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Problemata: R. Intern. Fil. Vol. 02. No. 02. (2011), pp. 115-136 ISSN 1516-9219. Data de recepção do artigo: agosto/2011 Data de aprovação e versão final: set./2011 HEIDEGGER E A LINGUAGEM em “Ser e tempo” Paulo Rudi Schneider * Resumo: O texto tenta descrever e compreender o significado da linguagem como existencial de acordo com “Ser e tempo” de Heidegger. O Dasein se expressa e se configura como linguagem recolhendo e oferecendo o sentido de todos os existenciais dando condições à proximidade, à diferença e a relação entre a imediação do ser e todos os entes sob sua luz, sua dependência e recíproca referência. Palavras-chaves: Linguagem, discurso, significância, ouvir Abstract: The text attempts to describe and understand the language as an existential according to Heidegger's Being and Time. Dasein expresses and manifests itself in language as collecting and providing the sense of all the existentials giving conditions for the vicinity, and the relationship to the difference between the immediacy of being and all beings in their light, their dependence and mutual reference. Keywords: Language, speech, significance, listen Inicio com uma tese muito geral sobre o título do livro de Heidegger Ser e tempo. Já o título de Ser e tempo expressa a indicação de um protesto contra a metafísica na filosofia desde Platão, que propunha o ser como intemporal, como algo que é constante e que permanece presente eternamente o mesmo no HEIDEGGER AND THE LANGUAGE in "Being and Time" * Doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professor tempo integral da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul no Curso de Filosofia e no Mestrado de Educação nas Ciências. m@il: [email protected]

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  • Problemata: R. Intern. Fil. Vol. 02. No. 02. (2011), pp. 115-136

    ISSN 1516-9219.

    Data de recepo do artigo: agosto/2011

    Data de aprovao e verso final: set./2011

    HEIDEGGER E A LINGUAGEM em Ser e tempo

    Paulo Rudi Schneider *

    Resumo: O texto tenta descrever e compreender o significadoda linguagem como existencial de acordo com Ser e tempode Heidegger. O Dasein se expressa e se configura comolinguagem recolhendo e oferecendo o sentido de todos osexistenciais dando condies proximidade, diferena e arelao entre a imediao do ser e todos os entes sob sua luz,sua dependncia e recproca referncia.Palavras-chaves: Linguagem, discurso, significncia, ouvir

    Abstract: The text attempts to describe and understand thelanguage as an existential according to Heidegger's Being andTime. Dasein expresses and manifests itself in language ascollecting and providing the sense of all the existentials givingconditions for the vicinity, and the relationship to the differencebetween the immediacy of being and all beings in their light,their dependence and mutual reference.Keywords: Language, speech, significance, listen

    Inicio com uma tese muito geral sobre o ttulo do livro deHeidegger Ser e tempo. J o ttulo de Ser e tempo expressa aindicao de um protesto contra a metafsica na filosofia desdePlato, que propunha o ser como intemporal, como algo que constante e que permanece presente eternamente o mesmo no

    HEIDEGGERAND THE LANGUAGE in "Being and Time"

    * Doutorado em Filosofia pela Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande doSul. Professor tempo integral da Universidade Regional do Noroeste do Estado doRio Grande do Sul no Curso de Filosofia e no Mestrado de Educao nas Cincias.m@il: [email protected]

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    fluxo de um tempo infinito e das transformaes em geral. Ottulo Sein und Zeit d imediatamente a idia de que o ser, quese diz e que mesmo inevitavelmente se a cada vez, estconjugado com o tempo, sendo o ser imediatamente temporal,isto , no sentido de que o Ser-a faz brotar o tempo nacompreenso discursiva de tudo em tudo ao modo designificncia original na imediao da compreensibilidade.

    O pargrafo 34 de Ser e tempo intitula-se Da-sein undRede. Die Sprache (Ser-a e discurso. A linguagem) e faz partedo 5 Captulo que analisa o Ser-em (In-sein) como tal. Logo noincio do pargrafo que trata do discurso e da linguagem,Heidegger afirma que o fundamento ontolgico-existencial dalinguagem o discurso (Rede) e confessa que apesar de no terabordado tal fenmeno at ento, desde o incio, porm, dele seserviu continuamente para elaborar a temtica da disposio(Befindlichkeit), a compreenso (Verstehen), a interpretao(Auslegung) e a proposio (Aussage). Assevera ainda que doponto de vista existencial o discurso acompanha a disposio(Befindlichkeit) e a compreenso (Auslegung) no que se refere originalidade. O discurso to originrio quanto a disposio ea interpretao.

    Mas para entender mais profundamente de queoriginalidade o filsofo a trata e da qual diz que com ela desdeo incio conta, necessrio se reportar ao que antecede a estatemtica.

    Depois da tarefa de uma anlise preparatria do Ser-a,encontramos em Ser e tempo a elaborao do Ser-no-mundo emgeral como sendo a constituio fundamental do mesmo A ser.Ser-a configura-se como Ser-no-mundo no comosimplesmente tendo o mundo como invlucro em que somentese encontrasse, mas um mundo como um existencial quecaracteriza a sua situao de morar, habitar, deter-se, estarhabituado, familiarizado e cultivando sempre algo. Desse modo

    Serseinviaprimiconmulhe

    umcondee ncondesemdePreSerentfunmudoorigcomqueconpossim

    umalgdefpre

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    geral. Oo ser, quevez, esttemporal,tempo namodo deade.-sein undfaz parte. Logo nonguagem,tencial dade no ter, dele seisposiorpretaoa que doisposioe refere posio e

    de queela desdede a esta

    do Ser-a,undo emo A ser.

    comosomente

    ncial que-se, estarsse modo

    Ser-em estrutura originria, o jeito de ser daquele ente Da-sein, A-ser, ou imediata e inevitavelmente Ser-a, que, sem talvis, no poderia ser. Esse jeito de ser como Ser-a trazapresenta dificuldade de entendimento, porque fatalmente seimiscui o esquema da diferenciao entre sujeito e objeto doconhecimento, no sentido de que supe um sujeito situado nummundo que deve tratar de conhecer objetos que simplesmentelhe so dados sua frente.

    A facticidade dessa constante relao entre um sujeito eum objeto sua frente um pressuposto fatal na produo deconhecimento, ou na epistemologia para elucidar fundamentosde qualquer tipo de conhecimento. Mesmo que pressuposto fatale necessrio, porm, vo para o que Heidegger quer dizer naconotao que lhe interessa. O conhecimento como uma relaode sujeito e objeto vem a ser uma situao verdadeira, massempre derivada, isto , nunca podendo chegar anterioridadede j Ser-a enquanto Ser-no-mundo e Ser-com os outros.Previamente ao conhecimento j h a situao de Ser-a comoSer-no-mundo, ou, Ser-a em Forma-de-mundo. Pode-se dizerento que conhecer um dos modos possveis de Ser-no-mundofundando-se inevitvel e previamente no fato de j-ser-junto-ao-mundo ao modo de simplesmente um ente que -a. O processodo conhecimento j no mais um manuseio e utilizaooriginria e direta de um sujeito instaurador absolutocomprometido desde sempre com as teorias e os instrumentosque perfazem o todo do mundo e a sua compreenso. Aocontrrio, conhecimento sempre j dependente de uma atenoposterior que se detem e se fixa diante de algo como se fossesimplesmente dado em forma de objeto independente e isolado.

    No modo de ser derivado do conhecimento cumpre-seuma percepo que se realiza maneira de interpelar e discutiralgo como algo e, ento, a percepo se torna determinaodefinidaa e especfica, pronunciada por sentenas que se querpreservar e manter em forma de proposto, em termos de

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    proposies vlidas, supostas como estatutariamenteindependentes do sujeito que as pronuncia. A inteno geraldesse procedimento ter-se como fundamento, suporte e sujeitoque, a partir da sua autonomia legiferante, constitui um objetoque est fora, distanciado de si. Na verdade, porm, com toda atrama do conhecimento ainda se trata do Ser-a que com estaestratgia de si mesmo conforma uma nova posio ontolgicano que se refere ao seu mundo que A est j constantementedescoberto. Esta posio ontolgica possvel evidentemente,ento, faz parte do seu Ser-no-mundo, sem de modo algumliber-lo para uma fictcia independncia de um envolvimentodireto com o que construiu em termos de algo como algo. Estanova possibilidade ontolgica pode-se desenvolverautonomamente, pode-se tornar uma tarefa, e, como cincia,assumir a direo do ser-no-mundo (Sein und Zeit, pg. 62).Mesmo assumindo, porm, a direo, o conhecer, ao contrrio, um modo do Da-sein fundado no Ser-no-mundo (Sein und Zeit,pg. 63). E isto por que? Porque mundanidade um conceitoontolgico e significa a estrutura de um momento constitutivodo Ser-no-mundo (Sein und Zeit, pg. 64). Portanto, toda ainterpretao objetiva de mundo, ou mesmo de naturezaabsolutamente separada, sempre j pressupe o Ser-no-mundoenquanto estrutura fundamental do Ser-a, enquantodeterminao existencial do mesmo, ou at, como carterdaquilo que prprio dele. Nessa condio de originalidade, emque Ser-a e Ser-no-mundo se entrelaam, os entes comonatureza, e tudo o que a esse conceito pertence, vm ao encontroe se descobrem no modo de ser compreensivo do Ser-a. Tal Ser-a s pode descobrir o ente geral natureza enquanto determinadoe especfico jeito de ser derivado da constituio fundamentalque o caracteriza como Ser-no-mundo. A natureza, ento, nuncalhe poder tornar compreensvel a mundanidade que desdesempre o caracteriza. Este estado de coisas torna gritante adiferena com a posio filosfica de Descartes que estatui uma

    diccogpleextma

    cospercomcote ueleporno-permadoentcosusogredeinsessserquegraprequatodde-nocom

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    ariamenteo gerale sujeitom objetoom toda acom estantolgicantemententemente,do algumolvimentoalgo. Estasenvolvero cincia,, pg. 62).ntrrio, und Zeit,conceitonstitutivoo, toda anaturezao-mundoenquantoo carteridade, emtes comoencontro. Tal Ser-terminadodamentalo, nuncaue desdegritante atatui uma

    dicotomia entre res cogitans e res extensa, pela qual a rescogitans enquanto sujeito, sub-iectum, fundamento, plenamente capaz de articular de modo dominador toda a resextensa externa como misto de espacialidade, tempo, sensaomaterial e resultado de clculo.

    O Ser-a como Ser-no-mundo cotidiano em seu modocostumeiro de lidar com todos os entes. Ele no tem umapercepo geral neutra e pura sem compromissos com aquilocom que est relacionado no dia a dia. Como Ser-no-mundocotidiano ele est referido ocupao com o imediato manuseioe uso de entes antes de qualquer tematizao especfica sobreeles. Os entes de que faz uso cotidianamente so pr-temticos,porque simplesmente j so parte do seu jeito de ser como Ser-no-mundo, determinando estruturalmente todas as suaspercepes. Estas, por sua vez, no mais so puras e neutras,mas referidas situao geral da configurao social e histricado mundo. A percepo de mundo do Ser-a est umbilicalmenteentrelaada ao mundo que assim compreende como natural ecostumeiro, como que fazendo parte da sua pele pela ocupao euso imediatos: porta, trinco, cama, utenslios em geral. Osgregos chamavam tais coisas que fazem parte do nosso costumede uso no dia a dia de pragmata, dito Zeug em alemo, ouinstrumento em portugus. Todos os instrumentos estoessencialmente relacionados ao Ser-a pela referncia de a-serem-para alguma coisa, prestam-se para algo que faz parte doque j imediatamente somos, so manuseveis formando umgrande conjunto sempre referido ao jeito de Ser-a, ou seja, aprestabilidade, ou a manualidade (Zuhandenheit). Antes dequalquer teorizao a respeito dessas coisas, a configurao detodas elas, como que pregadas ao nosso ser, perfaz uma viso-de-conjunto, uma circunviso (Umsicht). Um mundo sem issono seria para o Ser-a um mundo em que se compreendessecomo sendo seu mbito costumeiro, natural e referido de mil

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    maneiras ao seu ser assim. Uma simples martelada carregadade referncias supostas quanto ao sentido de para que (Wozu) semartela e do que (Woraus) o instrumento feito, o qualsimplesmente se usa sem pensar de modo temtico nisso, porqueo mundo simplesmente assim se d e continua a ocorrer.Quando, porm, a ferramenta se danifica, somos surpreendidospela importncia daquilo que se quebrou e agora faz falta emseu uso costumeiro, pois interrompeu com tal perturbao aimediata referncia usual, a continuidade no fluxo normal doemprego vital do instrumento. Assim, pela impossibilidade deuso, pela falta, pode impor-se a percepo de um conjunto dereferncias de todos os instrumentos como algo nunca assimanteriormente visto, mas j desde sempre presente na Umsicht,na circunviso, no anncio do mundo que o prprio Ser-a relacionado com instrumentos. A normalidade da prestabilidadedo manual cotidiano constitui a estrutura fenomenal de ser-em-sidesse ente: o mundo em sua normalidade no causa surpresa. Ofenmeno do mundo, porm, pode evidenciar-se neste processocomo algo em que (Worin) o Da-sein sempre esteve e para oqual (Worauf) ele pode retornar explicitamente pelacompreenso do evento da quebra, da falta, da obstruo. Afamiliaridade do mundo, na qual o Ser-a pode perder-se emesquecimento de si como Ser-no-mundo, feita de ocupaocostumeira e no temtica especfica, mas, mesmo assim,constitutiva do seu ser assim. A extrema naturalidade e ainequvoca normalidade em que os entes lhe vm ao encontropodem, por isso mesmo absorver o Ser-a de tal modo que acompreenso desse fato se lhe obscurece, e ele se perde nosafazeres cotidianos normatizados.

    O fenmeno da referncia com que todos os entesremetem uns aos outros de acordo com a sua prestabilidadepodemos assinalar com a expresso totalidade referencial. Demodo bem especfico ns encontramos a indicao dereferencialidade (Verweisung) nos sinais, que em seu conjunto

    insuniporrefedocsigintedadestrcirccon, taoquecomcomaomuconcomtenesposquejeit

    imeemnuminteFamcomseuorig

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    carregada(Wozu) se, o qualo, porqueocorrer.

    reendidosfalta emrbao aormal doilidade denjunto deca assimUmsicht,Ser-a

    tabilidadeser-em-sirpresa. Oprocessoe para o

    nte pelatruo. Aer-se emocupaoo assim,dade e aencontrodo que aperde nos

    os entestabilidadencial. Deao deconjunto

    instrumental pode ser compreendido como uma relaouniversal, pois toda a referncia relao (Beziehung) e esta,por sua vez, denota a sua origem ontolgica no fundamento dareferencialidade. O uso de sinais, rastros, restos, monumentos,documentos, testemunhos, smbolos, expresso, manifestao,significado, - tal uso acessvel na circunviso e permaneceinteiramente no mbito de um Ser-num-mundo imediatamentedado. O que ocorre, ento, que a prestabilidade forma umaestrutura de referncia perfazendo toda uma condiocircunstancial, uma conjuntura (Bewandnis), uma estruturaconjuntural fazendo parte da compreensibilidade do Ser-a, isto, tal estado de coisas caracteriza o modo de ser do Ser-a. queao modo de ser do Ser-a lhe inerente uma compreenso de serque se traduz exatemente pelo compreender em que acompreenso de Ser-no-mundo essencial. Isto perfaz a suacompreenso de ser medida que entes intramundanos lhe vmao encontro num mundo que inevitavelmente compreenso demundo e ele, o Ser-a, desde sempre relao. claro que talcontexto de familiaridade flui tranqilamente em exerccio decompreensibilidade, sem necessitar qualquer transparnciaterica determinada para a sua realizao. Mas precisamentenesse fluir normal da compreensibilidade que se funda apossibilidade de uma interpretao ontolgico-existencial, emque o prprio Ser-a se incumbe da tarefa de interpretar o seujeito de ser, as suas possibilidades e o sentido do ser em geral.

    O Ser-a como compreenso exerce seu compreenderimediatamente comprometido com a sua condio circunstancialem que as referncias costumeiras remetem umas s outrasnuma constante abertura prvia. A ao de significar articulaintermitentemente as referncias ao modo da compreenso.Familiarizado com e caracterizado pelo exerccio dacompreenso, ento, o Ser-a possibilita significar a si mesmo oseu ser e o seu poder-ser numa situao de compreensooriginria, uma totalidade originria que aquilo que pela

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    ao de significar (bedeuten). Nesta ao o Ser-a possibilita a simesmo compreender previamente a sua condio de Ser-no-mundo. Esse crculo intermitente chamado de significnciacomo a totalidade do exerccio de significar em compreenso. Asignificncia constitui-se em estrutura do Ser-no-mundo do Ser-a, em que o mesmo Ser-a j sempre como , umareferencialidade constante. A significncia inerente e familiar aoSer-a traz em si mesma uma condio ontolgica fundamental.Em seus movimentos, exerccios de compreenso einterpretao pode depreender, ou tornar acessveis ossignificados (Bedeutungen erschliessen) que, por sua vez,possibilitam a fundao da palavra e da linguagem.

    O Ser-a como Ser-no-mundo expressa-se por ser-com[Mit-sein] e Ser-a-com (Mit-da-sein) possibilitando o ser-prprio e, por seu intermdio, o contraposto a ele, ou seja, oimpessoal, o a gente, o que Heidegger denomina o Man. Janteriormente se aventava a possibilidade de o Ser-a poderperder-se numa determinada normalidade naturalizada comocotidiano costumeiro, sem perceber as determinaes dacompreenso pela qual se define: um modo de pensarcoletivizado ao extremo. Frente a esse fenmeno deimpessoalidade, o a gente, ou o Man, trata-se de desenvolver oentendimento desta possibilidade. O Ser-a nunca solitrio,mas sempre est na condio de referncia em relao s coisase aos outros Seres-a. Na normalidade de uma determinadacompreenso instalada, o Ser-a , ento, cativado a ser como osoutros, a pertencer sempre aos outros numa situao deneutralidade impessoal. Nesta condio, cada um como ooutro, e o Ser-a permite que se dissolva o seu ser no jeito de serde todos os outros ao mesmo tempo em que os outrosdesaparecem cada vez mais na sua prpria possibilidade dediferena e expressividade. Emerge, ento, a ditadura doimpessoal enquanto falta de surpresa at a chegar condio de

    impimpmoperexidoperposprobscon

    mucomsigposme

    exporigcomsiga snt(StOcaralgdisGesuasimdoeni

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    Problemata - Rev. Int. de Filosofia. Vol. 02. No. 01. (2011). pp. 115-136

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    ibilita a sie Ser-no-nificnciaeenso. Ao do Ser-, uma

    amiliar aodamental.enso eveis ossua vez,

    r ser-como o ser-u seja, oMan. J-a poderda comoaes dae pensareno de

    nvolver osolitrio,s coisasterminadar como osuao decomo oito de seros outroslidade deadura dondio de

    impedir a possibilidade de constatar tal fato. Quanto mais oimpessoal, o a gente, se ativa visvel e intensamente em variadosmovimentos sociais, histricos e culturais, mais difcil se tornaperceb-lo. Mas h que dizer de imediato que o impessoal umexistencial, fenmeno originrio e que faz parte da constituiodo Ser-a de modo positivo. De incio, o Ser-a impessoalpermanecendo assim na maioria das vezes. Porm, h apossibilidade do mundo do Ser-a abrir para si mesmo o seuprprio ser concretizando compreensivamente a eliminao dasobstrues e dos encobrimentos com que o prprio Ser-aconstri o seu exlio.

    Aos poucos se forma a idia de que o Ser-a como Ser-no-mundo sempre j est numa condio de A, de Pr enquantocompreensibilidade originria em contnuo acontecer, enquantosignificncia ocorrente que possibilita ao Ser-a a abertura parapossibilidades de compreenso que, no entanto, novamentemesmo .

    Esta condio de A-ftico, inevitavelmente ocorrente,expressa-se por dois modos constitutivos de ser igualmenteoriginrios e fatais, ou seja, a disposio (Befindlichkeit) e acompreenso originria enquanto movimentao designificncia prvia a qualquer tematizao determinada. O Ser-a se d continuamente como disposio, que em seu aspectontico se expressa enquanto tonalidade afetiva, humor(Stimmung), uma realidade estrutural existencial fundamental.O fato de os humores mudarem exemplifica que eles semprecaracterizam o Ser-a de um ou outro modo, pois revelam comoalgum est e se torna na pureza e imediatidade do seu A. Taldisposio ajuda a compreender que o fato de Ser-a umaGeworfenheit, um estar-lanado inevitvel e incontrolvel emsua imediao. A tonalidade afetiva, o humor remete o Ser-a aosimples fato do seu A, apresentando-lhe um enigma inelutvel,do qual nunca poder se desprender, pois ele mesmo o prprioenigma enquanto tonalidade afetiva em processo. Tambm a

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    mesma disposio, Befindlichkeit, que, como modo de serexistencial, torna possvel o Ser-a abandonar-se meraobjetivao do mundo, deixando-se levar a ponto de se esquivarde si mesmo, da compreenso da sua ocorrncia.

    Acompanhando a disposio de modo igualmenteoriginrio, a compreenso constitui o Ser-a como modofundamental, pois com ela o mundo est A em forma de Ser-no-mundo do Ser-a. Tal compreenso originria significaprecisamente a abertura originria, que ao mesmo tempopossibilita a significncia. Trata-se do existir, em que o Ser-asubsiste enquanto poder-ser de ativao de significncia.Precisando melhor, necessrio dizer que o Ser-a no algodado que, alm disso, tivesse a possibilidade de ser, pois ele antes de tudo a prpria possibilidade de ser, de modo que ocompreender, de que falamos, o ser desse poder-ser. O Ser-a a prpria possibilidade de ser livre para o poder ser. Acompreenso que assim se d possui, por isso, a estruturaexistencial de Entwurf [de projeto], ou seja, ela tem um carterprojetivo, pois Ser---A. A compreenso originria articula asignificncia sem ter a necessidade de determinar as suaspossibilidades tematicamente de modo explcito na inteno doconhecimento. Por este vis de projeo o Ser-a sempre maisdo que de fato, mas, pelo outro vis, nunca mais do que defato , pois ele se define desde sempre pelo poder-ser. Da apossibilidade da frase curiosa: S o que tu s (Idem, 145). O serem projeto se refere a toda a abertura do Ser-no-mundo. E,emergindo de si mesma como Ser-a, a compreenso pode serprpria ou imprpria, pois est impregnada de possibilidades.

    As possibilidades que se projetam e que so constitutivasdo Ser-a em compreenso concretizam-se como interpretaes,isto , a compreenso elabora-se a si mesma como interpretao,no, portanto, diferente dela. Compreenso e interpretaofundam-se mutuamente perfazendo possibilidades. Ainterpretao a elaborao das possibilidades projetadas na

    comalgintecircnecpreemAlgcomcomdetproqueimeconalgvisisto

    inteorige einecomcomatri

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    Problemata - Rev. Int. de Filosofia. Vol. 02. No. 01. (2011). pp. 115-136

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    o de ser meraesquivar

    ualmenteo modoe Ser-no-significao tempoo Ser-aificncia.o algopois ele do que oO Ser-a er ser. Aestruturam carterarticula aas suas

    teno dopre mais

    do que deer. Da a45). O serundo. E,pode ser

    idades.stitutivaspretaes,rpretao,rpretaoades. Aetadas na

    compreenso e o que se interpreta tem a estrutura de algo comoalgo. O como da expresso algo como algo j constitui ainterpretao, a estrutura da explicitao do compreendido. Nacircunviso (Umsicht) e na interpretao (Auslegung) no h anecessidade de uma proposio determinante. Antes de toda apredicao, toda a viso pr-predicativa do que est mo j em si mesma uma compreenso e interpretao (Idem, 149).Algo como algo j se d na imediao da significncia dacompreenso original e antecede toda a proposio temtica. Ocomo, portanto, no ocorre apenas posteriormente na proposiodeterminante e derivada, a qual, ento, tem como tarefa depronunciar aquilo que j se ofereceu para ser pronunciado. Oque vem ao encontro dentro do mundo a compreenso em suaimediatidade como Ser-a j desde sempre apropriou numaconjuntura, a ento, a interpretao expe. Tal interpretao dealgo como algo funda-se, essencialmente, numa posio prvia,viso prvia e concepo prvia (Vorhabe, Vorsicht e Vorgriff),isto , eivada de pressuposies compreensivas.

    Conforme o exposto, a proposio derivada dainterpretao que, como j se sabe, se funda na compreensooriginal. A proposio enquanto juzo, fundada na compreensoe exercendo uma forma derivada, apresenta tambm um sentidoinerente e implcito nesse ato, em que a estrutura como, algocomo algo originria, sofre uma modificao, dando compreenso e interpretao uma nitidez maior. So trs asatribuies dadas ao fenmeno da proposio.

    1. Ela significa (Aufzeigung), de-monstrao indicativa,isto , atribui-se a tarefa de mostrar em direo a algo,com o que se conserva a originariedade do sentido deLogos como Apfansis, deixar ver, trazer luz do dia.Com isso se quer dizer que no h implicao dequalquer representao que tivesse intermediado oupudesse intermediar como sentido o que se mostrou. Naproposio o martelo pesado demais se relaciona oente referido sua prestabilidade, ou manualidade

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    imediata, e no a uma elucubrao psquicarelacionando sujeito e objeto.

    2. Proposio colocao de predicado, predicao, coma qual o ente martelo determinado, tem a sua visorestringida a uma determinada perspectiva.

    3. A proposio comunicao no sentido de fazer comque se participe para que seja comum a todos, de modoque o mostrado seja compartilhado, fazendo parte dosoutros. Tal mostrado pode agora inclusive ser ditoadiante, tornando-se o crculo do compartilhamentocada vez maior.

    Essas trs atribuies proposio interligam-se entre si econservam o seu vnculo com a interpretao originria, pois oque se mostra na proposio o que j est aberto pelacompreenso e descoberto originariamente pela Umsicht,circunviso. A proposio necessita sempre de uma posioprvia do que j est aberto na compreenso para trazer luz dodia, para determinar restringindo a uma perspectiva e paracompartilhar.

    Como a proposio se origina da interpretao enquantocircunviso? Qual de fato a modificao que ocorre nestapassagem da imediao da compreenso originria para aexecuo da proposio? que, no exemplo do martelo, o entesimplesmente imediato na lida manual imersa na compreensooriginria, emerge tornando-se aquilo sobre o que a proposiotraz luz do dia, ou seja, algo se especifica determinando-se oencontro com o que simplesmente dado maneira comocomparece. Em suma, as propriedades de algo, isto , aquilo quelhe prprio vem tona. E desse modo a estrutura originriacomo se modifica. Da totalidade conjuntural que se d numcomo originrio em auto-referncia constante agora h quesurgir a funo de se apropriar especificamente do que secompreendeu. O processo de algo como algo cortado dasignificncia original e cai para o plano em que se lida ao mododo simplesmente dado. O como da interpretao originria

    transimnaexisapoantisimDessetematenrefecomasposquedeixVorSer

    dispnocomexpcomcomseabrposinteumcadantecom

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    Problemata - Rev. Int. de Filosofia. Vol. 02. No. 01. (2011). pp. 115-136

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    psquica

    ao, comsua viso

    azer com, de modoparte dosser dito

    ilhamento

    entre si eia, pois oerto pelaUmsicht,a posior luz doa e para

    enquantorre nestaa para alo, o entepreensoroposioando-se oira comoquilo queoriginriad num

    a h queo que seortado daao modooriginria

    transmuta-se num como que tem a funo de determinar algosimplesmente dado (Vorhandenen). O como originrio que se dna imediao da compreenso interpretativa o Hermenutico-existencial e o como especificador e determinante oapofntico, expfresso do logos apofntico. De acordo com aantiga ontologia o logos um ente como outro qualquer, algosimplesmente dado, pois palavras se encontram como coisas.Desde cedo, na filosofia grega com Plato e Aristteles, contou-se com o carter sinttico e divisor do logos, quandotematizavam Syntesis e Diairesis e quando tematizavamatentamente a cpula . Em Ser e tempo, porm, a cpula estreferida ao Ser-a de modo imanente e direto, e no ao logoscomo ente simplesmente dado como coisa. Por esta perspectivaas proposies e a compreenso do ser so, assim,possibilidades existenciais participantes do prprio Ser-a, tantoque o logos se enraza na analtica existencial do Ser-adeixando muito longe a idia de que pudesse ser algoVorhanden, algo simplesmente dado, que viesse ao encontro doSer-a para ser conhecido.

    O fato originrio de ser-em-compreenso e ser-em-disposio sempre situada do Ser-a so inicialmente lembradosno pargrafo 34 de Ser e tempo. Tal fato faz coincidir o Ser-acom o Ser-no-mundo. Algo, porm, ainda no havia sidoexplicitado, ou seja, que a interpretao uma possibilidade dacompreenso em termos de se apropriar daquilo que secompreende mesmo na imediao ocorrente, de modo que agorase pode entender a compreenso originria como sendo maisabrangente e essencial do que a interpretao como suapossibilidade. E ainda, mais determinante do que ainterpretao, e decorrente dela, desvelou-se a proposio comoum derivado. Ligado a esses dados, h que se lembrar e acentuarcada vez mais a terceira atribuio da proposio janteriormente mencionada: a proposio tambm tornarcomum, propiciar a partilha do que emerge como especificao

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    no sentido de compartilhar. Desse modo, estamos nos referindodiretamente ao falar, ao dizer, e necessidade de tematizardiretamente a linguagem em geral.

    O discurso (Rede) o fundamento ontolgico-existencialda linguagem. O que vem a ser discurso Heidegger explicita demaneira direta e cndida: foi o que teria praticado at omomento na tematizao de disposio, compreenso,interpretao e proposio, ou seja, o exerccio direto do Ser-aindo e voltando na prtica efetiva da Syntesis e Diairesis,fazendo ver existencialmente que seu prprio discurso co-originrio, coincidente com a disposio e com a compreenso.A compreensibilidade, a possibilidade de significncia subjaze interpretao, e a fundamental e originria articulao dacompreensibilidade o discurso, o qual s ento se transverteem interpretao e proposio. O prprio Ser-a enquanto Ser-no-mundo, disposio e compreenso ocorrente j discurso,em que a linguagem se fundamenta. Mas, cuidado! As palavrasque configuram linguagem no so coisas separadas que dentrode si contenham significados, pois as palavras j so opronunciamento do discurso pelo qual o Ser-a em disposio,compreenso e interpretao.

    A totalidade das palavras com que o discurso se elaborapossuindo e formando mundo ativa-se maneira daprestabilidade, manualidade imediata, dando oportunidade paraa fragmentao da linguagem em palavras como coisas pelo visda especificao e objetivao. Mesmo assim, linguagem tambm o discurso, porque o Ser-a se abre em significaes nomodo de ser-lanado-no-mundo, sendo Ser-no-mundo edependente de mundo para ser. O discurso articula-se emsignificaes no mbito da compreensibilidade disposta sempreem situao determinada. Pertencem ao discurso ascaractersticas, ou os momentos de primeiro, sobre o que se fala,ou a referncia; segundo, o falado enquanto tal, ou seja, aperformance da fala; terceiro, a comunicao em termos de

    torno adochacaraperpod

    tomabeissoquecarao esconoutesca.com

    deteSerseqe, pcomcoraleratit(SesenempagrSercom

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    tornar-comum na participao, ou no compartilhamento; quarto,o anncio, poder-se-ia dizer o pronunciamento da inauguraodo sentido cumprindo com a continuidade do Ser-a. Heideggerchama a ateno para o fato de que no se pode confundir taiscaractersticas com propriedades meramente empricas, pois jperfazem a ativao da estrutura ontolgica da linguagem e,podemos dizer, a ocorrncia factual do Ser-a.

    A existncia em ocorrncia de ser em termos de Ser-atoma impulso no discurso, o qual desempenha o papel da suaabertura contnua, pois ele a sua constituio existencial. Porisso mesmo, a escuta e o silncio compartilham a linguagem. Oque escutar? Escutar d-se enquanto ser-com os outros que caracterstica fundamental do Ser-a como j visto. Alm disso,o escutar indica precisamente o estar-aberto do Ser-a, que lhe constitutivo. No h Ser-a sem a perspectiva de ser-com osoutros na ativao de todas as significaes e, isso posto, aescuta faz parte da compreensibilidade ocorrente do mesmo Ser-a. O Ser-a escuta compreendendo, e a sua escuta ecompreenso vo fazendo parte do discurso fundamental.

    A escuta traz inerente a si o ouvir (horchen), ou seja, odeterminar fundamental e de imediato a escuta, ou seja, ainda, oSer-a escutando sempre ouve. Isto quer dizer que nunca somossequer capazes de escutar um rudo puro, absolutamente neutro,e, por isso, completamente abstrado e distanciado do Ser-a emcompreenso. Escutando ouvimos j sempre algo: passos nocorredor, a pia entornando, o trovo ribombando, o quero-queroalertando com o seu grito. Heidegger diz: indispensvel umaatitude artificial e complexa para se ouvir um rudo puro(Ser e tempo, pg. 164). Isto tambm significa que as nossassensaes no podem ser mais encaradas como geralmente oempirismo o faz, reportando-as s notcias, ou provocaes, ouagresses de um suposto mundo exterior. De alguma maneira oSer-a desde sempre est fora de si enquanto Ser-no-mundo,compreendendo de tal modo que as sensaes so inerentes e

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    implcitas a tal compreenso. No pode mais haver um sujeito,que como sub-jectum fundamente racional, autnoma eabsolutamente a significao das sensaes, pois o Ser-a j estcomprometido em significncia na ocorrncia das sensaes. OSer-a essencialmente ocorrente em compreenso e s pode serassim na condio de desde sempre estar junto a todos os entes.

    Havendo o discurso do outro na situao de Ser-com,ento, antecipadamente j ocorreu o encontro sobre o que se faladiscorrendo, a compreenso est a ocorrer e o Ser-a est em seuelemento. Escutar e ouvir partilhando na significncia ocorrenteno discurso d precisamente a conotao de pertencimentomtuo na compreenso, mesmo atravs de toda a divergncia,toda a dialtica e o chamado esprito de negao. Se o discurso ea escuta se do no mbito da compreenso, ento apenas podeescutar quem j compreendeu: mesmo que existam divergnciassobre qualquer assunto, o Ser-a em compreenso est em plenaocorrncia.

    Por incrvel que parea, tambm o silncio faz parte dodiscurso na condio de possibilidade constitutiva, pois quemsilencia pode dar a entender que entendeu, ou que faz oposioao compreendido pelo outro. Heidegger diz: Falar muito sobrealguma coisa no assegura em nada uma compreenso maior(Ser e tempo, pg. 166). Ou seja, no se maior, maisimportante, mais exato, mais verdadeiro pelo muito falar, em serprolixo, pois tal falar pode exatamente apenas aparentementeexplicitar algo, mas que de fato pode chegar trivialidade. Osilncio, porm, no mudez, pois apenas h silncio onde hdiscurso em compreenso amalgamada com (Befindlichkeit) afacticidade da disposio.

    O A do Ser-a , portanto, discursivo sem trgua, pois atna escuta, no ouvir e no silncio ocorre ativamente, sendo Ser-no-mundo. Heidegger reporta-se aos gregos afirmando que essaviso do homem lhes era comum, cunhada pela expresso Zoonlgon exon e que a interpretao posterior do homem como

    animcom

    noconporMadurpasentprecomfundepreexisconnoA eestrexesuba adesdeabsposcomsoteorcomO Sse rling

  • animal racional, mesmo que no incorreta, escamoteia acompreenso da definio mais original.

    Tambm para os gregos o homem o que pelo discursono sentido j expresso, e, pelo fato de eles no possurem umconceito especfico para linguagem, entendiam o fenmeno quepor esta palavra hoje designamos principalmente como discurso.Mas o entendimento do logos como s proposio obscureceudurante sculos tal entendimento originrio, pois do logospassou-se lgica para fundamentar a gramtica permanecendo,ento, na ontologia do simplesmente dado esquecendoprecisamente o Ser-a. Tambm o discurso, assim, foi entendidocomo somente proposio, no se conseguindo mais voltar parafundamentos mais originrios. Heidegger advoga que: A tarefade libertar a gramtica da lgica necessita de uma compreensopreliminar e positiva da estrutura a priori do discurso comoexistencial (Ser e tempo, pg.167) Ou seja, o discurso constitutivo da Ser-a, o Ser-a discurso ocorrente e o discursono somente um objeto controlvel distncia por um sujeito.A estrutura a priori do discurso como existencial a mesmaestrutura do Ser-a que por ele se caracteriza. A lgica, comoexerccio abstrato alm da ocorrncia imediata do discursosubjacente e co-originrio com a compreenso discursiva, tendea alienar o Ser-a num determinado jogo, o qual, na verdade,desde sempre j resultado da facticidade da significncia. Ditode outro modo, a lgica torna-se apenas um ente intramundanoabstrato quando esquece o cho de onde decorre. Todas aspossibilidades de articulao semntica daquilo que se podecompreender remetem s formas fundamentais do Ser-a. Noso as sentenas expressando entes que conhecemosteoricamente aquelas que tem a primazia, mas a compreensocomo modo de Ser-a que se exercita de imediato nas sentenas.O Ser-a constantemente destinado, ou em destinao, constitui-se raiz da semntica, a qual ento capaz de florir em discurso-linguagem.

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    Dito isso, possvel pensar sobre a convenincia, ou apertinncia de uma filosofia da linguagem, pois talvezequivaleria a perguntar num eterno retorno sobre o ser do Ser-aque se consagra e reconhece imanente, ou coincidente com acompreenso, com discurso, com a ocupao em termos designificncia sempre factual, inauguradora anunciante,compartilhante. Uma filosofia da linguagem seria uma espciede apontar para um espao vazio onde se esteve, mas j nomais est e nem mais o espao existe, pois est no exercciocontnuo de apontar. Creio que por isso que Heidegger sugererenunciar a alguma filosofia da linguagem para que se estejaacionado, livre e instigado a perquirir pelas coisas mesmas, isto, investigando o mbito, ou o local ontolgico do fenmeno dalinguagem em termos de Ser-a, perguntando pelo sentido do serocorrente, alm, portanto, dos resultados das solidificaescompreensivas objetivadas ou at absolutizadas. Essassolidificaes existiriam possibilitadas pelo vis meramenteproposicional, em vez de atentar cada vez mais para ascondies de possibilidade do ser do sentido como inauguraofctica anunciante e compartilhamento compreensivo semprenuma determinada situao de disposio.

    No h, porm, como esquecer que as estruturasexistenciais at agora tematizadas no sentido de compreender aconstante abertura discursiva do Ser-a como ser empossibilidade sempre atual, como imediatamente Ser-no-mundo,ativam-se configurando o que chamamos de cotidiano trivial,podendo esclerosar-se no Man, no impessoal, como j foi dito.Em outros termos, o impessoal seria a consagrao de umparadigma nunca descoberto e intensamente implementado paraa formao de uma massa geral, por vezes um turbilhoinconsciente, uma seduo concretizada no esquecimento do seuser assim. O Ser-a completamente embotado no mais consegueperguntar pelo sentido do ser e vislumbrar o ser do sentido, poisse amarrou e viciou no recuo a um crculo compreensivo que lhe

    pardano SdenpospretodIstopodabscomcominau

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    parece familiar pela objetivao que produziu e no qual todosdanam ao som da mesma msica. Mas h que dizer que talvezo Ser-a como Ser-no-mundo foi precisamente lanado paradentro desse crculo e no qual, ento, lhe dado exercer as suaspossibilidades de compreenso, e inversamente, queprecisamente a compreenso implcita do Ser-a proporcionatodas as possibilidades de ser discursivo e referido linguagem.Isto significa que tambm o Man, o impessoal aberto, no sepodendo nunca conceber o discurso em exerccio do Ser-aabsolutamente fechado, pois facticidade de significncia ecompreensibilidade por definio no aceitam dominaocompreensiva de um suposto exterior, j que sempre partilham einauguram o seu prprio vir a ser.

    Por fim, algumas consideraes finais:1. Pela idia do compartilhar compreensivo-discursivo e

    inaugurador do Ser-a na linguagem, chega-se quase aafirmar que o Ser-a a localizao do ser emocorrncia. Ento a linguagem, quando esquecida numacompreenso solidificada e abstratamente distanciadado Ser-a, estatui-se como meio para um fim, comoinstrumento mediador entre falante enquanto sujeito ecoisas simplesmente dadas e presentes a seremsignificadas fora do discurso originrio do Da-sein-Ser-a. A linguagem por este vis tida como instrumento-meio e, por conseqncia, ela mesma como entesimplesmente dado presente, possibilitando a umafilosofia da linguagem esquecida da sua provenincia.O caso, porm, que discurso-linguagem constitutivodo Ser-a sempre em sentido ocorrente como se o Ser-afosse a ocorrncia do ser do sentido, em quedisposio, compreenso, discurso, linguagem, palavraso aspectos do mesmo fenmeno fundamental.

    2. O verbo mitteilen, ou o substantivo Mitteilung estoquase sempre grifados no texto de Heidegger, e isto afim de chamar a ateno para o fato de que acompreensibilidade e o fato da significncia socompartilhados na compreenso ocorrente, para o fato

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    do ser-com do Ser-a em exerccio, para o fato daimpossibilidade do Ser-a somente permanecer naarmao da significao solitria e na referncia a si emisolamento distanciado do Ser-no-mundo.

    3. Mitteilen, por outro lado remete a e supe umatotalidade em que se esteja e de que se compartilhe.Poder-se-ia imaginar a totalidade do universo, da vida,do mundo, da histria, da vida, em que cada um fosseuma mnada, um pedao a agir numa totalidade j dadae a ento se ativar em participao. Mas mesmoqualquer sentido proposto de qualquer tipo detotalidade desde sempre j tambm uma partilha pelodiscurso, uma interpretao em ocorrncia imediata queno pode cair na tentao de se absolutizar, sob pena dereinventar a metafsica da antiga ontologia. No hcomo circunscrever a totalidade de que fazemos partepara defini-la, pois qualquer definio de absolutoaberto ou fechado, como na discusso sobre o absolutoem Hegel, seria Ser-a em ocorrncia discursiva finita,tanto que a inaugurao pronunciante de qualquerabsoluto de qualquer modo seria um sem-sentido. Talparticipao pronunciante e inauguradora seria finitaem sua ocorrncia, pois simplesmente prope apossibilidade de um tempo para dentro dele ser comose fosse um espao ocupvel.

    4. A participao geral da linguagem em si mesma deixaespao at para a proposio esquecida desta partilha,isto , quando prope um sentido fora de si de um entesimplesmente dado, conforme a metafsica da presena.Toda a objetividade, mesmo que em funcionamentodito real, tem a possibilidade de retorno compreensodo Ser-a, situao de interpretao ocorrente comopossibilidade.

    5. O sujeito como Ser-a est diludo, melhor,potencializado em estar inevitavelmente localizado noser. O sujeito como sub-iectum uma possibilidade deSer-a, um agregado de significaes possveis; mas,quando esquecido em sua sedimentao, ento se perdeno redemoinho da fixao escolhida insistindo em se

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    localizar na inteno de ser definitiva. Novamente,qualquer absoluto apenas um detalhe que sedesmancha na finitude do seu dizer.

    6. Qualquer assunto, qualquer compreenso, interpretaoreparte, partilha, compartilha.

    7. Qualquer disposio compreensiva refere-seirremediavelmente a determinada situao com outros

    8. Qualquer interpretao tem um olho imanentementeaberto como mundo-com-outros.

    9. Qualquer linguagem pressupe o outro.10. O Ser-a determinado facticamente pela partilha

    constante da compreensibilidade, da significncia detudo que mesmo .

    11. Em tudo isso permanece uma dvida fundamentalcompreensvel num episdio curioso que para mim seconstitui um recado:

    12. Depois de uma conferncia em Iju, j no caminho emdireo a um bife compartilhado num restaurante dacidade, o filsofo Ernst Tugendhat me perguntou sobrea minha tese de Doutorado. sobre a linguagem emWalter Benjamin, disse eu e ainda aduzi de modocauteloso: Benjamin chega quase concluso de que ohomem discurso-linguagem. Retrucou-me ele, ento:Nein, nein, nein. Der Mensch ist nicht Sprache, derMensch spricht. Ou seja: No, no, no: o homemno linguagem, o homem fala. Qual a diferena? Seo Ser-a possui a estrutura do discurso-linguagem,ento de algum modo o homem pode ser identificadocom discurso-linguagem e o homem linguagem.Talvez a, porm, parece que tudo se perde no abismoda tautologia, pois Ser-a emerge como linguagem elinguagem emerge como Ser-a com todas as suasimplicaes. Se, por outro lado, o homem fala, parecehaver ento a tentativa de resguardar de um mergulhono abismo um si mesmo chamado homem como tendosempre a possibilidade de acompanhar e permanecercom as rdeas da carruagem do discurso-linguagem quemesmo , imprimindo pelo menos a direo.

    Confesso que at hoje no resolvi a questo. Mas ao

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    professor naquela noite respondi quanto sua discordncia:Isso a briga para gente grande e para muito tempo ainda. Nadvida, recolho-me s minhas chinelas sem pretender juzodefinitivo. Devo dizer que no adiantou esquivar-me daquesto sobre a qual fiquei desde ento matutando sem resolv-la at o presente momento.

    1. Der Mensch ist Sprache (o homem linguagem): ohomem se dilui numa significao definida que mesmo e produz, e, sendo diludo quem define o que, e quempode ser responsabilizado pelo discurso-sentido queadvm?

    2. Der Mensch ist nicht Sprache, der Mensch spricht (ohomem no linguagem, o homem fala): o homem falae a linguagem algo que ele articula como um ente aomodo proposicional, suspendendo a condio depossibilidade daquilo que exerce, ao modo de anlisesemntica de tudo o que aparece pela frente e pela qualalgum responsabilizado. Mas ento h que perguntarquem este quem fundamental que pretende dizer oser, sem, porm, nele embarcar enquanto ser e enquantotempo? Um ser fora da significncia e alm dacompreensibilidade em disposio determinada comque se inaugura o tempo, no pode ser dito, nemsignificado, nem compreendido, pois um no-tempo eum no-ser. Existe isso? isso? Isso ?

    Referncias bibliogrfcas

    DENKER, A. und ZABOROWSKI, H., ORG. Heidegger und die Logik,Amsterdam New Yorck: Editions Rodopi, 2006.

    HEIDEGGER, M. Bremer und Freuburger Vortraege, Frankfurt am Main:Vittorio Klostermann, 2005.

    _________Sein und Zeit, Tuebingen: Max Niemeyer Verlag, 1993._________Zur Sache des Denkens, Tuebingen: Max Niemeyer Verlag, 2000.SAFRANSKI, R. Heidegger, um mestre na Alemanha entre o bem e o mal,

    So Paulo: Gerao Editorial, 2000.