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Patricia Calumby Zacarias
Turma: 3109C R.A.: 456158-5
A Retrocessão na Desapropriação
No âmbito do Direito Brasileiro
São Paulo 2005
UniFMU
Patricia Calumby Zacarias
A Retrocessão na Desapropriação No âmbito do Direito Brasileiro
Trabalho apresentado à disciplina Metodologia do Trabalho Científico, do curso de Direito/UniFMU, sob orientação do Professor Sérgio Jacintho Guerniere Rezende.
São Paulo
2005
Patricia Calumby Zacarias
A Retrocessão na Desapropriação no âmbito do Direito Brasileiro
Banca Examinadora:
_____________________________________________________ Sérgio Jacintho Guerniere Rezende
_____________________________________________________
Carlos Eduardo Farnese Regina
_____________________________________________________ Helga Araruna Ferraz de Alvarenga
UniFMU
São Paulo
2005
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus que me fortaleceu ao longo de todo o caminho; ao meu
Professor-orientador, Sérgio Jacintho Guerniere Rezende, que com sua experiência
soube me guiar em direção às melhores obras, rumo aos doutrinadores sem os
quais a pesquisa restaria empobrecida. À minha família, que sempre esteve ao meu
lado nunca duvidando que este momento chegaria; e aos colegas, hoje verdadeiros
amigos, com os quais compartilhei as inseguranças, alegrias e encontros permeados
por muita cumplicidade no “Golden China”, para sempre estarão em minha vida e
coração.
RESUMO
A presente monografia trata da ação de retrocessão, ação esta que tem sido há
muito, alvo de divergências doutrinárias e jurisprudenciais. O objetivo principal deste
trabalho é sintetizar as correntes existentes e apontar as profundas diferenças
práticas que surgem quando se adota uma ou outra. A retrocessão, que até pouco
tempo, era majoritariamente vista pela jurisprudência como direito de natureza
pessoal, vem merecendo atualmente, tratamento diverso. A tendência que vem se
fazendo presente nos julgados mais recentes e já fomentou valiosos trabalhos
doutrinários, é a de se enxergar no instituto, direito de natureza real, o que em muito
amplia o alcance da proteção conferida ao particular frente a desapropriação que
tenha porventura se afastado do interesse público. O tema é de suma importância,
visto abranger dois direitos vitais ao Estado Democrático: o direito de o
administrador público expropriar, sempre visando atendimento de interesse público e
o direito de propriedade que apenas cede diante do reclame social. Para coadunar
tais direitos de forma que seu antagonismo seja apenas aparente, sendo possível
sua coexistência, fundamental é delimitar com clareza o alcance da retrocessão.
SUMÁRIO
Introdução ........................................................................................................... 7 I- Considerações Históricas ........................................................................... 9 II- Declaração Expropriatória: ato administrativo ............................................ 15 1. Anulação do Ato Administrativo na Desapropriação ................................... 19 III- Inexistência do instituto da Retrocessão do Ordenamento Jurídico
Brasileiro .....................................................................................................
24 IV- Desvio de Finalidade e Retrocessão .......................................................... 27 1. Desvio de Finalidade versus o não uso do bem expropriado ..................... 30 V- Natureza Jurídica da Retrocessão .............................................................. 33 1. Retrocessão como direito pessoal .............................................................. 2. Retrocessão como direito misto .................................................................. 3. Preempção Legal e Preempção convencional ........................................... 4. Retrocessão como direito real ....................................................................
33 40 41 43
VI- Retrocessão frente ao Código Civil de 2002 .............................................. 52 Conclusão ............................................................................................................. 55 Bibliografia ............................................................................................................ 59
7
INTRODUÇÃO
Acaso o Poder Público, fazendo uso indevido de seu poder expropriatório,
não dê ao bem o destino apresentado como fundamento do próprio decreto
expropriatório, qual seria o meio de restabelecer a justiça, a moralidade
administrativa e a própria estabilidade jurídica? Aqui várias são as correntes de
pensamento defendidas pela doutrina brasileira e nisto reside o cerne deste
trabalho.
A desapropriação pode ser definida como sendo o procedimento de
Direito Público pelo qual a Administração transfere para si, originariamente, a
propriedade de terceiro, quando tal medida for necessária à satisfação da utilidade
ou necessidade pública, ou do interesse social, normalmente sendo precedida de
indenização paga em dinheiro. Mais adequado dizer que além de necessária, a
desapropriação tem que ser indispensável, ou seja, apenas ela seria capaz de
satisfazer determinado interesse público.
Diante da supremacia do interesse público sobre o particular, a
propriedade privada cederia sempre que esbarrasse neste limite. A Constituição
Federal, ao prever a possibilidade da expropriação, o fez limitando o uso desse
poder aos casos em que a utilidade ou necessidade pública, ou ainda o interesse
social, exigissem. De modo que acaso se apresente desprovida deste caráter,
restará inconstitucional.
Retrocessão, que deriva do latim retrocessio, pode ser definida como o
ato pelo qual o ex-proprietário recupera a propriedade do bem que lhe foi
expropriado, mas não destinado à finalidade motivadora do decreto expropriatório.
Há grande divergência doutrinária e jurisprudencial acerca da natureza jurídica
desse instituto. A jurisprudência que até há pouco inclinou-se no sentido de entender
o direito do retrocessionário como sendo pessoal, vem mudando seu
posicionamento conferindo força de direito real ao instituto.
Entender a retrocessão como direito real ou pessoal tem grande interesse
8
prático, visto que delimita a própria extensão do direito que assistirá ao ex-
proprietário. Este poderá experimentar ressarcimento através do pagamento de
perdas e danos ou do retorno do bem ao seu patrimônio, conforme entendimento
adotado. Outras relevantes questões sofrem reflexos diante da definição da natureza
jurídica da retrocessão, o prazo prescricional a ser observado e a transmissibilidade
do direito, são exemplos desses reflexos.
A polêmica que se instaurou deve-se especialmente à ausência de
regulamentação específica no ordenamento jurídico brasileiro e à má localização do
tema no corpo do Código Civil, que apontaria para equiparação da retrocessão com
o direito de preferência pactuado entre comprador e vendedor. Tratar de tema de
Direito Público em diploma de Direito Privado, e não tornar tormentosa a questão,
seria improvável.
No decurso do presente trabalho serão analisadas as diversas correntes
doutrinárias e jurisprudenciais que têm pretendido solucionar a divergência e em
capítulo específico será enfocado o tema frente ao Código Civil de 2002, que apesar
de não ter posto fim à discussão, trouxe luz a pontos antes nebulosos. Teceremos
paralelo entre o desvio de finalidade e a retrocessão, tendo em vista que esta se
baseia na não observância pelo poder expropriante da finalidade que serviu de
fundamento à desapropriação. No âmbito do desvio de finalidade, será analisada a
hipótese do não uso do bem expropriado como caracterizadora do vício.
9
I- CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS
A retrocessão está intimamente ligada à desapropriação, de tal maneira
que não seria possível analisá-la em separado. Faremos neste capítulo breves
considerações históricas acerca de ambos os institutos, de modo a contextualizar
toda a discussão doutrinária e jurisprudencial que cerca o assunto.
O instituto da desapropriação sempre encontrou abrigo no ordenamento
pátrio. A Constituição de 1824, sob clara influência da Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, já previa tal figura jurídica ao lado do direito de propriedade,
nos seguintes termos:
Art. 179, § 22º: Se o bem público, legalmente verificado, exigir o uso e emprego da propriedade do cidadão, será ele previamente indenizado do valor dela. A lei marcará os casos em que terá lugar esta única exceção e dará as regras para se determinar a indenização.
Forçoso é perceber o caráter excepcional que acompanha a
desapropriação desde seu nascedouro. A garantia à propriedade só cede, no
contexto do Estado Democrático de Direito, diante das exigências do interesse
público, afora essa hipótese, é pleno o respeito à propriedade privada.
A Constituição de 1824 traz a exigência da anterioridade da indenização e
ainda da especificação legal dos casos que possibilitariam a retirada do bem do
domínio particular.
A Constituição de 1891 previu a desapropriação no:
Art. 72, § 17º: O direito de propriedade mantém-se em toda a sua plenitude, salvo a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia.
Com essa redação consagrou-se a bipartição do fundamento do instituto
expropriatório, expresso na utilidade ou necessidade pública, mantendo-se a
exigência de prévia indenização.
10
A desapropriação, posteriormente encontrou disciplina no Decreto nº
4.956, de 9 de setembro de 1903, que aprovou o regulamento, mediante o qual se
efetuou a consolidação de textos anteriores e a modificação do processo
expropriatório, para todas as obras da União e do Distrito Federal. Esta consolidação
separou os casos de necessidade dos de utilidade pública, disciplinando-os em
diferentes artigos.
Ocorria a transmissão da propriedade apenas quando do pagamento do
valor estipulado a título de indenização. Valor este, fixado por acordo ou, sendo este
fracassado, judicialmente. A fixação do quantum indenizatório representava o único
objetivo do processo judicial.
A Constituição de 1934 estabeleceu:
a desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indenização.
Manteve-se pois, a bipartição do fundamento legitimador do instituto.
Ao assegurar o direito de propriedade, a Constituição de 1937, ressalvou
a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia,
mantendo desse modo, o duplo pressuposto, mas omitindo o requisito de “justa”
para a indenização.
Sob a vigência da Carta de 1937 foi editado o Decreto-Lei nº 3.365, de 21
de junho de 1941, denominado Lei Geral da Desapropriação, atualmente em vigor,
embora tendo sofrido diversas alterações. Há ainda leis especiais que prevêem
casos específicos de desapropriação, como por exemplo o Estatuto da Terra que
regula a desapropriação como forma de redistribuição de terras.
O Decreto-Lei nº 3.365/41, suprimiu a “necessidade pública” como
justificativa de perda da propriedade, muito embora a Constituição então vigente
fizesse tal distinção. Outro importante ponto a ser salientado em relação a este
diploma legal, é a ampliação que deu ao número de hipóteses capazes de ensejar a
desapropriação.
A Constituição de 1946 inovou na matéria expropriatória ao estabelecer
como justificação, além da necessidade pública e da utilidade pública, o interesse
11
social. A Lei nº 4.132, de 10 de setembro de 1962, veio disciplinar esta espécie de
desapropriação.
A Lei Maior de 1967 e a Emenda Constitucional nº 1, de 1969, disciplinam
a desapropriação fundamentada na necessidade ou utilidade pública, ou interesse
social, exigindo indenização prévia, justa e em dinheiro, salvo o caso de propriedade
rural em que a título de indenização eram previstos títulos especiais da dívida
pública.
No ordenamento brasileiro atual, a desapropriação encontra fundamento
na Constituição da República, em seu artigo 5º, inc. XXIV:
A lei estabelecerá o procedimento para a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição.
Além do disposto neste artigo, a Carta da República dedica outros
dispositivos para a tratativa do tema. O artigo 22, inc. II, atribui competência privativa
à União para legislar sobre a desapropriação. Por sua vez o artigo 182, § 3º,
determina que as desapropriações de imóveis urbanos serão feitas mediante prévia
e justa indenização em dinheiro. O § 4º, inc. III, do mesmo dispositivo, menciona a
chamada “desapropriação-sanção”, como terceira penalidade a ser imposta diante
do não enquadramento do solo urbano em diretrizes fixadas em lei específica, para
área incluída no plano diretor, nos termos da lei federal. Estas penalidades devem
respeitar a sucessividade, de modo que a desapropriação terá cabida diante do
fracasso das que lhe antecedem.
O artigo 184 prevê a competência da União para desapropriar por
interesse social para fins de reforma agrária, imóvel rural que não esteja cumprindo
sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária,
com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a
partir do segundo ano de sua emissão e cuja utilização seja definida em lei. Os
parágrafos desse artigo e os artigos 185 e 186 estabelecem outros preceitos,
remetendo à lei complementar a fixação de procedimento contraditório especial, de
rito sumário, para o processo judicial de desapropriação.
12
Em suma, a par do disposto na Lei Maior, a matéria encontra disciplina no
plano infraconstitucional onde merecem destaque:
a) Decreto-Lei nº 3.365, de 21 de junho de 1941, denominado Lei Geral da
Desapropriação;
b) Lei nº 4.132, de 10 de setembro de 1962, que especifica os casos de
desapropriação por interesse social;
c) Lei nº 4.593, de 29 de dezembro de 1964, que dispõe sobre a desapropriação
para obras de combate às secas no Nordeste;
d) Decreto-Lei nº 1.075, de 22 de janeiro de 1970, sobre a imissão provisória na
posse em imóveis residenciais urbanos;
e) Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, que regulamenta dispositivos
constitucionais relativos à reforma agrária;
f) Lei Complementar 76, de 6 de julho de 1993, dispõe sobre o procedimento
contraditório especial, de rito sumário, para o processo de desapropriação de
imóvel rural, por interesse social, para fins de reforma agrária.
O instituto da retrocessão foi introduzido no ordenamento jurídico pátrio
pela Constituição de 1824, conforme letra do artigo por nós já apresentado.
Em 1836, através da Lei Provincial 57, foi dado ao expropriado o direito
de recorrer à Assembléia Legislativa Provincial para garantir a restituição da
propriedade. A Constituição Federal de 1891, traz a retrocessão no corpo dos
dispositivos que tratam da desapropriação, consagrando mais uma vez a
excepcionalidade que permeia o instituto, não legitimando ato do poder
expropriatório que não esteja amparado pela necessidade ou utilidade pública.
A Nova Consolidação das Leis Civis, vigente em 11 de agosto de 1899,
em seu artigo 855, dispunha:
Se verificada a desapropriação, cessar a causa que a determinou ou a propriedade não for aplicada ao fim para o qual foi desapropriada, considera-se resolvida a desapropriação, e o proprietário desapropriado poderá reivindicá-la.
13
A Lei nº 1.021, de 26 de agosto de 1903, determinava:
Art. 2º, § 4º: Se por qualquer motivo não forem levadas a efeito as obras para as quais foi decretada a desapropriação, é permitido ao proprietário reaver o seu imóvel, restituindo a importância recebida, indenizando as benfeitorias que porventura tenham sido feitas e aumentado o valor do prédio.
A Consolidação das Leis Civis e a Lei nº 1.021, deixam clara a natureza
real da retrocessão, prevendo expressamente a possibilidade do retorno do bem
indevidamente expropriado.
Com o advento do Código Civil de 1916, a retrocessão encontrou
disciplina:
Art. 1.150: A União, o Estado, ou o Município oferecerá ao ex-proprietário o imóvel desapropriado, pelo preço por que o foi, caso não tenha o destino, para que se desapropriou.
Este dispositivo lança dúvida sobre o que antes se mostrava
inquestionável. Ao falar em “oferecimento” do bem pelo poder expropriante ao
expropriado, faz com que parte da doutrina passe a encarar a retrocessão como
direito de natureza pessoal.
O Decreto-Lei nº 3.365/41, não fazia menção expressa à retrocessão. Na
“Exposição de Motivos”, o Professor Francisco Campos, então Ministro da Justiça,
afirmava que:
deixaram de ser regulados os institutos da requisição e da retrocessão, hoje erradamente assimilados ao de desapropriação, os quais continuarão a reger-se pelo Código Civil.
Tal redação, remetendo ao Código Civil a disciplina de instituto
tipicamente de Direito Público, alimentou as inúmeras discussões doutrinárias
acerca da natureza jurídica da retrocessão.
A Lei nº 9.785, de 29 de fevereiro de 1999, acrescentou o § 3º ao artigo 5º
do Decreto-Lei nº 3.365/41, ficando deste modo o dispositivo:
Ao imóvel desapropriado para a implantação de parcelamento popular, destinado às classes de menor renda, não se dará outra destinação nem haverá retrocessão.
14
Este texto, mencionando expressamente a retrocessão, enfraquece a
argumentação dos que defendem a inexistência do instituto no ordenamento jurídico
brasileiro. Provocando contudo, certa perplexidade ao determinar que se
desrespeitada a destinação prevista no decreto expropriatório, qual seja,
implantação de parcelamento popular, não terá cabida a retrocessão. A este ponto
retornaremos em momento oportuno, quando apresentaremos interpretação
condizente com o espírito da lei.
O novo Código Civil trata do instituto da retrocessão, introduzindo
algumas alterações que se não resolvem, diminuem em pelo menos alguns
aspectos, como adiante se verá, a discussão que envolve o assunto:
Art. 519: Se a coisa expropriada para fins de necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, não tiver o destino para que se desapropriou, ou não for utilizada em obras ou serviços públicos, caberá ao expropriado direito de preferência, pelo preço atual da coisa.
15
II- DECLARAÇÃO EXPROPRIATÓRIA: ATO ADMINISTRATIVO
O decreto expropriatório é ato administrativo e como tal deve conter o que
o doutrina aponta, embora com algumas discrepâncias entre os autores, como os
cinco elementos básicos do ato que emana da Administração Pública: competência,
finalidade, forma, motivo e objeto.
A competência se traduz na exigência de que o agente público que edita
determinado ato deve ter força legal para tanto. “Agente público competente é o que
recebe da lei o devido poder para o desempenho de suas funções”.1 Cabe no exame
de tal elemento, discernir se se trata de ato discricionário ou vinculado, pois sendo o
ato discricionário, o exame da competência ganha maior relevo, visto que na
produção do ato dito vinculado, pouco interfere a vontade do agente que se restringe
a realizar o já detalhadamente determinado pela lei, cabendo conforme o caso,
abrandamento quanto a exigência da competência desde que o ato tenha refletido
fielmente o determinado pela lei. O decreto expropriatório é ato discricionário por
abranger conceitos indeterminados (necessidade, utilidade pública, interesse social),
cabendo ao administrador a análise do caso concreto a fim de verificar a presença
de um dos pressupostos autorizadores da desapropriação.
A finalidade “reflete o fim mediato, vale dizer, o interesse coletivo que
deve o administrador perseguir”.2 Este elemento guarda caráter de invariabilidade,
visto que o administrador público apenas age legitimamente quando busca a
satisfação do interesse público, sendo-lhe amplamente vedado perseguir satisfação
pessoal. Indubitável portanto, que o decreto expropriatório, atingindo a propriedade
privada traduzida em nosso sistema como garantia constitucional, há de cingir-se
estritamente ao alcance do bem comum, desvirtuando-se por completo na ausência
deste objetivo. ______________ 1 Diógenes Gasparini, Direito Administrativo, p.57. 2 José dos Santos Carvalho Filho, Ato Administrativo, p.99.
16
A forma é o modo pelo qual o ato se exterioriza.
A forma pode, eventualmente, não ser obrigatória, isto é, ocorrerá, por vezes, ausência de prescrição legal sobre uma forma determinada, exigida para a prática do ato. Contudo não pode haver ato sem forma, porquanto o Direito não se ocupa de pensamentos ou intenções enquanto não traduzidos exteriormente.3
O Poder Público manifesta sua intenção de desapropriar através de
decreto.
O motivo é a situação fática que autoriza o ato. Sem ele não é possível
imaginar atuação do agente no exercício de sua competência pública. O motivo
pode ou não estar explícito na lei. Se lá estiver descrito, diz-se que o ato é
vinculado, ou seja, diante da ocorrência do fato apontado não resta outra opção ao
administrador senão a de praticar a conduta determinada pela lei, como cabida.
Caso ocorra o contrário e a lei não aponte de forma clara o motivo que ensejaria o
ato, o agente público poderá avaliar a situação fática decidindo acerca do cabimento
da providência administrativa, estaríamos assim, diante do ato discricionário. Esta
espécie de ato administrativo, dá margem à avaliação do administrador, que decidirá
acerca do mérito, ou seja da conveniência e oportunidade do ato. Não se trata de
liberdade absoluta, capaz de abrir caminhos à arbitrariedade, mas da
impossibilidade de o legislador prever toda a sorte de situações passíveis de
ocorrência, pelo que caberia ao agente público diante da realidade concreta,
reconhecer o caminho a ser seguido de modo a alcançar a finalidade eleita pela lei.
No âmbito da desapropriação tal elemento assume grande importância
diante dos pressupostos constitucionais que guardam conceitos indeterminados
deixando margem à análise do agente. O administrador deverá, em nome dos
Princípios Gerais de Direito, restringir-se à zona de certeza que guarda cada um dos
conceitos.
Cabe ressaltar a Teoria dos Motivos Determinantes.
De acordo com esta teoria, os motivos que determinaram a vontade do agente, isto é, os fatos que serviram de suporte à sua decisão, integram a validade do ato. Sendo assim, a invocação de motivos de fato falsos,
______________ 3 Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, p.361.
17
inexistentes ou incorretamente qualificados vicia o ato mesmo quando, [...] a lei não haja estabelecido, antecipadamente, os motivos que ensejariam a prática do ato. Uma vez enunciados pelo agente os motivos em que se calçou, ainda quando a lei não haja expressamente imposto a obrigação de enunciá-los, o ato só será válido se estes realmente ocorreram e o justificavam.4
No decorrer deste trabalho será salientada a importância desta teoria que
termina por fortalecer o entendimento acerca da possibilidade de amplo e efetivo
controle jurisdicional sobre os motivos apresentados pelo administrador como
propiciadores da desapropriação.
Finalmente o objeto pode ser conceituado como a coisa sobre a qual
recai o conteúdo do ato administrativo. Há na doutrina diferentes posições sobre o
ato nulo e o que seria anulável. Para o professor Hely Lopes Meirelles,5 não haveria,
no âmbito do Direito Público, lugar para ato anulável como ocorre no Direito Privado.
Para este ilustre doutrinador, a nulidade relativa deveria restringir-se ao Direito
Privado, não sendo agasalhada pelo Direito Público, porque para este, ou o ato seria
válido ou inválido, não havendo lugar para temperamentos diante do caráter público
que impregna toda a matéria administrativa. Em que pese a posição do ilustre
administrativista, há os que defendem a existência do ato administrativo anulável.
Declarado nulo o ato, os efeitos desta declaração são ex tunc, ou seja,
retroagem à época da elaboração do mesmo. Enquanto não houver tal declaração
de nulidade, o ato produz todos os seus efeitos, sendo ato eficaz e a todos
obrigando, isto porque está presente em todo ato administrativo a presunção de
legitimidade. A declaração de nulidade que retira o ato administrativo do mundo
jurídico, pode tanto emanar da própria Administração, quanto do Judiciário quando
provocado pelo interessado.
O paralelo ora traçado entre o decreto expropriatório e os elementos
fundamentais de todo ato administrativo apresenta-se relevante face à exigência de
que a desapropriação apenas ocorra acaso justificada por um dos pressupostos
constitucionais. Há que se entender a desapropriação, e por conseguinte, a
______________ 4 Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, p.369. 5 Direito Administrativo Brasileiro, p.163.
18
retrocessão, dentro da Teoria da Nulidade dos Atos Administrativos.6
Hélio Moraes de Siqueira,7 já defendia na década de 60, que a
retrocessão deveria ser entendida no âmbito da Teoria do Ato Administrativo, pois,
sendo o decreto expropriatório, ato administrativo, acaso abrigasse em seus
elementos fundamentais, vício, nulo deveria ser considerado.
O desencontro entre a finalidade do ato e a finalidade legal que o
condiciona, denomina-se “desvio de poder”. Tal vício consiste, pois, no manejo de
uma competência para fim diverso daquele em função do qual foi instituída.
A doutrina apresenta duas hipóteses da ocorrência desse vício:
a) quando o ato praticado é alheio a qualquer finalidade pública, estando o agente
em busca da satisfação de mero interesse pessoal;
b) quando o ato, embora direcionado para uma finalidade pública, não é o
apropriado, o ordinariamente previsto para alcance do fim em questão. É
garantia do particular que o Estado não só se restrinja aos fins previamente
previstos pela lei, como também que se limite aos meios elencados como
adequados.
Tanto numa como noutra hipótese, caberá ao Judiciário o controle dos
atos administrativos contaminados pelo desvio de poder. Enquanto que na primeira
hipótese, quando claramente se percebe que o fim perseguido pelo administrador é
estranho ao interesse público, a missão do Judiciário apresenta-se mais simples,
árdua será a matéria probatória quando da ocorrência da segunda hipótese. O
Professor Celso Antônio Bandeira de Mello defende que devam ser analisadas as
circunstâncias que envolvem o ato, seus antecedentes, a razoabilidade da medida, a
proporcionalidade frente a seus objetivos, tudo no sentido de formar “feixe de
indícios convergentes” que apontem para distorção do fim legal.8
______________ 6 Belizário Antônio Lacerda, Da Retrocessão – Doutrina, Jurisprudência e Legislação, p.51. 7 A Retrocessão nas Desapropriações, p.23. 8 Revista de Direito Público, n° 86, p.48.
19
A existência de discricionariedade no decreto expropriatório não pode
querer justificar o afastamento do controle jurisdicional. A legalidade do ato vai muito
além da simples forma, da investigação dos elementos externos; a legalidade, como
não poderia deixar de ser, alcança o conteúdo do ato. Este tem o dever de refletir a
intenção da lei, garantindo sempre a prevalência do interesse público. Portanto, o
Judiciário, a fim de verificar da legalidade do ato, não pode se eximir do dever de
examiná-lo em todos os seus aspectos.
Essa investigação nem de longe ofenderia a liberdade de que goza o
administrador público no exercício de sua competência discricionária, isto porque,
esta liberdade restringe-se à escolha da providência, que no caso concreto, atenda
aos fins legais. É inconcebível que num Estado Democrático de Direito, se pudesse
supor que ao agente público fosse conferido poder de escolher livremente o que
melhor lhe aprouvesse, a ele cabe somente o cumprimento da finalidade legal.
O mérito do ato administrativo não pode ser mais do que o círculo de liberdade indispensável para avaliar, no caso concreto, o que é conveniente e oportuno à luz do escopo da lei. Nunca será liberdade para decidir em dissonância com este escopo.9
1. ANULAÇÃO DO ATO ADMINISTRATIVO NA DESAPROPRIAÇÃO
Conforme ensinado pela doutrina e por nós brevemente analisado no
capítulo anterior, são elementos do ato administrativo: a competência, a finalidade, a
forma, o motivo e o objeto. Situando o problema da destinação do bem
desapropriado no contexto da nulidade do ato administrativo, percebe-se que a
Administração ao não destinar o bem objeto da expropriação ao fim que lhe serviu
de suporte, está ofendendo aos requisitos da finalidade, do motivo e do objeto.
Segundo o Professor Belizário Antônio de Lacerda,10 na hipótese acima
aventada, a Administração terá desrespeitado o requisito da finalidade posto ter
______________ 9 Celso Antônio Bandeira de Mello, Discricionariedade e Controle Jurisdicional, p.82. 10 Da Retrocessão – Doutrina, Jurisprudência e Legislação, p.52.
20
ignorado a necessária destinação pública em vista da qual foi promovida a
desapropriação; o elemento referente ao motivo por ter faltado à desapropriação
seus pressupostos e por fim o requisito do objeto, visto este ser representado pela
destinação concreta do bem ao fim público, por exemplo, a construção de uma
escola.
Aproximando-nos da desapropriação e analisando os elementos do ato
administrativo que a concretizam, é possível delimitar que:
a) quanto à competência: a União, os Estados e o Distrito Federal têm competência
para emitir a declaração expropriatória e promover a desapropriação (artigo 2º,
Decreto-Lei nº 3.365/41).11 As entidades da Administração Indireta podem
promover a desapropriação, mediante autorização expressa, constante de lei ou
contrato (artigo 3º, Decreto-Lei nº 3.365/41),12 para tanto, previamente deve ser
emitido ato declaratório pelo Chefe do Executivo a que se vinculam. Fogem à
regra, o Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes – DNIT, de
natureza autárquica, dotado de competência também para emitir a declaração
expropriatória, mediante portaria, conforme a Lei nº 10.233/2001; e a Agência
Nacional de Energia – ANEEL, dotada da competência de declarar e promover a
desapropriação, no tocante às áreas necessárias à implantação de instalações
de concessionários, permissionários e autorizados de energia elétrica (artigo 10
______________ 11 Art. 2º- Mediante declaração de utilidade pública, todos os bens poderão ser desapropriados,
pela União, pelos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios.
§ 1º- A desapropriação do espaço aéreo ou do subsolo só se tornará necessária, quando de sua utilização resultar prejuízo patrimonial do proprietário do solo.
§ 2º- Os bens do domínio dos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios poderão ser desapropriados pela União, e os dos Municípios pelos Estados, mas, em qualquer caso, ao ato deverá preceder autorização legislativa.
§ 3º- É vedada a desapropriação, pelos Estados, Distrito Federal, Territórios e Municípios, de ações, cotas e direitos representativos do capital de instituições e empresas, cujo funcionamento dependa de autorização do Governo Federal e se subordine à sua fiscalização, salvo mediante prévia autorização, por decreto do Presidente da República.
* § 3º acrescentado pelo Decreto-Lei 856, de 11 de setembro de 1969. 12 Art. 3º- Os concessionários de serviços públicos e os estabelecimentos de caráter público ou
que exerçam funções delegadas de poder público poderão promover desapropriações mediante autorização expressa, constante de lei ou contrato.
21
da Lei nº 9.074, de 7 de julho de 1995).13 Ainda o artigo 3º do Decreto-Lei nº
3.365/41, atribui às concessionárias de serviços públicos competência para
promover desapropriações, desde que autorizadas, de modo explícito, por lei ou
contrato, sem mencionar as permissionárias. No entanto, a Lei nº 8.987/95
estende tal competência às permissionárias ao determinar que a estas se
apliquem os seus dispositivos.14 Qualquer desapropriação que ocorra fora
desses casos previstos em lei, será passível de nulidade;
b) quanto à finalidade: a desapropriação apenas encontra respaldo na lei, se
calcada em necessidade, utilidade pública ou interesse social já que vige em
nosso sistema o respeito à propriedade privada como regra geral.
Excepcionados esses casos, não há que o Estado retirar do patrimônio do
particular, qualquer que seja o bem;
c) quanto à forma: não se pode cogitar de decreto expropriatório que não seja
escrito e publicado. E mais do que isso, no caso específico da declaração de
utilidade pública, em que pese a discussão doutrinária acerca da obrigatoriedade
de motivação quando a lei assim não exige, aqui, a motivação serve de
garantidora do respeito à propriedade privada, que em nosso sistema, é garantia
constitucional;
d) quanto ao objeto: este elemento, no âmbito do decreto expropriatório, segundo o
Professor Belizário Antônio de Lacerda,15 “é a retirada legal do bem da esfera de
propriedade de seu respectivo proprietário e sua integração ao domínio da
entidade expropriante”.
Seguindo essa linha de raciocínio, o particular lesado em seu direito de
propriedade por desapropriação cujos elementos apresentassem vício, deveria
recorrer à ação de anulação do ato expropriatório como meio de recuperar a
______________ 13 Art. 10º- Cabe à Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL declarar a utilidade pública, para
fins de desapropriação ou instituição de servidão administrativa, das áreas necessárias à implantação de instalações de concessionários, permissionários e autorizados de energia elétrica.
14 Odete Medauar, Direito Administrativo Moderno, p.382. 15 Da Retrocessão – Doutrina, Jurisprudência e Legislação, p.98.
22
propriedade que lhe foi subtraída indevidamente.
Aqui entra em cena outro enfoque da discussão doutrinária e
jurisprudencial que cerca a questão: qual seria o prazo prescricional para o exercício
dessa ação? Há os que defendem que deva ser observado o disposto pelo decreto
nº 20.910, de 6 de janeiro de 1932,16 que aponta para o prazo de cinco anos para
demandas contra a Fazenda Pública. Outros, percebendo o caráter real que permeia
a ação, entendem que o prazo a ser respeitado deva ser o de dez anos entre
presentes e quinze entre ausentes, consoante o disposto no Código Civil de 1916.
Adiante veremos o modo pelo qual trata o assunto o Código Civil de 2002.
Para os que entendem ser a ação de anulação do ato expropriatório o
recurso adequado para a defesa do patrimônio do particular injustamente despojado
de sua propriedade, não tem maior importância a distinção entre direito real e
pessoal que tanto provoca discussão. A ação de anulação é pessoal, mas a
condenação do Poder Expropriante restaria sem sentido caso excluísse a devolução
do bem ao particular. A restituição do bem seria conseqüência lógica da ação de
anulação. A restituição não macularia o caráter pessoal desta ação, refletindo a
obediência ao princípio da restituição integral.
O expropriado teria que buscar a declaração de nulidade ou inexistência
do ato expropriatório. Obtida esta, pediria a condenação da Administração na
devolução do bem. Para o doutrinador Belizário Antônio de Lacerda,17
nada obsta a que seja a ação declaratória cumulada com a condenação de entrega da coisa desapropriada. Isto porque nenhuma valia para o expropriado pleitear apenas a declaração de nulidade, uma vez que esta sentença não é exeqüível, e , ipso facto, não comporta execução coativa.
Acaso o Poder Público se recusasse a operar a devolução da coisa,
caberia executá-lo para entrega de coisa certa, conforme preceitos dos artigos 621 a
628 do Código de Processo Civil. Cabe frisar que para os que defendem tal posição
______________ 16 Art. 1º- As dívidas passivas da União, dos Estados e dos Municípios, bem assim todo e qualquer
direito ou ação contra a Fazenda federal, estadual ou municipal, seja qual for a sua natureza, prescrevem em 5 (cinco)anos, contados da data do ato ou fato do qual se originarem.
17 Da Retrocessão – Doutrina, Jurisprudência e Legislação, p.104.
23
– ação de anulação do decreto expropriatório como meio de o particular recuperar a
propriedade do bem que lhe haja sido subtraído injustamente –, o direito à anulação
do ato administrativo de desapropriação é transmissível hereditariamente, visto seu
cunho patrimonial.
Obtida a declaração de nulidade da desapropriação com a condenação à
devolução da coisa, faz-se necessário que se averbe a sentença à margem do
registro da desapropriação, só assim estará a propriedade transferida do Poder
expropriante para o ex-proprietário ou seus herdeiros.
A par de todos os argumentos apresentados, cumpre salientar posição
que diferencia a retrocessão, da nulidade do ato administrativo de declaração de
utilidade pública:
A não aplicação do bem à finalidade fixada no ato declaratório, impulso inicial do procedimento de expropriação, ou à sua utilização em finalidade diversa do interesse público, podem eventualmente configurar desvio de poder, desde que se faça sentir um interesse pessoal da autoridade administrativa. Haverá, então, nulidade e a desapropriação será invalidada sob tal fundamento, que não é o da retrocessão, onde se dispensa a pesquisa do elemento intencional de quem promove a expropriação. Bastam a inércia da administração ou a utilização da coisa em destinação alheia ao interesse público, ainda que tais atitudes não se inspirem em móveis egoísticos do agente.18
______________ 18 Manoel Eugênio Marques Munhoz, Revista de Direito Público, vol 11, p.72.
24
III- INEXISTÊNCIA DO INSTITUTO DA RETROCESSÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO
BRASILEIRO
Há doutrinadores que entendem inexistir em nosso Ordenamento, o
instituto da retrocessão, enxergando como fundamento de tal raciocínio, o Decreto-
Lei 3.365/41, que dispõe:
Art. 35: Os bens expropriados, uma vez incorporados à Fazenda Pública, não podem ser objeto de reivindicação, ainda que fundada em nulidade do processo de desapropriação. Qualquer ação, julgada procedente, resolver-se-á em perdas e danos.
Ocorre que o mesmo Decreto-Lei, em seu artigo 5º, § 3º, introduzido pela
Lei nº 9.785/99, menciona expressamente a retrocessão.
Diante da redação desse dispositivo não seria possível imaginar o retorno
do bem expropriado ao ex-proprietário por via da ação de retrocessão, já que o bem
estaria irremediavelmente incorporado à Fazenda. Ao contrário do que fizeram
diplomas anteriores, a atual Lei Geral de Desapropriação (Decreto-Lei 3.365/41),
não previu expressamente em seu texto a retrocessão, deixando grande margem à
dúvida e discussão, e fortalecendo os argumentos dos que afirmam a inexistência do
instituto. Nesse sentido também colabora o fato de o Código Civil apenas cogitar da
preempção ou preferência.
Sob esse enfoque, o ato administrativo, e mais especificamente o decreto
expropriatório, só perderá sua eficácia com a respectiva anulação ou revogação. Ao
expropriado seria possível recuperar o bem, bastando para isso a anulação do ato,
sendo desnecessária e até inadequada, a reivindicação, visto não ser mais detentor
do domínio. Diante da inexistência da retrocessão no nosso sistema jurídico, caberia
ao particular desapossado a via da nulidade do ato administrativo como meio de
recuperar sua propriedade.
Aplica-se o princípio da nulidade dos atos administrativos não só ao caso da falta de motivação do ato, e ao desvio de fim, como também à inatividade da Administração, em dar ao objeto expropriado a destinação própria. Aqui, o
25
silêncio prolongado é interpretado como manifestação de vontade da Administração.19
A anulação do ato tanto pode ser empreendida pela Administração
através das figuras da anulação ou da revogação; como pelo Judiciário, pela via da
anulação, quando provocado. A revogação, baseada em juízo de oportunidade e
conveniência – juízo de mérito – apenas cabe à Administração, diferente do que
ocorre com a anulação. Esta, que retira do mundo jurídico ato contaminado de
ilegalidade, tanto pode ser implementada pela Administração, subordinada que está
ao Princípio da Legalidade, quanto pelo Judiciário mediante provocação do
interessado.
A existência concreta de uma das hipóteses legais que emprestam
fundamento à desapropriação, é o critério definidor da validade do ato declaratório.
A necessidade de se retirar, compulsoriamente, a propriedade do domínio particular
há de ser amplamente justificada. Se o exame do mérito é vedado ao Judiciário,
nada impede que este Poder verifique a real ocorrência dos pressupostos
ensejadores da expropriação. Reforçando esse entendimento, o artigo 5º, inc. XXXV:
a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
O disposto pelo artigo 9º, Decreto-Lei 3.365/41, está em claro confronto
com a citada norma constitucional, quando determina:
Ao Poder Judiciário é vedado, no processo de desapropriação, decidir se se verificam ou não os casos de utilidade pública.
De modo que ao Judiciário não poderia ser afastado o exame dos
pressupostos do ato.20 O controle jurisdicional não pode ser afastado do decreto
expropriatório no que tange a seus elementos formadores e nesse contexto, avulta
em importância a verificação da licitude de sua finalidade. O elemento teleológico do
decreto expropriatório vincula a atividade administrativa, não sendo razoável supor
______________ 19 Belizário Antônio Lacerda, Da Retrocessão – Doutrina, Jurisprudência e Legislação, p.58. 20 Lúcia Valle Figueiredo, Curso de Direito Administrativo, p.212.
26
que ao Judiciário estaria vedado exame da existência dos pressupostos
justificadores do ato. Entendimento fortalecido quando se está diante de ato
administrativo tão gravoso.
Valer-se da Teoria da Nulidade do Ato Administrativo em contraponto à
tese que propugna a ausência da retrocessão em nosso ordenamento, é querer
abrandar o abuso do poder expropriatório pela Administração. Os que aderem a
essa corrente de pensamento – inexistência da retrocessão –, prendem-se à
interpretação literal do que dispõe o artigo 35 do Decreto-Lei nº 3.365/41,
interpretação esta incompatível com nosso sistema jurídico, onde o Poder Público
age sob império do Princípio da Legalidade.
Para o Professor José dos Santos Carvalho Filho,21 a corrente que
defende ter a retrocessão caráter pessoal, na realidade entende que este instituto
inexiste em nosso ordenamento, o que existiria seria o direito pessoal do
expropriado de postular indenização. O autor mencionado filia-se a esta corrente
doutrinária diante do texto da lei, que segundo seu entendimento, não deixa margem
à dúvida quanto a não existência da retrocessão no direito brasileiro. Apesar de
assim se posicionar, afirma:22
Entretanto, conviria que, lege ferenda, viesse a se caracterizar como real. De fato, se o próprio Estado desiste do que pretendia, deve restituir as coisas ao estado anterior, obrigando-se a devolver o bem a seu antigo proprietário. Este, constatada a desistência, teria direito real contra o Estado, sendo-lhe viável reaver a coisa do poder de quem indevidamente a detivesse.
______________ 21 Ato Administrativo, p.697. 22 Ibid, mesma página.
27
IV- DESVIO DE FINALIDADE E RETROCESSÃO
No âmbito do desvio de finalidade, possível ensejador do retorno do bem
indevidamente desapropriado ao ex-proprietário, devem ser analisadas diferentes
figuras passíveis de ocorrência.
Adestinação é a não destinação do bem à finalidade que se previu como
fundamento do decreto expropriatório; desdestinação é a desafetação do bem
desapropriado que é despojado do caráter público e a tredestinação ou
tresdestinação, é uso diferente do previsto.23
Apesar do texto do artigo 35 do Decreto-Lei nº 3.365/41, apontar para
incorporação definitiva do bem expropriado ao patrimônio da Fazenda Pública,
aparentemente impedindo qualquer direito subjetivo que o expropriado titularizaria
frente à Administração, há o mandamento constitucional que sem deixar margem à
dúvida, determina que apenas terá lugar a desapropriação acaso respaldada num
dos pressupostos enunciados, qual sejam, utilidade ou necessidade pública, ou
interesse social.
A finalidade integra o rol dos elementos do ato administrativo, logo, não
há que se falar em poder discricionário quando o fim do ato é desviado ou não se
baseia em lei. Se assim fosse, estaria legitimada a arbitrariedade. A partir do
momento em que são apontados pelo administrador público, o motivo e o objeto do
ato, finda estará a discricionariedade e o Judiciário estará mais do que legitimado a
operar a fiscalização.
Situando essa discussão no contexto do decreto expropriatório, pode-se
afirmar que a partir do instante em que a Administração declara que determinado
bem será objeto de desapropriação por se prestar à satisfação do interesse público
traduzido ou em utilidade ou necessidade pública, ou ainda em interesse social, este
______________ 23 Belizário Antônio Lacerda, Da Retrocessão – Doutrina, Jurisprudência e Legislação, p.82.
28
fim aludido pelo Estado, amarra daí em diante o comportamento da Administração,
que terá que obrigatoriamente destinar o bem ao fim público. O agente público ao
individualizar a lei quando diante do caso concreto, o que faz através da edição de
atos administrativos, deve atender unicamente à finalidade ditada pela lei. Acaso
ignore esta limitação e aja em desconformidade ao fim legal, configurado estará o
desvio de finalidade e o ato, por conseguinte, estará contaminado por vício
insanável.
O Estado não tem a disponibilidade sobre os bens dos particulares. Para
que os alcance é imperativo que enuncie sua intenção de forma clara e inequívoca,
e esta intenção tem que coincidir com os pressupostos constitucionais. Acaso assim
não fosse, estaria criada sociedade sob grande instabilidade, visto que a qualquer
instante, movido por qualquer intento, poderia surgir o Estado revestido do Poder
Expropriante, para promover invasão à esfera do patrimônio particular, sem que
contra isso pudesse insurgir o Judiciário visto que o comportamento exorbitante da
Administração estaria coberto por um suposto e indevassável manto de
discricionariedade. Este não foi, nem remotamente, o desejado pela Constituição
Federal quando enunciou taxativamente as hipóteses em que seria possível a
expropriação. Embora tal enunciação guarde conceitos juridicamente
indeterminados, há claramente ao redor de cada um deles, zona clara de certeza, na
qual o Judiciário pode penetrar verificando a legitimidade de comportamento tão
extremado, traduzido na violação da garantia à propriedade privada.
Dentro da análise da finalidade do ato expropriatório, cabe apresentar a
divergência doutrinária existente quanto à enumeração legal dos casos de
desapropriação por utilidade ou necessidade pública, ou por interesse social,
discute-se se tal rol é taxativo ou meramente exemplificativo. Hely Lopes Meirelles24
considera taxativa a enumeração legal:
Os casos ensejadores de desapropriação acham-se taxativamente relacionados, por lei, em dois grupos: o primeiro, com fundamento em necessidade ou utilidade pública; o segundo, em interesse social. Todos, porém, definidos pelas leis federais que os enumeram, e sem possibilidade de ampliação por norma estadual ou municipal.
______________ 24 Direito Administrativo Brasileiro, p.557.
29
Eurico Sodré,25 embora enxergue a questão de maneira diversa,
entendendo ser meramente exemplificativa a enumeração do Decreto-Lei 3.365,
defende que qualquer ampliação seja operada por lei.
José Carlos de Moraes Salles, entende que a enunciação não é taxativa,
visto que se o fosse, estaria impossibilitada a desapropriação quando, apesar de
existir necessidade ou utilidade pública, não houvesse a correspondente previsão
legal. Segundo entende o ilustre doutrinador, essa impossibilidade seria
flagrantemente inconstitucional. Bastando pois, segundo esse entendimento, a
genérica autorização constitucional:
a Constituição Federal em vigor não determinou que os casos de desapropriação fossem fixados em lei. Por isso, havendo a Carta Magna brasileira estabelecido como pressupostos ou condições da desapropriação a existência de uma causa de utilidade ou necessidade pública ou interesse social, caberá a expropriação sempre que tal causa ocorra, ainda que não prevista em lei, porque bastante a previsão constitucional.26
No que pese a opinião do ilustre jurista, parece-nos mais acertada a
posição do Professor Celso Antônio Bandeira de Mello,27 que adere à corrente dos
que defendem a enumeração legal como sendo taxativa frente ao texto do artigo 5º
do Decreto-Lei 3.365/41:
Consideram-se casos de utilidade pública:
q) os demais casos previstos por leis especiais.
Diante da letra da lei, seria necessário para que o rol fosse ampliado,
expressa previsão legal, até porque não seria lógico imaginar que alcançaria ao
administrador público liberdade tamanha, que fosse ele capaz de, escorado em
simples entendimento pessoal, eleger determinada hipótese como suficiente para
caracterizar um dos pressupostos constitucionais para expropriação. Diante do
inafastável Princípio da Legalidade, é sensato imaginarmos que, em respeito ao
artigo 5º, inc. II, que afirma:
______________ 25 A Desapropriação por Necessidade ou Utilidade Pública, passim. 26 A Desapropriação à Luz da Doutrina e da Jurisprudência, p.100. 27 Curso de Direito Administrativo, p.742.
30
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei,
a exigência de lei prevendo novas hipóteses onde seria cabível a desapropriação,
não poderia ser afastada ou enfraquecida. Neste sentido afirma Hélio Moraes de
Siqueira:28
Assim, fora dos casos expressos, previstos nos textos de lei, não é lícito à Administração o exercício do poder de expropriar, criando, ao seu arbítrio, novas hipóteses não previstas pelo legislador. A competência para desapropriar não é discricionária e sim, vinculada às enumerações taxativas da lei.
1. Desvio de Finalidade versus não uso do bem expropriado
Firmou-se entendimento no Supremo Tribunal Federal, como também na
doutrina, de que o não uso por si só, não implica em desviar o bem da finalidade
para qual foi expropriado, sendo indispensável provar circunstâncias outras
verificáveis no caso concreto para caracterizar o desvirtuamento de finalidade. O
ônus probatório neste caso seria do particular, a quem caberia demonstrar que o
Poder Público teria desistido de dar ao bem, finalidade pública.
Alguns autores defendem, para delineação do desvio de finalidade a
adoção de prazos por analogia, não sendo pacífico esse entendimento. Trataremos
ao longo deste trabalho das diferentes opiniões que tentam solucionar o problema,
fixando-nos por hora, à análise da justa caracterização do desvio de finalidade pela
inércia do poder expropriante em fazer uso do bem.
Entender que o não uso, não é suficiente para demonstrar ocorrência de
desvio de finalidade, é permitir, na prática, expropriar e não usar. Seria o mesmo que
______________ 28 A Retrocessão nas Desapropriações, p.26.
31
facultar ao Poder Público o direito de não usar quando titular de domínio, o que é
flagrantemente inconstitucional diante do princípio da função social da propriedade.
Desapropriar é atividade da Administração Pública, que se manifesta por
ato administrativo. Atividade esta que deve se resguardar estritamente às hipóteses
legais: se desapropria por necessidade ou utilidade pública ou por interesse social,
se desapropria nos estritos termos das normas jurídicas que disciplinam a matéria,
que serão sempre restritivas, se desapropria para dar efetividade ao interesse
público.
Partindo do pressuposto de que há indisponibilidade, pela Administração,
do interesse público, ressaltando o Professor Celso Antônio Bandeira de Mello29 que
“nela não há apenas um poder em relação a um objeto, mas, sobretudo, um dever,
cingindo o administrador ao cumprimento da finalidade, que lhe serve de parâmetro”,
não é possível conceber que, uma vez verificado o motivo autorizador da
expropriação na realidade fática, o bem simplesmente não seja utilizado.
Se o particular não atender à função social, poderá perder sua
propriedade, pois desatende ao fim maior de promover o bem estar coletivo, e o
Estado? Pode o Estado ignorar o mandamento constitucional e não fazer uso algum
do bem por ele expropriado? Uma vez desapropriado o bem, pelo princípio da
razoabilidade, a medida expropriatória era necessária ou indispensável à
coletividade, adequada e proporcional em sua extensão e intensidade para atender
o fim público. Não seria razoável permitir que o bem fosse expropriado com o único
intuito de posterior alienação, excepcionados os casos em que a revenda faz parte
da natureza da desapropriação.
Apenas haverá legitimidade da atividade da Administração quando o seu
agir ou não agir atender ao seu dever de curar pelo interesse público. O mesmo
interesse público que autorizou a atividade expropriatória, pode vir a exigir o
adiamento da implementação que ao imóvel se destina, quanto a isto não resta
dúvida; o que é vedado ao Poder Público é exorbitar do seu direito sob pretexto de
apenas estar aguardando momento oportuno para efetiva utilização do bem. A
respeito da caracterização do desvio de finalidade, citamos o seguinte julgado: ______________ 29 Curso de Direito Administrativo, p.759.
32
Afasta-se a hipótese de retrocessão, se não houve desvio de finalidade. Obra realizada e posteriormente abandonada não gera retrocessão (STJ, RE n° 13.363, rel. Min. Eliana Calmon).
Uma vez verificado o não uso do bem expropriado pela Administração em
tempo razoável (a razoabilidade se avaliará em cada caso em face do tempo médio
necessário para mover a máquina do Estado e implementar o destino
desapropriatório previsto), poderá o particular postular em juízo a caracterização do
desvio de poder e demais efeitos de lei. Neste contexto, lógico é afirmar que caberá
à Administração provar a liceidade do atraso em face do interesse público e a
persistência dos motivos que autorizaram a desapropriação, e ao expropriado, a
inércia da Administração. Oportuno é o teor do julgado a seguir citado:
A não utilização, pelo Poder Público, da coisa expropriada não autoriza, por si só, a presunção de violação do destino que a ele deve ser dado. Necessidade do exame, em cada caso concreto, das circunstâncias de que resultou a inércia do Poder Público (STF, RE n° 82.366, rel. Min. Moreira Alves).
Sobre o assunto diz a ilustre publicista Odete Medauar:30
Aceitar a não utilização do bem, sem que haja conseqüência alguma, sem que se dê ao expropriado possibilidade alguma de agir perante o Judiciário, é o mesmo que admitir a desapropriação sem necessidade pública, utilidade pública ou interesse social, o que seria inconstitucional. Para nós, não utilizar o bem significa não dar-lhe o destino previsto na declaração. A inércia da Administração corresponde à desistência tácita de aproveitar o bem ou revela a desnecessidade da expropriação realizada.
______________ 30 Destinação dos Bens Expropriados, p.125.
33
V- NATUREZA JURÍDICA DA RETROCESSÃO
1. Retrocessão como Direito Pessoal
O Código Civil de 1916 previu o instituto no artigo 1.150:
A União, o Estado ou o Município, oferecerá ao ex-proprietário o imóvel desapropriado, pelo preço porque o foi, caso não tenha o destino para que se desapropriou.
Por estar o referido artigo inserido no Capítulo que trata “Das Cláusulas
Especiais à Compra e Venda – Da Preempção ou Preferência”, a corrente defensora
da retrocessão como direito pessoal entende que o ex-proprietário, que perdeu o
seu domínio sobre o bem, não tem o direito de reivindicação e, sim, o direito de
preempção. O bem estaria definitivamente incorporado ao patrimônio público,
mesmo havendo nulidades no procedimento, podendo, conseqüentemente, o Estado
usar e dispor da coisa livremente, sem qualquer embaraço. O desvio de finalidade
ou a ausência dos motivos fundamentadores da desapropriação, não bastaria para
reversão da coisa expropriada. Neste sentido o seguinte julgado:
Viola os artigos 1.150 do Código Civil e 35 do Dec. 3.365/41, o acórdão que, em ação de retrocessão determina o retorno dos bens expropriados ao patrimônio do ex-proprietário. O Art. 35 da Lei de Desapropriações é muito claro, ao proclamar que os bens expropriados, uma vez incorporados à Fazenda Pública, não podem ser objeto de reivindicação, ainda que fundada em nulidade do processo de desapropriação. Qualquer ação, julgada procedente, resolver-se-á em perdas e danos (STJ, Ação Rescisória n° 769 CE – 1998/0035391-7, rel. Ministro José Delgado)
O Decreto-Lei nº 3.365/41, conforme já foi dito, além de não se referir
expressamente ao instituto, remeteu sua disciplina ao Código Civil.
A omissão da Lei Geral de Desapropriação somada à localização do
dispositivo no corpo do Código Civil, aproxima o instituto ao direito de preferência de
34
que goza o vendedor por ter pactuado a preempção. Tal raciocínio afasta a
retrocessão do atual ordenamento brasileiro.
O artigo 590 do Código Civil de 1916, diz:
também se perde a propriedade imóvel mediante desapropriação por necessidade ou utilidade pública.
Se de um lado a desapropriação corresponde à perda de propriedade, de
outro, é modo de aquisição de propriedade para o Poder expropriante. A
desapropriação portanto, dá ensejo à transferência da titularidade da propriedade,
que passa a compor definitivamente, o patrimônio da Administração que expropriou.
Segundo entendimento de Régis Fernandes de Oliveira,31 o Estado, ao exercer seu
Poder Expropriatório, estaria efetivando o “domínio eminente” que detém sobre
todos os bens.
Há entendimento no sentido de que o domínio do poder expropriante é
acompanhado de condição resolúvel, traduzindo-se esta como o cumprimento da
finalidade ensejadora da expropriação. Mas, em sentido diverso entende o ilustre
Ebert Chamoun,32 ao afirmar que se:
[...] a propriedade se transmuda do expropriado para o poder expropriante, é lícito concluir que a utilidade pública não é causa nem condição da desapropriação, no sentido de resolver a propriedade na hipótese de não se destinar a coisa desapropriada ao fim de utilidade pública.
Ainda segundo entendimento desse ilustre administrativista,33
fortalecendo a posição que defende ausência de condição resolutiva, está o fato de
que entre o decreto de desapropriação e a aplicação, ou não, do bem a interesse
público há um momento em que ocorre a transferência do domínio. Não sendo o
expropriado detentor do domínio, não há que se falar em reivindicação, a proteção
constitucional à propriedade estaria salvaguardando o legítimo proprietário, qual
seja, o Poder Expropriante.
______________ 31 Revista de Direito Administrativo – Retrocessão no Direito Brasileiro. p.19. 32 Da Retrocessão nas Desapropriações, p.35. 33 Ibid., p.36.
35
Em defesa dos que defendem o caráter meramente pessoal do direito
cabível ao retrocessionário, o seguinte julgado:
A retrocessão tem sido objeto de largas e vetustas controvérsias. Contudo, respeitadas as doutas opiniões em contrário, a retrocessão é a obrigação que se impõe ao expropriante de oferecer o bem ao expropriado, mediante a devolução do valor da indenização, quando não lhe der o destino declarado no ato expropriatório (STF, RE n° 95.123 – 7, rel. Min. Soares Muñoz).
A dicção do Código Civil de 1916 é clara ao se referir a “oferecimento”, e
por sua vez o novo Diploma Civil, ao tratar da matéria em seu artigo 519 se refere a
“direito de preferência”, estes dispositivos reforçam os argumentos dos que
entendem assistir ao ex-proprietário simples direito de natureza pessoal, a traduzir-
se em perdas e danos.
Com a não destinação do bem à finalidade que motivou o decreto
expropriatório não estaria resolvida a desapropriação, logo, o expropriante em tal
circunstância, não perderia a propriedade tampouco o expropriado a teria de volta.
Como a reivindicação é restrita ao detentor do domínio, não haveria no caso,
possibilidade para tal ação. Nesse sentido, ainda argumentam os seguidores dessa
corrente, os direitos reais são descritos taxativamente, posto que operam erga
omnes, logo, apenas o legislador pode lhes ampliar o rol. Portanto, visto que o ex-
proprietário não seria titular de direito real capaz de lhe legitimar a reivindicatória,
não seria também, titular de outro direito real autônomo.
Em defesa à corrente doutrinária para a qual a retrocessão se traduz em
direito pessoal, ensina Ebert Chamoun:34
O direito do ex-proprietário perante o poder desapropriante que não deu à coisa desapropriada o destino de utilidade pública, permanece, portanto, no direito positivo brasileiro, como direito nítido e irretorquivelmente pessoal, direito que não se manifesta em face de terceiros, eventuais adquirentes da coisa, nem a ela adere, senão exclusivamente à pessoa do expropriante. Destarte, o poder desapropriante, apesar de desrespeitar as finalidades da desapropriação, desprezando os motivos constantes do decreto desapropriatório, não perde a propriedade da coisa expropriada, que ele conserva em sua Fazenda com as mesmas características que possuía quando da sua aquisição.
______________ 34 Da Retrocessão nas Desapropriações, p.45.
36
Para os que argumentam nesse sentido, cabe ao expropriado diante do
não oferecimento oportuno do imóvel pelo expropriante que não destinou o bem
conforme previsão estampada no decreto expropriatório, satisfação sob forma de
indenização, visto restar lesado direito de natureza pessoal e o ressarcimento seria
modo de reparação do direito violado. A incorporação do bem ao patrimônio do
expropriante não guardaria qualquer dependência a têrmo ou condição.
“A preferência é além de direito pessoal, direito personalíssimo”,35 de tal
modo que não é passível de alienação nem de transmissão causa mortis.
Fortalecendo esse entendimento, artigo 1.157 do Código Civil de 1916:
O direito de preferência não se pode ceder nem passa aos herdeiros.
Discute-se ainda se o cabimento do ressarcimento em perdas e danos
apenas faz-se presente quando o Poder Público não destina o bem a nenhuma
finalidade pública ou se também cabe na hipótese de ter havido destinação pública,
mas diversa da prevista pelo decreto expropriatório. A questão apresentada já não
guarda tanta divergência. A maioria, senão a totalidade dos doutrinadores
atualmente se inclina a não reconhecer retrocessão ou perdas e danos, conforme
seja a posição doutrinária adotada, desde que o Poder Expropriante destine o bem a
uma finalidade pública, qualquer que seja ela, podendo ser inclusive diversa da
prevista pelo decreto expropriatório.
Ebert Chamoun36 vai além afirmando que:
o destino de utilidade pública não pode ser entendido como causa da desapropriação no sentido de resolver a propriedade do poder público; e que não é possível ao expropriado, quiçá ao Poder Judiciário, discutir se se verificam, ou não, em caso concreto, os fins de utilidade pública consignados no decreto expropriatório. A questão de utilidade pública não tem, destarte, qualquer repercussão processual; o novo fim de utilidade pública não precisaria ser prévia e judicialmente reconhecido.
O Professor José dos Santos Carvalho Filho,37 distingue inclusive, a
______________ 35 Ibid., p.66. 36 Ebert Chamoun, Da Retrocessão nas Desapropriações, p.72. 37 Ato Administrativo, p.696.
37
tredestinação lícita da tredestinação ilícita, aquela, seria justamente a utilização do
bem expropriado para finalidade pública diversa da anteriormente prevista, e não
ensejaria qualquer responsabilização, enquanto esta seria o desinteresse
superveniente da Administração que deixaria de conferir ao bem qualquer
destinação de caráter público.
Questão que também suscita discussões é a delimitação do momento em
que nasce, para o expropriado, o direito de pleitear indenização pelo não uso da
coisa segundo os fins que motivaram a desapropriação, momento este que
corresponde ao instante em que tem início para o expropriante o dever de oferecer a
coisa objeto de desapropriação. Falamos apenas em indenização, por estarmos,
neste capítulo nos restringindo à análise da corrente de pensamento que enxerga
cabível apenas a indenização ao ex-proprietário.
Do ponto de vista do Poder Público, o problema não oferece maiores
dificuldades, visto que nascerá o dever de oferecer ao ex-proprietário o bem
desapropriado mas não destinado ao fim que fundamentou a expropriação, quando
o expropriante decidir pela não aplicação da coisa à finalidade pública. Suscita
maiores dúvidas o delineamento do momento em que nasce o direito do ex-
proprietário de exigir perdas e danos diante do descumprimento da prerrogativa que
lhe assistia.
Quando o Poder Público, por atos inequívocos, deixa clara sua intenção
de não destinar o bem à satisfação do interesse público, não oferecerá maiores
dificuldades a produção de prova que demonstre o direito do ex-proprietário à
indenização. O que dificulta a questão probatória é o comportamento duvidoso do
Poder Público, quando não revela sua intenção de forma ostensiva. Hipótese que se
configuraria por exemplo, na omissão do Poder Público que nada realiza no bem.
Ocorrendo tal situação, avulta em importância o estudo do prazo que teria
a Administração para destinar a coisa ao fim que fundamentou o decreto
expropriatório. Caso contrário, estaria garantido ao Poder Público, ad eternum o
direito de afirmar que sua demora, por mais longa que fosse, não significaria
desistência da utilização do bem, o que por certo configuraria abuso do poder
expropriatório.
A Lei foi omissa ao não determinar um prazo dentro do qual o Poder
38
Público deve fazer uso da coisa, nem o Código Civil, nem a Lei Geral de
Desapropriações, apontaram clara solução para o problema. Aqui encontramos
também, divergência entre os autores. Há os que defendem, a aplicação por
analogia, do prazo de caducidade a que se refere o artigo 10 do Decreto-Lei nº
3.365/41:
A desapropriação deverá efetivar-se, mediante acordo ou intentar-se judicialmente, dentro de cinco anos, contados da data da expedição do respectivo decreto e findos os quais este caducará.
Muitas porém, são as opiniões em contrário. Argumenta o Professor Ebert
Chamoun:38
[...] se trata de uma analogia injustificável. Afiguram-se-nos diferentes objetivos e os efeitos do prazo de caducidade do decreto desapropriatório e do eventual prazo para efetivação do destino de utilidade pública. [...] A norma que estabelece o prazo de caducidade do decreto de desapropriação e a que implicitamente ordena a aplicação adequada do bem desapropriado salvaguardam direitos profundamente diferentes, respectivamente, o direito de propriedade, cuja segurança e estabilidade ficariam comprometidas ante propósitos não efetivados do poder público, e um direito pessoal, de preferência, desarmado do poder de recuperação da coisa.
A posição que vem prevalecendo e que já era defendida pelo doutrinador
acima citado, é de que o direito do expropriado independe de qualquer prazo, e de
que por outro lado, o Poder Público não está obrigado a dentro de algum intervalo
de tempo, implementar a utilização do bem. O que vai determinar a desistência da
utilização da coisa pela Administração e o conseqüente direito à indenização pelo
desapropriado, é a análise das circunstâncias no caso concreto.
Nada obsta que entre a efetiva desapropriação e o emprego do bem à
finalidade pública, haja intervalo de tempo. Pode ser conveniente que as obras não
se iniciem de imediato, tal pode nem ser possível. Por outro lado, esse intervalo de
tempo deve ser examinado à luz da razoabilidade, afinal não seria justo permitir que
o Poder Público ficasse inerte por longos anos e quando se visse interpelado pelo
particular simplesmente afirmasse que dentro em pouco as obras estariam iniciadas,
afastando com isso o direito do expropriado ao ressarcimento.
______________ 38 Da Retrocessão nas Desapropriações, p.81.
39
Cabe salientar que a lei, em determinados casos, apresenta desde logo
os prazos dentro dos quais o Poder Público deve, necessariamente fazer uso do
bem:
a) na desapropriação por interesse social vem fixado prazo de dois anos para que
se iniciem providências de aproveitamento do bem (artigo 3º da Lei nº 4.132/62);
b) na desapropriação para reforma agrária vigora o prazo de três anos, contados
do registro do título de domínio, para que o expropriante destine o bem a esta
finalidade (artigo 16 da Lei nº 8.629/93);
c) na desapropriação-sanção, com pagamento em títulos da dívida pública, prevista
na Constituição Federal, artigo 182, § 4º, e disciplinada no artigo 8º da Lei nº
10.257/2001 – Estatuto da Cidade, o Município deve realizar o adequado
aproveitamento do imóvel no prazo máximo de cinco anos, contados de sua
incorporação ao patrimônio público, sob pena de incorrer, o Prefeito, em
improbidade administrativa (artigo 52, inc. II, da Lei nº 10.257/2001).
Quanto ao prazo para que o expropriado exercite seu direito de
preferência, dispõe o artigo 1.153 do Código Civil de 1916:
O direito de preempção caducará, se a coisa for móvel, não se exercendo nos três dias, e, se for imóvel, não se exercendo nos 30 dias subseqüentes àquele em que o comprador tiver afrontado o vendedor.
Estes prazos apontados pela lei são de caducidade ou decadência,
prazos fatais, insuscetíveis, de suspensão ou interrupção. Tendo sido notificado o
ex-proprietário para que exerça o direito de preferência e não o exercendo dentro do
prazo apontado pela lei, este direito estará irremediavelmente prejudicado, não
sendo possível ao expropriado qualquer pedido de reparação.
Pode ocorrer ainda, que o bem seja parcialmente aproveitado para o fim
de interesse público. As áreas remanescentes devem ser oferecidas ao ex-
proprietário? Em princípio o Poder Público tem o dever de oferecê-las ao
desapropriado e o preço será proporcional ao valor de tais áreas. E diante do
40
descumprimento de tal dever, caberá ao particular pleitear perdas e danos, que
traduzirão o caráter parcial da não utilização. Ebert Chamoun39 esclarece que:
não autorizam o pedido de indenização, as áreas restantes insuscetíveis de constituir unidade econômica e, portanto, unidade jurídica. O imóvel, que as contém, há de ser, então, considerado como juridicamente indivisível.
Há que se indagar se o bem desapropriado fica indefinidamente obrigado
ao destino público ou esta destinação pode ser transitória. O bem havendo sido
aproveitado à atividade de interesse público, findada sua utilização por ter sido esta
meramente passageira, assistiria ao desapropriado o direito de preferência, ou seja,
o Poder Público estaria obrigado a oferecer o bem depois de dele ter feito uso? A
opinião que prevalece é a de que o uso transitório do bem não autoriza o exercício
do direito de preferência.
O dever de oferecer o bem nasce para a Administração quando esta
desiste de sujeitar o bem à finalidade pública, tendo esta sido satisfeita, ainda que
para tanto o bem tenha sido utilizado apenas transitoriamente, não há que se falar
em violação ao direito de preferência ou na obrigação de oferecimento do bem pelo
poder expropriante, posto que a desapropriação não terá sido em vão.
2. Retrocessão como Direito Misto
Alguns doutrinadores, não se filiando nem à corrente que entende a
retrocessão como direito real, nem tampouco a que a define como direito pessoal,
defendem a natureza mista do direito. Para estes autores, ao expropriado cabe a
ação de preempção ou preferência ou, caso prefira, o pleito de perdas e danos.
Maria Sylvia Zanella di Pietro40 afirma se referindo a esta corrente
doutrinária, que:
______________ 39 Da Retrocessão nas Desapropriações, p.86. 40 Direito Administrativo, p.173.
41
[...] em princípio, a retrocessão é um direito real, já que o artigo 1.150 do Código Civil manda que o expropriante ofereça de volta o imóvel; pode ocorrer no entanto, que a devolução do imóvel tenha se tornado problemática, em decorrência de sua transferência a terceiros, de alterações nele introduzidas [...], nesse caso, pode o ex-proprietário pleitear indenização [...].
O principal argumento dos defensores desta posição é a possibilidade de
mudança na situação fática do bem, que pode acabar por tornar problemático o
retorno do bem ao expropriado. O publicista Carlos Alberto Dabus Maluf,41 adere a
esta corrente de pensamento entendendo ser a que melhor resolve a questão.
Celso Antônio Bandeira de Mello critica este entendimento afirmando que
apesar de tal corrente doutrinária ter acertadamente reconhecido a presença de um
direito real, equivocadamente imaginaram haver direito de natureza mista. Para este
doutrinador, o que se pode perceber é a existência de “[...] dois direitos
perfeitamente distintos e que podem ser alternativamente (e excludentemente)
utilizados.”42
3. Preempção Legal e Preempção Convencional
Antes de analisarmos a retrocessão como direito real, teceremos alguns
comentários a fim de delimitarmos os campos de incidência da preempção legal e da
preempção convencional, institutos que não se confundem. Tal abordagem faz-se
oportuna, tendo em vista fortalecer o entendimento dos que enxergam na
retrocessão verdadeiro direito real e postulam pela má localização do instituto no
Código Civil.
A preempção, como pacto acessório do contrato de compra e venda, tem
como origem uma convenção, diferentemente da preempção legal, que advém do
texto de lei. A primeira apenas existirá se expressamente pactuada pelo vendedor e
______________ 41 Teoria e Prática da Desapropriação, p.272. 42 Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, p.765.
42
comprador, já a segunda surge independentemente da vontade do expropriado ou
do expropriante.
A preempção convencional exerce seus efeitos quando o vendedor aliena
a coisa que adquiriu, já o direito que alcança ao ex-proprietário, independe de
alienação da coisa, devendo ser exercido dentro do prazo legal de caducidade, a
partir do momento em que se comprova o não aproveitamento do bem expropriado.
Outra diferença que se pode apontar é no tocante ao preço a ser pago. O
que o vendedor, no exercício do direito de preempção, terá que pagar é o
correspondente ao oferecido por terceiro (artigo 1.155 do Código Civil de 1916). Já o
que o desapropriado deverá pagar é o correspondente ao pelo qual a coisa foi
desapropriada, consoante redação do artigo 1.15043 do anterior Diploma Civil.
A preempção legal, para alguns autores, confunde-se com a retrocessão,
sendo expressões sinônimas. Mas o que importa ressaltar é a diferença abissal que
há entre a preempção convencional e a preempção legal. A discussão em torno da
retrocessão, tem muito a dever à sua má localização no Código Civil, situada entre
os dispositivos que tratam da preempção ou preferência, ao invés de figurar logo
após o artigo 59044 que versa sobre a desapropriação.
Deve restar claro que em muito divergem o direito regulado no artigo
1.150 e o que é tratado pelo artigo 1.14945. Este é pacto de compra e venda, aquele,
resulta de lei e é indubitavelmente, instituto de Direito Público, embora inserido no
Código Civil.
______________ 43 Art. 1.150 do Código Civil de 1916 – A União, o Estado, ou o Município, oferecerá ao ex-proprietário o imóvel desapropriado, pelo preço porque o foi, caso não tenha o destino para que se desapropriou. 44 Art. 590 do Código Civil de 1916: também se perde a propriedade imóvel mediante desapropriação por necessidade ou utilidade pública.
Art. 591 do Código Civil de 1916: em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina (Constituição Federal, artigo 80), poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde o bem público o exija, garantindo ao proprietário o direito à indenização posterior.
Parágrafo único: Nos demais casos o proprietário será previamente indenizado, e, se recusar a indenização, consignar-se-lhe-à judicialmente o valor. 45 Art. 1.149 do Código Civil de 1916 – A preempção, ou preferência, impõe ao comprador a obrigação de oferecer ao vendedor a coisa que aquele vai vender, ou dar em pagamento, para que este use de seu direito de prelação na compra tanto por tanto.
43
4. Retrocessão como Direito Real
Os que defendem ser o instituto da retrocessão direito de natureza real,
afirmam que o ex-proprietário que perdeu o domínio do bem, tem direito a recuperar
sua propriedade diante da não destinação pública do mesmo. Tal é assim porque a
regra em nosso sistema jurídico é o respeito à propriedade privada, ressalvadas as
hipóteses expressamente previstas em lei.
Neste sentido o direito de retrocessão seria corolário do preceito constitucional garantidor da propriedade, reconhecendo-se ao antigo dono o direito de reaver a coisa expropriada, quando tivesse ocorrido desvirtuamento finalístico no procedimento expropriatório.46
Seus adeptos contestam a vedação contida no Decreto-Lei nº 3.365/41,
argumentando que toda lei deve ser interpretada de acordo com o anseio do
legislador quando da sua elaboração. No caso específico da retrocessão, o
legislador quis proteger a propriedade que já estiver empregada em obra ou serviço
de utilidade pública, ainda que não aquele disposto no decreto expropriatório, de
modo que, desde que efetuada a desapropriação e o bem esteja sendo utilizado
legalmente, estará de modo definitivo, incorporado à Fazenda Pública, insuscetível
de reivindicação. Refletindo essa corrente de pensamento, o seguinte julgado:
Ação de retrocessão. Natureza real e não pessoal. Prescrição não regida pelo Decreto 20.910, e sim pelo art. 177 do Código Civil. O termo inicial surge quando caracterizado o desvio de finalidade da desapropriação, pela reintegração da coisa desapropriada na classe das coisas privadas [...] (STF, RE n° 104.591 – 4, rel. Min. Octavio Gallotti).
A preempção, conforme já analisado, é instituto típico de Direito Civil,
decorrente de contrato de compra e venda. A retrocessão, ao contrário, é matéria de
Direito Público, consectário da garantia constitucional do direito de propriedade. O
respeito à propriedade constitui um dos corolários do Estado Democrático de Direito.
Mas tal garantia não vem revestida de caráter absoluto, cedendo diante da
______________ 46 Hélio Moraes de Siqueira, A Retrocessão nas Desapropriações, p.53.
44
supremacia do interesse público sobre o particular.
Admitir que a retrocessão receba o delineamento dado à preempção
convencional é restringir-lhe o alcance, desconfigurando o instituto.
O direito de propriedade não se extingue com a desapropriação, permanecendo latente, pronto para ser exercido no momento em que o poder expropriante deixar de dar à coisa o emprego que justificou o ato. Ausente a utilidade pública do ato expropriatório, passa ele a carecer do seu fundamento constitucional, o que possibilita a sua anulação.47
O fundamento material da retrocessão está na Constituição, que garante
o direito de propriedade. Só a necessidade ou utilidade públicas, bem como o
interesse social, autorizam a desapropriação. Afora desses limites, a faculdade de
expropriar estará contaminada pela inconstitucionalidade. Há autores que
salientando o caráter excepcional da desapropriação, entendem o domínio do
Estado como resolúvel, sujeito à condição que se traduziria no emprego da coisa na
finalidade pela qual foi desapropriada.48 49
Entretanto há os que entendem que não se afigura no caso presença de
condição resolutiva,
porque condição é cláusula que resulta da vontade das partes e subordina o efeito do ato jurídico a evento futuro e incerto (CC, artigos 114-117). Entendemos, entretanto, que não será preciso recorrer a esse artifício para justificar a retrocessão. Esta decorre do próprio descumprimento das finalidades da desapropriação e está implícita na Carta Magna do País50.
Diz o artigo 114 do Código Civil de 1916:
Considera-se condição a cláusula que subordina o efeito de um ato jurídico a um evento futuro e incerto.
______________ 47 Márcia Guasti Almeida de C. Gigante, Revista de Direito Público, n° 91, p.124. 48 Manoel Eugênio Marques Munhoz, Revista de Direito Público, vol. 11, p.69. 49 Segundo Hélio Moraes de Siqueira (p.32), “A ausência da causa ou fim legal para a desapropriação gera o chamado vício do desvio de poder e atua como verdadeira condição resolutiva do domínio adquirido pela desapropriação”. Adiante o autor conclui: “o domínio somente se consolidará e a coisa será definitivamente incorporada ao patrimônio público, se preenchido o fim específico do ato expropriatório. Caso contrário, o vício original contaminará todo o procedimento e o domínio se resolverá retornando as partes ao statu quo ante, possibilitando a reivindicação pelo expropriado através da via prevista no artigo 313 do C.P.C”. 50 Gilmar Ferreira Mendes, Revista de Direito Público, nº 86, p.97.
45
Verifica-se desde logo que a finalidade prevista no decreto expropriatório
não pode caracterizar uma condição implícita, pois que na declaração de ser
aplicada a coisa a um fim determinado não se encerra nenhum evento incerto.
O artigo 117 do Código Civil afirma que:
Não se considera condição a cláusula que não derive exclusivamente da vontade das partes, mas decorra necessariamente da natureza do direito a que acede.
Este dispositivo ilumina a questão fortalecendo o entendimento de que
não é por via da condição que se irá explicitar o direito que faz jus o ex-proprietário
injustamente expropriado.
Quando o poder expropriante deixa de dar à coisa o emprego que
justificou a desapropriação, está na realidade subtraindo ao ato declaratório de
utilidade pública o seu fundamento constitucional e possibilitando sua anulação. A
raiz da retrocessão não será encontrada no campo do Direito Civil, mas sim do
Direito Administrativo, especialmente quando se parte do raciocínio de que a
desapropriação longe está de configurar “venda forçada”, mas sim ato de soberania
do Estado. A “venda” pressupõe autonomia da vontade, que simplesmente inexiste
no Direito Público, ainda que o particular consinta com a expropriação, dispensando
análise jurisdicional e entabulando acordo com o Poder Público, nem assim
estaremos diante de situação em que tenha imperado a vontade livre do particular,
posto que foi compelido pela Administração ao ato expropriatório, resolvendo
apenas abreviar o procedimento, compondo desde logo acordo quanto ao preço.
Tanto assim, que a doutrina majoritária é no sentido de que a desapropriação
consensual não afasta a retrocessão.
Em resposta aos que entendem que o ex-proprietário estaria impedido de
intentar a reivindicatória por não mais ser detentor do domínio, afirmam os que
defendem a natureza real da retrocessão, que quando o expropriado postula a
retrocessão do bem, não está reivindicando-o, mas pleiteando o reconhecimento da
invalidade da desapropriação. A retomada do bem será conseqüência da ineficácia
do ato declaratório, por inexistirem os motivos que lhe deram causa.
46
A retrocessão deita raiz na Constituição Federal, mais precisamente no
artigo 5º, inc. XXII,51 que garante o direito à propriedade. Logo, ainda que a
legislação infraconstitucional não trate o tema com a especificidade que merece, a
Carta Magna não permite dúvidas quanto à sua existência e força. Desobedecido o
fim do ato declaratório de utilidade pública ou interesse social, não há mais razão
para o bem permanecer em poder e sob domínio do expropriante. Merece destaque
o brilhante voto do Ministro Moreira Alves:
A tese contrária – a da eficácia meramente pessoal do direito do desapropriado quando o Estado desvirtua a destinação do bem expropriado –, se baseia, com a vênia dos que a seguem, na interpretação meramente topográfica e literal dos artigos 1.150 do Código Civil e 35 do Decreto-Lei n° 3.365/41, sem se levar em conta a excepcionalidade do princípio constitucional em que se assenta o direito de desapropriação em favor do Estado. (STJ, Ação Rescisória n° 1098 – RTJ 104/468)
Diante da não destinação adequada do bem, surge para o expropriante o
dever de oferecê-lo ao expropriado pelo preço que traduzir o valor atual da coisa,
caso este oferecimento não seja realizado, terá o ex-proprietário o direito de fazer
uso da ação de retrocessão. Segundo José Carlos de Moraes Salles,52
ação reivindicatória ele não teria, realmente, porque, com a desapropriação, perdeu o domínio. Todavia, tem ação de retrocessão para pleitear a reincorporação do bem ao seu patrimônio.
Os que negam o caráter real da retrocessão, o fazem por estarem
apegados à análise literal do disposto pelo artigo 35 do Decreto-Lei nº 3.365/41, que
afirma estarem definitivamente incorporados à Fazenda Pública, os bens
expropriados e que qualquer demanda encontrará solução no pagamento de perdas
e danos. Tal dispositivo só tem legitimidade se entendido como cabível apenas nas
hipóteses em que apesar de haver irregularidade na desapropriação, os fins maiores
pretendidos pela lei, ou seja, o atendimento do interesse público, estivesse presente. ______________ 51 Art. 5, XXII, da Constituição Federal – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXII – é garantido o direito de propriedade; 52 A Desapropriação à Luz da Doutrina e da Jurisprudência, p.836.
47
O que pretendeu o legislador por certo, não foi legitimar desapropriação
contaminada de inconstitucionalidade por não atender aos pressupostos exigidos
pela Carta Magna, mas impedir a devolução de coisas já empregadas em obra ou
serviço de utilidade pública. Diante da impossibilidade da devolução do bem,
justificada estaria a indenização.
A nulidade do processo, de seu lado, não pode impedir a devolução em espécie, pois um processo nulo não produz o efeito de transferir validamente a propriedade. E se não há transferência válida, é claro que a coisa não se incorpora à Fazenda Pública.53
Caso não bastassem tais argumentos, há o Princípio da Supremacia da
Constituição, frente o qual restam enfraquecidos quaisquer dispositivos do Código
Civil (anterior e atual), bem como os do Decreto-Lei nº 3.365/41.
Parece-nos, em sintonia com tais inobjetáveis argumentos, que não se pode negar ao ex-proprietário o direito de reaver o bem [...], e é isto que se constitui na retrocessão propriamente dita, direito de natureza real. De resto, é a orientação jurisprudencial dominante na atualidade.54
Faz-se necessário reafirmar que o fato de se encarar a retrocessão como
direito real, não significa afastar o dever do expropriante de oferecer a coisa quando
de sua desistência em fazer uso do bem para atendimento de uma finalidade
pública; o dever de oferecimento que está previsto no artigo 1.150 do Código Civil de
1916, está presente, inclusive para os que defendem a natureza real da retrocessão.
Conseqüentemente, caso viole tal dever, o poder expropriante pode ser
compelido ao pagamento de perdas e danos, tal como determina o artigo 1.156 do
Código Civil de 1916. Não há nisso qualquer vício ou sinal de inconstitucionalidade,
como nos ensina o Professor Celso Antônio Bandeira de Mello,
inconstitucional, isto, sim – o que já é outra coisa –, seria negar ao ex-proprietário o direito de retrocessão, isto é, o de reaver o bem, sub color de que, violada tal prelação, caber-lhe-ia unicamente direito a perdas e danos.55
______________ 53 Gilmar Ferreira Mendes, Revista de Direito Público, nº 86, p.96. 54 Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, p.763. 55 Ibid., p.764.
48
Assistirá ao expropriado o direito de optar livremente, entre a ação de
retrocessão a fim de reaver o bem, ou pleitear perdas e danos. Não há, portanto,
choque entre o determinado pelo Código Civil e o que dispõe a Constituição, de
cada uma destas fontes, nasce um direito que vem em socorro do expropriado que
haja sido injustamente despojado de sua propriedade.
Cabe agora apresentarmos a retrocessão em cada um de seus aspectos,
tal como a analisam os adeptos desta corrente doutrinária. Quanto ao prazo que
assiste ao expropriado quando afrontado pelo poder expropriante a fim de que
exerça seu direito de preferência, reza o artigo 1.153 do antigo Código Civil, que o
ex-proprietário terá 3 dias, no caso de bens móveis, ou 30 dias, no caso de imóveis,
contados da data em que a Administração lhe houver notificado.
Conforme já dito em tópicos anteriores deste trabalho, a chamada
“tredestinação lícita”, ou seja, destinação pública diversa da prevista pelo decreto
expropriatório, não dá ensejo à retrocessão, consoante entendimento pacífico da
jurisprudência; também assim quando a obra houver sido realizada em sua parte
substancial. Neste sentido o seguinte julgado:
A jurisprudência do STJ pacificou-se no sentido de que , independentemente de configuração de desvio de finalidade no uso do imóvel desapropriado, havendo sua afetação ao interesse público, não cabe pleitear a retrocessão, mas a indenização, se for o caso, por perdas e danos, se configurado o desvirtuamento do decreto expropriatório (STJ, AgRg nos Embargos de Divergência em RESP n° 73.907, rel. Min. Castro Meira).
Chama a atenção o que dispõe o artigo 5º, § 3º do Decreto-Lei nº
3.365/41:
Consideram-se casos de utilidade pública:
§ 3º. Ao imóvel desapropriado para implantação de parcelamento popular, destinado às classes de menor renda, não se dará outra utilização nem haverá retrocessão.
Aqui, duas explicações são possíveis, ou o legislador se referiu à
retrocessão restritivamente, ou seja, unicamente como direito real, restando
49
portanto, ao expropriado o direito a perdas e danos, ou, como defende Celso
Antônio Bandeira de Mello,56
melhor exegese seria a de entender-se que quaisquer das violações supostas (emprego do bem a destino outro que não o parcelamento popular), ensejarão que o ex-proprietário e o Ministério Público, mediante ação civil pública, ou qualquer cidadão , por via de ação popular (por ofensa à moralidade administrativa), poderão acionar o expropriante para anular eventual venda ou mudança de destinação, exigindo judicialmente que se cumpra o destino para o qual se desapropriou o bem.
Quanto ao momento em que nasceria a obrigação do expropriante de
oferecer o bem ao desapropriado, conforme já foi dito, há os que defendem a
adoção, por analogia, do prazo de 5 anos, previsto para caducidade da declaração
de utilidade pública, em contraponto da posição majoritária que entende atender
melhor à finalidade da lei, a análise do caso concreto, que possibilitaria determinar o
momento exato em que o Poder Público realmente desistiu de destinar o bem ao
interesse público, tal podendo ocorrer antes ou depois de cinco anos.
Ainda discute-se acerca da prescrição que deveria ser observada quanto
ao direito do expropriado. Celso Antônio Bandeira de Mello,57 que percebe a
existência de dois direitos distintos e excludentes que assistem ao desapropriado –
perdas e danos e retrocessão – entende também que há dois prazos prescricionais,
cada um relacionado a um dos direitos mencionados. Quanto às perdas e danos, a
prescrição seria de cinco anos em obediência ao disposto pelo artigo 1º do Decreto
nº 20.910, de 6 de janeiro de 1932:
As dívidas da União, Estados e dos Municípios, bem assim todo e qualquer direito ou ação contra a Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, seja qual for sua natureza, prescrevem em cinco anos, contados da data do ato ou fato do qual se originaram.
Quanto à retrocessão, seria observado prazo prescricional das ações
reais, ou seja, 10 anos entre presentes e 15 entre ausentes. Cumpre salientar, no
entanto, que essa questão permanece tormentosa, fomentando discussões, há por
exemplo os que defendem a aplicação do prazo determinado para o usucapião sem ______________ 56 Curso de Direito Administrativo, p.767. 57 Curso de Direito Administrativo, p.769.
50
justo título e boa fé, que é de 20 anos.
No tocante ao cálculo das perdas e danos, estas deveriam refletir a
diferença entre o valor pago quando da desapropriação a título de indenização e o
valor atual do bem, que corresponderia à valorização sofrida pelo bem durante o
tempo em que esteve fora do domínio do particular. Além desse quantum, sobre o
qual, aliás, pouco se discute, há na doutrina os que se posicionam no sentido na
inclusão no cálculo das perdas e danos, dos lucros cessantes, como Celso Antônio
Bandeira de Mello,58 em sentido contrário, José Carlos de Moraes Salles.59 Este
autor, sobre a retrocessão, escreveu com muita propriedade que
se o expropriado recebeu, no momento em que se concretizou a desapropriação, a justa indenização em dinheiro, não tem sentido falar-se em ressarcimento de perdas e danos decorrentes do descumprimento do dever de oferecimento a que alude o artigo 1.150 do CC. Com a indenização recebida quando da desapropriação, o expropriado recompôs o desfalque sofrido em seu patrimônio e pôde dispor da quantia correspondente ao valor do bem expropriado, do modo que melhor lhe aprouvesse. Falar-se, pois, em perdas e danos advindos da desobediência ao disposto no artigo 1.150 do CC, parece-nos mero expediente a justificar a injustificável não devolução do bem expropriado ao ex-proprietário.
Quanto à transmissibilidade do direito que assiste ao retrocessionário, há
divergência doutrinária. Os que se posicionam pela impossibilidade da transmissão,
baseiam-se no disposto pelo artigo 1.157 do Código Civil de 1916; já os que
defendem a transmissão argumentam que tal dispositivo legal apenas abrange os
casos de preferência ou preempção no Direito Privado, admitir sua incidência no
âmbito do Direito Público seria restringir a proteção conferida constitucionalmente à
propriedade. Pela transmissibilidade, argumenta com brilhantismo, Régis Fernandes
de Oliveira,60 “As ações personalíssimas são de interpretação estrita. Apenas
quando a lei dispuser que não se transmite o direito causa mortis é que haverá
impossibilidade jurídica da ação dos herdeiros ou sucessores a qualquer título”.
Dentre os doutrinadores que defendem a natureza real do instituto da
retrocessão, também o entendimento é pacífico no sentido de que nada há na lei
______________ 58 Curso de Direito Administrativo, p.769. 59 A Desapropriação à Luz da Doutrina e da Jurisprudência, p.848. 60 Revista de Direito Administrativo – Retrocessão no Direito Brasileiro. p.31.
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civil ou na Constituição que aponte para a obrigatoriedade da vinculação eterna do
bem expropriado ao interesse público, de modo que tendo cumprido sua função,
qual seja a de satisfazer à coletividade, pode ser posteriormente desvinculado desse
caráter, sem que isto lhe contamine de qualquer irregularidade. Nessa hipótese não
há que se falar em retrocessão, posto não ter sido o bem desapropriado inutilmente.
Cumpre ressaltar que nem toda revenda de bem expropriado ensejará a
retrocessão. Em algumas modalidades expropriatórias, a revenda figura como
conseqüência natural. Exemplo disso é a desapropriação para fins urbanísticos,
prevista no artigo 5º, “i”, do Decreto-Lei nº 3.365/41, e a desapropriação por zona
efetuada para que o Estado absorva a valorização resultante de obra pública.
Quanto a esta última, cumpre observar que há na doutrina quem a considere
inconstitucional, visto que para tal finalidade a Constituição já haveria previsto a
contribuição de melhoria, não sendo necessário portanto, adoção de medida mais
gravosa, exemplo de defensor desse entendimento é o Professor Celso Antônio
Bandeira de Mello.61
No Estado de São Paulo, o Tribunal de Justiça é competente para julgar
os recursos interpostos nas ações de retrocessão. Por força do determinado pelo
Provimento 50/98 da Presidência do Tribunal de Justiça (Anexo I, Competência da
Seção de Direito Público, incisos V e VII), compete à referida Seção o julgamento
dos recursos relativos às ações de desapropriação e às de responsabilidade civil do
Estado. Somado a isto, o Código de Processo Civil estabelece que:
Art. 108: a ação acessória será proposta perante o juiz competente para a ação principal.
A ação de retrocessão é acessória em relação à ação de desapropriação
que lhe deu causa, logo, o Tribunal de Justiça tem competência para apreciar os
recursos interpostos nas ações de retrocessão.
______________ 61 Curso de Direito Administrativo, p.758.
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VI- RETROCESSÃO FRENTE AO CÓDIGO CIVIL DE 2002
Cumpre dizer logo no início deste capítulo, da impropriedade de tema de
ordem pública vir regulado em Código de Direito Privado, mais adequado seria que o
assunto, de caráter eminentemente público, encontrasse regulamentação em lei
específica. Ainda mais gravosa é a localização dos dispositivos atinentes à
retrocessão no corpo do Código Civil, equívoco mantido pelo Código de 2002, e que
tem alimentado inúmeras discussões sobre a existência do instituto no ordenamento
jurídico brasileiro bem como sobre sua natureza jurídica.
Apesar de não ter respondido ao principal dos questionamentos que vem
permeando a matéria, qual seja, a natureza jurídica do direito que alcança ao
retrocessionário, o novo Diploma Civil, respondeu a algumas questões. Dispunha o
artigo 1.150 do Código Civil de 1916:
A União, o Estado ou o Município, oferecerá ao ex-proprietário o imóvel desapropriado, pelo preço por que o foi, caso não seja destinado para que se desapropriou.
Já o artigo 519 do Código Civil de 2002, estatui:
Se a coisa expropriada para fins de necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, não tiver o destino para que se desapropriou, ou não for utilizada em obras ou serviços públicos, caberá ao expropriado direito de preferência, pelo preço atual da coisa.
Há, portanto, nítidas diferenças no tocante à disciplina que recebe o
instituto da retrocessão, pelos dois Diplomas.
O Código Civil de 1916, ao tratar do assunto, determina que o quantum a
ser pago pelo ex-proprietário, quando da retrocessão, deve ser o correspondente ao
“preço pelo qual o imóvel foi desapropriado”. Coube a doutrina e jurisprudência,
embasadas pela vedação ao enriquecimento sem causa, defender que o valor a ser
pago pelo expropriado deveria traduzir o preço atual do bem.
O Código Civil de 2002, desde logo já dispõe que o valor a ser pago será
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o “preço atual da coisa”. Em outras palavras, em havendo alteração no valor do bem,
para mais ou para menos, tal variação será levada em conta na determinação do
numerário a ser desembolsado pelo ex-proprietário a fim de reaver a coisa.
Outra relevante inovação, que tal como a anteriormente apresentada,
também reflete tendência doutrinária e jurisprudencial, é a admissão expressa de
destinação diversa do bem, desde que tendente à satisfação do interesse público.
Desse modo silenciou qualquer resquício de discussão que pairasse sobre a
possibilidade de retrocessão diante da destinação pública, porém outra que não a
prevista pelo decreto expropriatório. Claro está que havendo destinação pública,
qualquer que seja esta, impossibilitada estará a retrocessão. Evidente é o acerto da
norma, já que não se pode conceber a Administração engessada ao destino
especificamente descrito quando da desapropriação, tendo em vista a dinâmica que
envolve as necessidades públicas, logo, legítima será a atuação do administrador
público que visando atendimento do interesse coletivo, destina o bem desapropriado
a fim diverso do que havia sido previsto.
Questão que possivelmente venha alimentar as discussões acerca da
natureza jurídica da retrocessão, é a da não inclusão no Código Civil de 2002 da
obrigatoriedade do oferecimento do bem ao ex-proprietário, tal como fazia o Diploma
anterior. Tal redação, pode numa primeira leitura, especialmente para os que
sempre tenderam a conceber a retrocessão como simples direito pessoal, significar
que ao expropriado caberá tão só o direito de preferência. Esta interpretação feriria o
constitucionalmente disposto, por isso preferimos entender que o direito de
preferência ao qual fez menção o legislador, diz respeito à preempção legal, sobre a
qual já discorremos neste trabalho, e que em muito se afasta da preempção
convencional.
No tocante à preempção ou preferência, o novo Código Civil, dispõe em
seu artigo 513, parágrafo único que o prazo para exercer o direito de preferência
não poderá exceder a cento e oitenta dias, se a coisa for móvel, ou a dois
anos, se imóvel. Este dispositivo atine tão só à preempção convencional, porque
conforme já salientado ao longo desta pesquisa, no contexto desapropriatório,
problemática é a fixação de prazo, já que a realidade fática pode, e geralmente o
fará, dificultar a delimitação do momento em que nasceu o desinteresse do Poder
Público pelo bem objeto do decreto expropriatório.
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Acaso a nova redação do Código Civil tenha como efeito a mudança do
tratamento que o instituto da retrocessão tem recebido nos Tribunais, qual seja, a de
direito real, inúmeras serão as conseqüências. Entendido como simples direito
pessoal, como aliás, já foi a concepção predominante, haverá reflexos quanto à
prescrição e à transmissibilidade do direito, dentre outros.
Mantido o entendimento atual que enxerga na retrocessão direito real, o
prazo prescricional será de dez anos, consoante o estatuído pelo artigo 205 do
Código Civil de 2002,62 que não mais diferencia entre presentes e ausentes para a
delimitação deste prazo. Entendida como direito pessoal, o prazo prescricional será
o de cinco anos, previsto pelo Decreto-Lei 20.910, para as ações contra a Fazenda
Pública.
Esperamos que seja vencedora a interpretação que garante a soberania
do texto constitucional que apenas permite a desapropriação quando imperiosa ao
atendimento da utilidade ou necessidade pública ou interesse social, de modo que
destituída de tais pressupostos estará desprovida de legitimidade, cabendo por
conseguinte, a devolução do bem ao particular injustamente afastado de sua
propriedade.
______________ 62 Art. 205 do Código Civil de 2002 – A prescrição ocorre em 10 (dez) anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor.
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CONCLUSÃO
Após analisarmos o instituto da retrocessão, sem a pretensão de termos
esgotado o assunto, parece-nos não restar dúvida quanto à sua existência no
ordenamento jurídico brasileiro. A retrocessão, indubitavelmente, deita raiz na
Constituição Federal, que se por um lado erigiu à categoria de garantia
constitucional a propriedade, de outro deixou claro que o exercício de tal direito
esbarraria em direito maior, representado pelo interesse público.
A par da ausência de regulamentação específica, da localização
problemática e equivocada que a matéria encontrou no Código Civil, a Constituição
não deixa espaço para questionamentos quanto à existência do instituto no
ordenamento pátrio, posto que o constituinte apenas permitiu a desapropriação
quando tal comportamento fosse indispensável à consecução da finalidade pública.
Não seria arrazoado supormos legítima a expropriação que se visse esvaziada de
seu pressuposto constitucional diante de destinação desposada do caráter público.
Não é lícito ao Estado invadir a órbita da propriedade privada quando não almejar
unicamente a satisfação de interesse coletivo.
Se a Constituição, apesar de haver garantido a propriedade, permitiu à
Administração que expropriasse quando justificada pela utilidade ou necessidade
pública, ou ainda pelo interesse social, ausentes tais requisitos, inconstitucional será
a desapropriação e conseqüentemente imperiosa será a responsabilização do
Estado que terá desrespeitado a propriedade particular em busca de interesse outro
que não o público.
Isto posto, cumpre verificar a natureza jurídica da retrocessão. A
importância desta delimitação vai muito além do interesse puramente acadêmico,
visto que ao definirmos a retrocessão como de natureza pessoal ou real, estaremos
demarcando a dimensão que terá o direito a ser exercido pelo expropriado. Para os
que defendem o caráter pessoal do instituto, caberá apenas a satisfação em perdas
e danos, já os que postulam pelo caráter real do direito do retrocessionário,
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enxergam possível a devolução do bem em espécie, retornando as partes ao status
quo ante.
Depois de deitarmos leitura nos principais doutrinadores que dedicaram
ao tema numerosos e valorosos trabalhos, inclinamo-nos à tese de que inegável é a
natureza real da retrocessão, tal como tem entendido a jurisprudência mais recente.
Negar a natureza real da ação de retrocessão é restringir o direito do particular
injustamente desapossado, é esvaziar a garantia de propriedade prevista pela Lei
Maior, é em última análise, tornar legítimo comportamento abusivo do administrador
público, que no exercício de sua competência, ultrapassou os limites de sua atuação
agindo muito além do compatível com Estado Democrático de Direito.
Afastada a desapropriação da hipótese que lhe deu causa, imperioso é o
retorno do bem ao patrimônio do injustamente expropriado. É instituto que deita raiz
na Carta Magna, não sendo passível pois, de substituição a reversão do bem por
indenização. Esta já foi paga como exigência do próprio procedimento
desapropriatório, e tendo sido justa, recompôs completamente o patrimônio do
retrocessionário, não tendo mais cabida diante da verificação superveniente de
ausência de qualquer fundamento legal que justificasse tamanha invasão do Poder
Público na esfera patrimonial do particular.
Quando falamos em indenização, idéia que logo surge é de contrato,
oriundo de pacto entre as partes e não há cenário mais distante da desapropriação
do que este. Nela não há resquício de autonomia da vontade do particular, que nada
pode opor diante da supremacia do interesse público.
A desapropriação não pode ser vista como um fim em si mesma, é
instrumento de alcance da utilidade pública, esta lhe revestirá de legitimidade,
fazendo possível a coexistência em nosso sistema da garantia constitucional da
propriedade e do poder expropriatório do Estado que surge sempre que a
supremacia do interesse público sobre o particular, assim exigir.
O legislador deixou escapar excelente oportunidade de colocar fim a toda
discussão que vem acompanhando o assunto, por ter mantido a localização
equivocada da regulamentação do instituto, dando a entender que se equipararia ao
direito de preferência oriundo de convenção, que uma vez não observado enseja
satisfação traduzida em perdas e danos. Não há espaço para autonomia da vontade
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no Direito Público, muito menos quando especificamente tratamos da
desapropriação. Em nosso sistema jurídico não há “venda compulsória” ao Poder
Público, a Constituição previu sim, a desapropriação sempre escorada na utilidade
ou necessidade pública ou no interesse social.
De modo que, se a Administração simplesmente deixa de usar a coisa,
demonstrando não precisar do bem, ou deixa transparecer seu intuito de vendê-lo,
salvo nas hipóteses em que a revenda seja elemento da modalidade de
desapropriação, a expropriação perde sua razão de ser. Há diferença abissal entre a
preempção legal e a convencional, esta acaso inobservada pode encontrar
compensação no pagamento de perdas e danos, posto ter tido origem em pacto
consensual, no qual as partes agiram com plena liberdade, o mesmo não ocorre com
a preempção legal. Esta, tem origem na lei, e não permite que se vislumbre o menor
traço da autonomia da vontade, visto que mesmo na desapropriação amigável, o
particular é compelido pela Administração a ceder sua propriedade mediante
pagamento feito em princípio, em dinheiro e previamente. Na hipótese de o Poder
Expropriante não destinar o bem a qualquer finalidade pública, inteiramente legítima
será a pretensão do particular de recuperar a propriedade, e o veículo a ser utilizado
é a ação de retrocessão.
Negar que o não uso do bem configura desvio de finalidade traduzido no
desrespeito ao pressuposto constitucional, é ignorar a exigência do cumprimento da
função social da propriedade e o caráter excepcional da desapropriação. A
Administração Pública não age acima da lei, age adstrita ao permissivo legal, não
sendo possível conceber que, fazendo uso de seu poder expropriatório, medida
extremamente gravosa, despoje o particular de sua propriedade e depois, ignorando
os requisitos constitucionais, não dê destinação alguma ao bem. Nesta hipótese
claramente caracterizado estaria o desvio de finalidade capaz de ensejar o retorno
do bem ao ex-proprietário, pois só assim se restabeleceria a supremacia da Lei
Maior, indispensável à paz social.
O legislador, além de haver mantido a má localização do dispositivo no
Código Civil, deixou de estipular prazo razoável para que o Poder Público faça uso
efetivo do bem que desapropriou, deixando margem à permanência de dúvida
quanto ao início do direito que assiste ao expropriado. A posição que tem
predominado tanto na doutrina quanto na jurisprudência é a que defende, não a
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observância, por analogia, de prazo estipulado à caducidade da declaração de
utilidade pública, mas a análise do caso concreto, a fim de que se verifique a
presença de circunstâncias que evidenciem a desistência superveniente de dar ao
bem, utilidade pública.
Embora esta seja, em nosso entendimento, a solução mais adequada
diante da ausência de especificação legal, já que a Administração pode desistir da
destinação pública do bem em prazo superior ou inferior aos cinco anos previstos
para caducidade da declaração de utilidade pública, entendemos que ao legislador
assiste a tarefa de regulamentar mais amiúde a matéria. A previsão de prazo para
que o Poder Expropriante dê destinação adequada ao bem, tornaria menos
complexa a matéria probatória a cargo do particular, visto que diante da inexistência
de prazo, pode se tornar problemática a prova nas hipóteses em que a
Administração não age de modo inequívoco, deixando margem à dúvida quanto à
sua intenção em relação ao bem.
Encarando a retrocessão como direito real, conseqüentemente
percebemos a transmissibilidade que se faz presente no instituto. Negar-lhe este
alcance significaria restringir a garantia de propriedade prevista em nossa Carta
Magna, perpetuando a arbitrariedade.
Nesse contexto, o prazo prescricional a ser observado é o atinente aos
direitos reais – dez anos –, contados do momento em que se verificar a desistência
do Poder Público em dar destinação adequada ao bem. Destinação esta, que
embora possa ser outra que não a prevista pelo decreto expropriatório, jamais será
alheia ao interesse coletivo.
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