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1 MARLI ANDRÉ (ORG.) PEDAGOGIA DAS DIFERENÇAS NA SALA DE AULA PAPIRUS EDITORA, 2006 A PEDAGOGiA DAS DIFEReNÇAS Marli André* Professora titular da Faculdade de Educação da USP. O presente capítulo aborda as linhas gerais da pedagogia das diferenças, proposta por Philipe Perrenoud. Sociólogo, doutor em sociologia e antropologia, Philippe Perrenoud é professor na Universidade de Genebra, Suíça, atuando no campo do currículo, das práticas escolares e das instituições de formação. Seus trabalhos sobre os mecanismos que levam a escola a transformar as desigualdades sociais e culturais em desigualdades escolares levaram-no a se interessar também por temas como o ofício de aluno, o trabalho pedagógico nas escolas, a formação do professor, as políticas de educação e de formação e, sobretudo, o cotidiano de professores e alunos. O ponto de referência em seus textos é a realidade da escola suíça, mas suas análises não se circunscrevem ao âmbito local, abrangendo questões bastante amplas como o processo de fabricação da excelência e do fracasso escolar; a transformação que vem ocorrendo no trabalho docente em diferentes contextos culturais; as mudanças no currículo e a organização do ensino em ciclos escolares. Suas propostas de uso da avaliação formativa, de construção de uma pedagogia diferenciada, de trabalhar em torno das competências oferecem valiosas pistas para quem deseja enfrentar o grande desafio de atenuar as desigualdades que estão presentes na escola, fazendo com que não apenas uma parcela, mas todos os alunos se apropriem do saber sistematizado. Em seu livro intitulado Pedagogia diferenciada: Das intenções à ação, Perrenoud (1997) explica que as pedagogias diferenciadas não voltam as costas para o objetivo primordial da escola que é o de tentar garantir que todos os alunos tenham acesso a uma cultura de base comum. Ao contrário, diz ele, considerar as diferenças é encontrar situações de aprendizagem ótimas para cada aluno, buscando uma educação sob medida, como sonhava Claparède, no início do século. Se esse princípio fundamental se mantém até hoje, os meios de alcançá- lo é que vem se renovando: procura-se substituir o ensino individualizado em que cada aluno desenvolve isoladamente suas tarefas por uma diferenciação no interior de situações didáticas abertas e variadas confrontando cada aluno com aquilo que é obstáculo para ele na construção dos saberes. Trabalha-se com a transferência de competências, questionam-se a relação pedagógica, o funcionamento dos grupos, a distância cultural, o sentido dos saberes e do trabalho escolar. Paralelamente, tenta-se construir dispositivos para a individualização de percursos, organiza-se a progressão escolar por vários anos, criam-se ciclos de aprendizagem, inventa-se uma nova organização pedagógica. A grande questão da pedagogia diferenciada, diz Perrenoud, é esta: como levar em conta as diferenças sem deixar que cada um se feche na sua singularidade, no seu nível, na sua cultura de origem? Perrenoud considera a pedagogia das diferenças como uma das formas de luta contra o fracasso escolar. Em suas palavras, "as pedagogias diferenciadas são, em geral, inspiradas numa revolta contra o fracasso escolar e as desigualdades" (1997. p.17). Mas ao mesmo tempo ele adverte: essa indignação leva muitas vezes ao

Pedagogia Das Diferenças

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Livro - Educação, curriculo

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    MARLI ANDR (ORG.)

    PEDAGOGIA DAS DIFERENAS NA SALA DE AULA

    PAPIRUS EDITORA, 2006

    A PEDAGOGiA DAS DIFEReNAS

    Marli Andr*

    Professora titular da Faculdade de Educao da USP.

    O presente captulo aborda as linhas gerais da pedagogia das

    diferenas, proposta por Philipe Perrenoud.

    Socilogo, doutor em sociologia e antropologia, Philippe

    Perrenoud professor na Universidade de Genebra, Sua, atuando no

    campo do currculo, das prticas escolares e das instituies de

    formao.

    Seus trabalhos sobre os mecanismos que levam a escola a

    transformar as desigualdades sociais e culturais em desigualdades

    escolares levaram-no a se interessar tambm por temas como o ofcio de

    aluno, o trabalho pedaggico nas escolas, a formao do professor, as

    polticas de educao e de formao e, sobretudo, o cotidiano de

    professores e alunos.

    O ponto de referncia em seus textos a realidade da escola

    sua, mas suas anlises no se circunscrevem ao mbito local,

    abrangendo questes bastante amplas como o processo de fabricao da

    excelncia e do fracasso escolar; a transformao que vem ocorrendo no

    trabalho docente em diferentes contextos culturais; as mudanas no

    currculo e a organizao do ensino em ciclos escolares. Suas

    propostas de uso da avaliao formativa, de construo de uma

    pedagogia diferenciada, de trabalhar em torno das competncias

    oferecem valiosas pistas para quem deseja enfrentar o grande desafio

    de atenuar as desigualdades que esto presentes na escola, fazendo com

    que no apenas uma parcela, mas todos os alunos se apropriem do saber

    sistematizado.

    Em seu livro intitulado Pedagogia diferenciada: Das intenes

    ao, Perrenoud (1997) explica que as pedagogias diferenciadas no

    voltam as costas para o objetivo primordial da escola que o de

    tentar garantir que todos os alunos tenham acesso a uma cultura de

    base comum. Ao contrrio, diz ele, considerar as diferenas

    encontrar situaes de aprendizagem timas para cada aluno, buscando

    uma educao sob medida, como sonhava Claparde, no incio do sculo.

    Se esse princpio fundamental se mantm at hoje, os meios de alcan-

    lo que vem se renovando: procura-se substituir o ensino

    individualizado em que cada aluno desenvolve isoladamente suas tarefas

    por uma diferenciao no interior de situaes didticas abertas e

    variadas confrontando cada aluno com aquilo que obstculo para ele

    na construo dos saberes. Trabalha-se com a transferncia de

    competncias, questionam-se a relao pedaggica, o funcionamento dos

    grupos, a distncia cultural, o sentido dos saberes e do trabalho

    escolar. Paralelamente, tenta-se construir dispositivos para a

    individualizao de percursos, organiza-se a progresso escolar por

    vrios anos, criam-se ciclos de aprendizagem, inventa-se uma nova

    organizao pedaggica. A grande questo da pedagogia diferenciada,

    diz Perrenoud, esta: como levar em conta as diferenas sem deixar

    que cada um se feche na sua singularidade, no seu nvel, na sua

    cultura de origem?

    Perrenoud considera a pedagogia das diferenas como uma das

    formas de luta contra o fracasso escolar. Em suas palavras, "as

    pedagogias diferenciadas so, em geral, inspiradas numa revolta contra

    o fracasso escolar e as desigualdades" (1997. p.17). Mas ao mesmo

    tempo ele adverte: essa indignao leva muitas vezes ao

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    estabelecimento de medidas e aes um tanto imediatistas que,

    carecendo de uma anlise mais profunda sobre os fatores que produzem o

    fracasso escolar, acabam caindo, via de regra, num ceticismo muito

    grande por no conseguir alcanar os resultados esperados no curto

    prazo. Com isso, refora-se a idia de que o fracasso uma fatalidade

    e pouco se pode fazer para venc-lo. A passagem precipitada das

    intenes para as aes no ganha tempo, diz ele. Se as pedagogias

    diferenciadas se propem a lutar contra as desigualdades, amenizando-

    as ou neutralizando-as, preciso que elas tenham por base uma anlise

    profunda e aguada dos mecanismos que geram essas desigualdades.

    Explicaes para as desigualdades de desempenho escolar

    Durante muito tempo tentou-se explicar o fracasso escolar como

    um problema do aluno ou da famlia. No primeiro caso, tanto o bom

    quanto o mau desempenho escolar estariam ligados ao patrimnio

    gentico, s aptides geneticamente adquiridas pelo indivduo. Essa

    explicao, que se traduz na ideologia do dom, ainda est muito viva

    em nossos meios escolares e evocada freqentemente para justificar

    avaliaes e julgamentos, embora vrios estudos tenham mostrado que o

    ambiente, o meio cultural, exerce um importante papel no desempenho do

    aluno. No segundo caso, tenta-se atribuir o insucesso escolar s

    condies socioeconmicas da famlia, ou seja, ao meio cultural.

    Vrios estudos j demonstraram tambm nesse caso que embora haja, de

    fato, relao entre o nvel socioeconmico da famlia e o desempenho

    do aluno, cada famlia tem uma cultura particular (Montandon 1987),

    uma forma de se organizar e de funcionar que tem maior peso do que o

    nvel social em si. Assim, o modo de vida de uma famlia, seus

    valores, suas crenas e opes - que se traduzem em determinadas

    formas de educao de interpretao da realidade e das normas sociais

    -, seus meios de interagir, de se comportar e de usar a lngua tm

    mais peso sobre o desempenho escolar do que simplesmente o seu nvel

    socioeconmico.

    Tanto a teoria do patrimnio gentico quanto a do meio cultural

    poderiam ser analisadas em seus vrios matizes, desmontando a relao

    mecnica que geralmente se faz entre cada um desses fatores e o

    fracasso escolar. Entretanto, parece-nos mais importante enfatizar o

    que as duas teorias tm em comum: ambas partem do pressuposto de que

    falta alguma coisa para que o aluno tenha sucesso na escola: QI baixo,

    meio cultural muito pobre, linguagem pobre, desenvolvimento lento,

    falta de ajuda da famlia, baixa motivao, etc. Com base nesse

    pressuposto, nos anos 60-70 surgiram vrios programas de educao

    compensatria que visavam suprir as carncias culturais dos alunos.

    Os estudos de sociologia da educao, no final dos anos 70,

    vieram trazer novas explicaes para o insucesso escolar; eles afirmam

    que as desigualdades biolgicas, psicolgicas, socioeconmicas e

    culturais transformam-se em desigualdades de aprendizagem e de

    desempenho pelo modo particular de funcionamento da instituio

    escolar ou pela sua maneira de lidar com as diferenas. J em 1966,

    Pierre Bourdieu escrevia:

    Para que sejam favorecidos os mais favorecidos e desfavorecidos

    os mais desfavorecidos, necessrio e suficiente que a escola ignore

    no contedo do ensino transmitido, nos mtodos e tcnicas de

    transmisso e nos critrios de julgamento, as desigualdades culturais

    entre as crianas de diferentes classes sociais: dito de outra forma,

    tratando todos os alunos, to desiguais como so de fato, como iguais

    em direitos e em deveres, o sistema escolar levado a dar de fato sua

    sano s desigualdades iniciais diante da cultura. (pp. 336-337)

    Essa afirmao foi reforada por muitos autores em especial

    socilogos da linha crtico-reprodutivista que, na dcada de 1970,

    denunciavam a escola como reprodutora das desigualdades sociais por

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    colaborar, juntamente com outras instituies da sociedade para a

    manuteno da ordem social vigente. O fracasso escolar estaria sendo

    gerado no interior da prpria instituio, a partir de seu modo de

    organizar o trabalho pedaggico e de estruturar as relaes e prticas

    pedaggicas. Essas reflexes foram importantes porque deixaram

    evidente que para analisar o processo de produo das desigualdades

    escolares, alm das variaes nos nveis de desenvolvimento e de

    capital cultural, devem ser seriamente considerados os aspectos

    ligados organizao e no funcionamento das prticas escolares.

    Perrenoud prefere responder afirmao de Bourdieu com uma

    pergunta: pode-se falar realmente em indiferena s diferenas? E ele

    mesmo responde que no se pode falar em indiferena absoluta. Para

    discutir a questo, ele julga necessrio definir o contexto de que se

    parte e explica que qualquer comparao s poder ser feita se existir

    um contexto comum, como por exemplo, um sistema educacional nacional,

    estadual ou local em que todos os alunos sigam o mesmo currculo

    formal.

    Colocando-se, ento, no interior do sistema de ensino, pode-se

    focalizar o tratamento dado s diferenas em pelo menos dois tipos

    desituao: uma diz respeito a um grupo de alunos de um mesmo nvel de

    ensino distribudos em diferentes escolas e salas de aula, e uma outra

    voltada para os alunos de um mesmo grupo-classe.

    Tratando-se, no primeiro caso, de um sistema de ensino, com um

    programa oficial a ser seguido por todas as escolas, teoricamente no

    deveria haver diferenas entre suas prticas: no entanto, sabe-se que

    h uma grande variao de uma escola para outra, ou de uma classe para

    outra, seja em termos de currculo real, seja no envolvimento dos

    professores e tcnicos, seja na qualidade do ensino. Em que medida

    essas variaes estariam ligadas produo das desigualdades? Na

    medida em que essas diferenas favoream os favorecidos, como por

    exemplo, as escolas mais bem localizadas disporem de melhores

    equipamentos, melhor infraestrutura professores mais estveis e

    qualificados, corpo tcnico habilitado, as quais muito provavelmente

    oferecero melhor ensino para uma populao que geralmente j traz um

    capital cultural melhor.

    Da mesma forma, pode haver diferenas de tratamento que

    favoream os desfavorecidos, como os programas e projetos que se

    destinam a ajudar os alunos com maiores dificuldades, ou que visam

    diminuir a evaso e a repetncia escolar como, por exemplo, os

    projetos de reforo, de recuperao nas frias ou as classes de

    acelerao.

    No segundo caso, focalizando o grupo de uma sala de aula, h

    tambm um tratamento das diferenas que pode favorecer os favorecidos

    ou desfavorecer os desfavorecidos.

    s vezes espontaneamente, s vezes intuitivamente, nas interaes com

    o grupo-classe, o professor se dirige mais frequentemente queles

    alunos que fazem perguntas, que so atentos, bem comportados,

    interessados, que aceitam facilmente as suas regras e, da mesma forma,

    rejeita aqueles que contestam, que resistem, que fazem baguna.

    Nas relaes mais individualizadas tambm podem prevalecer

    certas preferencias pelos alunos mais educados, limpos, bem vestidos e

    certo "esquecimento" dos mais sujos, mal vestidos, feios,

    desmotivados.

    Mas h tambm, nas interaes de sala de aula, possibilidade de

    tratamento diferenciado objetivando favorecer os desfavorecidos. Sabe-

    se que existem muitos professores que procuram diversificar as tarefas

    de sala de aula para atender a diferentes interesses e nveis de

    desenvolvimento dos alunos. Sabe-se tambm, que muitos organizam

    projetos, atividades, tarefas especialmente destinadas queles alunos

    que tm dificuldades de acompanhar o ritmo geral da classe.

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    Argumentando que essas aes podem ser direcionadas para uma

    causa positiva, mas podem tambm reforar as desigualdades, Perrenoud

    procura mostrar que, em vez de uma indiferena s diferenas, deve-se

    falar em diferenciao intencional e diferenciao involuntria. A

    primeira est geralmente voltada para beneficiar os alunos: so as

    discriminaes positivas que procuram atenuar as desigualdades,

    criando alternativas para ajudar os alunos mais fracos com

    dificuldades com atraso escolar. A segunda configura-se como uma

    diferenciao selvagem porque se trata de um processo muito pouco

    consciente e pouco conhecido, com efeitos bastante negativos, j que

    refora as desigualdades e a produo do fracasso escolar.

    s vezes movido pelas contingncias da situao, pela urgncia

    em resolver um problema ou mesmo por questes de insegurana ou de

    afirmao pessoal, o professor pode vir a tratar diferentemente seus

    alunos: dando mais ou menos ateno a alguns do que a outros, sendo

    mais paciente ou mais agressivo com alguns do que com outros,

    respondendo com maior interesse e dedicao s perguntas de alguns do

    que s de outros.

    Sero essas diferenas de tratamento geradoras de desigualdade?

    Sim, na medida em que elas podem vir a favorecer os favorecidos ou

    desfavorecer os desfavorecidos. Tanto a psicanlise quanto a

    antropologia nos ensinam que a identificao mais fcil e o contato

    mais estimulante quando a distncia cultural menor, e vice-versa.

    Desse modo, mesmo contra sua vontade e seus valores, nas suas relaes

    cotidianas, o professor pode estar reforando ou aumentando as

    desigualdades. Da a necessidade de desenvolver pesquisas que possam

    ajudar a compreender melhor esses mecanismos de diferenciao selvagem

    para poder evit-la ou pelo menos reduzi-la.

    o que se pretende ao trazer para este livro resultados de

    pesquisa que ilustram os esforos de professores que, refletindo sobre

    suas aes e prticas cotidianas, procuram evitar a diferenciao

    selvagem e reforar as discriminaes positivas.

    Pedagogia das diferenas na sala de aula

    No desconhecendo os mecanismos reforadores das desigualdades

    socioculturais existentes no nvel dos sistemas educacionais, os quais

    se traduzem em discriminaes negativas, produtoras do fracasso

    escolar (como, por exemplo, os bairros mais pobres ficarem com escolas

    mais precrias, pessoal menos experiente e menos qualificado,

    oferecendo ensino de baixa qualidade) e que precisam ser enfrentados

    com determinao, competncia e vontade poltica, focalizar-se- aqui

    o tratamento das diferenas no contexto da sala de aula. No se est,

    com isso, valorizando mais um mbito do que o outro; ambos so

    importantes, mas os limites de espao, tempo e o interesse acadmico

    nos levam a priorizar as interaes didticas em sala de aula.

    Tratando mais diretamente das pedagogias diferenciadas,

    Perrenoud (1997) adverte que elas devem enfrentar uma questo de

    fundo: como a crianas e os jovens aprendem? Como criar uma relao

    menos utilitarista com o saber? Como instaurar um contrato didtico e

    outros dispositivos que dem, de fato, sentido ao trabalho escolar?

    Como inscrever o trabalho escolar num contrato social que faa da

    escola um local cheio de vida, mas ao mesmo tempo um local protegido,

    pelo menos em parte, das crises, dos conflitos, das desordens que

    atravessam a sociedade (idem, p. 45)?

    As pedagogias diferenciadas assumem as idias mestras da escola

    nova: o aluno deve ser o centro do processo educativo e o professor

    deve ser um orientador, uma fonte de recursos e de apoio. Assumem

    tambm os princpios das correntes construtivistas e interacionistas

    de que a aprendizagem ocorre atravs de um processo ativo de

    envolvimento do aprendiz na construo de conhecimentos, que decorrem

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    de suas interaes com o ambiente e com o outro. Enfatizam o ensino

    voltado para as competncias e o trabalho com projetos, pesquisas e

    situaes-problema.

    Em seu livro Pedagogia nas escolas das diferenas, Perrenoud

    (1995) afirma que a mesma situao didtica destinada a um grupo

    relativamente homogneo de alunos pode ser considerada adequada,

    estimulante, interessante para uns, mas inadequada, desestimulante,

    montona para outros. Mesmo que a situao esteja adequada ao nvel de

    desenvolvimento cognitivo dos alunos, alguns podem no ver o menor

    sentido em realiz-la, outros podem julg-la irrelevante, a ponto de

    que dela no resulte qualquer atividade intelectual significativa e,

    portanto, no promova construo de conhecimentos novos. Da a

    importncia do ensino diferenciado. Diferenciar o ensino, diz

    Perrenoud, " organizar as interaes e atividades de modo que cada

    aluno se defronte constantemente com situaes didticas que lhe sejam

    as mais fecundas" (idem, p. 28).

    Isso no quer dizer, por um lado, que se tenha que criar um

    programa especial para cada aluno, e, por outro, que todos tenham que

    ser expostos aos mesmos contedos, no mesmo ritmo, da mesma forma,pois

    "podem-se atingir as mesmas competncias por caminhos diversos".

    "Diferenciao", diz ele, "no sinnimo de individualizao do

    ensino. evidente que no se pode falar em diferenciao sem gesto

    individualizada do processo de aprendizagem, mas isso no significa

    que os alunos vo trabalhar individualmente, o que acontece que o

    acompanhamento e os percursos so individualizados" (idem p. 29).

    A diferenciao tambm reconhece a fora do grupo como

    oportunidade de educao mtua e de aprendizagem. O professor deve,

    como animador, ajudar o grupo a construir sua identidade coletiva, a

    aprender a trabalhar cooperativamente, a tomar conscincia de suas

    diferenas e desigualdades e a agir de acordo com elas (idem, p. 36).

    O estmulo a uma intensa relao interpessoal, seja entre os

    prprios alunos, seja entre alunos e professores, no vai, por si s,

    diminuir as distncias culturais ou criar uma relao mais positiva

    entre o professor e os alunos com maiores dificuldades, explica

    Perrenoud. Ao contrrio, interaes sociais mais intensas podem

    acirrar diferenas culturais, econmicas, pessoais, atitudes de

    rejeio, competio, conflitos de toda sorte. preciso aprender a

    trabalhar essas atitudes e esses conflitos. A diferenciao requer

    tomada de conscincia e respeito s diferenas, direito de se exprimir

    livremente e de ser ouvido, possibilidade a cada um de ser reconhecido

    pelo grupo, quaisquer que sejam suas competncias escolares ou seu

    nvel cultural.

    Alm disso, a diferenciao vai exigir ainda uma grande

    investigao sobre atividades e situaes de aprendizagem que sejam

    significativas e mobilizadoras, levando em conta as diferenas

    pessoais e culturais existentes na sala de aula. A diferenciao no

    se resume a um mtodo que pode ser aplicado a um nico nvel de ensino

    ou a um tipo de contedos/competncias. Trata-se de uma idia muito

    ampla que envolve o acompanhamento individualizado dos processos e dos

    percursos de aprendizagem.

    As formas de concretizar a diferenciao do ensino podem variar

    muito de acordo com uma srie de fatores: os recursos de que se

    dispe, o grau de liberdade que se tem, o tipo de instituio em que

    se trabalha, as condies de exerccio docente, o apoio tcnico

    disponvel.

    Uma importante advertncia que faz Perrenoud a de que haja

    muita ponderao antes de investir em experincias de diferenciao.

    Para ele, a histria das tentativas de diferenciao marcada pela

    precipitao, por concepes muito estreitas de ensino e aprendizagem

    e por uma fragilidade de modelos explicativos. Da a importncia

    segundo ele, de que sejam analisados, com muito cuidado, os fatores

  • 6

    associados s desigualdades e ao fracasso escolar, levando em conta

    sua complexidade, contradies, ambivalncias, antes de comear a

    construir os esquemas de ao.

    Para pr em prtica o ensino diferenciado preciso vencer uma

    srie de preconceitos e resistncias. preciso, por um lado, vencer o

    preconceito de que uns alunos so mais inteligentes ou mais bem

    dotados do que outros, ou seja, rejeitar a idia s vezes cmoda, s

    vezes desanimadora, de que o fracasso escolar uma fatalidade.

    preciso aceitar, ao contrrio, a idia de que nem tudo est definido

    no momento em que o indivduo nasce ou at os primeiros seis anos.

    Acreditar como Bloom, que pelo menos 80% dos alunos de uma determinada

    faixa etria podem dominar as habilidades, os contedos e as

    competncias se lhes forem dadas as condies apropriadas (Andr

    1976).

    Por outro lado, preciso vencer a tendncia de ver tudo de

    forma linear e unidirecional. Dizer "enquanto a sociedade, a escola,

    os alunos, os pais, os programas no se modificarem, eu no posso

    fazer nada" uma posio muito cmoda e paralisante. Seria absurdo

    negar o peso dos fatores estruturais, diz Perrenoud, mas preciso

    vencer a imobilidade diante deles e relativizar o seu papel.

    Ainda segundo Perrenoud, preciso vencer os preconceitos e as

    resistncias em relao aos alunos desmotivados, desinteressados,

    sujos, agressivos, mal-cheirosos, indisciplinados, esquivos,

    negligentes.

    Diferenciar dispor-se a encontrar estratgias para trabalhar

    com os alunos mais difceis. Se o arranjo habitual do espao de sala

    de aula no funciona com esses alunos, se os livros e materiais

    didticos no so adequados para eles, se, enfim, as atividades

    planejadas no os motivam, preciso modific-las, inventar novas

    formas, experimentar, assumir o risco de errar e dispor-se a corrigir.

    Diferenciar , sobretudo, aceitar o desafio de que no existem

    receitas prontas, nem solues nicas: aceitar as incertezas, a

    flexibilidade, a abertura das pedagogias ativas que em grande parte

    so construdas na ao cotidiana, em um processo que envolve

    negociao, reviso constante e iniciativa de seus atores.

    Falando sobre as possveis estratgias para a diferenciao,

    Perrenoud afirma que no h uma que ele possa recomendar como a melhor

    ou a mais desejvel. Diz ele:

    Eu tenderia a privilegiar as dinmicas de equipes nos

    estabelecimentos escolares e nesse quadro, o trabalho com as

    representaes; buscar uma pedagogia das diferenas

    desaprender, "desconstruir", ultrapassar prticas conhecidas para

    tentar outras formas (1995, p. 128).

    Deixando muito claro que no acredita em solues mgicas,

    Perrenoud (1991,1992) afirma que a pedagogia das diferenas requer uma

    avaliao formativa. E ele pergunta: por que formativa? Simplesmente

    porque uma avaliao que objetiva melhorar a formao; sua

    preocupao no classificar - dar notas, punir ou recompensar, mas

    ajudar o aluno a aprender. Uma avaliao que permita aos alunos

    identificar seus erros, acertos e lacunas; e aos mestres, destacar os

    ganhos e as dificuldades de cada aluno para poder ajud-los a

    progredir mais. Para isso, no h necessidade de testes ou provas,

    enfatiza Perrenoud. Basta observar os alunos para ter uma idia de

    seus interesses, suas dificuldades, suas motivaes e da pensar nas

    melhores formas de agir.

    A avaliao pode ser chamada de formativa quando tem um sentido

    educativo: oferece elementos para o aluno monitorar a prpria

    aprendizagem e para o mestre calibrar o ensino. Para enfatizar seu

    aspecto formativo e desvincul-la da associao que se faz usualmente

    entre avaliao e notas. Perrenoud prefere falar em observao

  • 7

    formativa, que, segundo ele, deve estar a servio da regulao, do

    acompanhamento do processo de aprendizagem e da ao didtica. A

    avaliao formativa deve se inscrever num contrato que demanda

    confiana e cooperao entre professor e alunos. O professor precisa

    criar um clima de confiana que leve os alunos a se exporem, a revelar

    suas dvidas e dificuldades: os alunos precisam se convencer de que

    podem cooperar e lutar, junto com o professor, contra o fracasso

    escolar.

    Como a avaliao formativa a principal fonte de informao

    para o desenvolvimento de uma pedagogia diferenciada, ela deve ser

    usada continuamente, ao longo do ano escolar, cobrindo todas as

    atividades escolares. Como sua principal funo ajudar o aluno a

    aprender e o professor a ensinar, o importante no o preenchimento

    de fichas ou a atribuio de pontos, mas a observao fina e

    individualizada dos alunos para saber o que fazer e como agir. Em vez

    de passar todo o tempo aplicando provas, o professor deve usar tambm

    a intuio, diz Perrenoud (1992, p.19). E ele acrescenta: "Dominar a

    avaliao formativa saber quando necessrio recorrer a

    instrumentos (escalas, questionrios, provas, testes) e quando a

    intuio basta".

    Alm de colocar um forte peso nos aspectos qualitativos da

    aprendizagem, a prpria avaliao formativa deve ser diferenciada. Se

    visvel a olho nu que alguns alunos evoluem bem, diz Perrenoud

    (1992, p.19), no h razo para continuar observando-os atentamente. A

    avaliao formativa deve ser proporcional s necessidades, deve

    concentrar seus esforos nos alunos com maiores dificuldades.

    Finalmente, acrescenta Perrenoud (1991, p.14), a observao

    formativa s ser realmente efetiva se ajudar a esboar um plano de

    ao. No basta saber observar: preciso saber agir de acordo com as

    observaes. O diagnstico apenas um passo do processo e no um fim

    em si mesmo. Na rea mdica faz-se o diagnstico do paciente para

    saber qual a doena e qual a medicao adequada. Na rea da educao

    escolar deve ocorrer o mesmo; a avaliao deve permitir o diagnstico

    da situao e a prescrio das medidas corretivas. nesse momento que

    se tornam mais necessrias algumas disposies como a flexibilidade, a

    criatividade, a coragem de inovar. preciso ser flexvel para pr em

    dvida formas de organizao escolar correntes, solues e caminhos j

    percorridos. preciso ser criativo para inventar novas formas de

    organizao e de ao. preciso ter coragem de correr riscos dispor-

    se a experimentar, rever o que foi feito e mudar o que no deu certo.

    tambm nesse momento que ficam mais evidentes as carncias na

    formao profissional dos docentes, a necessidade da formao em

    servio, o papel da orientao pedaggica, o valor do trabalho

    coletivo da equipe escolar.

    Avaliao formativa e diferenciao do ensino so idias

    aparentemente muito simples. Como comenta Perrenoud (1992, p.20), "a

    avaliao formativa bem feita simplesmente uma observao intensiva

    posta a servio de uma educao sob medida. A frmula de Claparde

    no incio do sculo. Se as coisas demoram para mudar porque

    difcil colocar esses bons princpios em prtica". Por um lado, porque

    a reproduo das desigualdades se d de forma contnua e inexorvel e

    romper esse ciclo infernal um empreendimento coletivo, de longo

    prazo e cheio de incertezas. E, por outro, porque a luta contra o

    fracasso escolar nos confronta com as contradies e complexidades da

    nossa sociedade. Nada nos garante que nossos esforos nos traro

    frutos nem que as pistas escolhidas sejam as melhores. So necessrias

    muita pacincia e humildade. "A luta contra o fracasso escolar tem que

    ser sistmica coletiva, planejada para o longo termo e perseguida por

    dcadas" (1995, p.180), conclui ele.

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    Referncias bibliogrficas

    ANDR. M. "Um microestudo do tempo instrucional e da estratgia de

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    lcole e devant la culture". Reue Franaise de Sociologie n 3, 1966,

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    MONTANDON, C. "Pratiques ducatives, relations avec l'cole e

    paradigme familial". In: MONTANDON,C e PERRENOUD,P.(orgs).

    Entreparents et enseignants: Un dialogue impossible? Berna: Lang,

    1987.

    PERRENOUD, P. "Das diferenas culturais s desigualdades escolares: A

    avaliao e a norma num ensino indiferenciado". In: ALLAL L;CARDINET

    J. e PERRENOUD, P. A avaliao formativa num ensino diferenciado.

    Coimbra: Livraria Almedina, 1986.