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PEDRO SÜSSEKIND

TRIz

Petrobras Cultural

MINISTÉRIODA CULTURA

LEI DEINCENTIVOÀ CULTURA

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Editora 34

Editora 34 Ltda.rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000São Paulo - SP Brasil tel/Fax (11) 3816-6777 www.editora34.com.br

Copyright © Editora 34 Ltda., 2011Triz © Pedro Süssekind, 2011

a fotocópia de qualquer folha deste livro é ilegal e configura umaapropriação indevida dos direitos intelectuais e patrimoniais do autor.

imagem da capa:Photo finish de uma corrida de cavalos

Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica:Bracher & Malta Produção Gráfica

revisão:Cide Piquet

1ª Edição - 2011

CiP - Brasil. Catalogação-na-Fonte(Sindicato Nacional dos Editores de Livros, rJ, Brasil)

Süssekind, Pedro, 1973S788t triz / Pedro Süssekind — São Paulo: Ed. 34, 2011. 136 p.

iSBN 978-85-7326-481-4

1. Ficção brasileira. ii. título.

Cdd - B869.3

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Por mais disputada que seja a corrida, há sempre um único desfecho que impõe seus limites à poesia dos futuros imaginados. antes dele, qualquer coisa ainda pode acon-tecer, as possibilidades se multiplicam, se confundem em composições e detalhes diversos, se alternam em suspense progressivo, mas tudo isso se encerra bruscamente quando os competidores cruzam a linha de chegada, na simplicida-de desconcertante do final. Para um apostador, deveria im-portar mais o resultado que se traduz em número preciso, inequívoco, e não tanto o percurso, não tanto o relato desse percurso, não tanto os descaminhos que conduziram àque-le resultado.

Será verdade que não podemos nos aproximar da mesa de jogo sem que a superstição nos domine?, perguntei a meu primo Joaquim, num tom meio impostado de quem faz uma citação, depois de insistir em sentar exatamente no mesmo lugar do mesmo banco de madeira em que eu tinha sentado, duas semanas antes, para assistir à vitória ines-perada de um cavalo chamado otelo no último páreo do progra ma. Em frente à arquibancada da tribuna Social, ao longe, crianças de várias idades brincavam com uma bola, correndo no gramado sem prestar muita atenção na pista.

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Separados dos outros, dois meninos estavam encostados na cerca, e no meio dos dois um senhor que supus ser o avô deles; com a cabeça virada para trás, o garoto da esquer da olhava timidamente a brincadeira das outras crianças, en-quanto o da direita apontava para os cavalos altos, agita-dos, que passavam a galope montados por jóqueis de roupas multicoloridas.

dá-lhe Nunes campeão, berrou de repente um sujeito ao meu lado na direção do conjunto número 8. Parecia ser um daqueles apostadores falastrões que sempre reclamam da dica errada de algum velho conhecido, alardeando o quanto teriam ganhado se saísse a exata 2 e 7, ou a trifeta 1, 6 e 4, qualquer coisa assim. Por alguma razão, o grito de incentivo desse senhor de barba grisalha me fez pensar no personagem do romance de Gustav traub acometido da-quela espécie de febre do azar que o leva a seguir apostando até estar arruinado. trocando por um terno escuro à ingle-sa a estranha combinação de uma camisa social roxa e ama-rela, bermuda e sandálias havaianas do frequentador cario-ca do hipódromo num dia de verão, eu poderia situá-lo no apartamento elegante de Gerard Fouquet, despejando sobre a mesa, com seu olhar vidrado, certo da vitória, as fichas obtidas após conseguir um empréstimo do agiota que, dias depois, mandaria atrás dele seu cobrador implacável.

tínhamos sentado ainda a tempo de ver, em sua corri-da de apresentação, os últimos cavalos do segundo páreo de domingo. Quase perdi trinta dólares ontem, Murilo, mas no final compensei meus prejuízos, comentou Joa-quim depois da passagem do último cavalo. Eu quis saber: foi em quê dessa vez, Quincas? — desde quando morava em Londres, meu primo tem essa mania de apostar, a tal ponto que, para ele, sem uma quantia envolvida, não faz o menor sentido assistir a um jogo de futebol, a uma corrida

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de Fórmula-1, a uma luta de judô ou uma competição de saltos de esqui das olimpíadas de inverno. No começo, o assunto era como que um objeto de estudos, porque suas pesquisas sobre estatística aplicada o levaram a se interessar pelas casas de apostas inglesas. depois ele se tornou um jogador assíduo via internet, e o jogo prevaleceu sobre as pesquisas.

dessa vez era boxe, como ele explicou, enquanto eu observava de binóculo os cavalos que já começavam a andar em círculos, ao longe, em sua aproximação da linha de par-tida: a solução foi o Pacquiao, não adianta apostar contra ele, mesmo pagando pouco, e eu sabia que o Morales não tinha chance, mas é aquela coisa de escolher o favorito, dois e meio por um, eu já perdendo trinta... deu sorte, eu inter-rompi, e ele me olhou com ar desdenhoso, repuxando o canto direito da boca. Era como se a sorte não tivesse nada a ver com as apostas, que para Joaquim se resumem a um procedimento matemático sob controle, exigindo um mí-nimo de conhecimento esportivo e cálculos precisos. Nada de jogadas traubianas, correndo o risco de perder tudo ou de obter uma grande vitória num único lance. Já eu, que só enxergo nas corridas as imprevisíveis variações do acaso, até ouço as constantes e variáveis das análises estatísticas, acredito nelas, mas no caminho para o guichê de apostas sempre sou assaltado por alguma intuição definitiva e apa-rentemente infalível. os números e os nomes se combinam, tomando forma, e finalmente escolho seguir aquela intuição em vez da estatística. Mesmo assim, é preciso admitir meu fracasso na tentativa de imitar aleksiéi ivânovitch, de Um jogador, ou Nikolai Kolotov, de A aposta, afinal meu sangue russo talvez seja muito diluído para gestos dramáticos, dí-vidas acumuladas, derrocadas e riscos exagerados. Gasto um pouco, ponho na conta do divertimento; a alegria de

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um ou outro acerto, se não paga as perdas, compensa com sobra as apostas erradas, que sempre me pareceram culpa dos cavalos e dos jóqueis, por não cumprirem sua parte no acordo firmado de antemão.

alguém tocou nas minhas costas. ao me virar, reco-nheci o rosto do apostador que Joaquim tinha me apresen-tado na semana anterior, Miranda, um sujeito muito magro e elétrico, com um cavanhaque antiquado e olhos arregala-dos como os de quem levou um susto. Um rosto de raposa, me ocorreu de passagem quando o identifiquei. Com o pro-grama do dia na mão, ele chegou animado, gesticulando sem parar enquanto contava que tinha uma dica ótima de um dos treinadores para o quarto páreo. Não suporto o tipo que tenta sempre convencer os outros de que conhece al-gum segredo de bastidores das corridas, pensei, enquanto ele continuava, com seu jeito agitado de torcer os dedos fi-nos, como se suas palavras formassem uma rede para nos convencer: a primeira força é o doze, todo mundo sabe, a barbada da reunião, mas podem confiar que a segunda força do páreo vai ganhar, o cinco vai atropelar... o discurso não me convenceu, até porque eu já tinha percebido no outro domingo a tendência daquele apostador a dar dicas infalí-veis que depois não se concretizavam. depois do primeiro encontro, Joaquim me contou que Miranda era um exímio jogador de sinuca, um autêntico golpista que ele tinha co-nhecido justamente ao ver alguém ser trapaceado com clas-se no Clube do taco, em Copacabana. Ele deixou o cara ganhar várias partidas, sempre de um jeito que parecia mui-to convincente, jogando bem mas errando algumas bolas importantes, tinha contado meu primo. depois, só quando as apostas estavam bem altas, o Miranda come çou a ganhar uma atrás da outra, não errava uma tacada, o desgraçado...

Confirmando minha expectativa, o cavalo 5, que era a

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dica garantida do nosso amigo para o quarto páreo, perdeu terreno no final e chegou apenas em terceiro lugar. Só que também não ganhei nada com a exata que tinha escolhido, Quien Siembra e repique, embora a escolha também me parecesse infalível alguns minutos antes. Joaquim, como de costume, acertou pelo menos um placê. o que deixa a pes-soa mais revoltada, comentei com ele e com o Miranda, é perder uma exata assim: o dez vem em primeiro, do jeito que eu tinha previsto, e acaba sendo ultrapassado faltan-do dois metros! Para mim, com essa corrida ficava com-provado oficialmente que eu estava sem sorte nas apostas, não tanto por ser o terceiro páreo sem acertos, mas pela maneira como deixei de ganhar cada um, sempre por mui-to pouco.

No páreo seguinte, por ser o último da noite, decidi apostar todo dinheiro que me restava na carteira. Escolhi um cavalo chamado Funny Guy, um azarão que pagava 63 reais por cada real apostado. E se o oito ganhar?, pensei, em meio a diversas outras especulações diante do programa das corridas, e com isso me condenei irremediavelmente a fazer aquela aposta. Uma frase breve, uma pergunta à toa ocor-rida em pensamento foi o bastante. Logo em seguida me arrependi por escolher um azarão e desperdiçar meu di-nheiro, no entanto já era tarde demais, pois se deixasse de apostar e ele ganhasse nunca me perdoaria. Cinquenta e cinco no vencedor oito, falei para o mesmo sujeito de bi-gode branco que, no último páreo vitorioso duas semanas antes, eu escolhera entre os operadores dos guichês no alto da primeira tribuna.

Será verdade que não podemos nos aproximar da mesa de jogo sem que a superstição nos domine?, a frase me pas-sou de novo pela cabeça enquanto descia a escada da arqui-bancada. três mil, quatrocentos e sessenta e cinco é o quan-

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to você vai ganhar, anunciou Joaquim depois de analisar minha aposta, com um sorriso meio irônico, certo de que aquilo nunca iria acontecer. o páreo se chamava Prêmio arpoador, como indica o programa oficial escrito em ver-melho que guardo em casa, no qual as minhas apostas da-quele dia, marcadas em círculos feitos com uma caneta Bic ver de, acumulavam-se inutilmente. outra corrida para eu perder hoje, lembro de ter pensado no dia, olhando para as letras vermelhas impressas e para os traços verdes de caneta. a escolha do meu primo, também registrada no meu pro-grama, foi a dupla 9 e 1, El Farak e Heart Broken. Você é que devia ter escolhido o “Coração Partido”, ele brincou enquan-to me mostrava o bilhete. a brincadeira me deixou atônito, porque Joaquim não tinha comentado nada, até aquele mo-mento, sobre a situação da festa do dia anterior. Fiquei sem saber se era a sua maneira de dizer que tinha entendido meu drama, ou se ele estava se referindo à viagem da minha na-morada para a Espanha, meses antes. Em todo caso, o co-mentário fez passar pela minha cabeça, mais uma vez, os acontecimentos da véspera, nos quais eu não tinha conse-guido parar de pensar durante a madrugada. Mas fiz pouco caso da brincadeira, pois o sinal de largada soou, e nossa atenção passou a se concentrar no borrão impreciso do gru-po de cavalos que percorriam ao longe a pista, em dispara-da, especialmente num deles, que pensei ser o meu escolhi-do, correndo bem atrás dos demais até a última curva.

Pelo que ouvi o locutor dizer no momento da entrada da reta, entendi que estava enganado quanto ao retardatá-rio, mesmo assim ainda era impossível distinguir alguma coisa no tumulto vivo dos cavalos que avançavam pela pis-ta. os números só ficaram visíveis quando o grupo estava quase em frente à primeira tribuna: o 3 na frente, e em se-guida o 1 na disputa pela dianteira, perseguido pelo 6. ris-

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catto saca um corpo de vantagem, Heart Broken em segun-do avança por fora e toma a ponta!, dizia o locutor, as pala-vras em atropelo no ritmo da corrida. Então reconheci meu escolhido a princípio pela roupa do jóquei — blusa cinza com faixas horizontais azuis e verdes —, aquela mancha colorida oscilando sobre o cavalo preto, em quarto lugar, a dois corpos do grupo que disputava as primeiras posições. Quando pudemos enxergar o 8, sua disparada foi repentina como um estalo. Num momento parecia perder terreno atrás do grupo de cavalos, de modo que eu já lamentava o prejuízo. No momento seguinte, sem aviso, ele veio corren-do pela parte de dentro da pista, como se fosse puxado por um fio invisível para ultrapassar todos os favoritos, disputar os últimos metros com Heart Broken e vencer o páreo. Por uma cabeça!, ouvi Joaquim gritar, entusiasmado, comemo-rando junto comigo sua própria derrota.

a aposta certeira, quando acontece, parece já ter sido programada, como se fosse algo anunciado e inteiramente previsível, como se o cavalo vencedor que cruza a linha de chegada não fizesse mais do que cumprir sua parte num acordo tácito feito com a sorte. Não tinha como errar, pen-sei, enquanto pegava meu dinheiro, notas e mais notas de cinquenta, num maço que depois exibi para meu primo. Na saída, Miranda pediu desculpas por não poder comemorar conosco e foi embora apressado, então seguimos a pé em direção à Praça Santos dumont, Joaquim falando ainda so-bre a disparada do Funny Guy, a mais incrível que ele já tinha visto, e eu pensando em como era desconcertante quando as várias possibilidades aparentemente imprevisí-veis de uma aposta se reduziam dessa maneira ao desfecho esperado.

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Quando abre a porta de casa, o ar gelado da manhã lhe dá uma sensação intensa de nostalgia. Um crepúsculo fosco se debruça sobre a cidade, na rue de Grenelle passa lenta-mente uma carruagem, e os ruídos dos cascos no calçamen-to parecem despertar as casas das quais despontam os pri-meiros vultos escuros. o doutor Nikolai Kolotov segue a pé pela rue de Chaise até o Boulevard raspail, onde troca al-gumas palavras com o cocheiro antes de subir no cupê que estava à sua espera. ao acomodar-se no banco e endireitar o cachecol, sente-se estranhamente à vontade, como se o desconforto tivesse algo de acolhedor. Nunca poderia ima-ginar que os rigores do inverno russo um dia lhe fariam falta. Quando o cupê parte, ele é acometido por aquela es-pécie de antecipação perturbadora a que se havia acostu-mado nas últimas semanas, um sentimento que o atormen-tava e entediava ao mesmo tempo e que ele desejaria con-testar com uma risada de desdém. Mas não consegue rir, pois seu espírito está como que dividido em duas partes: uma voltada para trás, ligada às lembranças de dias de in-verno semelhantes em sua cidade natal; outra que tenta se projetar adiante e divisar o próximo lance que a fortuna lhe reserva. Kolotov procura se distrair enquanto o carro avan-ça pela rue de Vaugirard fazendo ecoar pela vizinhança o

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som ritmado dos passos dos cavalos. Pela janela do cupê se veem os galhos desfolhados das árvores no Jardin du Lu-xembourg, que desenham seus traços escuros como ranhu-ras pouco discerníveis na penumbra, contra um céu gris.

Chega a ser irônico reproduzir as descrições do roman-ce de traub sobre o inverno parisiense com esse calor sufo-cante, pensei, enquanto observava minha companhia da-quela manhã em seu demorado exercício narcísico. Exata-mente quando terminei de escrever a última frase do pará-grafo, o passarinho amarelo voltou a entrar pela janela da sala e pousar na cômoda, diante do espelho, para examinar com atenção o seu reflexo. Saltitava por alguns segundos e de repente recomeçava os pulos e bicadas, na tentativa de enfrentar o outro passarinho que tinha à sua frente. da mi-nha posição, no canto da sala que funciona como escritório, parei o que estava fazendo para acompanhar aquele com-portamento insólito. Era a segunda vez que ele entrava, na-quela manhã, e de novo eu me distraía para observar sua estranha luta contra a imagem do espelho. Com cuidado, levantei da cadeira a fim de apanhar a câmera para foto-grafar meu visitante. Pelas frestas entre os livros, na estante que separa a sala de estar do meu escritório, ainda vi outro rompante de saltos e bicadas, mas quando voltei o passari-nho já tinha desaparecido.

de volta à mesa de trabalho, segui adiante na tradução, anotando num caderno palavras duvidosas ou frases mais difíceis para resolver depois. Kolotov relembra uma conver-sa com Lisa, na noite anterior, durante a ceia, sobre a brin-cadeira do filho, Fiédia, que consistia em imitar os sons dos cascos batendo no calçamento da rua. ocorre a ele, então, a ideia perturbadora de que seu filho vivera apenas um ano em Moscou, e com isso provavelmente não teria nenhuma recordação de sua cidade natal, uma criança que já estava

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no exílio antes mesmo de aprender a falar. É nisso que ele está pensando enquanto a paisagem matinal passa, pregui-çosa, pela janela do cupê, até chegarem à porta do hospital. da mesma maneira que as instalações da clínica Sainte anne, os auxiliares do médico são descritos em poucas li-nhas: o primeiro é um homem severo, que fala pouco e tal vez por isso dê a impressão de dedicar-se sempre a um assunto grave, o outro é um sujeito desengonçado, às vezes preguiçoso, mas pacato. Em contrapartida, traub descreve minuciosamente os diagnósticos apresentados a Kolotov por esses auxiliares, os doutores arnoux e Pellerin, o que me obrigaria a consultar um especialista a respeito dos ter-mos técnicos de medicina que são empregados, pensei. ao discutir o quadro clínico complicado de uma paciente, Pel-lerin repete o que o narrador do romance chama de sua velha cantilena a respeito da ineficácia da ciência, conside-rada um modo de pensar ultrapassado que segue o mesmo caminho de suas avós, a alquimia e a metafísica. Uma can-ção que já foi cantada?, anotei como pergunta a expressão estranha, para checar depois.

Às cinco da tarde, com o dia de inverno já escurecen do, Kolotov finalmente deixa o centro hospitalar Sainte anne e segue a pé pela rue Garancière, alegadamente em dire ção ao laboratório do dr. olivier Magand. de tanto observar o mapa com as ruas de Paris, aberto na tela do computador, minha memória registrou cada detalhe de seu percurso. Seus assistentes no hospital e sua mulher supõem que ele dedica todas as tardes, durante a semana, às pesquisas far-macêuticas, entretanto Kolotov per corre obstinadamente a pé, como faz todos os dias da semana, o Boulevard Saint--Germain, entra à direita na rue Monge e anda com pressa até o número 45. E o primeiro capítulo termina assim, sem dizer o que ele iria fazer naquele endereço.

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tomando uma xícara de café, gravei o arquivo com o início de A aposta vertido do russo para o português. Sa-tisfeito com esse resultado — em especial com o primeiro parágrafo, que sei de cor, de tantas vezes que revisei — de-cidi verificar as mensagens no computador. tinha chegado um aviso urgente do departamento de Letras avisando que eu precisava entregar meu projeto definitivo; Joaquim co-mentava minha vitória sensacional nos cavalos, dizendo que finalmente eu tinha aprendido alguma coisa com ele; mas não havia nenhuma mensagem da Cláudia. dois ou três dias antes isso teria me incomodado, pensei, notando que naquele momento me sentia indiferente, até com uma espécie de alívio que me surpreendeu. Seria um efeito do meu encontro na festa de sábado?, foi o que me perguntei então, enquanto meus pensamentos se dirigiam para outra pessoa. Mas tanto o encontro com a Bia na festa quanto a vitória no jogo me pareciam eventos ligados por uma estra-nha lei de compensações que não fazia sentido na vida real. o melhor era deixar de lado esses despropósitos e voltar a me preocupar com minha namorada na Espanha.

Pelo telefone talvez não tivesse percebido nada, mas na semana anterior, da última vez que nos falamos pelo Skype, alguma coisa na expressão do seu rosto tinha me incomoda-do, uma certa impaciência, como se fosse quase uma obri-gação me dar notícias. À medida que ela descrevia o último passeio pelo Montjuïc, eu observava na tela um canto da cama e, sobre a mesinha ao lado, uma luminária que parecia azul, ou verde, mas a baixa resolução da imagem não me permitia saber a sua cor exata. a parede era ocupada por duas prateleiras curtas, cheias de livros e pequenos objetos pouco discerníveis, no novo quarto em La Bordeta, bem diferente daquele em que ela tinha passado o primeiro mês, o de Sant ramon. agora que Cláudia estava adaptada à vida

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em Barcelona, fiquei imaginando como eu também me re-duzia àquela imagem mal definida, na tela do computador, vista em meio a mil afazeres e descobertas de coisas que já não me diziam respeito.

a ideia, relembrada naquele instante, me fez olhar na direção em que apontava a pequena câmera presa ao moni-tor, para verificar que ela via por trás de mim, quando nos falávamos, o cabide lotado de bolsas e casacos que nunca guardo, além dos dois pôsteres na parede perto da janela. toda vez, enquadrando o meu rosto: os troços pendurados que antigamente ela sempre pedia para eu arrumar; a ima-gem de um sujeito abrindo os braços ao ser alvejado por um tiro, no alto de uma escada de ferro; Edward Norton pas-seando solitariamente com um cachorro preto e branco so-bre um fundo vermelho. Provavelmente, enquanto me ou-via falar da minha rotina tediosa no rio, ela podia ler o tí-tulo The french connection, escrito em letras vermelhas ao lado do rosto do Gene Hackman, assim como 25th hour, em grandes letras brancas e irregulares, na faixa preta do outro pôster, imaginei. Mas ela não conseguiria discernir as duas frases menores: The time is just right for an out and out thriller like this, na parte de baixo da foto do sujeito alveja-do pelo tiro, e a pergunta Can you change your hole life in a day?, no centro da imagem do filme de Spike Lee. ou será que ficava lendo aquelas frases, dispersiva, enquanto falava comigo? a hora certa para um thriller como este... Você pode mudar sua vida toda num dia?

ao me aproximar da parede com os pôsteres e olhar pela janela o fluxo de carros e pessoas lá embaixo, no ater-ro do Flamengo, destacados pela claridade do verão carioca, decidi sair para comprar um ventilador e me distrair das minhas recordações. Minutos depois estava passando pelas barracas de camelôs com todos os tipos de produtos dispos-

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tos sobre as bancadas, na esquina da rua do Catete. atra-vessei sem esperar o sinal, acompanhando a corrida do car-teiro ao meu lado que aproveitara um átimo de pista vazia entre os carros. E assim, enquanto seguia em direção ao Largo do Machado, imaginava cenas de Paris num dia de inverno em 1885: Kolotov ajeitando seu casaco, ao sair do hospital supostamente para trabalhar no laboratório, co-mo traub o descrevia no início do romance. o sobretudo cinza escuro, a barba grisalha e os passos rápidos por uma calçada movimentada eu devia ter pegado emprestados de algum filme, pensei. Só que a cena na minha imaginação não se projetava em Paris, como percebi logo depois, rin-do sozinho ao chegar à praça movimentada. Uma associa-ção de ideias dera ao personagem a aparência de Fernando rey, na cena em que o detetive interpretado por Gene Ha-ckman o persegue pelas ruas de Nova York, no filme Ope-ração França, cujo pôster tenho pendurado na parede de minha sala.

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aquela nova manhã de trabalho depois me pareceria estranhamente normal. Bastante concentrado, já tinha tra-duzido quatro laudas do segundo capítulo e, na sequência, avançara no estudo dos diários de traub, preparando uma apresentação para o congresso de Letras na Bahia. Preten-dia repetir a palestra que fizera no rio uma semana antes, só com algumas novas informações sobre a vida do es-critor. Quando a campainha interrompeu a leitura, estava numa passagem do diário a respeito do conde Vronski, na qual o autor comenta que terminou de reler Anna Kariêni-na, desta vez livre da influência negativa do tolstoísmo. Vem em seguida um parágrafo inteiro sobre o conde, notei ao correr os olhos rapidamente pela página; e, de relance, ain-da pude identificar uma ou outra palavra que sugeriam um comentário sobre a corrida de cavalos com obstáculos que Vronski disputa, certamente um dos momentos decisivos de Anna Kariênina e, aliás, minha parte favorita do livro, por motivos óbvios.

Supus que o porteiro devia ter saído de novo para to-mar um café na padaria da esquina, talvez parando depois para conversar fiado com aquele italiano da banca de jogo do bicho que usa uns tamancos brancos engraçados. o Si-

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mão sempre faz isso, o infeliz, deve ter deixado mais uma vez a porta do prédio encostada, pensei enquanto atraves-sava a sala. E esse pensamento me trouxe à lembrança um senhor muito magro, mulato, de olhar opaco, vestido com um paletó preto puído, que outro dia tinha tocado a cam-painha e, com um discurso decorado, tentara vender livri-nhos e panfletos da sua igreja. ou então era alguém do pré-dio, me ocorreu logo em seguida, por isso minha imagina-ção projetou, atrás da porta fechada que me separava do visitante, o rosto comprido da vizinha do 701 que às vezes me pedia para alimentar sua gata Lúpi quando ia viajar. Quem quer que fosse, eu lamentavelmente seria obrigado a trocar algumas frases, ouvir e responder com educação, an-tes de poder voltar ao meu livro, àquela atmosfera do rea-lismo russo do século dezenove para onde as considerações feitas por traub em seu diário me remetiam.

Mas a figura que enxerguei pelo olho mágico não só era totalmente desconhecida, como também me pareceu difícil de classificar à primeira vista. Enquanto perguntava quem era, com a mão apoiada na maçaneta, pude observar, ligeiramente distorcido pela lente, um rosto largo, bastante anguloso, de alguém que disse trazer uma encomenda para o senhor Murilo Zaitsev albuquerque e ergueu uma peque-na caixa de papelão até que ela entrasse em meu campo de visão. ao abrir a porta, me surpreendi com o personagem corpulento, vestido de uma maneira que não combinava com o verão carioca. Quem teria enviado alguma coisa para mim pelas mãos desse sujeito?, pensei, atônito. Na tampa do pacote que ele me entregou, não se via nenhuma identi-ficação, nem o nome, nem o endereço, nada que distinguis-se a caixa como uma encomenda para mim. É um pacote vazio, tenho um assunto para tratar com você, ouvi o visi-tante dizer então, com aquela mesma voz que antes tinha

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pronunciado meu nome e que parecia mais fina do que se esperaria, uma voz que não combinava com o dono. após alguns segundos como que paralisado, tive o reflexo de fe-char a porta de repente, num movimento brusco, mas ela se moveu apenas uns dez centímetros e parou, travada.

Num tom seguro, como se estivesse me ajudando a re-solver uma situação difícil, ele recomendou calma e, sem nenhuma pressa, quase de maneira preguiçosa, enquanto segurava a porta com a mão e o pé direitos, levantou um pouco a camisa com a esquerda e me mostrou um pequeno objeto metálico enfiado na calça. Usando a ponta dos dedos, ergueu ligeiramente uma pequena pistola preta, que por um instante me pareceu ser de brinquedo, parte de algum tipo de jogo do qual eu me via participando. apenas me mostrou a arma, sem sequer tirá-la por completo, em seguida ajeitou a camisa e permaneceu imóvel, à espera da minha reação. Passaram pela minha cabeça, num segundo, diversas pos-sibilidades de continuação daquela cena. Calibre vinte e dois, pensei então, com a lembrança vaga de uma pistola parecida que tinha visto quando era criança, mostrada por meu primo Joaquim numa gaveta da mesa de cabeceira, na casa do nosso tio-avô que já tinha perseguido um ladrão durante a noite. Lembrei de repente daquela lenda familiar, segundo a qual tio otávio tinha feito vários disparos, mas o ladrão conseguira escapar mesmo assim, com pelo menos dois tiros na perna, porque calibre vinte e dois não matava se não pegasse no coração, como Joaquim me dissera. aos nove ou dez anos, eu tinha acreditado na história, como em tudo o que meu primo mais velho contava.

Precisava aceitar essa realidade nova, repentina, que se resumia àquele sujeito ali parado, muito branco, de cabelo cor de madeira escura espetado como uma escova, usando uma jaqueta de couro em pleno verão, com uma arma en-

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fiada na calça. o homem era um pouco mais baixo do que eu, no entanto sua atitude decidida impunha respeito sufi-ciente para anular qualquer fantasia de filme policial ame-ricano. Não havia nenhuma outra saída no momento, a não ser recuar alguns passos e deixar entrar no apartamento o invasor, ou assaltante, cuja presença transformava a sala tão conhecida, um minuto antes tão segura, num local confuso e ameaçador. Pelo menos a explicação mais fácil era a de um assalto, foi o que especulei, sentindo o coração bater em disparada, enquanto os pensamentos iam e vinham em bus-ca de algo que me desse uma pista de como deveria reagir. Meu nome completo e a declaração dele de que tinha um assunto para tratar comigo complicavam essa hipótese do assalto, como me dei conta observando-o examinar sem pressa a sala e se encaminhar para perto da janela.

apesar da atenção despertada pelo medo e da con se-quente rapidez do pensamento, aquela visita inesperada dava uma impressão de sonho, um daqueles pesadelos em que a gente, diante de um evento ilógico, desconfia que está dormindo e consegue escapar da situação incômoda para o conforto da cama. Permaneci estático enquanto o sujei to, em completo silêncio, sentava na poltrona em que costumo me instalar para ler e passava a mexer nos bolsos da jaque-ta, até finalmente achar alguma coisa. Não era a maneira de agir de um assaltante, com certeza, foi minha conclusão ao me aproximar para apanhar o papel dobrado que ele me estendeu. E se não era um assaltante provavelmente esta- va cometendo algum engano, lembro de ter pensado, com uma esperança nova de poder me livrar o quanto antes da si tuação.

desdobrei um cheque um pouco amassado, no qual estava escrito por extenso o valor de três mil e trezentos reais. Perplexo, voltei a encarar a expressão séria e impassí-

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vel do desconhecido que, instalado confortavelmente na poltrona, mexia de novo nos bolsos da jaqueta. dessa vez, ele tirou dali um cigarro fino e um isqueiro prateado. ob-servei seu gesto tranquilo de acender o cigarro antes de exa-minar mais uma vez o cheque e só então me dar conta de que se tratava da minha própria assinatura: o nome com-pleto estava escrito sob a linha em que se podia ler clara-mente o desenho tão habitual, tantas vezes repetido, do “M” e do “r” unidos por traços irregulares, com os pingos que sempre faço questão de marcar e a volta do “o” final desta-cada do traço. Você tentou blefar com a pessoa errada, o invasor disse de repente, na hora do desespero a gente faz qualquer coisa pra se safar. olha, comecei a dizer, esse che-que parece que é meu, mas não tenho a menor ideia... Parei quando ele levantou a palma da mão, olhando para mim com um ar muito sério: senta aí e fica quieto. depois que me acomodei no sofá, do outro lado da mesa de centro, ele permaneceu em silêncio por bastante tempo, soltando ba-foradas de fumaça, antes de seguir com a sua explicação. Na parede atrás dele, ironicamente, funcionava como um pano de fundo para a cena o pôster de Operação França com a foto de um homem sendo alvejado por um tiro.

Ele deu o serviço para mim porque eu trabalho aqui na área, do lado de cá da cidade, o sujeito de jaqueta de couro disse. Só uma coisa..., interrompi temerariamente, não sei de quem se trata, juro, não faço a menor ideia... Mas ele continuou a falar com a mesma frieza de antes, como se não tivesse ouvido nada, ou como se estivesse seguindo um ro-teiro preparado. Porque comigo não tem erro, afirmou num tom mais exaltado, você não faz ideia o que tem de endivi-dado por aqui, quase todos pegam uma grana emprestada e depois alguém precisa recolher, senão eles vão pegar mais e mais e mais... Você sabe como é que é, um buraco sem

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fundo, comentou num tom frio de quem discute assuntos profissionais. Fez um intervalo para bater a cinza do cigar-ro no canto da mesa. Pois é, esse alguém sou eu, foi como concluiu a explicação, enfatizando aquelas palavras como se estivesse terminando de se apresentar. Vem cá, é sério, com certeza isso é alguma confusão, porque eu não peguei dinheiro emprestado com..., comecei a argumentar, tentan-do manter a calma. Mais uma vez, meu interlocutor não me deixou terminar a frase: comigo não tem erro, reafirmou, convicto, você sabe que eu não posso chegar lá de mão aba-nando... ou eu levo a grana, e assim você salva a tua pele, ou..., ameaçou, soltando uma nova baforada. acompanhei a espiral da fumaça em câmera lenta, sem saber o que dizer. Não é que eu tenha nada contra você não, pessoalmente, mas esse é o meu trabalho, nem adianta tentar me enrolar, se vier com muito papo furado, bem, você pode imaginar quanto papo furado eu ouço, e nenhuma vez eu vou embo-ra sem resolver a situação de um jeito ou de outro. Você escolhe.

Por menos que conseguisse compreender, as alternati-vas eram claras. tinha caído naquela armadilha, agora só me restava encontrar uma saída, não adiantava me debater porque provavelmente isso só me deixaria ainda mais ema-ranhado, mais preso nos meandros da situação. Só me res-tava a opção de pagar ao sujeito a suposta dívida, mesmo sem saber o que estava pagando, com uma comissão para o cobrador e um pedido de desculpas. Era isso ou testar a teoria do meu primo sobre o tiro de calibre vinte e dois.