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709 Pedro Puro Sasse da Silva (UFF) Em sua introdução ao livro The Dystopian Impulse in Modern Literature, Keith Booker (1994, p.1-2) utiliza a Disneyworld – ou, de forma mais geral, os parques temáticos – para apresentar as ideias de utopia e distopia. Locais arquitetados para unirem com perfeição o ápice do desenvolvimento tecnológico e do entretenimento com o encanto dos mundos fantásticos, esses lugares poderiam ser vistos como uma representação, ainda que limitada, da utopia. Dentro dos limites do reino mágico da Disney não há criminalidade, trânsito, guerra ou pobreza, apenas alegria e prazer. Se, no entanto, alguém se distancia da sedução hipnótica fornecida por eles, pode perceber o potencial distópico que o mesmo espaço também simboliza: uma multidão de humanos transformados em rebanho, andando cronometradamente de uma fila para outra, rodopiando repetidas vezes em trens mecânicos que não levam a lugar nenhum, consumindo desenfreadamente em uma completa fuga da realidade. Não à toa, a ficção explorou exaustivamente essa ambivalência dos parques de diversão para construir cenários de horror. O ponto mais importante dessa imagem é compreender como um mesmo espaço e um mesmo ideal de desenvolvimento, progresso ou felicidade pode conter, em gérmen, uma visão negativa de si mesmo. Quando magnificados ao extremo que a utopia pede, surgem em suas sombras a projeção dos medos e ameaças que subjazem nesses mesmos ideais, elementos constituidores da distopia.

Pedro Puro Sasse da Silva (UFF) · distancia da sedução hipnótica fornecida por eles, pode perceber o ... Se, nas primeiras utopias, a sociedade avançada era deslocada

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709

Pedro Puro Sasse da Silva (UFF)

Em sua introdução ao livro The Dystopian Impulse in Modern

Literature, Keith Booker (1994, p.1-2) utiliza a Disneyworld – ou, de

forma mais geral, os parques temáticos – para apresentar as ideias de

utopia e distopia. Locais arquitetados para unirem com perfeição o

ápice do desenvolvimento tecnológico e do entretenimento com o

encanto dos mundos fantásticos, esses lugares poderiam ser vistos

como uma representação, ainda que limitada, da utopia. Dentro dos

limites do reino mágico da Disney não há criminalidade, trânsito,

guerra ou pobreza, apenas alegria e prazer. Se, no entanto, alguém se

distancia da sedução hipnótica fornecida por eles, pode perceber o

potencial distópico que o mesmo espaço também simboliza: uma

multidão de humanos transformados em rebanho, andando

cronometradamente de uma fila para outra, rodopiando repetidas

vezes em trens mecânicos que não levam a lugar nenhum,

consumindo desenfreadamente em uma completa fuga da realidade.

Não à toa, a ficção explorou exaustivamente essa ambivalência dos

parques de diversão para construir cenários de horror.

O ponto mais importante dessa imagem é compreender como

um mesmo espaço e um mesmo ideal de desenvolvimento, progresso

ou felicidade pode conter, em gérmen, uma visão negativa de si

mesmo. Quando magnificados ao extremo que a utopia pede, surgem

em suas sombras a projeção dos medos e ameaças que subjazem

nesses mesmos ideais, elementos constituidores da distopia.

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Os cidadãos do começo do século XX são os herdeiros

justamente dessa sombra, da frustração com todo ideal de progresso

tecnológico e científico prometido pelos Oitocentos (CARTWRIGHT,

2005, p.14). Diante de um mundo que havia falhado em alcançar as

maravilhas da modernidade e que, em troca, experimentara, entre

guerras e revoluções sangrentas, todos os horrores que a ciência é

capaz de produzir, a ficção distópica57 surge como um gênero porta-

voz dos medos não só relacionados à ciência, mas também às

ameaças políticas, sociais, ecológicas e mesmo morais que surgem

com seu avanço, ou seja, é uma reação à própria noção de progresso.

Se a utopia, enquanto ideal de sociedade, expectativa de um

mundo não só melhor, mas potencialmente perfeito, pode ser vista

desde a República de Platão, tanto o termo quanto sua representação

mais concreta e sistemática se dá apenas a partir de 1516, com a

publicação da Utopia, de Thomas More. Sátiras, ainda que veladas

por certo otimismo, da sociedade contemporânea, obras como a de

More ou a Nova Atlântida (1624), de Francis Bacon, expunham

avançadas sociedades hipotéticas que haviam superado, através da

ciência, as aflições da humanidade. Através dessa hipérbole positiva,

criava-se um contraste que dava relevo às questões sociais em que os

leitores estavam inseridos, como poder, ética ou educação.

57

Ainda que a literatura distópica mantenha certas características em comum ao longo de sua trajetória, vamos nos focar, nesse trabalho, em analisar as proximidades do Gótico com as ditas distopias clássicas, evitando aquelas que se desenvolvem a partir da segunda metade do século XX. Tal escolha se deve, primeiro, à maior circulação que essas obras tiveram ao longo dos anos, tornando os exemplos mais eficazes. Além disso, devido a certas diferenças na construção das sociedades distópicas do modelo clássico e das distopias pós-modernas, seria preciso analisar os dois casos em separado, o que demandaria um trabalho todo voltado apenas para isso. No entanto, como veremos, durante a análise de Não verás país nenhum, devido a algumas de suas características, mencionaremos alguns pontos da vertente pós-moderna.

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O século XIX e principalmente o XX mostraram, contudo, que

se tornava cada vez mais difícil atribuir à ciência e à tecnologia um

papel redentor da humanidade. Pelo contrário, seu potencial, nas

mãos do homem, poderia levar a pesadelos de extermínio, vigilância,

dominação e exclusão. Dessa forma, já em finais do século XIX, obras

como A máquina do tempo (1895), de Wells, mostram as raízes de um

gênero que, em vez de criar projeções positivas de uma sociedade

científica e tecnologicamente avançada, criticará o presente através

de uma caricatura grotesca do mundo contemporâneo projetada no

futuro, na qual o progresso é o principal causador da miséria

humana.

Dentre os precursores do gênero, cujas raízes estão na virada

do XIX para o XX, com autores como Wells e Forster, três obras são

consideradas basilares para a consolidação da ficção distópica: Nós

(1924), do escritor russo Yevgeny Zamyatin; e os ingleses Admirável

mundo novo (1932), de Aldous Huxley, e 1984 (1949), de George

Orwell. Essas obras têm em comum, ainda que o façam de formas

distintas, a tematização da falta de liberdade, a perda da identidade

em prol de um construto coletivo, o apagamento da história, a

alienação causada pela tecnologia, os horrores da ciência e a grande

ameaça representada por um regime totalitário sem opositores.

Se, nas primeiras utopias, a sociedade avançada era deslocada

no espaço e revelada através dos olhos de um estrangeiro

contemporâneo à própria publicação da obra que lá pisava pela

primeira vez, na distopia, tradicionalmente, o deslocamento é

temporal – o autor projeta no futuro os piores traços da sociedade na

qual está inserido. Com isso, em muitos casos, cria-se uma sensação

de aprisionamento, uma vez que o espaço de fuga e liberdade tende

a se descolar para um passado inacessível que pode, no máximo,

tentar ser recuperado através da memória, de objetos ou da

recuperação de certas práticas. Oposto ao que ocorre na utopia, nas

distopias clássicas não é um viajante que descobre uma nova

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sociedade, mas um cidadão inserido na comunidade distópica que,

deixando de ver os encantos de uma Disney World, se descobre

aprisionado em um circo de horrores.

Bem antes, no entanto, de a ficção distópica se consolidar

como gênero de crítica social ao suposto progresso, o Gótico já

mostrava os perigos dos excessos da razão e da ciência. Para o Gótico

setecentista, a reação era contra as rápidas mudanças sociais e

políticas causadas pelo Iluminismo e pela Revolução Francesa. O

passado feudal, bárbaro e supersticioso no qual as histórias eram

ambientadas servia de contraponto e crítica ao Século das Luzes58. Já

no Gótico do século XIX, as ameaças residem na expansão da

metrópole moderna, na revolução industrial e nos muitos avanços da

ciência, dando à ficção gótica o papel de mostrar o lado sombrio

desse vertiginoso progresso, como vemos em autores como Mary

Shelley, Allan Poe e Dickens.

De fato, alguns autores (CARTWRIGHT, 2005; SCHÄFER, 1975)

defendem que a ficção distópica ou foi influenciada fortemente pelo

romance gótico, ou seria ela mesma um desdobramento do gênero

no século XX. Ainda que, no senso comum, o Gótico seja associado,

sobretudo, às características mais explícitas de sua vertente

setecentista, e, assim, relacionado ao passado, aos castelos,

catacumbas e fantasmagorias, o gênero, se visto em uma perspectiva

mais abrangente, pode apresentar inúmeros pontos de contato com a

ficção distópica.

Pretendemos, ao longo deste artigo, mostrar as relações entre

a ficção gótica e a ficção distópica, propondo uma leitura desta como

vertente do gótico no século XX e XXI. Para tal, faremos dois

58

Como veremos de forma mais explícita adiante, o Gótico, enquanto gênero focado nos excessos e transgressões da sociedade, também fará uma crítica aos extremos da paixão, mostrando como a razão pode ser utilizada para evitar o horror da loucura, do pesadelo ou da ilusão – o que ocorre, por exemplo, nas narrativas de Ann Radcliffe.

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movimentos: inicialmente, partindo dos estudos de Fred Botting

sobre o Gótico, mostraremos como as obras basilares do gênero

distópico apresentam muitas das características fundamentais do

gênero; uma vez que tais obras já tem uma extensa fortuna crítica,

optamos, para explicitar algumas das características antes

mencionadas, por uma análise do romance de Ignácio de Loyola

Brandão Não verás país nenhum (1981), obra que, defendemos, é

parte do gênero distópico na literatura brasileira. Com isso, não só

fortalecemos os estudos do Gótico e da distopia no Brasil, áreas que

só recentemente vêm ganhando atenção crítica, como oferecemos

uma nova perspectiva que fuja ao cânone distópico, observando

semelhanças e diferenças que surgem dessa diferença.

A primeira questão que pode surgir ao apresentarmos uma

relação entre a ficção gótica e a ficção distópica está relacionada,

sobretudo, a uma visão limitada do Gótico que o restringe à sua

vertente setecentista, marcada pela ambientação num passado

feudal de florestas ermas, castelos obscuros, sugestões sobrenaturais

e vilões aristocratas. Dessa forma, surgiria uma óbvia discrepância:

como um gênero que aponta para um passado medieval e

supersticioso se relaciona com o que parece ser sua antítese, um

gênero marcado pela projeção futurista e pelo domínio científico e

tecnológico?

Dois esclarecimentos nos ajudam a desfazer esse aparente

problema. Primeiro, ainda que o Gótico setecentista seja, de fato,

marcado pelas características acima mencionadas, ao entender o

gênero de forma trans-histórica – como muitos dos teóricos do

Gótico optam por fazer –, passamos a observar que a poética gótica

se adapta a diferentes contextos temporais e espaciais. No Gótico do

século XIX, vemos que o passado feudal dá lugar ao presente, e as

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ruínas ermas abrem espaço para os becos labirínticos da metrópole

moderna, como podemos ver em Poe e Dickens (BOTTING, 2005,

p.74), por exemplo. Se avançarmos, ainda, ao gótico do século XX,

perceberemos que mesmo a ficção científica – da qual a Distopia é

inegavelmente próxima, se não integrante – muitas vezes pode ser

vista como herdeira do Gótico. Botting, ao analisar a presença do

gênero no século XX, dedica um tópico inteiro à ficção científica,

apontando a união de ambos desde Frankenstein, ou o Prometeu

moderno (1818), de Mary Shelley até obras cinematográficas como

Alien (1979), de Ridley Scott (2005, p.107).

Para este trabalho, contudo, nos atrai sua identificação de

Neuromancer (1984), de William Gibson, e Blade Runner (1982),

também de Ridley Scott, com o Gótico. Ambas as obras não só fazem

parte da ficção científica como são consideradas parte do gênero

distópico. Dessa forma, vemos que já existe, mesmo nos estudos do

Gótico, uma pré-disposição a ver a Distopia como um dos

desdobramentos desse vasto gênero.

Enquanto tal exposição resolve a aparente contradição antes

apresentada, cria uma nova questão: se o Gótico não é apenas esse

gênero convencional de castelos e ruínas, se pode ser identificado em

ambientes e temáticas tão díspares quanto um sobrenatural passado

feudal e uma metrópole futurista ultra tecnológica, o que, então,

caracterizaria a poética gótica?

Uma vez que, dentro dessa visão, não se pode definir o Gótico

através de aspectos arquitetônicos ou temáticos de uma de suas

manifestações, Botting o caracteriza através de um elemento que

afirma poder ser encontrado ao longo de todas as suas variantes.

Para ele, “Gótico significa uma escrita do excesso” (2005, p.1. –

Tradução nossa).

Por um lado, o excesso se manifesta de forma estética, uma vez

que no Gótico os espaços são excessivos por sua magnitude – os

castelos medievais, as visões sublimes de montanhas, do mar e das

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florestas –, por sua complexidade – a sensação labiríntica das

passagens secretas, dos becos urbanos ou das naves espaciais – ou

pela ameaça que representam – cidades violentas e caóticas,

instituições corrompidas, vilões cruéis.

Por outro, vemos a manifestação desse excesso como forma de

ressaltar os limites, restrições e tabus da sociedade. O excesso, assim,

representa “a fascinação com transgressão e a ansiedade sobre os

limites e fronteiras” (BOTTING, 2005, p.1 − tradução do autor). Esse

excesso pode ser visto tanto no plano individual, revelando os vícios

ocultos da família burguesa vitoriana; no plano institucional, expondo

os pecados de um clero corrompido; ou ainda social, denunciando os

danos do capitalismo industrial sobre os mais pobres.

Com isso, fica claro que o Gótico é fortemente ligado à política.

Ainda que sua posição não seja explícita e pedagógica e que, muitas

vezes, sua ambivalência acabe levando a discussões sobre o suposto

moralismo ou subversão do gênero, é inegável que o Gótico provoca

uma forte reflexão sobre os padrões da sociedade que o lê. Mesmo

Sade, ainda no século XVIII, percebia que o Gótico “se tornara o fruto

indispensável dos abalos revolucionários de que a Europa Inteira se

ressentia” (SADE, 2002, p.45).

Botting mostra, ainda, como a década da Revolução Francesa

coincide com o ápice da popularidade da ficção gótica. Dessa forma,

notamos como não só o gênero coloca em xeque os limites da

sociedade para discutir as ansiedades de seu tempo, como essa

própria sociedade se interessa por uma ficção que dê conta de

discutir tais questões.

Podemos, então, partir da ideia de que diferentes vertentes do

Gótico não seriam necessariamente relacionadas entre si por

elementos arquitetônicos, personagens específicas ou recortes

temporais, mas compartilham uma mesma poética, baseada em

personagens, espaços e atos marcados por excesso e transgressão

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dos limites impostos como forma de discutir os medos, ansiedades e

inseguranças da sociedade que a produz.

Tal definição, como pretendemos demonstrar, se aplica com

eficácia também ao gênero distópico, tornando-o um bom candidato

a uma vertente do Gótico no século XX e XXI. Tom Moylan, em Scraps

of the untaited sky (2000), mostra através de um dos precursores dos

cânones da literatura distópica, “The machine stops” (1908), de E.M.

Forster, como o gênero – e a própria utopia – tem suas raízes na

tradição satírica, em que excesso e crítica social andam lado a lado59.

Enquanto, no entanto, na tradição utópica vemos uma extrapolação

otimista da ciência e tecnologia, a distopia faz uma inversão

fundamental: o foco deixa de residir na esperança para residir nos

terrores da História (2000, p.111).

Por mais que seja uma narrativa ambientada em um futuro

distante, em uma sociedade muitas vezes drasticamente diferente da

nossa, as questões suscitadas ao longo dessas obras não poderiam

ser mais contemporâneas ao seu contexto de produção

(CARTWRIGTH, 2005, p.12). Podemos ir além e dizer que não só tais

questões apontam para o presente da sociedade na qual a obra surge

– afinal, de uma forma ou outra, toda obra acaba falando algo sobre

seu próprio tempo – mas que tais questões sustentam toda a

constituição da sociedade hipotética apresentada por essas distopias.

Não se trata, assim, simplesmente de dizer que há, em

Admirável mundo novo, uma preocupação com a perda da

individualidade, ou que há, em 1984, um aviso contra regimes

59

De fato, a tradição satírica parece antecipar algumas das características que vão ser encontradas também no Gótico: a representação dos vícios, a presença do baixo corporal, a tensão entre humor e horror e certo viés moralista, entre outros. O Gótico, no entanto, como uma poética altamente convencional, terá uma série de topoi (como a recorrência fantasmagórica do passado, a ambivalência moral, a obscuridade etc ) que o faz ser visto menos como parte da tradição satírica que como herdeiro dela.

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totalitários. O processo de formulação das comunidades imaginadas

por esses autores é baseado na extrapolação dos medos próprios de

suas épocas. Dessa forma, na sociedade distópica, tudo se torna

excesso: os mecanismos de controle que começam a despontar no

século XX, nessas histórias subjugam completamente o homem;

regimes totalitários foram capazes de dominar o mundo; esforços em

lidar com o caos social se tornam métodos desumanos de

apagamento da individualidade e iniciativa; a frustração com a

modernidade é transformada em um verdadeiro pesadelo do

progresso.

Enquanto esse excesso fundador da sociedade distópica

constrói o espaço narrativo dessas obras, todo enredo das distopias

só entra em movimento através de uma drástica transgressão. Seja

em Nós, Admirável mundo novo, 1984 ou Fahrenheit 451 (1953), o

protagonista é sempre uma personagem que, em algum momento,

irá romper com toda a noção de ordem da sociedade em que está

inserida. É importante perceber que se aliam, nesse sentido, o

excesso e a transgressão: não se trata de ter um vício ou cometer um

crime, mas de questionar toda a ideia de ordem, moral, economia ou

justiça envolvida na constituição daquela comunidade.

Uma forma bem específica e recorrente desse excesso Gótico

que também encontraremos nas distopias se dá na representação

dos perigos encontrados ao cruzar os limites da razão e da paixão. Em

sua ambivalência, o Gótico, ao mesmo tempo em que desafia os

valores da razão iluminista no deslocamento ao passado feudal

supersticioso ou místico, também os reafirma ao punir os excessos da

paixão, do desejo ou do vício. Dessa forma, “Indivíduos eram

produtos divididos da razão e do desejo, sujeitos tanto à obsessão, ao

narcisismo e ao próprio prazer quanto a racionais e responsáveis

códigos de comportamento” (BOTTING, 2005, p.8 − tradução do

autor).

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Por um lado, toda sociedade distópica representa um claro

alerta aos perigos que o excesso da razão pode criar no plano social.

Em 1984, a tecnologia é capaz de reescrever a História; em Admirável

mundo novo, toda a sociedade é fruto de um projeto tecnológico de

seleção artificial e castas biologicamente determinadas; em Nós, os

sujeitos são progressivamente reificados, pensando apenas de forma

lógico-matemática, agindo de forma burocrática, tendo números de

série em vez de nomes e tornando-se, por fim, apenas máquinas em

forma humana.

É importante, contudo, ressaltar que a razão excessiva

encontrada nessas obras não está relacionada a uma razão crítica,

mas a uma razão binária, maquinal. Dessa forma, uma constante

entre todas essas obras e elemento central em Fahrenheit 451, é o

banimento das artes que instigam o pensamento. Por mais que em

todos os casos haja formas de entretenimento televisivo e mesmo

literário – em 1984 há máquinas que produzem ficção – em todos os

casos os ditos grandes romances, a alta poesia e a filosofia são

prontamente excluídas da sociedade.

Por outro lado, o excesso de paixão também pode ser encarado

como um perigo. Nas principais obras da distopia clássica vemos uma

peculiar constante: a conscientização do protagonista que permite

que o enredo entre em movimento é sempre motivado, total ou

parcialmente, por uma paixão: Winston Smith tem Julia, Bernard

Marx e John têm Lenina Crowe, D-503 tem I-330, e Guy Montag tem

Clarisse McClellan. Caso a consequência dessa paixão fosse

unicamente a libertação da alienação distópica, não haveria um alerta

quanto aos seus perigos. No entanto, em todos os casos, de uma

forma ou outra, essa libertação vem acompanhada de consequências

devastadoras: Winston e Julia torturados, Bernard e John banidos, D-

503 lobotomizado, Clarisse morta.

Não é apenas nessas características centrais que encontramos

proximidade entre os dois gêneros. Ainda que ambientada no futuro,

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a narrativa distópica utiliza frequentemente espaços próprios do

Gótico, descritos com o mesmo estilo sobrecarregado de tons

sombrios e referências à morte e degradação, típicos do gênero:

Foi como entrar na fria câmara marmórea de um mausoléu depois que a lua se pôs. Escuridão total, nem um traço do mundo prateado lá de fora, as janelas bem fechadas, a alcova era um mundo tumular onde nenhum som da grande cidade conseguia penetrar. (BRADBURY, 2012)

O sol avançara e as infindáveis janelas do Ministério da Verdade, agora que já não recebiam luz direta, pareciam tão temíveis quanto as seteiras de uma fortaleza. O coração de Winston se encolheu diante do enorme vulto piramidal. O edifício era forte demais, não havia como tomá-lo. (ORWELL, 2009, p.39)

Do isolamento e escuridão dos mausoléus à imensidão

inabalável e sublime das fortalezas, mesmo as imagens que remetem

ao passado feudal encontram espaço no ambiente distópico. Não

obstante, é com o gótico do século XIX que os ambientes da ficção

distópica encontram mais semelhança. As catacumbas dão lugar ao

laboratório e os castelos abrem espaço para uma cidade em ruínas,

labiríntica e superlotada:

Apesar do verão que reinava para além das vidraças, apesar do calor tropical da própria sala, a luz tênue que entrava pelas janelas era fria e crua, buscando, faminta, algum manequim coberto de roupas, algum vulto acadêmico pálido e arrepiado, mas só encontrando o vidro, o níquel e a porcelana de brilho glacial de um laboratório. À algidez hibernal respondia a algidez hibernal. As blusas dos trabalhadores eram brancas, suas mãos estavam revestidas de

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luvas de borracha pálida, de tonalidade cadavérica. A luz era gelada, morta, espectral. (HUXLEY, 2014, p.21)

Será que sempre houvera aquele cenário de casas do século XIX caindo aos pedaços, paredes laterais escoradas com vigas de madeira, janelas remendadas com papelão, telhados reforçados com chapas de ferro corrugado, decrépitos muros de jardins adernando em todas as direções? (ORWELL, 2004, p.13-14)

A ideia de “mar de gente”, a multidão que surge com a

ascensão da metrópole moderna, é também um elemento

importante para ambos os gêneros. Já presente em “O homem da

multidão” (1840), de Poe, a ideia da multidão surge nas distopias

através, sobretudo, de uma coletividade compulsória e sufocante, da

qual os protagonistas tentam escapar através da reafirmação de sua

individualidade – seja pelo amor, pela arte, pela crítica, pelo crime

etc. Em Nós a coletividade já é expressa no próprio título e é de tal

forma extremada que as casas são transparentes para que ninguém

cultive a ideia de privacidade. Nas demais obras, não deixamos de

ver, também, certa dissolução ou mesmo criminalização da

individualidade: a união pelos ideais do Partido em 1984, a poligamia

compulsória em Admirável mundo novo ou o sistema de telas

múltiplas e os programas interativos em Fahrenheit 451.

Percebemos, assim, que a Distopia, ao utilizar os diversos

aspectos do Gótico aqui apresentados, compartilha com esse gênero

um de seus objetivos centrais: colocar como questão os problemas,

medos e limites de seu próprio tempo, sendo, assim, uma ferramenta

de crítica política e social. Ainda que pudéssemos listar outras

características que fortalecem a tese de que a distopia, se não é

diretamente uma vertente do Gótico no século XX, ao menos utiliza

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muitas de suas estratégias narrativas, optamos por aprofundar as

características já descritas através da análise de nosso corpus.

Ainda que trabalhar com uma das obras supracitadas facilitaria

a compreensão geral, uma vez que são amplamente conhecidas,

acreditamos que, devido a sua extensa fortuna crítica, muito do que

se poderia falar sobre os elementos góticos nelas encontrados já

pode ser visto em outros textos (SCHÄFER, 1979; CARTWRIGTH,

2005).

Da mesma forma que as distopias da primeira metade do

século XX surgem de uma situação política tensa, com, entre outros

horrores, duas guerras mundiais vividas de perto por seus autores, no

Brasil, Não verás país nenhum é publicado durante um período

delicado de nossa política: a ditadura militar. O autor, Ignácio de

Loyola Brandão, jornalista e escritor paulista, já havia sofrido censura

com seu romance Zero (1975), e encontrou na ficção distópica uma

forma de contornar a censura militar. Partindo de um conto seu

anterior, “O homem com um furo na mão”, que passa a servir de

situação inicial para a obra, Brandão publica, em 1981, Não verás país

nenhum.

Nela, Souza, professor universitário afastado do cargo por suas

atitudes políticas, desperta, um dia, com uma coceira na mão, que

evolui até se tornar um furo. A peculiar patologia serve como uma

epifania, o passo final para a tomada de consciência e atitude contra

o sistema, típica do protagonista distópico. A partir de então, a

história narra sua decadência, a perda do emprego, o abandono da

esposa e, ao fim, a prisão e o exílio para a morte.

A trama central, contudo, nos interessará menos, aqui, do que

as situações observadas pelo protagonista durante a obra. Narrado

em primeira pessoa, Souza se torna um guia que descreve com

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detalhes, como se o fizesse a um estrangeiro, os muitos aspectos

daquela São Paulo distópica e apocalíptica. Dominada por um sistema

político corrupto e totalitário, em meio a um ecossistema arruinado

pela ação do homem, criminalidade e proliferação de doenças

convivem na cidade com uma burocracia kafkiana em um Brasil

minguado pela desertificação e pela venda de estados a

multinacionais.

Um elemento importante para se frisar antes de analisar a

sociedade construída na obra de Brandão é a percepção da

população do meio em que vivem. Nas obras mais tradicionais, a

maior parte da sociedade vê o sistema em que vivem como ideal,

utópico. Nessas distopias, de fato, os males, em comparação aos

problemas das sociedades que lhes antecederam, haviam sido

reduzidos, se não eliminados – ainda que à custa de liberdade e

individualidade. Já em Não verás país nenhum, temos uma distopia

concomitante a um apocalipse ecológico que avança claramente ao

longo da narrativa. Dessa forma, ainda que a população não tenha

muito como libertar-se daquele sistema – nem mesmo Souza ou os

revolucionários podem fazê-lo – vemos em seus discursos não

ufanismo, mas revolta.

O excesso gótico surge primeiramente através do problema do

meio-ambiente. A década de 70, marcada pela consolidação do

ativismo ambiental, reforçou no imaginário a ideia de um apocalipse

ecológico. Com altas taxas de desmatamento e poluição, e,

principalmente, com o início da construção da usina nuclear de

Angra, o medo de um futuro catastrófico se difundia pela população.

Na obra, extremam-se todas as consequências negativas

desses atos, de forma que se constrói um Brasil desolado, em que a

floresta amazônica se tornou um deserto, as praias são isoladas por

perigo de contaminação, não há mais solos férteis e resta pouca água

potável. O pior perigo, contudo, é o aquecimento global. Operando

uma inversão peculiar em relação ao Gótico, em que é a noite que

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abriga os males, em Não verás país nenhum é o sol que se torna letal,

amaldiçoando a humanidade com a clássica fraqueza vampírica:

O sol atravessava como verruma, matava. Ao menos, era a imagem que a gente tinha, porque a pessoa dava um berro enorme, apertava a cabeça com as duas mãos, o olho saltava, a boca se abria em busca de ar. Num segundo, o infeliz caía, duro, sem contorcer. A gente via, a alguns passos, a pessoa murchando, secando, desidratada, a pele se desgrudava como folha seca, mais um pouco e os ossos dissolviam. (BRANDÃO, 1988, p.193)

Nesse ambiente completamente hostil, a única forma de

sobrevivência é manter-se dentro do que parece ser a última

metrópole do Brasil: retomando um cenário típico do Gótico urbano

do século XIX, vemos uma São Paulo superlotada, labiríntica e em

ruínas, com violência e corrupção convivendo com a miséria da maior

parte de seus cidadãos. Mantendo o padrão das distopias antes

mencionadas, há também nessa cidade um poder totalitário que

encabeça o regime. Esse governo, contudo, não funciona de forma

tão absoluta quanto seus pares estrangeiros. Enquanto os sistemas

das distopias tradicionais controlam cada aspecto de suas respectivas

comunidades, o Esquema, como é chamado esse poder central na

São Paulo futurista, parece surgir como uma força ilusória, unindo de

forma abstrata uma série de micropoderes que negociam seus

próprios domínios na cidade.

Nesse sentido, podemos ver, em Não verás país nenhum, uma

obra de transição entre o modelo das distopias clássicas, nas quais

uma das principais características vistas é a presença de um Estado

forte, de uma instituição totalitária que garante a ordem, e as

distopias pós-modernas, que poderiam ser caracterizadas seguindo

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as ideias de Bauman ao discutir os medos usados nas utopias da

modernidade líquida:

Não importa onde se ambientem, as utopias criadas atualmente reciclam um novo tipo de temor: um medo proveniente menos da ação que da negligência, horrores surgindo não dos excessos e da ambição extrema, mas do próprio colapso do controle (tanto por falta de habilidade quanto por falta de vontade). [...] na ausência de setores responsáveis pela produção do medo e de uma equipe geral para comandar e dar destino a esses produtos, na ausência de um centro de poder para ser invadido, tomado e incendiado a fim de livrar a todos de seus pavores e fobias, estamos todos condenados a confrontar nossos medos individualmente e traçar nossas próprias artimanhas e subterfúgios para combatê-los, porque os medos que temos em comum não culminam em uma união de interesses e causa comum, e não se fundem em um estímulo de unir forças. (BAUMAN, 2013, p.79-80 − tradução do autor)

Ainda que o poder não tenha sido totalmente descentralizado

na sociedade de Não verás país nenhum, sua estrutura se dispersa de

tal forma que encontrar suas origens e entender suas trajetórias

labirínticas se torna impossível, como confirma o próprio

protagonista: “Não me peçam para explicar a mecânica da estrutura.

Não há possibilidade, somente vivendo dentro dela” (BRANDÃO,

1988, p.38).

Uma estrutura de poder caótica reflete-se em uma cidade

igualmente problemática. A representação dessa metrópole, ainda

mais que seus pares europeus, remete às representações urbanas do

gótico do XIX. O primeiro elemento que se destaca é a presença

ameaçadora da multidão:

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Durante certo tempo comentamos a multidão que crescia, dia a dia, na cidade. Comentávamos, tranquilamente, sem medo, sem realizar o que estava se passando. Era uma constatação dos dias que corriam. Não me preocupava de onde tais pessoas vinham, ou porque estavam vindo. Ou quem eram. As ruas iam se enchendo, cada vez mais intransitáveis. Vieram os primeiros grandes problemas de circulação. E de repente, os meus rostos, aqueles que eu via diariamente, quase que às mesmas horas, em situações idênticas, passaram a desaparecer. Como se esvaíssem em plena neblina. (BRANDÃO, 1988, p.171)

Essa multidão, ainda que represente uma ameaça ao

sentimento de pertinência, de comunidade, no entanto, não se

compara à ameaça representada por esse segundo grupo que dela se

destaca: os mutilados, carecas e deficientes. A obra mostra como

esses personagens vêm, na verdade, da periferia da cidade. Sem

acesso aos mesmos bens do que o centro, como uma moradia para se

proteger do sol, comida e remédios, eles são marcados por

desnutrição, doenças e deformações:

As coisas que aparecem são desagradáveis. Os carecas, os que têm a pele caindo, os olhos inflamados, os surdos. Vi gente que veio do campo, sem um pelo no corpo, o nariz corroído por inseticidas, ouvidos purgando, gente que perdeu o controle motor. E os que andam com o pulmão artificial às costas, como os carros que usavam gasogênio na primeira guerra mundial? (BRANDÃO, 1988, p.103)

Chamados ao longo do livro apenas de Carecas, característica

que parece comum à maior parte dos que ficam expostos às

intempéries de um ambiente letal, esses indivíduos representam o

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medo daqueles que estão além das fronteiras – físicas ou sociais.

Bauman trabalha, em O mal-estar na pós-modernidade, a ideia de

que essa alteridade, corporificada através do que ele denomina de “o

estranho”, representa uma ameaça para a comunidade na qual se

insere, pois não compartilha – e não pode compartilhar – os valores e

práticas por ela instituídos. Presentes, mas alheios, esses estranhos

colocam em xeque a ordem da comunidade, sendo, então, vistos por

ela como uma impureza, um mal a ser evitado ou mesmo eliminado.

Bauman observa pelo menos três ordens sociais que criam três

tipos diferentes de estranhos: nos tempos pré-modernos, essa figura

estaria ligada, sobretudo, aos estrangeiros; na modernidade, esses

estranhos seriam demarcados por um fator ideológico, os

revolucionários60; na pós-modernidade, em que a fluidez de poderes

e identidades torna quase impossível a demarcação estável de um

estranho, Bauman argumentará que só resta uma forma de

identificação, o próprio acesso ao consumo. Dentro de uma

sociedade em que “o critério da pureza é a aptidão de participar do

jogo consumista, os deixados fora como um ‘problema’, como a

‘sujeira’ que precisa ser removida são os consumidores falhos”

(BAUMAN, 1998, p.24. − grifos do original).

Vemos assim, como em Não verás país nenhum se situa,

novamente, na fronteira entre a vertente moderna e pós-moderna

das distopias. Ainda que haja um poder centralizado, os

revolucionários, problema típico das distopias clássicos, não

representam um problema. Ao contrário, são os próprios cidadãos da 60

Vemos como, paradoxalmente, nas distopias clássicas, o próprio protagonista encarna o papel de estranho da sociedade na qual se insere. Ao rebelar-se contra as normas impostas, ameaça a estabilidade das crenças, das práticas e a da própria estrutura daquela comunidade. Como a história é narrada através da perspectiva desse protagonista – cujas ideias o aproximam do ideal propagado como positivo pela sociedade de seus leitores – assimilamos a situação de completa marginalização desse personagem, tendo a impressão que, na verdade, os estranhos são justamente todos aqueles que seguem os predicativos daquele sistema.

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cidade, os mais pobres, sobretudo, que surgem como perigo a ser

tratado.

Esses estranhos, os carecas, não só representam a ameaça da

alteridade, como corporificam de forma radical esse perigo, sendo

demarcados por sua clara repugnância. Dentro das fronteiras da

cidade, vemos como seu papel espelha as relações entre as classes

sociais marginalizadas e as classes mais abastadas da cidade. Sua

condição, criada pelo sofrimento da desigualdade, é elemento

suficiente para provocar reações hostis no próprio protagonista:

No corredor, defronte ao barbeiro, um grupo de três carecas. Muito semelhantes aos que eu tinha visto ontem. Cara de perigosos. O que faziam por aqui? Teriam fichas de circulação? E se eu perguntasse? Ou mandasse um Civiltar indagar? Se não tiverem fichas, é melhor que desapareçam. (BRANDÃO, 1988, p.52)

Ao problema social soma-se, ainda, a própria geografia

labiríntica. Se, nas metrópoles góticas do XIX, a inacessibilidade se

construía através de barreiras puramente físicas, os milhares de ruas

e becos da cidade, na obra de Brandão, essas barreiras são também

burocráticas. Saber que conduções tomar, quais fichas de circulação é

preciso ter, saber a quem subornar e que caminho fazer, são todas

habilidades importantes para deslocar-se por essa urbe caótica.

O labirinto, espaço recorrente nas narrativas do gótico

setecentista, é a plena materialização de muitas características

próprias do gênero. O labirinto é, ao mesmo tempo, um ambiente

ermo e confinador, alienado e alienante do resto do mundo. Sua

estrutura reflete tanto a intricada lógica de sua construção quanto a

subversão da própria lógica do deslocamento. Ao ser transportado

para o ambiente urbano (BOTTING, 2005, p.74) como metáfora para

caos inerente às metrópoles modernas, o labirinto se torna

onipresente, parte integrante da vida na cidade, seja na

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complexidade de sua geografia, a inescrutabilidade de sua burocracia

ou o confinamento e letalidade de sua estrutura social.

Nessa cidade labiríntica, o sobrinho de Souza, ainda que tão

confinado quanto o tio, faz parte de uma das duas forças que,

supostamente, deveriam reprimir o caos urbano, mas que acabam

não só colaborando para sua formação como tirando proveito da

situação. Os militares, militecnos como são chamados na ficção de

Brandão, parecem reesposáveis por uma boa parcela do poder

político e administrativo da cidade. Vemos novamente, na construção

desses personagens, relações com as distopias clássicas, uma vez que

parte de seu treinamento envolve a perda de sentimentos e

memória, tornando-os indivíduos maquinais:

Hoje, a palavra Militecno é corriqueira, incorporou-se ao linguajar. Mas então não sabíamos bem o que significava. Líamos na imprensa, ouvíamos no rádio e não ligávamos. Se tivéssemos previsto o perigo. Como podíamos sequer imaginar que aqueles homens não tinham o cérebro normal?

Ficou demonstrado pelos cientistas. Foi mais uma das razões que os tornaram marginalizados. Provou-se que os Militecnos sofreram metamorfose em seu organismo. O cérebro ficou afetado. Perdeu parte da memória. As emoções foram eliminadas. Tornaram-se serenamente calculistas. (BRANDÃO, 1988, p.29)

Por processos diferentes, o resultado não é muito diferente

daquele que encontramos em um Winston Smith após a tortura ou

na população da sociedade de Nós após a fantasiotomia. O perigo da

perda da razão – insanidade, delírio, psicose, possessão – e o perigo

da perda de emoções – apatia, reificação, tédio, mecanização – são já

recorrentes no Gótico, seja através da polarização das faculdades

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morais em O médico e o monstro (1886), da ingenuidade monstruosa

de Frankeinstein, ou o Prometeu Moderno, ou mesmo pelo

hedonismo exacerbado – que acaba levando a uma anestesia emotiva

e moral – dos personagens de Sade ou dos dândis decadentistas, por

exemplo.

Ainda que friamente racionais, os militecnos não escapam à

corrupção. Presentes em todos os setores da sociedade, tanto nas

áreas administrativas quanto econômicas, eles utilizam

constantemente seu cargo como forma de negociar favores. Nisso se

equiparam à segunda força de repressão da cidade, os civiltares. Uma

espécie de milícia civil legalizada pelo Esquema, eles se assemelham,

na obra, ao papel da polícia militar nas grandes cidades, fazendo o

contato direto com a criminalidade das ruas. Oposto à frieza que

pode se esperar dos militecnos, esse grupo é conhecido por sua

violência e crueldade.

Enquanto o perigo dos excessos da razão pode ser plasmado

nos militecnos, os perigos de sua falta são encontrados diretamente

em Sousa. Processo iniciado pela descoberta do buraco em sua mão,

ao longo da narrativa a personagem perde progressivamente as

amarras sociais na qual todo cidadão se vê preso. O ponto definitivo,

contudo, que a levará finalmente à prisão e depois ao exílio, é, como

nas distopias clássicas e em diversas narrativas góticas, motivado por

uma figura feminina, uma femme fatale.

Após perder emprego, casa e mulher, Souza encontra-se em

uma parte desconhecida da zona pobre da cidade quando conhece

Elisa. Hipérbole da ausência da razão, Elisa gira sem parar no meio de

uma praça deserta quando Souza a vê pela primeira vez. No princípio

confuso, mas depois encantado pela liberdade sedutora da loucura,

Souza se envolve com ela, e após tentarem conseguir comida em um

bar próximo e entrarem em uma briga, são presos. Trancados no

porta-malas de uma viatura, Souza perde o resto de sua civilidade.

Primeiro, urina no local ínfimo. Depois, de alguma forma excitado

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pela situação, entre o cheiro de suor e urina, ali mesmo transa com

Elisa. Essa cena escatológica marca o início de uma trajetória sem

volta para a personagem.

Conduzido à prisão para cumprir pena e depois solto

novamente em algum ponto desconhecido da cidade, desnutrido,

sem permissões de circulação, sem esperanças de reconstruir sua

vida, acaba sendo obrigado a se mudar para as Marquises, uma área

construída pelo Esquema para abrigar os milhares de necessitados da

cidade. Vendida com uma melhora de vida para os pobres, as

Marquises eram apenas “milhares de colunas sustentando uma laje

de concreto” (BRANDÃO, 1988, p.321).

Aglomerados ao ponto de não conseguirem sentar, todos eram

obrigados a permanecer de pé “misturados, entrelaçados,

enganchados, unidos. Colados intimamente, trocando hálitos,

respirações, suores, peidos” (BRANDÃO, 1988, p.332). Vemos nesse

corpo grotesco, somatório de todos os rejeitos que a sociedade não

consegue administrar mais, uma extrapolação da ideia do homo sacer

de Agambem, do qual parte também Bauman, em Vidas

desperdiçadas, para analisar o chamado “refugo humano” da

modernidade (BAUMAN, 2005, p.44), a parte da população vista

como excedente, dispensável, e, por isso, programaticamente

excluída de seu progresso. Na narrativa, vemos como essa exclusão se

dá de forma concreta, com o estado despejando a população em um

grande depósito de lixo humano.

A narrativa termina, enfim, com uma nota de esperança. Sousa

percebe que o buraco em sua mão, motivador de toda sua situação,

desapareceu. Pouco depois, não se sabe se levado pela loucura, sente

cheiro de terra molhada por uma chuva natural que não se

encontrava mais naquele ambiente. Dessa forma, seguindo a tônica

dos romances distópicos tradicionais, vemos um fim que de forma

alguma pode ser encarado como a libertação daquele sistema, mas

que, assim como o posfácio de 1984, a tentativa de revolução em Nós

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ou os homens-livro de Fahrenheit 451, dão abertura para uma

esperança de escapatória de um futuro ameaçadoramente gótico.

Sabemos que apenas para lidar com as relações entre gótico e

distopia, seria necessário mais de um artigo, como os trabalhos de

Cartwright e Schäfer mostram. Da mesma forma, abordar com

detalhe todos os elementos de um romance rico em relações com a

sociedade e com a tradição da literatura distópica tampouco é

possível no espaço limitado de um artigo.

Sendo assim, ainda que o trabalho pendule entre dois temas

demasiado grandes para sua alçada, acreditamos ser importante

fortalecer a fortuna crítica do gênero distópico em território nacional.

Mostrando ao longo da obra claras e muitas vezes nominais

referências aos pais do gênero e reconhecendo em mais de um

momento da narrativa a filiação da obra à ficção científica – talvez

pelo termo distopia ainda não estar tão popularizado –, Não verás

país nenhum nos permite ainda perceber como a literatura distópica

canônica foi lida, apropriada e transformada em território nacional.

BAUMAN, Zigmunt (1998). O mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro:

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