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PEDRO PAULO TEIXEIRA COELHO PERCURSOS SOBRE ÉTICA E ECONOMIA: da felicidade ao pensamento ecológico Monografia de Bacharelado em Economia Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária PUC São Paulo Maio 2013

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  • PEDRO PAULO TEIXEIRA COELHO

    PERCURSOS SOBRE TICA E ECONOMIA:

    da felicidade ao pensamento ecolgico

    Monografia de Bacharelado em Economia

    Faculdade de Economia, Administrao,

    Contabilidade e Aturia

    PUC So Paulo Maio 2013

  • PEDRO PAULO TEIXEIRA COELHO

    PERCURSOS SOBRE TICA E ECONOMIA:

    da felicidade ao pensamento ecolgico

    Monografia submetida apreciao de

    banca examinadora do Departamento de

    Economia, como exigncia parcial para a

    obteno do grau de bacharel em economia,

    elaborada sob a orientao do Professor

    Jorge Alano Silveira Garagorry.

    Monografia de Bacharelado em Economia

    Faculdade de Economia, Administrao,

    Contabilidade e Aturia

    PUC So Paulo Maio 2013

  • Esta monografia foi examinada pelos professores abaixo relacionados e aprovada com nota

    final ____,____ (____________________________).

    ___________________________________________

    ___________________________________________

    ___________________________________________

  • A meus pais e avs,

    a Marianna e s crianas desta terra,

    que simbolizam os ancestrais e o que est

    por vir.

  • AGRADECIMENTOS

    Iniciei a trajetria desta monografia no incio de 2012, quando ainda estagiava na

    UMAPAZ (Universidade Aberta do Meio Ambiente e Cultura de Paz). Foi l que eu

    conheci algumas pessoas que me ajudaram a observar com mais profundidade a ligao

    entre felicidade e economia, atravs do FIB. Entre as diversas pessoas que fizeram parte

    deste momento, e que eu gostaria que se sentissem lembradas, agradeo imensamente ao

    amigo e Professor Georges Fouad Kharlakian Jr.

    Nessa poca eu j tinha entrado em contato com algumas das correntes do

    pensamento ecolgico na economia motivado pelo Professor Dr. Jos Geraldo Portugal, o

    qual eu gostaria de agradecer pelas leituras sugeridas sobre o assunto e pela oportunidade

    de estar junto ao seu trabalho docente como monitor das disciplinas de Introduo

    Economia I e II do Departamento de Economia da PUC-SP desde 2009.

    No decorrer do ano de 2012, me tornei professor de Geografia e aprofundei os

    meus laos com a questo da educao atravs do grupo formado em torno da Professora

    Dr. Maria Eliza Miranda, do Departamento de Geografia da USP, a qual eu gostaria de

    agradecer pelo apoio em minha outra graduao, to importante em meu repertrio pessoal

    quanto o curso de economia.

    Minha gratido Rosngela Selma e Jos Wanderley, meus pais, que possibilitaram

    a minha prpria vida e todas as experincias me trouxeram at aqui. Gratido minha irm

    Marina Morena, ao Guga e companheira e namorada Marianna Perna, que me ajudou

    com ideias, bem como na reviso deste escrito. Agradeo por serem aqueles que convivem

    comigo e pela dedicao e carinho que me inspiram.

    Por fim, agradeo ao Professor Dr. Jorge Alano Silveira Garagorry, pelo apoio e

    orientao na monografia e aos meus alunos e amigos, que diversas vezes me fizeram rever

    e fortalecer os pontos de vista que esto expressos neste trabalho.

  • COELHO, P. P. T., Percursos sobre tica e economia: da felicidade ao

    pensamento ecolgico. So Paulo SP, 2013. [Monografia de Bacharelado

    Faculdade de Economia, Administrao, Contabilidade e Aturia Pontifcia

    Universidade Catlica de So Paulo].

    RESUMO

    A monografia aborda o tema dos indicadores de bem-estar PIB e FIB e do

    pensamento ecolgico, luz da discusso sobre tica e economia, a partir da viso de

    Amartya Sen e outros autores.

    O trabalho busca avaliar quais so as potncias e/ou limitaes destes indicadores e

    da abordagem ecolgica para a economia, num contexto em que a organizao

    contempornea aponta para uma sociedade desigual do ponto de vista socioeconmico e de

    constrangimento das questes ticas, neste incio do sculo XXI.

  • SUMRIO

    INTRODUO 1

    CAPTULO 1 PENSAMENTO ECONMICO, PARADIGMAS E FELICIDADE 5

    1.1. Escassez de indicadores 8

    1.2. Genealogia do indicador de felicidade 12

    1.3. Valores e dimenses do bem-estar no FIB 15

    1.3.1. Padro de vida 15

    1.3.2. Sade 16

    1.3.3. Educao 17

    1.3.4. Uso do tempo 17

    1.3.5. Boa governana 18

    1.3.6. Diversidade e resilincia ecolgica 18

    1.3.7. Bem-estar psicolgico 19

    1.3.8. Vitalidade comunitria 20

    1.3.9. Diversidade e resilincia cultural 20

    CAPTULO 2 SOBRE ECOLOGIA E ECONOMIA 22

    2.1. Georgescu-Roegen e bioeconomia 26

    2.2. Preservacionismo e culto vida silvestre 29

    2.3. O assim chamado desenvolvimento sustentvel 31

    2.4. Justia ambiental e ecologismo popular 35

    2.5. Economia ambiental ou ecologia de livre-mercado 37

    2.6. Ecodesenvolvimento e ecossocioeconomia 40

    2.7. Marx e a ecologia 44

    2.7.1. Outras contribuies de origem marxiana 47

    CAPTULO 3 TICA, BEM-ESTAR E DESENVOLVIMENTO 50

    3.1. tica, utilitarismo e hegemonia 53

    3.2. Eficincia, Pareto e bem-estar 56

    3.3. Bem-estar, desenvolvimento e liberdade 58

    3.4. Bem-estar e capacitaes 61

    3.5. Felicidade, ecologia e indicadores 65

    CONCLUSO 71

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 75

  • 1

    INTRODUO

    O bem-estar e o pensamento ecolgico j figuravam como questes de importncia

    para a economia desde o seu surgimento como um campo do saber. Elas perderam

    importncia no trajeto da sistematizao das cincias econmicas e, neste incio do sculo

    XXI, reassumem antigos e inauguram novos significados sobre a vida em sociedade.

    Movimentos sociais, empresas, entidades governamentais e supragovernamentais, diversos

    cientistas, filsofos, lideranas e grupos espirituais esto em busca de espaos para esses

    interesses na organizao capitalista dominante.

    A realizao desses objetivos sociais, no jogo das decises econmicas, depende de

    diversos fatores. A avaliao da questo do desenvolvimento e da teoria econmica como

    uma tenso velada entre os interesses dos agentes hegemnicos e os interesses civis de

    ordem socioeconmica, poltica e at socioambiental, busca compreender a legitimidade da

    emergncia de novos padres de organizao econmica, sejam eles endgenos ou no ao

    capitalismo.

    Escolheu-se, pois, dois recortes: um que privilegia o fenmeno do surgimento de

    novos indicadores socioeconmicos, menos pelo rigor tcnico-instrumental que exigem do

    que pela necessidade avaliativa que os interesses civis contemporneos contemplam; outro

    que explora necessidade ou limitao que a questo ecolgica impe ao processo de

    desenvolvimento econmico, pois esta parece uma fronteira qual a produo capitalista

    se aproxima em seu processo. Ambos os recortes simbolizam acontecimentos

    paradigmticos com que a sociedade de consumo do sculo XXI se depara, seja para sua

    reproduo sociometablica segundo padres historicamente discutidos e exaustivamente

    descritos, seja para a sua superao como forma de organizao econmica.

    Enquanto a questo do FIB diz respeito formulao de mecanismos de informao

    socioeconmica sobre o que desejam as pessoas nos planos individual e coletivo para suas

    vidas, a histria do pensamento ecolgico trata da questo das diversas escalas em que a

    economia (mercados, governos, indstrias e consumidores) e a ecologia se relacionam e

    interagem. Questes s vezes distintas em sua argumentao, mas que abrem caminhos

    comuns, principalmente na complexidade que exigem ao serem analisadas e avaliadas.

    Em que pese a relevncia desses recortes na sociedade desigual

    socioeconomicamente do incio do sculo XXI, no se neutraliza a questo do

  • 2

    desenvolvimento econmico capitalista. Foi preciso fazer tambm uma reconstituio

    sobre a gnese e evoluo dos principais conceitos de desenvolvimento econmico.

    Encontramos, neste percurso, as ideias de Amartya Sen, que permitiram religar o percurso

    histrico das teorias do desenvolvimento e do bem-estar social s ideias do bem-estar

    coletivo, preconizadas pelo FIB. A sua abordagem do desenvolvimento como expanso das

    capacidades e das liberdades substantivas a pedra angular da sntese entre tica e

    economia.

    Vale ressaltar que as potencialidades do FIB e do pensamento ecolgico no bastam

    por si para suplantar ou suspender os efeitos da lgica capitalista na sociedade

    contempornea. Todavia, h perspectivas favorveis que essas potencialidades inserem no

    ambiente econmico em diversas escalas, tanto por causa do espao paradigmtico que a

    felicidade e a ecologia ocupam no campo do saber econmico, quanto pela articulao que

    promovem com a tica e a cidadania planetria, por tratar-se de valores ligados escolha

    social. Os valores que inspiram a vida de uma sociedade determinaro sua viso de

    mundo, assim como as suas instituies, seus empreendimentos cientficos e a tecnologia,

    alm das aes polticas e econmicas que a caracterizam (CAPRA, 1982, p. 182).

    Assim, o objetivo desta monografia avaliar as potencialidades e limitaes, no

    mbito dos valores e da tica econmica, dos conceitos de PIB - Produto Interno Bruto e

    FIB - Felicidade Interna Bruta, enquanto indicadores utilizados para mensurar o bem-estar

    social, bem como das concepes elaboradas pelas principais correntes do pensamento

    econmico ecolgico.

    Para tratar deste propsito, estruturamos o nosso trabalho em trs captulos.

    No captulo 1 identificaremos os gargalos que a tomada do crescimento econmico

    como um objetivo unvoco e instrumental pode acarretar. Apresentaremos tambm a

    origem da ideia da felicidade como objetivo social para a organizao das funes

    econmicas.

    No captulo 2 registraremos a histria do pensamento ecolgico na relao com a

    economia, buscando mapear e caracterizar o quadro de convivncia entre ideias difusas

    sobre essa interao: o desenvolvimento sustentvel, a economia do meio ambiente, a

    economia ecolgica ou justia ambiental e a ecossocioeconomia. Buscaremos tambm

    destacar os subsdios que as vises ecolgicas podem fornecer ao campo da economia e

    reorganizao das funes produtivas.

  • 3

    No captulo 3 realizaremos uma avaliao dos valores ticos comuns s abordagens

    da felicidade e da ecologia na economia, destacando os subsdios que fornecem para o

    campo da tica e economia. Registraremos tambm a origem e o longo percurso de ruptura

    entre essas duas reas do conhecimento, alm da contestao entre a tica econmica

    dominante e a consonncia dos valores ticos e socioambientais que emergem do FIB, da

    ecologia e da teoria de Amartya Sen, no sentido de ampliar os indicadores econmicos e

    resignificar as concepes de bem-estar e desenvolvimento.

    Por ltimo, sumarizamos as principais concluses extradas ao longo do trabalho.

  • 4

    Chuang-Tzu e Hui Tzu

    Atravessaram o rio Hao

    Pelo aude

    Disse Chuang:

    Veja como os peixes

    Pulam e correm to livremente:

    Isto a sua felicidade.

    Respondeu Hui:

    Desde que voc no um peixe

    Como sabe

    O que torna os peixes felizes?

    Chuang respondeu:

    Desde que voc no sou eu,

    Como possvel que saiba que eu no sei

    O que torna os peixes felizes?

    Hui argumentou:

    Se eu, no sendo voc,

    No posso saber o que voc sabe,

    Da se conclui que voc,

    No sendo peixe

    No pode saber o que eles sabem.

    Disse Chuang:

    Um momento:

    Vamos retornar

    pergunta primitiva.

    O que torna os peixes felizes.

    Dos termos da pergunta

    Voc sabe evidentemente que eu sei

    O que torna os peixes felizes.

    Conheo as alegrias dos peixes

    No rio

    Atravs de minha prpria alegria medida

    Que vou caminhando beira do mesmo rio. (A via de Chuang-Tzu)

  • 5

    CAPTULO 1 PENSAMENTO ECONMICO, PARADIGMAS E FELICIDADE

    A princpio, a cincia econmica tem sido frequentemente caracterizada como uma

    cincia social profundamente interessada em compreender a escassez dos recursos ou

    fatores de produo, bem como as necessidades ilimitadas do homem moderno. Desse

    duplo emergem os chamados problemas econmicos.

    Desde o incio os problemas econmicos pressupem a escassez e a busca por

    suprir ilimitadamente as sociedades modernas. Segundo VARIAN (2000, p. 47) a teoria

    econmica no seria um assunto muito interessante num mundo em que todos estivessem

    saciados em seu consumo de todos os bens. Ao adotar essa postura como senso comum e

    ncleo da estrutura de pensamento na cincia econmica, a categoria escassez passou a ter

    tamanha penetrao como axioma que, em alguns casos, tornou-se inquestionvel. Nesses

    casos, as pesquisas em economia prescindiram de estratgias alternativas e/ou paradigmas

    que partam de outras premissas.

    A orientao da cincia econmica ao longo de mais de dois sculos, fundamentada

    no pressuposto da escassez, permitiu a expanso da capacidade produtiva da sociedade,

    pelo avano tecnolgico e pela generalizao dos padres industriais e estruturas de

    mercado na economia. Em muitos lugares do mundo, a competio tornou-se uma espcie

    de padro sociocultural, permeando, inclusive, esferas da educao e do trabalho. Todavia,

    como assinala SILVA (2006, p. 9) tambm gerou a possibilidade da vida humana, como a

    observamos hoje, se tornar invivel.

    Assim, de se supor a validez da busca por alternativas ao sistema produtivo atual,

    de modo geral, bem como a resignificao de muitos dos pressupostos da moderna cincia

    econmica - o que E.F. Schumacher chama de metaeconomia - pois raramente so

    includos de maneira explcita nos modelos econmicos. A descoberta de novas categorias

    que no s expliquem como inspirem aes e comportamentos consoantes com valores

    ticos e integridade ecolgica se faz mister. Segundo Fritjof Capra:

    [...] a fragmentao e a compartimentao da economia tem sido assinalada e

    criticada ao longo da histria moderna. Mas, ao mesmo tempo, os economistas

    crticos que desejavam estudar os fenmenos econmicos tal como realmente

    existem, inseridos na sociedade e no ecossistema, e que, portanto, divergiam do

    estreito ponto de vista econmico, foram virtualmente forados a se colocarem

    margem da cincia econmica. (CAPRA, 1982, p. 181).

  • 6

    Assim, por excluso, apontamentos preciosos sobre a economia e a sociedade,

    como o caso do indiano Prabhat Sarkar, Karl Marx, entre outros, no foram devidamente

    considerados e se mantm at hoje distantes, tanto daqueles que advogam em seu favor,

    quanto dos policy makers.

    O autor acima atenta para o fato de que a evoluo dos padres econmicos

    extremamente dinmica, alm de depender dos sistemas sociais que se inserem, igualmente

    mutveis. Logo, para entender a economia, importante resignificar estruturas conceituais

    e torn-las adaptveis s novas situaes postas sociedade. A evoluo de uma

    sociedade, inclusive a evoluo do seu sistema econmico, est intimamente ligada a

    mudanas no sistema de valores que serve de base a todas as suas manifestaes (1982, p.

    181).

    De acordo com CAPRA (1982, p. 182), uma vez que a economia se ocupa de

    compreender a produo, a distribuio e o consumo de riquezas, estudando valores

    relativos troca de bens e servios com o fim de determinar o que valioso num certo

    momento, ela se tornou, entre as cincias sociais, a mais normativa e mais claramente

    dependente de valores. SILVA (2007, p. 4) assinala que o que moral ou imoral passa a

    no ser somente uma conveno, mas algo relativo. Ele mostra isso atravs do exemplo de

    que, por meio do uso da razo direcionada persuaso retrica, um advogado pode

    sustentar que um criminoso no deve ser considerado como tal. Logo, os sistemas morais

    que norteiam a sociedade e o pensamento econmico podem ter diferentes genealogias e

    percorrer diferentes caminhos.

    Independentemente da relatividade no processo de construo de valores de cada

    sociedade, o fato que a economia deve analisar a ao e disposio humana em

    administrar combinaes de fatores de produo, partindo de algumas restries que o

    ambiente estabelece para a sua reproduo, assegurando usufruto dessas condies fsico-

    naturais s geraes posteriores. A tentativa em captar a possibilidade de solidariedade na

    sociedade moderna est relacionada ao potencial humano de estabelecer vnculos sociais

    baseados em uma fora imanente ao dilogo e comunicao (HABERMAS apud

    SOUZA, 1998, p. 38).

    A eliminao gradual de uma tica restrita de contrato social no campo econmico

    tem razo de ser no desenvolvimento de um novo conceito de direito. Logo, o pensamento

    econmico que no desvencilhe a responsabilidade da liberdade, assim como o bem-estar

  • 7

    social do ecolgico, comprometido com a preservao das condies de sobrevivncia

    qual est atrelado deve incluir, em princpio, as vrias dimenses reconhecidas que fariam

    parte de um novo contrato natural, ou seja, o conjunto dos direitos do indivduo, dos

    direitos do outro e dos direitos da Terra (SERRES, 1990 apud BUSS, 1993). Trata-se de

    um pacto de fundao da sociedade em funo de uma tica verdadeiramente universal e

    inclusiva a ser estabelecida com o ambiente ecolgico.

    De fato, a questo ecolgica tem adquirido respaldo como fora aglutinadora de

    debates reflexivos em diversos campos cientficos e filosficos, principalmente sobre

    concepes e possibilidades de organizao humana sobre a Terra. Segundo BUSS (1993),

    a questo ecolgica concebida como uma preocupao com os direitos fundamentais de

    preservao das condies de vida no planeta Terra vinculados de maneira significativa,

    individual e coletivamente, responsabilidade e ao desenvolvimento de liberdades e

    capacidades humanas.

    nesse ambiente ecolgico que se realiza o ambiente socioeconmico, de onde

    emergem questes acerca do subdesenvolvimento, consumo de recursos naturais e

    concentrao populacional nos ecossistemas urbanos. Assim, o metabolismo ecolgico

    tambm poder ser considerado como um problema tico, fundamentado na

    responsabilidade dos indivduos, empresas e governos (SCHRAMM, 1992 apud BUSS,

    1993).

    Neste contexto surge o indicador Felicidade Interna Bruta (FIB), um dos objetos

    deste trabalho. Desenvolvido no reino do Buto - pequeno pas se comparado aos seus

    vizinhos limtrofes China e ndia e em relao aos padres geoeconmicos de consumo a

    nvel global - o FIB , antes de ser um instrumento de gesto pblica, um conceito que fora

    elaborado com a ideia de que o desenvolvimento econmico propiciado pela expanso do

    PIB (Produto Interno Bruto) gerava riqueza monetria, mas atuava em desarmonia e

    favorecia diversos tipos de desequilbrio socioeconmico.

    Ainda que o objetivo inicial fosse fornecer ao Buto um conjunto de indicadores

    que pudessem representar outra viso de desenvolvimento que no aquela expressa pelo

    PIB, alm de desenhar metas e estratgias governamentais para tal, o princpio que

    realmente fundou FIB foi a busca pelos mecanismos e variveis que geram a felicidade

    para a populao e seus membros, e no necessariamente, a expanso da riqueza monetria

    autorreferenciada.

  • 8

    medida que o governo do Buto tem utilizado e aprimorado esse indicador nas

    ltimas dcadas, o tema felicidade ganhou notoriedade numa poca em que alguns centros

    de pesquisa pelo mundo, principalmente alguns observatrios da ONU como o PNUD,

    por exemplo tem se empenhado em diagnosticar o desenvolvimento dos pases sobre

    pontos de vista alternativos queles da expanso do produto interno bruto, o que permitiu

    surgir uma gama de indicadores de bem-estar com objetivos semelhantes.

    Buscar-se- entender o FIB como uma ferramenta de anlise e diagnstico

    socioeconmico. Mas a sua contribuio no se encerrar em si: a questo da felicidade e

    do bem-estar social como valores que sintetizam objetivos econmicos, alm da emerso

    do monitoramento civil sobre as decises da economia, trazem tona um questionamento

    profundo sobre a natureza das categorias e axiomas que foram tradicionalmente

    privilegiados no pensamento econmico, principalmente na contemporaneidade, em que as

    fronteiras entre negcios e sociedade civil tornam-se fluidas e a informao, o

    conhecimento e a cincia so bens pblicos cada vez mais importantes na economia

    (ABRAMOVAY, 2012, p. 80-81).

    1.1. Escassez de indicadores

    A busca por solues para as questes da escassez nos ltimos sculos levou a um

    perceptvel desenvolvimento das foras produtivas. Esse processo se vincula ao

    aprofundamento tecnolgico no campo da produo e multiplicao de capitais.

    As categorias a respeito dos problemas econmicos inicialmente emergiram como

    elementos da filosofia tica, indicando uma preocupao ligada ao bem-estar humano e ao

    racionalismo substantivo. Posteriormente, com o advento da filosofia utilitarista e da sua

    influncia na evoluo do pensamento econmico, a sua realizao pela individualizao

    da ao social sinalizou para uma predominncia do racionalismo instrumental (SILVA,

    2011, p. 3).

    Esse movimento pode ser entendido como um processo histrico que inverteu a

    funo da tcnica na sociedade, conduzindo-o condio de fim ao invs de meio para

    solucionar os problemas econmicos. Esse fenmeno pode ser entendido como uma forma

    de instrumentalizao das categorias econmicas, o que certamente contribuiu para

    diversos afastamentos entre o pensamento econmico e a tica.

  • 9

    Sob ponto de vista semelhante, durante o perodo marcado pela depresso

    econmica da dcada de 1930, John Maynard Keynes sentiu-se impelido a concluir que

    no estaramos muito longe do dia em que preferiramos o bom ao til. Contudo, adverte

    os leitores sobre a inviabilidade dessa realidade para a economia capitalista, justamente no

    contexto que presencia. Na obra O Negcio ser Pequeno (Small is Beautiful, 1973), h

    uma meno sobre esse episdio:

    Mas, cuidado!, [Keynes] prosseguia, Ainda no chegou o tempo de tudo isso. Por mais cem anos, no mnimo, devemos simular para ns e para todos

    que o justo injusto e o injusto justo; pois o injusto til e o justo no o .

    Avareza, usura e precauo ainda tem de ser nossos deuses por mais algum

    tempo. Pois s elas podem tirar-nos do tnel da necessidade econmica para a

    luz do dia.. (KEYNES apud SCHUMACHER, 1983, p. 20).

    Atravs dessa passagem, Schumacher, o autor da obra em destaque, deixa

    subentendido que o processo de crescimento econmico permitiu que se consolidasse uma

    crena no avano tecnolgico e que este, como Keynes j havia observado, tem como

    atrativo irresistvel a qualidade de permitir mais depressa o acesso a uma coisa desejvel;

    ele justifica um avano sem limites discernveis e duplamente atraente ao evitar por

    completo a questo tica (SCHUMACHER, 1983, p. 19).

    Dessa maneira, importante resignificar o contnuo e autorreferente crescimento

    econmico: havendo a expanso da demanda por bens em alguns pases, decorrente do

    avano das foras produtivas e explorao de matrias primas, h uma tendncia que tem

    tornado alguns bens escassos e/ou muito caros antes de outros pases, configurando uma

    situao de privilgio queles cuja inovao tecnolgica mais tradicional, bem como uma

    posio desfavorvel queles que ainda no reuniram riqueza, educao, refinamento

    industrial e poderio de capital acumulado (1983, p. 23). Trata-se de um quadro clssico de

    desigualdade de condies econmicas que permanece se ampliando.

    O socioeconomista indiano Amartya Sen enfatizou que o potencial de frutificao

    de qualquer novo indicador social proposto jaz tanto na discusso pblica que ele gera

    quanto no uso tcnico da mtrica em si, independentemente de quo boa ela for (SEN

    apud GALVO, 2012). O papel da discusso pblica, portanto, o que sinaliza este fato.

    O autor fez essa considerao com o objetivo de esclarecer por que um indicador social ou

    socioeconmico deve responder mais s necessidades da populao do que a uma

    contabilidade grosseiramente superficial.

  • 10

    Ele inaugura uma valente crtica ao clculo do PIB Produto Interno Bruto que

    consta em grande parte da histria e anlise econmica do sculo XX como indicador de

    riqueza econmica a ser perseguido. A constatao do potencial econmico que h para

    gerao de bem-estar em escalas maiores do que so verificadas atualmente e a emerso da

    necessidade de reavaliao do modelo econmico hegemnico so acontecimentos que

    merecem destaque no contexto de pensamento econmico avant-garde.

    No decorrer das ltimas dcadas o nvel de desenvolvimento econmico tem sido

    aferido a partir de indicadores que levam em conta apenas o produto da riqueza material

    monetria gerada e acumulada num certo perodo e lugar. Desses indicadores, o mais

    famoso e influente justamente o PIB. Ele surgiu como uma abordagem sobre o progresso

    econmico durante a poca da Grande Depresso (1929) e ganhou notoriedade como

    objeto de pesquisa da poltica econmica principalmente a partir da II Guerra Mundial,

    com a unificao das contas nacionais. De maneira que se tornou referncia de progresso

    econmico nas dcadas posteriores, e tem servido fundamentalmente para contar os

    valores de bens e servios finais (BLANCHARD, 2007, p. 42) produzidos ou fornecidos

    por um pas durante um determinado perodo.

    O PIB o principal indicador utilizado pelas sociedades desenvolvidas para avaliar

    o progresso econmico. Atualmente, a maioria dos pases mede as variaes do produto

    interno bruto (PIB) ou as variantes desse conceito (GADREY & JANY-CATRICE, 2006, p.

    15 apud SILVA, 2011, p. 40).

    No que o pensamento econmico deva se privar por completo de seu contedo e

    poder de informao. Todavia, h que se compreender corretamente em que contexto

    histrico e cientfico esse indicador foi projetado, quais as consequncias de sua tomada

    como revelador nico de estratgias econmicas bem sucedidas e qual o nvel de

    complexidade envolvido na expanso do PIB sem a correta avaliao de seus riscos

    socioambientais.

    H um caso emblemtico sobre a relao dos riscos socioambientais e a expanso

    econmica de uma regio: quando o navio petroleiro Exxon Valdez naufragou na costa do

    Alaska, em 24 de maro de 1989, foi necessria, para reparar o enorme acidente, a

    contratao de inmeras empresas para limpar as costas dos dejetos hidrocarbonetos.

    Essa dramtica situao foi descrita como paradoxo do PIB pelo filsofo Patrick

    Viveret (VIVERET apud DOWBOR, 2009). O paradoxo pode ser descrito segundo o fato

    de que os investimentos que se deram em decorrncia da necessidade de limpeza a rea

  • 11

    ocenica atingida pelo vazamento de petrleo elevaram fortemente o PIB da regio por

    anos a fio.

    O paradoxo do PIB expe a possibilidade de elevao no PIB por meio de um

    desastre ecolgico de propores gigantescas. Como o PIB apenas calcula o volume de

    atividades econmicas monetrias ao medir o fluxo de meios, no levando em conta fins

    especficos que possam ser sustentados pela busca de algum objetivo socialmente

    desejvel, em seu bojo terico reside o fato contraditrio de que um acidente ecolgico

    como fora a poluio de Prince William Sound, no Golfo do Alaska, possa ser considerado

    economicamente justificvel, por estar conjugado expanso de riqueza monetria.

    Dessa maneira so abertos precedentes para que alguns riscos ambientais e

    ecolgicos que no seriam normalmente aceitos pela sociedade tornem-se economicamente

    aceitveis, tratados muitas vezes como meros riscos ao investimento. No limite, vale dizer

    que os riscos socioambientais podem chegar a ser considerados por alguns agentes

    econmicos como desejveis, do ponto de vista da simples expanso do PIB.

    Segundo DOWBOR (2009), o mais importante ainda o fato do PIB no levar em

    conta a reduo dos estoques de bens naturais do planeta. Quando um pas explora o seu

    petrleo, isto geralmente apresentado como eficincia econmica. Inclusive a expresso

    produtores de petrleo j um paradoxo, pois nunca se conseguira produzir o petrleo;

    ele resultado do estoque de bens naturais e a sua extrao, se der lugar a atividades

    importantes para a humanidade, pode ser considerada positiva, ainda que se deva levar em

    conta que h reduo do estoque de bens naturais que se entrega s geraes seguintes

    (DOWBOR, 2009).

    A extrao de petrleo uma atividade econmica que fere o princpio econmico

    de intertemporalidade dos recursos naturais. Por isso, no faz sentido a sua renda ser

    contabilizada como aumento da riqueza de um pas. A partir de 2003, o Banco Mundial

    passou a considerar a extrao de combustveis fsseis na conta da poupana nacional, e

    no na de produto (DOWBOR, 2009). O compromisso em no contabilizar o consumo de

    bens no renovveis (do contrrio, deformaria radicalmente as prioridades econmicas que

    devem ser privilegiadas) foi um gesto simbolicamente importante em termos de

    questionamento do pensamento hegemnico em poltica econmica, ainda que o Bird seja

    apenas um rgo de assistncia ao desenvolvimento dos pases.

    Para DOWBOR (2008, p. 33), grande parte do nosso sentimento de impotncia

    frente s dinmicas econmicas vem do fato de que simultaneamente no temos

  • 12

    instrumentos para saber qual a contribuio das diversas atividades para o nosso bem

    estar.. Sendo assim, se tomada isoladamente, a anlise da taxa de expanso do PIB abstrai

    o foco do objetivo principal, que deve ser a qualidade de vida e bem-estar da comunidade.

    A construo de novos indicadores de riqueza se torna um eixo particularmente importante

    na formulao de parmetros de medio na realidade atual do planeta.

    Em termos gerais, o PIB representa um axioma do pensamento econmico

    dominante (presente nas reflexes denominadas ortodoxas e heterodoxas dentro do

    panorama da teoria econmica). Ele ser contraposto a outros indicadores idealizados no

    empenho de elaborar instrumentos que reconduzam o bem-estar ao centro da discusso em

    economia. Haver tambm uma reflexo sobre os valores ticos que introduzem na

    discusso, o que ser o pano de fundo de nossa avaliao.

    nesse contexto que emerge o potencial dos indicadores alternativos, entre eles o

    FIB (GNH Gross National Happiness, no original em ingls). Ele est presente na

    discusso pblica sobre a melhoria do bem-estar social, mas tambm insere a ao civil

    coletiva como varivel a ser considerada para operar devidamente. Nos arautos simblicos

    de sua elaborao, os conceitos que esto por trs do FIB rementem investigao sobre

    quais fatores so capazes de promover a felicidade coletiva.

    1.2. Genealogia do indicador de felicidade

    O FIB Felicidade Interna Bruta , antes de ser um indicador socioeconmico,

    um conceito que fora desenvolvido na Repblica do Buto com o objetivo de compreender

    como e quais so os fatores que promovem o bem-estar e a felicidade de uma populao,

    pas ou comunidade. H substanciosos trabalhos por parte dos policy makers butaneses,

    que advm da preocupao em demonstrar a felicidade de uma nao, levando em conta

    uma sntese entre indicadores mais complexos - do ponto de vista conceitual e tcnico-

    instrumental - se comparados aos indicadores tradicionalmente tratados na economia.

    Apesar de em sua gnese o FIB estar associado ao desenvolvimento das polticas pblicas

    do Buto, em especfico, ele tem influenciado a formao de um programa de interesse

    socioeconmico e ambiental, com a perspectiva de que a busca pelo desenvolvimento deve

    ter como axioma principal a promoo da felicidade coletiva e do bem-estar social.

    Quando comparado aos indicadores tradicionais, o FIB contempla um conceito

    amplo de bem-estar, em que vale destacar a relao entre as dimenses da economia, do

  • 13

    ambiente ecolgico, cultura e psicologia. Nos documentos metodolgicos sobre o

    indicador, foram considerados os diversos conceitos da felicidade ao longo da histria. H

    um dilogo entre a evoluo desse conceito na filosofia e na cincia a partir de Epicuro e a

    filosofia hedonista, Santo Agostinho e a relao entre bem-estar e as questes de ordem

    espiritual, at a felicidade como possibilidade de ser um objeto oculto e estratgico da

    economia num futuro prximo (SILVA, 2011, p. 41).

    Os relatos sistematizados sobre a histria do FIB, sua origem, necessidades,

    metas, dimenses e indicadores foram desenvolvidos a partir dos materiais

    oficiais do Centro de Estudos do Buto, que executa pesquisas

    multidisciplinares sobre economia, histria, espiritualidade, sociedade, poltica,

    cultura, meio ambiente e outros aspectos. (SILVA, 2011, p. 42).

    mister destacar a importncia dessa sistematizao para este trabalho, uma vez

    que os pressupostos normativos do FIB o posicionam no mesmo patamar que os estudos

    sobre a tica econmica.

    O desenvolvimento econmico que o Buto empreende intenciona ir alm do

    equilbrio entre as contas nacionais. Inclusive, difcil tratar a questo do desenvolvimento

    no Buto como apenas desenvolvimento econmico. A ideia de felicidade e bem-estar

    tratada de maneira difusa, havendo autores que preferem caracteriz-la como algo que se

    aproxima (mas no equivalente) de bem-estar social, desenvolvimento socioeconmico,

    desenvolvimento sistmico, ou apenas desenvolvimento (SEN, 2000).

    Por meio do Centro de Estudo do Buto1 houve a elaborao dos ndices que

    compe o FIB, os quais se desdobram em indicadores comuns a diversas dimenses da

    sociedade, de modo a fornecer informaes sintticas para o planejamento, desde o nvel

    genrico ministerial at departamentos de trabalho mais localizado. Foram estabelecidas

    ferramentas de triagem para os projetos do governo, com metas e objetivos que servem

    para sinalizar quais so as reas que esto sendo mais e menos desprivilegiadas (SILVA,

    2011, p. 44). Desde a sua introduo no planejamento butans, estes mecanismos vem

    sendo aprimorados e servem como padro de avaliao de longo prazo pela populao.

    Os indicadores que compe o FIB tambm so um canal de comunicao entre a

    sociedade civil e o governo, pois uma das etapas de elaborao constitui-se de entrevistas

    1

    O Centro de Estudos do Buto (Centre for Bhutan Studies) um instituto de pesquisas ligadas ao

    FIB, criado pelo PNUD. um rgo autnomo atrelado ao Conselho do Centro de Estudos do Buto, sendo

    presidido por Dasho Karma Ura, mestre em Poltica, Filosofia e Economia pela Universidade de Oxford.

  • 14

    com a populao sobre os resultados anteriores do FIB em suas trajetrias pessoais.

    Decerto isso imprime algum significado poltico participao civil nas pesquisas. O

    envolvimento cidado com as atividades comunitrias um dos subindicadores do FIB e

    reflete principalmente a evoluo do engajamento sociopoltico da populao butanesa.

    Sobre isso, observa-se:

    O senso de propsito comum incorporado em um conjunto de indicadores, o

    que permite que homens e mulheres da sociedade possam acompanhar e

    monitorar os seus dirigentes, verificando se as metas propostas esto sendo

    realmente cumpridas. (SILVA, 2011, p. 44).

    A construo dos ndices deve respeitar a relevncia tanto de aspectos funcionais da

    sociedade, a autopercepo das condies socioeconmicas, psicolgicas e espirituais,

    como tambm a necessidade e importncia da formao de material estatstico regional

    sobre essas informaes. Isso proporciona, juntamente com os dados objetivos, uma

    imagem mais precisa do estado social ligado ao bem-estar (2011, p. 44). Os indicadores

    sinalizam, para tanto, uma variedade de informaes que permite o cruzamento relativo

    dos dados obtidos, privilegiando mais a sua inter-relao do que a avaliao de sua riqueza

    ou pobreza absoluta. Dessa maneira, a metodologia de trabalho possibilita obter

    informaes regionais e, portanto, mais gerais, mas tambm informaes pessoais e

    individuais, sendo que, muitas vezes, a compreenso de uma pode ser mais bem feita luz

    da outra.

    Se em sua origem o FIB est associado s estratgias de poltica econmica do

    Buto em especfico, na orientao de uma busca por um desenvolvimento integral da

    sociedade, que esteja conjugado a felicidade e bem-estar, ele pode representar um novo

    paradigma dentro do pensamento econmico. Pela razo de levar em conta outras

    dimenses que orbitam a esfera econmica alm da produo material de riqueza

    monetria, o FIB parece promover um realinhamento da economia s questes da tica

    econmica e das prticas do bem estar social e comunitrio.

  • 15

    1.3. Valores e dimenses do bem-estar no FIB2

    Ao trabalhar-se com empenho investigativo cientfico e filosfico, foi possvel a

    identificao de valores ticos que correlacionassem diversas esferas da vida privada e

    coletiva da sociedade butanesa. Foram elaborados indicadores que, sintetizados,

    constituem o ndice de felicidade interna bruta. Esse agregado de indicadores inclui metas

    a serem alcanadas a curto, mdio e longo prazo, alm de incluir sugestes de meios para

    atingir esses objetivos. Os quatro pilares em que a felicidade e o bem-estar social esto

    ancorados so economia, cultura, meio ambiente ou ecolgico e boa governana.

    Segundo SILVA (2011, p. 46), os indicadores do FIB tem esses pilares mas foram

    concebidos em nove dimenses bsicas, que so as componentes fundamentais para que

    esses quatro pilares interajam em harmonia. Esses indicadores tem razo de ser como

    instrumentos cujo grau de informao sobre cada uma dessas dimenses deve manter

    relao com o que se atinge entre elas em conjunto.

    Segundo URA (2011, p. 2), as nove dimenses so ponderadas da mesma maneira,

    pois cada uma considerada vital e sua importncia se atribui a composio do ndice de

    felicidade nacional bruta.

    1.3.1. Padro de vida

    A dimenso do padro de vida analisada atravs dos nveis de renda individual e

    familiar, o senso de estabilidade financeira individual e familiar, mensurada atravs da

    quantidade e tamanho da propriedade (limitado a cinco acres3 por famlia) e dos ativos, tais

    como presena de telefone, computador e eletrodomsticos em casa. Tambm h uma

    autoavaliao do status econmico individual, bem como da capacidade de contribuio

    para as festas comunitrias ou da dificuldade em assumir parte desses compromissos, alm

    do nvel da habitao - acesso eletricidade, banheiros, nmero de cmodos e qualidade

    do telhado.

    2

    A caracterizao dimenses do bem estar no FIB expressas neste captulo tiveram como inspirao

    as informaes apresentadas de modo bastante geral em no GNH ndex, presentes no contedo do portal THE

    Centre for Bhutan Studies (2012).

    3 A unidade de medida Acre equivalente a 4.046,8564224 m, aproximadamente 0,4 hectare

    (medida para rea rural mais comumente utilizada no Brasil e em Portugal.

  • 16

    vlido considerar que na dimenso do padro de vida se leva em considerao a

    renda em um determinado perodo, sendo que, apesar do semelhante resultado com

    agregado do produto interno bruto, ele emerge como uma resignificao original na

    economia budista desse pas.

    O economista moderno est acostumado a medir o padro de vida pela quantidade de consumo anual, supondo sempre que um homem que consome

    mais est em melhor situao do que outro que consome menos. Um economista budista consideraria este enfoque extremamente irracional: como o

    consumo simplesmente um meio para o bem-estar humano, a meta deveria ser

    obter o mximo de bem-estar com o mnimo de consumo (SCHUMACHER,

    1983, p. 49).

    Apesar de ser possvel a aproximao dessa categoria com os indicadores de

    produo (PIB) e nvel de renda (PIB per capita), deve-se atentar para o fato de que a

    varivel consumo, no entendimento do FIB, no deve ser considerada em termos

    absolutos. Ela est relacionada a capacidade relativa do consumo em contribuir para um

    quantum de bem-estar, de acordo com um nvel de absoro de recursos para ger-lo.

    Os subindicadores de padro de vida consistem em: renda familiar per capita; nvel

    de habitao e; propriedade de ativos.

    1.3.2. Sade

    No mbito da sade so considerados, tanto para medir a eficcia e funcionamento

    do sistema pblico de sade quanto para mensurar o grau de dependncia que os

    indivduos da comunidade tem de um sistema pblico de sade. Tambm considerado o

    grau de sade preventiva do indivduo, observado atravs da qualidade na alimentao e da

    realizao de atividades fsicas.

    A autoavaliao uma situao mpar da pesquisa sobre felicidade: se investiga o

    nmero mdio de dias saudveis do indivduo num perodo, a incidncia mdia de

    transmisso do vrus HIV e da prtica de amamentao, alm do IMC (ndice de Massa

    Corporal). Os servios e as prticas de sade so mensurados quanto sua ausncia ou

    presena (dummies), alm da avaliao de proximidade ou distncia para acessar os

    servios de sade, preferencialmente, via caminhada.

    H tambm o indicador de sade mental. Este mensura a capacidade ou dificuldade

    de concentrao das pessoas, capacidade de resoluo de problemas e tomada de decises a

  • 17

    nvel pessoal e coletivo, alm da presena ou no de stress prolongado, depresso,

    insegurana ou complexo de inferioridade.

    O conjunto de subindicadores que compe o ndice de Sade abrange quatro reas

    principais: autoavaliao do status da sade; nmero de dias saudveis do indivduo, no

    perodo de 1 ano; deficincias e dificuldades do atendimento na sade e; nvel de sade

    mental.

    1.3.3. Educao

    O domnio da educao abrangente e tange os conhecimentos gerais da prtica

    cidad. Ele se encontra associado incorporao de valores ticos e habilidades tcnicas de

    trabalho, alm do exerccio da criatividade. Avalia-se a eficcia da educao no cotidiano,

    e se a ocupao diria da pessoa contribui sade econmica coletiva em termos

    diferentes daqueles que so concebidos como sade econmica principalmente no

    Ocidente.

    A cidadania como forma de participao poltica comunitria uma qualidade

    endgena a dimenso da educao. Nessa direo, cultura e conhecimento populares so

    considerados relevantes formao individual e coletiva na facilitao dos processos

    colaborativos intracomunitrios.

    O ndice de educao consiste nos subindicadores: conhecimentos gerais; taxa de

    alfabetizao (avaliada pela destreza para com o idioma tradicional dzongkha) e; grau de

    instruo e incorporao de valores ticos.

    1.3.4. Uso do tempo

    O domnio do uso do tempo est entre uma das dimenses mais representantes e

    inovadoras no entendimento de qualidade de vida. Levam-se em conta as aes realizadas

    no cotidiano do indivduo e o tempo despendido em cada uma delas, medido em horas de

    trabalho produtivo, lazer e horas de sono.

    O tempo reservado vida pessoal inclui a participao em atividades educativas, de

    cunho espiritual, sociocultural, esportivo, lazer e comunitrio. A compreenso do uso do

    tempo revela que a diversidade de atividades que um indivduo pode se engajar alm de

    sua jornada de trabalho contribui para a elevao de seu nvel pessoal de felicidade.

  • 18

    A dimenso do uso do tempo avaliada, a nvel qualitativo e quantitativo em: horas

    de trabalho e horas de sono;

    1.3.5. Boa governana

    A dimenso da boa governana diz respeito percepo civil sobre a qualidade e

    grau de efetividade da ao governamental. Em primeiro lugar, esses indicadores esto

    relacionados ao desempenho dos governantes escolhidos em corresponder s demandas

    comunitrias por servios e criao de emprego direto. Isso engloba desde a rede de

    proteo da vida, os direitos fundamentais (voto, liberdade, cidadania, valorizao do

    trabalho), a valorizao das culturas tradicionais, at o combate desigualdade,

    corrupo e ao abuso de poder poltico, caracterizando o desempenho da liderana poltica

    em vrios nveis.

    Em segundo lugar, a poltica estudada luz do nvel de participao da

    populao nas votaes - tanto na escala local quanto provincial -, alm da avaliao civil

    dos servios pblicos a partir de algumas balizas: o acesso eletricidade, gua potvel,

    tratamento de resduos e disponibilidade de centros mdicos (medido pelo indicador

    comum dimenso sade - a proximidade ou distncia do acesso aos servios de sade via

    caminhada).

    Sendo assim, os indicadores de boa governana consistem em: servios pblicos

    operantes num certo momento; desempenho do governo; participao poltica e; acesso

    direitos fundamentais.

    1.3.6. Diversidade e resilincia ecolgica

    Na dimenso diversidade e resilincia ecolgica localizam-se duas aes

    complementares: o trabalho de tcnicos e pesquisadores ligados ao aparelho

    governamental, cujo objetivo de coletar materiais sobre os ecossistemas e monitorar a

    preservao de sua biodiversidade e do uso dos recursos naturais (em acepo semelhante

    que se tem sobre o manejo dos recursos de maneira sustentvel) e o trabalho da

    populao, a qual atribuda a funo de coletar informaes sobre o risco e segurana

    ambiental afim do governo mapear as reas de ocorrncia dos deslizamentos de terra,

    enchentes, poluio do ar, hdrica e sonora, e de destino de resduos.

  • 19

    Nesta dimenso do FIB, a conservao do ambiente compreendida como um

    quesito vital. Ela expressa a atualidade de alguns valores ticos, no mbito das polticas

    para o meio ambiente de carter completamente inovador. Aps adoo de medidas de

    funcionamento do FIB, o territrio do Buto mantm sua cobertura vegetal abrangendo

    72% e ainda transformou 28% do territrio do pas em santurio ecolgico (PRADO apud

    SILVA, 2011, p. 49). Vale dizer que at a degradao do ambiente urbano compreendida

    pela tica da ausncia de reas verdes em larga escala, alm do nvel de espraiamento da

    mancha urbana.

    O domnio da diversidade e resilincia do meio ambiente caracterizado pelos

    subindicadores a seguir: nvel de degradao ecolgica; nvel de degradao urbana; ndice

    de reflorestamento e responsabilidade ambiental e; ndice de danos vida selvagem.

    1.3.7. Bem-estar psicolgico

    O domnio do bem-estar psicolgico mais uma dimenso de indicadores

    inovadores em relao aos indicadores tradicionais de bem-estar. Ele de fundamental

    importncia para a avaliao do FIB, pois est ligado, de maneira ampla, observao de

    fenmenos que muitas vezes no interferem, pelo menos diretamente, na escala social.

    por este motivo que a sua representao simblica, dentro do pensamento

    econmico, rara. A cincia econmica concebeu, no limite, a teoria das preferncias

    reveladas, dada a impossibilidade, para a microeconomia, em identificar as condicionantes,

    origens e fundamentos das preferncias pessoais, pautando-se pela perspectiva do sujeito

    como um mero consumidor que revela as suas preferncias de acordo com as escolhas que

    faz sobre o seu gasto de dinheiro4.

    De maneira geral, a satisfao com os servios prestados pela sociedade, alm do

    nvel bem-estar subjetivo resultante, uma varivel que compreende o bem-estar social.

    Segundo o portal brasileiro sobre o indicador, ligado organizao no governamental

    Viso Futuro, a avaliao do bem-estar psicolgico permite identificar o grau de otimismo

    que cada indivduo tem em relao s suas prprias escolhas e capacidades.

    4

    Vale dizer que, por exemplo, segundo essa concepo, as escolhas dos fumantes e obesos

    exprimiriam suas reais preferncias, o que ampliaria o seu nvel de bem-estar. Mas de acordo com as

    descobertas de Carol Graham, os obesos no so mais felizes, na verdade, que os no obesos e os fumantes

    vivem o paradoxo de sentirem-se mais felizes quando aumentam os preos dos cigarros (ABRAMOVAY,

    2012, p. 69).

  • 20

    Dessa maneira, os indicadores que compe essa dimenso dizem respeito

    identificao da ocorrncia de emoes positivas, como compaixo e generosidade, de

    emoes negativas, como angstia, egosmo, frustrao e ansiedade e da concepo

    pessoal sobre necessidades bsicas, o que est correlacionado s dimenses anteriormente

    destacadas: sade, padro de vida, relacionamentos, ocupao, equilbrio na quantidade de

    trabalho. Vale destacar que a dedicao s atividades espirituais, medidas atravs da

    ocorrncia da meditao e orao a nvel pessoal, est diretamente ligada, segundo o FIB,

    ao bem-estar psicolgico.

    O ndice de bem-estar psicolgico abrange, portanto, trs contedos principais:

    indicadores psicolgicos sobre necessidades bsicas; indicadores de equilbrio emocional

    e; indicadores de espiritualidade.

    1.3.8. Vitalidade comunitria

    O domnio da vitalidade comunitria emerge atravs de uma razo social sobre a

    identidade coletiva. Ela seria caracterizada atravs de um agregado das taxas de

    voluntariado e de doao monetria, o que forneceria a noo de confiana na comunidade,

    entendida como famlia ampliada. H uma preocupao com a minimizao da violncia e

    que contemplada, no bem-estar social, pela segurana. Este domnio avalia as interaes

    que ocorrem intracomunidade e a capacidade de cooperao e de ampliao das

    capacidades coletivas ao longo do tempo.

    Os indicadores que compe esta dimenso: relaes familiares; relaes

    sociocomunitrias e nvel de segurana.

    1.3.9. Diversidade e resilincia cultural

    A dimenso da diversidade e resilincia cultural est ligada dinmica e

    preservao das tradies culturais, que podem contribuir positivamente para formao de

    valores comuns e identidade comunitria. Variveis como a quantidade e o carter dos

    eventos culturais, a diversidade de idiomas, a participao nas festividades da comunidade,

    alm da tolerncia e assimilao de novos valores so considerados no ndice. Tambm

    entra nessa conta a ampliao das capacidades pela incorporao de habilidades artsticas

    no campo da tecelagem, bordado, pintura, carpintaria, escultura, modelagem, manipulao

    de bambu, couro e metais (ouro, prata e ferro), papelaria e alvenaria.

  • 21

    O domnio da diversidade e resilincia cultural abrange as seguintes reas:

    utilizao de dialetos locais; nmero de dias do ano despendidos em festividades

    comunitrias; habilidades artsticas e; importncia e transmisso do Driglam Namzha

    (cdigo de esttica e conduta tradicional do Buto).

  • 22

    CAPTULO 2 SOBRE ECOLOGIA E ECONOMIA

    Na cincia econmica tradicional, o meio ambiente (ou meio fsico) - como sugere

    uma consulta a um dos livros-texto mais utilizados nos cursos de economia5 - no uma

    varivel que goza de grande prestgio. Na maioria dos casos ela nem considerada ou, nos

    poucos casos em que presente, est restrita a situaes e espaos frgeis dentro dos

    modelos econmicos. A possibilidade de um ajuste ou outro se faz e, sob a forma de

    apndice da atividade produtiva ou pela execuo dos testes estatsticos de normalidade

    sobre seu efeito residual, os modelos seguem ativos, muitas vezes perpetuando uma

    tradio rigorosa, que reivindica o status de cincia, mas que alheio dimenso real e

    material. Em grande parte do arcabouo terico da economia, a dimenso ecossistmica

    possui a essncia de um almoxarifado ou dispensa, podendo at ser pensado como um

    penduricalho (CAVALCANTI, 2010, p. 56).

    Paradoxalmente, ainda que a lgica predominante na economia contempornea, o

    capitalismo, fortalea diversos tipos de contradio, a alerta para o qual nos fazem,

    repetidas vezes, gegrafos e alguns economistas marxistas e neomarxistas, a atividade

    econmica tem sempre uma dimenso espacial ou territorial. O metabolismo entre

    economia, espao e sociedade mobiliza, muitas vezes, uma transformao drstica nos

    lugares, o que torna a atividade humana uma varivel considervel na modificao dos

    espaos. LEFEBVRE (1974, p. 49) considera que a transformao do espao natural se d

    sobre a suas runas; dele estabelece-se o espao social onde ocorre a acumulao.

    Toda atividade humana, qualquer que seja, incide na metamorfose dos espaos. Os

    ecossistemas quer pelo lado da extrao de recursos, quer pelo lanamento de dejetos sob

    a forma energia degradada sofrem alteraes. A respirao extrai oxignio e devolve gs

    carbnico ecosfera; a alimentao serve-se de solo, gua, fotossntese, etc. e converte-se

    em fezes e urina, alm de energia trmica degradada; o automvel, queimando combustvel

    retirado de petrleo, produz um trabalho, polui e aquece o ar, virando sucata no final de sua

    vida til (CAVALCANTI, 2004, p. 149).

    A natureza, enfim, fonte primria e insubstituvel da vida no planeta Terra. Na sua

    condio de meio fsico, lhe cabe ser o suporte ao desenvolvimento de diversos

    organismos. No caso dos seres humanos, a dependncia da natureza se aprofunda ainda

    5

    Este o caso do livro Microeconomia (2012), de Gregory Mankiw.

  • 23

    mais: o meio fsico de onde se retira a matria prima que ir satisfazer as necessidades de

    sobrevivncia, mas no s: com o tempo, a humanidade se desenvolveu e passou a

    manipular os recursos que a natureza lhe fornecia para adaptar a sua prpria vida.

    Nesse processo, a humanidade desenvolveu novas necessidades, atividades capazes

    de supri-las, novas capacidades e uma poro de significados sobre a sua existncia,

    sempre socialmente. Neste percurso, no foram raras as vezes em que a foras da natureza

    assumiram o papel de antagonismo frente ao desenvolvimento das atividades humanas,

    pois representavam uma enorme barreira a ser vencida. A partir do momento em que a

    evoluo tcnica permitiu encontrar maneiras de superar os seus obstculos, ela esteve

    apartada das discusses sobre desenvolvimento econmico, o que permitiu a algumas

    vertentes do pensamento econmico, em suas formulaes e modelos sobre crescimento

    econmico, desconsiderarem qualquer efeito deste processo para com o meio ecolgico.

    Contudo, a representao intelectual que concebeu o crescimento da atividade econmica

    como um objetivo universal da economia contempornea, se mostrou limitada em resolver

    os velhos problemas econmicos da produo e distribuio dos recursos disponveis,

    conduzindo diversos seres humanos a diversas privaes e desigualdades (SEN apud

    BELTRAME, 2009, p. 3).

    neste contexto em que encontramos a economia contempornea: apartada das

    relaes com o meio ecolgico ao mesmo tempo em que busca encontrar maneiras de

    superar esse constrangimento. Nos ltimos anos, principalmente em decorrncia da

    popularidade dos temas socioambientais, tem emergido (ainda que timidamente) campos

    de estudo dentro economia que lidam com essas questes.

    Poder-se-iam ser julgadas essas abordagens enquadramentos economicistas que o

    tema ecolgico/ambiental est sujeito? No bojo terico de alguns desses trabalhos sim, mas

    em outros no. De abordagens meramente instrumentais, que recorrem de maneira

    inquestionvel desregulao das atividades econmicas e ao sistema monetrio para

    corrigir alocaes ineficazes dos recursos, o pensamento econmico j est povoado

    demais. mister buscar outras abordagens tino econmico que levem em conta o

    mecanismo ecolgico e vice-versa.

    A rea normalmente denominada economia do meio ambiente se preocupa em

    manipular e encontrar os preos corretos que fazem jus alocao tima de recursos. Alm

    disso, ocupam-se em identificar custos ambientais a fim de internaliza-los, com o objetivo

    de se obterem preos que reflitam custos de oportunidade marginais timos e completos.

  • 24

    Para bom entendimento, trata-se de um ramo da microeconomia aplicada e da economia

    industrial.

    Por outro lado, amparado pela crescente preocupao acerca da sobrecarga do

    sistema ecolgico enquanto sustentculo da reproduo da sociedade e de seu modo de

    produo - por onde o modo de produo capitalista emerge como grande impactante do

    ecossistema -, surge a enorme contribuio da economia ecolgica. Entender a vida

    humana e sua relao com a natureza e o que podemos fazer constitui, por assim serem,

    pontos de partida tericos que originam formalmente esse campo de estudo. Ocupa-se

    tambm, apesar de no se apegar tanto s questes microfundamentais, do comportamento

    dos mercados agregados, incluindo os mtodos da economia do meio ambiente, mas com

    uma anlise que possibilita o nascimento de outros discursos, graas orientao crtica e

    reflexiva que nela se inserem.

    Tanto a economia do meio ambiente quanto a economia ecolgica permanecem longe

    do interesse acalorado do mainstream. Muito embora a primeira seja mais consoante com

    os pressupostos tradicionais que a cincia econmica presume, em relao segunda,

    ambas no esto no epicentro das pesquisas ligadas tanto teoria econmica quanto

    economia aplicada. Curiosamente, tambm no h registro formal de uma tradio em

    macroeconomia propriamente ecolgica ou ambiental. provvel que haja esforos

    cientficos nesse sentido, pois h muita relevncia em encontrar a escala adequada para os

    estudos dessa interface entre os campos econmico, ecolgico e tambm poltico.

    Para ser mais preciso, difcil registrar linhas e tradies de orientao ecolgica ou

    ambiental em economia. No se sabe com exatido as razes ou motivos pelos quais isso

    ainda no se foi possvel, apesar de poder especular-se a seu respeito: a) Possivelmente a

    questo tica que ela impe no devidamente considerada ou posta em evidncia; b)

    Provavelmente trata-se de um paradigma cuja emergncia recente, portanto, ainda no

    est consolidado ou no amplamente aceito pela comunidade cientfica e filosfica.

    De uma maneira ou de outra, no de se ignorar a importncia de sua necessidade

    tica. Ela encontra a sociedade numa poca em que os debates poltico-econmicos sobre a

    questo ambiental ainda esto em gnese. Tambm o uso do termo desenvolvimento

    sustentvel para generalizar o movimento crtico explorao econmica baseada no

    modelo de esgotamento dos recursos tem sido feito de maneira indiscriminada. Esse

    mesmo conceito tem sido alvo de crticas muito severas, devido s suas ambiguidades,

    indefinies e/ou contradies; nfase economicista e desenvolvimentista; alm de no

  • 25

    colocar em evidncia o verdadeiro constrangimento tico que a economia globalizada

    submete.

    Alm disso, a no explicitao sobre como resolver o conflito entre preservao e

    crescimento econmico no contexto de capitalismo abriu margem para, nesse raciocnio,

    representar o esgotamento das possibilidades reais de viabilidade da produo econmica

    (HERCULANO, 1992; RODRIGUES, 1996; BRUGGER, 1994; STAHEL, 1995; LIMA,

    1997; SANTOS, 1996 apud LIMA, 1999: p. 149). Nesse ringue, os defensores do

    crescimento econmico passaram a se opor de maneira drstica a toda e qualquer discusso

    de cunho socioambiental que pusesse em risco o seu discurso.

    Como se pode perceber, a identificao da contenda entre natureza e sociedade,

    meio ambiente e o contexto de incerteza da economia, compe a nova fronteira a ser

    explorada, entre a cincia e teoria econmica. Toda a filosofia e a cincia esto sentindo os

    abalos da emergncia do paradigma ecolgico e ambiental. A economia, sendo a cincia

    social que se dispe a analisar a produo, a distribuio e consumo de bens e servios

    materiais e imateriais, que diz respeito tanto esfera governamental quanto s empresas -

    das escolhas que so feitas coletivamente ou individuais -, no escapa disso.

    As noes de desenvolvimento que interessam a esta pesquisa deve considerar a

    varivel ambiental. Logo, a promoo do bem-estar social, sem causar estresses e rudos

    que o sistema ecolgico no possa acolher, deve fazer parte dessa investigao.

    A vida em sociedade nunca esteve descolada de seu impacto ambiental e multiplicou-

    se extraordinariamente e de forma nunca antes registrada como fora no breve sculo XX

    (ABRAMOVAY, 2012). Segundo CAVALCANTI (2004, p. 150) nos cinquenta anos

    posteriores Segunda Guerra Mundial, por exemplo, a populao do Brasil mais do que

    triplicou, e o PIB do pas aumentou mais de 12 vezes; no mundo, a populao passou de

    1,5 bilho de pessoas em 1900 para 6,3 bilhes em 2003. O PIB global, nestes mesmo

    marco cronolgico, cresceu de 900 para 33 mil bilhes de dlares, a preos constantes (um

    aumento de quase 37 vezes).

    Que importncia isso revela ao ter-se a presena crescente dos humanos e da

    economia sobre os ecossistemas e sobre a biosfera? Quanto mais o tempo passa e as

    variveis ambientais no assumem a importncia que lhes digna nos debates sobre

    economia e sociedade, expande-se um passivo ambiental que, infelizmente, carrega

    consigo um enorme passivo social.

  • 26

    Ser que essas variveis s sero assimiladas quando no houver mais alternativa?

    Eis um debate importante e que merece ser acompanhado com o devido esmero no s por

    economistas, gestores e administradores. O contato que a sociedade civil trava com essas

    questes est aqum do desejvel, mantendo-se, normalmente, na esfera do senso comum

    ou da indiferena. Economia e meio ambiente no seriam temas de relevncia da cidadania

    planetria?

    Essa percepo intenciona apresentar como os problemas centrais tratados na

    economia so vistos em favor de grau maior de sustentabilidade nas interaes entre o

    sistema econmico e ecolgico, em sua vastido e variabilidade emprica. Pretende-se,

    para dar cabo a isso, mapear as diversas contribuies sobre a interface to interessante que

    dessas duas reas emergem, luz da necessidade original que ela imprime: uma viso mais

    holstica e que transcenda fronteiras normais das disciplinas acadmicas e geogrficas

    (CAVALCANTI, 2004, p. 156).

    Agora, a sociedade precisa lidar com os problemas da economia materialista, com

    poucas oportunidades de expanso diante dos recursos finitos e dos desafios da poluio

    ambiental (GOSWAMI, 2011, p. 206). Para o interesse de uma economia que conte com

    contribuies advindas da ecologia, do pensamento sistmico e da cincia da

    complexidade, paradigmas da viabilidade da civilizao humana, o desafio reorientar o

    progresso econmico de maneira a torn-lo compatvel com a preservao do equilbrio do

    planeta (LWY, 2004, p. 101)

    2.1. Georgescu-Roegen e bioeconomia

    Um dos primeiros economistas a atravessarem a fronteira da economia aplicada em

    busca de uma interface com a ecologia foi Nicholas Georgescu-Roegen. Ele nasceu em

    Constana, Romnia, em 1906, onde fez seus estudos universitrios em matemtica e

    doutorou-se em Paris com uma tese de estatstica6. Esteve na Romnia como professor da

    Universidade de Bucareste at 1934 quando foi para Harvard, onde permaneceu at 1937,

    perodo onde iniciou seu interesse pela teoria dos ciclos econmicos e teoria do consumo,

    sendo contemporneo intelectual de Samuelson, Leontieff e Paul Sweezy. Retornou

    Romnia em 1937, primeiro para Bucareste com objetivo de regressar sua ctedra e

    depois, ao final da II guerra, como membro da Comisso de Armistcio. Em 1948 ele

    6

    Le problme de la recherche des composantes cycliques dun phenomne (1930)

  • 27

    retornou aos Estados Unidos e tornou-se professor do Departamento de Economia da

    Universidade de Vanderbilt, sendo nomeado professor emrito em 1976.

    Georgescu-Roegen demonstrou interesse em compreender desde cedo as relaes

    entre as leis da termodinmica e as sociedades humanas, mas apenas no incio da dcada de

    1970, quando j tinha idade para jubilar-se, publicou Entropy law and the economic

    Process (1971), a obra percussora da economia ecolgica. Essa obra herdou o conceito de

    balano energtico da termodinmica, incorporando-o na economia. Atravs da anlise da

    dinmica populacional e sua implicao para o consumo, ele desenvolve um ramo analtico

    da ecologia, valendo-se da linguagem matemtica para estimar gastos energticos das

    atividades econmicos. Apesar de ser o pensador pioneiro em buscar as contribuies que

    o pensamento ecolgico poderia fornecer economia, seus estudos, o que ele intitulou

    como bioeconomics, no se constituiu uma escola ou tradio prpria em cincia

    econmica.

    Enquanto a economia clssica e neoclssica no levava em considerao a dimenso

    material dos valores de uso e, por conseguinte, dos valores de troca, a reintroduo dos

    aspectos fsicos da produo na tica da economia (retorno ao pensamento fisiocrata), se

    deu atravs da lei de entropia e sua relao com a produo econmica, observada pelo

    autor. SACHS (2007, p. 79) considera que a disperso do calor e a lei de entropia, ao serem

    introduzidas na teoria econmica, qualificaram a gesto ecolgica como varivel

    importante demais para ser ignorada pelos economistas. Um dos desdobramentos, que ele

    chama ateno, para o fato de que pela opo da entropia se torna plausvel o

    entendimento dos processos econmicos como contedo e intercmbio energtico. Isso

    permite deduzir, por exemplo, que o fato de um alimento ter um valor energtico para o

    consumo bem inferior energia empregada em seu processo produtivo, rastreia,

    interessantemente, a importncia dos balanos energticos negativos que envolvem o

    sistema econmico.

    Contudo, SACHS (2007, p. 79) ressalta que disponibilidade do alimento como forma

    consumvel deve ser distinguida da qualidade indisponvel que as fontes primrias de

    energia representam. Ou seja, resumir o metabolismo econmico aos balanos energticos

    tira o foco da discusso normativa da economia e no ilumina solues viveis. Ele

    condena o enfoque que substitui integralmente a contabilidade monetria pela

    contabilidade do contedo energtico que Georgescu-Roegen intenta, por ser igualmente

    unidimensional, destacando que os instrumentos tradicionais da chamada caixa de

  • 28

    ferramentas do economista no garantem mais do que uma explicao parcial e terica do

    processo econmico, tampouco vivel no plano emprico.

    De acordo esse autor (2006, p. 80), a bioeconomia contm um certo exagero em

    transpor as leis de termodinmica sociedade humana, uma vez que, em nome de uma

    premissa conservacionista radical, reduz-se a preocupao econmica s restries dos

    modelos de fluxo da matria. Da mesma maneira que a lgica estritamente produtivista

    leva o raciocnio econmico de enorme risco, por induzir a apropriao predatria da

    natureza, a prudncia ecolgica tambm exige que o raciocnio econmico de longo prazo

    no seja unilateral, uma vez que raramente so aplicveis e calibrveis em cenrios reais de

    curto prazo e negociao de interesses entre os agentes econmicos.

    De qualquer forma, seria injusto no considerar que da podem ser extradas ricas

    contribuies regulao dos processos industriais, introduzindo ferramentas da

    bioeconomia, tais como a elasticidade-renda do consumo exossomtico de energia de um

    processo (se ela maior que a unidade a ser consumida ou superior a zero), alm de

    identificar o feedback existente entre incremento de consumo e aumento de insumos

    materiais na produo. Numa via complementar a de SACHS (1986), MARTNEZ ALIER

    (1998, p. 45) considerou que a obra de Georgescu-Roegen ainda era, nos idos dos anos de

    1990, o principal fundamento da crtica ecolgica e ambiental s prticas da cincia

    econmica convencional.

    Apesar do certo reducionismo qumico-fsico que a bioeconomia introduz, tornando-

    a inaplicvel estimar os balanos em larga escala at o presente momento, pode-se dizer

    que sua contribuio reside na incumbncia de conceitos-chave da ecologia ao pensamento

    econmico, convidando (ao menos) os economistas a preocuparem-se com o meio

    ecolgico de algum ponto de vista, o que pode induzir a um maior esforo em preencher

    lacunas e passarelas que habitam os modelos de criao e circulao de valores com o

    fluxo de matria e energia que permeia toda a produo econmica (2006, p. 80).

    O exame da realidade pe em evidncia que qualquer atividade econmica est

    assentada em bases ecolgicas, representadas por fluxos de energia e de materiais que

    alimentam todas as fases deste processo. nisso que consiste a compreenso que a

    bioeconomia introduz. Porque como qualquer atividade traz embutida uma transformao

    de energia atravs da converso qumica da matria bruta em movimento, energia

    mecnica -, compete ao captulo da fsica que estuda o campo das transformaes

    energticas explicar as regras sob as quais isso ocorre. Tal captulo precisamente o da

  • 29

    termodinmica, com suas leis duras e implacveis (GEORGESCU-ROEGEN, 1971), s

    quais a economia tem que se submeter (BRANCO, 1999 apud CAVALCANTI, 2003, p.

    154).

    Por fim, Nicolas Georgescu-Roegen revelou a insuficincia da cincia econmica

    tradicional em explicar a trajetria dos desgastes ambientais e energticos. Ao incorporar a

    riqueza dos ciclos biogeoqumicos e dos intercmbios de energia trmica para o fim de

    suas anlises, o aspecto metablico dos sistemas econmicos foi registrado pela primeira

    vez, sem fugir da alcunha positiva que o pensamento econmico busca para se legitimar

    como cincia.

    2.2. Preservacionismo e culto vida silvestre

    Em termos cronolgicos, a ecologia do culto vida silvestre e da defesa da natureza

    intocada at anterior a contribuio de Georgescu-Roegen. Entre seus principais

    expoentes esto John Muir e Aldo Leopold, com um intervalo de quase cinquenta anos de

    um para o outro. Suas contribuies foram enriquecidas pelas descobertas vindas da

    biogeografia e da ecologia dos sistemas, para com a percepo acerca da vida silvestre e

    selvagem, chamando a ateno para aspecto funcional da preservao dos ecossistemas: o

    seu uso econmico de valorizao.

    Segundo MARTNEZ ALIER (2007, p. 22), o culto ao silvestre no ataca o

    crescimento econmico enquanto tal, admitindo inclusive sua derrota para as

    transformaes do mundo industrializado. Mas a preservao e a manuteno dos espaos

    da natureza original, situados fora da influncia do mercado, eram seus motivos. Para isso,

    recorre-se a argumentos cientficos que surgem atravs da biologia da conservao - que se

    desenvolve a partir dos anos 1960 aos indicadores de presso demogrfica sobre os

    ecossistemas, referentes parcela primria lquida de biomassa destinada apropriao

    humana para produo -, evidenciando que uma proporo cada vez menor da biomassa

    est disponvel para espcies que no esto associadas aos seres humanos.

    As ferramentas por eles desenvolvidas se inserem na mesma linha que alguns

    indicadores desse incio de sculo XXI sobre a sobrecarga humana sobre os ecossistemas,

    como por exemplo, a chamada Pegada Ecolgica (ecological footprint). Muitos dos

    argumentos preservacionistas contam com conceitos e teorias que pe em evidncia que a

  • 30

    perda da biodiversidade caminha a passos largos (2007: p. 23). Apoiaram-se nestes

    argumentos os fundadores da teoria neomaltusiana de crescimento demogrfico.

    Por outro lado, sua transposio economia um pouco limitada, pois, segundo

    INGLEHART (1995) apud MARTNEZ ALIER (2007, p. 25), os pensadores dessa

    vertente tem recorrido a argumentos ps-materialistas e s mudanas de ordem cultural,

    em direo a novos valores presentes na sociedade. medida que a urgncia das

    necessidades materiais estaria diminuindo, e isso seria caracterstica de uma poca ps-

    materialista, a satisfao do bem-estar humano implicaria num maior apreo pela

    preservao da natureza. Logo, a economia no deveria estar to preocupada em modificar

    as relaes produtivas predominantes.

    Sem dvida, como ressalta MARTNEZ ALIER (1998), o termo ps-materialismo

    equivocado, pois h exemplos claros, como os Estados Unidos, o Japo e a Unio

    Europia, que contrariam este conceito pelo fato de sua prosperidade econmica depender

    enormemente de uma quantidade per capita crescente de recursos energticos e de

    materiais, assim como a disponibilidade espacial crescente para depsito e descarte de

    resduos. Segundo seu registro, na obra O ecologismo dos pobres e no captulo que dedica

    a leitura histrica dos movimentos ecologistas7, de acordo com algumas pesquisas, a

    populao da Holanda encontra-se no mais elevado patamar da escala de valores sociais

    ps-materialistas (IGLEHART, 1995 apud MARTNEZ ALIER, 2007) sem, pelo contrrio,

    ter tornado sua economia independente de um grande consumo per capita de matrias-

    primas.

    Atravs do balano energtico negativo que sustenta os pases do eixo Estados

    Unidos Japo - Unio Europia, o autor (2007, p. 25) identifica que a crescente

    preocupao com valores socioambientais no Ocidente a partir de 1970, contrariando o

    argumento de Iglehart, no se deu em funo das sociedades estarem caminhando para

    uma sociedade ps-materialistas. Possivelmente, a popularizao de informaes

    relacionadas a setores econmicos estratgicos de energia e infraestrutura contriburam

    para que a perspectiva ambiental se inserisse nas pautas de discusso pblica, alm das

    preocupaes de ordem material decorrentes da contaminao qumica de rios e incertezas

    7 Ecologismo e ambientalismo esto indistintamente empregadas nesse texto. Segundo Joan

    Martinez Alier, seus usos variam: Na Colmbia, por exemplo, o ambientalismo considerado uma corrente

    mais radical que o ecologismo; no Chile ou na Espanha, ocorre o contrrio.

  • 31

    suscitadas pela divulgao dos riscos associados energia nuclear (predominante nos anos

    80).

    Contudo, a representatividade do culto a vida silvestre em setores populares do

    ambientalismo rendeu algumas contribuies ao campo poltico, como a Conveno da

    Biodiversidade (1992), no Rio de Janeiro e a Lei de Espcies em Perigo, dos Estados

    Unidos. Isso talvez seja a sua contribuio mais louvvel: diferentemente da Bioeconomia,

    tentativa cientfica, ela introduziu uma retrica normativa e utilitarista em favor do meio

    ambiente, o que a tornou a primeira e mais conhecida vertente da ecologia poltica.

    Por fim, j nos anos 90, essa abordagem rompeu com diversos setores do ecologismo

    de orientao mais radical, diante da viso antagnica que predomina entre

    preservacionismo em relao ao uso rural dos ecossistemas. Como parte deste argumento o

    movimento do culto vida silvestre direciona uma preocupao secundria s frgeis

    populaes que desses ecossistemas dependem diretamente, o que acentua o antagonismo

    com outras vertentes da economia ecolgica.

    Ao priorizar a preservao e o controle ambiental para posterior valorizao

    mercantil da natureza e de seus recursos, alou os interesses relacionados vida silvestre a

    outro patamar. O preservacionismo ganhou espaos em aparelhos de gesto pblica no

    mbito global e qualificou-se como bandeira principal de diversas organizaes no

    governamentais de expresso (MARTNEZ ALIER, 2007). claro que isso desejvel, de

    algum ponto de vista. Todavia, transformou-se numa espcie de mainstream da ecologia

    poltica e, se no houver esforos no sentido de ampliar a contribuio que o pensamento

    ecolgico pode fornecer economia que no apenas a valorizao monetria dos espaos

    preservados, a sociedade continuar merc dos interesses dos agentes hegemnicos que

    mais confundem que esclarecem a sociedade civil sobre o tema ambiental.

    2.3. O assim chamado desenvolvimento sustentvel

    A corrente do culto vida silvestre tem sido desafiada desde algum tempo atrs pela

    corrente do ecologismo preocupada com os efeitos do crescimento econmico, no s nas

    regies de natureza intocada, mas tambm em territrios industrializados. Sua ateno

    volta-se para os impactos ambientais ou riscos sociais decorrentes das atividades

    econmicas inclusive nos ambientes urbanos. Pode-se dizer que essa segunda corrente do

  • 32

    movimento ecologista se preocupa com a economia numa forma de totalidade

    (MARTNEZ ALIER, 2007, p. 26).

    O desenvolvimento sustentvel est nucleado na noo de sustentabilidade ambiental

    hegemnica, referendada pela Organizao das Naes Unidas (ONU) no Relatrio

    Brundtland (1987). uma concepo que se tornou notria por ser a maior fornecedora de

    conceitos e ideias relacionadas ao meio ambiente no contexto ocidental e por pressionar as

    empresas a um posicionamento tico diante do paradigma socioambiental.

    Ao debruar o seu discurso sobre a tentativa de transformar algumas bases do

    sistema produtivo principalmente com relao eficincia energtica e sobre as matrizes

    tcnicas de explorao dos recursos, essa forma de desenvolvimento promove a busca por

    alternativas aos meios que so empregados hoje em dia, sem, contudo, apontar as

    contradies do sistema capitalista. De certo modo representa uma continuidade em

    relao primeira corrente do pensamento ecolgico, mas se aproxima com mais

    profundidade do debate econmico em torno da questo ambiental como totalidade, apesar

    de, diferentemente, no apelar para a perda dos atrativos naturais e motivos estticos

    alegados pela ecologia do culto vida silvestre para construir o seu arcabouo terico.

    Por no romper com a estrutura capitalista vigente, que produz e reproduz padres de

    explorao dos recursos que comprometem a sua disponibilidade futura, a questo do

    desenvolvimento sustentvel adquiriu a incrvel capacidade de aglutinar uma imensa

    nebulosa de discursos sobre responsabilidade socioambiental vindos de setores

    empresariais, dos governos, das ONGs, da sociedade civil e de rgos supranacionais. A

    natureza hbrida de seus enunciados, que busca no responsabilizar nenhum agente

    econmico pela degradao dos servios que os ecossistemas prestam humanidade,

    parece ter favorecido enormemente a descoordenao das aes dos agentes econmicos.

    Pode-se dizer isso, pois muitos dos corolrios lgicos, modernizao ecolgica, boa

    (ou consciente) utilizao dos recursos, alm do crescimento econmico, mas no a

    qualquer custo, por um lado, tem sido utilizados empresas e governos de maneira to

    descontextualizada que, diversos movimentos ambientalistas tem julgado o termo

    desenvolvimento sustentvel banal. Surge tambm a perspectiva dos agentes econmicos

    utilizarem este termo para designar propostas tanto de marketing verde quando

  • 33

    greenwashing8. Neste caso, no parecem diferenciar o contedo substantivo que envolve o

    desenvolvimento sustentvel do seu contedo instrumental9.

    Por outro lado, o aprofundamento na compreenso das disputas polticas em torno de

    um enfoque economicista da questo ecolgica fez do assim chamado desenvolvimento

    sustentvel o receptculo ideal das discusses sobre regulao dos recursos naturais, ainda

    que ela no defina a escala e nem os sujeitos que devem pagar pela sua exausto. Enfim, a

    conformao do grande campo de foras ambientalistas, a partir da ECO-92 levou a

    considerar que o conceito de sustentabilidade carregava uma indeterminao, a qual

    denominou-se nebulosa ambientalista (MOREIRA, 1993; 2004, p. 195).

    Com uma representatividade considervel nos debates poltico econmicos sobre

    meio ambiente, graas a seu fisiologismo ideolgico, introduziu um aparato discursivo que

    tem se tornado a principal e mais recorrente linguagem do ecologismo junto com o

    preservacionismo. Seu interesse na regulao ambiental a levou de encontro com certa

    corrente denominada economia ambiental (que est a seguir, neste trabalho), que busca

    explicaes ambientais endgenas ao sistema, como o entendimento dos fatores do

    metabolismo industrial e dos preos corretos de regulao, por intermdio da

    internalizao das externalidades (MARTNEZ ALIER, 2007, p. 28).

    Ou seja, no desenvolvimento sustentvel, o aspecto cientfico da ecologia se

    converte, por um lado, num saber gerencial ocupado em remediar a degradao ambiental

    causada pelos processos industriais e decorrentes da urbanizao, estando presente na

    economia atravs de vnculos empresariais e governamentais, cujo objetivo consagrar,

    pela gesto dos recursos, sua utilizao indefinida pelas geraes atuais e futuras.

    Por outro lado, de uma forma at mesmo leonina, ela esconde por baixo de sua

    colorao verde uma dinmica competitiva intercapitalista (MOREIRA, 1999, 2004: p.

    196). Segundo MARTNEZ ALIER (2007) uma corrente de utilitaristas cujo interesse na

    eficincia tcnica est desprovida da noo do sagrado, o que pelo menos aparece nos

    escritos pioneiros do culto vida silvestre. A extino de aves, rs ou borboletas indica

    problemas (desequilbrios ecolgicos), tal como a morte de canrios nos capacetes dos

    mineiros de carvo. Contudo, essas espcies, enquanto tais, no possuem direito

    indiscutvel vida (MARTNEZ ALIER, 2007, p. 27).

    8

    Para mais informaes sobre estes conceitos, consultar DIAS (2011).

    9

    Usaremos as designaes substantivo x instrumental que habitam a obra do economista Amartya

    Sen.

  • 34

    Por diversas razes, de ordens polticas e econmicas, o assim chamado

    desenvolvimento sustentvel emerge na contemporaneidade como a corrente mais

    influente dentro do paradigma ambiental, mesmo que os valores morais que propem

    estejam num nvel apenas raso. O grande enfrentamento ainda sem soluo entre a

    expanso econmica e os interesses socioambientais no cessou: a maior parcela dos

    pases ainda no definiu com preciso o que espera no futuro sobre a questo do meio

    ambiente, por conta de uma submisso excessiva aos interesses econmicos de curto prazo

    das empresas e da sociedade de consumo em que vivemos.

    No plano emprico, sua insuficincia crtica e insucesso como alternativa econmica

    residem na ausncia do poder de legao das organizaes intergovernamentais. Muitas

    reflexes presentes em documentos internacionais de prestgio, tais como a Agenda 21 e a

    Carta da Terra concebem o desenvolvimento sustentvel como estgio superior ao

    capitalismo. Contudo, a sua execuo no pode se dar sem uma ao articulada de todos os

    agentes econmicos e setores da sociedade civil, o que autoriza uma dose exagerada de

    idealismo participar do debate econmico ecolgico, alm de agradar aos mantenedores da

    ordem vigente, por permitir o esvaziamento de seu contedo necessrio:

    O desenvolvimento sustentvel um meta-arranjo que une a todos, do industrial preocupado com seus lucros ao agricultor de subsistncia

    minimizador de riscos, ao assistente social ligado ao objetivo de maior

    equidade, ao primeiro mundista preocupado com a poluio ou com a

    preocupao da vida selvagem, ao formulador de polticas que procura

    maximizar o crescimento, ao burocrata orientado por objetivos e, portanto, ao

    poltico interessado em cooptar eleitores. (LEL, 1991, p. 613 apud

    MUELLER, 2007, p. 137).

    Como se pode observar, focalizar neste conceito todas as expectativas que temos

    para solucionar os problemas ambientais, alm de ser uma ingenuidade, pois so evidentes

    os enormes os seus obstculos tcnicos e polticos para tornar realidade esse paradigma, h

    sempre o risco de exagerar na confiana que se deposita queles que advogam em seu

    favor. Como disse corretamente MUELLER (2007, p. 137), sua noo est muito prxima

    do critrio de eficincia de Pareto da anlise econmica por admitir que muitos pudessem

    ganhar, mas exige que ningum perca nem os atuais ricos, nem os atuais pobres e nem as

    geraes futuras.

    Se o relatrio da Comisso Mundial do Meio Ambiente (CMMD, 1987 apud

    MUELLER, 2007) mostra que os atuais padres de crescimento no so sustentveis,

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    requerendo a implantao de programas radicais para corrigir tendncias econmicas que

    so predominantes, a dvida que surge : ser razovel esperar que tais mudanas sejam

    Pareto-eficientes? Ser vlido supor que, mesmo que tais mudanas engendrem uma

    legio de ganhadores, seja possvel evitar que muitos tenham considerveis perdas?

    (MUELLER, 2007, p. 138).

    2.4. Justia ambiental e ecologismo popular

    Segundo MARTNEZ ALIER (2007, p. 34), a justia ambiental assinala que os

    efeitos colaterais do crescimento econmico autorreferenciado sobrecarregam

    diferencialmente algumas populaes, geralmente as menos privilegiadas. Ele destaca que

    os impactos mais significativos sobre a questo ecolgica no so apenas com relao ao

    meio fsico em si, mas sobre o agravamento da situao frgil que permanece a vida de

    algumas pessoas do meio rural, chamando ateno para o deslocamento geogrfico das

    fontes de recursos rurais para reas de descarte dos resduos.

    Ela um desmembramento da ecologia poltica (a fuso da ecologia humana com a

    economia poltica). Essa corrente foi identificada a partir de meados da dcada de 1980

    como agrarismo ecolgico (GUHA, MARTNEZ ALIER, 1997 apud MARTNEZ ALIER,

    2007: p. 37) e surgiu principalmente como forma de contestao tanto da wilderness

    thinking (culto vida silvestre) quanto do scientific industrialism (ecodesenvolvimento

    ou desenvolvimento sustentvel).

    O movimento por justia ambiental vinculou os movimentos camponeses de

    resistncia crtica ecolgica, para compor uma frente de luta contra a modernizao

    agrcola, entendida como um elemento faci