteger la dignidad humana del recluso mientras est bajo su custodia, lo que incluye su proteccin frente a las posibles circunstancias que puedan poner en peligro su vida, salud e integridad personal, entre otros derechos.46

    26. Tambm a Corte Europeia de Direitos Humanos decidiu que as medidas

    privativas de liberdade se acompanham inevitavelmente de sofrimento e de humilhao.

    Se se trata de um estado de fato indeclinvel que, de per se, no se traduz em uma

    violao do artigo 3, que impe, no obstante, ao Estado garantir que todo prisioneiro

    seja detido em condies compatveis com o respeito dignidade humana, que a

    modalidade de execuo da pena no insira o interessado em uma situao de

    desconforto ou a um grau de intensidade tal que exceda o nvel inevitvel de sofrimento

    inerente deteno e que, em considerao das exigncias prticas da recluso, a sade

    e o bem-estar do detido sejam garantidos de maneira adequada; de outro modo, as

    medidas tomadas no mbito da deteno devem ser necessrias ao cumprimento dos fins

    legtimos perseguidos47.

    27. Levando em conta, portanto, os direitos sociais da educao, da sade, da

    alimentao, do trabalho, da moradia, do lazer (art. 6o, CF); os direitos individuais e

    45 TAVARES, Juarez. La racionalidad, el derecho penal y el poder de penar: los lmites de la intervencin penal en el Estado Democrtico. In: Racionalidad y derecho penal. Lima: Idemsa, 2014, p. 124. 46 COMISSO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Op. cit., p. 19. 47 CEDU, deciso n. 19606/08, Pavet contra Frana, de 20 de janeiro de 2011.

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    coletivos tais como a proteo aos locais de culto (art. 5o, VI, CF), intimidade e

    honra (art. 5o, X, CF); o atendimento inexorvel dignidade da pessoa humana (art. 1o,

    III, CF) e as recomendaes propostas pela Comisso Interamericana de Direitos

    Humanos e pelo Subcomit para a Preveno da Tortura e Outros Tratos ou Penas Cruis,

    Desumanos ou Degradantes da ONU, necessrio concluir que um pressuposto

    necessrio para a efetivao das metas ressocializadoras da pena reside precisamente na

    configurao de um ambiente carcerrio que no viole os direitos fundamentais dos

    apenados. Ademais, imperioso que se verifique o trabalho continuado dos mencionados

    empresrios morais, isto , acompanhamento psicolgico e social de qualidade. sobre

    essa perspectiva, portanto, que dever se orientar, para os fins especficos do presente

    trabalho, a anlise das condies concretas do funcionamento do sistema carcerrio

    brasileiro.48 No faz parte do objetivo deste parecer, como se depreende dos termos da

    consulta, o exame da crise de legitimidade do discurso penal. O problema, tal como

    identificado para os presentes fins, situa o confronto entre a defesa da pessoa humana, por

    48 Quando se chega a esse ponto, as indagaes parecem conduzir a outras perspectivas, que no podem ficar adstritas a sintomas puramente jurdicos. O jurdico praticamente desaparece como algo imutvel e duradouro para se transformar, rapidamente, em preceitos de justificao poltica. Cabe, mais uma vez, verificar se vale a pena manter o sistema penal. Quando se fala em alterar o sistema penal ou mesmo de o abolir, afloram argumentos por sua manuteno. Esses argumentos, independentemente de sua variedade, podem ser dispostos em dois grandes segmentos: ora so argumentos de base emprica, ora de base moral. Os argumentos de base emprica trabalham com critrios de verdade; os de base moral, com critrios de validade. Mas, a alterao ou mesmo a superao do sistema penal no pode ser tratada como uma questo de superestrutura, mas, sim, como uma expresso das relaes que se processam no mbito das respectivas formaes sociais. A norma penal, como expresso desse sistema, no nem boa nem m, apenas um instrumento de manuteno de poder. Quando se invoca a norma penal como meio de proteo da pessoa, estar-se- tambm legitimando o poder e, consequentemente, aceitando e mantendo as relaes sociais do sistema capitalista. pura ingenuidade pretender modificar o Estado ou proteger eficazmente as pessoas por meio da norma penal. No fundo, os mesmos elementos de desigualdade e de comprometimento sistmico continuam presentes em sua aplicao, que jamais deixar de ser seletiva e exclusivista. A chamada cruzada moral em prol da punio dos culpados, como forma de estruturao de uma sociedade democrtica, no passa de um discurso ideolgico sedimentado no simblico ou, pior do que isso, de um discurso legitimante em face de um sistema intrinsecamente destruidor da pessoa. Esse discurso ideolgico porque busca convencer de que a norma, como instituio, pode solucionar definitivamente problemas de relacionamento, sem qualquer demonstrao emprica. simblico porque orientado por mitos de verdade e validade. Se falta ao discurso uma base emprica (e a evidncia de que essa base emprica falsa), no se poder comprovar sua verdade. Se, por outro lado, o discurso pronunciado sem que todos possam dele participar em igualdade de condies e critic-lo com eficincia, no poder gerar uma pretenso de validade. Quando se chega a esse ponto, parece que toda a discusso em torno da racionalidade ou legitimidade de uma norma penal s poder ter cabimento com a alterao estrutural das relaes sociais e do prprio poder. Muitos grupos e movimentos sociais tm em comum o objetivo de alterar as estruturas econmicas e, como consequncia, o prprio poder.

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    um lado, e os interesses punitivos, de outro, como uma questo de superestrutura mal

    resolvida. Embora essa no seja a perspectiva que adotamos,49 nada impede a anlise da

    questo exclusivamente sob esse ponto de vista, com o objetivo imediato exclusivo de

    garantir o respeito aos direitos fundamentais dos presos, o que, no contexto brasileiro,

    certamente impe a adoo de um programa de deflao penitenciria.

    28. Para tanto, utilizar-se-o os seguintes critrios inferidos dos dispositivos

    constitucionais supracitados e das mencionadas recomendaes da Comisso

    Interamericana de Direitos Humanos e do referido Subcomit das Naes Unidas: (a)

    vida e integridade fsica, (b) educao, (c) sade, (d) alimentao, (e) trabalho,

    (f) moradia, (g) lazer, (h) liberdade de culto, (i) intimidade e honra e, por fim,

    (j) acompanhamento psicolgico e social.

    29. Neste parecer sero utilizados os dados concernentes ao sistema de inspees

    prisionais realizado pelo Ministrio Pblico em maro de 2013, 50 bem como as

    informaes acerca dos nmeros da populao carcerria apresentados em 2014 pelo

    49 Enfocada a questo como uma crise de legitimidade, pode-se, ento, entender que o discurso penal um discurso de justificao do sistema, tanto quando o enaltece, como quando procura sua correo por meio da prpria estrutura normativa. Em qualquer dos casos, no h verdadeira oposio de ideias, h apenas compromissos. Quem se aventure a acreditar que possa resolver questes penais apenas no mbito normativo e que, com isso, estar exercendo uma atividade de crtica social, no pode fugir do dilema de ter que se conformar com o prprio sistema, ou repudi-lo integralmente. Para repudi-lo, ter que negar o sistema, mas, com isso, ter que negar tambm seus prprios argumentos. Se quiser manter seus argumentos, ter que aceitar o sistema. No h como fugir desse dilema. o dilema prprio do sistema capitalista e de seus desdobramentos. medida que esse discurso se solidifica, tambm se fortalece o sistema, com as consequncias marcantes da ampliao das bases punitivas, da inflao legislativa e, inclusive, dos movimentos de emancipao calcados na esperana de que possam obter sucesso mediante o emprego da pena criminal. O direito penal, portanto, como condensao normativa do poder punitivo, elevado a uma categoria transcendental, como se fosse superior a todas as contradies do sistema e sobrepairasse aos prprios antagonismos de classe. Nunca na histria do desenvolvimento dos poderes do Estado se deu tanta importncia ao direito penal, que, por artes de uma internalizao simblica de ideais frustrados, ou por fora de uma projeo externa sobre os outros, os chamados inimigos, de recalques paranoides, passa a se solidificar como uma nova modalidade de ideologia. 50 CONSELHO NACIONAL DO MINISTRIO PBLICO. A viso do Ministrio Pblico brasileiro sobre o sistema prisional brasileiro. Braslia: CNMP, 2013. Disponvel em: http://goo.gl/4iWhVi.

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    Conselho Nacional de Justia,51 o Informe sobre los derechos humanos de las personas

    privadas de libertad en las Amricas,52 de autoria da Comisso Interamericana de

    Direitos Humanos, o Informe sobre la visita al Brasil del Subcomit para la Prevencin

    de la Tortura y Otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes, proveniente

    da Organizao das Naes Unidas, os relatrios de inspeo em 2014 no Centro de

    Deteno Provisria de Pinheiros IV e no Centro de Deteno Provisria de Santo Andr,

    ambos de autoria da Defensoria Pblica do Estado de So Paulo, e, por fim, o relatrio de

    auditoria governamental do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (processo

    TCE/RJ n 116.234-9/13).

    (a) Vida e Integridade Fsica

    30. Dos 1.598 (mil quinhentos e noventa e oito) estabelecimentos penitencirios

    respondentes s inspees realizadas pelo Ministrio Pblico em 2013,53 foi registrado

    um total de 83 (oitenta e trs) suicdios, 110 (cento e dez) homicdios, 3.443 (trs mil,

    quatrocentos e quarenta e trs) presos com ferimentos e 2.772 (duas mil, setecentas e

    setenta e duas) leses corporais. Agregam-se a esses nmeros, ademais, as consideraes

    da Comisso Interamericana de Direitos Humanos, as quais indicam que as principais

    situaes de risco para a vida de pessoas encarceradas consistem na violncia entre

    internos,54 de que so exemplos os mais de 70 (setenta) motins ocorridos em 2006 na

    cidade de So Paulo, assim como os eventos sucedidos na Casa de Deteno Jos Mrio

    Alves da Silva, o Urso Branco, em Porto Velho; no Centro de Deteno Provisria

    Raimundo Vidal Pessoa, em Manaus;55 no Complexo Penitencirio de Pedrinhas, em So

    Lus; 56 e, ainda, no Presdio Professor Anbal Bruno, em Recife (este ltimo

    51 Novo Diagnstico de Pessoas Presas no Brasil, de autoria do Departamento de Monitoramento e Fiscalizao do Sistema Carcerrio e do Sistema de Execuo de Medidas Socioeducativas DMF. Disponvel em: http://goo.gl/vh2LC9. 52 COMISSO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Op. cit., prefacio. 53 Fonte: Sip-MP, Resoluo CNMP n. 56, 28/05/2013. In: CONSELHO NACIONAL DO MINISTRIO PBLICO. Op. cit., p. 73. 54 COMISSO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Op. cit., p. 6. 55 Idem, p. 65. 56 Idem, p. 110.

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    caracterizado, sobretudo, pela presena de pessoal paralelo de segurana e organizao,

    os denominados chaveiros). 57

    31. O Subcomit para a Preveno da Tortura e Outros Tratos ou Penas Cruis,

    Desumanos ou Degradantes da ONU registrou, ainda, a ocorrncia de inmeros casos de

    maus-tratos, humilhaes, insultos, sanes arbitrrias, espancamentos e privao de

    comida e gua nos estabelecimentos penitencirios pesquisados, sobretudo como forma

    de castigo ou punio.58 Alm disso, o mesmo Subcomit ressaltou a complacncia da

    magistratura brasileira em relao ao grave quadro de sistemtica prtica de tortura e

    maus-tratos em estabelecimentos prisionais.59 Da porque recomendou encarecidamente

    aos juzes brasileiros que rechacem as confisses quando haja motivos razoveis para

    acreditar que tenham sido obtidas mediante tortura ou maus-tratos, ao tempo em que

    recomendou, ainda, que os juzes passem a notificar de imediato o Ministrio Pblico

    para que possa abrir investigaes sobre os casos de tortura nos mais diversos

    estabelecimentos prisionais. A magistratura brasileira no simples coadjuvante no

    processo de sistemtica violao aos direitos fundamentais dos presos, seno seu

    elemento propulsor medida que contribui ativamente para um projeto de ampla

    encarcerizao acionando voluntariamente a ordem jurdica vigente para estender, por

    via interpretativa, a aplicao de penas privativas de liberdade e de prises cautelares ,

    ao mesmo tempo em que consente, ainda que por omisso, a ofensa, por parte do Estado,

    aos direitos mais bsicos dos presos. Cabe ao rgo de cpula do Judicirio brasileiro, o

    Supremo Tribunal Federal, exigir da magistratura o cumprimento das recomendaes do

    Subcomit da ONU, de modo a eliminar a constante violao dos direitos fundamentais

    da populao carcerria, a includos tambm os presos provisrios.

    32. Apenas para que se tenha uma ideia concreta da contribuio decisiva do Poder

    Judicirio na consolidao de um estado de autorizado menoscabo dos direitos bsicos 57 Idem, p. 153. 58 Informe sobre la visita al Brasil del Subcomit para la Prevencin de la Tortura y Otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes, de autoria da Organizao das Naes Unidas, pp. 15 e 21. 59 Idem, p. 7.

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    dos presos brasileiros, vale mencionar, a ttulo de exemplo, a postura adotada pela cpula

    do Tribunal de Justia do Estado de So Paulo a propsito da matria. Em 7 de maro de

    2014, o Presidente desse importante Tribunal suspendeu deciso proferida por magistrado

    de primeira instncia que determinara, a pedido da defensoria pblica, a implantao, em

    45 dias, de duas equipes mnimas de sade na Penitenciria Masculina de Ribeiro Preto

    e o fornecimento dos medicamentos necessrios ao tratamento dos presos.60 Invocou-se,

    para tanto, o argumento de que a providncia estatal determinada pelo juiz exporia a risco

    grave a ordem pblica, por comprometer a regular implementao da poltica pblica

    em curso no Estado de So Paulo e servir de paradigma para situaes relacionadas

    com outros estabelecimentos prisionais. Em 2 de dezembro de 2013, o Presidente

    antecessor do mesmo Tribunal de Justia paulista suspendeu deciso de primeira

    instncia que determinara ao Estado, tambm a pedido da defensoria pblica, a

    disponibilizao em todas as suas unidades prisionais, no prazo de seis meses, de

    equipamentos para banho dos presos em temperatura adequada.61 Argumentou-se, para

    suspender os efeitos dessa deciso, que os prdios antigos e aqueles adaptados para

    servir como estabelecimento penal no possuam rede eltrica planejvel e compatvel

    com as exigncias especficas de consumo de gua necessrias para suportar chuveiros

    nas celas e que a instalao dos cogitados equipamentos exigiria interveno no

    estabelecimento prisional que no se faria sem o deslocamento dos detentos nele

    custodiados, o que no se apresenta plausvel, tendo-se em vista o dficit de vagas no

    sistema penitencirio paulista.

    60 Tribunal de Justia do Estado de So Paulo, Pedido de Suspenso de Liminar n. 2031991-72.2014.8.26.0000. 61 Tribunal de Justia do Estado de So Paulo, Pedido de Suspenso dos Efeitos da Tutela Antecipada n. 0203905-78.2013.8.26.0000.

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    (b) Educao

    33. Do total mencionado de estabelecimentos penitencirios respondentes s

    inspees realizadas pelo Ministrio Pblico,62 60% registraram a ausncia de bibliotecas

    para os internos.63 O j indicado Subcomit da ONU, em acrscimo, destacou que, no

    complexo de Viana, no Esprito Santo, a maior parte dos internos no tinha acesso a

    programas de atividade e lazer, sendo que, quando ofertados, os livros no poderiam ser

    escolhidos segundo suas preferncias pessoais.64 A indisponibilidade de tais atividades

    foi verificada, segundo o Subcomit, em diversos outros estabelecimentos.

    34. J no que se refere especificamente ao Centro de Deteno Provisria de

    Pinheiros IV, em So Paulo, a Defensoria Pblica destacou a inexistncia, por completo,

    de atividades educacionais na unidade.

    (c) Sade

    35. Destaca-se que, do total supramencionado de estabelecimentos penitencirios

    respondentes s inspees realizadas pelo Ministrio Pblico:65

    - Aproximadamente 55% indicaram a inexistncia de farmcias;66

    - Aproximadamente 56% no apresentaram enfermarias; 67

    - Aproximadamente 76% afirmaram no haver procedimentos especficos

    para troca de roupas de cama e banho e uniforme em face de patologias

    de presos/as; 68

    62 Fonte: Sip-MP, Resoluo CNMP n. 56, 28/05/2013. In: CONSELHO NACIONAL DO MINISTRIO PBLICO. Op. cit., p. 81. 63 O equivalente a 968 (novecentos e sessenta e oito) estabelecimentos penitencirios. 64 Informe sobre la visita al Brasil del Subcomit para la Prevencin de la Tortura y Otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes, de autoria da Organizao das Naes Unidas, p. 19. 65 Fonte: Sip-MP, Resoluo CNMP n. 56, 28/05/2013. In: CONSELHO NACIONAL DO MINISTRIO PBLICO. Op. cit., p. 69. 66 O equivalente a 886 (oitocentos e oitenta e seis) estabelecimentos penitencirios. 67 O equivalente a 899 (oitocentos e noventa e nove) estabelecimentos penitencirios.

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    - Aproximadamente 66% assumiram no serem prestados atendimentos pr-

    natais s internas gestantes.69

    (d) Da alimentao

    36. A avaliao presencial do Parquet 70 indicou ainda que, em 29% dos

    estabelecimentos penitencirios, a alimentao foi considerada regular71 ou ruim.72 Vale

    chamar ateno, em acrscimo, para o elevado nmero de avaliaes subjetivas

    chanceladas sob a rubrica no se aplica, equivalente a 20% do total. Conjectura-se, a

    esse ponto, se tal dado guarda relao com a informao apresentada pela Comisso

    Interamericana de Direitos Humanos de que parte dos insumos destinados alimentao

    dos reclusos so comercializados ilegalmente pelas autoridades penitencirias, no

    chegando definitivamente aos internos.73

    37. No que tange ao Centro de Deteno Provisria de Santo Andr, a Defensoria

    Pblica do Estado de So Paulo verificou que os alimentos oferecidos so sempre os

    mesmos, bem como [] comum que a comida chegue at [os internos] azeda,

    estragada ou mal cozida. O mesmo quadro foi descrito no relatrio de inspeo

    concernente unidade de Pinheiros IV.

    (e) Trabalho

    38. A partir dos dados apresentados pelo rgo ministerial, pode-se inferir a ausncia

    generalizada de oficinas de trabalho nos crceres respondentes, uma vez que, quando da

    avaliao pessoal, 68% dos estabelecimentos penitencirios apresentaram a avaliao

    68 O equivalente a 1.220 (mil duzentos e vinte) estabelecimentos penitencirios. 69 O equivalente a 1.508 (mil quinhentos e oito) estabelecimentos penitencirios. 70 Fonte: Sip-MP, Resoluo CNMP n. 56, 28/05/2013. In: CONSELHO NACIONAL DO MINISTRIO PBLICO. Op. cit., p. 120. 71 O correspondente a 23% das avaliaes. 72 O correspondente a 6% das avaliaes. 73 COMISSO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Op. cit., p. 183.

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    23

    subjetiva no se aplica 74. A situao, que j grave, vem se tornando cada dia mais

    grave. No Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, segundo o Relatrio de Auditoria

    Governamental do respectivo Tribunal de Contas (TCE/RJ n 116.234-9/13), a

    porcentagem dos detentos que laboram diminui de 80,85%, em 2009, para 32,11%, em

    2013.

    (f) Moradia

    39. A pena de priso, por evidente, implica a leso de certos direitos imediatamente

    correlatos privao de liberdade. Isso, entretanto, no pode acarretar a negao da

    potencialidade de desenvolvimento pessoal pilar constitucional que , mediante a

    inobservncia de condies mnimas de sobrevivncia digna (art. 1o, III, CF) e honrosa

    (art. 5o, X, CF), tais como higiene, ventilao, iluminao e temperatura adequada.

    - Quanto higiene, a avaliao presencial do Ministrio Pblico75 indicou que,

    em 58% dos estabelecimentos penitencirios, as instalaes sanitrias foram

    consideradas regulares76 ou ruins.77 A ONU, na mesma esteira, afirmou serem

    as condies sanitrias dos crceres inspecionados profundamente

    deficientes.78

    - Quanto ventilao,79 57% dos estabelecimentos apresentaram instalaes

    igualmente regulares80 ou ruins.81

    74 Fonte: Sip-MP, Resoluo CNMP n. 56, 28/05/2013. In: CONSELHO NACIONAL DO MINISTRIO PBLICO. Op. cit., p. 60. 75 Fonte: Sip-MP, Resoluo CNMP n. 56, 28/05/2013. In: CONSELHO NACIONAL DO MINISTRIO PBLICO. Op. cit., p. 118. 76 O correspondente a 34% das avaliaes. 77 O correspondente a 24% das avaliaes. 78 Primera respuesta del Subcomit para la Prevencin de la Tortura y Otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes a las respuestas del Brasil a las recomendaciones y solicitudes de informacin formuladas por el Subcomit para la Prevencin de la Tortura en su informe sobre su primera visita peridica al Brasil, de autoria da Organizao das Naes Unidas, p. 15. 79 Fonte: Sip-MP, Resoluo CNMP n. 56, 28/05/2013. In: CONSELHO NACIONAL DO MINISTRIO PBLICO. Op. cit., p. 117. 80 O correspondente a 31% das avaliaes. 81 O correspondente a 26% das avaliaes.

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    24

    - No que se refere iluminao,82 56% dos estabelecimentos trouxeram, da

    mesma forma, avaliaes regulares ou ruins.83

    - Por fim, no que se refere temperatura,84 59% das avaliaes mostraram

    resultados regulares85 ou ruins.86

    40. No que tange em especfico aos Centros de Deteno Provisria de Santo Andr e

    Pinheiros IV, as inspees realizadas pela Defensoria Pblica do Estado de So Paulo

    indicaram srios problemas estruturais, dentre os quais: deficincias no sistema de

    aerao e iluminao, racionamento desmedido de gua, existncia de percevejos e

    insetos nos colches e pssimo odor nas celas.

    (g) Lazer

    41. A partir das informaes apresentadas pelo Ministrio Pblico,87 ressalto que, em

    957 (novecentos e cinquenta e sete) estabelecimentos penitencirios o equivalente a

    aproximadamente 60% dos 1.598 (mil quinhentos e noventa e oito) crceres respondentes

    pesquisa realizada , no estavam sendo desenvolvidas atividades culturais e de lazer

    poca das inspees.

    42. Os informes apresentados pelo Subcomit para a Preveno de Tortura e Outros

    Tratos ou Penas Cruis, Desumanos ou Degradantes da ONU foi menos otimista, ao

    afirmar que nem todos os presdios inspecionados dispunham da hora diria reservada ao

    banho de sol exigida pelas normas nacionais e internacionais. Segundo o Subcomit, os

    internos do centro Ary Franco no Rio de Janeiro costumavam passar at trs semanas

    82 Fonte: Sip-MP, Resoluo CNMP n. 56, 28/05/2013. In: CONSELHO NACIONAL DO MINISTRIO PBLICO. Op. cit., p. 117. 83 Avaliaes regulares corresponderam a 33%; enquanto as avaliaes ruins, a 23%. 84 Fonte: Sip-MP, Resoluo CNMP n. 56, 28/05/2013. In: CONSELHO NACIONAL DO MINISTRIO PBLICO. Op. cit., p. 117. 85 O correspondente a 33% das avaliaes. 86 O correspondente a 26% das avaliaes. 87 Fonte: Sip-MP, Resoluo CNMP n. 56, 28/05/2013. In: CONSELHO NACIONAL DO MINISTRIO PBLICO. Op. cit., p. 81.

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    25

    encerrados em celas pouco iluminadas, sujas e mal ventiladas, sem a necessria hora

    diria no ptio para atividades fsicas.88

    (h) Liberdade de culto

    43. Em conformidade com os dados apresentados pelo Ministrio Pblico, 89

    constatou-se, ainda, que 54%90 dos estabelecimentos penitencirios no possuam local

    apropriado realizao de cultos religiosos.

    (i) Intimidade e Honra

    44. Quanto intimidade e honra, imperioso denunciar alguns dos mais

    caractersticos problemas do sistema prisional brasileiro: a superlotao e as (quase

    sempre inexistentes) separaes entre as diversas clientelas carcerrias.

    45. Nesse sentido, ressalta-se que, das 563.52691 (quinhentas e sessenta e trs mil,

    quinhentas e vinte e duas) pessoas encarceradas em 2014, apenas 357.219 (trezentas e

    cinquenta e sete mil, duzentas e dezenove) se encontravam dentro da capacidade mxima

    do sistema, restando, pois, um dficit total de 206.307 (duzentas e seis mil, trezentas e

    sete) vagas.92,93 No mesmo sentido, ressaltam as Naes Unidas que deve ser respeitada

    uma metragem por metro quadrado mnima para cada detento,94 o que, segundo o

    Subcomit, no foi observado em inmeros estabelecimentos pesquisados. Assim:95

    88 Informe sobre la visita al Brasil del Subcomit para la Prevencin de la Tortura y Otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes, de autoria da Organizao das Naes Unidas, p. 19. 89 Idem, p. 91. 90 O equivalente a 878 (oitocentos e setenta e oito) estabelecimentos penitencirios. 91 No foram consideradas as pessoas em cumprimento de priso domiciliar. 92 Disponvel em: http://goo.gl/JGju25. 93 Em se considerando, ainda, as 147.937 (cento e quarenta e sete mil, novecentas e trinta e sete) pessoas em cumprimento de priso domiciliar, o Brasil se ala terceira posio mundial em nmero absoluto de encarcerados. 94 Segundo o Subcomit (Informe sobre la visita al Brasil del Subcomit para la Prevencin de la Tortura y Otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes - Adicin, p. 7): La Resolucin No 9 establece adems que la capacidad de cada bloque de celdas no deber exceder de 200 reclusos. Asimismo, estipula

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    26

    El Subcomit considera que el hecho de someter a los detenidos a condiciones de hacinamiento extremas constituye una forma grave de malos tratos. El Estado parte debe adoptar medidas inmediatas para prevenir los niveles extremos de hacinamiento descritos. En todas las dependencias policiales del pas debe respetarse estrictamente una superficie mnima por detenido, de conformidad con las normas internacionales.

    46. A ttulo ilustrativo, de se destacar que segundo informaes da Defensoria

    Pblica do Estado de So Paulo os Centros de Deteno Provisria de Santo Andr e

    Pinheiros IV apresentaram, quando das inspees realizadas, uma superlotao de

    respectivamente 338% e 345% de suas capacidades.

    47. Ressalta a ONU, em acrscimo, que o problema da superlotao com especial

    nfase para os crceres Nelson Hungria, em Belo Horizonte, e Ary Franco, no Rio de

    Janeiro est amplamente associado falta de privacidade dos internos, ao realizarem

    tarefas bsicas de higiene, e s putrefatas condies de salubridade das celas, muitas

    habitadas tambm por baratas e outros insetos.96

    48. Levando em conta, ainda, a pesquisa realizada pelo Ministrio Pblico em 2013,97

    79%98 dos estabelecimentos penitencirios no apresentavam separao entre os presos

    que todos los centros penitenciarios y las crceles municipales dotados de celdas colectivas debern asegurarse de que al menos el 2% de las celdas individuales estn disponibles en caso de que sea necesario separar reclusos. Asimismo, establece que cada celda individual deber contar con una cama y un espacio de higiene personal con al menos un lavabo y un inodoro, adems de una zona para circular; como mnimo, las celdas individuales debern medir 6 m2. Las celdas colectivas podrn albergar hasta ocho reclusos y debern tener una superficie de al menos 13,85 m2 []. 95 Informe sobre la visita al Brasil del Subcomit para la Prevencin de la Tortura y Otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes, de autoria da Organizao das Naes Unidas, p. 14. 96 Informe sobre la visita al Brasil del Subcomit para la Prevencin de la Tortura y Otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes, de autoria da Organizao das Naes Unidas, p. 18. 97 Fonte: Sip-MP, Resoluo CNMP n. 56, 28/05/2013. In: CONSELHO NACIONAL DO MINISTRIO PBLICO. Op. cit., p. 57. 98 O equivalente a 1.243 (mil duzentos e quarenta e trs) estabelecimentos penitencirios.

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    provisrios e os presos em cumprimento definitivo de pena. A mesma informao

    constou do informe produzido pelo referido Subcomit das Naes Unidas.99

    (j) Acompanhamento psicolgico e social

    49. Frise-se que, do total mencionado de estabelecimentos respondentes pesquisa

    realizada pelo Ministrio Pblico,100 aproximadamente 67%101 afirmaram inexistir uma

    equipe de assistentes sociais que acompanhasse os internos, bem como 60%102 no

    apresentaram recintos adequados para a atividade de assistncia social. No foram

    obtidos dados acerca de eventual acompanhamento psicolgico.

    50. (iii) Considerado esse lamentvel quadro ftico, faz-se necessrio retomar a

    primeira questo apresentada na consulta: o atual cenrio do sistema prisional brasileiro

    compromete a realizao dos objetivos normalmente atribudos pena de priso?

    51. Por evidente, a indagao se situa em nvel de verificao da eficcia das funes

    manifestas da pena, as quais, oportunamente, devem ser agrupadas em duas vertentes: as

    teorias da preveno especial negativa e positiva.

    52. Quanto primeira forma a variante negativa , a presente investigao deve-se

    centrar conforme j mencionado linhas atrs na aferio da prtica de delitos durante

    o perodo de encarceramento.

    53. Se, por um lado, os j mencionados nmeros de homicdios e leses corporais

    registrados pelo Ministrio Pblico em 2013 indicam uma certa relativizao do objetivo

    99 Informe sobre la visita al Brasil del Subcomit para la Prevencin de la Tortura y Otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes, de autoria da Organizao das Naes Unidas, p. 13. 100 Fonte: Sip-MP, Resoluo CNMP n. 56, 28/05/2013. In: CONSELHO NACIONAL DO MINISTRIO PBLICO. Op. cit., p. 87. 101 O equivalente a 1.069 (mil e sessenta e nove) estabelecimentos penitencirios. 102 O equivalente a 974 (novecentos e setenta e quatro) estabelecimentos penitencirios.

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    supostamente neutralizador da pena de priso, por outro, Juarez Cirino dos Santos103

    atenta corretamente para o fato de que a incapacitao seletiva de indivduos

    considerados perigosos constitui efeito evidente da execuo da pena porque impede a

    prtica de crimes fora dos limites da priso.104

    54. Dessa forma, extraem-se, acerca da variante negativa da preveno especial, duas

    concluses: em relao ao ambiente intramuros, a pena de priso tem sua eficcia

    neutralizadora relativizada, uma vez que a reiterada ocorrncia de delitos violentos

    demonstra o dficit emprico de eficcia do projeto preventivo especial, isto para no

    mencionar a notria e ramificada estrutura de corrupo e as mais distintas formas de

    negociaes ilegais que existem em qualquer cadeia; quanto ao ambiente extramuros,

    sem desconsiderar o acerto da lio de Juarez Cirino dos Santos, convm observar que os

    efeitos do confinamento no podem ser tomados em conta apenas no que toca estrita

    conduta do indivduo encarcerado. O encarceramento produz outros efeitos no mbito

    social, os quais podem corresponder prtica de outros delitos por parte do prprio

    encarcerado e de pessoas a ele vinculadas, ainda que fora do estabelecimento prisional. O

    problema do trfico de drogas, para suprir a demanda de consumo interno dos presos, por

    exemplo, acaba tornando ineficaz a finalidade preventiva atribuda pena, na medida em

    que companheiras e familiares daqueles so diuturnamente utilizados como mecanismo

    para introduzir drogas e outros objetos ilcitos nas prises. Nesse sentido o aumento

    vertiginoso de mulheres condenadas por trfico de drogas no Brasil est diretamente

    relacionado a esse mecanismo de alimentao do consumo por parte daqueles que j

    esto presos. Ademais, as tarefas de preveno de delito mediante pura e simples

    segregao no podem descurar-se da proteo dos direitos fundamentais do encarcerado,

    que no pode ser tratado como uma coisa inservvel nas prateleiras bolorentas dos

    almoxarifados ou de um arquivo morto. Deve-se observar, todavia, que mesmo o

    encarceramento mais rigoroso, ainda que vedado o uso de telefones, ou controladas as

    correspondncias, jamais impediu a comunicao com o mundo externo. H, nesse

    103 SANTOS, Juarez Cirino dos. Op. cit., p. 425. 104 Mesmo que se assuma, entretanto, a ocorrncia de delitos relacionados ao uso de celulares, por exemplo.

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    aspecto, inclusive, uma antinomia entre a pena de priso e a prpria condio do sujeito.

    Ainda que o condenado esteja privado ou suspenso de alguns direitos, entre os quais o

    direito de liberdade, est ele inserido num mundo, onde a comunicao constitui o

    elemento formador da prpria sociedade. Uma sociedade sem comunicao no

    sociedade, apenas um amontoado quantitativo de corpos animados. Da ser impossvel,

    empiricamente, a restrio a outras formas de comunicao, as quais so inerentes

    condio social.

    55. J no que se refere s teorias da preveno especial positiva, foco principal da

    discusso, impe-se concluir tendo em vista os dados apresentados anteriormente que

    o sistema prisional brasileiro no apresenta as condies mnimas para a realizao

    do projeto tcnico-corretivo de ressocializao, reeducao ou reinsero social do

    sentenciado. Como ressaltado pela Corte constitucional italiana, um tratamento penal

    inspirado em critrios de humanidade pressuposto necessrio para uma ao

    reeducativa do condenado (sentenas 12/1996, 376/1997 e 279/2013).105 Nessa esteira,

    ainda, ressalte-se a relevante considerao da Comisso Interamericana de Direitos

    Humanos acerca dos dados colhidos no referido Informe sobre los derechos humanos de

    las personas privadas de libertad en las Amricas:106

    La naturaleza de los problemas identificados en el presente informe revela la existencia de serias deficiencias estructurales que afectan gravemente derechos humanos inderogables, como ele derecho a la

    105 No mesmo sentido, o Tribunal de Veneza: Sulle disposizioni costituzionali che si assumono violate, ritiene il Tribunale che la norma in questione si ponga in contrasto innanzitutto con lart. 27 della Costituzione sotto il duplice profilo del divieto di trattamenti contrari al senso di umanit e del finalismo rieducativo. Sul punto si osserva la prevalenza in ogni caso del primo dei valori affermati rispetto al secondo: mentre la pena infatti non pu consistere in un trattamento contrario al senso di umanit, essa nel contempo deve tendere alla rieducazione del condannato con ci significando che mentre la finalit rieducativa rimane nellambito del dover essere e quindi su un piano esclusivamente finalistico (deontico) - la pena legale anche se la rieducazione verso la quale deve obbligatoriamente tendere non viene raggiunta - viceversa la non disumanit attiene al suo essere medesimo (piano ontico) - la pena legale solo se non consiste in trattamento contrario al senso di umanit - di talch la pena inumana non pena e dunque andrebbe sospesa o differita in tutti i casi in cui si svolge in condizioni talmente degradanti da non garantire il rispetto della dignit del condannato. (Tribunale di Sorveglianza di Venezia, ordinanza di rimessione, 13.02.2013, in www.penalecontemponraneo.it.) 106 COMISSO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Op. cit., prefacio.

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    vida y la integridad personal de los reclusos, e impiden que en la prctica de las penas privativas de la libertad cumplan con la finalidad esencial que establece la Convencin Americana: la reforma y la readaptacin social de los condenados.

    56. Concluso semelhante foi alcanada pelo Subcomit para a Preveno da Tortura

    e Outros Tratos ou Penas Cruis, Desumanos ou Degradantes da ONU.107

    Preocupa particularmente al Subcomit [] Que las garantas establecidas a nivel jurdico y normativo no se vean reflejadas, respetadas ni aplicadas en los centros de detencin del Brasil. [] El Subcomit subray en su informe sobre la visita al Brasil que el ordenamiento jurdico del pas es ampliamente adecuado para prevenir los casos de tortura (prrafo 22 del informe). El Subcomit desea reiterar y enfatizar que, con mucha frecuencia, la proteccin y las salvaguardias que contempla la ley no se cumplen en la prctica. [] La principal preocupacin del Subcomit reside en que la aplicacin de las leyes y salvaguardias pertinentes es, en este momento, insatisfactoria.

    57. Sem desprezar o dficit de racionalidade da proposta segundo o qual a pena de

    priso tem como finalidade a readaptao social dos condenados considerada a evidente

    falta de comprovao emprica da realizao desse objetivo , h certo entendimento,

    reforado pela compreenso da Comisso Interamericana de Direitos Humanos, de que a

    pena detentiva, quando respeitosa de um standard mnimo de humanidade e civilidade,

    pode, eventualmente, ser capaz de fornecer ao condenado uma informao de como deve

    comportar-se na sociedade e conviver com as demais pessoas. O Tribunal de Apelao de

    Veneza, na Itlia, decidiu que a pena executada em condio inumana no pode mais

    realizar plenamente a sua finalidade reeducativa, porque a restrio em espaos mnimos

    produz invalidao de toda a pessoa.108 medida que aumenta no espao pblico a

    conscincia de que a ideia de reeducao ou de tratamento dos condenados por meio da 107 Primera respuesta del Subcomit para la Prevencin de la Tortura y Otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes a las respuestas del Brasil a las recomendaciones y solicitudes de informacin formuladas por el Subcomit para la Prevencin de la Tortura en su informe sobre su primera visita peridica al Brasil, de autoria da Organizao das Naes Unidas, pp. 4 e 7. 108 Tribunale di Sorveglianza di Venezia, ordinanza di rimessione, 13.02.2013, in www.penalecontemponraneo.it.

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    pena de priso possui um carter ilusrio, seno mesmo fraudulento, pode-se valer da

    norma convencional que estabelece como funo da pena a reforma e readaptao social

    do condenado como uma ideia capaz de opor um freio certamente insuficiente, mas til

    situao de total incivilidade jurdica do sistema carcerrio brasileiro.109 Isso porque,

    a despeito da finalidade de readaptao social atribuda pena de priso, esta deve ter

    uma natureza humanitria, que a nossa Constituio exige por meio da vedao de

    tratamentos desumanos ou degradantes (art. 5, III). Essa uma clusula de salvaguarda

    que opera em todos os momentos de manifestao do monoplio da fora pelo Estado:

    em sede cautelar e em sede de execuo penal. Ainda que no se comprove,

    empiricamente, a relao de causalidade entre pena condizente com o senso de

    humanidade e o cumprimento da sua finalidade de reinsero social do detento,

    evidente que o respeito da dignidade do condenado implica per se a exigncia de respeito

    s condies bsicas de privacidade, higiene, integridade fsica e segurana.110

    II A eficcia invertida do projeto ressocializador da priso e os seus impactos na

    segurana pblica brasileira

    58. Apresenta o consulente, ainda, interessante questo acerca do impacto do

    cumprimento da pena, nas precrias condies antes mencionadas, sobre a segurana

    109 Como ressaltado pela Corte constitucional italiana, a pena deve tender reeducao do condenado, admitindo-se a possibilidade de no adeso do detento ao processo reeducativo (sentena 313/1990). O condenado tem o direito oferta de tratamento ou reeducao (sentena 79/2007), mas livre para aderir ou no ao processo de readaptao social. obrigatrio, segundo essa viso, garantir que o sistema penitencirio produza as condies objetivas de incentivo ao processo reeducativo, sem, porm, impor-lhe a livre autodeterminao do detento. 110 A esse respeito, o Tribunal constitucional alemo como se tem especificado, sempre se faz referncia dignidade humana e aos direitos fundamentais, no tanto como simples princpios que, em conjunto com outros, integram a norma sobre a execuo da pena, mas como uma medida e critrio objetivo para a verificao concreta da deteno singular em face dos fins de uma correta execuo da pena e para uma avaliao dos rgos jurisdicionais ao darem seguimento ao recurso de um detento. Sobre isso, diante de fatores que indicam uma leso da dignidade humana derivada das condies do espao do encarceramento, se sublinha ter em conta, em primeiro lugar, a superfcie por detento e a situao das plantas sanitrias, sobretudo a diviso e a ventilao dos banheiros. Pode ser indicada, como fator que atenua a situao carcerria, a reduo do tempo cotidiano de arresto. Portanto, quanto organizao dos espaos, necessrio que se assegure uma superfcie mnima para cada detento, de modo particular quando o interno esteja submetido a uma deteno coletiva no mesmo local. Bundesverfassungsgericht, (1 BvR 1403/09).

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    32

    pblica. Surge aqui, no obstante, um problema metodolgico sobre o que se deve

    entender por segurana pblica. Por bvio, dos fins acadmico-processuais da presente

    consulta resulta a adoo de um conceito de criminalidade, o qual em vista da

    fundamental expresso do princpio da legalidade, bem como da inviabilidade de o

    Estado melhorar pessoas segundo critrios morais prprios 111 deve ser

    compreendido restritivamente, isto , como consequncia de um processo de

    criminalizao. No existe, na verdade, uma criminalidade, como entidade ontolgica,

    como resultado quantitativo e qualitativo de infraes penais cometidas em uma

    determinada sociedade. A criminalidade dado fictcio, extrado pelas agncias seletivas

    e punitivas para justificar a imposio de medidas privativas de liberdade. Dessa forma,

    atribui-se expresso segurana pblica, para os fins deste estudo, diversamente do

    sentido comum de preveno de cometimento de crimes, o conjunto de elementos que

    do base ao processo criminalizador. Com isso, quer-se dizer que a segurana pblica no

    depende da atribuio de responsabilidade s pessoas individuais, mas, sim, da atuao

    do Estado, primeiramente, na seleo das condutas criminosas; depois, na tarefa de ter

    que enfrentar o aumento desmedido de encarceramento por fora da ampliao do

    processo criminalizador. medida que o Estado aumenta o nmero de atos que devem

    estar submetidos pena criminal, quer mediante a configurao de novos crimes, quer

    pela sistemtica de condenaes, mais debilita a segurana pblica, por no ser capaz de

    conter as infraes, nem fazer com que seus autores se ajustem s proibies ou

    comandos. Portanto, em face desse enfoque, no ser possvel afirmar que,

    empiricamente, a priso possa implicar o fortalecimento da segurana pblica. Com o

    crescente encarceramento, a priso ser sempre um depsito de presos, sem qualquer

    perspectiva de reintegrao social.

    59. Nessa esteira, pode-se reformular a questo nos seguintes termos: quais so os

    efeitos do cumprimento da pena, nas condies em que se encontra o sistema prisional

    brasileiro, sobre a ocorrncia de crimes? Ressalte-se, ademais, que a adoo generalizada

    111 SANTOS, Juarez Cirino dos. Op. cit., p. 425.

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    33

    de uma concepo preventiva especial positiva implica que tal questionamento deva se

    direcionar unicamente para a clientela carcerria e no para o conjunto da

    populao. Dessa forma, pode-se concluir que a atual controvrsia situa-se,

    precipuamente, no mbito da discusso acerca da reincidncia.

    60. Embora a inexistncia de um estudo nacional sistematizado que apresente dados

    razoavelmente confiveis acerca do assunto conduza a drsticos problemas

    metodolgicos, podem ser realizadas algumas conjecturas mais ou menos seguras e

    extensveis ao conjunto do sistema prisional. Para tanto, utilizar-se-o trs conjuntos de

    dados.

    61. O primeiro est relacionado taxa de reincidncia em processos concernentes a

    adolescentes submetidos a medidas socioeducativas de internao. Dados apresentados

    em 2012 pelo Conselho Nacional de Justia112 indicaram um elevado valor de 56% nos

    processos analisados.

    62. O segundo, relativo dosimetria das penas, indica que a reincidncia a

    circunstncia agravante mais frequente, incidente em 97,37% dos casos. 113

    63. Por fim, o terceiro conjunto de dados, concernente especificamente ao municpio

    do Rio de Janeiro, apresenta uma elevada taxa de internos anteriormente condenados,

    qual seja, 39,13% entre os detentos do regime semiaberto e 48,67% entre os sentenciados

    em cumprimento de pena no regime fechado.114

    64. Fazendo, pois, uma anlise congruente dos dados apresentados, pode-se

    conjecturar que o sistema carcerrio, alm de no apresentar as condies mnimas para a

    112 Panorama nacional de 2012 sobre a execuo das medidas socioeducativas de internao. Disponvel em: http://goo.gl/TEKwbR, p. 28. 113 SANTOS, Juarez Cirino dos. Op. cit., p. 532. 114 PRADO, Geraldo Luiz Mascarenhas. Lei de execuo penal. Srie Pensando o Direito, vol. 44. Braslia: Ministrio da Justia, 2012, p. 49.

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    concretizao do projeto de reinsero previsto nas normas nacionais e internacionais,

    ineficaz quanto a tal objetivo manifesto e, frise-se, apresenta uma atuao deformadora115

    e estigmatizante 116 sobre o condenado. Tal suposio conta tambm com o

    reconhecimento explcito do carter crimingeno do crcere pela Exposio de Motivos

    da nova Parte Geral do Cdigo Penal,117 bem como com a recente manifestao do

    Ministro Gilmar Mendes, ao afirmar que a reincidncia no Brasil situa-se na faixa dos

    70%.118

    65. Nesse sentido, ainda, a Comisso Internacional de Direitos Humanos.119

    [...] cuando las crceles no reciben la atencin o los recursos necesarios, su funcin se distorsiona, en vez de proporcionar proteccin, se convierten en escuelas de delincuencia y comportamiento antisocial, que propician la reincidencia en vez de la rehabilitacin.

    66. Na mesma toada:

    La condena importa siempre un malestar psicolgico duradero, como resultado de la humillacin contenida en el juicio condenatorio, la cual no puede ser superada por el retorno a su trabajo, por la obtencin de una ocupacin lcita o por la propia declaracin del afectado que se siente resocializado120.

    115 SANTOS, Juarez Cirino dos. Op. cit., p. 531. 116 Vide Labeling Approach in BARATTA, Alessandro. Criminologia Crtica e Crtica do Direito Penal: introduo sociologia do direito penal., 6. ed., Rio de Janeiro: Editora Revan, 2011. 117 A saber: Uma poltica criminal orientada no sentido de proteger a sociedade ter de restringir a pena privativa da liberdade aos casos de reconhecida necessidade, como meio eficaz de impedir a ao crimingena cada vez maior do crcere. 118 Disponvel em: http://goo.gl/TEKwbR. 119 COMISSO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Op. cit., 4. 120 TAVARES, Juarez. Los objetos simblicos de la prohibicin: lo que se devela a partir de la presuncin de evidencia. In: Racionalidad y derecho penal. Lima: Idemsa, 2014, p. 39.

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    67. Ademais, a ONU acerca das faces criminais existentes dentro dos crceres

    brasileiros121:

    En casi todas las crceles visitadas, el Subcomit observ la presencia de bandas criminales. Los reclusos estaban alojados en distintos recintos o pabellones en funcin de la banda a la que supuestamente pertenecan. A este respecto, el Subcomit constat que en los expedientes de los reclusos de Ary Franco figuraba una declaracin firmada por la que aceptaban ser asignados a un pabelln controlado por una faccin determinada y se hacan responsables de su propia seguridad al respecto. El Estado parte debe velar por la separacin efectiva entre los presos preventivos y los presos condenados, de conformidad con sus obligaciones derivadas del derecho internacional de los derechos humanos. El Subcomit reitera la preocupacin y la recomendacin que ya expres el Relator Especial sobre las ejecuciones extrajudiciales, sumarias o arbitrarias en el sentido de que las crceles deben estar a cargo de los guardias y no de los reclusos. La prctica de obligar a los presos recin llegados que nunca pertenecieron a una banda a elegir una es cruel y engrosa las filas de las bandas. La asignacin de una celda o un pabelln debe basarse en criterios objetivos.

    68. Isso posto, quanto segunda indagao feita pelo consulente, concluo que o

    encarceramento no Brasil, levando em conta a sua atual configurao, contribui

    ao contrrio do que se apregoa manifestamente para o aumento da prtica delitiva

    e, por sua vez, impacta negativamente na segurana pblica.

    III Estratgias jurisdicionais de superao do estado de sistemtica violao dos

    direitos fundamentais dos presos no contexto brasileiro

    69. Diante de um contexto de grave superpopulao carcerria situao que, por si

    s, representa uma violao do direito dos presos a um tratamento digno , no possvel

    cogitar de uma soluo interna do prprio sistema penitencirio, saturado e incapaz de

    reestabelecer a legalidade do encarceramento. De fato, a situao generalizada de

    121 Informe sobre la visita al Brasil del Subcomit para la Prevencin de la Tortura y Otros Tratos o Penas Crueles, Inhumanos o Degradantes, de autoria da Organizao das Naes Unidas, pp. 16-17.

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    manuteno de pessoas presas alm da capacidade do sistema impe a adoo, de um

    lado, de remdios compensativos, mediante os quais o detento possa obter uma reparao

    pela