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Pensás Jeison Giovani Heiler Era sábado. eram os primeiros segundos do sábado. quantos troços podem se passar na vida de um sujeito, no sábado? em geral, não muitos. menos ainda se esse sujeito estivesse em uma dessas cidades do interior. as adversativas da vida, como se diria com a conjunção adversativa adequada, costumam ter origem em eventos que se passam naquele lugar repleto de dobras e sinapses. aí é que reside o lobo. a lobotomia. e todas as ideias brilhantes ou estúpidas. pois foi uma estupidez completa e absoluta que colocou euclides entre as pernas daquela loira estonteante às 4:55 da madrugada. que fazer, ele só tinha dezessete quando teve que decidir entre medicina e uma carreira de músico que tanto podia ser da boceta como absolutamente frustrante se o sujeito é destes que mensura as grandes e pequenas vitórias na vida pelo amontoado de zeros que leva na conta bancária. no sábado em que completou os seus dezessete, é que ele mandou um dos primeiros pensás verdadeiramente estúpidos em sua vida "se tiver que exercer outro meio de vida que não o de músico, que pelo menos possa estar sempre por perto de uma peludinha". Daí a descobrir a variação inimaginável de vaginas que possam habitar o mundo e o vão das pernas das moças novas e velhinhas cabeludas e raspadinhas foi um passo, que fez com que, todavia, continuasse a chamá-las assim. Peludinhas. Entre os primeiros segundos desse sábado em que nos encontramos agora até as 4:55, e o tempo que se passou depois, há bocados de história por se contar. apressemo-nos. Há esses Pubs todos agora na cidade. uns dois ou três deles, bem transados e tudo o mais. repletos de pessoas das mais interessantes. Euclides conheceu uma dessas. encheram a cara de cerveja juntos. terminaram no banco de trás fazendo um pouco daquela boa e velha sacanagem. lugar comum em todos os dias de um milhão de todas essas pessoas. a menos que esta mulher, e era uma mulher-moça de uns vinte e tantos anos, fosse algum extraterrestre ou algo que o valha e digno de nota. não o era. era apenas isso. uma moça-mulher de uma típica cidade do interior de um pais sul-americano. tampouco era a-mulher-mais-linda-da-cidade ou carregava consigo qualquer traço distintivo. também não era portadora de alguma anomalia que valesse a sua atenção, leitor. mas se você investiu o seu tempo até aqui, e, convenhamos, você poderia estar fazendo um zilhão de coisas mais interessantes, talvez queira saber no que "pode dar" essa narrativa de merda. O lance, é que, até pessoas comuns se metem em situações bizarras, ou pelo menos, inusitadas. o que poderia ter acontecido com o herói dessa narrativa e sua parceira sexual eventual. mas não aconteceu. nada de extraordinário. ou bizarro. Depois daquela transadinha, e um pequeno retoque no batom, eles decidiram que iriam pra outro desses Pub's. Ao encostar o carro na guia da calçada, e somente depois de virar a chave desfazendo esta sim, extraordinária concatenação de eventos mecânicos que fazem funcionar o motor de um ford mustang 1965, notou que ela convertera-se em uma cascuda barata, repulsiva, e, agitada. Esse seria um evento fantástico. mas você não está lendo kafka, e o espaço para metamorfoses na literatura requer um manejo com as palavras que não estamos dispostos a empreender. por isso a alucinação visual de Euclides logo desfez-se. voltou a enxergar apenas aquela peludinha sorridente. Retribui-lhe o sorriso. desceram do carro sorridentes e

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Pensás

Jeison Giovani Heiler Era sábado. eram os primeiros segundos do sábado. quantos troços podem se passar na vida de um sujeito, no sábado? em geral, não muitos. menos ainda se esse sujeito estivesse em uma dessas cidades do interior. as adversativas da vida, como se diria com a conjunção adversativa adequada, costumam ter origem em eventos que se passam naquele lugar repleto de dobras e sinapses. aí é que reside o lobo. a lobotomia. e todas as ideias brilhantes ou estúpidas. pois foi uma estupidez completa e absoluta que colocou euclides entre as pernas daquela loira estonteante às 4:55 da madrugada. que fazer, ele só tinha dezessete quando teve que decidir entre medicina e uma carreira de músico que tanto podia ser da boceta como absolutamente frustrante se o sujeito é destes que mensura as grandes e pequenas vitórias na vida pelo amontoado de zeros que leva na conta bancária. no sábado em que completou os seus dezessete, é que ele mandou um dos primeiros pensás verdadeiramente estúpidos em sua vida "se tiver que exercer outro meio de vida que não o de músico, que pelo menos possa estar sempre por perto de uma peludinha". Daí a descobrir a variação inimaginável de vaginas que possam habitar o mundo e o vão das pernas das moças novas e velhinhas cabeludas e raspadinhas foi um passo, que fez com que, todavia, continuasse a chamá-las assim. Peludinhas. Entre os primeiros segundos desse sábado em que nos encontramos agora até as 4:55, e o tempo que se passou depois, há bocados de história por se contar. apressemo-nos. Há esses Pubs todos agora na cidade. uns dois ou três deles, bem transados e tudo o mais. repletos de pessoas das mais interessantes. Euclides conheceu uma dessas. encheram a cara de cerveja juntos. terminaram no banco de trás fazendo um pouco daquela boa e velha sacanagem. lugar comum em todos os dias de um milhão de todas essas pessoas. a menos que esta mulher, e era uma mulher-moça de uns vinte e tantos anos, fosse algum extraterrestre ou algo que o valha e digno de nota. não o era. era apenas isso. uma moça-mulher de uma típica cidade do interior de um pais sul-americano. tampouco era a-mulher-mais-linda-da-cidade ou carregava consigo qualquer traço distintivo. também não era portadora de alguma anomalia que valesse a sua atenção, leitor. mas se você investiu o seu tempo até aqui, e, convenhamos, você poderia estar fazendo um zilhão de coisas mais interessantes, talvez queira saber no que "pode dar" essa narrativa de merda. O lance, é que, até pessoas comuns se metem em situações bizarras, ou pelo menos, inusitadas. o que poderia ter acontecido com o herói dessa narrativa e sua parceira sexual eventual. mas não aconteceu. nada de extraordinário. ou bizarro. Depois daquela transadinha, e um pequeno retoque no batom, eles decidiram que iriam pra outro desses Pub's. Ao encostar o carro na guia da calçada, e somente depois de virar a chave desfazendo esta sim, extraordinária concatenação de eventos mecânicos que fazem funcionar o motor de um ford mustang 1965, notou que ela convertera-se em uma cascuda barata, repulsiva, e, agitada. Esse seria um evento fantástico. mas você não está lendo kafka, e o espaço para metamorfoses na literatura requer um manejo com as palavras que não estamos dispostos a empreender. por isso a alucinação visual de Euclides logo desfez-se. voltou a enxergar apenas aquela peludinha sorridente. Retribui-lhe o sorriso. desceram do carro sorridentes e

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satisfeitos. entraram no Pub. pediram "duas Brahmas vermelhas, por favor". Vão se passar mais alguns anos até que euclides desembarque naquela estação de train de grand vitesse recém inaugurada em Jagrená e seja recebido por uma massa de jornalistas. você não precisa esperar até lá. posso lhe contar já o que vai ocorrer. "É verdade que o senhor tem alucinações com vaginas?" "quando foi que o senhor percebeu que sofria dessa alucinação?" "o senhor pode descrever para nossos telespectadores como o senhor me vê nesse momento?" "o senhor desmente as acusações de que seja um tarado se aproveitando de sua profissão". Já estivera com jornalistas antes, falando de suas descobertas na área da medicina ginecológica. mas essas peludinhas lhe pareceram realmente atacadas naquele dia. Agora, euclides preocupa-se apenas com a cocaína que precisa descolar pra consumar o ato sexual de pouco antes das 4:55 e que não poderia suspeitar interrompido por um chamado urgente da maternidade. embora devesse imaginar. era sua noite de plantão. era o único hospital publico da cidade. enquanto aguardava entre as pernas daquela loira pela chegada de mais um Jagrenaense lembrou-se de que no dia seguinte haveria mais uma daquelas feiras de livros na cidade. ele não era muito chegado, mas era amigo do organizador da coisa toda. Dom Carlos como o chamava. o problema é que ele devia um favor pra Dom que lhe salvara a vida alguns anos antes quando ia se afogando no rio que corta a cidade. Dom nadava cinco quilômetros correnteza acima. todos os dias. dizia que era para manter a forma física, apesar de que, em matéria de saúde, um mergulho naquele rio já não era aconselhável desde a década de 40. o negócio é que depois que o ar que insuflava os pulmões de um salvara a vida do outro em um desses boca-a-boca de cinema euclides prometera presença certa em todas as feiras do livro. era sempre um sacrifício já que, decididamente, detestasse literatura. não pela convivência com os livros. seu problema eram os autores. calculou então que se acelerasse o parto daria tempo de voltar ao seu apartamento onde lhe esperariam as trigêmeas que conhecera na saída do IML. Fora chamado para lá, mal ouvira o peculiar chiado de abertura do lacre de sua "Brahma vermelha". Tratava-se de uma autópsia simples, o sujeito morrera envenenado com a mesma substância de que havia se utilizado Jeremiah de Saint-Amour, cianeto de ouro. Enquanto metia os dedos sob as costelas do morto só pelo velho hábito, e pelo prazer de pressionar-lhe d-e-t-i-d-a-m-e-n-t-e o coração, foi inevitável lembrar a frase que Gabo utilizou para iniciar a história do doutor Juvenal Urbino "o cheiro das amêndoas amargas recordava-lhe sempre o destino dos amores contrariados". As moças eram sobrinhas do morto, disseram. Apaixonaram-se pela pequena palestra de anatomia que Euclides ministrara-lhes ainda à porta, mas já do lado de fora do IML. ele tinha um faro infalível. percebia uma peludinha que estivesse lhe dando mole a dezenas e dezenas de metros de distância. Uma vez quase morreu atropelado tentando atravessar uma avenida com dezesseis pistas na finlândia para atender um chamado de seu faro a uma peludinha ruiva que observava-lhe do outro lado. o fato de não saber uma única palavra em finlandês não constituiu óbice para o desfecho amoroso do encontro propiciado por seu faro. Brincava do jogo dos sete erros pelos corpos das trigêmeas quando recebeu o chamado para realização do parto. Depois da última contração da loura expelindo mais um rebento no mundo, tomou a peludinha ensangüentada nos braços e enquanto cortava-lhe o cordão umbilical imprimiu-lhe um beijinho carinhoso no clitóris, como sempre fazia, sob o sorriso:

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maternal das enfermeiras, que achavam fofa aquela manchinha de sangue que ficava pegada aos seus lábios e; emocionado da mãe e do pai. este último assistira ao parto agarrado a uma instrumentista gorda que o precisou segurar por duas vezes para que não viesse ao solo entre os gritos de dor de sua companheira. Ainda sem ter dormido nem por um segundo e pagando promessa para Don Carlos colocou o primeiro pé no território da feira do livro e já mandou um de seus pensás "esse monte de livros, fechados, não sei se as pessoas desconfiam que cada um de nós é um desses livros tão cerrado e tão incomunicável que é quase uma tragédia apenas dar-se conta de um troço assim. Maldito Cortazar!" deu outro passo e teve que cumprimentar com um leve sorriso um autor sueco que conhecera na feira do ano anterior. "sim as coisas continuam como sempre". "não, não os tenho visto". "estes dois parece que casaram". "aquele morreu mesmo, confirmaram o suicídio". "é essa cidade". "nesse ano houve três em apenas uma semana". "claro, as cidades suecas!" mais três passos e um alô para o prefeito da cidade. outro sujeito simpático demais lhe oferece o livro recém-publicado com autógrafo. um café com um vereador. outro amigo lhe conta de um novo projeto cultural. fica sabendo de cinquenta novos argumentos para um filme totalmente original e sem tecnologia disponível para materializá-lo pelo menos nos próximos cem anos. Finalmente a noite caiu sem que tenha mencionado uma vez sequer o diagnóstico que recebera do amigo psiquiatra nos seus primeiros minutos à feira, entre duas xícaras de café. o amigo descobrira a doença ao acaso. na noite anterior lera um conto do amigo que seria publicado na feira do livro. disse que Dom Carlos insistira muito para que o fizesse. quando deparou-se com a descrição detalhada de uma personagem desconfiou que aquilo ultrapassava as questões de estilo. euclides narrara a estória de um médico que sofria de uma psicose severa que convertia em mulheres toda figura feminina que surgisse diante de si. o caso é que essas mulheres não tinham o formato vaginiforme apreendido pelas retinas de todo indivíduo normal. ao invés disso eram muito semelhantes aos homens, com pernas [!] braços [!] e todas as outras características privativas dos homens. com exceção de que a vagina, propriamente dita, restringia-se a substituir o órgão sexual masculino. e suas glândulas mamárias eram protuberantes. uma bizarrize digna de internação imediata. euclides demorou a aceitar o diagnóstico. por fim, decidiu não tratar-se. rogou que mantivesse o caso em segredo. conseguiu a promessa de que o amigo manteria o bico calado, mas que deixaria uma carta póstuma relatando o caso clínico raríssimo, senão único no ocidente, para a comunidade científica. Calhou do sujeito morrer naquele futuro que visitamos brevemente há pouco, no dia que antecedeu a inauguração de Le train de grand vitesse como gostava de falar em francês mal disfarçando uma arrogância provinciana rotunda. Antes de deixar o amigo psiquiatra este ainda dirigiu-lhe uma última observação de alento "podia ser pior, conheci certos tipos que sofrem de uma alucinação que não lhes permite enxergar nada além de notas de dólares ambulantes". Pagou sem qualquer objeção do outro, a consulta em euros. No futuro quando a jornalista meter-lhe o microfone nas fuças inquirindo-lhe se pode descrever como eram as mulheres-vagina na alucinação permanente de que sofria, vai aproximar-se, e aproximar-se um pouco mais, e quando já estiverem a dois milímetros de distância e tiverem cessado todas as perguntas e flashes, responder-lhe-á com uma lambida quente, lenta, lenta, lenta e licorina, na ponta do seu nariz.