PEPETELA - Mayombe

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PEPETELA MAYOMBE Romance 5.a edio Publicaes Dom Quixote Lisboa 1993 Obras de Pepetela no catlogo das Publicaes Dom Quixote: Mayombe (1980) -- 5.a ed. O Co e os Caluandas (1985) -- 2.a ed. Yaka (1985) -- 2.a ed. Lueji, o Nascimento dum Imprio (1990) A Gerao da Utopia (1992) -- 2.a ed. Biblioteca Nacional -- Catalogao na Publicao Pepetela, pseud. Mayombe -- 5.a ed. (Autores de lngua portuguesa) ISBN 972-20-1116-2 Publicaes Dom Quixote, Lda. Rua Luciano Cordeiro, 116 -- 2.o 1098 Lisboa Codex - Portugal Reservados todos os direitos de acordo com a legislao em vigor c 1980, Pepetela 5.a edio: Novembro de 1993 Depsito Legal n.o 68 475/93 Fotocomposio: Atelier de Imagem, Publicaes e Artes Grficas, Ltda.

Impresso e acabamento: Grfica Manuel Barbosa Filhos, Ltda.

Aos guerrilheiros do Mayombe, que ousaram desafiar os deuses abrindo um caminho na floresta obscura, Vou contar a histria de Ogun, o Prometeu africano.

Captulo I A Misso

O rio Lombe brilhava na vegetao densa. Vinte vezes o tinham atravessado. Teoria, o professor, tinha escorregado numa pedra e esfolara profundamente o joelho. O Comandante dissera a Teoria para voltar Base, acompanhado de um guerrilheiro. O professor, fazendo uma careta, respondera: -- Somos dezasseis. Ficaremos catorze. Matemtica simples que resolvera a questo: era difcil conseguir-se um efectivo suficiente. De mau grado, o Comandante deu ordem de avanar. Vinha por vezes juntar-se a Teoria, que caminhava em penltima posio, para saber como se sentia. O professor escondia o sofrimento. E sorria sem nimo. hora de acampar, alguns combatentes foram procurar lenha seca, enquanto o Comando se reunia. Pangu Akitina, o enfermeiro, aplicou um penso no ferimento do professor. O joelho estava muito inchado e s com grande esforo ele podia avanar. Aos grupos de quatro, prepararam o jantar: arroz com corned-beef. Terminaram a refeio s seis da tarde, quando j o Sol desaparecera e a noite cobrira o Mayombe. As rvores enormes, das quais pendiam cips grossos como cabos, danavam em sombras com os movimentos das chamas. S o fumo podia libertar-se do Mayombe e subir, por entre as folhas e as lianas, dispersando-se rapidamente no alto, como gua precipitada por cascata estreita que se espalha num lago. Eu, O Narrador, Sou Teoria. Nasci na Gabela, na terra do caf. Da terra recebi a cor escura de caf, vinda da me, misturada ao branco defunto do meu pai, comerciante portugus. Trago em mim o inconcilivel e este o meu motor. Num Universo de sim ou no, branco ou negro, eu represento o talvez. Talvez na, para quem quer ouvir sim e significa sim para quem espera ouvir no. A culpa ser minha se os homens exigem a pureza e recusam as combinaes? Sou eu que devo tornar-me em sim ou em no? Ou so os homens que

devem aceitar a talvez? Face a este problema capital, as pessoas dividem-se aos meus olhos em dois grupos: os maniquestas e os outros. bom esclarecer que raros so os outros, o Mundo geralmente maniqueiasta. O Comissrio Poltico, alto e magro como Teoria, acercou-se dele. -- O Comando pensa que deves voltar ou esperar-nos aqui. Dentro de trs dias estaremos de volta. Ficar algum contigo. Ou podes tentar regressar Base aos poucos. Depende do teu estado. O professor respondeu sem hesitar: -- Acho que um erro. Posso ainda andar. Temos pouca gente, dois guerrilheiros a menos fazem uma diferena grande. O plano ir por gua abaixo. -- pouco, mas talvez chegue. -- Posso discutir com o Comando? -- Vou ver. O Comissrio voltou para junto do Comandante e do Chefe de Operaes. Momentos depois, fazia sinal a Teoria. O professor levantou-se e uma dor aguda subiu-lhe pelo joelho at ao ventre. Sentiu que no poderia ir muito longe. A escurido relativa escondia-lhe as feies e ningum se apercebeu da careta. Procurou andar normalmente e aproximou-se dos trs responsveis. O Comandante Sem Medo contemplou-o fixamente, enquanto o professor se sentava, gritando calado para esconder as dores insuportveis. Estou arrumado, pensou. -- intil armares em forte -- disse Sem Medo. -- Topa-se bem que ests rasca, emboras tentes esconder. No vejo qual o mal de reconheceres que no podes continuar. Sers um peso-morto para ns. Teoria esboou um gesto de irritao. -- Eu que sei como me sinto. Afirmo que posso continuar. J fui tratado e amanh melhoro. evidente que nada est partido, s um esfolamento sem gravidade. Mesmo o perigo de infeco est afastado. -- Se amanh encontramos o inimigo -- disse o Comissrio --e for necessrio retirar rapidamente, tu no poders correr. -- Querem que corra aqui para provar que poderei? -- Sou contra a tua participao -- repetiu o Comissrio. --No vale a pena insistir. O Chefe de Operaes contemplava as sombras das rvores, deitado na lona. Ouvia a conversa dos outros, pensando na chuva que iria cair dentro de momentos e na casa quente de Dolisie, com a mulher a seu lado. -- evidente que a razo objectiva est do lado do Comissrio -- disse o Comandante. -- No entanto, eu compreendo o camarada Teoria... Por mim, se ele acha que pode continuar, no me oponho. Mas objectivamente o Comissrio tem razo...

-- E subjectivamente? -- perguntou o Comissrio. -- Subjectivamente... sabes? H vezes em que um homem precisa de sofrer, precisa de saber que est a sofrer e precisa de ultrapassar o sofrimento. Para qu, porqu? s vezes, por nada. Outras vezes, por muita coisa que no sabe, no pode ou no quer explicar. Teoria sabe e pode explicar. Mas no quer, e acho que nisso ele tem razo. -- O problema que se trata duma operao de guerra e no dum passeio. Num passeio, um tipo pode agir contra toda a razo, s porque lhe apetece ir pela esquerda em vez de ir pela direita. Na guerra no tem esse direito, arrisca a vida dos outros... -- Neste caso? No, aqui s arrisca a sua, e mesmo isso... Sei que se for necessrio bater o xangui, Teoria parecer um campeo. No tem a perna partida, tambm no exageremos. O enfermeiro diz que a coisa no grave, s dolorosa. Passar depressa. Porque no dar-lhe uma possibilidade? -- Mas possibilidade de qu? Isso que no compreendo! -- Pois no! Possibilidade de... sei l! Ele que sabe. Mas com certeza no querer dizer, e concordo com ele. O camarada Teoria tinha duas hipteses: ir ou no ir. Escolheu a primeira. Talvez mal, talvez sem muito reflectir, mas escolheu. E ele homem para no voltar atrs na sua escolha. Se foi por teimosia ou no, isso s ele o sabe. O que sei que os homens teimosos so-no geralmente at ao fim, sobretudo quando h um risco. Se quer partir a cabea, se escolheu partir a cabea, devemos dar-lhe a liberdade de partir a cabea. -- Isso liberalismo! -- L vens tu com os palavres! possvel que seja liberalismo. Mas eu no sou Comissrio Poltico. a ti que compete politizar-nos e defender a posio poltica justa. Posso ser liberalista de vez em quando, pois tenho-te sempre como anjo-da-guarda para me guiar. O Comissrio sorriu. Dez anos mais velho do que ele, o Comandante comportava-se agora como um mido para desviar a discusso. Era claro que Sem Medo j tinha uma ideia na cabea. -- E tu, camarada Chefe das Operaes, o que pensas? -- perguntou o Comandante. -- Penso que tem razo -- respondeu distraidamente o outro. -- Bem, estou em minoria -- disse o Comissrio. -- A responsabilidade tua, Comandante. Espero que no suceda nada. -- Mais uma ou menos uma responsabilidade! -- disse Sem Medo. -- Nada suceder -- replicou Teoria, sem saber se devia estar contente ou no: no se perguntara. O Chefe de Operaes adormeceu. Teoria foi deitar-se. Em breve acordariam com a chuva miudinha que primeiro s molharia a copa das rvores e comearia a cair das folhas quando j tivesse parado de chover. Tal o Mayombe, que pode retardar a vontade da Natureza. O professor pouco dormiu. A perna molhada doa-lhe atrozmente. Para que insistira? A

sua participao no modificaria em nada as coisas. Sabia que no era um guerrilheiro excepcional, nem mesmo um bom guerrilheiro. Mas insistira. Era o seu segredo. Da mesma maneira que impusera ao Comando a obrigatoriedade de ele fazer guarda como os outros guerrilheiros, embora o seu posto de professor da Base o libertasse dessa tarefa. Teoria era mestio e hoje j ningum parecia reparar nisso. Era o seu segredo. Segredo doloroso, de que o Comissrio se no apercebia, de que o Chefe de Operaes se no interessava. S Sem Medo, o veterano da guerra e dos homens, adivinhara. Sem Medo, guerrilheiro de Henda. Antes chamava-se Esfinge, ningum sabia porqu. Quando foi promovido a Chefe de Seco, os guerrilheiros deram-lhe o nome de Sem Medo, por ter resistido sozinho a um grupo inimigo que atacara um posto avanado, o que deu tempo a que a Base fosse evacuada sem perdas. Uma das muitas operaes em que rira do inimigo, sobre ele lanando balas, gracejos e insultos. Teoria sentia que o Comandante tambm tinha um segredo. Como cada um dos outros. E era esse segredo de cada um que os fazia combater, frequentemente por razes longnquas das afirmadas. Porqu Sem Medo abandonara o curso de Economia, em 1964, para entrar na guerrilha? Porqu o Comissrio abandonara Caxito, o pai velho e pobre campons arruinado pelo roubo das terras de caf, e viera? Talvez o Comissrio tivesse uma razo mais evidente que os outros, sim. Porqu o Chefe de Operaes abandonara os Dembos? Porqu Milagre abandonara a famlia? Porqu Muatinvua, o desenraizado, o marinheiro, abandonara os barcos para agora marchar a p, numa vida de aventura to diferente da sua? E porqu ele, Teoria, abandonara a mulher e a posio que podia facilmente adquirir? Conscincia poltica, conscincia das necessidades do povo! Palavras fceis, palavras que, no fundo, nada diziam. Como age em cada um deles essa dita conscincia? Os companheiros comeavam a mexer-se, despertando, e o professor no tinha afastado esses pensamentos. O Mayombe no deixava penetrar a aurora, que, fora, despontava j. As aves nocturnas cediam o lugar no concerto aos macacos e esquilos. E as guas do Lombe diminui. m de tom, espera do seu manto dourado. frente, descendo o Lombe, a menos de um dia de marcha, devia estar o inimigo. Eu, O Narrador, Sou Teoria. Manuela sorriu-me e embrenhou-se no mato, no mato denso do Amboim, onde despontava o caf, a riqueza dos homens. O caf vermelho pintava o verde da mata. Assim Manuela pintava a minha vida. Manuela, Manuela onde ests tu hoje? Na Gabela? Manuela da Gabela, correndo no mato do Amboim, o mato verde das serpentes mortais, como o Mayombe, mas que pare o fruto vermelho do caf, riqueza dos homens. Manuela, perdida para sempre. Amigada com outro, porque a deixei, porque Manuela no foi suficientemente forte para me reter no Amboim e eu escolhi o Mayombe, as suas lianas, os seus segredos e os seus exilados. Perdi Manuela para ganhar o direito de ser talvez, caf com leite, combinao, hbrido, o que quiserem. Os rtulos pouco interessam, os rtulos s servem os ignorantes que no vem pela colorao qual o liquido encerrado no frasco.

Entre Manuela e o meu prprio eu, escolhi este. Como dramtico ter sempre de escolher, preferir um caminho a outro, o sim ou o no! Porque no Mundo no h lagar para o talvez? Estou no Mayombe, renunciando a Manuela, com o fim de arranjar no Universo maniquesta o lagar para o talvez. Fugi dela, no a revi, escolhi sozinho, fechado em casa, na nossa casa, naquela casa onde em breve uma criana iria viver e chorar e sorrir. Nunca vi essa criana, no a verei jamais. Nem Manuela. A minha histria a dum alienado que se aliena, esperando libertar-se. Criana ainda, queria ser branco, para que os brancos me no chamassem negro. Homem, queria ser negro, para que os negros me no odiassem. Onde estou eu, ento? E Manuela, como poderia ela situar-se na vida de algum perseguido pelo problema da escolha, do sim ou do no? Fugi dela, sim, fugi dela, porque ela estava a mais na minha vida; a minha vida o esforo de mostrar a uns e a outros que h sempre lugar para o talvez. Manuela, Manuela, amigada com outro, dando as suas carcias a outro. E eu, aqui, molhado pela chuva-mulher que no pra, fatigado, exilado, desesperado, sem Manuela. Sem Medo foi lavar-se perto do Comissrio. Admirou o torso esguio mas musculado do outro. -- Ests em forma. Eu comeo a ficar com barriga. -- a vida do exterior -- disse o Comissrio. -- H quase seis meses que no fazes uma aco... O que me chateia avanar sem saber ao certo o que se vai fazer. O plano no me agrada. O Comandante sentou-se numa pedra. -- Esperemos que o Das Operaes tenha razo. Ele que fez o reconhecimento... -- Reconhecimento! -- disse o Comissrio. -- Desceu o rio, encontrou a picada de explorao de madeira. Chamas a isso um reconhecimento? Nem sequer sabe se os tugas tm tropa na explorao. -- Vamos saber agora. O que preciso comear. Metemos a Base no interior, j foi um passo em frente. Acabada a guerra de fronteira! Agora vamos estudando as coisas no terreno e decidindo aos poucos. De qualquer modo, esta operao est dentro das tuas teorias: aco poltica mais que militar. No sei de que te queixas... -- No isso, Comandante. Se impedirmos essa explorao de continuar a roubar a nossa madeira, um golpe econmico dado ao inimigo, est porreiro. Alm disso, vamos atacar num stio novo, o que bom em relao ao povo, que nem sequer pensa em ns... pelo menos, aparentemente. Mas o lado militar que me preocupa. No sabemos onde est o inimigo e qual o seu efectivo. Somos to poucos que no podemos permitir-nos o luxo de sermos surpreendidos. Nenhuma outra vitria justifica essa derrota. O Comandante ensaboou a cara e mergulhou-a na gua fresca do rio. Depois ficou a observar os primeiros peixes que apareciam.

-- Como sempre, tens razo. Pois esse lado ignorado da operao que me agrada. No gosto das coisas demasiado planificadas, porque h sempre um detalhe que falha. Reconheo ser um erro, que queres? E a minha natureza anarquista, como dirias. Como conhecer o inimigo? S fazendo-o sair dos quartis, pois que informaes no temos. Esta inrcia, esta apatia, tm de acabar. preciso dinamizar as coisas. J estivemos parados demasiado tempo, espera de instrues. a ns de tomarmos a deciso. S a aco pode pr a nu as faltas ou os vcios da organizao. Porque que nas outras Regies a guerra progride e aqui no cessa de recuar? Porque no temos estado altura, ns, o Movimento. Culpa-se o povo, que traidor. Desculpa fcil! o povo daqui que traidor ou somos ns incapazes? Ou as duas coisas? Para o saber, temos de agir, fazer mexer as coisas, partir as estruturas caducas que impedem o desenvolvimento da luta. O Comissrio vestiu a camisa. Sentou-se numa pedra e ficou a observar Sem Medo. Outros guerrilheiros lavavam-se mais adiante. -- Estou de acordo que preciso agir. No acredito nessa estria de que o povo traidor, a culpa foi nossa. Mas acho que preciso estudar mais as coisas, no agir toa. Sobretudo agora que fazemos uma guerra sem povo, que estamos isolados... -- Nufragos numa ilha que se chama Mayombe -- disse Sem Medo. -- Sobretudo agora que somos fracos, que temos um efectivo ridculo, devemos ser prudentes. Os nossos planos tm de ser perfeitos. Aco sim, s ela agudiza as contradies que fazem avanar, mas aco consciente. Somos cegos, pois no temos os olhos e as antenas, que so o povo. Se somos cegos, ento apalpemos o caminho antes de avanar, seno camos num buraco. Tinham acabado de se lavar. Sem Medo acendeu um cigarro. At eles chegava o cheiro de matete para o mata-bicho. O Comissrio tossiu e disse: - Tu s o Comandante, o que quiseres lei... - Somos trs no Comando, camarada. Se vocs os dois no estiverem de acordo, eu inclino-me. No sou ditador, bem sabes. - Somos trs? Vocs so dois! Sem Medo fixou-o. Uma ruga cavou-se-lhe entre os olhos. - Que queres dizer? - Simplesmente que, desde que tu e eu no estejamos de acordo, vocs so dois e eu um: O Das Operaes vai sempre pelo teu lado. At parece que nunca reparaste! - Sim, reparei. Porque faz ele isso? - No tens ideia? - Tenho duas: ou porque sou o Comandante, ou porque tu s o Comissrio. - Ests a gozar! - No estou nada. Ou porque sou o Comandante e deve apoiar-se para estar bem

comigo e poder subir... ou porque tu s o Comissrio, cargo logo a seguir ao dele, e deve estar contra ti, destruir-te, mostrar os teus erros, para apanhar o teu lugar. - Pensas assim? - E certo! - Tambm me parece que sim - disse o Comissrio. - pena! um bom militar, no meu entender. Sobretudo quando eu no participo numa operao e, assim, as suas boas ideias no podem vir ajudar o meu prestgio. Quando eu estou, ele comete erros s para me contradizer. No porque eu tenha sempre razo, mas s vezes tambm tenho... O Comandante deu-lhe uma palmada no ombro. - Tens de te habituar aos homens e no aos ideais. O cargo de Comissrio espinhoso, por isso mesmo. O curioso que vocs, na vossa tribo, at esquecem que so da mesma tribo, quando h luta pelo posto. - O que no quer dizer que no h tribalismo, infelizmente. Alis, no me venhas dizer que com os kikongos no se passa o mesmo. - Eu sou kikoogo? Tu s kimbundo? Achas mesmo que sim? - Ns, no. Ns pertencemos minoria que j esqueceu de que lado nasce o Sol na sua aldeia. Ou que a confunde com outras aldeias que conheceu. Mas a maioria, Comandante, a maioria? - o teu trabalho: mostrar tantas aldeias aos camaradas que eles se perdero se, um dia, voltarem sua. A essa arte de desorientao se chama formao poltica! E foram tomar o matete. Eu, O Narrador, Sou Teoria. os meus conhecimentos levaram-me a ser nomeado professor da Base. Ao mesmo tempo, sou instrutor poltico, ajudando o Comissrio. A minha vida na Base preenchida pelas aulas e pelas guardas. Por vezes, raramente, uma aco. Desde que estamos no interior, a actividade maior. No actividade de guerra, mas de patrulha e reconhecimento. Ofereo-me sempre para as misses, mesmo contra a opinio do Comando: poderia recusar? Imediatamente se lembrariam de que no sou igual aos outros. Uma vez quis evitar ir em reconhecimento: tivera um pressentimento trgico. Havia to poucos na Base que o meu silncio seria logo notado. Ofereci-me. a alienao total. Os outros podem esquivar-se, podem argumentar quando so escolhidos. Como o poderei fazer, eu que trago em mim o pecado original do pai-branco? Lutamos no estava de acordo com a proposta do chefe de grupo Verdade. Mal o Comandante surgiu, Lutamos disse: - Camarada Comandante, o camarada Verdade acha que devamos apanhar os

trabalhadores da explorao e fuzil-los, porque trabalham para os colonialistas. Diz que isso o que se decidiu fazer. O Comandante sentou-se e meteu a colher na tampa da gamela, sem responder. O Comissrio encostou-se a uma rvore, comendo, observando o grupo. - Deixa l, p! - disse Muatinvua. - Esses trabalhadores so cabindas, por isso que te chateias. Mas so mesmo traidores, nem que fossem lundas ou kimbundos... - Como ? - disse Lutamos, nervoso. - E os trabalhadores da Diamang? E os da Cotonang? So traidores? Tm de trabalhar para o colonialista... - So, sim, p - disse Muatinvua. - Depois de tanto tempo de guerra, quem no est do nosso lado contra ns. Estes aqui esto mesmo perto do Congo. Talvez mesmo que ouvem a nossa rdio. Vem que h explorao. Ento porque no se juntam a ns? Deixa! s varrer, p! Milagre esperou a reaco de Lutamos. Como este, ofendido, no respondia, Milagre falou para o Comissrio: - Que que o camarada Comissrio pensa? - Penso que devemos partir, por isso no h mais papos. Discutiremos depois. Mas ai de quem tocar num trabalhador ou num homem do povo sem que se d ordem. Ai dele! - O Muatinvua est a brincar com o Lutamos - disse o Comandante. - Estes lumpens gostam sempre de brincar com coisas srias... Muatinvua riu, acendendo um cigarro. Piscou o olho para Lutamos. - Mas o aviso do Comissrio srio - continuou Sem Medo. - Quem vier fazer tribalismo contra o povo de Cabinda ser fuzilado. Fuzilado! No estamos a brincar. O silncio pesado que seguiu a afirmao de Sem Medo no foi afastado para trs, como as lianas que nos batem na cara. O silncio era o Mayombe, sempre ele, presente, por muitas lianas que se afastassem para trs. Caminharam a direito, atravessando constantemente o rio, para encurtar caminho. Os primeiros minutos foram o inferno para Teoria. Agora ia melhor. Vencera o primeiro combate, o mais duro. Sabia que vencera mesmo todo o combate. Avanaram distanciados uns dos outros, em fila indiana, por entre as folhas largas de xikuanga, onde vivem os elefantes. O cheiro de elefante era persistente. Pena que no viemos caar, pensou Ekuikui, o caador; daria comida para muito tempo. E, ao atravessarem de novo o rio, depararam com uma manada de elefantes. Instintivamente, Ekuikui levantou a arma. - Ningum dispara! - gritou o Chefe de Operaes. Ekuikui contemplava os elefantes que se afastavam calmamente, agitando as trombas e as enormes orelhas, nada alarmados por aquela fila de homens de verde que saam do verde imenso do Mayombe. O Comissrio bateu-lhe no ombro: - Viemos procurar o tuga. Se fazemos fogo, o tuga pode ouvir e ficar de preveno. Ekuikui, o caador do Bi, abanou tristemente a cabea.

- Eu sei, camarada Comissrio. Lutamos meditava no que discutira com os camaradas. O Comandante dissera que era brincadeira. De Muatinvua, sim; mas Verdade no brincava. Lutamos ia distrado, frente da coluna, guiando-a numa zona praticamente desconhecida. Em breve chegariam picada que servia para o transporte das arvores derrubadas. Tambm esse povo que no apoia! S mesmo fuzilando. O pai dele, a me, os irmos? Todos fuzilados? O povo no apoiava, porque a guerra no crescia. O povo no apoiava, porque vieram fazer a guerra em Cabinda sem explicar bem antes por que a faziam, era ainda Lutamos uma criana. Ao dobrarem uma montanha, o zumbido duma serra mecnica fez-se ouvir, atravs dos mil zumbidos do Mayombe. O rudo vinha da direita, muito perto deles. Mas Lutamos, dentro de si, continuava a avanar. - Que que ele tem? - segredou o Comandante a Ekuikui. Lutamos distanciava-se do resto do grupo, que tinha estacado ao ouvir o rudo. O Comissrio correu atrs dele, evitando fazer demasiado barulho. - Est a fazer de propsito - disse Milagre. - Vai avisar os homens - disse Pangu-Akitina. - Vai sabotar a misso - disse Verdade. - Calem-se, porra! - disse o Comandante. - Esperem saber para falar. O Chefe de Operaes tinha ido atrs do Comissrio. Lutamos parara ao ouvir o seu nome chamado atrs. Espantou-se ao ver o Comissrio com cara de caso e, mais atrs, o Chefe de Operaes. A um gesto do Comissrio, apercebeu-se do zumbido forte. - Porque que avanaste? - Estava distrado. Os outros? - Vamos voltar atrs. E presta ateno. O Chefe de Operaes nada disse; deixou-os passar por ele e limitou-se a segui-los. Os guerrilheiros olhavam Lutamos com desconfiana, mas ele no notou. - Que houve? - perguntou Sem Medo. - Estava distrado e no reparou em nada - disse o Comissrio. O Comandante esboou um sorriso, que logo desapareceu. - Temos um guia s dimenses da Regio! Bem. Verdade e Muatinvua vo pela esquerda, com o Comissrio. Milagre, Pangu Akitina e o Das Operaes vo pela direita. Ns ficamos aqui. Vejam o que h e voltem. Cuidado, nada de tiros! preciso saber se h soldados. Sem Medo sentou-se, logo imitado por alguns companheiros. Teoria esfregava o joelho. Ekuikui estudava as rvores, procurando vestgios de macacos. Fazia-o por

hbito, o seu passado de caador nos planaltos do Centro tinha-o marcado. Mundo Novo, sentado, limpava as unhas com o punhal. As mos eram finas e as unhas compridas. Um perfeito intelectual, pensou Sem Medo. Lutamos alheara-se do grupo, os ouvidos atentos. O zumbido da serra continuava a cortar o ar. De repente, a serra parou e ouviram-se gritos. Os guerrilheiros levantaram-se, em posio. Rudos de ramos partidos e, em seguida, um fragor que cobriu todo o tumulto do Mayombe e ficou a ressoar nas copas das rvores, at se ir diluindo, aos poucos, pelos vales do Lombe. - Foi a rvore que caiu - disse o Comandante. E voltou a sentar-se. Os outros permaneceram de p, salvo Teoria. Pouco depois, o zumbido da serra chegava de novo at eles. - Est tudo normal - disse Mundo Novo. E sentou-se tambm. Lutamos est nervoso, inquieto, notou Sem Medo. O Teoria est a sofrer, mas finge que no. O Ekuikui... esse sempre o mesmo. Ingratido est desconfiado do Lutamos. Mundo Novo deve estar a pensar na Europa e nos seus marxistas-leninistas. Os pensamentos do Comandante no iam mais longe. Eram fotografias que tirava aos elementos do grupo e que classificava num ficheiro mental, sem mais se preocupar. Quando necessrio, servia-se dessas informaes para ter uma imagem fiel de cada guerrilheiro e saber que tarefa dar a cada um. O primeiro grupo a chegar foi o do Chefe de Operaes. Chegou-se ao Comandante e disse: - Vimos seis trabalhadores. Nenhum soldado. - Foram eles que abateram a rvore? - No. Estes tm machados. A serra est no grupo da esquerda. Atrs deles h uma picada para o transporte da madeira. - Bem. - Comandante, penso que melhor vigiar o Lutamos. - Porqu? - No acredito na distraco dele. Ele ia mas avisar os trabalhadores, afugent-los... O Comandante olhou-o em silncio. Franziu a boca. O outro continuou: - H momentos que ele tem um comportamento estranho. Os olhos dele no so bons. O Comissrio no v essas coisas, acreditou logo nele. Acho que se tem de fazer um interrogatrio. O Comandante no respondeu. Pensou que tinha uma vontade louca de fumar. Ali no podia, o cheiro de cigarro penetrava na mata. Quando o grupo do Comissrio chegou, Sem Medo ps-se de p. - Ento?

- So oito trabalhadores, mais um branco que guia o camio. No h soldados vista. - E o camio? - Est l, parado, com o ngueta a fumar e a ouvir rdio. Mais ao lado deve haver um buldozer para carregar os troncos no camio. Que que se faz? O Comandante chamou o Chefe de Operaes. Reuniram-se os trs. - Que pensas que se deve fazer? - perguntou Sem Medo ao Das Operaes. - Acho que devemos fazer uma curva, para apanharmos a picada mais frente e chegarmos estrada. - E tu, Comissrio? O Comissrio mediu as palavras, antes de falar. - Penso que deveramos aproveitar esta ocasio. Podamos apanhar os trabalhadores, recuperar a serra, que leve de transportar, destruir o buldozer e o camio. Era uma aco que fazia efeito e era esse o nosso objectivo. Porqu mudar? O Chefe de Operaes interrompeu: - Ns somos militares. Ns devemos combater o inimigo. Por isso penso que a primeira aco nesta rea devia ser militar. Os soldados devem andar vontade na estrada. Esta picada vai de certeza dar estrada. Uma emboscada era muito melhor. Os trabalhadores? No vejo qual o interesse. Se ainda fosse para os fuzilar... Mas no. Para os politizar! Vocs acreditam que vamos politizar alguma coisa? Aqui s a guerra que politiza. O Comandante disse: - Comissrio, sei que uma operao poltica e econmica tem interesse. O problema o seguinte: se destrumos estes aparelhos, a aco militar est estragada, pois os tugas ficaro prevenidos de que andamos por aqui... - Claro - cortou o Comissrio. - Mas isso ser mais uma razo para que eles andem na estrada. So forados a aumentar as patrulhas, pois aqui h populao e eles querem cortar-nos dela. Eles andaro ainda mais e teremos pois mais oportunidade de lhes dar porrada. Qual o problema? No mataremos vinte na primeira emboscada, pois estaro mais atentos? Bem, mataremos dez. A guerra popular no se mede em nmero de inimigos mortos. Ela mede-se pelo apoio popular que se tem. - Esse apoio s se consegue com as armas - disse o Das Operaes. - No s. Com as duas coisas. Com as armas e com a politizao. Temos de mostrar primeiro que no somos bandidos, que no matamos o povo. O povo daqui no nos conhece, s ouve a propaganda inimiga, tem medo de ns. Se apanharmos os trabalhadores, os tratarmos bem, discutirmos com eles e, mais tarde, dermos uma boa porrada no tuga, ento sim, o povo comea a acreditar e a aceitar. Mas um trabalho longo. De qualquer modo, esta aco pode no impedir que se faa tambm uma emboscada. - Questo de tempo e de comida - disse Sem Medo.

- Os camaradas aceitaro passar um pouco de fome, se lhes explicarmos o interesse da coisa. - Bem - disse o Comandante -, vamos fazer como tu queres. Vamos rodear os grupos, aprision-los, destruir o que se puder, apanhar a serra, etc. Depois recuamos com os trabalhadores e estudaremos a possibilidade de se voltar estrada para fazer a emboscada. Eu vou com dois camaradas pr-me na picada, para l do camio. Se ele fugir, ns varremo-lo. Se aparecer tropa, vinda da estrada, ns travamo-la. Vocs vo cada um do lado que reconheceram. Evitem fazer barulho. Cerquem-nos e, s dez em ponto, prendam-nos. Acertem os relgios. O lugar de encontro aqui, se no houver novidade. Se o tuga aparecer, encontramo-nos onde dormimos ontem. - O Lutamos com quem vai? - perguntou o Das Operaes. - Comigo - disse Sem Medo. O grupo do Chefe de Operaes afastou-se imediatamente. Os outros dois grupos foram juntos at prximo dos trabalhadores. O Comandante, Lutamos e Teoria avanaram ento ao longo da picada, para fecharem o cerco. A serra zumbia e cobria os rudos das folhas pisadas. Mesmo os pssaros estavam desorientados e no fugiam. O Comissrio avanou prudentemente, seguido dos seus homens. As folhas secas estalavam sob as botas, mas os estalidos eram abafados pelo rudo da serra devastando o Mayombe. Os guerrilheiros encavalitaram-se num enorme tronco cado. Deixara de respirar, monstro decepado, e os ramos cortados juncavam o solo. Depois de a serra lhe cortar o fluxo vital, os machados tinham vindo separar as pernas, os braos, os plos; ali estava, lvido na sua pele branca, o gigante que antes travava o vento e enviava desafios s nuvens. Imvel mas digno. Na sua agonia, arrastara os rebentos, os arbustos, as lianas, e o seu ronco de morte fizera tremer o Mayombe, fizera calar os gorilas e os leopardos. Os guerrilheiros dispersaram para avanar. A serra mecanica - abelha furando um morro de salal - continuava a sua tarefa. Havia o mecnico, que accionava a serra, e o ajudante, com a lata de gasolina e de leo; mais atrs, quatro operrios com machados. Todos to embebidos na tarefa que no repararam nas sombras furtivas. Nem protestaram, quando viram os canos das ppchs virados para eles. Os olhos abriram-se, o imenso branco dos olhos comendo a cara toda, a boca aberta num grito que no ousou sair e ficou vibrando interiormente. O Comissrio e Ekuikui avanaram para a serra. Ekuikui encostou o cano da arma s costas do mecnico: - No mexe! O mecnico olhou por cima do ombro e compreendeu rapidamente a situao. Fez parar a serra. O silncio que se seguiu furou os ouvidos dos guerrilheiros, subiu s copas das rvores e ficou pairando, misturado neblina que encobria o Mayombe. - Todos para aqui, vamos! - ordenou o Comissrio. Juntaram os prisioneiros, revistaram-nos para procurar armas: retiraram dois canivetes. - H outros? - perguntou o Comissrio. - Ali - murmurou o mecnico, apontando o stio para onde se dirigira o Chefe de Operaes.

- Soldados? - S no quartel. A dez quilmetros. - O branco? - Est no camio. - Vamos. E no tentem fugir, ningum vos far mal. O cortejo partiu em direco ao ponto de encontro. Muatinvua vigiava o mecnico, que carregava a serra. Os outros trabalhadores tremiam. Quando a serra parou de zumbir, o grupo do Chefe de Operaes ainda no tinha cercado os trabalhadores que, a grupos de dois, atacavam a machado os colossos do Mayombe. Pangu Akitina, que ia frente, travou logo: estavam a dez metros do primeiro par de trabalhadores; os outros pares estavam distanciados uns dos outros. O silncio chamou a ateno dos operrios, que se fizeram sinais, esperando a queda da rvore. Os guerrilheiros esperavam, o corao apertado, que eles retomassem o trabalho. Mas o fragor da queda da rvore no vinha e o mais velho dos trabalhadores disse: - H qualquer coisa. O motor parou toa. Todos espetavam as orelhas. Os guerrilheiros pararam de respirar, enroscados ao verde da mata. Um dos trabalhadores mais afastado abandonou o machado e dirigiuse para o par que estava mais prximo dos guerrilheiros. O Chefe de Operaes avaliou a situao: tinha de agir rpido. - No se mexam! - gritou, saltando para perto do trabalhador velho. A surpresa gelou os mais prximos. Mas os outros abandonaram os machados e correram para o mato. Alguns guerrilheiros perseguiramnos. - No disparem! - gritou Mundo Novo, correndo atrs dos fugitivos. Mas o Chefe de Operaes, para assustar os trabalhadores, fez uma rajada para as folhas. Milagre, voando sobre os troncos cados, aproximou-se dum trabalhador. De repente, uma baixa e um regato. O trabalhador lanou-se de mergulho e foi rastejando sobre as pedras do rio pouco profundo. Milagre levava a bazuka e hesitou: gastaria um obus no ar para o travar? O trabalhador desapareceu na curva do regato, rasgando o ventre nas pedras, e Milagre voltou para trs, trazendo como trofu a catana que cara da cintura do homem. Mundo Novo fez fogo para o ar e o trabalhador que perseguia parou, as pernas trementes. Era um rapaz. Com afeio, quase carinhosamente, Mundo Novo conduziuo para o grupo dos trs outros prisioneiros. - Onde est o buldozer? - perguntou o Das Operaes. O mais velho dos trabalhadores apontou a direco. Tinha uma perna torta. Deve ter

sido uma rvore que lhe caiu em cima, pensou Mundo Novo. - Leva-nos l. O grupo foi avanando para o stio da picada, onde devia estar Sem Medo. O silncio da serra parando subitamente no interrompeu as reflexes do portugus, que se sentava ao volante do camio. Acendera mesmo um cigarro, segundo se pde aperceber Sem Medo. Mas, quando a primeira rajada soou, o tuga acordou do torpor e tudo nele se ps a vibrar. Sem querer saber o que se passava, ps o camio em marcha e arrancou. A vinte metros dele, emboscados, os guerrilheiros visavam-no. Sem Medo viu que o branco suava e fazia caretas, acelerando. - No atirem! - gritou Sem Medo. Lutamos ia protestar. - Atirem s para as rodas! Foi nesse momento que se ouviu a segunda rajada, feita por Mundo Novo, que se confundiu com a rajada de Lutamos. Um pneu estoirou, mas o camio j passara e continuava a rolar sobre a junta. O tuga esmagava o acelerador, as duas mos aduncas eram tenazes sobre o volante. Lutamos virou-se para Sem Medo. - Porqu?... - Era um civil. - E o buldozer?-lembrou Teoria. Correram os trs para o stio onde devia estar o buldozer. Encontraram-se ento com o grupo do Chefe de Operaes. - Deixaram fugir o ngueta? - perguntou este. - Sim. E demos-lhe mesmo uma Guia de Marcha - disse Sem Medo, de mau humor. O motorista do buldozer tinha-se metido no mato, ao ouvir a primeira rajada. Os guerrilheiros rodearam o buldozer. - Bazukem-no e depois metam fogo - ordenou o Comandante. Um trabalhador pediu timidamente a Mundo Novo autorizao para ir um pouco para o lado. E apertava o ventre. - Caga a! - disse Mundo Novo. O estoiro da bazuka rivalizou com o de um gigante desmoronando-se. Depois de o fumo dispersar, viu-se o motor do buldozer completamente destrudo. Ao cheiro da plvora veio misturar-se um cheiro mais caracterstico. Mundo Novo olhou Sem Medo e este olhou o trabalhador que pedira para se afastar.

- Este gajo... - s teve tempo de exclamar Sem Medo. Subitamente, dobrou-se numa gargalhada que atroou sobre o Mayombe. A gargalhada de Sem Medo era uma ofensa incomensurvel ao deus vegetal que obrigava as vozes a sarem ciciadas. Os guerrilheiros, a princpio, pensaram que a bazukada, disparada de perto, tivesse dado a volta cabea de Sem Medo. Mas depois viram o trabalhador de p, as pernas afastadas, o ricto bestificado em xtase e as fezes a deslizarem-lhe pelas coxas, e a pingarem sobre o cho. O Comandante, acabando por dominar-se, fez uma cara de desgosto e ordenou que se lanasse fogo ao buldozer, visto que nada podiam recuperar. Apanharam lenha seca, empilharam-na sobre a mquina, regaram a lenha de gasolina e pegaram fogo. As chamas elevaram-se, numa lambidela rpida, aos ramos mais prximos das rvores. Dois guerrilheiros levaram os quatro trabalhadores para um stio mais afastado, donde nada pudessem ver, enquanto Ingratido do Tuga colocava trs minas antipessoais perto do buldozer. Quando as minas estavam bem camufladas, Sem Medo escreveu num bocado de papel: sacanas colonialistas, vo merda, vo para a vossa terra. enquanto esto aqui, na terra dos outros, o patro est a comer a vossa mulher ou irm, c nas beras! E deixou o bilhete bem vista, no meio do terreno minado. Os guerrilheiros sorriam. - O sacana que quiser ler, vai pelo ar - disse o Das Operaes. - Foi pena no reforar as minas com dinamite - disse Ingratido do Tuga - mas no d tempo. - Vamos - disse Sem Medo. O grupo avanou pelo Mayombe, a caminho do ponto de recuo, os prisioneiros no meio. No ponto de recuo, contaram os prisioneiros feitos pelos dois grupos: dez. Sem Medo reparou no mecnico, que tinha ar mais instrudo que os outros. Perguntou-lhe: - Aonde vai dar a picada? - estrada. - Qual estrada? - Entre Sanga e Caio Nguembo. A estrada est a uns cinco quilmetros. -- Quantos soldados h no quartel? O mecnico hesitou. Olhou os companheiros. Destes no vinha nenhuma ideia. - No sei. Talvez cem... - Tugas? -- E angolanos. Tropas Especiais... O interrogatrio continuou e alargou-se aos outros prisioneiros. O mido capturado por

Mundo Novo tinha catorze anos e chamava-se Antnio. Falava mais vontade que os outros. O mecnico estava desconfiado, os olhos inquietos passavam de uns a outros, fixando-se mais em Sem Medo. Lutamos pedira autorizao para falar com eles em fiote, mas o Das Operaes respondeu que no valia a pena. O Comissrio ia intervir. Sem Medo pegou-lhe no brao, exigindo silncio. E Sem Medo mantinha o interrogatrio em portugus, lngua que todos falavam, bem ou mal. O Comando reuniu em seguida. Decidiu guardar os trabalhadores por um dia, caminhando em direco ao Congo. Depois libertariam os trabalhadores e voltariam para o mesmo stio, entre a picada e a estrada. Nesse dia, os tugas no ousariam aproximar-se. No dia seguinte, os trabalhadores iriam dizer que os guerrilheiros tinham voltado ao Congo e os soldados cairiam, sem contar, numa emboscada. O que faria pensar que vrios grupos actuavam ali. - Habituados a que ns faamos uma aco e depois recuemos para o Congo, nunca se apercebero de que o mesmo grupo - disse Sem Medo. - E isso influir no esprito do povo, a quem mostraremos uma fora desconhecida, e no do tuga, que ficar certamente desorientado. O que preciso no fazer erros. - Foi pena o tuga ter escapado - disse o Das Operaes. - Que amos fazer? Disparar sobre ele e mat-lo, como faz a UPA? um civil. Tinha uma tal cara de medo! No devemos mostrar coragem assassinando civis, mesmo que colonialistas... Tentmos apanh-lo vivo, mas fugiu. Assim at foi melhor! Que amos fazer dele? Libert-lo como aos outros? Haveria uma revolta dos guerrilheiros. Lev-lo para o Congo? Com que pretexto? - Acho que fizeste bem - disse o Comissrio. - No devemos ir contra a populao civil, embora ela seja hostil. Para qu dar argumentos ao Governo? O Chefe de Operaes nada disse. Levantou-se e foi mata. - Falaste do bilhete que deixaste no buldozer, mas no disseste qual o teor dele, Comandante. Sem Medo explicou-lhe o que dizia o bilhete. O Comissrio riu e depois disse: - Muito pouco poltico! - Que querias? Que copiasse uma citao de Marx? A nica poltica que esses tugas compreendem essa. Almoaram ali mesmo, os guerrilheiros e os trabalhadores. As gamelas foram passadas de mo em mo. Um trabalhador tinha um mao de cigarros, que distribuiu pelos guerrilheiros. As palavras soltaram-se, deitados perto do Lombe, e s ento os trabalhadores descobriram que Lutamos tambm era de Cabinda. Pronto, pensou Sem Medo, viram que h um deles entre ns, j tm confiana. O tribalismo s vezes ajuda. Mas que tem o Das Operaes que est to atento conversa? Ah! Tenta captar o que diz Lutamos, espiar se no trai. Com que prazer este tipo no comeria o Lutamos, frito com leo de palma. .. Eu, o Narrador, Sou Milagre.

Nasci em Quibaxe, regio kimbundo, como o Comissrio e o Chefe de Operaes, que so dali prximo. Bazukeiro, gosto de ver os camies carregados de tropa serem travados pelo meu tiro certeiro. Penso que na vida no pode haver maior prazer. A minha terra rica em caf, mas o meu pai sempre foi um pobre campons. E eu s fiz a Primeira Classe, o resto aprendi aqui, na Revoluo. Era miado na altura de 1961. Mas lembro-me ainda das cenas de crianas atiradas contra as rvores, de homens enterrados at ao pescoo, cabea de fora, e o tractor passando, cortando as cabeas com a lmina feita para abrir terra, para dar riqueza aos homens. Com que prazer destru h bocado o buldozer! Era parecido com aquele que arrancou a cabea do meu pai. O buldozer no tem culpa, depende de quem o guia, como a arma que se empunha. Mas eu no posso deixar de odiar os tractores, desculpem-me. E agora o Lutamos fala aos trabalhadores. Talvez explique que os quis avisar antes, mas que foi descoberto. E deixam-no falar! O Comandante no liga, ele no estava em Angola em 1961, ou, se estava, no sofreu nada. Estava em Luanda, devia ser estudante, que sabe ele disso? E o Comissrio? Nestas coisas o Comissrio um mole, ele pensa que com boas palavras que se convence o povo de Cabinda, este povo de traidores. S o Chefe de Operaes... Mas esse o terceiro no Comando, no tem fora. E eu fugi de Angola com a me. Era um miado. Fui para Kinshasa. Depois vim para o MPLA, chamado pelo meu tio, que era dirigente. Na altura! Hoje no , foi expulso. O MPLA expulsa os melhores, s porque eles se no deixam dominar pelos kikongos que o invadiram. Pobre MPLA! S na Primeira Regio ele ainda o mesmo, o movimento de vanguarda. E ns, os da Primeira Regio, forados a fazer a guerra aqui, numa regio alheia, onde no falam a nossa lngua, onde o povo contra-revolucionrio, e ns que fazemos aqui? Pobre MPLA, longe da nossa Regio, no pode dar nada! Caminharam toda a tarde, subindo o Lombe. Pararam s cinco horas, para procurarem lenha seca e prepararem o acampamento: s seis horas, no Mayombe, era noite escura e no se poderia avanar. A refeio foi comum: arroz com feijo e depois peixe, que Lutamos e um trabalhador apanharam no Lombe. Os trabalhadores no tentavam fugir, se bem que mil ocasies se tivessem apresentado durante a marcha. Sobretudo quando Milagre caiu com a bazuka e os guerrilheiros vieram ver o que se passara; alguns trabalhadores tinham ficado isolados e sentaram-se, espera dos combatentes, sem escaparem. A confiana provocava conversas animadas. Aproveitando algumas informaes colhidas, o Comissrio falou para os trabalhadores, enquanto os garfos levavam o arroz com feijo ao seu destino. - Vocs ganham vinte escudos por dia, para abaterem as rvores a machado, marcharem, marcharem, carregarem pesos. O motorista ganha cinquenta escudos por dia, por trabalhar com a serra. Mas quantas rvores abate por dia a vossa equipa? Umas trinta. E quanto ganha o patro por cada rvore? Um dinheiro. O que que o patro faz para ganhar esse dinheiro? Nada, nada. Mas ele que ganha. E o machado com que vocs trabalham nem sequer dele. E vosso, que o compram na cantina por setenta escudos. E a catana dele? No, vocs compram-na por cinquenta escudos. Quer dizer, nem os instrumentos com que vocs trabalham pertencem ao patro. Vocs so obrigados a compr-los, so descontados do vosso salrio no fim do ms.

As rvores so do patro? No. So vossas, so nossas, porque esto na terra angolana. Os machados e as catanas so do patro? No, so vossos. O suor do trabalho do patro? No, vosso, pois so vocs que trabalham. Ento, como que ele ganha muitos contos por dia e a vocs d vinte escudos? Com que direito? Isso explorao colonialista. O que trabalha est a arranjar riqueza para o estrangeiro, que no trabalha. O patro tem a fora do lado dele, tem o exrcito, a polcia, a administrao. com essa fora que ele vos obriga a trabalhar, para ele enriquecer. Fizemos bem ou no em destruir o buldozer? - Fizeram bem - responderam os trabalhadores. - E esta serra mecnica, a quem que ela pertence verdadeiramente? O patro comprou-a aos alemes, mas onde arranjou dinheiro para compr-la? Quem explorou ele para comprar esta serra? Respondam. - Aos trabalhadores - respondeu o jovem Antnio. - Esta serra pertence-vos, pertence ao povo. Por isso no pode voltar para o colonialista. A gente dava-a a vocs, porque vossa, mas que vo fazer com ela? Podem vend-la? Podem utiliz-la? - No. melhor levarem a serra - respondeu o trabalhador mais velho, o que tinha as pernas tortas. - Ns no podemos utilizar isso. - O que vosso, os machados, as catanas, os canivetes, os relgios, o dinheiro, tudo o que vosso, vocs vo levar convosco. E vo levar os machados e catanas dos que fugiram, para lhes entregar. Mas o que do colonialista fica connosco. Os tugas dizem que somos bandidos, que matamos o povo, que roubamos. Fizemo-vos mal? Matmos algum? Mesmo o branco, podamos mat-lo, no quisemos. No somos bandidos. Somos soldados que estamos a lutar para que as rvores que vocs abatem sirvam o povo e no o estrangeiro. Estamos a lutar para que o petrleo de Cabinda sirva para enriquecer o povo e no os americanos. Mas como ns lutamos contra os colonialistas, e como os colonialistas sabem que, com a nossa vitria, eles perdero as riquezas que roubam ao povo, ento eles dizem que somos bandidos, para que o povo tenha medo de ns e nos denuncie ao exrcito. A conversa prolongava-se, ora em portugus com o Comissrio e Teoria, ora em fiote com Lutamos. Os trabalhadores contaram o que sabiam dos quartis da Regio, das condies de vida, do que pensavam as populaes. Sem Medo escutava, mas estava tambm atento aos comentrios do resto dos guerrilheiros. Estes dividiam-se grosso modo em dois grupos: os kimbundos, volta do Chefe de Operaes, e o grupo dos outros, os que no eram kimbundos, os kikongos, umbundos e destribalizados como o Muatinvua, filho de pai umbundo e me kimbundo, nascido na Lunda. Mundo Novo era de Luanda, de origem kimbundo, mas os estudos ou talvez a permanncia na Europa tinham-no libertado do tribalismo. Mantinha-se isolado, limpando a arma luz da fogueira. Quando se deitaram, o Comissrio perguntou a meia voz: - Ento, que pensas desta operao? - Falas que nem um padre - disse Sem Medo. - Se no acreditaram em ti, pelo menos so suficientemente bem educados para no o mostrarem... Penso que sim, que preciso repetir aces deste gnero, este povo pode ser mobilizado. Se tivssemos aqui uma organizao slida, sim. Mas que queres? Com a organizao que temos, com a bandalheira que h, estas

aces lembram-me demasiado as promessas do Seminrio. Por isso te falei em padres. como se prometesses a vida eterna no Alm, quando na Terra fazes o mximo por tornar a vida insuportvel. - No percebo o que queres dizer. - Quando estava no Seminrio, uma coisa sempre me intrigou, era uma nota discordante. Foi essa nota discordante que me empurrou para o sacrilgio e, mais tarde, para o atesmo. Porque que os padres, to puros, to castos, to bondosos e to santos, que nos preparavam para servir Deus, para merecer Deus, prometendonos as delcias da vida celestial, nos faziam a vida negra no Seminrio, eram to arbitrrios, to cruis, to sdicos nos tormentos que inventavam em nossa inteno. Isso levou-me a desejar o que os horrorizava, a querer conhecer o que eles temiam, a procurar o que eles nos proibiam de ver ou ouvir ou sentir. Foi com um misto de terror sagrado, de prazer carnal e de prazer de vingana que tive a primeira mulher. Em pleno Seminrio, num anexo; era uma criada que aliviava os seminaristas e, quem sabe?, alguns padres. Eu tinha 14 anos. Confessei-me na manh seguinte e escondi o facto, pois seria expulso: j no acreditava no segredo da confisso. E comunguei em pecado mortal, pois, se o no fizesse, notar-se-ia que qualquer coisa se passava. E continuei a confessar-me, sem coragem de lavar o sacrilgio. E continuei a encontrarme com a criada nos anexos e a ter cada vez maior prazer no amor e, sobretudo, no facto de ser um amor perverso, envenenado pelo sacrilgio que nunca corrigiria. At que, aos 16 anos, j fora do Seminrio - donde finalmente fui expulso por ameaar de bater num padre branco que fazia racismo aberto -, tornou-se intolervel o medo do Inferno, senti-me danado, perseguido por mil crimes e por todos os prazeres ignbeis que praticara. A certeza de que estava perdido foi to grande que decidi que o Inferno no existia, no podia existir, seno eu estaria condenado. Ou negava, matava o que me perseguia, ou endoidecia de medo. Matei Deus, matei o Inferno e matei o medo do Inferno. A aprendi que se devem enfrentar os inimigos, a nica maneira de se encontrar a paz interior. - No vejo a relao - disse o Comissrio. - Eu tambm no. A princpio via-a, agora j nem sei porque falei nisso. Mas tu a falar, a prometer liberdade, fizeste-me lembrar o Seminrio, que queres? E tapou a cabea com o cobertor, caindo imediatamente em sono profundo. O Comissrio ficou a pensar nas palavras de Sem Medo, a olhar as chamas da fogueira que modificavam as feies dos homens e das coisas, e abriam as confidncias. Depois do mata-bicho, despediram-se dos trabalhadores, devolvendo-lhes tudo o que lhes pertencia. Tudo no, pois foi impossvel encontrar a nota de cem escudos que tinham retirado dos bolsos do mecnico, e que Ekuikui guardara. Tinham revistado os bolsos, a roupa, o sacador de Ekuikui, e no a encontraram. Ekuikui chorava, dizendo que ainda noite estava no seu bolso, quisera entreg-la ao Comissrio, este dissera que no valia a pena, que ficasse com Ekuikui e que, de manh, seria restituda ao dono. Durante a noite desaparecera, algum a roubara, protestava o ex-caador. Mas ele no a escondera, nunca roubaria um homem do povo, sabia o que isso significava para o Movimento. Despediram-se dos trabalhadores, o mecnico dizendo que no tinha importncia, era pouco dinheiro. O que queria era ver-se livre e o problema da nota atrasava a partida e a liberdade. Quando os guerrilheiros avanaram cerca de um quilmetro, subindo o rio, o Comandante mandou estacar.

- Reunio. Vamos sentar. Os guerrilheiros obedeceram. Sem Medo continuou: - Vamos voltar para trs e fazer uma emboscada na estrada. Os trabalhadores vo dizer que voltmos para o Congo e os tugas no esperaro encontrar-nos na estrada. Mas preciso tomarmos um bom avano. Claro que no temos comida suficiente para estes dias a mais que passaremos longe da Base. Teremos de fazer sacrifcio. Mas, se a operao for bem sucedida, o Comando pensa que vale a pena passar uns dois dias sem comer. Se os camaradas estiverem de acordo. Esto de acordo em aguentar mais um bocado e dar uma porrada valente no tuga? Os guerrilheiros, sem excepo, aprovaram entusiasticamente. H muito no tinham encontro com o exrcito colonial. - Bem - disse Sem Medo, sorrindo -, ento temos de deixar os trabalhadores ganharem um bom avano. Entretanto, vamos aproveitar para ver este caso dos cem escudos. Isto grave, pois pode desmentir tudo o que dissemos. Quer dizer que, afinal, somos mesmo bandidos, que roubamos o povo. O sacana que ficou com o dinheiro um contra-revolucionrio, alm de ser um ladro barato, pois sabotou toda a boa impresso que podamos ter causado aos trabalhadores. melhor que ele diga j onde est o dinheiro... Quanto mais tarde, pior! Ningum falou. O Comissrio reforou as palavras do Comandante. Ningum se manifestou. O Comandante mandou ento vir um por um junto dele, para ser revistado. Foi nesse momento que o Chefe de Operaes disse: - Mas, que eu saiba, o Ekuikui que tinha o dinheiro. Porque se pensa que no foi ele e que foi outro? Pode ter enterrado a nota, ou escondido atrs dum pau, para que no se visse ao ser revistado. Alis, tudo devia ter ficado com o Comissrio, ele que devia guardar. Agora, revistar toda a gente... uma desconfiana, ofender! - J sei que a culpa minha - explodiu o Comissrio. - certo que a culpa foi minha por no ter ficado com o dinheiro, como fiquei com os relgios. Sim, a culpa minha. Mas agora o que h a fazer revistar todos. J revistmos o Ekuikui, vamos faz-lo a todos. No ofensa nenhuma, mas por um pagam todos. Entretanto, Sem Medo no olhava a cara exaltada do Comissrio ou os olhos frios do Chefe de Operaes. Sem Medo estudava as reaces de cada um dos guerrilheiros. - Eu no estou de acordo com a desconfiana que existe contra os guerrilheiros - disse o Das Operaes, o que fez soltar das gargantas de alguns combatentes murmrios de aprovao. - Se um responsvel erra, por que que esse erro se torna numa desconfiana em relao aos guerrilheiros? Por que que todos os guerrilheiros so envergonhados, todos, s por causa de um? E se o erro vem dum responsvel? - Chega! - gritou Sem Medo. - O erro dum responsvel no justifica um roubo, um roubo de merda de cem paus, dum miservel sabotador. Vamos passar revista. As guerras no se ganham com demagogias, s para se ter apoio das bases! Lutamos, aproxima-te. Mas Sem Medo no olhava Lutamos, que se aproximou com o sacador aberto. Sem Medo fixava o grupo do fundo. Lutamos foi revistado pelo Comissrio e mais o sacador, e tudo onde se poderia meter uma nota de cem escudos. Lutamos estava a vestir-se, quando Sem Medo deu um salto terrvel, rugindo, sobre o grupo do fundo. Segurou um brao de Ingratido do

Tuga, que tentou libertar-se, e a nota de cem escudos caiu no cho. - Sacana! - disse Sem Medo, arquejando. - Desconfiava de ti desde o primeiro momento. Arrastou Ingratido para o meio do grupo e disse: - Foi ele que dormiu ao lado do Ekuikui. Agora, estava a tentar enterrar a nota, para depois a recuperar. Mas eu estava atento. Fala, como apanhaste essa nota? Era intil esconder, perigoso mesmo. Ingratido do Tuga confirmou que dormira ao lado de Ekuikui e tinha visto em que bolso o ex-caador tinha guardado a nota. Roubara-a durante a noite. Os guerrilheiros no diziam nada, uns estavam a favor de Ingratido, outros contra. - Sers julgado ao chegar Base. A tua arma fica com Ekuikui, que te vai guardar. Cuidado se ele foge! Sers tu julgado no seu lugar. Que raio de guerrilheiro me saste tu, que te deixas roubar? No dormes s com um olho? - Ontem estava muito cansado, camarada Comandante. Dormi de mais... - Comandante, como vamos fazer para reencontrar os trabalhadores? - disse Lutamos. - Agora devem j estar muito longe, e impossvel. - Eu penso que o melhor depois do ataque tentarmos contactar o povo - props Teoria. - Estudaremos calmamente a maneira. Temos o nome dele e do kimbo, talvez consigamos l chegar e entregar-lhe. - Muito arriscado - disse o Das Operaes. - Eu sou voluntrio para l ir - disse o Comissrio: - Fui o responsvel do que se passou, sei qual a importncia da coisa no aspecto poltico e... - Vamos estudar isso depois - disse Sem Medo. - Agora vamos avanar. Mas com cuidado. Se, por acaso, o tuga nos perseguiu e quer ver at onde vamos, podemos dar encontro cara a cara. E melhor mesmo irmos por outro caminho, no temos pressa de chegar. Lutamos ps-se frente da coluna e esta l seguiu, levando no meio um Ingratido do Tuga desarmado, o que era um risco, pois o inimigo podia aparecer dum momento para o outro. Os homens comeavam a dar mostras de fadiga, j tinham sado da Base h quatro dias e as provises em breve faltariam, pois tiveram de as repartir com os trabalhadores. Eram dados que se tinha de ter em conta, pensava Sem Medo, a AKA segura pelo cano e atirada negligentemente sobre o ombro, o chapu cubano escondendo o risco da bala na pele da testa (daquela vez que fora surpreendido pelo inimigo no rio, quando tomava banho; tivera de fingir estar morto, o que era confirmado pelo sangue que lhe corria da testa e tingia a gua do rio; quando os camaradas reagiram, ele pde esconder-se entre as pedras e voltar Base, nu; fora castigado pelo Comando, por Henda, pois o cantil e o cinturo foram recuperados pelo inimigo; no a arma, que os companheiros tinham trazido). Depois de uma hora de marcha, Sem Medo mandou parar. - Vamos pescar, temos de poupar comida.

A maior parte das provises eram conservas (corned-beef, sardinhas, um pouco de leite), o resto era arroz e xikuanga. Lutamos trazia sempre anzis e linha. Ele e Mundo Novo encavalitaram-se numa pedra, enquanto os outros se espalhavam em grupos pelo Lombe, lavando-se ou conversando. Sem Medo gostava destas pausas numa marcha, em que filosofava consigo, contemplando as rvores, ou em que auscultava a maneira de ser dos companheiros. Vendo Teoria isolado, esfregando o joelho, o Comandante aproximou-se e sentou-se a seu lado. - Est a doer? - Ligeiramente. Est a melhorar. Sem Medo acendeu um cigarro, um dos ltimos que lhe restavam. Fechou os olhos, para melhor saborear a baforada. - Quando era mido, antes de ir estudar para o Seminrio, aconteceu-me um caso. Devia ter uns oito anos. Meti-me com um mais velho e o gajo surrou-me mal. Fugi de medo. Abandonei o combate. Durante dias, senti-me um tipo nojento, um covarde, um fraco, sentia que um mido qualquer me bateria e eu fugiria... Calou-se um momento, observando o professor: Teoria ouvia, o ar impenetrvel. Sem Medo continuou: - Decidi ento que, para ter respeito por mim mesmo, s havia uma coisa a fazer: procurar a desforra. Provoquei o outro novamente, no imaginas o medo que eu tinha, sabia que ia levar uma surra, no tinha a mnima possibilidade. O outro era muito mais forte e treinado nas lutas do muceque. Defendi-me como pude, mais do medo que ele me inspirava que propriamente dos murros que recebia. Afinal no doa tanto assim. Sangrava do nariz, foi da que fiquei com o nariz ligeiramente torto, como podes ver. Afinal no doa. Foi o outro que parou, cansado de bater. Eu iria at ao fim, morreria se fosse necessrio, mas no me rendia. Ele acabou por dizer: ganhaste, desisto. Depois disso ficmos amigos... A partir da compreendi que no so os golpes sofridos que doem, o sentimento da derrota ou de que se foi covarde. Nunca mais fui capaz de fugir. Sempre quis ver at onde era capaz de dominar o medo. - Porque me falas nisso? - perguntou Teoria. Havia qualquer coisa que ele queria descobrir em Teoria, qualquer coisa que lhe escapava. Respondeu com nova pergunta: - Tens sempre medo? O outro contemplou-o, assustado. Sim, assustado, reparou Sem Medo. Assustado, mas, no fundo, como que aliviado. Num rompante inconsciente, como a libertar-se, Teoria disse: - Sim, tenho sempre medo. O medo persegue-me. No sei porque to digo, mas a verdade. Tenho medo de fazer guarda noite, tenho medo do combate, tenho medo mesmo de viver na Base... - Desconfiava disso. E porque no o mostras?

- Mostrar? Um mestio mostrar o medo? J viste o que daria? Tenho procurado sempre dominar-me, vencer-me... compreendes? como se eu fosse dois: um que tem medo, sempre medo, e um outro que se oferece sempre para as misses arriscadas, que apresenta constantemente uma vontade de ferro... H um que tem vontade de chorar, de ficar no caminho, porque o joelho di, e outro que diz que no nada, que pode continuar. Porque h os outros! Sei que, sozinho, sou um covarde, seria incapaz de ter um comportamento de homem. Mas quando os outros esto l, a controlar-me, a espiar-me as reaces, a ver se dou um passo em falso para ento mostrarem todo o seu racismo, a segunda pessoa que h em mim predomina e leva-me a dizer o que no quero, a ser audaz, mesmo demasiado, porque no posso recuar... duro! Sem Medo passou-lhe o cigarro que fumara at meio. Teoria agarrou-se ansiosamente a ele e fumou-o at ao fim, sem parar, tremendo. Sem Medo disse docemente: - H coisas que uma pessoa esconde, esconde, e que difcil contar. Mas, quando se conta, pronto, tudo nos aparece mais claro e sentimo-nos livres. E bom conversar. Esse dos tais problemas que pode destruir um indivduo, se ele o guarda para si. Mas podes ter a certeza de que todos tm medo, o problema que os intelectuais o exageram, dando-lhe demasiada importncia. realmente aqui uma origem de classe social... Todos pensamos ter duas personalidades, a que covarde e a outra, que no chamamos corajosa, mas inconsciente. O medo... o medo no problema. A questo conseguir dominar o medo e ultrapass-lo. Dizes que o ultrapassas quando os outros te observam, ou quando pensas que te observam, que o mais verdico... mas que, se estiveres sozinho, no s capaz. Talvez. Ds demasiada importncia ao que os outros pensam de ti. Hoje, tu j no tens cor, pelo menos no nosso grupo de guerrilha ests aceite, completamente aceite. No dum dia para o outro que te vais libertar desse complexo de cor, no. Mas tens de comear a pensar que j no um problema para ti. Talvez sejas o nico que tem as simpatias e o respeito de todos os guerrilheiros, isso j o notei vrias vezes. No podes viver nessa angstia constante, seno os nervos do de si. E hoje j no h razo. - Os meus nervos j estoiraram tantas vezes... - Ainda no. Foram s ameaos! bom falar, bom conversar com um amigo, a quem se abre o corao. Sempre que estiveres atrapalhado, vem ter comigo. A gente papeia. Guardar para si no d, s quando se escritor. A um tipo pe tudo num papel, na boca dos outros. Mas, quando se no escritor, preciso desabafar, falando. A aco outra espcie de desabafo, muitos de ns utilizam esse mtodo, outros batem na mulher ou embebedam-se. Mas a aco como desabafo perde para mim todo o seu valor, torna-se selvtica, irracional. As outras formas so uma covardia. S h a conversa franca que me parece o melhor, a mim que no sou escritor. No foi por acaso que os padres inventaram a confisso, ela corresponde a uma necessidade humana de desabafo. A religio soube desde o princpio servir-se de certas necessidades subjectivas, nasceu mesmo dessas necessidades. Por isso o cristianismo foi to aceite. H certas seitas protestantes, no sei se todas, em que a confisso pblica. Isso corresponde a um maior grau de sociabilidade, embora leve talvez as pessoas a serem menos profundas, menos francas, na confisso. Corresponde melhor hipocrisia burguesa... E da no sei, pois eu nunca fui muito franco nas minhas confisses individuais de catlico... Lutamos tinha apanhado um grande peixe e os outros aplaudiram, esquecidos do stio onde se encontravam. O Comissrio mandou-os calar. - Mas ser que o medo passa? - perguntou Teoria. Eu nunca fui um mido muito combativo, nunca me tinha experimentado. Ser que

ficarei sempre em panico? - O teu problema principal o complexo racial. Esse que condiciona o outro, penso eu. Se ficares libertado dele e compreenderes que tirar o xangui de vez em quando no te vai rebaixar aos olhos dos outros, que o fazem constantemente e sem remorsos, ento deixars de ter pnico e reagirs normalmente, com medo umas vezes, sem medo doutras. De qualquer modo, j combateste frequentemente, j altura de te habituares... - E tu? Nunca sentes medo? - Eu? As vezes sinto, sim. O pulso acelera-se, tenho frio, mesmo dor de barriga. Outras vezes, no. Geralmente, nos momentos de maior perigo, fico calmo, lcido. Penso sempre que assustar-me pior. Isso ajuda. Mas procuro sempre o medo, isso verdade. No tenho propriamente medo da morte, assim, a frio. Tenho medo de me amedrontar quando vir que vou morrer, e perder o respeito por mim prprio. Deve ser horrvel morrer com a sensao que os ltimos instantes de vida destruram toda a ideia que se tem de si prprio, toda a ideia que se levou uma vida inteira a forjar de si prprio. O Chefe de Operaes aproximou-se deles, mas, como os viu conversando baixo, afastou-se. Sem Medo chamou-o. - H alguma coisa? - melhor preparar-se o almoo, no? - Sim, sim, aproveita-se. Sem Medo e Teoria foram ajudar a preparar o almoo. Depois de comerem, voltaram a avanar. Encontraram uma montanha pela frente, que atacaram s duas da tarde. A primeira parte da montanha estava coberta de folhas de xikuanga, o que dificultava a ascenso. As mochilas pesavam nos ombros, as pernas vergavam-se. Paravam frequentemente, para retomar o flego. Quando parecia que se aproximavam do cume, surgia nova elevao. As folhas de xikuanga foram substitudas por mata espessa, que era preciso cortar catana, para abrir caminho. s quatro horas, comeou a chover. A gua descia pela montanha, ensopava o solo. As botas tornaram-se dez vezes mais pesadas, com o peso da lama. As escorregadelas eram frequentes e Pangu-Akitina, o enfermeiro, ao escorregar, deixou cair a ppch, que foi preciso ir buscar vinte metros mais abaixo. As cinco horas atingiram o alto da montanha, exaustos. Depois de curto descanso, principiaram a descida, pois noite era impossvel dormirem na montanha, por causa do frio. A descida, embora mais rpida, era mais perigosa que a subida. O Comissrio escorregou e rebolou na lama, at se conseguir agarrar a uma liana. As pernas tremiam, pelo esforo de se aguentarem. Os joelhos doam. Os sacadores impeliam os homens para a frente, para o abismo. A chuva continuava a cair. s seis horas escureceu totalmente e eles ainda no tinham descido a montanha. O resto foi feito quase de rastos, na escurido da montanha traioeira, a chuva fustigando o rosto. Quando algum caa, os outros no tinham esperana de o reencontrar. Chegaram finalmente ao rio. A noite no permitia procurarem um stio mais ou menos seco para acamparem. Deixaram-se cair numa espcie de clareira, controlaram o grupo para ver se estavam todos. Felizmente, ningum faltava. Abriram os sacadores, onde tudo estava molhado, o pano de dormir, a comida, as munies, tiraram latas de leite e beberam o leite frio, pois no se poderia acender fogo com aquela chuvada. Ao cair, Teoria voltara a esfolar o joelho. O sangue agora j estancara. Pangu-Akitina

olhou a ferida, alumiada pela lanterna a pilhas, e deixou-a ficar assim. Como trat-lo, se todos os pensos estavam molhados? Limitou-se a deitar-lhe um bocado de lcool sobre o ferimento. Teoria apertou os lbios, o que no impediu um gemido teimoso de lhe sair da boca. Houve quem estendesse a lona no cho molhado para dormir. A maior parte, porm, deitou-se mesmo directamente no cho, tapando-se com o pano j molhado. - De vez em quando mexe os braos e as pernas - disse Sem Medo ao Comissrio. Seno podem ficar fixos ao cho, pois o clima aqui to frtil que, com a chuva, se criam razes dum dia para o outro. Boa noite, sonhos cor-de-rosa! Como pode ele ainda brincar?, perguntou-se o Comissrio, meio escandalizado. Eu, o Narrador, Sou Milagre, o Homem da Bazuka. Viram como o Comandante se preocupou tanto com os cem escudos desse traidor de Cabinda? No perguntam porqu, no se admiram? Pois eu vou explicar-vos. O Comandante kikongo; embora ele tenha ido pequeno para Luanda, o certo que a sua famlia veio do Uje. Ora, o fiote e o kikongo so parentes, no fundo o mesmo povo. Por isso ele estava to furioso por se ter roubado um dos seus primos. Por isso ele protege Lutamos, outro traidor. E viram a raiva com que ele agarrou o Ingratido? Porqu? Ingratido kimbando, est tudo explicado. Os intelectuais tm a mania de que somos ns, os camponeses, os tribalistas. Mas eles tambm o so. O problema que h tribalismo e tribalismo. H o tribalismo justo, porque se defende a tribo que merece. E h o tribalismo injusto, quando se quer impor a tribo que no merece ter direitos. Foi o que Lenine quis dizer, quando falava de guerras justas e injustas. preciso sempre distinguir entre o tribalismo justo e o tribalismo injusto, e no falar toa. verdade que todos os homens so iguais, todos devem ter os mesmos direitos. Mas nem todos os homens esto ao mesmo nvel; h uns que esto mais avanados que outros. So os que esto mais avanados que devem governar os outros, so eles que sabem. E como as tribos: as mais avanadas devem dirigir as outras e fazer com que estas avancem, at se poderem governar. Mas, o que se v agora aqui? So os mais atrasados que querem mandar. E eles vo apanhando os lugares-chave, enquanto h dos nossos que os ajudam. como esse parvo do Comissrio, que no percebe nada do que se passa. Deixa-se levar pelo Comandante, est sempre contra o Chefe de Operaes. Um tipo que inteligente, poas!, ele l muito, e, afinal, deixa-se levar assim. Ou ser que faz de propsito? s vezes penso que ele tem um pacto com os outros contra ns, os do seu sangue. Eu sofri o colonialismo na carne. O meu pai foi morto pelos tugos. Como posso suportar ver pessoas que no sofreram agora mandarem em ns, at parece que sabem do que precisamos? contra esta injustia que temos de lutar: que sejam os verdadeiros filhos do povo, os genunos, a tomar as coisas em mos. Choveu durante toda a noite. Alguns guerrilheiros, entre os quais Sem Medo, conseguiram dormir. A maior parte, porm, no pregou olho, tremendo de frio e recebendo a chuva em todo o corpo. De madrugada, as feies encovadas demonstravam o cansao de dias seguidos de

esforo e sofrimento. S beberam leite. A comida estava molhada, a xikuanga desfizera-se com a gua. Restava-lhes o arroz e as latarias, alis raras. A mata estava hmida, pingando ainda das folhas. O cho era um pntano escorregadio. Avanaram sempre a corta mato, at que s dez horas reencontraram o Lombe. Uma patrulha subiu a uma elevao, para se orientar. Estavam perto da estrada. Retomaram a marcha, tendo esquecido o cansao. Ao alcanarem a estrada, ouviram duas exploses surdas, logo seguidas de uma outra: os tugas tinham saltado nas minas perto do buldozer. Os guerrilheiros riram, segurando com mais firmeza as armas. Passados momentos, o Chefe de Operaes foi fazer um reconhecimento, procura do melhor stio para se fazer a emboscada. Era j meio-dia. Quando o Chefe de Operaes voltou, avanaram todos para o local escolhido. Sem Medo apreciou o stio, aprovou com a cabea e disps os homens ao longo da estrada. Ningum comera, s chuparam um pouco de leite das latas. Os guerrilheiros tinham de estar prontos para tudo, pois os soldados podiam voltar dum momento para o outro, transportando os feridos das minas. Passaram dtlas horas. Nada. Sem Medo foi ter com o Comissrio e o Chefe de Operaes. - Levaram os feridos para o outro quartel, certamente -disse o Comandante. - Mas hde vir uma patrulha por aqui. Temos de aguentar. - A ltima vez que comemos foi ontem ao meio-dia - disse o Comissrio. - Os camaradas no aguentam muito mais, com o esforo de ontem... O melhor retirarmos para podermos acender fogo e cozinhar. Amanh eles passaro. - No - disse o Chefe de Operaes -, eles vo passar hoje. impossvel que no mandem reforos do Sanga. Portanto, os reforos vo voltar, eles no aceitam dormir na mata. Os camaradas aguentam, querem combater. E esperar mais um dia pior, ento acaba a comida de vez. - Tens razo, Das Operaes. Vamos esperar at s cinco horas - disse o Comandante. - Se at l no vierem, ento retiramos para acampar e procurar lenha seca. D tempo! O Comissrio ficou contrariado, mais pelo brilho dos olhos do Chefe de Operaes. Mas no replicou. Voltaram a tomar posio. Havia guerrilheiros que adormeciam, as armas em posio e o dedo no gatilho. O Comandante percorria constantemente a fila de combatentes, acordando-os suavemente para no os assustar, perguntando coisas insignificantes, sussurrando estrias e anedotas, para levantar o moral. Os guerrilheiros sorriam, piscavam-lhe o olho, demonstrando confiana. engraado, pensava Sem Medo, ao ir de um para outro, mesmo os que no me gramam nada parece que me adoram. a solidariedade do combate! Tinham devolvido a arma a Ingratido do Tuga, mas Ekuikui recebera misso de o vigiar de perto. Ekuikui cumpria, muito compenetrado, o seu papel. O Comandante deitou-se ao lado de Teoria. O professor lanou-lhe uma rpida mirada, mas nada disse. Sabia porqu Sem Medo viera. Sem Medo tambm sabia por que viera. - Ento? - perguntou o Comandante. - O meu segundo eu prevalece - disse Teoria. - No te preocupes.

- No estou preocupado. Sabia disso. Sem Medo levantou-se e avanou ao longo da estrada, para saber como estava o guarda, colocado a duzentos metros da emboscada e encarregado de dar o sinal, quando o inimigo aparecesse. - Vamos embora, camarada Comandante? - No. Eles vo vir. - Tenho fome, camarada Comandante. - E eu que ainda no fumei hoje? - respondeu Sem Medo. Voltou para o stio da emboscada. Placou no seu lugar e esperou, numa sonolncia leve, interrompida pelo gesto de ver as horas. s quatro, o Sol j no se vislumbrava, tapado pelas rvores do outro lado da estrada. A espera era o pior. Depois de o inimigo surgir, acabavam os problemas, os fantasmas ficavam para trs, e s a aco contava. Mas, na espera, as recordaes tristes da meninice misturavam-se saudade dos amigos mortos em combate e mesmo (ou sobretudo) ao rosto de Leli. Sem Medo notou que tinham passado mais de seis meses sem pensar em Leli. Desde o ltimo combate. Ao irem atacar o Posto de Miconje, a imagem de Leli viera confundir-se com a chuva que formava torrentes de lama, resvalando pela encosta que subiam para atingirem o inimigo. Tinham progredido na noite, debaixo do aguaceiro constante, para atingirem o ponto de ataque s seis da manh. A lama e a chuva cegavam-nos, asfixiavam-nos, ofegantes pelo esforo de subirem de rastos uma montanha coberta de mata densa. Fora a, na cegueira da floresta e da chuva, que Leli viera, se impusera de novo. A angstia perseguiu-o at dar a ordem de fogo. O grito de fogo sara-lhe como uma libertao, um urro de animal fugindo da armadilha. O grito ferido de Sem Medo afugentara a imagem de Leli. Mais uma vez Leli voltava e se impunha. Os olhos de Leli acusavam-no de mil crimes, vingativos e meigos; havia tal abandono e solido nos olhos dela que Sem Medo quis gritar, afastando o fantasma. Mas era demasiado cedo, o inimigo no aparecera, e ele no podia dar ordem de fogo. Quatro e um quarto. A angstia ganhara-lhe o ventre, sentia clicas. Esquecera onde estava, o corpo no se fazia sentir sobre os cotovelos dormentes, as mos encravadas na AKA, os olhos teimosamente fixos na estrada, no princpio da curva. Leli suplicava e acusava, muda, as palavras eram inteis, ele conhecia-as, no as esquecera. Foi essa a tua vingana, reconquistares-me para me abandonares ao saberes que eu estava de novo presa a ti. O teu orgulho, tudo pelo teu orgulho, um orgulho sem limites, que tudo sacrifica. Ele conhecia as palavras, as palavras que mil vezes lhe martelaram a memria, por isso s os olhos de Leli falavam agora. Ela corria na praia branca. Os coqueiros inclinavam -se para a cumprimentar. Nua, resplandescente luz da Lua, o corpo castanho perlado de gotas de gua que reflectiam o brilho da Lua. Ela corria pela praia branca ao seu encontro. Abraavam-se, nus, sombra confidente dos coqueiros, e deixavam-se cair na areia O suor manchava-lhe a camisa. Sentia-se mal, a angstia irradiara do ventre para o

peito e a respirao tornava-se ofegante. O teu orgulho, um orgulho sem limites... Sem Medo quis levantar-se para correr, correr at ao stio onde estava o inimigo, despejar todos os carregadores at apagar a imagem de Leli. Mas o guarda apareceu, fazendo sinais, e Leli sumiu. Pelos sinais, Sem Medo compreendeu que os soldados vinham a p, o que dificultava a operao. A notcia correu rapidamente pelos guerrilheiros. Momentos depois, ouviram as primeiras vozes. Os tugas vinham alegres por regressarem ao quartel, barulhentos, despreocupados, convencidos que os guerrilheiros j estavam no Congo. Sem Medo percebeu mesmo a aluso gritada dum soldado aos hbitos da irm de outro. O tuga sempre o mesmo, em todas as circunstncias, pensou. Ser o que fala que tombar com a minha rajada, ou o outro, cuja irm foi ofendida? Os primeiros soldados apareceram na curva da estrada. Depois, aos poucos, o resto da companhia. Vinham sem ordem, aos grupos, desatentos, as armas sobre o ombro. O grupo da frente entrou na zona de morte, avanou at passar pelo comandante. Sem Medo ia contando os soldados inimigos. Contou at setenta. Os guerrilheiros esperavam a rajada do Comandante, sinal de abrir fogo. A vanguarda inimiga aproximava-se do ltimo guerrilheiro, enquanto os da cauda entravam na emboscada. Est lindo, entraram que nem patinhos! - pensou Sem Medo. E disparou, visando os que estavam sua frente, a menos de quatro metros. Imediatamente crepitaram as ppchs com o seu barulho de mquina de costura. Dois segundos depois, Milagre erguia-se e bazukava sabiamente o grupo avanado. Os soldados, apanhados na mais completa surpresa, s placaram ao solo ou cambalhotaram, quando j muitos tinham cado. Os gemidos confundiam-se com o cacarojar das ppchs e o estrondo das granadas. Finalmente, os primeiros soldados comearam timidamente a responder ao fogo, para permitir que os que estavam na estrada pudessem ganhar a mata protectora. Sem Medo mudou o carregador, no momento em que apercebeu o soldado sua frente, deitado na borda da estrada, tentando febrilmente desencravar a culatra da G3. O soldado tinha-o visto, mas a arma encravara. Sem Medo apontou a AKA. O soldado era um mido aterrorizado sua frente, a uns quatro metros, as mos fincadas na culatra que no safava a bala usada. Os dois sabiam o que se ia passar. Necessariamente, como qualquer tragdia. A bala de Sem Medo abriu um buraquinho na testa do rapaz e o olhar aterrorizado desapareceu. Necessariamente, sem que qualquer dos dois pensasse na possibilidade contrria. Os soldados que se encontravam na estrada estavam mortos ou feridos. Os outros disparavam agora furiosamente, visando as rvores. Tinham ficado muitos vivos, era impossvel passar ao assalto. Sem Medo deu ordem de retirar. Era o mais difcil: as balas silvavam acima das cabeas, cortando os ramos ou cravando-se nos troncos das arvores. Milagre, expondo-se perigosamente, bazukou uma moita donde vrios inimigos faziam fogo nutrido. A aco de Milagre fez parar o fogo inimigo e os guerrilheiros aproveitaram para recuar, rastejando, at ficarem ao abrigo dos tiros adversrios. Grande combatente, esse Milagre, pensou Sem Medo, enquanto rastejava. A dez metros do stio onde se encontravam, j puderam erguer-se um pouco e afastarem-se, pois tinham rvores interpostas. Os soldados colonialistas aumentaram o volume de fogo. Os guerrilheiros recuaram at ao ponto de encontro. Os soldados lanavam insultos, de mistura com balas, certos agora que os guerrilheiros j tinham partido. Do Sanga comearam a cair os primeiros obuses de morteiro, atirados toa, s para desmoralizar. No ponto de recuo, os responsveis controlaram os combatentes: Alvorada tinha um

ferimento ligeiro no ombro e Muatinvua ainda no tinha chegado. Esperaram Muatinvua, enquanto Pangu Akitina tratava do ferido. Muatinvua no aparecia. - Deve ter apanhado - disse o Comissrio. - preciso ir busc-lo. - No pode - disse Milagre. - Eu estava ao lado dele e no o vi apanhar. - Viste-o recuar? - perguntou o Comandante. - No. - Ento, pode ter apanhado no recuo. Quem voluntrio para o ir buscar? Os guerrilheiros contemplaram-se, hesitando. Os soldados continuavam a fazer fogo e era arriscado voltar ao stio da emboscada, mais perigoso que fazer a emboscada. Lutamos e Ekuikui ofereceram-se. Teoria no se ofereceu, notou Sem Medo. Est a fazer progressos, noutra altura teria de ser voluntrio, por afirmao. O Comandante deixou partir os dois voluntrios e depois disse: - Ningum se queria oferecer, porque Muatinvua um destribalizado. Fosse ele kikongo ou kimbundo e logo quatro ou cinco se ofereceriam... Quem foi? Lutamos, que cabinda, e Ekuikui, que umbundo. Uns destribalizados como ele, pois aqui no h outros cabindas ou umbundos... assim que vamos ganhar a guerra? O soldado aterrorizado que deixara encravar a arma devia ser minhoto ou transmontano. E os outros minhotos ou transmontanos disparavam raivosamente para o cobrir. Ao situarem de onde viera o tiro de Sem Medo que fizera desaparecer o olhar aterrorizado, todos os minhotos ou transmontanos dispararam raivosamente na sua direco. No havia grande diferena! Os dois voluntrios no precisaram de chegar emboscada, pois encontraram Muatinvua, que se dirigia tranquilamente para o stio de recuo. - Que ficaste l a fazer? - perguntou Sem Medo. -- A contar os mortos, para o Comunicado de Guerra! Havia 16 corpos na estrada, mortos ou feridos, quem sabe? Os outros estavam zangados, insultavam mal... - Quando mando recuar, para recuar! - gritou Sem Medo, para se convencer. Fizera um dia a mesma coisa e fora criticado e louvado ao mesmo tempo. Mudou logo o tom de voz: - Dezasseis, dizes tu? No foi nada mau. Vamos embora. E avanaram a corta mato, Lutamos frente abrindo caminho com a catana. At s seis horas, momento em que voltaram a encontrar o Lombe. Acamparam a. Os soldados tinham parado de fazer fogo, certamente sem mais munies, mas a artilharia do Sanga continuava a gastar inutilmente obuses. Seria assim toda a noite. O combate durara dois minutos, constatou Sem Medo. Voltaram a retirar a arma a Ingratido do Tuga. No fizeram guarda. noite, na mata, o melhor guarda era a impenetrabilidade do Mayombe. O inimigo no sabia o lugar para onde tinham retirado, por isso os obuses de morteiro caam a uns cinco quilmetros para a direita. Os morteiros, alis, no eram utilizados como arma ofensiva, mas apenas para levantarem o moral dos soldados tugas, cercados numa mata desconhecida e temvel, que escondia monstros aterrorizadores. O barulho acalmava-os, dava-lhes conscincia do seu poderio, protegia-os do seu prprio medo.

O Comissrio veio sentar-se ao lado do Comandante, a testa jovem cortada por uma ruga. O Chefe de Operaes tambm se encontrava ali ao lado. - Camarada Comandante, vamos pensar no dinheiro do trabalhador? Como fazer para o devolver? - Deixa l isso! - disse Sem Medo. - No deixo, no. importante. Tratmos bem os trabalhadores, h muito tempo que no tnhamos um contacto to importante com o povo do interior, as consequncias podem ser muito positivas. Mas houve uma sombra. Um trabalhador foi roubado e soube-o. Os outros tambm souberam. Que que o povo vai dizer? Os do mpla trataram bem os trabalhadores, verdade, mas foi s para os mobilizar. Logo que puderam, roubaram o que de valor levavam. Que interessa fazer aces assim, se ficamos sujos? - Bem. Que propes? - Eu vou com dois camaradas. Tentaremos chegar aldeia onde o mecnico mora e deixamos o dinheiro num papel. Algum apanhar o papel e entrega-o. - Quem apanhar fica com o dinheiro, no o entrega e pronto! Um risco para nada disse o Chefe de Operaes. O Comissrio coou a cabea. Os olhos brilharam. Falou de novo: - Esperamos o mecnico no caminho que sai da sanzala. Ele de manh cedo vai para o trabalho. Entregamos-lhe o dinheiro e pedimos desculpa... - Arriscado, muito arriscado - disse Sem Medo -, os caminhos devem estar patrulhados. - S trs homens passam em qualquer stio sem se fazerem notar. - O mecnico avisa os tugas, que devem estar a vigiar a zona, e cortam-vos a retirada. Vocs tm de vir pelo Lombe e fcil cortar... - No nada fcil. Cortaram-nos? De qualquer modo, tens uma ideia melhor? - Tenho - disse Sem Medo -, deixa cair! - No podemos. - Camarada Comissrio - disse o Das Operaes -, oia o camarada Comandante, um plano arriscado. E o resultado... - A que vocs se enganam. O risco pesa-se com a importncia da coisa. E vocs no compreendem que isto fundamental, pode decidir sobre a impresso que o povo tenha de ns. E mesmo o mais importante. Sem Medo fumava o seu primeiro cigarro daquele dia. Restava-lhe um, que seria guardado para o dia seguinte. Estou a ficar velho, pensou ele, comeo a tornar-me previdente. Antes eu teria fumado todos os cigarros no princpio e depois sofreria o tempo que fosse necessrio. S os velhos so capazes de repartir o prazer. E por ficar velho, aos 35 anos, que xinguei o Muatinvua pela sua ousadia. por ficar velho

que no aprovo a coragem generosa do Comissrio? O risco como o prazer, o jovem no o pode repartir. - Com quem irias? - perguntou Sem Medo. - Com dois voluntrios. Um ter forosamente de ser o Lutamos, o nico que conhece a mata. - E ns? Ficaramos aqui tua espera? - Para qu? Encontramo-nos na Base. - Eu continuo a no estar de acordo, camaradas - disse o Chefe de Operaes. - demasiado perigoso. O tuga est alertado, ele tem bufos em todo o lado. Vocs vo deixar pegadas, eles vo topar. O prprio povo vai indicar as pegadas. O Comandante cortou: - Deixa! Vamos mudar um bocado o plano. Um grupo de seis vai at ao tractor. Trs avanam e trs ficam espera. O resto fica aqui. Se houver qualquer coisa, vamos em socorro. Os tugas agora esto ocupados em sepultar os mortos... - Mas no temos quase comida - disse o Das Operaes. - verdade, Comandante - disse o Comissrio. - O melhor arrancarem para a Base e deixam-nos a comida que sobra. Daqui a dois dias estamos na Base. - Bem - disse Sem Medo -, faamos um compromisso. Vocs os trs partem. Eu e mais dois camaradas ficamos perto da aldeia, para vos proteger em caso de necessidade. O resto volta com o Das Operaes para a Base. Est decidido! - Mas... - disse o Das Operaes. - Est decidido - repetiu Sem Medo. - Porqu tu, Comandante? - perguntou o Comissrio. - E porqu tu, Comissrio? - disse Sem Medo. O Chefe de Operaes partiu s sete horas para a base. Sem Medo e dois guerrilheiros seguiram com o Comissrio, Lutamos e Mundo Novo. Avanaram prudentemente, evitando os trilhos que se deparavam na mata. Ao meio-dia chegaram perto duma aldeia: ouviam-se gritos e choros de crianas. Afastaram-se de novo para prepararem o almoo. tarde, Lutamos e Mundo Novo foram fazer um reconhecimento. Voltaram para junto dos outros, trs horas depois. - Soldados, h? - perguntou Sem Medo. - No nos aproximmos muito. Vimos o caminho que vai para a estrada. No nos aproximmos, para no sermos vistos nem deixarmos pegadas. - Bom. Vamos avanar ento os trs, para dormirmos ao lado do caminho - disse o Comissrio. - Vocs os trs ficam aqui, Comandante.

- Sim, chefe! - disse Sem Medo. Fez sinal ao Comissrio para se aproximar e segredoulhe ao ouvido: - O Das Operaes repetiu-me mil vezes para desconfiar do Lutamos. - Acreditas nisso? - Eu no. Mas devia dizer-te. - Se tivesses partido, como eu propus, a esta hora estavas a fumar os cigarros que quisesses na Base. Assim, vais sofrer durante mais uma noite e um dia... - preciso saber retardar o prazer... Depois sabe melhor. Os guerrilheiros abraaram-se, como quando enfrentavam um perigo qualquer. Depois, o Comissrio, Lutamos e Mundo Novo partiram, cautelosamente, para junto do caminho. Demoraram uma hora a chegar l, com a preocupao de escutarem os rudos e evitarem partir os paus secos. Anoitecia, quando se sentaram a dez metros do caminho, invisvel pelas ramagens e pelo crepsculo. Abraaram-se s lianas, cobriram-se com as folhas que dos seus braos nasciam, e prepararam-se para ali passar a noite. Foram acordados pelas primeiras vozes que se libertavam do espao limitado da sanzala, para se irem combinar ao orvalho que avivava o verde das folhas. Sacudiram o torpor dos membros e do corpo dodo pelas razes, sobre as quais se deitaram. Avanaram na noite para o caminho. Emboscaram-se ao lado dele. Cada co que ladrava trazia-lhos a impresso de ladres esperando a vtima. No entanto, eles esperavam um homem para lhe entregar o seu dinheiro. Estranha situao que leva o que d a esconder-se, pensou Mundo Novo. S o colonialismo poderia provocar tal aberrao. As vozes aproximaram-se. Dois homens conversavam, caminhando. Impossvel verlhes a cara, na escurido. No poderiam par-los, para lhes perguntar quem eram. Os homens chegaram frente deles e Lutamos compreendeu que falavam do combate. O Comissrio segurou no brao de cada companheiro, indicando-lhes que nada fizessem. Os homens passaram. Lutamos segredou aos outros que nenhum dos homens era o mecnico. - Como sabes? - Pela voz. Quinze minutos depois, um vulto desenhou-se na obscuridade quase total. Era uma mulher que ia para a lavra. Deixaram-na passar. J clareava, quando distinguiram a uns dez metros o rosto inteligente do mecnico. Vinha com outro trabalhador, o velho que tinha uma perna defeituosa. Ao passarem junto deles, o Comissrio chamou baixinho: - Malonda! O interpelado virou-se para eles, atnito e assustado. Lutamos surgiu ento da ramagem com que se camuflava. - Somos ns. Venham aqui s um minuto. Os trabalhadores reconheceram Lutamos. Hesitaram, olharam para trs, em direco

da aldeia, depois interrogaram-se, mudos. Lutamos repetiu o convite e os homens decidiram-se a entrar na mata. Os guerrilheiros afastaram-se com eles alguns passos do caminho. - Trouxemos-lhe o seu dinheiro - disse o Comissrio. -Um dos nossos camaradas tinhao roubado. Vai ser julgado e castigado. Est aqui o dinheiro. - Vieram s por isso? - perguntou o coxo. - Mas era perigoso... - Era o nosso dever. O mpla defende o povo, no rouba o povo - disse Mundo Novo. - Era melhor no virem - disse o mecnico -, no tinha importncia. - Tinha, sim - disse o Comissrio. - Vocs podiam acreditar que ns somos bandidos, como dizem os portugueses, e isso no verdade. - Mas podem ficar com o dinheiro - disse o mecnico. -Verdade! Ofereo ao mpla. Verdade mesmo, fiquem com ele. O mecnico olhava nervosamente para trs, para o caminho. Murmuravam apenas, mas um murmrio pode ir longe, naquela mata. O Comissrio agradeceu e guardou o dinheiro. - Ouviram do combate? - Sim - disse o coxo, com um sorriso. - Morreram muitos. Morreu um rapaz ali da aldeia ao lado. Houve bito ontem. - Ns sempre dizemos para os angolanos desertarem do exrcito. As balas no escolhem - disse o Comissrio. - Foi o nico angolano que morreu? - No. Houve outro. Mas esse era do Sul. Brancos que morreram muitos. Um era capito. - Como se chamava? - Capito Lima. Eles deram ordem para se procurar rastos em todo o lado, mas o povo no est a fazer... - E a vocs, fizeram alguma coisa? - Interrogatrio - disse o mecnico. - Muitas perguntas. Quantos guerrilheiros eram, como era o chefe, onde foram, o que falavam, o que comiam, como eram as armas... Mostraram fotografias, para ver se vocs eram aqueles das fotos. Nenhum era! Ficaram zangados, foi com as minas. Que ns sabamos das minas e que no dissemos nada. Mas ns no sabamos. Eles esto bravos... Puseram um da Pide a na aldeia. - Vocs sabem quem ? - Sabemos, sim. Ento porqu que veio s agora? mesmo da Pide. Por isso que perigoso aqui... - Sim, ns j vamos - disse Lutamos. Surgiram vozes no caminho. Esperaram que os passos se

afastassem, depois despediram-se dos trabalhadores. Estes aproximaram-se cautelosamente do caminho, espiaram dos dois lados e, no vendo ningum, meteram-se nele. Os guerrilheiros tinham-nos seguido, para verem se, de facto, iam sair da aldeia ou se a ela voltavam. Esperaram ainda uns minutos, os nervos tensos, para se certificarem que os trabalhadores no os iam