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Pela outra margem da fronteira: território, identidade e lutas sociais na Amazônia

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Dissertação de Valter Do Carmo Cruz

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  • VALTER DO CARMO CRUZ

    PELA OUTRA MARGEM DA FRONTEIRA: TERRITRIO, IDENTIDADE E LUTAS SOCIAIS NA AMAZNIA.

    Dissertao apresentada ao curso de Ps-Graduao em Geografia da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre. rea de concentrao: Ordenamento Territorial e Ambiental (urbano e regional).

    Orientador Prof. Dr. ROGRIO HAESBAERT DA COSTA

    Niteri - RJ

    2006

  • C957 Cruz, Valter do Carmo Pela outra margem da fronteira: territrio, identidade e lutas sociais na Amaznia / Valter do Carmo Cruz. Niteri : [s.n.], 2006. 200 f. Dissertao (Mestrado em Geografia) Universidade Federal Fluminense, 2006. 1.Territorialidade. 2.Ordenamento territorial. 3.Identidade. I.Ttulo. CDD 304.2309811

  • VALTER DO CARMO CRUZ

    PELA OUTRA MARGEM DA FRONTEIRA: TERRITRIO, IDENTIDADE E LUTAS SOCIAIS NA AMAZNIA.

    Dissertao apresentada ao curso de Ps-Graduao em Geografia da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre. rea de concentrao: Ordenamento Territorial e Ambiental (urbano e regional).

    Aprovada em maio de 2006

    BANCA EXAMINADORA

    Prof. Dr. ROGRIO HAESBAERT DA COSTA - Orientador UFF

    Prof. Dr. CARLOS WALTER PORTO GONALVES

    Prof.Dr. MARCIO PINN DE OLIVEIRA

    Prof. Dra. ROSA E. ACEVEDO MARIN

    Niteri - RJ 2006

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    Dedicatria

    Dedico este trabalho a minha famlia; Ao professor Cincinato Marques e

    s populaes rurais e ribeirinhas de Camet

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    Agradecimentos

    Para filsofos como Espinosa e Deleuze no existem o bem e o mal, mas bons e

    maus encontros. Os maus encontros nos fazem adoecer, secar e sofrer. J os bons encontros

    produzem a criatividade, beleza e a felicidade que possibilitam a realizao de toda potncia

    humana. Quero agradecer aos bons encontros que possibilitaram a realizao dessa

    dissertao, desses encontros que resultam o presente trabalho.

    Ao bom encontro entre meus pais (Samuel e Maria Rita) que deu origem a minha

    famlia. Obrigado pai e me por sempre me apoiarem sem medir esforos e sacrifcios para

    que eu realizasse os meus sonhos. Aos meus irmos (Osias, Augusto, Dileuza e Nilma),

    obrigado pelos incentivos, pelo afeto e solidariedade mesmo nos momentos difceis,

    continuarem acreditando em mim, transmitindo-me mpeto para lutar a cada dia.

    Ao encontro com o professor Cincinato Marques que me deu apoio e incentivo num

    momento muito difcil da minha vida e que, em todos os sentidos, permitiu-me viajar ao

    encontro do meu sonho de cursar o mestrado.

    Aos Amigos no Par: Torquato Maia, Edir Augusto, Veridiana Pompeu, Macks

    Fonseca, Edgar chagas e Vanda Pantoja com quem venho a alguns anos compartilhando uma

    relao de amizade marcada por trocas afetivas e intelectuais nas quais se misturam piadas,

    teorias e dramas existenciais compartilhados nos bares da vida.

    Ao encontro no Rio de Janeiro com novos e bem vindos amigos: Maria de Jesus

    (companheira de saudades amaznicas), Fernando (parceiro de conexes de saberes),

    Mnica e Bira, (minha famlia em Santa Tereza) Warley (mineiro, companheiro de

    sobrevivncia diante dos percalos nas terras cariocas), e os companheiros cearenses Flvio e

    Manoel Fernandes (com os quais compartilhei agradveis dilogos que iam desde os papos

    sobre futebol aos rumos da cincia geogrfica) pessoas essas por quem cultivo uma forte

    amizade e um enorme carinho.

    Ao encontro com Patrcia Feitosa, companheira que me acompanhou e apoiou nos

    meus primeiros passos pelas terras cariocas.

    Ao encontro com os meus colegas do curso de mestrado sempre muito solidrios e

    calorosos, em especial a Tatiana, Vanessa e Rafael pela ateno e carinho.

    Aos encontros das quintas-feiras no grupo de estudo NUREG, territrio de intensa

    reflexo, formulao e confraternizao. Aos nureguianos obrigado pelo carinho e pela

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    convivncia: Thiago, Vnia, Penha Caetano, Marcelus e especialmente a Denlson (grande

    amigo) por nossas infindveis, mas sempre produtivas e agradveis conversas tericas.

    Ao encontro com os professores do Programa de Ps-Graduao em Geografia

    PPG -UFF que sempre se mostram disponveis, solidrios e compreensveis para com as

    minhas inquietaes intelectuais: Ruy Moreira, Jailson Souza, Ester Limonad (a realizao

    das disciplinas desses professores contriburam muito para as reflexes contidas nesse

    trabalho). A Mrcio Pion (pela ateno e incentivo cotidiano e pelas discusses do projeto).

    Ao encontro com Ivaldo Lima (pelas importantes, cuidadosas e elegantes observaes feitas

    acerca do meu trabalho no exame de qualificao) e com Carlos Walter Porto Gonalves (por

    ter acompanhado todas as etapas desse trabalho e ter aberto um democrtico, rico e fraterno

    canal de dilogo intelectual e tambm por apresentar-me o admirvel mundo novo do

    pensamento latino americano).

    Ao encontro com o professor Rogrio Haesbaert pelo rico e produtivo dilogo que

    possibilitou a realizao deste trabalho e pela possibilidade de construo de uma amizade

    que me permitiu conhecer um exemplo de pessoa e de intelectual, que consegue aliar um

    profundo rigor acadmico com uma grande sensibilidade humana. Foi um bom encontro que

    me possibilitou um grande aprendizado!

    Ao bom e maravilhoso encontro com o meu amor, Amlia Cristina, minha

    companheira, com quem compartilhei alegrias, carinhos, angstias e aprendizados, a sua

    companhia deu muito mais sentido e ternura a minha vida.

    E ainda diante de meus (des)encontros com o computador, com a gramtica, com a

    cartografia, com a impossibilidade de viajar e realizar pesquisas, essas pessoas foram de

    maneira direta fundamentais para que pudssemos finalizar essa dissertao. Obrigado!

    Amlia Cristina, Edir Augusto, Maria de Jesus, Osias Cruz, Edgar Monteiro, Torquato Maia,

    Michele Sena, Regina Vasconcelos, Jos Domingos Barra, Arthur Brasa e Ivo Martins.

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    A fronteira essencialmente o lugar da alteridade. isso que o faz dela uma realidade singular. primeira vista o lugar do encontro dos que por diferentes razes so diferentes entre si, como o ndio de um lado e os civilizados de outro; como os grandes proprietrios de terra, de um lado, e os camponeses pobres, de outro. Mas o conflito faz com que a fronteira seja essencialmente, a um s tempo, um lugar de descoberta do outro e de desencontro. No s o desencontro e o conflito decorrentes das diferentes concepes de vida e vises de mundo de cada um esses grupos humanos. O desencontro na fronteira o desencontro de temporalidades histricas, pois cada um desses grupos est situado diversamente no tempo da histria.

    Jos se Souza Martins Identidade (...) Sempre que se ouvir essa palavra, pode-se estar certo de est havendo uma batalha. O campo de batalha o lar natural da identidade. Ela s vem luz no tumulto da batalha, e dorme e silencia em no momento em que desaparecem os rudos da refrega.

    Zigmunt Bauman

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    RESUMO

    O modelo que orientou o processo de ocupao e apropriao da Amaznia nas ltimas dcadas esteve pautado na crena na modernizao como a nica fora capaz de desenvolver a regio, no importando o seu custo social, cultural e poltico. Esse projeto est pautado numa espcie de fundamentalismo do progresso que criou um imaginrio em que se atribui a priori uma positividade ao novo, ao moderno e uma negatividade ao velho, ao passado ao tradicional, justificando um conjunto de prticas e representaes marcadas pela violncia e pelo colonialismo que servem para justificar a subalternizao das populaes locais. Tais populaes e seus modos de vida so concebidas como tradicionais, logo como obstculos ao desenvolvimento e a modernizao. Na luta contra esse imaginrio moderno/colonial emerge no final dos anos 80 diversos movimentos sociais que iniciaram um processo de questionamento das representaes, discursos e ideologias hegemnicas construdas sobre as populaes tradicionais. Esses movimentos lutam pela afirmao das territorialidades e identidades territoriais como elemento de r-existncia a esse projeto, pois segundo Gonalves (2001), no s lutam para resistir, mas tambm por uma determinada forma de existncia, um determinado modo de vida e de produo, por diferenciados modos de sentir, agir e pensar. nesse contexto, podemos verificar a emergncia de diferentes identidades na Amaznia, construdas pelos diferentes movimentos sociais ligados as populaes tradicionais, tais como ndios, ribeirinhos, seringueiros, castanheiros, populaes quilombolas, mulheres quebradeiras de coco etc. Essas populaes mobilizam estrategicamente e perfomaticamente novos discursos identitrios que apontam para uma valorizao e politizao dos modos de vida, das memrias e culturas tradicionais que historicamente foram suprimidas, silenciadas e invisibilizadas. O objetivo deste trabalho analisar esse processo a partir de um caso especfico, neste sentido queremos entender como vem sendo construda de maneira relacional e contrastiva uma identidade ribeirinha no municpio Camet-PA, atravs de um processo de politizao da cultura ribeirinha(que tem no rio seu espao de referncia identitria ) e da construo de uma conscincia socioespacial de pertencimento, o que tem implicado na constituio de novos sujeitos polticos que emergem das lutas contra as formas de explorao e dominao a nvel local e contra os impactos dos processos de modernizao a nvel regional.

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    ABSTRACT

    The model that guided Brazilian Amazonia occupation and appropriation of process in the last decades was based in the belief of modernization as the only force capable "to develop" the region, with no regards to its social, cultural and political cost. This project was based in a kind of progress fundamentalism that created an imaginary where it is attributed a priori a positive role to the new and modern, as well as a negative role to the old, to the past to the traditional, justifying an ensemble of practices and representations marked for by violence and colonialism that serve to justify the subjection of local populations. Such populations and their way of life are conceived as "traditional", becoming thus obstacles to "development" and "modernization". At end of the 1980s many social movements emerge struggling against this imaginary modern/colonial emerges, which leads to question representations, speeches and constructed hegemonic ideologies on the "traditional populations". These movements fight for the affirmation of the territorialities and territorial identities as element of r-existence to this project, therefore according to Gonalves (2001), they fight not only to resist, but also for a determined existence form, one determined way of life and production, for differentiated ways to feel, to act and think. Within this context, we can verify the emergency of different identities in Brazilian Amaznia, constructed by different social movements linked to "traditional" populations, such as indians, river-people, rubber-people, chestnut-people, quilombolas, coconut breakers etc. These populations mobilize strategically and perfomatically new identities speeches that valuing and politicizing the traditional way of life, as well as memories and cultures that had been historically suppressed, silenced and made invisible. The objective of this work is to analyze this process from a specific case, in this direction we want to understand how it has been constructed in a relational and contrastive way a marginal identity in Camet-Par, through a process of politicizing the river culture (which has in the river its space of reference) and the construction of a socio spatial conscience of belonging, what it has implied in the constitution of new political citizens who emerge from the fights against the forms of exploration and domination at the local level against the impacts of the modernization processes at the regional level.

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    SUMRIO

    APRESENTAO .................................................................................................................11

    INTRODUO ......................................................................................................................23

    1. CAPTULO: ITINERRIOS TERICOS PARA SE PENSAR A RELAO TERRITRIO, IDENTIDADE E LUTAS SOCIAIS NA AMAZNIA ......................27

    1.1 DIFERENA, IDENTIDADE E IDENTIFICAO ....................................................................30

    1.2 REPRESENTAO, PODER E HEGEMONIA NA CONSTRUO DA IDENTIDADE.........33 1.3 IDENTIDADES TERRITORIAIS:UMA PERSPECTIVA GEOGRFICA DO ENTENDIMENTO DA QUESTO DAS IDENTIDADES ....................................................37 1.4 AS EXPERINCIAS ESPAO-TEMPORAIS E A QUESTO DAS ESCALAS NA CONSTRUO DAS IDENTIDADES TERRITORIAIS .......................................................45

    1.5 NOVAS REPRESENTAES SOBRE AMAZNIA E QUESTO DAS IDENTIDADES ....48

    1.6 R-EXISTNCIA, TERRITORIALIDADE E LUTAS SOCIAIS NA CONSTRUO DAS IDENTIDADES NA AMAZNIA ........................................................................................54

    1.7 PRESSUPOSTOS GERAIS PARA PENSARMOS A QUESTO DAS IDENTIDADES TERRITORIAIS NA AMAZNIA ....................................................................64 2. CAPTULO: AMAZNIA: DA IDENTIDADE DA FRONTEIRA A FRONTEIRA DAS IDENTIDADES ................................................................................66

    2.1 DA METFORA AO CONCEITO OU UM CONCEITO-METFORA ......................................68 2.2 TURNER E A FRONTEIRA AMERICANA: A ORIGEM E A CONSAGRAO DE UM CONCEITO-MITO ............................................................................................................70 2.3 A QUESTO DA FRONTEIRA NO BRASIL ...............................................................................76

    2.4 A AMAZNIA COMO FRONTEIRA ...........................................................................................78

    2.4.1 A Amaznia como fronteira: um espao no plenamente estruturado .......................79

    2.4.2 A Amaznia como fronteira: o lugar da alteridade e o territrio do outro ............85

    2.5 DA IDENTIDADE DA FRONTEIRA A FRONTEIRA DAS IDENTIDADES ........................92

    3. CAPTULO: OS MLTIPLOS TEMPO-ESPAOS DA FRONTEIRA: DIVERSIDADE TERRITORIAL, MODO DE VIDA E LUTAS SOCIAIS NO BAIXO TOCANTINS .................................................................................................95

    3.1 FORMAO E ORGANIZAO TERRITORIAL DO BAIXO TOCANTINS ......................101

  • 10

    3.2 O RIO COMO ESPAO DE REFERNCIA IDENTITRIA: ORGANIZAO SOCIOESPACIAL E MODO DE VIDA RIBEIRINHA EM CAMET....................................106

    3.3 O PROCESSO DESIGUAL DE REORGANIZAO ESPAO-TEMPORAL PS 1970 NO BAIXO TOCANTINS ..................................................................................................................118

    3.4 OS IMPACTOS DA HIDRELTRICA, MOBILIZAO SOCIAL E CONSTITUIO DE IDENTIDADES ............................................................................................................................128

    4. CAPTULO: PELA OUTRA MARGEM DA FRONTEIRA: A CONSTRUO DA IDENTIDADE RIBEIRINHA EM CAMET ......................................................136 4.1 CAMET TERRA DOS NOTVEIS, CIDADE INVICTA: FORMAO HISTRICA E FUNDAO MITOLGICA .............................................................................138

    4.1.1 Formao histrica ............................................................................................................141

    4.1.2 Fundao mitolgica ..........................................................................................................148 4.2 LUTAS SOCIAIS, PROTAGONISMO POLTICO E A CONSTITUIO DE NOVOS SUJEITOS : A CONSTRUO DA IDENTIDADE RIBEIRINHA EM CAMET ..................156 5. CONSIDERAES FINAIS ..........................................................................................185

    6. BIBLIOGRAFIA ..............................................................................................................192

  • 11

    APRESENTAO

    Nossos itinerrios de vida se refletem nos caminhos que tomamos no campo da

    cincia, e mesmo que muitas vezes no tenhamos conscincia, na relao e tenso entre

    biografia e bibliografia que construmos nossos objetos de pesquisa. Assim, a construo de

    um objeto de estudo envolve escolhas tericas, perpassa o posicionamento poltico-

    ideolgico, bem como o envolvimento afetivo-emocional do pesquisador.

    Neste sentido, nossas reflexes acadmicas esto literalmente incorporadas e

    localizadas, ou seja, existe uma profunda relao entre o que se fala, com quem se fala e de

    onde se fala, ou, como argumenta Mignolo (2003), as localizaes epistemolgicas tm uma

    estreita relao com os espaos geogrficos. O conhecimento no pode ser pensado fora dos

    locais geohistricos de sua produo. O sujeito que produz conhecimento no universal e

    abstrato, como afirmou a cincia positivista e eurocntrica, no existe um saber universal,

    todo conhecimento est sempre localizado em uma experincia cultural singular e numa

    sensibilidade histrica especfica.

    Partindo dessas premissas, cabe perguntar: por que estudar identidades territoriais na

    Amaznia? Responder a essa questo implica em refletir sobre a minha prpria identidade,

    ou melhor, sobre os mltiplos processos de identificao que venho experimentando ao longo

    de minha vida em conseqncia das mltiplas des-territorializaes que vivi, da diversidade

    de tempo-espaos e culturas que vivenciei. Pois no estamos apenas falando sobre a

    Amaznia, mas tambm a partir da Amaznia.

    na condio de Amaznida que queremos refletir sobre as identidades territoriais

    na regio. nesse movimento rico, tenso e delicado de des-locamento do olhar, onde ora sou

    nativo arraigado nas entranhas, ora estranho, estrangeiro, que construmos nosso objeto

    de pesquisa.Foi nessa relao de proximidade e distanciamento que realizamos este trabalho.

    Assim, para o entendimento dos seus futuros leitores, cabe aqui reconstruir sinteticamente o

    processo de construo do nosso objeto de estudo, onde os itinerrios de vidas se entrelaam

    com os caminhos tericos fecundando a pesquisa.

    Itinerrios de vida, caminhos tericos: a construo do objeto de pesquisa.

  • 12

    Sou filho de trabalhadores rurais e at a adolescncia vivi num povoado chamado

    Porto Grande, pertencente ao municpio de Camet, localizado no baixo curso do rio

    Tocantins, na poro Nordeste do Par. Nessa poca o povoado contava com menos de mil

    habitantes, no tinha telefone ou energia eltrica e ficava praticamente isolado por falta de

    estradas, o que dificultava a ligao com outros lugares, efetuada quase que exclusivamente

    atravs do rio.

    Minha famlia, tal como a maioria que ali residia, vivia da agricultura, mas devido s

    dificuldades de acesso aos servios de educao e sade resolveu mudar para a zona urbana

    para procurar melhores condies de vida. Foi assim que mudamos para a cidade de Camet

    (sede do municpio).

    Assim, no incio dos anos 90 comecei a experimentar o modo de vida urbano.

    nesse momento que tive uma experincia marcante: descobri na escola o que era a

    Amaznia. At ento, tinha apenas uma vaga idia... Achava que essa palavra significava o

    mesmo que o estado do Amazonas. Fiquei surpreso quando soube que morava na Amaznia.

    Comecei a estudar as transformaes que ocorreram na regio, os chamados grandes

    projetos, mas tudo parecia muito distante; afinal eu nunca tinha sado de Camet, e no eram

    visveis na paisagem do municpio as marcas do processo de modernizao, pois apesar

    dos grandes impactos da UHT na vida de uma grande parcela da populao do municpio, em

    especial as populaes ribeirinhas, a percepo desses efeitos negativos no era explcita para

    a grande maioria da populao.

    A mudana nessa forma de olhar a minha realidade ocorreu quando realizamos uma

    pesquisa, na 8 serie do ensino fundamental, sobre os impactos sociais e ecolgicos da

    hidreltrica de Turucu sobre as populaes ribeirinhas que moravam nas ilhas do municpio.

    Ao ouvir as pessoas relatarem os profundos impactos negativos da Barragem em suas vidas

    cotidianas, comecei a relacionar as questes do meu cotidiano imediato com questes e

    processos em escalas mais amplas. Porque, naquele exato momento estvamos vivenciando

    uma grave crise de energia eltrica no municpio de Camet e no Baixo Tocantins como um

    todo, visto que o sistema de usinas termoeltricas que alimentava os municpios estava falido.

    Era constante a falta de energia, embora, contraditoriamente, tivssemos ao lado uma das

    maiores hidreltricas do pas funcionando h mais de uma dcada sem que a populao do

    seu entorno imediato tivesse acesso energia.

    O acesso energia produzida pela Usina Hidreltrica de Tucuru (UHT) s ocorreu

    quase quinze anos depois do incio de seu funcionamento e s se realizou graas s intensas

    lutas dos movimentos sociais da regio. Neste momento comecei a ter conscincia da lgica

  • 13

    excludente dos processos modernizadores na regio e, por ocasio da militncia no

    movimento estudantil, tive a oportunidade de participar das lutas pelo acesso energia

    eltrica da UHT.

    Em 1998 meu horizonte geogrfico se ampliou: com dezoito anos conheci Belm e

    pela primeira vez na vida meu olhar foi des-locado significativamente, experimentei uma

    nova temporalidade, a vida e o ritmo metropolitano tiveram um impacto profundo sobre

    minha vida e minha identidade. No mesmo ano conheci e fui morar em Tucuru, onde passei

    dois anos. Mudei para Tucuru para cursar a graduao em geografia numa turma intervalar

    (curso para formaes de professores oferecido no perodo de frias escolares pela UFPA) e l

    tambm trabalhei como professor do ensino fundamental, experimentando uma outra face do

    Par e da Amaznia.

    A experincia espao-temporal em Tucuru foi paradoxal, pois era ao mesmo tempo

    muito perto e muito longe! Perto geograficamente de Camet, mas distante social e

    culturalmente, com uma outra temporalidade, um ritmo diferente da Amaznia ribeirinha a

    que eu estava acostumado. Senti-me estrangeiro na Amaznia, pois em Tucuru a maioria

    da populao no Paraense, as roupas, as msicas, a culinria, tudo era muito diferente do

    que eu estava acostumado.

    Lembro-me no dia em que, recm-chegado, fui almoar com um grupo de amigos,

    todos acostumados com a cultura e a cozinha ribeirinha, na feira livre de Tucucu. Solicitamos

    o cardpio numa das barracas e, para nossa surpresa, no conhecamos o nome de

    praticamente prato algum, pois se tratava de pratos nordestinos, mineiros e sulistas. Assim

    como os sabores, os sons, as msicas preferidas e executadas na rdio local tambm no eram

    as msicas populares tpicas do Par.

    Escutando a programao da rdio local descobri quadros humorsticos dedicados a

    satirizar o caboclo cametaense, reforando uma representao estereotipada do homem

    rural-riberinho. Esse esteretipo povoa o imaginrio local e muitas vezes fui questionado

    sobre determinados atributos da minha identidade, sendo comuns frases do tipo: voc no

    parece cametaense, voc no fala como cametaense. Foi nesse momento que comecei a me

    perguntar sobre o que era de fato uma identidade cametaense, sobre o que era uma

    identidade cabocla. Identidade que comeava a descobrir, no como auto-identificao,

    mas como estigma, como esteretipo, pois ser cametaense significava naquele contexto estar

    atrelado a toda uma imagem-discurso do caboclo que representava uma Amaznia anterior

    modernizao, uma Amaznia atrasada.

  • 14

    Mais tarde fui morar em Belm, e o contato com a dinmica e a vida metropolitana

    apontava e reforava uma questo: como entender tamanha diversidade territorial na

    Amaznia? A Amaznia existia como unidade ou como regio ou era uma inveno? Como

    pensar as identidades e as diferenas nesse contexto? Essas questes se tornaram mais

    urgentes quando sa da regio e conheci o Nordeste e o Sudeste brasileiro, pois essas novas

    experincias espao-temporais revelavam com mais contundncia o quanto era forte a idia de

    uma Amaznia imaginria, muitas vezes no prprio mundo acadmico.

    Essas inquietaes ganharam um eco terico quando conheci o livro O poder

    simblico de Pierre Bourdieu. O captulo sobre: identidade e representao, elementos para

    uma reflexo crtica sobre a idia de regio me desnorteou, abalou as poucas certezas

    acumuladas nos meus dois anos de curso de geografia. Na tentativa de compreender tais

    questes, iniciei um percurso de leituras que me levou s hermticas reflexes sobre o

    discurso em Foucault; embora essas leituras no tenham se apresentado com muita clareza

    para mim, elas me deslocaram de uma geografia de cunho marxista muito popularizada e

    vulgarizada nos cursos de geografia Brasil afora.

    Nessa busca acabei conhecendo a chamada geografia cultural. Sem condies de

    distinguir as vrias vertentes que comportam esse rtulo, comecei a ler autores de diversas

    perspectivas tericas e filosficas, desde a linha culturalista do marxismo como Denis

    Coscrove, at uma perspectiva fundamentada na semitica estruturalista como a de Paul

    Claval. Na tentativa de aprofundamento sobre a relao cultura e espao cheguei

    antropologia interpretativa de Geertz, que se mostrou profundamente rica e sedutora. Mas foi

    quando descobri um texto chamado territrio, poesia e identidade do professor Rogrio

    Haesbaert que o tema da cultura e da identidade comeou a ganhar os contornos de uma

    problemtica. Mais tarde, ao ler outro artigo do mesmo autor, denominado Identidades

    territoriais, surgiu de fato uma problemtica, e comecei a formular questes como: Como se

    construiu a identidade caboclo-ribeirinha em Camet? A identidade caboclo-ribeirinha

    uma identidade territorial? Qual o papel do rio na construo da identidade caboclo-

    ribeirinha?

    Essas questes deram origem nossa monografia de final de curso de graduao em

    Geografia na UFPA (Universidade Federal do Par), na qual tentei entender o processo de

    construo da identidade cametaense atravs de msicas e poemas de artistas locais. Este

    trabalho foi assentado numa viso excessivamente culturalista, influenciada, sobretudo, pela

    chamada Geografia cultural francesa. Nossa anlise primava pelos significados simblicos da

    identidade, e embora os conflitos de poder estivessem presentes nas nossas reflexes,

  • 15

    apareceram apenas como lutas incorpreas de significados e representaes, limitados

    textualidade e, desse modo, no conseguimos chegar materialidade dos sujeitos e dos

    conflitos concretos. Com base nas reflexes produzidas nesse trabalho de monografia que

    construmos nossa proposta de pesquisa para o curso de mestrado.

    Ao longo do curso de mestrado redefinimos gradativamente o nosso objeto de

    estudo, pois as leituras, tanto as relacionadas s disciplinas, como as do grupo de estudo

    NUREG (Ncleo de Estudos e Pesquisas sobre Globalizao e Regionalizao), levaram-me a

    uma aproximao de autores dos chamados estudos culturais, tais como Stuart Hall e Homi

    Babha, bem como de autores latino-americanos a exemplo de Walter Mignolo, Henrique

    Dussel, Anbal Quijano, Aturo Escobar1 e ainda da instigante obra de Boaventura de Souza

    Santos. As reflexes desses autores, que enfocam a discusso do chamado ps-colonialismo,

    redefiniram minhas perspectivas epistemolgicas e tericas de entendimento da identidade,

    pelo fato de apontarem para um entendimento da cultura para alm de uma dimenso

    simblica e discursiva, enfatizando a inerente relao entre cultura e poder, levando,

    portanto, a um entendimento da cultura como algo indissocivel da poltica.

    Essa nova sensibilidade epistemolgica e o distanciamento da realidade amaznica

    des-locaram o foco do nosso olhar e redefiniram nossa pesquisa, apontando para dois

    pressupostos tericos gerais que orientaram este trabalho:

    a) A identidade como uma construo histrica relacional e contrastiva que

    envolve ao mesmo tempo uma dimenso material e simblica;

    b) A identidade no como essncia, mas com algo estratgico e posicional,

    estando em estreitas conexes com relaes mais amplas de poder da sociedade, sendo

    produto e produtora de lutas sociais.

    Compreendendo a identidade a partir desse prisma que assinala a sua natureza

    poltica, verificamos que a questo identitria estava presente como um elemento central na

    dinmica sociocultural e territorial da Amaznia contempornea. Para formularmos essa

    hiptese de trabalho acompanhamos durante um ms o telejornal local na Televiso paraense,

    atravs do qual verificamos que quase todos os dias apareciam manchetes sobre conflitos

    sociais envolvendo ndios, garimpeiros, pescadores, trabalhadores rurais, madeireiros,

    fazendeiros, empresas de minerao etc. Tais conflitos envolviam lutas por questes

    1 Vale ressaltar a importncia da disciplina geografia e movimentos sociais ministrada pelo professor Carlos Walter Porto Gonalves, pois nesse curso tive a oportunidade de conhecer a riqueza do pensamento social Latino-americano, normalmente ignorado pelas cincias sociais brasileiras e em especial pela geografia.

  • 16

    redistributivas, por recursos materiais como terra e por questes de reconhecimento, que

    envolvem elementos tnicos, culturais e de afirmao identitria como territrios.

    Assim, podemos verificar que apesar do nosso foco de anlise estar centrado numa

    questo singular, em um estudo de caso - a construo de uma identidade ribeirinha no

    municpio de Camet -, a afirmao das identidades territoriais pelas populaes

    tradicionais no uma especificidade exclusiva da dinmica deste Municpio, mas est

    presente por toda a regio amaznica. Assim, cabe perguntar: O que faz com que a questo

    identitria tenha tanta visibilidade na Amaznia?

    Na tentativa de buscar elementos para compreendermos a particularidade da

    Amaznia como formao econmica e social, ou simplesmente formao socioespacial,

    percorremos a literatura existente sobre a regio e constatamos a existncia de uma espcie de

    consenso interpretativo, em que a maioria dos autores concebe a Amaznia enquanto uma

    regio de fronteira. Essa noo que ora assume a forma de conceituao o ponto de partida

    para o entendimento da especificidade da regio, sobretudo quando se trata de autores de

    fora da regio. Desse modo, resolvemos estabelecer um dilogo com essa tradio, tentando

    fazer ao mesmo tempo uma traduo desse debate a partir de uma leitura sob rasura do

    conceito, buscando re-significar sua carga etnocntrica, olhando a fronteira a partir de um

    outro lado, da outra margem, vendo-a atravs do olhar das vtimas, como sugere Jos

    de Souza Martins.

    A partir desse olhar, a fronteira, tem dois lados: o lado dos vencedores

    (modernidade) e o lado dos vencidos (colonialidade), ou ento o lado da civilizao e o da

    barbrie. Nesta concepo a fronteira onde a coexistncia, o (des)encontro e o confronto

    de temporalidades histricas, apontam de maneira contundente para a questo do conflito, da

    identidade e da diferena. A fronteira o lugar da alteridade, o territrio do outro. ,

    pois, pelo avano da fronteira que de alguma forma se intensifica a representao do

    caboclo estereotipada em anttese ao pioneiro. Todavia, tambm pela r-existncia a esse

    avano que as identidades das populaes tradicionais so re-inventadas e re-significadas

    politicamente.

    Assim, entre uma discusso terica, geral e abstrata sobre identidade e a

    singularidade da construo da identidade ribeirinha no municpio de Camet, que constitui

    nosso estudo de caso, consideramos como mediao, como particularidade a formao

    socioespacial da Amaznia a sua condio de fronteira, como importante elemento para

    compreenso da fora da questo das identitria na regio.

  • 17

    Contextos, escalas, sujeitos e questes: pensando o objeto de pesquisa.

    O municpio de Camet, referncia emprica a partir da qual construmos nosso

    objeto de estudo, est localizado a aproximadamente 140 km de Belm, e se situa na

    mesoregio do Nordeste paraense. O municpio tem uma populao de 105. 504 habitantes. A

    populao residente na rea urbana corresponde a 41,42% e o meio rural habitado por

    58,58%.(IBGE, 2000). Deste total da rea rural mais de 50%, cerca de 30 mil pessoas,

    encontra-se na regio das ilhas, o que equivale a um total de 122 localidades com 523

    Comunidades Crists (Fonte: Prelazia de Camet).

    Figura 1: Localizao do Municpio de Camet no Estado do Par

    (Fonte: Elaborado pelo autor a partir de http://www.ibge.gov.br/cidadesat/default.php)

    http://www.ibge.gov.br/cidadesat/default.php

  • 18

    O municpio de Camet foi um dos primeiros ncleos de povoamento resultantes do

    processo de colonizao da Amaznia. Durante muito tempo foi a segunda cidade na

    hierarquia da rede urbana paraense, ocupando at as dcadas de 1950 e 1960 uma posio de

    destaque na dinmica econmica e poltica do estado do Par. Mas com a expanso da

    fronteira econmica e demogrfica a cidade perdeu a sua importncia diante da nova dinmica

    econmica e socioespacial.

    A economia cametaense esteve historicamente baseada no extrativismo de produtos

    tais como: cacau, andiroba, ucuba, castanha, borracha, aa, palmito, bem como a pesca e a

    agricultura de subsistncia. Essas atividades constituram ao longo da histria do municpio os

    meios de sobrevivncia para a maioria da populao, assim como a fonte de lucros para uma

    elite mercantil, que historicamente tem explorado as populaes rurais e ribeirinhas por via do

    mecanismo de aviamento, o que resultou num contraste social marcante: de um lado a

    permanncia da maioria da populao nas ilhas, povoados e vilas vivendo em precrias

    condies; de outro, as famlias de comerciantes normalmente descendentes de estrangeiros

    (portugueses, turcos, libaneses, judeus etc) que ostentavam riqueza e viviam na cidade, sede

    do municpio.

    Essa lgica econmica e geogrfica rural-ribeirinho versus urbano tambm se

    materializava de alguma forma na constituio e configurao do poder poltico. As famlias

    tradicionais de comerciantes normalmente constituam a elite poltica. Como s essas

    oligarquias tinham acesso educao e aos meios da cultura institucionalizada representavam

    igualmente a elite intelectual do municpio, sendo comum o fato de as famlias tradicionais

    mandarem seus filhos estudar em Belm, no Rio de Janeiro e at na Europa.

    Muitos desses cametaenses, filhos da elite mercantil, que formavam a oligarquia

    poltica alcanaram altos postos no clero e na poltica regional e nacional, tornando-se

    homens notveis. Essa acumulao de poder econmico, poltico e simblico se

    materializou na construo de uma narrativa histrica do municpio que , na verdade, uma

    memria dos notveis , cujos mitos fundadores e smbolos tentam impor todo um magma

    de significaes configurao da identidade cametaense para transform-la numa

    identidade dos notveis Camet, cidade dos notveis , uma identidade branca, urbana

    e rica.

    Para forjar essa histria e essa identidade hegemnica legitimadora das formas de

    explorao e dominao social se silenciou e subalternizou a histria, a memria e as

    identidades das populaes pobres, mestias, rurais e ribeirinhas que tinham sua identificao

  • 19

    marcada historicamente pelo discurso colonialista fundamentado no estigma e esteretipo do

    caboclo, estando a alteridade, a diferena, subalternizada e oculta na identidade do

    notvel.

    Contudo, essa identidade hegemnica e legitimadora das relaes de poder

    institudas e institucionalizadas em Camet vem sendo questionada, deslocada, fraturada pelo

    protagonismo poltico das organizaes sociais de origem rural e ribeirinha que r-existem

    afirmando sua diferena subalternizada, lutando material e simbolicamente para re-significar a

    sua identidade ribeirinha.

    Esse processo vem acontecendo pela atuao dos movimentos sociais,

    fundamentalmente compostos por trabalhadores rurais e ribeirinhos que representam quase

    60% da populao do municpio e que historicamente vivem nas centenas de ilhas, nas vilas e

    povoados no interior do municpio. Esse movimento institucionalizou-se via colnia dos

    pescadores, no sindicato de trabalhadores rurais, associaes de crdito, ONGs, na Igreja

    catlica, no Partido dos Trabalhadores, bem como em associaes e movimentos sociais

    articulados em escalas mais amplas .

    Esse movimento se forjou pelas foras sociais exploradas e oprimidas

    historicamente, mas que comearam a constituir-se como sujeito, como atores protagonistas

    na cena poltica a partir do final dos anos 1970. Esse processo se deu em duas escalas e com /

    contra duas dinmicas opressivas. Primeiramente, na escala do municpio de Camet, contra

    as formas de dominao e explorao das populaes rurais e ribeirinhas pelos homens

    notveis. Na escala da regio do Baixo Tocantins na luta contra os impactos da construo

    da hidreltrica de Tucuru. nesse jogo de escalas e confrontos que o protagonismo desses

    sujeitos ganhou densidade histrica.

    Mas indubitavelmente a construo da UHT (Usina Hidroeltrica de Tucuru ) foi

    um marco decisivo nesse processo. Essa Barragem no barrou s o rio, ela fragmentou a

    dinmica regional diferenciando profundamente a textura e a tessitura do tempo/espao do

    Baixo e Mdio Tocantins, mudando a lgica da diviso territorial do trabalho e os modos de

    vida. O represamento do rio implicou em profundos impactos ecolgicos e sociais, pois a

    barragem das guas afetou a qualidade da gua o que gerou graves problemas de sade entre

    as populaes ribeirinhas, afetando tambm a produo pesqueira, que apresentou um declnio

    de 65% nos anos 1980, bem como a produo extrativa das reas de vrzea.

    Assim, ocorre uma drstica queda nas atividades extrativas e um declnio na

    produo pesqueira, fazendo com que a pesca perdesse sua posio de destaque na economia

  • 20

    regional, afetando a qualidade de vida de milhares de pessoas que tinham ancorado no rio sua

    produo e reproduo social.

    na luta e r-existncia contra esse projeto autoritrio de uma modernizao

    conservadora (na escala regional) e contra os homens notveis (na escala local) que o

    movimento dos ribeirinhos e trabalhadores rurais em Camet vai ganhando expresso,

    legitimidade e identidade. na luta pela afirmao dos direitos sua territorialidade, com seu

    modo de vida prprio, que essas populaes iniciaram um processo de questionamento das

    representaes, discursos e ideologias hegemnicas sobre as populaes tradicionais que

    historicamente viviam na regio. Esses discursos e representaes moderno / colonial se

    fundamentavam no estigma e no esteretipo do caboclo.

    Nesse processo o movimento social comeou a redefinir e re-significar todo um

    conjunto de prticas discursivas e de representaes, buscando construir um novo magma de

    significaes num processo de politizao da cultura que valoriza a experincia cultural, o

    modo de vida cotidiano das populaes ribeirinhas, afirmando suas identidades como

    elemento de r-existncia ao processo de modernizao.

    Diante de tais situaes formulamos as seguintes questes: Qual o contexto da

    emergncia do discurso que afirma a identidade ribeirinha em Camet? Quais as condies

    em que esse processo se realiza? Quais so os agentes? Qual o papel do rio como espao de

    referncia identitria? O que est em jogo na construo de um discurso identitrio ribeirinho?

    Diante dessas questes constituiu o objetivo geral deste trabalho entender como vem

    sendo construda de maneira relacional e contrastiva uma identidade ribeirinha no municpio

    de Camet, atravs de um processo de politizao da cultura ribeirinha e da construo de

    uma conscincia socioespacial de pertencimento, o que tem implicado na constituio de

    novos sujeitos polticos que emergem das lutas contra as formas de explorao e dominao a

    nvel local e contra os impactos dos processos de modernizao a nvel regional.

    Para isso realizamos uma ampla pesquisa bibliogrfica terica sobre a questo da

    identidade, bem como sobre a dinmica de transformaes da Amaznia ps 1960. Nos

    concentramos ainda na literatura sobre a emergncia dos movimentos sociais ligados s

    populaes tradicionais, e ainda sobre a cultura e modo de vida ribeirinho. Realizamos

    tambm uma pesquisa documental em relatrios, projetos e material de divulgao ligados a

    instituies estatais, ONGs e movimento sociais; realizamos, enfim, um trabalho de campo

    onde trabalhamos com entrevistas semi-estruturadas e entrevistas livres, alm de inmeras

    conversas e participaes em eventos e reunies acadmicas, polticas e artsticas com as

  • 21

    populaes locais. Utilizamos como recurso nossas prprias experincias e memrias, visto

    que grande parte da nossa vida foi compartilhada na realidade estudada.

    Desse modo, o presente trabalho compreende uma apresentao, uma introduo,

    quatro captulos e as consideraes finais.

    Na introduo, tentamos demonstrar nossa escolha epistemolgica e poltica a partir

    da qual conduzimos esta pesquisa.

    No primeiro captulo discutimos o conceito de identidade e a sua relao com o

    territrio. Apontamos para uma concepo de identidade que nega as perspectivas

    essencialista e substancialista, mostrando a natureza histrica e relacional das identidades,

    bem como a intrnseca relao entre a construo das identidades e as relaes de poder,

    ressaltando o seu carter estratgico e posicional. Buscamos ainda definir a especificidade das

    identidades territoriais, bem como caracterizar os seus elementos constitutivos: o espao de

    referncia identitria e a conscincia socioespacial de pertencimento, analisados a partir da

    relao dialtica entre o vivido e o concebido. Contextualizamos ainda a emergncia da

    questo identitria nas lutas sociais na Amaznia contempornea, apontando para o intenso

    processo de politizao das culturas tradicionais pelos movimentos sociais num processo de

    r-existncia ao projeto de modernizao/colonial implicando na construo das novas

    identidades polticas e na constituio de sujeitos protagonistas na histria e geografia da

    regio.

    No segundo captulo discutimos a conceituao da Amaznia como fronteira,

    demonstrando como essa conceituao e contextualizao pode oferecer elementos para

    estudarmos as identidades territoriais. Partimos da premissa de que a especificidade da

    formao econmica e social, ou simplesmente formao socioespacial da Amaznia, a sua

    condio de fronteira. dessa condio histrica que resultam as incomensurveis

    contradies histricas, expressas no (des)encontro de temporalidades e territorialidades que

    colocam a questo dos conflitos sociais na regio para alm da questo de classe,

    incorporando tambm as questes tnicas e culturais. Trata-se de entendermos uma formao

    socioespacial na qual as linhas de fraturas ainda no foram sedimentadas e o projeto histrico

    de modernizao ainda no conseguiu estabelecer sua completa hegemonia. Essa realidade

    marcada pela coexistncia de uma temporalidade hegemnica com elementos residuais e

    emergentes de outras temporalidades histricas, portadoras de outras cosmologias e de outros

    projetos polticos. Isso tudo coloca a questo da diferena, a questo da alteridade e,

    conseqentemente, das identidades na centralidade da dinmica sociocultural, poltica e

    territorial da Amaznia.

  • 22

    No terceiro captulo desenvolvemos uma anlise mais emprica, apontando para o

    processo de formao territorial do Baixo Tocantins, com destaque para o papel do rio como

    espao de referncia identitria na construo do modo de vida ribeirinho. Analisamos ainda

    como esse padro de organizao espao-temporal pautado numa espacialidade e

    temporalidade baseada no rio desestruturado a partir da expanso da fronteira, materializada

    na construo da Usina Hidreltrica de Tucuru (UHT) que afetou as condies de produo e

    reproduo social das populaes ribeirinhas. Esse processo de mudanas, mas tambm de

    permanncias implicou em uma nova postura poltica das chamadas populaes ribeirinhas,

    visto que os impactos ecolgicos e sociais que afetaram diretamente a capacidade de

    sobrevivncia e reproduo social acabaram colocando como imperativa a necessidade de

    organizao, mobilizao e luta dessas populaes pela garantias dos seus direitos. Isso

    implicou em inmeras formas de antagonismos e de constante reinveno da capacidade de r-

    existncia frente avassaladora modernizao conservadora e excludente que sofreu a regio.

    No quarto captulo discutimos como se construiu historicamente a afirmao do

    poder e da hegemonia das famlias oligrquicas no municpio de Camet e como esses grupos

    foram responsveis pela afirmao de um discurso histrico e identitrio dos homens

    notveis que nega as memrias, a cultura e a identidade do caboclo-ribeirinho. Ao longo

    do captulo tratamos de entender como vem sendo construda de maneira relacional e

    contrastiva uma identidade ribeirinha em Camet atravs de um processo de politizao da

    cultura ribeirinha e da construo de uma conscincia socioespacial de pertencimento, o que

    tem implicado na constituio de novos sujeitos polticos que emergem das lutas contra as

    formas de explorao e dominao a nvel local e contra os processos de modernizao a

    nvel regional. Esse processo se materializa atravs de uma organizao poltica das

    populaes ribeirinhas, revelando uma grande capacidade de protagonismo das mesmas. Por

    fim, discutimos os entrelaamentos e as ambigidades do significado de uma identidade

    ribeirinha como uma identidade cabocla verificando as suas razes e rotas.

    E, por fim, apresentamos as consideraes finais, onde retomamos questes

    desenvolvidas ao longo do trabalho e construmos uma sntese terica e emprica sobre a

    construo da identidade ribeirinha.

  • 23

    INTRODUO

    Historicamente se sedimentou no imaginrio social um conjunto de representaes,

    imagens e ideologias sobre a Amaznia e, em particular, sobre as populaes que

    tradicionalmente se territorializaram na regio. Essas representaes aliceraram diferentes

    modos de ver a identidade dessas populaes tradicionais. Esses diferentes olhares vo de

    um extremo ao outro, da construo do esteretipo que conduz a um processo de

    estigmatizao cultural ou mesmo invisibilidade de tais populaes idealizao

    romntica e idlica do chamado caboclo amaznida. Desse modo, podemos enumerar, pelo

    menos hegemonicamente, trs modos de ver a identidade das populaes tradicionais

    presentes nesse conjunto de representaes: em primeiro lugar um olhar naturalista que

    produz a invisibilidade dessas populaes, um segundo modo de ver, o que denominamos

    olhar romntico tradicionalista, que produz uma idealizao idlica do caboclo e, por

    ltimo, o olhar moderno/colonial que produz o esteretipo e a estigmatizao cultural de

    tais populaes. Em contraponto a essas formas hegemnicas percebemos a emergncia de

    uma outra forma de olhar a identidade das populaes tradicionais a partir das prprias

    populaes atravs dos movimentos sociais como elemento de r- existncia nas lutas sociais.

    O olhar naturalista: a invisibilidade

    As populaes rurais e ribeirinhas ou caboclas da Amaznia e suas identidades

    foram historicamente ignoradas e invisibilizadas por um olhar naturalista e naturalizante que

    sempre viu a regio somente como natureza, logo sua diversidade vista apenas como

    biodiversidade, sendo conhecida e reconhecida unicamente como um conjunto de

    ecossistemas e como fonte de recursos naturais. Essa, sem dvida a representao mais

    comum sobre o espao amaznico que se personifica atravs de idias e expresses sobre a

    regio, como: espao vazio, vazio demogrfico, terras sem homens. Essas construes

    ideolgicas reforam historicamente a no-existncia poltica e discursiva dessas populaes.

    Das drogas do serto biodiversidade, da colonizao globalizao, a Amaznia vista

    apenas como natureza (recurso).

  • 24

    Essa viso naturalista desconsidera os processos histricos e as identidades culturais

    que conformaram a territorializao dos diferentes grupos na sua sociodiversidade e, desse

    modo, negligencia a diversidade territorial na sua dimenso humana e histrica, produzindo a

    no-existncia e a invisibilidade das populaes ditas tradicionais. Esse olhar produz a

    supresso, o silenciamento dessas populaes e, desse modo, produz uma geografia das

    ausncias e uma histria de silncios. Esse modo de ver sempre esteve presente na histria

    da regio, seja nos relatos dos antigos viajantes, seja na mdia atual ou ainda nos planos e

    planejamentos do Estado, na ao do grande capital ou ainda na produo cientfica sobre a

    regio. Esses dispositivos discursivos do poder-saber sempre deram uma extrema

    significncia natureza e uma in-significncia ao homem (Dutra, 2003a).

    Olhar romntico/ tradicionalista: a idealizao idlica

    Um outro modo de olhar a identidade das populaes tradicionais aquele que

    est atento para a rica diversidade cultural dessas populaes, embora a cultura e a diferena

    sejam tratadas como uma particularidade, como algo que se isolou, como algo autnomo do

    movimento da histria e da dinmica socioespacial e cultural da regio. Essa viso romntica

    e idealizadora compreende a identidade de tais populaes como aquilo que o autntico, o

    original, o verdadeiro, a tradio. Essa idealizao v o caboclo como o bom

    selvagem que ainda no cometeu o pecado original da modernidade como se a cultura

    e a histria pudessem ser congeladas e no houvesse interaes multidimensionais e

    multiescalares entre as culturas, os sujeitos e os lugares. As diferenas e as identidades so

    vistas como algo natural, como essncias a-histricas, e no como fenmenos histricos e

    socialmente produzidos. Trata-se de olhar a diferena pela diferena

    Esta perspectiva consagra uma viso antropolgica ingnua e relativista que ignora

    que as identidades e as diferenas so construdas historicamente sempre de maneira

    relacional (Hall, 2004) e contrastiva (Oliveira, 1976) dentro dos contextos histricos e

    geogrficos marcados por lutas de poder, conflitos e contradies, e que no raramente as

    diferenas e identidades so demarcadas no s por formas de marcaes e classificaes

    simblicas, mas tambm por profundas desigualdades e excluso social (Woodward, 2004).

    Olhar moderno/colonialista: o esteretipo

    Ainda temos um terceiro modo de olhar a identidade das populaes tradicionais

    da Amaznia, que aquele pautado no esteretipo do caboclo. Essa viso talvez seja a mais

    forte e arraigada no imaginrio social e est assentada num conjunto de representaes

  • 25

    marcadas por preconceitos e estigmas sociais e culturais que justificam uma viso moderna

    /colonial e racista dessas populaes.

    Essa perspectiva de ver as populaes ribeirinhas est pautada numa monocultura

    do tempo linear (Souza Santos, 2004a) que compreende a histria como tendo direo e

    sentido nicos. Nela o tempo pensado somente numa perspectiva diacrnica, na qual a

    histria compreendida a partir de estgios e etapas sucessivas (da tradio modernidade).

    Essa maneira de pensar o tempo tem como referncia um imaginrio e uma ideologia do

    progresso que se expressa pelas idias de desenvolvimento, crescimento, modernizao e

    globalizao entre outras que compem a cosmoviso da modernidade ocidental.

    Segundo Massey (2004), todas essas categorias compartilham de uma imaginao

    geogrfica que re-arranja as diferenas espaciais em termos de seqncia temporal,

    suprimindo desse modo a espacialidade e em conseqncia, a possibilidade da multiplicidade

    e da diferena. A implicao disso que lugares no so genuinamente diferentes; na

    realidade, eles esto simplesmente frente ou atrs numa mesma histria: suas diferenas

    consistem apenas no lugar que eles ocupam na fila da histria (p.15).

    Isso significa que os lugares e as populaes so tratados como se estivessem numa

    fila histrica que vai do estgio dos mais selvagens at os mais civilizados, dos mais

    atrasados aos mais avanados, dos mais subdesenvolvidos aos mais desenvolvidos.

    Nessa forma de conceber e classificar as experincias sociais e os lugares e,

    conseqentemente, as identidades, as populaes denominadas tradicionais so

    classificadas como atrasadas e improdutivas em detrimento dos tempos e espaos que so

    modernos, avanados e produtivos.

    Assim, essa viso colonialista caracteriza as expresses culturais de tais populaes

    como tradicionais ou no-modernas, como estando em processo de transio em direo

    modernidade, e lhes nega toda possibilidade de lgicas culturais ou de cosmovises prprias.

    Ao coloc-las como expresso do passado, nega-se sua contemporaneidade (Lander, 2005).

    Esse processo de negao da contemporaneidade expresso na forma da inveno

    da residualizao (Sousa Santos, 2004a) das chamadas populaes tradicionais, estas

    populaes e seus modos de vida, suas temporalidades, suas racionalidades econmicas so

    vistos como o resduo, o anacrnico, um desvio da racionalidade capitalista e do modo de vida

    moderno urbano-industrial. Esta viso se personifica nas idias de que essas populaes

    representam o primitivo, o tradicional, o pr-moderno, o simples, o obsoleto, o

    subdesenvolvido. Isso fica bem claro atravs da atribuio s populaes tradicionais do

  • 26

    esteretipo do caboclo, indivduo ignorante, atrasado, lento, indolente

    improdutivo.

    Olhar da subalternidade: da vtima ao protagonista

    No final dos anos 1980 comea a ocorrer um fraturamento, um des-locamento das

    formas hegemnicas de ver a identidade das populaes tradicionais por meio dos

    movimentos sociais na luta contra as diferentes formas de subalternizao material e

    simblica, contra preconceitos e estigmas e pela afirmao de suas identidades a partir dos

    seus prprios modos de vida. As populaes tradicionais se organizam, ganhando

    visibilidade e protagonismo, constituindo-se e afirmando-se como sujeitos polticos na luta

    pelo exerccio ou mesmo pela inveno de direitos a partir de suas territorialidades e

    identidades territoriais. Essas lutas so lutas por redistribuio e por maior igualdade de

    acesso aos recursos materiais (lutas por territrios da igualdade), bem como pelo

    reconhecimento da legitimidade de diferenas e identidades culturais expressas nos diferentes

    modos de produzir e nos diferentes modos de viver e de existir de tais populaes (lutas por

    territrios da diferena)

    Essas identidades emergentes na Amaznia, construdas pelos diferentes movimentos

    sociais (ndios, ribeirinhos, pequenos agricultores, seringueiros, varzeiros, castanheiros,

    populaes quilombolas, mulheres quebradeiras de coco etc.), esto orientadas no sentido da

    superao de velhas identidades coletivas ligadas a um discurso moderno/colonial que se

    fundamentava na invisibilizao, na romantizao e, em especial, na estigmatizao e no

    esteretipo do caboclo para (des)qualificar as populaes como atrasadas, ignorantes

    indolentes, improdutivas, considerando tais populaes como um obstculo a um projeto

    moderno urbano- industrial para Amaznia

    na luta e r-existncia contra o projeto autoritrio de uma modernizao

    conservadora que esses movimentos vm ganhando densidade histrica, expresso,

    legitimidade e identidade. Na busca pela afirmao dos direitos sua territorialidade, com seu

    modo de vida prprio, essas populaes iniciaram um processo de questionamento das

    representaes, discursos e ideologias hegemnicas. Esses movimentos sociais buscam

    redefinir e re-significar todo um conjunto de prticas discursivas e representaes, buscando

    construir novos magmas de significao que valorize suas prprias experincias culturais e

    seus diferentes modos de vida na construo de suas identidades.

  • 27

    nesta perspectiva da subalternidade, partindo dos processos de r-existncia e do

    protagonismo poltico das populaes ribeirinhas no municpio de Camet que queremos

    analisar a construo de uma identidade ribeirinha.

    1. CAPTULO: ITINERRIOS TERICOS PARA SE PENSAR A RELAO TERRITRIO, IDENTIDADE E LUTAS SOCIAIS NA AMAZNIA.

    As pessoas e os grupos sociais tm o direito a ser iguais quando a diferena os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza.

    (Boaventura de Sousa Santos)

    Nas ltimas dcadas, a Amaznia vem passando por um profundo processo de

    reestruturao scio-espacial e reordenamento histrico-cultural. Esse processo, que vem

    ocorrendo especialmente a partir da dcada de 1960, e resultante da tentativa de

    integrao e incorporao da regio na diviso territorial do trabalho em escala nacional e

    internacional. Nesse perodo a regio torna-se um espao estratgico para o projeto de nao

    que o Estado brasileiro autoritrio projetava para o pas naquele momento histrico.

    Para a realizao de tal projeto a prioridade era modernizar a Amaznia. Para

    tanto, busca-se uma modernizao do territrio por meio de uma tecnologia espacial que lhe

    impe uma malha de controle tcnico e poltico, uma malha programada, constituda pelo

    conjunto de programas e planos governamentais que colocaram a Amaznia na condio de

    uma fronteira de recursos naturais a ser violentamente incorporada pelo grande capital

    (Becker 1996).

    Assim, o modelo que orientou esse processo de ocupao da Amaznia foi a

    chamada economia de fronteira, pautada na idia de progresso e de desenvolvimento como

    crescimento econmico e prosperidade infinita com base na explorao de recursos naturais,

    tambm eles percebidos como infinitos, como nos coloca Becker (1996). Alm disso, a

    premissa organizadora desse modelo de ocupao e apropriao era a crena no papel da

    modernizao como a nica fora capaz de destruir as supersties e relaes arcaicas, no

    importando o seu custo social, cultural e poltico. A industrializao e a urbanizao eram

  • 28

    vistas como inevitveis e, necessariamente, progressivos caminhos em direo

    modernizao (Escobar, 1998).

    Junto com o projeto de modernizao implantado na Amaznia chegou a cosmoviso

    da modernidade pautada em um conjunto de magmas de significao que criaram um

    imaginrio em que se atribui a priori uma positividade ao novo, ao moderno e inovao e

    uma negatividade ao velho, ao passado, ao tradicional. Essa perspectiva de compreenso da

    histria e da realidade est pautada numa ideologia do progresso e numa espcie de

    fundamentalismo do novo2, presentes num conjunto de prticas e representaes marcadas

    pela violncia e pelo colonialismo que serviam e ainda servem para justificar a

    subalternizao das populaes que historicamente viveram na regio (ndios, ribeirinhos,

    pequenos agricultores, seringueiros, varzeiros, castanheiros, populaes quilombolas,

    mulheres quebradeiras de coco etc.). Essas populaes passam a ser classificadas como tendo

    modos de vida tradicionais, por estarem pautadas em outras temporalidades histricas e

    configuradas em outras formas de territorialidades e por terem modos de vida estruturados a

    partir de racionalidades econmicas e ambientais com saberes e fazeres diferenciados da

    racionalidade capitalista.

    O projeto de modernizao conservadora materializado nos planos e planejamentos

    do Estado autoritrio e na implementao de grandes projetos a partir da dcada de 1960 via

    tais populaes e seus modos de vida tradicionais como obstculos ao desenvolvimento,

    pois nessa viso se assinala um nico futuro possvel para todas as culturas e todos os povos

    (a modernizao ocidental capitalista e a sociedade de consumo urbano-industrial). Nessa

    perspectiva, aqueles que no conseguirem incorporar-se a esta marcha inexorvel da histria

    esto destinados a desaparecer. As outras formas de ser, as outras formas de organizao da

    sociedade, as outras formas de conhecimento so transformadas no s em diferentes, mas em

    carentes, arcaicas, primitivas, tradicionais, pr-modernas e, como afirma Lander (2005), so

    situadas, num momento anterior do desenvolvimento histrico da humanidade, o que, no

    imaginrio do progresso, enfatiza sua inferioridade.

    Essa histria de violncia e subalternizao que a modernidade/colonial trouxe para a

    Amaznia pelo avano da fronteira demogrfica e econmica passa a ser questionada a partir

    do final dos anos 1980 pelo crescimento e fortalecimento da organizao da sociedade civil,

    em especial, pela atuao dos movimentos sociais que atravs de inmeras lutas buscam a

    2 Gonalves (2005) usa essa expresso para chamar a ateno para a obsesso do imaginrio da modernidade pelo novo, pela velocidade, pela mudana, pelo progresso, criando uma justificativa ideolgica para todas as formas de violncia cometidas em nome do desenvolvimento e da modernizao.

  • 29

    afirmao das territorialidades e das identidades das populaes tradicionais. Esses

    movimentos criam inmeras redes e alianas com a cooperao internacional via

    principalmente das ONGs. Isso se d em vrias escalas, do local ao global, redefinindo as

    formas de luta e de resistncia dos sujeitos subalternizados na regio.

    A partir de ento comea a se esboar uma nova geo-grafia3 na Amaznia que aponta

    para um processo de emergncia de diversos movimentos sociais que lutam pela afirmao

    das territorialidades e identidades territoriais como elemento de r-existncia das populaes

    tradicionais, trata-se de movimentos sociais de r-existncia, pois que, segundo Gonalves

    (2001), no s lutam para resistir contra os que exploram, dominam e estigmatizam essas

    populaes, mas tambm por uma determinada forma de existncia, um determinado modo de

    vida e de produo, por diferenciados modos de sentir , agir e pensar

    Assim, esses movimentos apontam para o carter emancipatrio das lutas pautadas

    numa politizao da prpria cultura e de modos de vida tradicionais, numa politizao dos

    costumes em comum4, que re-significam a construo das identidades dessas populaes

    que, ancoradas nas diferentes formas de territorialidade, se afirmam num processo que, ao

    mesmo tempo, as direciona para o passado, buscando nas tradies e na memria sua fora, e

    aponta para o futuro, sinalizando para projetos alternativos de produo, de organizao

    comunitria e de afirmao e participao poltica.

    Nesse contexto, vem ocorrendo a constituio de novos sujeitos polticos e

    emergncia de novas identidades territoriais construdas pelas populaes tradicionais nas

    lutas sociais pela afirmao material e simblica dos seus modos de vida. Essas populaes

    mobilizam estrategicamente e perfomaticamente novos discursos identitrios na busca pelo

    reconhecimento de sua cultura, memria, e territorialidade que historicamente foram

    marginalizadas, suprimidas, silenciadas e invisibilizadas e agora comeam tornar visvel o que

    era invisvel, em voz o que foi silenciado, em presenas as ausncias e, desse modo, iluminam

    a r-existncia e o protagonismo dessas populaes na construo da histria e da geografia da

    regio.

    3 Gonalves (2004) prope pensar a Geografia no como substantivo, mas como verbo ato/ao de marcar a terra. E desse modo que podemos falar de nova geo-grafia, em que os diferentes movimentos sociais re-significam o espao e, assim, com novos signos grafam a terra, geografam, reinventando a sociedade. 4 A expresso foi cunhada pelo historiador ingls Thompsom (1979) para mostrar o carter revolucionrio das lutas pautadas nos costumes e na tradio no sculo dezoito na Inglaterra, onde, segundo o autor, emerge uma cultura tradicional rebelde dos plebeus que resistem, em nome do costume, s racionalizaes econmicas e inovaes (como o cercamento de terras comuns, a disciplina no trabalho e os mercados livres no regulados de gros) que governantes, comerciantes ou patres buscavam impor.

  • 30

    Para compreendermos melhor essa realidade precisamos aprofundar a discusso

    terica sobre o conceito de identidade e identidade territorial alm de contextualizarmos os

    processos e as condies de emergncia das identidades territoriais hoje na Amaznia, este o

    objetivo desse captulo.

    1.1 . DIFERENA, IDENTIDADE E IDENTIFICAO

    Inicialmente gostaramos de discutir a relao entre identidade e diferena. Esta

    relao normalmente trabalhada como uma simples oposio, sendo que a diferena

    concebida como alteridade, como um produto derivado da identidade (o diferente, o diverso).

    Em outras palavras, a identidade a referncia, o ponto original relativamente ao qual se

    define a diferena (Silva, 2004). Contudo, a partir das reflexes do referido autor, estamos nos

    propondo a pensar a diferena no s como produto, mas tambm como processo.

    Nessa concepo processual, a diferena no um estado esttico e nem se confunde

    com a diversidade (simples constatao do diverso). relao, um movimento gerativo e

    incessante, uma multiplicidade ativa e criadora. Nestes termos, se inverteria a equao e a

    diferena passaria a ser o ponto original para se pensar a identidade, como Silva (2004)

    afirma. (...) preciso considerar a diferena no simplesmente como resultado de um

    processo, mas como o processo mesmo pelo qual tanto a identidade quanto a diferena

    (compreendida, aqui, como resultado) so produzidas. Na origem estaria a diferena -

    compreendida, agora, como ato ou processo de diferenciao (Silva, 2004:75-6). Nestes

    termos, analisar a identidade significa refletir tambm sobre a diferena, pois, elas so

    indissociveis. Neste sentido, o nosso ponto de partida o de que a identidade sempre uma

    construo histrica e relacional dos significados sociais e culturais que norteiam o processo

    de distino e identificao de um indivduo ou de um grupo. Um processo de construo de

    significados com base em um atributo cultural ou, ainda, um conjunto de atributos culturais

    inter-relacionados o(s) qual (ais) prevalece(m) sobre outras fontes de significao (Castells

    1999:22).

    A partir desse ponto de partida queremos distanciar nossa viso de toda forma de

    substancialismo e essencialismo, pois concordamos com Hall (2004) quando afirma que a

    identidade , e sempre est em processo, ou seja, sempre est em construo. Neste sentido a

    identidade dinmica, mltipla, aberta e contingente. Essas caractersticas nos remetem a

    algo em curso, em movimento, sempre se realizando. Neste sentido, para Hall (1997; 2004), a

  • 31

    identidade no se restringe questo: quem ns somos, mas tambm quem ns podemos

    nos tornar; desse modo, a construo da identidade tem a ver com razes (ser), mas

    tambm com rotas e rumos (tornar-se, vi a ser).

    Assim, o conceito de identidade no se confunde com as idias de originalidade ou

    de autenticidade, pois os processos de identificao e os vnculos de pertencimento se

    constituem tanto pelas tradies (razes, heranas, passado, memrias etc.) como pelas

    tradues (estratgias para o futuro, rotas, rumos projetos etc). As identidades nunca so,

    portanto, completamente determinadas, unificadas, fixadas, elas so multiplamente

    construdas ao longo dos discursos, prticas e posies que podem se cruzar ou ser

    antagnicos. As identidades esto sujeitas a uma historizaco radical, estando constantemente

    em processo de transformao e mudana (Hall, 2004:108).

    Na verdade, a identidade como processo identificao, definida pelo referido autor

    como:

    (...) um processo de articulao, uma suturao, uma sobredeterminao, e no

    uma subsuno. H sempre demasiado ou muito pouco - uma

    sobredeterminaco ou uma falta, mas nunca um ajuste completo, uma totalidade.

    Como toda prtica de significao ela est sujeita ao jogo da diffrance. Ela

    obedece lgica do mais-que-um. E uma vez que, como processo, a identificao

    opera por meio da diffrance, ela envolve um trabalho discursivo, o fechamento e a

    marcao de fronteiras simblicas, a produo dos efeitos de fronteira. Para

    consolidar o processo, ela requer aquilo de que deixado de fora o exterior que a

    constitui (Hall, 2004:106).

    Em conseqncia, a identidade como construo histrica est sempre sujeita a re-

    significaes que so construdas dentro e no fora dos discursos (Hall 2004). Neste sentido,

    precisamos compreend-las como produzidas em locais histricos, institucionais

    (acrescentaramos geogrficos) especficos a partir dos quais se constroem as prticas e as

    representaes discursivas dos diferentes sujeitos envolvidos no jogo para definir a

    identidade, que entendida como:

  • 32

    (...) o ponto de encontro, o ponto de sutura, entre, por um lado, os discursos e as

    prticas que tentam nos interpelar, nos falar ou nos convocar para que

    assumamos nossos lugares como os sujeitos sociais de discursos particulares e, por

    outro lado, os processos que produzem subjetividades, que nos constroem como

    sujeitos aos quais se pode falar, as identidades so, pois, ponto de apego

    temporrio s posies-de-sujeito que as prticas discursivas constroem para ns.

    (Hall, 2004:111 grifo nosso).

    Ainda ressaltando o carter histrico, precisamos compreender que a identidade no

    uma coisa em si ou um estado ou significado fixo, mas um relao, uma posio

    relacional, uma posio-de-sujeito construda de forma relacional e contrastiva

    (Oliveira,1976), visto que os processos de identificao e, conseqentemente, as identidades

    so construdos na e pela diferena e no fora dela, e que nenhuma identidade auto-

    suficiente, auto-referenciada em sua positividade, tendo seu significado definido no jogo da

    diffrance5. Ou, como nos lembra Hall (2003), cada identidade radicalmente insuficiente

    em relao a seus outros. Isso implica o reconhecimento radicalmente perturbador de que

    apenas por meio da relao com o outro, da relao com aquilo que no , precisamente com

    aquilo que falta, com aquilo que tem sido chamado de seu exterior constitutivo (Hall,

    2004:110), que a identidade ganha sentido e eficcia.

    Identificar, no mbito humano social, sempre identificar-se, um processo

    reflexivo, portanto, identificar-se sempre um processo de identificar-se com, ou

    seja, sempre um processo relacional, dialgico, inserido numa relao social

    (Haesbaert, 1999a: 174, grifos do autor).

    Portanto no possvel estudar a identidade de qualquer grupo social apenas com

    base na sua cultura, ou no seu modo de vida, nas suas representaes de forma introvertida e

    auto-referenciada, pois as identidades e os sentimentos de pertencimento so construdos de

    maneira relacional e contrastiva e muitas vezes conflitiva entre uma auto-identidade (auto- 5 Jacques Derrida usa este conceito para romper com o binarismo e absolutizao dos conceitos, dos significados, das diferenas e diramos das identidades fixas, pois s numa cadeia e num jogo deslizante em relao aos outros que o significado, o conceito, a diferena ou a identidade existe. A diffrance, o jogo sistemtico das diferenas, dos rastros de diferenas , do espaamento, pelo qual os elementos se remetem uns aos outros. Esse espaamento a produo, ao mesmo tempo ativa e passiva (...) dos intervalos sem os quais os termos plenos no significariam, funcionariam (...) o jogo das diferenas supe, de fato, snteses e remessas que impedem que, em algum momento, em algum sentido, um elemento simples esteja presente em si mesmo e remeta a si mesmo.(Derrida, 2001:32-3)

  • 33

    atribuio, auto-reconhecimento) e uma hetero-identidade (atribuio e reconhecimento pelo

    outro). So nessas teias complexas de valoraes e significados de reconhecimento e

    alteridade que se estabelece o dilogo e o conflito entre os grupos, forjando as identidades.

    nesse jogo relacional de classificao/distino/identificao que a identidade

    construda e configurada ao mesmo tempo como incluso e excluso: ela identifica o grupo

    (membros do grupo que so idnticos) e o distingue dos outros grupos (cujos membros so

    diferentes dos primeiros sob um certo ponto de vista). Nesta perspectiva a identidade aparece

    como categorizao da distino ns/eles, baseada na diferena. (Cuche, 1999).

    Um outro cuidado terico e metodolgico importante sobre a questo da identidade

    a superao de posies dualistas como: material/simblico, objetivo/subjetivo. A identidade

    construda subjetivamente, baseada nas representaes, nos discursos, nos sistemas de

    classificaes simblicas, embora no seja algo puramente subjetivo e no se restrinja

    textualidade e ao simblico. Ela no uma construo puramente imaginria que

    despreza a realidade material e objetiva das experincias e das prticas sociais como muitos

    afirmam, e nem tampouco algo materialmente dado, objetivo, uma essncia imutvel, fixa e

    definitiva.

    Se a identidade uma construo social e no um dado, se ela do mbito da

    representao, isto no significa que ela seja uma iluso que dependeria da

    subjetividade dos agentes sociais. A construo das identidades se faz no interior

    dos contextos sociais que determinam a posio dos agentes e por isso mesmo

    orientam suas representaes e suas escolhas. (Cuche, 1999:182)

    Portanto, na construo da identidade no possvel, pois, pensar de forma

    dissociada sua natureza simblica e subjetiva (representaes) e seus referentes mais

    objetivos e materiais (a experincia social em sua materialidade). Desse modo, no cabe

    posies deterministas e excludentes que privilegiem a priori o material ou simblico/textual,

    pois se h sempre algo mais alm da cultura, algo que no bem captado pelo

    textual/discursivo, h tambm algo mais alm do assim chamado material, algo que sempre

    cultural e textual (Alvarez; Dagnino; Escobar, 2000: 21). Essa tenso e primazia no podem

    ser resolvidas no campo da teoria, s provisoriamente solucionada na prtica concreta.

    1.2. REPRESENTAO, PODER E HEGEMONIA NA CONSTRUO DA IDENTIDADE.

  • 34

    As identidades e as diferenas no podem ser compreendidas fora dos sistemas de

    significao nos quais elas so construdas e adquirem sentido. Nesta tica, as identidades

    precisam ser analisadas a partir dos discursos e dos sistemas de representao que constrem

    os lugares a partir dos quais os indivduos podem se posicionar e a partir dos quais podem

    falar (Woodward, 2004). reconhecendo a importncia das representaes que a autora

    afirma. A representao inclui as prticas de significao e os sistemas simblicos por meio

    dos quais os significados so produzidos, posicionando-nos como sujeito. por meio dos

    significados produzidos e pelas representaes que damos sentido nossa experincia e

    aquilo que somos. (Woodward, 2004: 17).

    A luta pela afirmao da identidade enquanto forma de reconhecimento social da

    diferena significa lutar para manter visvel a especificidade do grupo, ou melhor dizendo,

    aquela que o grupo toma para si, para marcar projetos e interesses distintos, isso significa

    que sua definio - discursiva e lingstica - est sujeita a vetores de fora, a relaes de

    poder (Silva, 2004:80). Essa perspectiva de entendimento da identidade aponta para uma

    relao entre o cultural e o poltico, estando essas duas dimenses imbricadas num lao

    constitutivo na construo das mesmas.

    Esse lao constitutivo significa que a cultura entendida como concepo de mundo,

    como um conjunto de significados que integram prticas sociais, no pode ser

    entendida adequadamente sem as consideraes das relaes de poder embutidas

    nessas prticas. Por outro lado, a compreenso das configuraes dessas relaes

    de poder no possvel sem o reconhecimento do seu carter cultural ativo, na

    medida em que expressam, produzem e comunicam significados. (lvares; Dagnino

    e Escobar, 2000:17).

    Assim, todos os sistemas simblicos de classificao que organizam e do sentido e

    significado marcao das diferenas culturais e das desigualdades sociais na construo das

    identidades so impregnadas de poder (Woodward, 2004). As identidades emergem no

    interior do jogo de modalidades especficas de poder, e so assim mais o produto da marcao

    da diferena e da excluso do que o signo de uma unidade idntica, naturalmente constituda

    (Hall, 2004:109). , pois, por essa ntima relao com o poder que a identidade no pode ser

    considerada de maneira essencialista, mas estratgica e posicional (Hall 2004).

  • 35

    Devido a seu carter estratgico, a identidade est sujeita manipulao dos

    indivduos ou grupos sociais; ela no existe em si mesma, independentemente das estratgias

    de afirmao dos atores sociais. Elas so ao mesmo tempo produtos e produtoras das lutas

    sociais e polticas. Elas no so simplesmente definidas; elas so impostas. Elas no

    convivem harmoniosamente, lado a lado, em um campo sem hierarquias; elas so disputadas

    (Silva, 2004:81).

    Na disputa pela identidade est envolvida uma disputa por outros recursos

    simblicos e materiais da sociedade. A afirmao da identidade e a enunciao da

    diferena traduzem o desejo dos diferentes grupos sociais assimetricamente

    situados, de garantir o acesso privilegiado aos bens sociais. A identidade e a

    diferena esto em estreita conexo com as relaes de poder. O poder de definir a

    identidade e marcar a diferena no pode ser separado das relaes mais amplas de

    poder. A identidade e a diferena no so, nunca, inocentes (Silva, 2004:81 grifo

    nosso).

    A eficcia das estratgias identitrias e o seu poder de legitimao iro depender da

    situao de cada grupo no jogo do poder. Ir depender do capital econmico, poltico e, em

    especial, do simblico (Bourdieu,1999) que cada grupo possui na estrutura assimtrica da

    sociedade. pela autoridade legitima do poder simblico, esse poder invisvel o qual s

    pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que no querem saber que lhe esto sujeitos

    ou mesmo que o exercem (p.8), pela fora do discurso performtico, traduzido no poder

    quase mgico das palavras, num jogo de corte e recorte, colagem e repetio de enunciados,

    imagens e smbolos, que a identidade produz o consenso, a ao e a mobilizao.

    Ainda no que se refere s conexes entre as identidades e as relaes de poder,

    podemos verificar que a construo das identidades pode servir tanto para a manuteno e

    legitimao das relaes de poder hegemnicas da sociedade, quanto para subvert-las. Desse

    modo, o mesmo processo que serve reproduo do poder hegemnico, logo das identidades

    hegemnicas, pode ser interrompido e reorientado no sentido de produzir novas identidades.

    Pois, como afirma (Silva 2004), inspirado em Judith Buttler (1999):

    A mesma repetibilidade que garante a eficcia dos atos performativos que reforam

    as identidades existentes pode significar a possibilidade de interrupo das

    identidades hegemnicas. A repetibilidade pode ser interrompida. A repetio pode

  • 36

    ser questionada e contestada. nessa interrupo que residem s possibilidades de

    instaurao de identidades que no representam simplesmente a reproduo das

    relaes de poder existentes (Silva, 2004:95).

    Assim, podemos perceber que para alm das identidades hegemnicas, normalizadas

    e institucionalizadas existem outras subalternizadas, de sujeitos subalternizados no jogo do

    poder, mas que podem contestar a hegemonia, pois como nos fala Hall (2004), toda identidade

    tem sua margem um excesso, algo a mais. Silva (2004) afirma que a identidade

    hegemnica permanentemente assombrada pelo seu outro. Nestes termos, toda

    identidade tem necessidade daquilo que lhe "falta mesmo que esse outro que lhe falta seja

    um outro silenciado, inarticulado. (Hall, 2004:11).

    Como as identidades no so nunca completamente unificadas, estveis, fixas, o

    mesmo discurso performtico que repetidamente tende a fixar e a estabilizar uma

    identidade, silenciando outras, pode tambm subvert-la e desestabiliz-la, ou seja, o que est

    na margem pode se tornar o centro, pois:

    A possibilidade de poder interromper o processo de recorte e colagem de efetuar

    uma parada no processo de citacionalidade que caracteriza os atos performticos

    e que reforam as diferenas instauradas, que torna possvel pensar na produo

    de novas e renovadas identidades (Silva, 2004:95-6)

    Deste modo, no jogo de poder pela hegemonia na sociedade os diferentes atores

    sociais de acordo com a posio que ocupam no espao social (muitas vezes tambm

    geogrfico) e, ainda, pelo acmulo de capitais que possuem e a inteno em investir nos

    seus projetos polticos, podem afirmar diferentes identidades em cada momento histrico.

    Castells (1999:24), fazendo uma espcie de mapeamento das posies e dos projetos dos

    diferentes atores prope trs tipos de identidades: identidade legitimadora, identidade de

    resistncia e identidade de projeto.

    a) A Identidade legitimadora: introduzida pelas instituies dominantes da sociedade

    no intuito de expandir e racionalizar sua dominao em relao aos atores sociais.

    b) Identidade de resistncia: criada por atores que se encontram em posies e

    condies desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lgica de dominao, construindo, assim,

  • 37

    trincheiras de resistncia e sobrevivncia com base em princpios diferentes dos que

    permeiam as instituies da sociedade, ou mesmo opostos a estes ltimos.

    c) Identidade de projeto: Quando os atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo de

    material cultural ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de redefinir sua

    posio na sociedade e, ao faz-lo, buscam a transformao de toda a estrutura social.

    Assim, podemos verificar que conforme a posio do ator social a construo das

    identidades assume uma configurao especfica tanto no sentido da reproduo de uma

    ordem hegemnica quanto no de contestao desta ordem, afirmando a diferena

    subalternizada e questionando as identidades normalizadas e institucionalizadas ou, de

    forma mais ampla, a prpria sociedade como instituio. Contudo, importante percebermos

    com clareza que cada posio sempre construda de forma relacional em cada contexto de

    poder especfico, e que qualquer posio no esttica, mas dinmica, o que possibilita a

    uma identidade subalternizada ou de resistncia tornar-se hegemnica e institucionalizada, do

    mesmo modo que o que o hegemnico em um determinado contexto histrico pode tornar-

    se no-hegemnico em outro.

    Portanto, podemos concluir que a identidade no uma essncia; no um dado ou

    um fato fixo, estvel, permanente e definitivo, nem tampouco completamente coerente,

    unificada, mas sim instvel, contraditria, inacabada e contingente. uma construo, um

    processo de produo relacional de significados sociais e culturais de uma determinada

    posio-de sujeito, construda historicamente no movimento das relaes de poder na

    sociedade. A identidade se realiza atravs das prticas discursivas e narrativas, do imaginrio,

    da memria coletiva e dos smbolos usados para criar e sustentar performaticamente o

    consenso pelo menos temporrio de uma posio-de-sujeito.

    1.3. IDENTIDADES TERRITORIAIS: UMA PERSPECTIVA GEOGRFICA PARA O ENTENDIMENTO DA QUESTO DAS IDENTIDADES.

    Partindo dessa discusso geral podemos dialogar no sentido de definir o que seria um

    estudo de identidade a partir de uma perspectiva geogrfica. Se a identidade um conceito

    posicional e estratgico, como nos sugere Hall (2004), e se nossas identidades so posies-

    de-sujeito estrategicamente construdas a partir de lugares, precisamos valorizar mais a

    dimenso espacial para pensarmos as diferenas e as identidades.

    No entanto, valorizar a dimenso espacial no significa us-la somente como

    metfora, como normalmente os discursos tericos dos chamados estudos culturais ou ps-

    modernos o fazem. O carter relacional que essas metforas espaciais como posio e

  • 38

    localizao nos oferecem para pensarmos a diferena muito rico, mas pode esconder o

    fato de que a importncia do territrio em suas mltiplas escalas e dimenses vai para alm do

    seu sentido metafrico (Smith, 2002), j que as identidades no tm somente localizaes

    sociais, culturais e discursivas. Elas so tambm territoriais, e muitas delas tm no territrio

    seu referencial central.

    Neste sentido, adotamos a proposio de Haesbaert (1999a) de que determinadas

    identidades so construdas a partir da relao concreta/simblica e material/imaginria dos