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PATRIMÔNIO INSURGENTE E CIDADÃO: Uma abordagem sobre a Casa Amarela da Vila Romana e a Jornada do Patrimônio de São Paulo LOPES, HENRIK CARPANEDO (1) 1. UFES [email protected] RESUMO Nos últimos anos, o Tema do Patrimônio vem sendo apontado em diversas manifestações insurgentes no cerne das grandes cidades, e reverbera no cenário conceitual da disciplina e no temático dessas disputas. Há apontes contrários à espetacularização urbana e especulação imobiliária e em prol de projetos mais participativos. Esses movimentos põe a prova desde as representatividades formais da participação e de institucionalização dos espaços de patrimônio, cultura e arte. Nesse trabalho, vai-se problematizar de forma inicial, no âmbito dessas ações insurgentes, a jornada do Patrimônio de São Paulo e a Casa Amarela da Vila Romana. A Jornada do Patrimônio acontece pelo segundo ano consecutivo, e promete se uma política perene. Neste evento, as edificações que constem no roteiro oficial, ficarão abertas durante dois dias. Constam tantos os monumentos e edifícios institucionais e conhecidos, como de valor patrimonial, como também outras que não estão nos holofotes dos espaços institucionais. Que é o caso da Casa Amarela da Vila Romana. A casa Amarela, localizada na Vila Romana, bairro da Zona Oeste de São Paulo é uma das primeiras casas construídas no bairro (1921). É testemunha da intensa modificação urbana que aconteceu na região e nos últimos anos têm sido polo aglutinador de ações artísticas e culturais com uma discussão contrária a especulação urbana. A artista e proprietária Janice de Piero tem agenciado nesse espaço, e o transformado em local de exposições de arte e eventos culturais, juntamente com amigos e pessoas da vizinhança. Essa atividade, embora esteja se perpetuando, continuando, não possui algum incentivo da iniciativa pública, nem da iniciativa privada. A espetacularização urbana, oriunda das grandes intervenções e políticas culturais e urbanas hegemônicas, é resultado de um processo exacerbado de patrimonialização das áreas de grande interesse pelo turismo e pelos negócios internacionais, consorciados com capital privado, políticas que se adequam principalmente ao mercado imobiliário por obedecer à demanda, e não cria-las a favor das questões socioculturais das cidades. O conceito iluminista do “progresso” é agenciado pela superidealização das tradições e modos de fazer, capturados pelos grandes investidores dos empreendimentos urbanos contemporâneos, impulsionados e direcionados dos/nos processos de globalização. Nessa trama, ao passo que a cidade é fetichizada pela exacerbação dos valores culturais, que direciona o capital como principal agente de modificação de sua paisagem, e promotor, juntamente com as políticas do poder público, de ações e investimentos estruturadoras de sua dinâmica. A Jornada, ao ampliar a participação de agentes culturais, artísticos que normalmente não possuem vozes nos holofotes dos espaços institucionais, abre brechas para uma de ressignificação da ideia de patrimônio urbano e cidadão, onde arte, cultura em forma de eventos e encontros, desdobram-se em inúmeras possibilidades de agenciamento. Bem como a Casa Amarela, espaço de resistência e de pujante atividade artística. Este espaço ultrapassa os vícios do fetiche patrimonial e da agressiva verticalização das relações que engendram a arte e a cultura nas cidades contemporâneas. Se dá na criação de uma linha de ação de “dentro pra fora”, se dando como uma insurgência menor, micropolítica, que fortalece as relações interpessoais dos que vivem seu contexto urbano.

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PATRIMÔNIO INSURGENTE E CIDADÃO: Uma abordagem sobre a

Casa Amarela da Vila Romana e a Jornada do Patrimônio de São

Paulo

LOPES, HENRIK CARPANEDO (1)

1. UFES

[email protected]

RESUMO Nos últimos anos, o Tema do Patrimônio vem sendo apontado em diversas manifestações insurgentes no cerne das grandes cidades, e reverbera no cenário conceitual da disciplina e no temático dessas disputas. Há apontes contrários à espetacularização urbana e especulação imobiliária e em prol de projetos mais participativos. Esses movimentos põe a prova desde as representatividades formais da participação e de institucionalização dos espaços de patrimônio, cultura e arte. Nesse trabalho, vai-se problematizar de forma inicial, no âmbito dessas ações insurgentes, a jornada do Patrimônio de São Paulo e a Casa Amarela da Vila Romana. A Jornada do Patrimônio acontece pelo segundo ano consecutivo, e promete se uma política perene. Neste evento, as edificações que constem no roteiro oficial, ficarão abertas durante dois dias. Constam tantos os monumentos e edifícios institucionais e conhecidos, como de valor patrimonial, como também outras que não estão nos holofotes dos espaços institucionais. Que é o caso da Casa Amarela da Vila Romana. A casa Amarela, localizada na Vila Romana, bairro da Zona Oeste de São Paulo é uma das primeiras casas construídas no bairro (1921). É testemunha da intensa modificação urbana que aconteceu na região e nos últimos anos têm sido polo aglutinador de ações artísticas e culturais com uma discussão contrária a especulação urbana. A artista e proprietária Janice de Piero tem agenciado nesse espaço, e o transformado em local de exposições de arte e eventos culturais, juntamente com amigos e pessoas da vizinhança. Essa atividade, embora esteja se perpetuando, continuando, não possui algum incentivo da iniciativa pública, nem da iniciativa privada. A espetacularização urbana, oriunda das grandes intervenções e políticas culturais e urbanas hegemônicas, é resultado de um processo exacerbado de patrimonialização das áreas de grande interesse pelo turismo e pelos negócios internacionais, consorciados com capital privado, políticas que se adequam principalmente ao mercado imobiliário por obedecer à demanda, e não cria-las a favor das questões socioculturais das cidades. O conceito iluminista do “progresso” é agenciado pela superidealização das tradições e modos de fazer, capturados pelos grandes investidores dos empreendimentos urbanos contemporâneos, impulsionados e direcionados dos/nos processos de globalização. Nessa trama, ao passo que a cidade é fetichizada pela exacerbação dos valores culturais, que direciona o capital como principal agente de modificação de sua paisagem, e promotor, juntamente com as políticas do poder público, de ações e investimentos estruturadoras de sua dinâmica. A Jornada, ao ampliar a participação de agentes culturais, artísticos que normalmente não possuem vozes nos holofotes dos espaços institucionais, abre brechas para uma de ressignificação da ideia de patrimônio urbano e cidadão, onde arte, cultura em forma de eventos e encontros, desdobram-se em inúmeras possibilidades de agenciamento. Bem como a Casa Amarela, espaço de resistência e de pujante atividade artística. Este espaço ultrapassa os vícios do fetiche patrimonial e da agressiva verticalização das relações que engendram a arte e a cultura nas cidades contemporâneas. Se dá na criação de uma linha de ação de “dentro pra fora”, se dando como uma insurgência menor, micropolítica, que fortalece as relações interpessoais dos que vivem seu contexto urbano.

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A espetacularização Urbana e o Patrimônio nas últimas décadas.

Para iniciar esta abordagem, dá-se destaque ao assunto da cidade como mercadoria,

partiremos do entendimento dela como aporte e reserva de capital e institucionalidade dos

grandes empreendimentos do capital financeiro aportados pelas políticas governamentais. As

áreas centrais são as que concentram a maior parte de possibilidades de tais intervenções e

foco de interesses dos grandes investidores.

Não se vai explanar aqui políticas, ou projetos, nem outro nome a não ser processo. Se dão

em linhas complexas que vão engendrando o mundo, envolvem muitos agentes, objetos e

ações que paulatinamente vão definindo e formando / formalizando os espaços e os cenários

urbanos. São os eventos que muito ou pouco contínuos definem o modo de fazer, construir e

produzir o espaço urbano.

Seja a cidade Histórica e/ou os projetos e novas intervenções, vale ressaltar que o discurso

que os erige e os levam à tona estão intricados no discurso cultural. Este eleva e ideia de

identidade de determinado lugar, com a valorização (simbólica ou de valor capital) a estes

espaços. “O valor cultural intrínseco dos bens consubstancia um testemunho de civilização

que todos temos o dever de salvaguardar e transmitir às gerações futuras (...)” (TAVARES DA

SILVA, 2010, p. 279)

O objeto do patrimônio que era para satisfazer as elites, marcado com a premissa de repassar

para o futuro e perpetuar o modo de produção vigente. “o consumo cultural promove distinção

cultural para aquele que detém conhecimento ou objetos” (BOURDIEU apud JACQUES,

2003, p. 25). Este valor passa a ser elemento agenciador de grandes operações e que visam

revitalizar áreas gerando muitas vezes gentrificacão e cenários rígidos que visam a

reprodução de valores dos grupos dominantes, juntamente com a reprodução do capital.

As formas novas, criadas para responder a necessidades renovadas, tornam-se mais exclusivas, mais endurecidas, material e funcionalmente, mais rígidas tanto do ponto de vista das técnicas implicadas como de sua localização. Passamos de uma cidade plástica a uma cidade rígida. (SANTOS, 2006, p. 168).

CASTRIODA (2008) salienta sobre os processos de patrimônio, há, basicamente, três formas

de intervir no patrimônio, mostra que o marco legal acontece primeiramente com a ideia de

tombamento das edificações, no julgamento cultural e artístico das mesmas, depois acontece

a ideia de conservação, onde os ambientes urbanos (não apenas as edificações) também

passam por uma caracterização de patrimônio e que deve ser preservado.

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Este autor aponta que, basicamente, eram os arquitetos que mantinham a competência

técnica e teórica sobre o tema. E que, à medida que se ampliava a complexidade, foi-se

ganhando outros agentes, como os gestores públicos. A ideia de Revitalização urbana, amplia

e torna ainda mais complexa. Além de arquitetos, gestores públicos, agentes da sociedade

civil, os atores que regem e tecem a trama da dos investimentos financeiros, que ordenam e

estabilizam o mercado imobiliário.

Assim, pode-se dizer que a concepção, o marco legal do patrimônio, e o modo de agir sobre a

cidade e o território patrimoniais partem de um processo complexo. É teórico e praticado

dentro do campo das artes, arquitetura, ciências sociais, etc. e vai se tornando suporte e

elementos para políticas culturais e urbanas. Atualmente, esses processos vêm se

engendrando ainda mais contundente dentro do panorama atual.

CASTRIOTA, 2015 aponta e questiona – revitalização 2.0? É uma nomenclatura que o

arquiteto tem dado ao processo atual de lidar com o patrimônio. Nota que de forma geral, no

mundo e no Brasil, a presença de agentes do capital e do mercado imobiliário estão cada vez

mais presentes na ideia e discursão sobre o tema e de fato, como o motor mais profundo que

atua na concepção das grandes intervenções urbanas.

Os agentes do mercado imobiliário e dos grandes negócios internacionais, de forma paralela

ao setores e incentivos dos poderes públicos, tecem o cenário da cidade em ações de

transformação e atualização do espaço urbano e cultural em mercadoria. “Parcerias com o

setor privado são estimuladas e, hoje, a preservação do patrimônio urbano já é considerada

por muitos empresários um empreendimento lucrativo, que tem base no turismo cultural

globalizado. (JACQUES, 2003:.35) ”

Com base no histórico de valorização do espaço urbano patrimonializado, a cidade em nome

dos empreendedores (agentes do capital e do mercado) captura os valores artísticos e o

processam em valores econômicos. “O patrimônio cultural urbano passa, assim, a ser visto

como uma reserva, um potencial de espetáculo a ser explorado”. (JACQUES, 2003, p. 34).

A Fetichização do Espaço urbano

A cidade e seu ambiente construído patrimonializado, como vem sendo apontado, é cada vez

mais pujante dentro dos grandes negócios urbanos, aglutina espacialidades heterogêneas e

quase totalmente as direcionam à ação do capital. A ideia de progresso que o movimento

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moderno estabeleceu na cidade, dá espaço agora, à ideia de apologia à culturalização, como

modo superestimular as diferenças das cidades – a raridade do espaço.

Este processo de culturalização dos empreendimentos, gera uma museificação das cidades,

onde num plano global de turismo-cultura, cada cidade, com suas grandes intervenções,

precisam atribui-se de sua carga indenitária-cultural para justificar o sistema: manter o antigo

e construir o novo, o que, superficialmente, significa manter suas tradições e mesmo assim, se

modernizar.

“(...) de se transformar o patrimônio cultural ou bem patrimonial em uma mercadoria como outra qualquer, ou simplesmente, em puro fetiche, quando o patrimônio cultural, com suas complexas redes de práticas e significados, se transforma em mero produto, ou objeto “coisificado”, ou fetichizado” (VELOSO, 2003, p. 439).

Como um exemplo simples, que remete às cidades do mundo, lembra-se de uma prática

turística, o ônibus turístico, presente em grandes cidades do mundo, como Buenos Aires,

Curitiba, Londres, São Paulo, etc.. É uma iniciativa muitas vezes de iniciativa privada e que

direcionada a turistas, a percorrer a cidade e visualizar através do automóvel, pontuando no

percurso as edificações e espaços públicos que marcam e sustentam a materialidade da

história e a modernidade da cidade.

Estes roteiros usualmente mostram muito pontualmente os pontos da cidade facilmente

observados nos mapas turísticos vendidos nas ruas e representam os grandes monumentos

urbanos, os grandes edifícios institucionais, grandes parques rodeados por bairros centrais e

abastados. Objetos do contínuo processo de espetacularização do espaço urbano.

A cidade é uma sucessão de eventos que a forma, sejam eles expressões culturais ou

objetos-formas-monumentos que a tornam visível e constrói sua propriedade, seu patrimônio

de representatividade de poder e econômica. "(...) se pensarmos na patrimonialização das

cidades como espetacularização" patrimonial, ou seja, uma transformação de patrimônios

urbanos em cenários comerciais, através de uma pasteurização dos projetos de revitalização.

(JACQUES, 2003, p.36).

Luchiari, 2005, aponta que as relações de usos dos bens construídos da cidade seguem o

comportamento do patrimônio transformado em mercadoria, e sua ressiginificação é

agenciada pela ideologia do consumo e não mais às práticas culturais que representam os

modos de fazer tradicionais dos lugares. O que reverbera e é agenciado nos modos de viver

atuais.

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Castels, 2000 expõe que o “espaço é a expressão da sociedade”, está em constante processo

e formação. Se juntamente com a espetacularização urbana, que reverbera em gentirificação,

aglutinada em projetos de revitalização 2.0, nota-se um sistema rígido e estratificado de

presença e movimentação do capital sobre o espaço produzido da cidae, direcionando as

ações sobre ele serem regidas pelo capitalismo.

Milton Santos, 2002, diz que o espaço é um “sistema de objetos e ações”: O espaço urbano,

no âmbito do patrimônio cultural, tem as áreas que concentram elementos desse valor, que

estão em direta ou potencial ação do poder governamental que é intrinsecamente vinculado

aos interesses do capital, que constituem base para as políticas que tecem a trama urbana

urbanas num processo engessado.

Enquanto os objetos/ambientes construídos das cidades se relacionam com a cidade, estão

sujeitos a ações do poder público e do poder privado, LEFEBVRE (1969) vai dizer que o

espaço é produzido pelo capital, que, enquanto buscava suprimir a historicidade dos lugares,

agora, encontra no patrimônio histórico aporte simbólico e suporte de especulação capital

para agenciar outros modos de produção.

Esse engendramento hegemônico institucional na constituição do espaço urbano leva a ideia

de patrimônio salvaguardado como determinista na qualidade urbana. Tal como é orientada

pelos grandes investimentos, promovendo a “higienização do espaço” e, em muitos casos, a

gentrificação, não apenas dos que viviam, mas também dos próprios fluxos da cidade, sua

mobilidade de corpos, objetos ações, significados, de tudo que ela é.

O urbano é a obsessão daqueles que vivem na carência, na pobreza, na frustração dos possíveis que permanecem como sendo apenas possíveis. Assim, a integração e a participação são a obsessão dos não-participantes, dos não-integrados, daqueles que sobrevivem entre os fragmentos da sociedade possível e das ruínas do passado: excluídos da cidade, às portas do “urbano” (LEFEBVRE, 1969 p: 93).

A cidade Contemporânea: globalização e São Paulo como cidade Genérica.

“A globalização (ou exatamente através dela), o mundo estaria se "musealizando", ao trocar o

conceito (iluminista) do "progresso" pela idealização das "tradições”. (HYSSEN apud

CASTRIOTA, 2016). O processo de globalização que atravessa o território atual, cria uma

sociedade em redes, onde os pontos do globo estão conectados desde por processo histórico

de contratos e tratados, e mais contundentemente agora, através pela tecnologia, cujos

avanços, aproximam cada vez mais os indivíduos e os estados.

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No entanto essa tendência - a musealização das cidades – parece estar combinada com um

processo de aceleramento cultural, que se aglomera aos agenciadores de produção e

reprodução do capital. “De um lado, há a alternativa de explorar as potencialidades de

mercado do patrimônio edificado (seu valor de troca) e, de outro, a de facilitar os meios de sua

apropriação pelos habitantes da cidade, em razão de sua utilidade e valor simbólico (seu valor

de uso) ”, (ARANTES, 2006, p.431).

A cidade de São Paulo passa, assim como outras brasileiras, latino-americanas e mundiais,

por uma dinâmica espacial regida e balizada pelos valores do capital. Á medida que a área

central é alvo de dinâmicas que visam a alteração espacial que provoca gentrificação, vide os

projetos de revitalização da LUZ e também, recentemente do Vale do Anhangabaú, dentre

outros.

Ao passo que as áreas centrais vão se musealizando, processo anotado acima, com

propostas de profunda alteração e renovação de suas áreas, em razão de seus valores

simbólicos, apontado por Otília Arantes, e muito fortemente como valor de troca, e capital de

reserva para o grande maquinário que é o capital financeiro e imobiliário, a cidade e estes

processos de modificação se dão de forma espraiada.

Ao passo que as áreas centrais são cenarizadas para o turismo e espetáculo do higienismo

moderno, parece que toda cidade precisa de um centro super reformulado com grandes

estruturas de arquitetura conterrânea, vide os casos da Porto Maravilha no Rio de Janeiro

e/ou grandes áreas e Puerto Madero em Buenos Aires. Em outro viés, o bairro tradicional,

com o ar de seu patrimônio não tombado e imaterial, pela própria característica de arquitetura

menor, é capturado por um outro tipo de movimento, do espetáculo da cidade, nas grandes

feiras de imóveis.

O crescimento e as ações sobre a cidade de forma espraiada se dão, muitas vezes, com o

slogan de morar em bairros tradicionais. Ao passo que o patrimônio simbólico e

salvaguardado nas áreas centrais, musealizadas, no restante do território pouco se vislumbra

como território cultural. Em São Paulo Isso acontece bastante consolidado em Pinheiros e na

Vila Madalena, por exemplo, e está em bastante crescimento na Vila Romana, onde vai-se

adentrar mais profundamente. E isso é um fator genérico das cidades.

"A cidade genérica, tal como é descrita por Rem Koolhaas, seria então a cidade que se auto-reproduz sem 'sentimentalismo', sem a menor preocupação com uma singularidade que lhe seria própria, a cidade que nasce e renasce em função das necessidades e contingências, a cidade que engendra de maneira objetiva, pragmática, sua própria morfologia. Seria também a cidade que cria seu próprio passado, sua própria história ao longo do tempo, sem se preocupar com os vestígios

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que simbolizariam seu futuro, produzindo demolições sem a menor nostalgia. A cidade autometamórfica" (JEUDY, 2005)

É pelo viés de São Paulo como uma cidade genérica, do bairro da Vila Romana, como uma

engrenagem dessa máquina que funciona que vai-se costurar o texto que aborda a Casa

Amarela da Vila Romana e a Jornada do Patrimônio, mais adiante. A Jornada do Patrimônio

uma política que faz o intento de tecer uma experiência singular, sem excluir o potencial

genérico do substrato que é a cidade. Os roteiros que há neste evento são possíveis de serem

propostos por civis, assim como os objetos-construções a serem visitados.

“Se consideramos o mundo como um conjunto de possibilidades, o evento é um veículo de uma ou algumas dessas possibilidades existentes no mundo. Mas o evento também pode ser o vetor das possibilidades existentes numa formação social, isto é, num país, ou numa região, ou num lugar, considerados esse país, essa região, esse lugar como um conjunto circunscrito e mais limitado que o mundo” (SANTOS, 2006, p. 93).

A JORNADA DO PATRIMÔNIO DE SÃO PAULO

Oriunda do Ministério da Cultura da França, que chamava de “Jornadas das portas abertas

dos monumentos históricos”, política cultural-turística de 1984. (PMSP, 2016), movimento que

se espelhou em outros países da Europa desde então. Agora inspira a Jornada do Patrimônio

em São Paulo.

A jornada do Patrimônio de São Paulo começou em dezembro do ano passado (2015) e teve

sua segunda edição em agosto desse ano. O evento torna muitas edificações que não são

abertas ao público, ou que tem acesso reduzido, totalmente aberto à visitação, com monitores

que podem atender os visitantes. É uma prática já consolida em Paris a quase três décadas,

que já repercutiu em muitas outras cidades nesse tempo.

Neste ano, de acordo com o site que promove o evento:

http://www.jornadadopatrimonio.prefeitura.sp.gov.br/ houve palestras, apresentações

artísticas, roteiros de visitação dos edifícios, lista de imóveis. Muito comum em quaisquer

eventos desse tipo. No entanto a jornada do patrimônio de São Paulo torna essa programação

de forma colaborativa, onde há possibilidades e propostas para os elementos que a

estruturam.

Para propor os imóveis que estarão abertos e na lista oficial do evento, há o lançamento de

um edital de inscrição onde o proprietário que considera sua propriedade como de interesse

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para o evento, cabendo a diretoria de o evento aprovar ou não, e assim se dá também nas

manifestações artísticas e na proposição de roteiros.

“Cada roteiro deverá ter um sentido que vá além de uma mera coleção de imóveis de valor histórico que estejam próximos. Por exemplo, o roteiro que já existe “Bexiga, território negro” conta a ocupação negra naquele bairro do centro. Da mesma forma, um roteiro poderá contar a história da ocupação de um bairro desde o início do século até hoje, ou tratar da constituição da paisagem urbana etc” (PMSP, 2016).

No critério de seleção dos roteiros, a equipe organizadora exige que tenha um interesse ou

uma área temática. É flexível nas possibilidades de se criarem tipos de roteiros com ou sem

investimento de inscrição. Essa iniciativa parece promover diversos percursos que busquem

agenciar diversas maneiras de ver e compreender o patrimônio da cidade.

Esta abertura a possibilidades de intervenção do público e dos agentes que não agem nos

moldes institucionais comuns ao aparato institucional e mercadológico, torna a Jornada do

Patrimônio uma política permeável e aberta às possibilidades propostas. Assim, há a potência

de muitas áreas, espaços, construções, lugares, roteiros, levem indivíduos a conhecerem

melhor o acervo cultural do teu bairro, da sua cidade.

“Suas trilhas entrelaçadas dão sua forma aos espaços. Eles tecem lugares em conjunto. A esse respeito, os movimentos pedestres formam um desses “sistemas reais cuja existência de fato constrói a cidade”. Não os localizamos, ou melhor, são eles que se especializam” (CERTEAU, 1994, p. 28).

Trazemos aqui a figura do pedestre, que ao agenciar caminhos na cidade, muitas vezes,

possíveis de serem realizados fora dos percursos fixos das ruas e ciclovias, o visitador da

Jornada, ao escolher o roteiro que quiser é possibilitado a vivenciar de forma mais forte a

cidade a sua volta. O pedestre aparece também, como agente vivenciador da cidade

genérica, que costura suas formas e dão a eles significado no percorrer.

"A possibilidade se oferece; descobre-se; é determinada, consequentemente limitada e parcial. Querer vivê-la como totalidade significa, de fato, esgotá-la e preenchê-la ao mesmo tempo. O momento se pretende livremente total, ele se esgota enquanto vivido. Toda realização como totalidade implica uma ação constitutiva, um ato inaugural. Esse ato simultaneamente cria um sentido e o libera. Sobre o fundo incerto e transitório da cotidianidade, ele impõe uma estruturação. Assim, a cotidianidade que aparecia como 'real' (sólida e certa), revela-se incerta e transitória" (Lefebvre apud SANTOS, 2006, p. 93).

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É inevitável a associação da palavra patrimônio a propriedade ou recurso, e juntamente a

isso, a necessária ressignificação nos complementos –patrimônio – histórico ou cultural. E

dessa forma, se é de direito e interesse público, logo, deduz-se que faz parte da cidadania de

uma cidade, respeitar e criar modos de garantir isto por lei e incentivos educativos. E passa a

tomar forma política, ao se considerar a sociedade como palco de embates e conflitos de

interesse”” (ALMEIDA, HISSA, 2014, p. 35).

No viés de construir um cotidiano comum, durante o evento, a Jornada do Patrimônio busca

oferecer ao indivíduo – e ao público (como se fosse um serviço cultural) da cidade, turista,

uma possibilidade de experiência a cidade de uma forma diferente, e poder escolher nos

roteiros disponíveis ou fazê-lo o seu próprio. Como afirma a organizadora do evento: Vanessa

Correa:

A jornada vem como primeiro passo de uma política que pretende estimular os cidadãos a se apropriar de seu patrimônio e, com essa nova ferramenta, participar criticamente da construção e reconstrução da cidade, de seus espaços, em oposição aos grandes projetos urbanos e aos projetos arquitetônicos dos condomínios fechados genéricos, vistos como únicas possibilidades. (SOMEK e CORREA, 2015).

A casa Amarela da Vila Romana

Imagem 01 – Imagem da fachada da Casa Amarela – Acervo de Janice de Piero, 2016.

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A Vila Romana é um bairro da Zona Oeste de São Paulo, cresceu às margens da região da

Lapa, impulsionada pelas linhas técnicas e crescimento das industriais na região. Atraiu

basicamente uma população imigrante italiana, formados basicamente por operários das

indústrias que se instalavam ali.

Antes de adentrarmos ao interior da casa amarela, é necessário localizá-la no lugar em que foi

construída. “A Casa Amarela foi construída em 1921, pelo italiano Ângelo de Bortoli que

chegou ao Brasil no final do séc. XIX. Foi construída antes da demarcação das ruas, (que

aconteceu em 1925) ficava no meio do sítio de meu bisavô Ângelo. Possui estilo neoclássico e

é a mais antiga do bairro” (Janice e Piero in Jornada do Patrimônio, 2016).

A Casa Amarela é metade do imóvel que hoje compreende a casa da artista Janice de Piero,

que fora construída já dividida em duas para servir de aluguel. Ou seja, em uma metade ela

vice com sua filha e a outra é destinada a seu uso pessoal. A outra metade foi utilizada como

atelier próprio e também alugada a outros profissionais. Em suas palavras:

Foi feito o loteamento das ruas e a casa acabou ficando um pouco desalinhada nessa demarcação. Por ser uma casa de aluguel, sua conservação estava péssima. A casa foi sendo passada de pai para filho até chegar a mim. Como herdeira da casa resolvi restaurá-la. Em 1990, estava casada e resolvi morar na casa, foi nesse momento que começou a restauração. Embora a casa possua um único frontão neoclássico, são duas casas contíguas. Numa das casas é a minha moradia e a outra ficou sendo meu ateliê por muitos anos (DE PIERO, 2016).

O processo de ocupação pela atual proprietária e também artista, foi sempre uma

aproximação tendo um desafio à frente. Uma casa que sobrou a ser realinhada pela marcação

das ruas, e também, ao desgaste e descaso dos anos, foi reformada de modo a respeitar ao

máximo sua construção inicial. Um investimento feito para o bel prazer da família, que ao

gozar de seu direito de propriedade, também resgatava parte da memória do bairro, uma

memória velada pelos conhecidos do local, já que a casa não possui nenhuma proteção e/ou

visão pelas leis do patrimônio municipal.

De 2002 a 2003, perdemos duas grandes fábricas históricas, de valor afetívo, que viraram dois grandes condomínios. A partir daí o bairro, alvo da especulação imobiliária, vem perdendo a cada dia sua qualidade de vida, sua história, sua memória e sua identidade. Nós junto com os vizinhos fundamos o MOVER - movimento de oposição à verticalização. Lutamos muito junto aos poderes públicos, tentando evitar as demolições em massa, mas apesar de todo esforço e engajamento da população não conseguimos

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impedir essa verticalização desenfreada e feroz. Hoje o bairro sofre com o excesso de carros a falta da visibilidade do céu, fruição da paisagem comprometida, prédios de arquitetura estranha ao local, condomínios fechados (DE PIERO, 2006).

Ao passo que a casa se mantem com suas características originais, sendo reocupada com o

intuito próximo a uma restauração, segue resistente a um espaço em constante mudança,

onde as características edilícias vão alterando-se e também a morfologia e dinâmica urbana

do bairro, com o slogan de “morar na Vila Romana”, por sua característica de bairro

tradicional, a especulação imobiliária é paulatinamente presente.

Em 2013, após não ter sucesso em achar galerias para expor teu trabalho, Janice viu em teu

próprio espaço a oportunidade de acontecimento desta vontade, a de tornar público o teu

trabalho. Dessa forma, ao atrair a atenção das pessoas, amigos e familiares, em continuidade

com o grupo MOVER, Casa Amarela passa a ser um nodal de situações e atividades no local

e público, durante as exposições.

Imagem 02 – Presença da caçamba – O caso- disk memória. Acervo de Janice de Piero – 2015.

“Coabitação na casa Amarela” e “a caçamba da vez ” são trabalhos frutos da aproximação

da artista nos acontecimentos da casa. Vão no sentido de mostrar o certo mal-estar do

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espaço, da cidade, da urbanidade vivida ali. Do mal-estar do intenso tráfego nas ruas de

terreno acidentado do bairro, que cada vez mais se tornam apenas leito carroçável, em

detrimento à rua, como espaço público sujeito a convivência dos vizinhos.

A coabitação foi um ato performático, na Rua São Camilo, com as portas e janelas da Casa

Amarela abertas. Pessoas, amigos, artistas falaram num microfone sobre suas memórias,

expressões contra a espetacularização urbana no bairro e de outros. Foi criada uma situação

para que as pessoas pusessem suas vozes no microfone.

A caçamba da vez aconteceu – O caso – disk memória, no mesmo sentido, acoplada a casa

amarela, nela há toda sorte de entulho, o entulho das ruínas do patrimônio imaterial das

vivências que aconteciam ali, na Rua São Camilo, no bairro da Vila Romana, e que podem

acontecer nos bairros de casas térreas e ruas calmas.

“De alguma forma, a performance artística comunicou essa expectativa difusa das pessoas do bairro de que o sufocamento e a compressão do espaço pelos condomínios altos sem vida mereciam expressão de transbordamento do privado para o público, para a calçada” (SILVA, 2016)

Quando cada casa abriga uma família, cria-se uma cartografia de possibilidades de

agenciamentos corporais entre os vizinhos, e é isso que a artista tenta construir em seu

trabalho, transformando a casa amarela num espaço de engendramento de situações

promovidos por ela, criando trocas entre as pessoas, e tornando visíveis suas relações

interpessoais e com o ambiente construído.

De caso a caso é o último projeto artístico de Janice de Piero. Este trabalho se utiliza dos

ambientes da casa amarela como uma instalação dela mesma, da própria casa. Da casa

como memória de sua materialidade arquitetônica interior, e a imaterialidade dos significados,

das memórias ali contadas. Um dos momentos da exposição é a existência de santinhos de

falecimento e de casamentos, elementos muito presentes na comunidade italiana.

“De casa a caso, foi inaugurado em maio de 2015 e ficou até junho de 2016. Antes, foram realizadas outras exposições e coabitações, mas de casa à caso foi diferente, a Casa era a obra, a Casa narrava uma história sobre a especulação e memória do bairro. A casa-obra (uma grande instalação) foi construída com a colaboração de vizinhos, amigos e parentes. os santinhos mostram a religiosidade da época, meados do século XX, pertenciam à minha vó q nasceu em 1900” (DE PIERO, 2016).

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Imagem 03 – Vista do interior da casa, um dos ambiente que mostram a espacialidade da

Casa Amarela. Acervo pessoal de Janice de Piero. 2015.

Essa ideia de vizinhança, de uma memória coletiva dos vizinhos é o que motivou mais

fortemente o trabalho da artista, e seguiu o uso dos ambientes na casa. Alguns vizinhos,

percebendo a movimentação da artista ao montar o espaço, ofereciam objetos, móveis, entre

outros, o que colaborou para a materialidade do trabalho, mas também, que fortaleceu o

simbolismo ali expresso.

Parece que Janice quis simbolizar todas suas recordações, e transformou tudo em símbolos:

de casa, de vizinhos, de cotidiano, rearranjados dentro da casa, de vida na rua, de comer, de

deitar, de tudo que lembra casa. As janelas todas abertas, sempre, para comunicar com o

“fora” que também é “dentro”. Transformou, aos poucos em dentro o que é de fora e de fora, o

que estava “dentro”.

A materialidade dos objetos e paredes entremeia com as memórias das pessoas, estampadas

ali, e que visitavam e se reconheciam. “Fugindo às totalizações imaginárias produzidas pelo

olhar, o cotidiano tem certa estranheza que não vem à tona, ou cuja superfície é apenas o

limite superior, que se delineia contra o visível” (CERTEAU, 1994: 21).

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A jornada do Patrimônio e a Casa que “não amarela”

“ (...) a substituição de um “não-quando”, ou de um sistema sincrônico, pelas resistências indetermináveis e obstinadas oferecidas pelas tradições; estratégias científicas unívocas possibilitadas pelo nivelamento de todos os dados numa projeção plana, devem substituir a tática dos usuários que se aproveitam de “oportunidades” e que, através desses eventos-armadilhas, esses lapsos na visibilidade, reproduzem as opacidades da história por toda parte” (CERTEAU, 1994, 24).

No processo de continuidade da Casa Amarela de Janice de Piero, desde sua ocupação como

moradia e atelier, que depois, como receptáculo para o agenciamento do grupo MOVER, onde

se discutia vividamente as questões do patrimônio do bairro, uma relação entre ações táticas

e estratégicas foram moldando um espaço promotor de situações. Estratégias, tendo a

artista-proprietária com agente mobilizador e tático, pelas constantes tomadas de decisões da

mesma no processo de constituição do espaço.

E esse movimento se dá pelo lento tempo do caminhar na cidade, uma construção dentro da

vivência no andar e experimentar a cidade, a rua. Reconhecer a vizinhança. É juntamente

com os encontros entre pessoas e entre os objetos dados à ocasião. A atual consolidação da

Casa Amarela como um espaço cultural à margem do espaço institucional e do espaço de

iniciativa privada.

Não hesita em existir! É este o lema que toma esse processo. Seguir agenciando movimentos

de corpos, engendrando composições de ações que se figuram em eventos e situações, se

faz sem a obrigatoriedade de apoio institucional. Cada vez mais a casa amarela da Vila

Romana, se torna uma casa na cidade, que promove encontros. Sua presença se dilui pelo

mundo. Inventando uma indeterminação criadora.

É a/uma casa que resiste aos processos institucionais de cultura e arte, se posicionando como

um espaço expositivo de arte e também, um espaço cultural, onde os vizinhos, amigos,

familiares de Janice, sempre se encontram em eventos, situações, onde podem contar suas

histórias, encontrar antigos conhecidos e confraternizar com suas memórias.

Certamente, é necessário conservar estas ilhas, certamente, elas podem desaparecer. Como acabei de dizer, tudo que é pequeno desaparece. Mas, se perdemos tudo o que é pequeno, perdemos também nossa orientação, nos tornamos vítimas do que é grande, impenetrável, superpotente. Deve-se lutar por tudo o que é pequeno e que ainda existe. Aquilo que é pequeno confere ao que é grande um ponto de vista. (WENDERS, 1994, p. 187)

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Os espaços que a casa amarela cria, inventa, toca e reconstrói são os espaços pequenos da

cidade, invisíveis. Este espaço é metade de uma casa – a outra metade é a artista Janice,

proprietária, que vive – A própria casa é uma tática de duplicação da propriedade. A casa se

dá de um desdobramento da casa que era da família, e essa duplicação se multiplica nas

práticas ali desenvolvidas, e agenciam seus encontros. “A partir do momento que a casa foi

aberta para coabitações, as pessoas começaram a visitar, interagir e agradecer por viverem

momentos importantes de reflexão, de exercício de cidadania, de regate da história do bairro”

(JANICE, 2016).

É contracorrente a verticalização das relações artísticas e culturais, contra a verticalização da

massa edificada do bairro Vila Romana. Contracorrente dos processos de institucionalização

dos espaços interiores das casas civis, dos espaços artísticos comuns. A jornada do

Patrimônio, para a artista, tem sido uma oportunidade de estar presente entre as ações

estratégicas dos poderes, mas de forma horizontal.

A casa amarela se dá num agenciamento-dispositivo. Os eventos e a casa como um ponto de

referência, mais que pontos de encontro, que um espaço de arte/cultura. É um movimento de

dentro para fora, de multiplicidade de agenciamentos. Tece linhas de situações que se

emaranham e desemaranham sobre o espaço e os encontros.

“Desenmarañar las líneas de un dispositivo es en cada caso levantar un mapa, cartografiar, recorrer tierras desconocidas, y eso es lo que Foucault llama el "trabajo en el terreno". Hay que instalarse en las líneas mismas, que no se contentan sólo con componer un dispositivo, sino que lo atraviesan y lo arrastran, de norte a sur, de este a oeste o en diagonal” (DELEUZE).

E a Jornada do Patrimônio, desenvolvida já no segundo ano, pela secretaria de cultura da

Prefeitura de São Paulo, com sua proposta de incentivo a abertura de portas dos objetos

construídos que possuem características históricas e culturais, bem como manifestações

artísticas e discussões que abrangem o tema da paisagem, da especulação imobiliária, etc.

Este evento, a Jornada do Patrimônio, nesse sentido, caminha em diagonal no modo de fazer

operante das políticas urbanas e culturais. Os pontos que luzem do ambiente acadêmico, do

ambiente institucional e também, do ambiente das ações diretas insurgentes. À medida que é

criada por parte do poder público, possibilita o pleno uso de direito do civil em agir sobre ela,

tanto em propor roteiros temáticos, em levantar discussões e abertura de portas dos

monumentos.

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De modo direto, para a constituição da Casa Amarela, como edificação que se mantém

preservada num ambiente onde prevalece o contrário, se estabelece como espaço de

expositivo, de cultura e arte. A Jornada do Patrimônio abre mais uma janela, um campo de

possibilidade, tanto no sentido de enriquecer o campo de agenciamentos, tanto em alcançar

maior visibilidade, o que pode potencializar as oportunidades de ações sobre o espaço, no

intuito de torna-lo ainda mais pujante.

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CERTEAU, Michel. Andar pela Cidade. Revista do Iphan, Rio De Janeiro, Número 23. 21-31, 1994.

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