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PARECER HOMOLOGADO Despacho do Ministro, publicado no D.O.U. de 15/6/2012, Seção 1, Pág. 18. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO INTERESSADO: Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Básica UF: DF ASSUNTO: Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena RELATORA: Rita Gomes do Nascimento PROCESSO Nº: 23001.000111/2010-91 PARECER CNE/CEB Nº: 13/2012 COLEGIADO: CEB APROVADO EM: 10/5/2012 I RELATÓRIO 1. Apresentação Este Parecer e o Projeto de Resolução anexo instituem as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena na Educação Básica. As Diretrizes resultam do crescente papel que o protagonismo indígena tem desempenhado no cenário educacional brasileiro, seja nos diferentes espaços de organizações de professores indígenas nas suas mais diversas formas de associações, seja por meio da ocupação de espaços institucionais estratégicos como as escolas, as Coordenações Indígenas nas Secretarias de Educação, no Ministério da Educação, bem como a representação indígena no Conselho Nacional de Educação (CNE). O protagonismo indígena, refletido de modo significativo na I Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena, realizada em 2009, também é exemplificado no momento histórico em que, pela primeira vez, uma indígena assume a relatoria de Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena no CNE. É, então, no momento em que se busca a construção de uma relação mais respeitosa e promotora da justiça social por meio das práticas da educação escolar que se dá a construção destas Diretrizes como forma de promover a ampliação do diálogo intercultural entre o Estado brasileiro e os povos indígenas. Na busca pela construção deste diálogo, o Conselho Nacional de Educação, por meio de sua Câmara de Educação Básica, instituiu em 1999 as primeiras Diretrizes Nacionais para a Educação Escolar Indígena. O Parecer CNE/CEB nº 14/99 e a Resolução CNE/CEB nº 3/99 fixaram normas para o funcionamento das escolas indígenas, no âmbito da Educação Básica. De 1999 até a atualidade, a Educação Escolar Indígena vem sendo objeto de pauta nesse colegiado, tanto, de modo geral, por meio da sua inserção nas questões relacionadas à Educação Básica, quanto na apreciação das matérias que tratam de suas especificidades, como por exemplo, o Parecer CNE/CEB nº 1/2011, que trata das funções do Conselho de Educação Escolar Indígena do Amazonas e o Parecer CNE/CEB nº 10/2011, que orienta a oferta de língua estrangeira nas escolas indígenas de Ensino Médio.

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  • PARECER HOMOLOGADODespacho do Ministro, publicado no D.O.U. de 15/6/2012, Seo 1, Pg. 18.

    MINISTRIO DA EDUCAOCONSELHO NACIONAL DE EDUCAO

    INTERESSADO: Conselho Nacional de Educao/Cmara de Educao Bsica UF: DFASSUNTO: Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Escolar IndgenaRELATORA: Rita Gomes do NascimentoPROCESSO N: 23001.000111/2010-91

    PARECER CNE/CEB N:13/2012

    COLEGIADO:CEB

    APROVADO EM:10/5/2012

    I RELATRIO

    1. ApresentaoEste Parecer e o Projeto de Resoluo anexo instituem as Diretrizes Curriculares

    Nacionais para a Educao Escolar Indgena na Educao Bsica. As Diretrizes resultam do crescente papel que o protagonismo indgena tem desempenhado no cenrio educacional brasileiro, seja nos diferentes espaos de organizaes de professores indgenas nas suas mais diversas formas de associaes, seja por meio da ocupao de espaos institucionais estratgicos como as escolas, as Coordenaes Indgenas nas Secretarias de Educao, no Ministrio da Educao, bem como a representao indgena no Conselho Nacional de Educao (CNE).

    O protagonismo indgena, refletido de modo significativo na I Conferncia Nacional de Educao Escolar Indgena, realizada em 2009, tambm exemplificado no momento histrico em que, pela primeira vez, uma indgena assume a relatoria de Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Escolar Indgena no CNE. , ento, no momento em que se busca a construo de uma relao mais respeitosa e promotora da justia social por meio das prticas da educao escolar que se d a construo destas Diretrizes como forma de promover a ampliao do dilogo intercultural entre o Estado brasileiro e os povos indgenas.

    Na busca pela construo deste dilogo, o Conselho Nacional de Educao, por meio de sua Cmara de Educao Bsica, instituiu em 1999 as primeiras Diretrizes Nacionais para a Educao Escolar Indgena. O Parecer CNE/CEB n 14/99 e a Resoluo CNE/CEB n 3/99 fixaram normas para o funcionamento das escolas indgenas, no mbito da Educao Bsica.

    De 1999 at a atualidade, a Educao Escolar Indgena vem sendo objeto de pauta nesse colegiado, tanto, de modo geral, por meio da sua insero nas questes relacionadas Educao Bsica, quanto na apreciao das matrias que tratam de suas especificidades, como por exemplo, o Parecer CNE/CEB n 1/2011, que trata das funes do Conselho de Educao Escolar Indgena do Amazonas e o Parecer CNE/CEB n 10/2011, que orienta a oferta de lngua estrangeira nas escolas indgenas de Ensino Mdio.

  • Alm destes documentos, a presena de conselheiros indgenas no CNE1, desde 2002, tem evidenciado o reconhecimento gradativo, por parte do Estado brasileiro, da importncia poltica e pedaggica da temtica escolar indgena na construo das diretrizes da educao nacional. Os movimentos sociais dos ndios, por sua vez, consideram o CNE uma importante agncia poltica que tem contribudo para a garantia do direito a uma educao escolar diferenciada.

    Ao longo dessa trajetria h que se destacar ainda a atuao especifica da CEB e de seus conselheiros nos espaos de interao com as comunidades escolares indgenas. Em 2007, por exemplo, a Cmara de Educao Bsica realizou, no perodo de 25 a 27 de maro, reunio ordinria no municpio de So Gabriel da Cachoeira, AM, regio do Alto Rio Negro. O evento se converteu num marco histrico da CEB, tendo em vista ser uma das primeiras reunies ordinrias fora de sua sede em Braslia. Suas sesses contaram com uma grande audincia pblica, notadamente indgena, quando foi posta em relevo a situao da Educao Escolar Indgena daquela regio. Segundo a conselheira Cllia Brando Alvarenga Craveiro, presidente da CEB na poca, o evento refletiu a preocupao da Cmara de Educao Bsica em estar prxima da comunidade indgena para discutir a formulao e a implementao da poltica nacional de Educao Escolar Indgena. 2

    Essa atuao tambm pode ser exemplificada por meio da participao dos conselheiros da CEB em diversos eventos locais, regionais e nacionais promovidos tanto por instituies dos sistemas de ensino, quanto pelo movimento indgena, tais como conferncias, seminrios, audincias pblicas, encontros de professores, dentre outros.

    , ento, nesse contexto de busca de fortalecimento dos dilogos interculturais que a Cmara de Educao Bsica estabelece as Diretrizes Nacionais para a Educao Escolar Indgena na Educao Bsica, no mbito da comisso instituda em 2010, pela Portaria CNE/CEB n 4/2010, composta pelos seguintes conselheiros: Adeum Hilrio Sauer, Cllia Brando Alvarenga Craveiro, Nilma Lino Gomes (Presidente) e Rita Gomes do Nascimento (Relatora), conforme proposto pela Indicao CNE/CEB n 3/2010.

    A construo dessas Diretrizes se deu em dilogo institudo entre o CNE, a Comisso Nacional de Educao Escolar Indgena do Ministrio da Educao (CNEEI/MEC) e o Grupo de Trabalho Tcnico Multidisciplinar, criado pela Portaria n 593, de 16 de dezembro de 2010, no mbito da Secretaria de Educao, Alfabetizao e Diversidade (SECAD) do MEC3. Foram relevantes, ainda, nesse processo as manifestaes apresentadas nos dois seminrios sobre Diretrizes para a Educao Escolar Indgena realizados pelo CNE, ocorridos em 2011 e 2012, em Braslia, bem como as contribuies provindas da reunio tcnica ocorrida durante o ltimo desses seminrios.

    Nesse sentido, estas Diretrizes constituem o resultado de um trabalho coletivo, que expressa o compromisso de representantes de diferentes esferas governamentais e no

    1 Francisca Novantino Pinto de ngelo (povo Pareci de Mato Grosso) de 2002 a 2006; Gersem Jos dos Santos Luciano (povo Baniwa do Amazonas) de 2006 a 2008; Maria das Dores de Oliveira (povo Pankararu de Pernambuco) de 2008 a 2010 e Rita Gomes do Nascimento (povo Potyguara do Cear) de 2010 a atualidade.2 Clipping MEC (15/3/2007 - 15:14): CNE promove reunio para discutir educao indgena.3 O GT foi composto por especialistas indgenas e indigenistas que atuam na Educao Escolar Indgena com o objetivo de subsidiar a elaborao destas diretrizes, tendo como referncia principal as deliberaes da I Conferncia Nacional de Educao Escolar Indgena (CONEEI), realizada em novembro de 2009, o Parecer CNE/CEB 14/99, a Resoluo CNE/CEB 3/99, os documentos referenciais elaborados pelo MEC a partir de 1991, quando este recebeu a incumbncia de coordenar as aes de Educao Escolar Indgena no Brasil, bem como um conjunto de documentos e manifestaes indgenas a respeito da situao da Educao Escolar Indgena no pas.

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  • governamentais, com participao marcante de educadores indgenas, envolvidos com a promoo da justia social e a defesa dos direitos dos povos indgenas na construo de projetos escolares diferenciados, que contribuam para a afirmao de suas identidades tnicas e sua insero digna na sociedade brasileira.

    As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educao Escolar Indgena, de carter mandatrio, objetivam:

    a) orientar as escolas indgenas de educao bsica e os sistemas de ensino da Unio, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municpios na elaborao, desenvolvimento e avaliao de seus projetos educativos;

    b) orientar os processos de construo de instrumentos normativos dos sistemas de ensino visando tornar a Educao Escolar Indgena projeto orgnico, articulado e sequenciado de Educao Bsica entre suas diferentes etapas e modalidades, sendo garantidas as especificidades dos processos educativos indgenas;

    c) assegurar que os princpios da especificidade, do bilingismo e multilinguismo, da organizao comunitria e da interculturalidade fundamentem os projetos educativos das comunidades indgenas, valorizando suas lnguas e conhecimentos tradicionais;

    d) assegurar que o modelo de organizao e gesto das escolas indgenas leve em considerao as prticas socioculturais e econmicas das respectivas comunidades, bem como suas formas de produo de conhecimento, processos prprios de ensino e de aprendizagem e projetos societrios;

    e) fortalecer o regime de colaborao entre os sistemas de ensino da Unio, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municpios, fornecendo diretrizes para a organizao da Educao Escolar Indgena na Educao Bsica, no mbito dos territrios etnoeducacionais;

    f)normatizar dispositivos constantes na Conveno 169, da Organizao Internacional do Trabalho, ratificada no Brasil, por meio do Decreto Legislativo n 143/2003, no que se refere educao e meios de comunicao, bem como os mecanismos de consulta livre, prvia e informada;

    g) orientar os sistemas de ensino da Unio, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municpios a incluir, tanto nos processos de formao de professores indgenas, quanto no funcionamento regular da Educao Escolar Indgena, a colaborao e atuao de especialistas em saberes tradicionais, como os tocadores de instrumentos musicais, contadores de narrativas mticas, pajs e xams, rezadores, raizeiros, parteiras, organizadores de rituais, conselheiros e outras funes prprias e necessrias ao bem viver dos povos indgenas;

    h) zelar para que o direito educao escolar diferenciada seja garantido s comunidades indgenas com qualidade social e pertinncia pedaggica, cultural, lingustica, ambiental e territorial, respeitando as lgicas, saberes e perspectivas dos prprios povos indgenas.

    A Educao Escolar Indgena, como um todo orgnico, ser orientada por estas Diretrizes especficas e pelas Diretrizes prprias a cada etapa e modalidade da Educao Bsica, institudas nacional e localmente.

    2. O direito educao escolar diferenciada

    Nas ltimas dcadas as comunidades indgenas tm buscado construir projetos de educao escolar diferenciada em contraposio tradio assimilacionista e integracionista

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  • de experincias escolares vivenciadas do perodo colonial at recentemente. Estas experincias tinham como uma de suas finalidades o apagamento das diferenas culturais, tidas como entraves ao processo civilizatrio e de desenvolvimento do Pas.

    A instituio escolar ganhou, com isso, novos papis e significados. Abandonando de vez a perspectiva integracionista e negadora das especificidades culturais indgenas, a escola indgena hoje tem se tornando um local de afirmao de identidades e de pertencimento tnico. O direito escolarizao nas prprias lnguas, a valorizao de seus processos prprios de aprendizagem, a formao de professores da prpria comunidade, a produo de materiais didticos especficos, a valorizao dos saberes e prticas tradicionais, alm da autonomia pedaggica, so exemplos destes novos papis e significados assumidos pela escola.

    Nos processos de reelaborao cultural em curso em vrias terras indgenas, a escola tem se apresentado como um lugar estratgico para a continuidade sociocultural de seus modos de ser, viver, pensar e produzir significados. Nesta nova perspectiva, vislumbra-se que a escola possa tanto contribuir para a melhoria das condies de vida das comunidades indgenas, garantindo sustentabilidade, quanto promover a cidadania diferenciada dos estudantes indgenas.

    Esse movimento que nasce de dentro das comunidades indgenas parece comear a encontrar ressonncia no Estado brasileiro, quando a questo das diferenas passa a ganhar um novo sentido, sendo gradativamente assumida como um valor tico e poltico que orienta algumas de suas polticas pblicas. O direito diferena cultural, por exemplo, tem sido bandeira de luta do movimento indgena desde a dcada de 1970, articulado a outros movimentos da sociedade civil organizada em prol da democratizao do pas. Na busca pela defesa de seus direitos e interesses de continuidade sociocultural, os povos indgenas criaram organizaes sociopolticas com o intuito de superar a situao de tutela a que historicamente foram submetidos. importante destacar que a mobilizao poltica dos ndios tem contado com a parceria de entidades indigenistas, algumas delas criadas ainda em meados da dcada de 1970.

    A luta do movimento indgena e de seus aliados repercutiu na redefinio conceitual e pragmtica das relaes entre o Estado e os povos indgenas, concretizada na Constituio Federal do Brasil de 1988, que estabeleceu o paradigma do reconhecimento, manuteno e proteo da sociodiversidade indgena nas polticas pblicas. No campo da educao, novas diretrizes passaram a orientar as prticas pedaggicas e curriculares nas escolas indgenas, no rumo de uma educao escolar prpria ou, como passou a ser concebida, uma Educao Escolar Indgena diferenciada, especfica, intercultural e bilngue e multilngue.

    A Constituio de 1988, superando a perspectiva assimilacionista que marcara toda a legislao indigenista precedente, e que entendia os ndios como uma categoria tnica e social provisria e transitria, apostando na sua incorporao comunho nacional, reconhece a pluralidade cultural e o Estado brasileiro como pluritnico. Delineia-se, assim, um novo quadro jurdico a regulamentar as relaes entre o Estado e a sociedade nacional e os grupos indgenas. A estes se reconhece o direito diferena cultural, isto , o direito de serem ndios, reconhecendo-lhes sua organizao social, costumes, lnguas, crenas e tradies.

    Fica, portanto, a partir da Constituio de 1988 assegurado aos ndios suas especificidades tnico-culturais, cabendo Unio o dever de proteg-las, respeit-las e promov-las. Essa mudana de perspectiva e de entendimento do lugar dos grupos indgenas na sociedade brasileira propiciou a superao de concepes jurdicas h muito tempo estabelecidas, fazendo com que a velha prtica da assimilao cedesse lugar proposio da

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  • afirmao da convivncia e respeito na diferena. No mbito da proposio desse novo marco jurdico, a educao diferenciada encontra amparo legal.

    O art. 210, 2, assegura s comunidades indgenas tambm a utilizao de suas lnguas maternas e processos prprios de aprendizagem. No art. 231 reconhecido o direito a sua organizao social, costumes, lnguas e tradies e os direitos originrios sobre as Terras que tradicionalmente ocupam, competindo Unio demarc-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

    O direito a uma educao diferenciada tambm encontra respaldo na Lei n 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educao Nacional), que estabelece uma srie de princpios gerais para o ensino, dentre eles o pluralismo de ideias e de concepes pedaggicas; a valorizao do profissional de educao escolar; a valorizao da experincia extraescolar; a vinculao entre a educao escolar, o trabalho e as prticas sociais, dentre outros.

    No que diz respeito Educao Escolar Indgena, a atual LDB, rompendo com o silncio da lei anterior, regulamenta as formulaes contidas na Constituio de 1988, determinando, em seu art. 78, que a Unio, em colaborao com as agncias de fomento cultura e de assistncia aos ndios, dever desenvolver programas integrados de ensino e pesquisa para a oferta de educao escolar bilngue e intercultural aos povos indgenas, com os seguintes objetivos:

    I - proporcionar aos ndios, suas comunidades e povos, a recuperao de suas memrias histricas; a reafirmao de suas identidades tnicas; a valorizao de suas lnguas e cincias;II - garantir aos ndios, suas comunidades e povos, o acesso s informaes, conhecimentos tcnicos e cientficos da sociedade nacional e demais sociedades indgenas e no-ndias.O art. 79 define como competncia da Unio, apoiar tcnica e financeiramente os

    sistemas de ensino no provimento da Educao Escolar Indgena, por meio de programas integrados de ensino e pesquisa, visando:

    I - fortalecer as prticas scio-culturais e a lngua materna de cada comunidade indgena;II - manter programas de formao de pessoal especializado, destinado educao escolar nas comunidades indgenas;III - desenvolver currculos e programas especficos, neles incluindo os contedos culturais correspondentes s respectivas comunidades;IV - elaborar e publicar sistematicamente material didtico especfico e diferenciado.Na esteira do que regulamenta a Constituio Federal e a LDB, o Conselho Nacional

    de Educao, por meio do Parecer CNE/CEB n 14/99 e da Resoluo CNE/CEB n 3/99, estabeleceu as primeiras Diretrizes Curriculares Nacionais da Educao Escolar Indgena, definindo: fundamentos e conceituaes da educao indgena, a criao da categoria escola indgena, a definio da esfera administrativa, a formao do professor indgena, o currculo e sua flexibilizao, a flexibilizao das exigncias e das formas de contratao de professores indgenas, a estrutura e o funcionamento das escolas indgenas, bem como a proposio de aes visando concretizao de propostas de Educao Escolar Indgena.

    O Parecer CNE/CEB n 14/99, reconhece que a escola indgena uma experincia pedaggica peculiar e como tal deve ser tratada pelas agncias governamentais, promovendo as adequaes institucionais e legais necessrias para garantir a

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  • implementao de uma poltica de governo que priorize assegurar s sociedades indgenas uma educao diferenciada, respeitando seu universo sociocultural.

    Essas Diretrizes se constituem num marco importante no cenrio educacional brasileiro ao normatizar as experincias de educao diferenciada das comunidades indgenas. Nesse sentido, a Resoluo CNE/CEB n 3/99, em seu art. 1, estabelece no mbito da Educao Bsica, a estrutura e o funcionamento das escolas indgenas, reconhecendo-lhes a condio de escolas com normas e ordenamento jurdico prprios, e fixando as diretrizes curriculares do ensino intercultural e bilnge, visando valorizao plena das culturas dos povos indgenas e afirmao e manuteno de sua diversidade tnica.

    O direito a Educao Escolar Indgena tambm foi contemplado no Plano Nacional de Educao (PNE), institudo pela Lei no 10.172/2001, que vigorou at o ano de 2011. Nele apresentado um diagnstico da oferta de Educao Escolar Indgena, desde o sculo XVI aos dias atuais, apontando para a definio de diretrizes, objetivos e metas que dependem da iniciativa da Unio e dos Estados para a implantao dos programas de Educao Escolar Indgena, bem como ressalvando que estes s devero acontecer com a anuncia das comunidades indgenas.

    O direito diferenciado a uma educao escolar voltada para os interesses e necessidades das comunidades indgenas tambm assegurado pelo Decreto n 6.861/2009, que define a organizao da Educao Escolar Indgena em territrios etnoeducacionais. Nele proposto um modelo diferenciado de gesto que visa fortalecer o regime de colaborao na oferta da Educao Escolar Indgena pelos sistemas de ensino. Em seu art. 1 determina que a Educao Escolar Indgena ser organizada com a participao dos povos indgenas, observada a sua territorialidade e respeitando suas necessidades e especificidades.

    Os territrios etnoeducacionais, definidos pelo Ministrio da Educao, compreendero, independentemente da diviso poltico-administrativa do Pas, as terras indgenas, mesmo que descontnuas, ocupadas por povos indgenas que mantm relaes intersocietrias caracterizadas por razes sociais e histricas, relaes polticas e econmicas, filiaes lingusticas, valores e prticas culturais compartilhados.

    O Decreto reafirma ainda a garantia das normas prprias e Diretrizes Curriculares especficas para as escolas indgenas que, deste modo, gozam de prerrogativas especiais na organizao de suas atividades escolares com calendrios prprios, independentes do ano civil, que respeitem as atividades econmicas, sociais, culturais e religiosas de cada comunidade, nos termos de seu art. 3.

    Evidenciando a consolidao e o aperfeioamento do processo de implantao deste direito especfico dos povos indgenas a uma educao escolar prpria, a I Conferncia Nacional de Educao Escolar Indgena (CONEEI), aps as etapas locais e regionais, aprovou documento final em que so apresentadas propostas para as polticas de Educao Escolar Indgena. Dada a importncia poltica e pedaggica do evento para os novos rumos da Educao Escolar Indgena, a CONEEI e seu documento final sero considerados adiante.

    O direito das comunidades indgenas de participarem ativamente da elaborao e implementao de polticas pblicas a elas dirigidas e de serem ouvidas por meio de consultas livres, prvias e informadas nos projetos ou medidas legais que as atinjam direta ou indiretamente, de acordo com a recomendao da Conveno 169, da Organizao Internacional do Trabalho (OIT) de 1989, coaduna-se com os preceitos que regulamentam o direito a educao escolar diferenciada. Poder decidir e participar no processo de elaborao e implementao de projetos escolares expresso das novas relaes e dilogos estabelecidos entre povos indgenas e Estado nacional.

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  • No Brasil esta Conveno foi ratificada pelo Congresso Nacional em 2002 e promulgada pelo Decreto n 5.051/2004. O que motivou a aprovao desta Conveno foi o fato dos povos indgenas e tribais, em muitas partes do mundo, no gozarem dos direitos humanos fundamentais na mesma proporo que o resto da populao. H, alm disso, o reconhecimento de que tais povos deveriam assumir o controle de suas prprias instituies, seu modo de vida e seu desenvolvimento econmico.

    Corroborando com esta viso que aponta para as ideias de protagonismo e autonomia dos indgenas, preciso dar relevo ainda Declarao da Unio das Naes Unidas sobre o Direito dos Povos Indgenas, de 13 de setembro de 2007, que reconhece a urgente necessidade de respeitar e promover os direitos intrnsecos dos povos indgenas, que derivam de suas prprias estruturas polticas, econmicas e sociais e de suas culturas, de suas tradies espirituais, de sua histria e concepo de vida, especialmente os direitos s terras, aos territrios e recursos; reconhecendo, sobretudo, a urgente necessidade de respeitar e promover os direitos dos povos indgenas assegurados em tratados, acordos e outros pactos construtivos com os Estados; celebrando que os povos indgenas estejam se organizando para promover seu desenvolvimento poltico, econmico, social e cultural, com o objetivo de pr fim a todas as formas de discriminao e opresso onde quer que ocorram.

    Todo este aparato legal impulsiona e d sustentao ao direito diferena, fenmeno ligado a prticas e discursos polticos que celebram a igualdade de direitos, a promoo das diversidades e a dignidade humana. Tais prticas e discursos esto ligados ideia de Direitos Humanos, entendidos como direitos universais relacionados promoo de um conjunto de direitos fundamentais, dentre eles a educao.

    Neste cenrio, as polticas pblicas encontram o desafio de unir universalizao de direitos e aes polticas com o efetivo respeito e valorizao das diferenas culturais como princpio orientador para as polticas educativas voltadas aos grupos indgenas. Em tais polticas, igualdade e diversidade no devem ser antagnicas, constituindo-se nos fundamentos de uma sociedade democrtica promotora da justia social.

    A Educao Escolar Indgena para sua realizao plena, enquanto um direito constitucionalmente garantido, precisa estar alicerada em uma poltica lingustica que assegure o princpio do biliguismo e multilinguismo, e em uma poltica de territorialidade, ligada garantia do direito a terra, a auto-sustentabilidade das comunidades e a efetivao de projetos escolares que expressem os projetos societrios e vises de mundo e de futuro dos diferentes povos indgenas que vivem no territrio nacional.

    Como dever do Estado brasileiro para com os povos indgenas a Educao Escolar Indgena dever se constituir num espao de construo de relaes intertnicas orientadas para a manuteno da pluralidade cultural, pelo reconhecimento de diferentes concepes pedaggicas e pela afirmao dos povos indgenas como sujeitos de direitos.

    A escola indgena ser criada em atendimento reivindicao ou por iniciativa da comunidade interessada, ou com a anuncia da mesma, respeitadas suas formas de representao, e ter como elementos bsicos para sua organizao, estrutura e funcionamento:

    a) a centralidade do territrio para o bem viver dos povos indgenas e para seus processos formativos e, portanto, a localizao das escolas em terras habitadas por comunidades indgenas, ainda que se estendam por territrios de diversos Estados ou Municpios contguos;

    b) a importncia do uso das lnguas indgenas e dos registros lingusticos especficos

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  • do portugus para o ensino ministrado nas lnguas indgenas de cada povo e comunidade, como uma das formas de preservao da realidade sociolingustica de cada povo;

    c) a organizao escolar prpria, nos termos detalhados no Projeto de Resoluo em anexo;

    d) a exclusividade do atendimento a comunidades indgenas por parte de professores indgenas oriundos da respectiva comunidade.

    Na organizao da escola indgena dever ser considerada a participao de representantes da comunidade, na definio do modelo de organizao e gesto, bem como suas estruturas sociais; suas prticas socioculturais, religiosas e econmicas; suas formas de produo de conhecimento, processos prprios e mtodos de ensino-aprendizagem; o uso de materiais didtico-pedaggicos produzidos de acordo com o contexto sociocultural de cada povo indgena; e a necessidade de edificao de escolas com caractersticas e padres construtivos de comum acordo com as comunidades usurias, ou da predisposio de espaos formativos que atendam aos interesses das comunidades indgenas.

    importante lembrar ainda, no que diz respeito ao reconhecimento das especificidades dos povos indgenas no ambiente educacional, a necessidade de se considerar os casos dos estudantes indgenas que estudam em escolas no indgenas, como por exemplo, nas situaes em que estes estudantes, mesmo morando em suas aldeias, so obrigados a procurar escolas no indgenas pela ausncia de escolas diferenciadas ou da oferta de todas as etapas da Educao Bsica em suas comunidades, alm dos casos em que os indgenas residem fora de suas comunidades de origem. Tais estudantes tambm precisam ter garantido o direito de expresso de suas diferenas tnico-culturais, de valorizao de seus modos tradicionais de conhecimento, crenas, memrias e demais formas de expresso de suas diferenas.

    Para tanto, as escolas no indgenas devem desenvolver estratgias pedaggicas com o objetivo de promover e valorizar a diversidade cultural, tendo em vista a presena de diversos outros na escola. Uma das estratgias ancoradas na legislao educacional vigente diz respeito insero da temtica indgena nos currculos das escolas pblicas e privadas de Educao Bsica. Os contedos referentes a esta temtica sero ministrados no mbito de todo o currculo escolar, em especial nas reas de educao artstica e de literatura e histria brasileiras, nos termos do art. 26-A da LDB com a redao dada pela Lei n 11.645/2008.

    Para o cumprimento efetivo da lei, faz-se necessrio que os cursos de formao inicial e continuada de professores proporcionem aos docentes o conhecimento de estratgias pedaggicas, materiais didticos e de apoio pedaggico, alm de procedimentos de avaliao que considerem a realidade cultural e social destes estudantes com o objetivo de lhes garantir o direito educao escolar (Parecer CNE/CEB n 14/2011). Direito que, para ser efetivado, carece de maior democratizao do acesso, de assistncia estudantil para permanncia do estudante na escola e da qualidade social do ensino para concluso com sucesso dos estudos realizados nas escolas no indgenas.

    Estas condies, aliceradas numa concepo e prtica de educao em direitos humanos, ajudam a eliminar toda forma de preconceito e discriminao, promovendo a dignidade humana, a laicidade do Estado, a igualdade de direitos, o reconhecimento e valorizao das diferenas e das diversidades, de acordo com as Diretrizes Nacionais para a Educao em Direitos Humanos (Parecer CNE/CP n 8/2012).

    3. I Conferncia Nacional de Educao Escolar Indgena

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  • De 16 a 21 de novembro de 2009, o MEC, em parceria com o Conselho Nacional de Secretrios de Educao (CONSED) e a Fundao Nacional do ndio (FUNAI), realizou, em Luzinia, GO, a I Conferncia Nacional de Educao Escolar Indgena (CONEEI), que teve como tema Educao Escolar Indgena: Gesto Territorial e Afirmao Cultural. A CONEEI foi precedida de conferncias locais, realizadas em 1.836 escolas indgenas, com a participao de cerca de 45.000 pessoas entre estudantes, professores, pais e mes de estudantes, alm de lideranas indgenas.

    Dessas conferncias locais saram propostas que foram discutidas em 18 conferncias regionais, reunindo cerca de 3.600 delegados, 400 convidados e 2.000 observadores, entre representantes dos povos indgenas, dirigentes e gestores dos sistemas de ensino, FUNAI, instituies de ensino superior, entidades da sociedade civil e demais instituies. Nas conferncias regionais foram aprovadas propostas para serem discutidas e apreciadas na Conferncia Nacional, etapa que congregou 604 delegados, 100 convidados e 100 observadores, totalizando 804 participantes. Estiveram representados 210 povos indgenas.

    A Conferncia Nacional teve como principais objetivos consultar representantes dos povos indgenas, das organizaes governamentais e da sociedade civil sobre as realidades e as necessidades educacionais para o futuro das polticas de Educao Escolar Indgena; discutir propostas de aperfeioamento de sua oferta, principalmente em relao ao modelo de gesto, propondo diretrizes que possibilitem o avano da Educao Escolar Indgena em qualidade sociocultural e efetividade.

    Entre as principais propostas aprovadas pelos participantes da Conferncia esto a criao de um sistema prprio de Educao Escolar Indgena articulado ao sistema nacional de educao; a implantao dos territrios etnoeducacionais; a necessidade de ampliao do controle social a partir da tica e das necessidades de cada povo indgena, de modo que os novos modelos de gesto garantam e ampliem o protagonismo indgena em todas as instncias propositivas e deliberativas.

    Alm desses, 17 outros itens foram discutidos e propostos com o objetivo de orientar a elaborao das Diretrizes Nacionais para a Educao Escolar Indgena, definidas pelo Conselho Nacional de Educao, dando nfase perspectiva intercultural como parte das estratgias de autonomia poltica dos povos indgenas. Nessa perspectiva, a escola indgena deve trabalhar temas e projetos ligados aos modos de vida de suas comunidades, proteo das terras indgenas e dos recursos naturais, devendo para isso dialogar tambm com outros saberes.

    Neste sentido, destaca-se a recomendao para que os projetos educativos reconheam a autonomia pedaggica das escolas e dos povos ao contemplar os conhecimentos e modos indgenas de ensinar, o uso das lnguas indgenas, a participao dos sbios indgenas independente da escolaridade, a participao das comunidades valorizando os saberes, a oralidade e a histria de cada povo, em dilogo com os demais saberes produzidos por outras sociedades humanas.

    Na CONEEI foi proposto tambm que os sistemas de ensino da Unio, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municpios, em parcerias com as organizaes indgenas, Organizaes no governamentais da sociedade civil e demais rgos governamentais como instituies de Educao Superior, FUNAI, criassem programas de assessoria especializada e pesquisas em Educao Escolar Indgena para dar suporte aos projetos poltico-pedaggicos e ao funcionamento das escolas indgenas. Os rgos governamentais devem garantir recursos financeiros para a construo de infraestrutura adequada oferta de educao de qualidade (transporte, merenda, equipamentos e prdios escolares), a formao inicial e continuada de professores indgenas, a produo de materiais didticos e assessoria tcnica e jurdica.

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  • Pode-se destacar, ainda, como preocupaes e proposies centrais da Conferncia:a) a importncia de se implementar polticas lingusticas, tendo em vista a riqueza

    cultural e lingustica de certas regies do pas. Faz-se necessrio, nesse sentido, a elaborao e implantao de polticas a partir de consulta livre, prvia e informada a favor da valorizao das lnguas indgenas e do plurilinguismo individual e comunitrio, existentes nas terras indgenas e em outros contextos urbanos regionais marcados pela presena indgena;

    b) a necessidade de criao, pelo MEC, em parceria com as instituies envolvidas com a Educao Escolar Indgena, de formas diferenciadas de avaliao institucional e do desempenho dos estudantes indgenas, bem como do reconhecimento dos cursos de licenciatura indgena. Isto significa que a Educao Escolar Indgena deve ter processos prprios de avaliao, levando-se em considerao as diferenas de cada comunidade, os projetos poltico-pedaggicos das escolas e dos cursos de formao de professores indgenas;

    c) a necessidade de se reconhecer o carter diferenciado das escolas indgenas, com seus programas, currculos, calendrios e materiais didticos prprios e especficos, balizados por projetos poltico-pedaggicos que espelhem os projetos societrios de cada povo, contemplando a gesto territorial e ambiental das Terras Indgenas e a sustentabilidade das comunidades;

    d) a necessidade de se estabelecer diretrizes para demandas cada vez mais presentes em todos os territrios etnoeducacionais para nveis ou modalidades de ensino at ento no regulamentadas no contexto da legislao para Educao Escolar Indgena: Educao Infantil, Ensino Mdio Regular ou Integrado Educao Profissional, Educao de Jovens e Adultos, Educao Especial e Educao Superior.

    O Documento Final contm cerca de 50 proposies votadas e aprovadas pelos delegados participantes da I CONEEI, tambm aprovadas, em sua integralidade, na Conferncia Nacional de Educao (CONAE) ocorrida em 2010. Na orientao das mudanas necessrias na oferta e conduo da poltica nacional de Educao Escolar Indgena, fundamental que tanto o Ministrio da Educao e as Secretarias de Educao, quanto os rgos de normatizao, como os Conselhos Estaduais de Educao, incorporem e assumam essa agenda de proposies na formulao e execuo das polticas pblicas dirigidas aos povos indgenas e suas escolas.

    4. Organizao da Educao Escolar IndgenaUma comparao dos dados sobre escolas indgenas disponveis no MEC, nos ltimos

    anos, permite constatar que tem havido um aumento progressivo no nmero de escolas indgenas a cada ano em que se registram dados sobre elas. Em 1999, quando foi realizado um primeiro censo especfico da Educao Escolar Indgena, foram identificadas 1.392 escolas. Nos anos seguintes, os dados, que foram obtidos por meio do censo escolar, realizado anualmente em todas as escolas do pas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP) do MEC, apontam para esse crescimento: em 2004, esse nmero saltou para 2.228; em 2005, para 2.323; em 2006, para 2.422; em 2007, para 2.480; em 2008, para 2.633; em 2009, para 2.672 e em 2010, para 2.836 escolas indgenas.

    Esse aumento progressivo do nmero de escolas indgenas verificado no perodo focalizado (1999-2010) deve-se no s a um maior rigor no fornecimento de informaes para o censo escolar, mas tambm ao fato de que, nos ltimos anos, os sistemas de ensino estaduais e municipais passaram a regularizar as escolas das aldeias, reconhecendo-as como escolas indgenas. Isto implicou em processos de reconhecimento de salas de aulas localizadas em

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  • aldeias que antes eram consideradas como salas de extenso de escolas rurais e urbanas. Deve-se, ainda, ao abandono da dinmica de nucleao de escolas, quando vrias escolas so vinculadas a um nico endereo e, portanto, aparecem como um nico estabelecimento. Esse aumento tambm se explica pela importncia que a escola passou a ter nos ltimos anos para os grupos indgenas, no s como forma de acesso a conhecimentos e prticas que se quer dominar, mas tambm pela possibilidade de benefcios que a acompanham, como o recebimento de alimentao escolar ou assalariamento de membros da comunidade, por meio da contratao de professores, diretores, merendeiras, faxineiras e vigilantes.

    Em termos de vinculao administrativa, os dados revelam que a maior parte das escolas indgenas hoje est vinculada aos municpios: so 1.508 escolas municipais (53,17%) e 1.308 escolas indgenas estaduais (46,13%). Nessas escolas estudam 194.449 estudantes indgenas, distribudos pelos 25 Estados da Federao que registram escolas indgenas (dados de 2010). Destes estudantes 151.160 estavam no Ensino Fundamental, sendo que 109.919 estavam matriculados nos anos iniciais, enquanto apenas 41.241 estavam nos anos finais; 19.565 estavam matriculados na Educao Infantil; 10.004 no Ensino Mdio e 15.346 na modalidade de Educao de Jovens e Adultos. Em termos percentuais, a situao de matrcula dos estudantes indgenas em 2010 a seguinte:

    Educao Infantil 10%

    Ensino Fundamental Total 77,5%

    Anos iniciais (72,7%)

    Anos finais (27,3%)

    Ensino Mdio 5%

    Educao de Jovens e Adultos 7,5%

    A distribuio desses estudantes, pelos nveis e modalidades de ensino, mostra que h ainda um grande desequilbrio na progresso dos anos de estudo, havendo uma forte concentrao dos estudantes indgenas nas primeiras sries do Ensino Fundamental: eles representam 56,5% do total de estudantes matriculados. J no Ensino Mdio, contabiliza-se apenas 5% do total dos estudantes indgenas. Essa uma situao que tem marcado a expanso da escola indgena pelo pas, ainda que se registre, em anos recentes, uma pequena melhora nesse quadro.

    Porm, uma melhor adequao da distribuio dos estudantes pelos diferentes nveis e modalidades de ensino exige um esforo maior por parte dos sistemas de ensino do pas, no sentido de garantir e ampliar os programas de formao de professores indgenas, tanto em nvel de magistrio na modalidade normal quanto superior; construir, reformar e equipar as escolas indgenas, provendo-as com equipamentos e materiais didtico-pedaggicos prprios, que permitam o exerccio e a prtica da educao intercultural e diferenciada almejada pelas comunidades indgenas e garantida na legislao educacional brasileira.

    Os sistemas de ensino devero, tambm, assegurar s escolas indgenas estrutura adequada s necessidades dos estudantes e das especificidades pedaggicas da educao diferenciada, garantindo laboratrios, bibliotecas, espaos para atividades esportivas e artstico-culturais, assim como equipamentos que garantam a oferta de uma educao escolar de qualidade sociocultural.

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  • 4.1 Educao InfantilA Educao Infantil um direito dos povos indgenas que deve ser garantido e

    realizado com o compromisso de qualidade sociocultural e de respeito aos preceitos da educao diferenciada e especfica. Sendo um direito, ela pode ser tambm uma opo de cada comunidade indgena que possui a prerrogativa de, ao avaliar suas funes e objetivos a partir de suas referncias culturais, decidir pelo ingresso ou no de suas crianas na escola desde cedo.

    Para que essa avaliao expresse de modo legtimo os interesses de cada comunidade indgena, os sistemas de ensino devem promover consulta livre, prvia e informada acerca da oferta da Educao Infantil entre todos os envolvidos, direta e indiretamente, com a educao das crianas indgenas, tais como pais, mes, avs, os mais velhos, professores, gestores escolares e lideranas comunitrias.

    Em alguns contextos indgenas, as escolas no so vistas como necessrias para cuidar e educar as crianas, papel, por excelncia, da famlia e da comunidade. Mas, em outros, a Educao Infantil se apresenta como uma demanda poltica e social que dever ser atendida pelo Estado.

    Para as famlias que necessitam, a Educao Infantil indgena dever ser cuidadosamente planejada e avaliada no que se refere ao respeito aos conhecimentos, s culturas, s lnguas, aos modelos de ensino e aprendizagem, dentre outros aspectos. Esses cuidados devem ser tomados para evitar que a escola distancie a criana de seus familiares, dos demais membros da comunidade, dos outros espaos comunitrios e at mesmo, em alguns casos, da sua lngua materna.

    Com relao autonomia dos povos indgenas na escolha dos modos de educao de suas crianas, de acordo com o Parecer CNE/CEB n 20/2009, em seu art. 8, 2, as propostas pedaggicas para os povos que optaram pela Educao Infantil devem:

    a) proporcionar uma relao viva com os conhecimentos, crenas, valores, concepes de mundo e as memrias de seu povo;

    b) reafirmar a identidade tnica e a lngua materna como elementos de constituio das crianas;

    c) dar continuidade educao tradicional oferecida na famlia e articular-se s prticas socioculturais de educao e cuidado coletivos da comunidade;

    d) adequar calendrio, agrupamentos etrios e organizao de tempos, atividades e ambientes de modo a atender s demandas de cada povo indgena.

    Alm disso, tais propostas devem garantir o acesso das crianas no apenas aos conhecimentos tradicionais de seus grupos sociais de origem, mas tambm aos conhecimentos de outros grupos ou culturas. As brincadeiras tradicionais das infncias indgenas tambm devem ser consideradas prticas de aprendizagem e de desenvolvimento emocional, fsico e motor, reconhecendo as prticas de acesso e partilha de conhecimento pelas crianas indgenas.

    Crianas so, atualmente, compreendidas como seres sociais plenos e ativos em suas relaes e sua compreenso do mundo. Por essa razo, as escolas indgenas devem considerar os elementos concebidos como importantes pelas comunidades indgenas na definio de suas infncias: a formao de seu corpo, as relaes sociais que contribuem com seu aprendizado, as etiquetas, as ticas, enfim, os processos formativos.

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  • Assim, as definies de cada povo sobre o que aprender e quais os processos e as relaes fundamentais para tal o que se deve aprender, por meio de que relao, como, quando e quanto devem ser levadas em considerao nos espaos escolares. A diversidade dos modos de conceber o conhecimento e sua produo, ento, deve ser discutida e contemplada nos projetos educativos da Educao Infantil nos contextos indgenas.

    Nos ambientes escolares, as crianas no devem ser privadas de compartilhar a comida com seus parentes, de criar e fortalecer os laos de parentesco, de contatos afetivos, de brincar com seus pares, de se relacionar com todas as geraes, aprendendo os lugares e as atribuies de cada um, aspectos importantes na construo de suas identidades.

    Desse modo, a escola, compreendendo que as crianas so parte da comunidade, no pode segreg-las das atividades socioeconmicas e rituais e das relaes sociais que a constituem, devendo prever suas participaes nestas atividades e sua convivncia com os diversos atores nelas envolvidos. Nesse sentido, importante que a educao escolar das crianas contemple as iniciativas e atividades educativas complementares escola e de carter comunitrio, voltadas valorizao cultural, aos processos prprios de transmisso e socializao dos conhecimentos e sustentabilidade socio-ambiental dos povos indgenas.

    Com isso, o calendrio da escola indgena, por exemplo, deve prever a possibilidade de participao das crianas nestas atividades, considerando-as tambm letivas. Esta participao, parte da formao das crianas indgenas, no deve ser confundida com explorao do trabalho infantil.

    Alternativamente, se pode pensar em uma Educao Infantil que no as encerre nos muros da escola, nem as prive das relaes que so importantes para sua formao e socializao, no sendo uma mera antecipao da escolarizao e alfabetizao precoces, respeitando os projetos socio-educativos de cada povo.

    Na organizao dos espaos e dos tempos da Educao Infantil nas escolas indgenas, deve se observar as seguintes orientaes:

    a) as prticas culturais comunitrias devem ser reconhecidas como parte fundamental da educao escolar das crianas e vivenciadas por elas nos seus espaos e tempos apropriados;

    b) deve ser considerada a importncia da presena dos sbios e especialistas dos co-nhecimentos tradicionais de cada comunidade, garantindo-lhes a participao nos processos educativos;

    c) a presena das mes ou daqueles que so responsveis pelas crianas de acordo com as prticas comunitrias de cuidado deve ser garantida;

    d) a educao escolar das crianas indgenas deve fazer uso dos diversos espaos institucionais de convivncia e sociabilidade das comunidades, como por exemplo: casa da cultura, casa da lngua, centros comunitrios, espaos tradicionais de ensino. As atividades pedaggicas desenvolvidas nestes espaos devero ser reconhecidas pelas instncias normativas como atividade letiva;

    e) para a oferta da Educao Infantil nas escolas indgenas deve ser garantida a estru-tura adequada de acordo com a especificidade e as decises de cada comunidade.

    f) a organizao das turmas deve respeitar as idades das crianas tal como definidas pelas comunidades escolares, considerando-se, inclusive, a possibilidade de criao de turmas com faixas etrias diferentes, tanto na escola quanto nos outros espaos de aprendizagem da comunidade;

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  • g) a idade de entrada da criana na escola deve ser definida pelas comunidades indge-nas, aps consulta livre, prvia e informada, com diagnstico e avaliao;

    h) a organizao das crianas por gnero deve tambm ser definida por cada comuni-dade, tanto na organizao da escola, quanto nas atividades e nos aprendizados especficos;

    i) a lngua em que sero desenvolvidas as atividades escolares dever ser decidida previamente e com ampla participao comunitria, sendo prioritria a alfabetizao na lngua indgena, quando for o caso;

    j) o direito Educao Infantil deve ser garantido independente da quantidade de crianas matriculadas na escola, no devendo restringir-se aos parmetros quantitativos defi-nidos a priori pelos sistemas de ensino.

    4.2 Ensino FundamentalO Ensino Fundamental, em seus primeiros anos, foi durante muito tempo a nica etapa

    de ensino ofertada nas escolas indgenas. Sua universalizao ainda hoje continua sendo um desafio, o que traduz a inadequao das estruturas educacionais dos sistemas de ensino e a ineficcia das polticas pblicas que visam garantir aos estudantes indgenas o acesso, permanncia e concluso com xito dessa etapa da Educao Bsica. Em que pesem os avanos significativos dos ltimos tempos realizados com a formao de professores, a construo e ampliao de escolas, a melhoria na alimentao e transporte escolares, o direito educao escolar mesmo na fase considerada fundamental no foi conquistado plenamente pelos povos indgenas que reivindicam a presena da escola em suas comunidades.

    Para a garantia do Ensino Fundamental, direito humano, social e pblico subjetivo4, ser necessria a conjugao de sua oferta com as polticas pblicas destinadas aos diferentes mbitos da vida dos estudantes indgenas e de suas comunidades. O que significa dizer que as polticas educacionais devem estar articuladas, por exemplo, com as polticas ambientais, territoriais, de ateno sade, cultura, ao desenvolvimento econmico e social, para que sua oferta esteja adequada, de modo mais efetivo, s concepes e modos de ser indgenas. Nesse sentido, a criao e implementao de polticas educacionais diferenciadas e especficas para as populaes indgenas, requerendo as condies supracitadas de articulao com outras polticas pblicas, condio sine qua non para a garantia do direito educao escolar a estes atores sociais.

    O Ensino Fundamental, aliado ao educativa da famlia e da comunidade, dever se constituir em tempo e espao de formao para a cidadania indgena plena, articulada tanto ao direito diferena quanto ao direito igualdade. Essa cidadania poder ser construda por meio do acesso aos cdigos da leitura, da escrita, das artes, dos conhecimentos ligados s cincias humanas, da natureza, matemticas, linguagens, bem como do desenvolvimento das capacidades individuais e coletivas necessrias ao convvio sociocultural da pessoa indgena com sua comunidade de pertena e com outras sociedades. Noutros termos, o Ensino Fundamental deve assumir a funo de propiciar aos estudantes indgenas os conhecimentos escolarizados fundamentais para o trnsito das suas vivncias dentro e fora da comunidade.

    O Ensino Fundamental deve ainda aliar s prticas educativas, as prticas do cuidar, no atendimento s necessidades dos estudantes indgenas desta etapa da Educao Bsica em

    4 Nos marcos da Declarao Universal dos Direitos Humanos, da Constituio Federal Brasileira de 1988 e da Resoluo CNE/CEB n 7/2010 que considera o Ensino Fundamental como um direito pblico subjetivo de cada um e como dever do Estado e da famlia na sua oferta a todos.

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  • seus diferentes momentos de vida (infncias, juventudes e fase adulta). Sendo assim, os cuidados corporais e afetivos, de acordo com os sentidos que lhes atribui cada comunidade ou grupo indgena, precisam se constituir em parte das aes educativas estendidas a todos os estudantes, atendendo aos diferentes grupos ou categorias de idade definidos comunitariamente. A ludicidade como estratgia pedaggica, por exemplo, no deve restringir-se ao universo da educao infantil, podendo perpassar vrios momentos do processo de ensino aprendizagem nas escolas indgenas que ofertam o Ensino Fundamental. De acordo com esta orientao, as brincadeiras, as danas, as msicas e os jogos tradicionais de cada comunidade e das diferentes culturas precisam ser considerados componentes curriculares ou instrumentos pedaggicos importantes no tratamento das questes culturais, tornando mais prazeroso o aprendizado da leitura, da escrita, das lnguas, dos conhecimentos das cincias, das matemticas, das artes.

    Organizado em ciclos, seriao, etapas ou mdulos, a oferta do Ensino Fundamental nas escolas indgenas segue, na maioria dos casos, a proposta organizacional definida pelas Secretarias de Educao. No entanto, faz-se necessrio destacar que as escolas indgenas possuem autonomia para, na definio de seus projetos poltico-pedaggicos, organizar o Ensino Fundamental de acordo com as especificidades de cada contexto escolar e comunitrio.

    As escolas indgenas, dentro de sua autonomia, devem adequar os currculos do Ensino Fundamental aos tempos e aos espaos da comunidade, atentando para os diversos tempos e modos de aprendizagem de cada estudante indgena. Nesse sentido, os currculos e programas escolares devem ser flexveis, adequados ao desenvolvimento e aprendizagem dos estudantes indgenas nas dimenses biopsicossociais, culturais, cosmolgicas, afetivas, cognitivas, lingusticas, dentre outras. Corroborando com este objetivo, cabem aos professores indgenas do Ensino Fundamental a construo e utilizao de mtodos, estratgias e recursos de ensino que melhor atendam s caractersticas e necessidades cognitivas e culturais dos estudantes de sua comunidade.

    O conjunto destas orientaes est em conformidade com a Resoluo CNE/CEB n 7/2010 que reconhece, em seu art. 40, o direito dos povos indgenas de terem respeitadas as suas peculiares condies de vida e a utilizao de pedagogias condizentes com as suas formas prprias de produzir conhecimentos, observadas as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educao Bsica.

    Na mesma direo, a Resoluo CNE/CEB n 3/99, ao reconhecer a condio das escolas indgenas como instituies educativas regidas por normas e ordenamento jurdico prprios, autoriza os professores indgenas ao exerccio da gesto pedaggica e administrativa de suas prticas escolares diferenciadas.

    Mas, diante do contexto de expanso das escolas indgenas, em muitos casos, seus professores tm enfrentado problemas na formao dos ncleos ou equipes gestoras, tendo em vista o alheamento dos critrios estabelecidos pelos sistemas de ensino em relao s realidades socioculturais dos povos e comunidades indgenas. Sendo assim, as Secretarias de Educao precisam, em articulao com as comunidades indgenas, definir a composio do quadro de indgenas que gestar a escola, observando-se o estabelecimento de critrios em comum acordo. Isto ajudar a promover maior reconhecimento do direito dos indgenas a assumirem o controle social dos seus projetos de educao escolar.

    Alm disso, para que se efetive a autonomia das escolas indgenas imprescindvel, por exemplo, a participao dos professores indgenas nos espaos de acompanhamento e controle social do Ensino Fundamental, tais como os Conselhos de Alimentao Escolar,

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  • conselhos de execuo dos recursos, de avaliao dos sistemas e redes, bem como da prpria Educao Bsica.

    No respeito autonomia das escolas indgenas, a organizao atual do Ensino Fundamental com durao de nove anos, ao instituir a obrigatoriedade da matrcula dos estudantes com seis anos de idade, conforme dispe a LDB, alterada pela Lei n 11.274/2006, deve adequar-se aos imperativos socioculturais das comunidades indgenas como fundamentos de seus projetos de escolarizao. Assim, em que pesem os aspectos positivos dessa ampliao da durao do Ensino Fundamental para outros segmentos da populao brasileira, possibilitando a entrada das crianas mais cedo na escola, a opo de alguns grupos indgenas pela no insero de crianas muito pequenas na escola tambm deve ser respeitada. Recomenda-se, ento, que a idade de matrcula das crianas no Ensino Fundamental poder ocorrer aps os seis anos de idade para os grupos indgenas que assim optarem, em razo das especificidades de suas prticas culturais de cuidar e educar.

    No que se refere universalizao do Ensino Fundamental nas comunidades indgenas, uma das questes prementes est ligada implantao e ampliao, onde for o caso, do segundo segmento do Ensino Fundamental. Tal ao coloca novos desafios para as escolas indgenas e seus professores, como a questo da adequao das formaes docentes; da necessidade de ampliao de investimentos no transporte e alimentao escolar; de adequao da estrutura de prdios escolares compatveis, equipamentos e mobilirios para os diferentes pblicos (crianas, jovens e adultos) atendidos no Ensino Fundamental e a adaptao das funes dos docentes indgenas, materiais didticos e pedaggicos, bem como das metodologias de ensino s necessidades e caractersticas dos anos finais do Ensino Fundamental.

    Por fim, no que diz respeito s especificidades das escolas indgenas, embora os sistemas de ensino tenham dividido as responsabilidades com a Educao Bsica ficando, geralmente, o Ensino Fundamental a cargo dos Municpios e o Ensino Mdio sob a responsabilidade dos Estados, a oferta da Educao Escolar Indgena da competncia dos Estados. Portanto, a oferta do Ensino Fundamental nas escolas indgenas, com tudo o que lhe diz respeito, deve ser da alada dos Estados, cabendo-lhes o provimento de recursos necessrios garantia do Ensino Fundamental aos estudantes indgenas de acordo com suas especificidades.

    H, ainda, que se considerar o fato do sistema nacional de ensino estar organizado num percurso formativo que vai da Educao Infantil ao ensino superior e ps-graduao. Todavia, entre algumas comunidades indgenas h outros percursos de formao para o desempenho de papis especializados que nem sempre obedecem sucesso unilinear das etapas presentes no sistema nacional. Na garantia do direito diferena necessrio, ento, que os sistemas de ensino reconheam a validade social e pedaggica desses processos formativos diferenciados.

    No que concerne s prticas lingusticas nas escolas indgenas, a prevalncia do portugus, em contextos comunitrios bilngues ou multilngues, expressa a desvalorizao, em algumas situaes, a que est sujeita a diversidade sociolingustica do pas. H casos, no entanto, em que a lngua de instruo adotada nos anos iniciais do Ensino Fundamental a lngua indgena, evidenciando a estratgia comunitria para a salvaguarda, vitalizao e valorizao dessa lngua nos processos escolares. Faz-se necessrio para a soluo do problema das ameaas s sociodiversidades lingusticas no ambiente educacional, a criao e implementao de uma poltica lingustica nacional que assegure a obedincia do princpio do bilinguismo e multilinguismo que rege as propostas de Educao Escolar Indgena. Nesse sentido, a Cmara de Educao Bsica do Conselho Nacional de Educao, por meio do

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  • Parecer CNE/CEB n 10/2011, recomendou ao Ministrio da Educao o planejamento e a execuo de uma poltica sociolingustica para os grupos indgenas em contextos de escolarizao assentada nos princpios da igualdade e da diferena.

    Esta poltica lingustica deve possibilitar, dentre outras coisas, a formao sistemtica dos quadros tcnicos dos Sistemas de Ensino e igualmente dos professores indgenas docentes e gestores e seus formadores no conhecimento das teorias que analisem os fenmenos sociolingusticos das lnguas em contato, tendo em vista a assimetria nas relaes entre o uso do portugus como lngua nacional, hegemnica na tradio escolar escrita, e as lnguas indgenas, tradicionalmente ligadas expresso oral.

    No atendimento a esta e outras demandas da Educao Escolar Indgena, os Sistemas de Ensino devem reformular suas referncias legais e normativas, considerando as diferenas socioculturais das comunidades indgenas, com vistas a assegurar os direitos dessas comunidades a construrem sua prpria escola, de acordo com seus projetos de continuidade sociocultural. Nestes termos, a Educao Escolar Indgena, instrumento de construo da autonomia poltica e de apoio aos projetos societrios da comunidade, deve promover a reflexo das especificidades das realidades socioculturais indgenas, realizando processos formativos adequados ao desenvolvimento das comunidades, incluindo as formaes profissionais e tcnicas.

    4.3 Ensino MdioA oferta do Ensino Mdio nas escolas indgenas de todo o pas uma experincia

    recente, tratando-se de uma demanda crescente nos projetos de escolas diferenciadas das comunidades indgenas. Atualmente, das 2.836 escolas indgenas existentes, 80 ofertam essa etapa de ensino, segundo dados do Censo Escolar de 2010 do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP).

    O Ensino Mdio se apresenta para as comunidades indgenas como um dos meios de fortalecimento dos laos de pertencimento identitrio dos estudantes com seus grupos sociais de origem, favorecendo a continuidade sociocultural dos grupos comunitrios em seus territrios. A perspectiva de, em suas experincias escolares, permanecerem em seus territrios e comunidades, atuando como agentes ativos na interao com outros grupos e culturas, tomada como referncia principal na construo de seus projetos escolares e societrios. Sendo assim, a sada de estudantes de suas comunidades para cursarem o Ensino Mdio em localidades no indgenas tem sido percebida como forma de enfraquecimento de seus projetos polticos de educao escolar e de territorialidade.

    O desenvolvimento de polticas pblicas que garantam a permanncia dos jovens indgenas em suas comunidades com qualidade sociocultural de vida tem sido uma das preocupaes do movimento indgena nos ltimos anos. Buscando atender a esta demanda, alguns sistemas de ensino tm ofertado o Ensino Mdio nas prprias comunidades, de acordo com o desejo dos grupos indgenas. Na mesma direo, organizaes indgenas e indigenistas tambm tm implementado projetos de ensino mdio. Alguns deles, no entanto, tm encontrado dificuldades de reconhecimento pelos sistemas de ensino, por demandarem o estabelecimento, por parte dos rgos normativos, de critrios especficos para sua devida regulamentao.

    Nessa diversidade de situaes h ainda os casos em que o Ensino Mdio no tem sido ofertado, mesmo havendo demanda. Todavia, nos termos da LDB, em seu art. 4, inciso II,

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  • dever do Estado a sua universalizao. Nesse sentido, pode se depreender a extenso do direito a esta etapa da educao bsica s comunidades indgenas.

    As questes do ensino mdio compuseram parte da pauta da I Conferncia Nacional de Educao Escolar Indgena que, em suas deliberaes, orienta as escolas indgenas de Ensino Mdio a construrem seus projetos poltico-pedaggicos de modo coletivo, com a participao de toda a comunidade. Estes projetos, ento, devem atender s demandas sociais, econmicas, polticas, culturais e ambientais das comunidades que tm a prerrogativa de decidir o tipo de Ensino Mdio adequado aos seus modos de vida e organizao societria, nos termos da Resoluo CNE/CEB n 2/2012.

    Na definio do Ensino Mdio que atenda s necessidades dos povos indgenas, o uso de suas lnguas se constitui em importante estratgia pedaggica para a valorizao e promoo da diversidade sociolingustica brasileira, de acordo com o Parecer CNE/CEB n 10/2011.

    Os projetos devem tambm prever a formao dos professores indgenas em cursos que os habilitem para atuar nesta etapa de ensino, bem como estrutura adequada s necessidades dos estudantes e das especificidades pedaggicas desta etapa educacional, tais como laboratrios, bibliotecas, espaos para atividades esportivas e artstico-culturais.

    As propostas de Ensino Mdio devem promover o protagonismo dos estudantes indgenas, ofertando-lhes uma formao ampla, no fragmentada, que oportunize o desenvolvimento das capacidades de anlise e de tomada de decises, resoluo de problemas, flexibilidade para continuar o aprendizado de diversos conhecimentos necessrios a suas interaes com seu grupo de pertencimento e com outras sociedades indgenas e no indgenas.

    A organizao curricular do Ensino Mdio deve ser flexvel visando a sua adequao aos contextos indgenas, s escolas e aos estudantes. Assim, as comunidades escolares devem decidir os modos pelos quais as atividades pedaggicas sero realizadas, podendo ser organizadas semestralmente, por mdulos, ciclos, regimes de alternncia, regime de tempo integral, dentre outros. De forma geral, as experincias em curso tm buscado romper com a organizao por disciplinas, trabalhando com eixos temticos, projetos de pesquisa, eixos geradores, matrizes conceituais, onde se estudam contedos das diversas disciplinas numa perspectiva transdisciplinar.

    O ensino mdio, em sntese, deve garantir aos estudantes indgenas condies favorveis construo do bem viver de suas comunidades, aliando, em sua formao escolar, conhecimentos cientficos, conhecimentos tradicionais e prticas culturais prprias de seus grupos tnicos de pertencimento. Pautando-se no reconhecimento do princpio da interculturalidade, esta etapa da educao bsica deve ser compreendida como um processo educativo dialgico e transformador.

    4.4 Educao EspecialA Educao Especial uma modalidade de ensino transversal que visa assegurar aos

    estudantes com deficincia, transtornos globais do desenvolvimento e com altas habilidades e superdotao, o desenvolvimento das suas potencialidades socioeducacionais em todas as etapas e modalidades da Educao Bsica por meio da oferta de recursos e servios educacionais especializados. Tais recursos e servios, organizados institucionalmente, so utilizados para apoiar, complementar, suplementar e, em alguns casos, substituir os servios

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  • educacionais comuns (Resoluo CNE/CEB n 2/2001; Poltica Nacional de Educao Especial na Perspectiva da Educao Inclusiva, MEC/SEESP 2008).

    A Educao Especial nos contextos escolares indgenas tem se apresentado como um desafio crescente, tendo em vista a ausncia de formao dos professores indgenas nesta rea, a inadequao da estrutura dos prdios escolares, seus mobilirios e equipamentos; a falta de material didtico especfico, a falta de transporte escolar adequado, dentre outros aspectos que impossibilitam o atendimento s diferentes necessidades dos estudantes com deficincia, transtornos globais do desenvolvimento e com altas habilidades e superdotao.

    Polticas voltadas para esse atendimento especializado precisam ser elaboradas e postas em prtica de acordo com a realidade sociocultural de cada comunidade indgena. Nesse sentido, o Ministrio da Educao, em sua funo indutora e executora de polticas pblicas educacionais, articulado com os sistemas de ensino, deve realizar diagnsticos da demanda por Educao Especial nas comunidades indgenas, visando criar uma poltica nacional de atendimento aos estudantes indgenas que necessitem de atendimento educacional especializado (AEE).

    Os sistemas de ensino devem assegurar a acessibilidade aos estudantes indgenas com deficincia, transtornos globais do desenvolvimento e com altas habilidades e superdotao, por meio de prdios escolares, equipamentos, mobilirios, transporte escolar, recursos humanos e outros materiais adaptados s necessidades desses estudantes.

    Os projetos poltico-pedaggicos das escolas indgenas que apresentem demandas de Educao Especial devem prever, por meio de seus currculos, da formao de professores, da produo de material didtico, de processos de avaliao e de metodologias, as disposies necessrias para o atendimento educacional dos estudantes com deficincia, transtornos globais do desenvolvimento e com altas habilidades e superdotao.

    No caso dos estudantes que apresentem necessidades diferenciadas de comunicao, o acesso aos contedos deve ser garantido mediante a utilizao de linguagens e cdigos aplicveis, como o sistema Braille e a lngua brasileira de sinais, sem prejuzo do aprendizado da lngua portuguesa (e da lngua indgena), facultando- lhes e s suas famlias a opo pela abordagem pedaggica que julgarem adequada, ouvidos os profissionais especializados em cada caso voltada garantia da educao de qualidade social como um direito de todos/as. (Resoluo CNE/CEB n 2/2001)

    Para que o direito aprendizagem dos estudantes indgenas da Educao Especial seja assegurado, necessrio tambm que as instituies de pesquisa desenvolvam estudos com o objetivo de identificar e aprimorar a Lngua Brasileira de Sinais ou outros sistemas de comunicao prprios utilizados entre pessoas surdas indgenas em suas respectivas comunidades.

    Na identificao das necessidades educacionais especiais dos estudantes indgenas, alm da experincia dos professores indgenas, da opinio da famlia, das questes culturais, a escola indgena deve contar com assessoramento tcnico especializado e o apoio da equipe responsvel pela Educao Especial em parceria com as instncias administrativas da Educao Escolar Indgena nos sistemas de ensino.

    O atendimento educacional especializado na Educao Escolar Indgena deve assegurar a igualdade de condies para o acesso, permanncia e concluso com sucesso dos

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  • estudantes que demandam esse atendimento. Para efetivar essas condies faz-se necessria a ao conjunta e coordenada da famlia, da escola, dos sistemas de ensino e de outras instituies da rea da sade e do desenvolvimento social.

    4.5 Educao de Jovens e AdultosA Educao de Jovens e Adultos (EJA) uma modalidade da Educao Bsica

    reconhecida como direito pblico subjetivo na etapa do Ensino Fundamental. caracterizada como uma proposta pedaggica flexvel, com finalidades e funes especficas, levando em considerao os conhecimentos das experincias de vida dos jovens e adultos, ligadas s vivncias cotidianas individuais e coletivas, bem como ao trabalho.

    Nesse sentido, de acordo com o Parecer CNE/CEB n 11/2010, o projeto poltico-pedaggico e o regimento escolar devem propor um modelo pedaggico adequado a essa modalidade de ensino assegurando a identificao e o reconhecimento das formas de aprender dos adolescentes, jovens e adultos e a valorizao de seus conhecimentos e experincias. Os componentes curriculares, ainda conforme esse Parecer, devem favorecer condies de igualdade formativa, adequando tempos e espaos educativos em face das necessidades especficas dos estudantes.

    Na mesma direo, as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educao Bsica orientam que os cursos de EJA devam pautar-se pela flexibilidade tanto no currculo, quanto no tempo e espao escolares, visando:

    a) romper a simetria com o ensino regular para crianas e adolescentes, de modo a permitir percursos individualizados e contedos significativos para os jovens e adultos;

    b) prover suporte e ateno individual as diferentes necessidades dos estudantes no processo de aprendizagem, mediante atividades diversificadas;

    c) valorizar a realizao de atividades e vivncias socializadoras, culturais, recreativas e esportivas, geradoras de enriquecimento do percurso formativo dos estudantes;

    d) desenvolver a agregao de competncias para o trabalho;

    e) promover a motivao e orientao permanente dos estudantes, visando maior participao nas aulas e seu melhor aproveitamento e desempenho;

    f) realizar sistematicamente a formao continuada destinada especificamente aos educadores de jovens e adultos.

    No que se refere Educao Escolar Indgena, a EJA deve estar adequada s realidades socioculturais e interesses das comunidades indgenas, vinculando-se aos seus projetos de presente e futuro. Sendo assim, necessria a contextualizao da proposta pedaggica de acordo com as questes socioculturais, devendo, para isso, ser discutida com a comunidade indgena.

    O documento final da I Conferncia Nacional de Educao Escolar Indgena (CONEEI) traz a orientao de que seja garantida a implantao da EJA nas escolas indgenas quando necessrio e respeitando a diversidade e especificidade de cada povo, com ampla participao dos povos indgenas, sem substituir o Ensino Fundamental regular.

    O MEC, por meio da Secretaria de Educao Continuada, Alfabetizao e Diversidade (SECAD) e da Secretaria de Educao Profissional e Tecnolgica (SETEC), realizou em 2007 diagnstico, oriundo de um processo de discusso realizada por uma comisso interinstitucional e de representantes indgenas, e props medidas em relao Educao

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  • Profissional Integrada Educao Escolar Indgena na modalidade Educao de Jovens e Adultos. O documento apresenta recomendaes e sugere diretrizes especficas para educao profissional, em especial de nvel mdio tcnico para os povos indgenas, referenciados no Decreto n 5.840/2006 que criou no mbito federal o Programa Nacional de Integrao da Educao Profissional com a Educao Bsica na Modalidade de Educao de Jovens e Adultos (PROEJA).

    Na Educao Escolar Indgena, as propostas educativas de EJA, numa perspectiva de formao ampla, devem favorecer o desenvolvimento de uma educao profissional que possibilite aos jovens e adultos indgenas atuarem nas atividades socioeconmicas e culturais de suas comunidades com vistas construo do protagonismo indgena e da sustentabilidade de seus territrios.

    4.6 Educao Profissional e TecnolgicaA Educao Profissional e Tecnolgica na Educao Escolar Indgena deve articular

    os princpios da formao ampla, sustentabilidade socioambiental e respeito diversidade dos estudantes, considerando-se as formas de organizao das sociedades indgenas e suas diferenas sociais, polticas, econmicas e culturais.

    A categoria profissional ou educao profissional, nesse sentido, deve estar ligada aos projetos comunitrios, definidos a partir das demandas coletivas dos grupos indgenas, contribuindo para a reflexo e construo de alternativas de gesto autnoma dos seus territrios, de sustentabilidade econmica, de segurana alimentar, de educao, de sade e de atendimento a outras necessidades cotidianas.

    Os projetos de educao profissional indgena devem expressar os interesses das comunidades, baseados em diagnsticos contextualizados em suas realidades e perspectivas, que valorizem seus conhecimentos tradicionais e projetos socioambientais. imprescindvel que sejam construdos com a participao dos sbios indgenas no intuito de articular, interculturalmente, saberes e prticas prprios a cada povo com os saberes e prticas dos no indgenas.

    Estando o direito terra na base do reconhecimento de todos os demais direitos indgenas e dadas as diversas situaes de territorialidade que vivenciam, a questo do territrio ocupa um lugar central em seus projetos societrios e movimentos polticos de reivindicao de direitos especficos, dentre eles a educao diferenciada. A Educao Profissional e Tecnolgica nos contextos indgenas devem, ento, contribuir para uma gesto territorial autnoma que possibilite a elaborao de projetos de desenvolvimento sustentvel e de produo alternativa para as comunidades indgenas, tendo em vista, em alguns casos, as situaes de desassistncia e falta de apoio para seus processos produtivos.

    Em um projeto de educao escolar diferenciada espera-se que a Educao Profissional e Tecnolgica proporcione aos estudantes indgenas oportunidade de atuao em diferentes reas do trabalho tcnico, necessrio ao desenvolvimento de suas comunidades, como as da tecnologia da informao, sade, gesto ambiental, magistrio e outras. necessrio tambm fortalecer e apoiar processos de formao de especialistas em saberes tradicionais, como os tocadores de instrumentos musicais, contadores de narrativas mticas, pajs e xams, rezadores, raizeiros, parteiras, organizadores de rituais, conselheiros e outras funes prprias e necessrias ao bem viver dos povos indgenas.

    A Educao Profissional e Tecnolgica nas diferentes etapas e modalidades da Educao Bsica, nos territrios etnoeducacionais, pode ser realizada de modo

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  • interinstitucional, em convnio com as instituies de Educao Profissional e Tecnolgica; Institutos Federais de Educao, Cincia e Tecnologia; instituies de Educao Superior; outras instituies de ensino e pesquisa, bem como com organizaes indgenas e indigenistas, de acordo com a realidade de cada comunidade, sendo ofertada, preferencialmente, nas terras indgenas. No mbito destas instituies devero ser criados programas especficos de formao profissional em atendimento s demandas das comunidades indgenas, planejados e executados com a participao de representantes indgenas e de entidades indigenistas.

    No que diz respeito Educao Profissional no Ensino Mdio integrado e na Educao de Jovens e Adultos indgenas, os sistemas de ensino devem oferecer cursos de formao em diferentes reas do conhecimento, atendendo as Diretrizes Curriculares da cada curso e especficas da Educao Escolar Indgena, definidas pelos Conselhos de Educao.

    As diferentes realidades vivenciadas nas comunidades colocam uma variedade de perfis, profissionais ou no, adequados a elas. H, portanto, uma enorme gama de oportunidades para assegurar a insero e compromisso dos estudantes indgenas com os projetos sociais de suas comunidades, articulando tradio e oralidade e conhecimento cientfico em bases dialgicas, reflexivas e propositivas.

    5. Projeto poltico-pedaggico das escolas indgenas

    O projeto poltico-pedaggico (PPP), expresso da autonomia e da identidade escolar, uma referncia importante na garantia do direito a uma educao escolar diferenciada, devendo apresentar os princpios e objetivos da Educao Escolar Indgena de acordo com as diretrizes curriculares institudas nacional e localmente, bem como as aspiraes das comunidades indgenas em relao educao escolar.

    Este documento dever apresentar o conjunto dos princpios, objetivos das leis da educao, as Diretrizes Curriculares Nacionais e a pertinncia etapa e ao tipo de programa ofertado dentro de um curso, considerados a qualificao do corpo docente instalado e os meios disponveis para pr em execuo o projeto. (Parecer CNE/CEB n 11/2000).

    Nas escolas indgenas, o PPP, intrinsecamente relacionado com os modos de bem viver dos grupos tnicos em seus territrios, devem estar assentados nos princpios da interculturalidade, bilingismo e multilinguismo, especificidade, organizao comunitria e territorialidade que fundamentam as propostas de Educao Escolar Indgena.

    Como j demonstrado existem vrios dispositivos legais, como a Constituio Federal de 1988 e a LDB, que garantem escola indgena a autonomia para a definio de seu PPP, estabelecendo a sua forma de funcionamento, objetivos e metas.

    O projeto poltico-pedaggico das escolas indgenas deve ser construdo de forma autnoma e coletiva, valorizando os saberes, a oralidade e a historia de cada povo em dilogo com os demais saberes produzidos por outras sociedades humanas. Deve, com isso, integrar os projetos societrios etnopolticos das comunidades indgenas contemplando a gesto territorial e ambiental das Terras Indgenas e a sustentabilidade das comunidades.

    Na garantia do direito especificidade dos projetos de escolarizao dos grupos indgenas, necessrio que a organizao dos projetos poltico-pedaggicos possibilite aos estudantes indgenas desenvolverem estratgias para a apropriao de conhecimentos tcnicos e tecnolgicos teis ao desenvolvimento econmico, social e cultural de suas comunidades.

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  • Estas precisam tomar parte em todas as etapas de elaborao e implementao dos PPP, com o objetivo de lhes assegurar o protagonismo na construo de suas propostas de educao escolar.

    A associao entre proposta pedaggica e as realidades e problemticas de cada comunidade deve possibilitar a discusso a respeito dos diferentes processos formativos dos estudantes indgenas, no mbito de suas realidades comunitrias. Nesse sentido, as escolas precisam reconhecer o valor sociocultural e pedaggico desses processos formativos diversos no estabelecendo hierarquias entre eles. Com isso, a escola estar contribuindo para a valorizao dos diferentes papis que os estudantes podem vir a exercer.

    A questo da territorialidade, associada sustentabilidade socioambiental e cultural das comunidades indgenas, deve orientar todo processo educativo, definido no PPP. A relao entre territorialidade e Educao Escolar Indgena, ento, deve ser um eixo estruturante dos projetos poltico-pedaggicos na Educao Bsica. Desse modo as propostas de educao escolar podero contribuir para a continuidade dos grupos indgenas em seus territrios, favorecendo o desenvolvimento de estratgias que viabilizem o bem viver das comunidades indgenas.

    Os projetos poltico-pedaggicos das escolas indgenas devem ser, assim, elaborados pelos professores indgenas em articulao com toda a comunidade educativa lideranas, pais, mes ou responsveis pelo estudante, os prprios estudantes de todas as etapas e modalidades da Educao Bsica na Educao Escolar Indgena contando com assessoria dos sistemas de ensino e de suas instituies formadoras, das organizaes indgenas e rgos indigenistas do estado e da sociedade civil. Devem, ainda, em cumprimento ao disposto na Conveno 169 da OIT, serem legitimados socialmente, no mbito das comunidades indgenas. Para tanto, devem ser objeto de consulta livre, prvia e informada, para sua aprovao comunitria e reconhecimento junto aos sistemas de ensino.

    importante ressaltar que as escolas indgenas, em seus limites e possibilidades, consolidando o direito de aprender dos estudantes, do suporte s estratgias supracitadas que necessitam, para se efetivarem, da atuao de outras agncias institucionais. necessria, para isso, a promoo de polticas pblicas coordenadas para as comunidades indgenas que tenham como objetivo fortalecer e instrumentalizar os grupos na construo de seus projetos societrios etnopolticos e educativos.

    No mbito destas polticas, o MEC e as Secretarias de Educao, em parceria com as organizaes indgenas, instituies de ensino superior, outras organizaes governamentais e no governamentais, devem criar programas de assessoria especializada em Educao Escolar Indgena visando dar suporte ao funcionamento das escolas na execuo do seu projeto educativo.

    Por fim, faz-se necessrio chamar a ateno para as preocupaes polticas e pedaggicas que se apresentam no horizonte do movimento indgena com a construo das propostas de escolarizao diferenciada. A apropriao da instituio escola pelo movimento indgena nos seus processos de organizao poltica, visando dar visibilidade s suas demandas por direitos particulares, trouxe questes complexas ligadas s implicaes polticas do universo do pedaggico.

    Assim, no obstante o exemplo de algumas experincias escolares indgenas bem sucedidas, ainda carecendo de maior publicidade, continua sendo de importncia estratgica preocupar-se com a garantia do direito de aprender; com a proposio de modelos de gesto escolar efetivamente diferenciados; com os processos de avaliao e sua finalidade; com a construo de metodologias que considerem, de fato, os processos de ensino aprendizagem

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  • prprios das comunidades indgenas, dentre outros. Nesse sentido, bom lembrar que estes aspectos tambm constituem a dimenso poltica do ato pedaggico.

    Na sequncia, alguns destes aspectos, postos como questes prioritrias pela I CONEEI, dadas as crescentes complexificaes das propostas de educao escolar diferenciada, sero apreciados.

    5.1 Currculo da Educao Escolar IndgenaO currculo, ligado s concepes e prticas que definem o papel social da escola,

    deve ser concebido de modo flexvel, adaptando-se aos contextos polticos e culturais nos quais a escola est situada, bem como aos interesses e especificidades de seus atores sociais. Componente pedaggico dinmico, o currculo diz respeito aos modos de organizao dos tempos e espaos da escola, de suas atividades pedaggicas, das relaes sociais tecidas no cotidiano escolar, das interaes do ambiente educacional com a sociedade, das relaes de poder presentes no fazer educativo e nas formas de conceber e construir conhecimentos escolares. Est presente, desse modo, nos processos sociopolticos e culturais de construo de identidades.

    Nesse mesmo sentido, as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educao Bsica definem o currculo como conjunto de valores e prticas que proporcionam a produo e a socializao de significados no espao social e que contribuem, intensamente, para a construo de identidades sociais e culturais dos estudantes. Entendido desta forma, ele se refere no apenas aos contedos selecionados, ensinados e apreendidos por meio das atividades de leitura, escrita, interpretao de textos, pesquisas, dentre outras estratgias de ensino e de aprendizagem, mas tambm aos mais variados tipos de rituais da escola, tais como as atividades recreativas, as feiras culturais, os jogos escolares, as atividades comemorativas, dentre outros.

    No que tange s escolas indgenas, os currculos, em uma perspectiva intercultural, devem ser construdos considerando-se os valores e interesses etnopolticos das comunidades indgenas em relao aos seus projetos de sociedade e de escola, definidos nos Projetos Poltico-Pedaggicos. Para sua construo h que se considerar ainda as condies de escolarizao dos estudantes indgenas em cada etapa e modalidade de ensino; as condies de trabalho do professor; os espaos e tempos da escola e de outras instituies educativas da comunidade e fora dela, tais como museus, memoriais da cultura, casas de cultura, centros culturais, centros ou casas de lnguas, laboratrios de cincias, informtica.

    Na organizao curricular das escolas indgenas, devem ser observados os critrios:

    a) de reconhecimento das especificidades das escolas indgenas quanto aos seus aspectos comunitrios, bilnges e multilngues, de interculturalidade e diferenciao;

    b) de flexibilidade na organizao dos tempos e espaos curriculares, tanto no que se refere base nacional comum, quanto parte diversificada, de modo a garantir a incluso dos saberes e procedimentos culturais produzidos pelas comunidades indgenas, tais como lnguas indgenas, crenas, memrias, saberes ligados identidade tnica, s suas organizaes sociais, s relaes humanas, s manifestaes artsticas, s prticas desportivas;

    c) de durao mnima anual de duzentos dias letivos, perfazendo, no mnimo, oitocentas horas, respeitando-se a flexibilidade do calendrio das escolas indgenas que poder ser organizado independente do ano civil, de acordo com as atividades produtivas e socioculturais das comunidades indgenas;

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  • d) de adequao da estrutura fsica dos prdios escolares s condies socioculturais e ambientais das comunidades indgenas, bem como s necessidades dos estudantes nas diferentes etapas e modalidades da Educao Bsica;

    e) de interdisciplinaridade e contextualizao na articulao entre os diferentes campos do conhecimento, por meio do dilogo transversal entre disciplinas diversas e do estudo e pesquisa de temas da realidade dos estudantes e de suas comunidades;

    f) de adequao das metodologias didticas e pedaggicas s caractersticas dos diferentes sujeitos das aprendizagens, em ateno aos modos prprios de transmisso do saber indgena;

    g) da necessidade de elaborao e uso de materiais didticos prprios, nas lnguas indgenas e em portugus, apresentando contedos culturais prprios s comunidades indgenas;

    h) de cuidado e educao das crianas nos casos em que a oferta da Educao Infantil for solicitada pela comunidade;

    i) de atendimento educacional especializado, complementar ou suplementar formao dos estudantes indgenas que apresentem tal necessidade.

    A observao destes critrios demandam, por parte dos sistemas de ensino e de suas instituies formadoras, a criao das condies para a construo e o desenvolvimento dos currculos das escolas indgenas com a participao das comunidades indgenas, promovendo a gesto comunitria, democrtica e diferenciada da Educao Escolar Indgena, bem como a formao inicial e continuada dos professores indgenas docentes e gestores que privilegie a discusso a respeito das propostas curriculares das escolas indgenas em ateno aos interesses e especificidades de suas respectivas comunidades.

    Por fim, preciso considerar a importncia da pesquisa e da produo de materiais didticos prprios, especficos e diferenciados, que possam subsidiar uma Educao Escolar Indgena de qualidade sociocultural, que permita aos povos indgenas, nos termos preconizados pela LDB, a recuperao de suas memrias histricas; a reafirmao de suas identidades tnicas; a valorizao de suas lnguas e cincias. Estes materiais didticos, escritos na lngua portuguesa e nas lnguas indgenas, que reflitam a perspectiva intercultural da educao diferenciada, elaborados pelos professores indgenas e seus estudantes, devem ser apoiados, subsidiados e publicados pelos respectivos sistemas de ensino, bem como pelo MEC, para todas as etapas da Educao Bsica.

    5.2 AvaliaoA avaliao, como um dos elementos que compe o processo de ensino aprendizagem,

    uma estratgia didtica que deve ter seus fundamentos e procedimentos definidos no projeto poltico-pedaggico, ser articulada proposta curricular, s metodologias, ao modelo de planejamento e gesto, formao inicial e continuada dos docentes e demais profissionais da educao, bem como ao regimento escolar. Em outras palavras, ligada s concepes de educao, a avaliao deve servir para aprimorar o projeto poltico-pedaggico das escolas.

    No que diz respeito Educao Escolar Indgena, a avaliao deve estar associada aos processos de ensino e aprendizagem prprios, reportando-se s dimenses participativa e de protagonismo indgena da educao diferenciada. Tais dimenses visam