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Fabio Pinto Lopes de Lima O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica Linha de pesquisa: Design, teoria e crítica. Orientador Prof. Dr. Washington Dias Lessa Co-Orientador Prof. Dr. Jorge Lúcio de Campos Rio de Janeiro, 2009

pesquisa de mestrado - Fabio Lopez

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'O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica' Dissertação de mestrado defendida na Esdi em 2009. Pesquisa orientada por Washignton Dias Lessa e co-orientada por Jorge Lucio de Campos.

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Fabio Pinto Lopes de Lima

O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica

Linha de pesquisa: Design, teoria e crítica.Orientador Prof. Dr. Washington Dias LessaCo-Orientador Prof. Dr. Jorge Lúcio de Campos

Rio de Janeiro, 2009

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Fabio Pinto Lopes de Lima

O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica

Dissertação apresentada à ESDI / UERJ como requisito parcial para a

obtenção do grau de Mestre em Design.

Orientador Prof. Dr. Washington Dias Lessa.

Co-Orientador Prof. Dr. Jorge Lúcio de Campos.

Rio de Janeiro, 2009

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Fabio Pinto Lopes de Lima

O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica

Dissertação apresentada à ESDI / UERJ como requisito parcial para a

obtenção do grau de Mestre em Design.

Orientador Prof. Dr. Washington Dias Lessa.

Co-Orientador Prof. Dr. Jorge Lúcio de Campos.

Aprovada em

Banca Examinadora

Prof. Dr. Washington Dias LessaESDI - Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Prof. Dr. Guilherme Cunha LimaESDI - Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Profa. Dra. Priscila Lena FariasCentro Universitário SENAC

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Agradecimentos

a todos que contribuíram com comentários, empréstimos, ima-gens e toda sorte de referências para esta pesquisa, especial-mente Claudio Gil, Daniel Neves, Gustavo Ferreira, Laura Klemz e Ricardo Esteves.

a todos os meus amigos do mestrado, pelo incentivo e pelos inesquecíveis momentos juntos, e especialmente a Helena de Barros, pela grande ajuda.

ao meu orientador, Washington Lessa, pelo rigor e insistência, e ao meu co-orientador Jorge Lúcio: minhas saudações rubro-negras.

aos professores do mestrado, que sem exceção contribuíram com esta pesquisa, e especialmente à professora Lucy Niemeyer, pelo apoio nas horas de aperto. à Fátima Dantas, pela incansá-vel assistência.

ao professor Franklin Leal, por sua gentil receptividade e por ser um grande exemplo para a academia.

a todos meus amigos que aturaram o Fabio mestrando, e aos Carambolas, onde tudo começou.

às amigas Giovana Vaz e Julia Gostkorzewicz: o nome de vocês nessa página me emociona muito, obrigado do fundo do meu coração. aos amigos da Modo Design, Adriana Calderoni, Vera Bernardes, Renata Freeland e à família Vaz Miyazaki.

e à minha família, pela ajuda, paciência e apoio – sempre.

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Resumo

Conceituação do objeto pesquisado: a definição de fontes di-gitais de simulação caligráfica, origem e evolução tecnológica. A identificação das categorias de compreensão da forma cali-gráfica: as características visuais associadas ao universo ins-trumental da caligrafia; ao processo de construção da escrita; à perícia ferramental e à caligrafia como ocorrência espaço-tem-poral. O processo de construção das fontes digitais de simula-ção caligráfica. As etapas de construção das fontes de simu-lação baseadas em referências concretas: análise do original, digitalização, vetorização, métrica e fechamento do arquivo. As estratégias de construção das fontes baseadas em referências conceituais. Articulação de características estruturais e expres-sivas associadas ao instrumental caligráfico. A sugestão do ductus caligráfico em fontes digitais de simulação: construção contínua e interrompida. As estratégias associadas à represen-tação visual da habilidade ferramental: ornamentação, integra-ção e imperícia. O conceito de variância aplicado à tipografia digital: variância manual, aleatória e planejada. Apresentação dos projetos Zapfino, Bickham e Champion Script. Comentários a respeito da relevância das fontes digitais de simulação cali-gráfica: conservação, interação, compartilhamento e valoriza-ção da prática caligráfica.

Palavras-chave

tipografia, tipografia digital, caligrafia, simulação caligráfica, ductus caligráfico, escrita manual.

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The development of digital typefaces simulating calligraphy

Abstract

Conceptualization of the study’s object: the definition of digital typefaces simulating calligraphy, their origin and technological evolution. Identification of categories for understading calli-graphic shapes: visual characteristics associated with the ins-trumental universe of calligaphy; the process of writing; craft skills and calligraphy as a temporal-spatial event. The process of manufacturing digital typefaces simulating calligraphy.The steps of development of digital typefaces simulating calligraphy based on concrete references: source analysis, digitalization, translation to outlines, spacing and font generation. Strategies for designing typefaces simulating calligraphy based on con-ceptual references. Articulation of structural and expressive features associated with the calligraphic craft. Suggestion of calligraphic ductus in digital typefaces simulating calligraphy: continuous and interrupted construction. Strategies associated with the visual representation of instrumental skills: ornamen-tation, integration and lack of skills. The concept of variation applied to digital type: manual, random and planned variation. Presentation of the typefaces Zapfino, Bickham and Champion Script. Comments related to the relevance of digital typefaces simulating calligraphy: conservation, interaction, sharing and in-creasing appreciation for the calligraphic practice.

Keywords

typography, digital typography, calligraphy, calligraphic simula-tion, calligraphic ductus, handwriting.

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Lista de ilustrações

Caligrafia e tipografia (fotografia tirada pelo autor)1.

Fontes digitais de simulação caligráfica (ilustração elaborada pelo autor)2.

Autômato calígrafo (Grisewood & Dempsey,1979: 4)3.

Bios [bible] (www.robotlab.de/bios/pics.htm)4.

Caligrafia clássica (Prestianni, 2001: 35)5.

Caligrafia experimental – Claudio Gil (lagrafia.blogspot.com) 6.

Gudrun Zapf von Hesse e Hermann Zapf (Prestianni, 2001: 11)7.

Graffiti (Gaur, 1994: 221)8.

Tipografia digital (ilustração elaborada pelo autor)9.

OpenType, janela de edição (ilustração elaborada pelo autor)10.

Fonte digital de simulação caligráfica, Zapfino Ink 11.

(ilustração elaborada pelo autor)

As origens do livro impresso: o manuscrito 12.

(www.illuminatedleaves.com/5184.htm e www.lib.jmu.edu/edge/archives/

Spring2003(1)/Article5.asp)

A Bíblia de 42 linhas (Jury, 2002: 12)13.

Roman du Roi (Jury, 2002: 22)14.

Civilité, de Robert Granjon (Horcades, 2004: 66)15.

Limitações da tipografa digital (ilustração elaborada pelo autor)16.

Caligrafia no corpo – Claudio Gil (lagrafia.blogspot.com)17.

Suportes reutilizáveis 18.

(imagem capturada do filme Herói, de Yimou Zhang, 2005)

Codex (Tupigrafia, número 3, 2002: 34)19.

Influência do suporte na aparência da escrita (Haines, 1994: 131, 134)20.

Influência da substância corante na aparência da escrita 21.

(Haines, 1994: 131)

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Tinta borrada – Claudio Gil (lagrafia.blogspot.com)22.

Respingos de tinta (www.flickr.com/photos/gbcrowley)23.

Áreas de contato da ferramenta (ilustração elaborada pelo autor)24.

Ferramentas caligráficas (www.flickr.com/photos/oskila/1357059702/)25.

Ferramentas improvisadas – Hassan Massoudi (Hanania, 1999: 128) 26.

A formação do contraste (ilustração elaborada pelo autor)27.

A distância do contraponto (ilustração elaborada pelo autor)28.

Situações geradoras de contraste 29.

(ilustração elaborada pelo autor com imagem de Noordzij, 2005: 27)

Terminações abruptas (Haines, 1994: 53)30.

Serifas lineares (Noordzij, 2005: 73)31.

Terminações em forma de gota (Gaur, 1994: 174)32.

Letra de proporções reduzidas (Noordzij, 2005: 39)33.

Escrita monumental (Jean, 2002: 65)34.

Cursiva romana antiga (Gaur, 1994: 50)35.

Maneiras distintas de se construir uma letra 36.

(ilustração elaborada pelo autor)

Linha mestra (ilustração elaborada pelo autor)37.

O termo ductus (Tupigrafia, número 4, 2003: 16)38.

Métodos de construção 39.

(ilustração elaborada pelo autor com imagem de Noordzij, 2005: 40)

Gradações na natureza de construção do ductus (ilustração elaborada pelo 40.

autor com imagens de Noordzij, 2005: 38, 40 e Tschichold, 1984: 36, 119)

Limitações técnicas que condicionam a formação da escrita 41.

(ilustração elaborada pelo autor com imagens de Noordzij, 2005: 40)

Escrita cursiva kanji (Postal japonês da coleção do autor)42.

Escrita cursiva (Tschichold, 1984: 9)43.

Cursiva semi-encadeada e encadeada (Tschichold, 1984: 36, 119)44.

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Cursiva semi-encadeada e encadeada (Tschichold, 1984: 36, 119)45.

Inclinação e entorse estrutural 46.

(Noordzij, 2005: 40 e Tschichold, 1984: 154)

Otimização das formas (Frutiger, 1999: 130 e Noordzij, 2005: 24)47.

Conexão entre os caracteres (Tschichold, 1984: 36, 153, 155) 48.

Serifas transitivas (Noordzij, 2005: 81)49.

Terminação abrupta e floreada 50.

(Noordzij, 2005: 83 e Tschichold, 1984: 67)

Terminação lacrimal e hastes em 51. looping

(Gaur, 1994: 174 e Tschichold, 1984: 154)

Maiúsculas sinuosas (Tschichold, 1984: 65)52.

Contraponto cruzado 53.

(ilustração elaborada pelo autor com imagem de Noordzij, 2005: 40)

Distribuição irregular dos caracteres (Prestianni, 2001: 129)54.

Ductus interrompido – diferença no 55. link

(ilustração elaborada pelo autor com imagem de Noordzij, 2005: 40)

Escritas tradicionais de ductus interrompido (Haines, 1994: 50 e 58)56.

Conexão abrupta entre curvas e retas 57.

(Noordzij, 2005: 44 e Haines, 1994: 51)

Desencontro em formas circulares (Haines, 1994: 52, 129, 132)58.

Pautação – Claudio Gil (lagrafia.blogspot.com)59.

Serifas de topo 60.

(ilustração elaborada pelo autor com imagem de Noordzij, 2005: 25)

Perícia ferramental (Tschichold, 1984: 173)61.

Qualidade de execução (Tschichold, 1984: 45)62.

Ritmo constante (Gaur, 1994: 10)63.

Saudação e assinatura floreada (Tschichold, 1984: 84)64.

Virtuosismo caligráfico – Jan van de Velde (Tschichold, 1984: 81)65.

Ornamentação experimental – Claudio Gil (lagrafia.blogspot.com)66.

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Integração dos caracteres (Tschichold, 1984: 66)67.

Ligatura de natureza contextual (Zapf, 2005: 108)68.

Abreviações caligráficas (Tschichold, 1984: 6)69.

Experimentação caligráfica – Claudio Gil (lagrafia.blogspot.com)70.

Caligrafia expressiva – Donald Jackson (Gaur, 1994: 223)71.

Variância caligráfica 72.

(ilustração elaborada pelo autor com imagem de Noordzij, 2005: 8)

Original manuscrito (Tupigrafia, número 6, 2005: 86)73.

Conjunto de originais manuscritos (Arroyo, 1971: 77, 91, 103)74.

Original em estado ruim de conservação (Gaur, 1994: 52)75.

Análise do original (Prestianni, 2001: 65)76.

Informações tonais 77.

(ilustração elaborada pelo autor com imagem de Noordzij, 2005: 44, 46)

Processo de derivação do original (ilustração elaborada pelo autor)78.

Qualidade da digitalização (ilustração elaborada pelo autor)79.

A construção do caractere digital 80.

(ilustração elaborada pelo autor com imagem de Prestianni, 2001: 133)

Processo de vetorização (ilustração elaborada pelo autor)81.

Planejamento prévio (Prestianni, 2001: 70)82.

Logotipo caligráfico (Lupton, 2006: 53)83.

Exercícios caligráficos (Berliner, 2003: 6)84.

Variações no espacejamento da escrita 85.

(ilustração elaborada pelo autor com imagem de Noordzij, 2005: 67)

Irregularidade no espacejamento (Tupigrafia, 2001: 50, 51)86.

Projeção de hastes inclinadas (ilustração elaborada pelo autor)87.

Elementos de conexão (ilustração elaborada pelo autor)88.

Sobreposição de estruturas de conexão (ilustração elaborada pelo autor)89.

Linhas de comando (ilustração elaborada pelo autor)90.

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Informações sobre a referencia (www.texashero.com/texashero.html)91.

Características estruturais e expressivas (ilustração elaborada pelo autor)92.

Construção de um círculo completo (ilustração elaborada pelo autor)93.

Terminação das hastes (ilustração elaborada pelo autor)94.

Detalhe ampliado da Fonte Adobe Jenson 95.

(ilustração elaborada pelo autor)

Saliência (ilustração elaborada pelo autor)96.

Acabamento geométrico (ilustração elaborada pelo autor)97.

Interferência no contorno dos caracteres (ilustração elaborada pelo autor)98.

Falhas no preenchimento (ilustração elaborada pelo autor)99.

Interferência no entorno dos caracteres (ilustração elaborada pelo autor)100.

Sugestão do ductus (ilustração elaborada pelo autor)101.

Esboços caligráficos (Berliner, 2003: 7 e Berlaen, 2006: 27)102.

Exercícios utilizando instrumentos simples (Haines, 1994: 117)103.

Esqueleto interno dos caracteres (Berlaen, 2006: 8)104.

Software kalliculator (www.kalliculator.com/about/index.html)105.

Parâmetros de construção (Berlaen, 2006: 55)106.

Alfabeto cursivo de Francesco Griffo 107.

(Horcades, 2004: 55 e Lupton, 2006: 15)

Quociente de italicização (Bringhurst, 2005: 288)108.

Características cursivas – fonte digital Sassoon 109.

(www.clubtype.co.uk/sassoonintro.html)

Inclinação de hastes verticais (ilustração elaborada pelo autor)110.

Entorse estrutural (ilustração elaborada pelo autor)111.

Padrão cursivo de desenho (ilustração elaborada pelo autor)112.

Serifas transitivas (ilustração elaborada pelo autor)113.

Conexão entre os caracteres (ilustração elaborada pelo autor)114.

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Terminações de caráter cursivo (ilustração elaborada pelo autor)115.

Maiúsculas cursivas (ilustração elaborada pelo autor)116.

Swash Caps (ilustração elaborada pelo autor)117.

Cruzamento do contraponto (ilustração elaborada pelo autor)118.

Fonte Renard Italic (ilustração elaborada pelo autor)119.

Irregularidade no acabamento (ilustração elaborada pelo autor)120.

Desalinhamento horizontal (ilustração elaborada pelo autor)121.

Irregularidade na métrica (ilustração elaborada pelo autor)122.

Conexão abrupta entre curvas e retas (ilustração elaborada pelo autor)123.

Bojo fraturado (ilustração elaborada pelo autor)124.

A alusão à perícia ferramental (ilustração elaborada pelo autor)125.

Ornamentação (ilustração elaborada pelo autor)126.

Instâncias de ornamentação formal (ilustração elaborada pelo autor)127.

Tipos móveis de Gutenberg (Ruder, 1967: 24-5)128.

Ligaturas tipográficas (ilustração elaborada pelo autor)129.

Ligaturas caligráficas (ilustração elaborada pelo autor)130.

Imperícia caligráfica (ilustração elaborada pelo autor)131.

Imperícia no nível dos caracteres (ilustração elaborada pelo autor)132.

Imperícia no contexto da composição (ilustração elaborada pelo autor)133.

Variância da escrita (ilustração elaborada pelo autor com imagens de 134.

Prestianni, 2001: 129 e Eu sei tudo, 1918: 81)

Variância estrutural (ilustração elaborada pelo autor)135.

Armazenamento ilimitado (ilustração elaborada pelo autor) 136.

Variância manual (ilustração elaborada pelo autor)137.

Projeto experimental Beowolf 138.

(FontFont info guide FF Beowolf OT R23, 2007: 4)

Substituição contextual (ilustração elaborada pelo autor)139.

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Espécime caligráfico – Hermann Zapf (Prestianni, 2001: 71)140.

Zapfino Script (Prestianni, 2001: 68 e Zapf, 2005: 91)141.

Bickham Script Pro (www.fulltable.com/VTS/b/bickham/bickham.htm)142.

Champion Script Pro (http://blog.parachutefonts.com/?p=16)143.

Síntese 1 (ilustração elaborada pelo autor)144.

Síntese 2, quadro 1 (ilustração elaborada pelo autor)145.

Síntese 2, quadro 2 (ilustração elaborada pelo autor)146.

A popularidade da categoria tipográfica 147.

(imagem capturada de http://new.myfonts.com/ em janeiro de 2009)

Destaque no mercado de tipografia digital 148.

(www.houseind.com/fonts/; www.sudtipos.com/fonts/34;

www.outrasfontes.com/maryam.htm; www.kimeratype.com/)

Aperfeiçoamentos tecnológicos (montagem elaborada pelo autor)149.

Hermann Zapf (Prestianni, 2001: 25)150.

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Sumário

I. Introdução

Metodologia adotada e objetivo da pesquisa

Roteiro da dissertação

Construção do objeto pesquisado: definições, 1. categorias e conceitos

1.1. Definição de Caligrafia

1.1.1. Como o conceito caligrafia é utilizado nesta pesquisa

1.1.2. Limitações da terminologia existente

1.1.3. Solução adotada e justificativa

1.2. Tipografia digital

1.3. Definição de fontes digitais de simulação caligráfica

1.3.1. A origem dos projetos de simulação caligráfica

1.3.2. A evolução dos projetos de simulação caligráfica

As categorias de compreensão da forma 2. caligráfica

2.1. Características visuais associadas ao universo instrumental da prática caligráfica

2.1.1. Suporte

2.1.2. Substância corante

2.1.3. Ferramenta

2.1.4. A influência da ferramenta na aparência dos caracteres

2.1.5. O aspecto instrumental e a evolução formal da escrita

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2.2. Características visuais associadas ao processo de construção da escrita (ductus)

2.2.1. O ductus

2.2.1.1. A natureza estrutural do ductus caligráfico

2.2.1.2. Aspectos materiais que influenciam a realização do ductus de uma escrita

2.2.2. O ductus contínuo: a escrita cursiva

2.2.2.1. Planos de ocorrência da cursividade na escrita

2.2.2.2. Características visuais associadas à cursividade

2.2.3. O ductus interrompido

2.2.3.1. Características visuais associadas à escritas de ductus interrompido

2.3. Características visuais associadas à perícia ferramental

2.3.1. Acabamento e qualidade técnica

2.3.2. A ornamentação da forma caligráfica

2.3.3. Integração

2.3.4. A imperícia caligráfica

2.4. Características associadas à caligrafia como ocorrência espaço-temporal: o conceito de variância

O processo de construção das fontes digitais 3. de simulação caligráfica

3.1. As fontes digitais de simulação caligráfica de referência concreta

3.1.1. Etapas de construção das fontes digitais de simulação caligráfica de referência concreta

3.1.2. Fase inicial: a análise do original

3.1.3. Fase de preparação da referência: digitalização

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3.1.4. Fase de construção e acabamento: processo de vetorização

3.1.5. Conservação da essência caligráfica na estrutura de uma tipografia digital: a importância do ductus em fontes digitais de simulação caligráfica

3.1.6. Construção da métrica em uma fonte digital de simulação caligráfica

3.1.7. Fechamento do arquivo tipográfico

3.2. As fontes digitais de simulação caligráfica de referência conceitual

3.2.1. As estratégias de construção das fontes digitais de simulação caligráfica de referência conceitual

3.2.2. Estratégias de alusão à utilização de uma ferramenta caligráfica

3.2.2.1. Articulação de características estruturais: modulação

3.2.2.2. Serifas e terminações

3.2.2.3. Articulação de características expressivas associadas à ferramenta caligráfica

3.2.3. Estratégias de alusão ao método caligráfico de construção (ductus)

3.2.3.1. Kalliculator, uma ferramenta digital de simulação do ductus caligráfico

3.2.3.2. A representação visual do ductus de uma escrita em fontes digitais de simulação caligráfica

3.2.3.3. A origem das fontes tipográficas baseadas em escritas de ductus contínuo

3.2.3.4. A representação visual do ductus contínuo em fontes digitais de simulação caligráfica

3.2.3.5. A representação visual do ductus interrompido em fontes digitais de simulação caligráfica

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3.2.4. Estratégias de alusão à perícia ferramental

3.2.4.1. Ornamentação

3.2.4.2. Integração dos caracteres como estratégia de ornamentação

3.2.4.3. Por oposição: imperícia ferramental como estratégia de representação visual

3.2.5. Estratégias de alusão à especificidade da caligrafia enquanto ocorrência espaço-temporal

3.2.5.1. Variância estrutural, ou em nível primário

3.2.5.2. Variância do modelo de letra, ou em nível secundário

3.2.5.3. A evolução tecnológica da variância na tipografia digital

3.2.5.4. Variância manual

3.2.5.5. Variância aleatória

3.2.5.6. Variância planejada

3.2.5.7. A experiência Zapfino Script: um caso de variância limitada

3.2.5.8. Os projetos Bickham Script e Champion Script: dois casos de variância planejada

Conclusões4.

Referências5.

5.1 Bibliografia

5.2 Dissertações e teses

5.3 Artigos e periódicos

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“Let us then go back to the sources of the scribe’s art for new inspirations… not indeed to copy those forms, but to make of them a starting point for new expressions suited to present day needs.”

(Frederic W. Goudy)

I. Introdução

Com base em uma significativa prática profissional no desenvolvimento de fontes digitais e outras experiências tipográficas, resolvi aprofundar um tema de pesquisa que pudesse rela-cionar duas áreas de grande interesse pessoal: a caligrafia e a tipografia digital.

Considero a caligrafia uma tradição impregnada de rara beleza, mas meu interesse pela ati-vidade ultrapassa questões de gosto pessoal: a escrita manual sempre foi a principal referên-cia visual no desenvolvimento das tecnologias da escrita, apresentando conseqüentemente enorme relevância para a prática do design tipográfico.

Em muitos aspectos, entretanto, esses dois campos de criação (tipografia e caligrafia) apre-sentam características operacionais bastante distintas, percebidas através de qualidades vi-suais presentes tanto na estrutura das letras como no contexto da composição.

Alguns projetos tipográficos tem por obje-tivo realizar o encontro entre esses dois universos, tornando visual essa delicada associação – assim como suas tensões e antagonismos operacionais. Com o desen-volvimento de arquivos digitais capazes de armazenar complexos recursos de progra-mação, esse encontro tem se mostrado cada vez mais produtivo, e diversos pro-jetos atingiram níveis impressionantes de compatibilidade visual em relação a experi-ências caligráficas.

Beneficiadas pelo crescente interesse em conotações de humanidade no ambiente tecnológi-co, estas fontes tem encontrado grande aceitação de mercado, definindo uma área importan-te do design tipográfico contemporâneo.

No âmbito desta dissertação estamos propondo que estas fontes sejam denominadas como ‘fontes digitais de simulação caligráfica’. Alguns autores e fundições de tipos digitais se referem a estes projetos como ‘fontes caligráficas’, ‘manuscritas’ ou ‘escriturais’ – em inglês

Caligrafia e tipografia.1.

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I. Introdução

‘calligraphic’, ‘handwriting’ e ‘script types’. Em resumo, são fontes cuja aparência procura simular em um documento impresso ou na tela do computador a realização de uma escrita manual [fig. 2].

Esta pesquisa se propôs investigar esta categoria particular de projetos de tipografia digital, apresentando detalhadamente as principais questões relacionadas ao processo de articula-ção de características ‘caligráficas’ em uma fonte digital, ou seja, qualidades formais alusivas à prática caligráfica.

Antes de iniciar efetivamente essa investigação, minha opinião inicial em relação a esta ca-tegoria tipográfica era bastante crítica, radical e mordaz. Considerava as fontes digitais de simulação caligráfica uma espécie de fraude, uma ardilosa ferramenta tecnológica cujo ob-jetivo final era simplesmente enganar o consumidor de impressos. Apesar de reconhecer a qualidade técnica dessas fontes, me referia aos projetos de aparência caligráfica como ‘flores de plástico’ e simulacros caligráficos – expressões carregadas de conotação moral que expri-miam minha relação com o assunto.

Em um primeiro momento, o levantamento bibliográfico se concentrou em autores que abor-davam a questão da simulação sob uma perspectiva crítica, principalmente quando associada a novas tecnologias. O objetivo central era amadurecer questões conceituais relacionadas ao tema da dissertação, compreender de maneira sólida o contexto tecnológico onde as experi-ências de simulação acontecem, e analisar as conseqüências concretas da associação entre meios de representação aparentemente incompatíveis: a caligrafia e a tecnologia digital.

No entanto, creio que essa investigação inicial acabou se apoiando demasiadamente no viés negativo do meu julgamento preliminar e pessoal. Os primeiros autores lidos – Vilém Flusser, Hans Ulrich Gumbrecht, Jean Baudrillard e Paul Virilio – corroboravam meu ponto de vista, e

Fontes digitais de simulação caligráfica. De cima para 2.

baixo: Bickham Script PRO, Ex Ponto Regular, Zapfino

Script One e Dear Sara PRO.

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I. Introdução

acabaram me conduzindo a formular um panorama sombrio e desolador a respeito do tema. Desolador a ponto de, durante uma das muitas reformulações do sumário, designar o início da pesquisa pelo título ‘A Morte da Caligrafia’.

Tomar consciência do peso dessa expressão causou-me enorme espanto, e deu origem a uma profunda reflexão sobre os exageros que ela conseguia resumir em apenas quatro pa-lavras. Suspeitei que a origem de tanto pessimismo poderia es-tar associada a uma tendência exageradamente negativa per-cebida no conjunto dos autores consultados. Essa suspeita me levou a buscar referências biblio-gráficas de pesquisadores que não partilhassem uma visão tão desfavorável quanto às novas tecnologias, meios de comuni-cação e produção de conteúdo – como Arlindo Machado, Pierre Lévy, Marshal MacLuhan, Frank Popper, Jean-Louis Weissberg e Deleuze/Guattari.

A confrontação dessas duas abordagens conduziu minha pesquisa por outro caminho, levan-do a investigação por um viés mais equilibrado. Isso proporcionou uma segunda etapa de in-vestigação, pautada sobretudo por referências mais técnicas relacionadas ao universo prático da caligrafia e da tipografia digital. Diante desta nova aproximação, as questões conceituais de posicionamento ideológico acabaram não sendo incluídas na redação final da dissertação. Essa decisão foi baseada nos seguintes motivos:

1. O receio de recorrer a autores da área da filosofia e ciências humanas sob o risco de manusear conceitos complexos de maneira superficial e inadequada em uma investigação de ordem técnica projetual. Apesar de praticamente não utilizar os respectivos autores, a leitura de seus textos foi fundamental para o desenvolvimento da dissertação. Uma abordagem mais equilibrada do assunto me permitiu superar questões de ordem moral que impregnavam o tema – o que se mostrava através de uma série de pré-conceitos e formulações pouco amadurecidas.

Autômato calígrafo: construído por Jaquet-Droz em 1774.3.

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I. Introdução

2. Com base na minha formação acadêmica e experiência profissional, a pesquisa natural-mente veio a estabelecer seus alicerces no universo de questões relacionadas a dimensões projetuais do design gráfico e, mais especificamente da tipografia digital. Isso fez com que os questionamentos de ordem prática se mostrassem mais urgentes e relevantes que o aprofun-damento conceitual/crítico de alguns pontos, embora eles tenham sido importantes para uma compreensão das várias dimensões do objeto.

Durante a etapa de embasamento preliminar, foi possível constatar que alguns autores apre-sentavam suas idéias de maneira excessivamente enfática. A radicalização de determinados pontos de vista foi uma postura que julgamos inadequada aos objetivos desta dissertação. A própria opção pelo termo ‘simulação’ na designação do objeto evidencia que não estamos nos movimentando no universo da critica do capitalismo1. Como fica evidente, estamos usan-do ‘simulação’ não como categoria crítica, mas conforme a acepção corrente na linguagem comum.

O contato com esta bibliografia, entretanto, mostrou-se de grande importância para minha for-mação como pesquisador: tanto no que diz respeito ao exercício de uma visão crítica, como na identificação das conseqüências inerentes a esse tipo de postura. Acredito que o aprofun-damento de uma discussão sobre a questão do simulacro induziria o leitor a uma abordagem negativa do assunto.

1 Para Baudrillard a simulação da era pós-industrial seria a terceira ordem do simulacro.

Bios [bible]: braço mecânico calígrafo redigindo uma Bíblia com caracteres góticos.4.

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I. Introdução

Encontrado o equilíbrio que julguei adequado para a pesquisa, o assunto se desenvolveu de maneira bastante técnica, o que fugia inclusive de minha expectativa inicial. Considerei essa mudança positiva.

Metodologia adotada e objetivo da pesquisa

A primeira etapa da pesquisa foi a de levantamento bibliográfico, estabelecida a partir de uma listagem de autores e referências selecionadas por questão de relevância. Com o decorrer da pesquisa novos nomes integraram a listagem original ou deixaram de fazer parte desta, em um processo natural de filtragem e redefinição do objeto de estudo, com base na investigação e sistematização de categorias projetuais de design tipográfico.

Esta bibliografia básica é composta por dois grupos: da área das ciências humanas, de ca-ráter mais conceitual e amplo, e de obras voltadas para enfoques técnicos das questões tipográfica e caligráfica.

Pelos motivos anteriormente mencionados, o contato com o primeiro grupo de obras funcio-nou para dirimir questionamentos de ordem moral e embasou o amadurecimento da minha abordagem do assunto. Já a bibliografia de caráter técnico forneceu as diretrizes para a constituição da base teórica desta dissertação. Destaco da bibliografia técnica cinco autores principais que, independentemente de outras importantes referências auxiliares, foram funda-mentais ao longo do desenvolvimento do trabalho:

: Robert Bringhurst por ‘Elementos do Estilo Tipográfico’ – tipografia digital, termos e expres-sões, embasamento histórico e classificações;

: Gerrit Noordzij por ‘The Stroke’ – estrutura dos caracteres, características técnicas da escrita manual;

: Adrian Frutiger por ‘Sinais e Símbolos’ e ‘Type, Sign, Symbol’ – informações técnicas sobre design de tipos;

: Wilson Martins por ‘A Palavra Escrita’ – embasamento histórico sobre o manuscrito e as origens da tipografia;

: Susanne Haines por ‘The Calligrapher’s Project Book’ – informações a respeito da prática caligráfica.

É importante, porém, ressaltar que os resultados da pesquisa foram sendo consolidados no confronto e confluência entre esses subsídios teóricos e iniciativas e vivências de caráter prá-tico – seja em processos analíticos ou de síntese projetual. Nesse sentido, destaco:

1. Minha experiência profissional na criação de fontes digitais e letterings tipográficos.

2. A análise de fontes digitais e ferramentas de criação disponíveis no mercado tipográfico, também selecionados por questão de relevância e pertinência. Inicialmente esta análise se-

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I. Introdução

ria apresentada de maneira concentrada em um capítulo, mas com a evolução da pesquisa pareceu-me mais interessante citar esses projetos em passagens específicas do texto – onde serviriam para exemplificar os pontos apresentados.

3. A análise de registros caligráficos primários (realizados com instrumental caligráfico) e re-produções de boa qualidade (registros derivados), que facilitavam a compreensão de diver-sos aspectos abordados na dissertação – muitos deles comprovados na prática.

4. Depoimentos pessoais de calígrafos e outros designers de tipos a respeito de suas práticas de criação. Estas informações mostraram-se importantes, mas fora algumas exceções pontu-ais não foram formalmente inseridas no texto da dissertação.

Todas essas referências – principais e auxiliares, teóricas e práticas – foram utilizadas para embasar, sistematizar e formalizar um instrumental de análise relacionado ao desenvolvi-mento das fontes digitais de simulação caligráfica. Esse corpo conceitual serviu como base prática/teórica para o estabelecimento de categorias e classificações tipográficas apresenta-das como resultado da pesquisa. Vale ressaltar que, por essa ser uma área de caracterização recente, uma boa parte desse resultado apresenta categorias e propostas de sistematização não formalizadas em outras obras.

As citações bibliográficas inseridas na dissertação foram mantidas no idioma original (inglês, espanhol e francês). No texto corrente, algumas expressões foram traduzidas para facilitar a apresentação do tema: quando isso ocorre a expressão original acompanha a tradução entre parênteses. Expressões técnicas sem correspondente em português foram mantidas no ori-ginal, seguindo um padrão observado em outras publicações da área.

As imagens apresentadas na dissertação tem o intuito de ilustrar as descrições pormenori-zadas presentes no texto, auxiliando a compreensão do argumento. A procedência destas imagens está indicada na lista de ilustrações.

As ilustrações do capítulo 3.2 foram produzidas a partir de fontes digitais: nessas imagens está especificado o nome da fonte, o fabricante ou distribuidor, o ano de publicação e os ca-racteres utilizados no exemplo – informação que auxilia a identificação de glifos que fujam do padrão tradicional de legibilidade. As letras selecionadas refletem características presentes no restante do conjunto da fonte, não constituindo exceções ou acontecimentos isolados.

Roteiro da dissertação

A parte inicial da dissertação (capítulo 1) compreende a tarefa de definir e consolidar os con-ceitos utilizados na dissertação, apresentando as principais questões relacionadas à caligra-fia e à tipografia digital.

A primeira definição diz respeito ao conceito de caligrafia (capítulo 1.1). O termo em língua portuguesa abarca atualmente uma idéia que ultrapassa a origem etimológica da palavra, alienando-se inclusive de valores estéticos na definição de uma atividade múltipla e diversi-

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I. Introdução

ficada. A utilização de um conceito flexível na dissertação facilita o desenvolvimento de uma análise situada em um campo novo de criação, onde qualquer rigidez conceitual se mostraria praticamente incompatível. Essa decisão será devidamente justificada.

Posteriormente, mostra-se oportuno traçar um rápido panorama do atual estado da arte no campo da tipografia digital – matéria prima e veículo dos atributos visuais relacionados ao tema da dissertação (capítulo 1.2). Para concluir, é importante apresentar e tornar clara a categoria tipográfica das fontes digitais de simulação caligráfica (capítulo 1.3).

Da definição do objeto de estudo e da apresentação da base conceitual em que se apóia a pesquisa, o trabalho parte para uma etapa onde serão delineadas as categorias gerais de compreensão da forma caligráfica. Nesta parte da dissertação (capítulo 2) foram reunidas di-versas características associadas à escrita manual, utilizadas como ponto de apoio a projetos que articulam visualmente o conceito de caligrafia em uma fonte digital. Esse levantamento constitui um conjunto de informações extremamente relevante para o universo prático do de-sign tipográfico em projetos de simulação caligráfica.

A partir desse mapeamento, a dissertação parte para a apresentação efetiva do processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica (capítulo 3). Nesta etapa serão expos-tas as estratégias adotadas para a recriação das características relacionadas ao universo da escrita manual.

Visando compreender a lógica de elaboração das fontes digitais de simulação caligráfica, foram propostos dois critérios de classificação:

a. As simulações caligráficas que se baseiam na reprodução de uma referência concreta (reproduzem um original manuscrito específico – capítulo 3.1). O processo de construção de uma fonte digital de simulação caligráfica de referência concreta segue um princípio básico: tornar a tipografia um sistema de escrita capaz de reproduzir com grande fidelidade um regis-tro caligráfico previamente realizado.

b. As simulações caligráficas que se baseiam em referências conceituais (propostas virtuais baseadas em um conceito mais flexível e geral de escrita manual – capítulo 3.2). Nesse caso os projetos não se apóiam em uma realização específica e particular, mas nos vários concei-tos e características relacionados à prática caligráfica.

Considerando essas duas diretrizes conceituais e de acordo com o objetivo de cada projeto, o designer de tipos deve recorrer a estratégias distintas de criação.

Na conclusão (capítulo 4) são apresentadas sínteses quanto aos modos de relacionamento das principais categorias apresentadas. Acredito que tanto essas sínteses quanto os resul-tados apresentados ao longo da dissertação constituem um relevante subsídio metodológico para a construção de fontes digitais de simulação caligráfica, assim como poderão indicar aspectos a serem desenvolvidos em novas pesquisas relacionadas ao assunto.

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1. Construção do objeto pesquisado: definições, categorias e conceitos

1.1. Definição de Caligrafia

A palavra ‘caligrafia’ não pode ser definida exatamente como um termo técnico – sua utiliza-ção não se limita ao universo acadêmico e nem ao círculo de praticantes da atividade. Apesar de possuir uma construção etimológica relativamente simples, a expressão abarca uma gama relativamente ampla de significados, o que torna seu emprego muitas vezes indiscriminado e vago.

A expressão ‘caligrafia’ é formada pelos radicais gregos [kallos] + [graphein] e de maneira literal significa ‘bela escrita’.

Em termos práticos, a caligrafia compreende as escritas manuais executadas com apuro es-tético e qualidade técnica, na tarefa de produzir (e reproduzir) determinados padrões e mode-los (de letras e alfabetos) com grande habilidade, precisão e destreza [fig. 5]. Essa habilidade pode ser manifestada através de espécimes legíveis e formais, ou através de espécimes ornamentais, expressivos e rebuscados.

Tradicionalmente, os registros manuscritos que não apresentam em sua realização e apa-rência algum tipo de apuro formal são tratados apenas por ‘escritas manuais’. Desse modo, podemos deduzir que a caligrafia é uma categoria particular de escrita manual.

Por extensão de sentido entretanto, o termo ‘caligrafia’ também é empregado como sinônimo de escrita manual. Não é incomum encontrarmos expressões do tipo ‘alguém que possui uma caligrafia ruim’ com o mesmo sentido de ‘escrita ruim’ ou ‘letra ruim’ (por metonímia). A caligrafia passou a ser entendida como sendo ‘um estilo ou maneira própria e peculiar de se escrever à mão’ (Houaiss), ou seja, a escrita particular de um indivíduo sem considerar a qualidade estética dessa expressão pessoal.

Caligrafia clássica: minúsculas carolíngeas executadas com caneta caligráfica por Gudrun Zapf von Hesse, 1993.5.

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1. Construção do objeto pesquisado: definições, categorias e conceitos

Para desenvolver um estudo balizado pela acepção tradicional da caligrafia (bela escrita) seria preciso estabelecer parâmetros estreitos para avaliar esteti-camente o que deveria ser considerado ‘belo’ – no que diz respeito a modelos de escrita manual. Com exceções ób-vias estabelecidas por escritas intencio-nalmente mal realizadas, seria evidente a presença de arbitrariedade nesse tipo de avaliação.

Ainda que o uso sem restrições afaste o termo de sua definição técnica (e eti-mológica), seu emprego nesta pesquisa não segue de maneira rígida a definição tradicional da atividade – restringindo a análise a modelos de escrita pautados por padrões estéticos e estilos históri-cos [fig. 6]. A seguir serão apresentadas justificativas quanto a caracterização do termo e da categoria.

1.1.1. Como o conceito caligrafia é utilizado nesta pesquisa

De acordo com a definição apresentada para a expressão ‘caligrafia’, seria possível ques-tionar a utilização do termo ‘caligráfico’ na designação que define o objeto de análise desta pesquisa: as fontes digitais de simulação caligráfica. Na medida em que seu emprego não está associado a nenhuma questão de ordem exclusivamente estética, o ideal seria definir a categoria por ‘fontes digitais de simulação de escritas manuais’.

A escolha pelo termo ‘caligráfico’ foi questionada até o último momento, mas acabou se mos-trando a mais indicada no manuseio do objeto-tema, principalmente diante das dificuldades apresentadas por outras opções. Opções estas que, se em alguns momentos pareciam ser mais precisas, em outros mostravam-se pouco flexíveis para cobrir a variedade de questões abordadas no levantamento proposto.

É importante ressaltar que essa pesquisa não tem por objetivo redefinir o conceito ‘caligrafia’, buscando dessa maneira simplesmente adaptá-lo a necessidades e interesses particulares – mas optar por uma acepção que fundamente a intenção investigativa proposta.

Para tornar mais clara essa decisão, cabe ressaltar ainda o fato de que esta pesquisa não constitui uma investigação histórica a respeito do assunto Caligrafia. Trata-se da análise de uma categoria específica de fontes digitais, cuja aparência se apóia em princípios gerais da

Caligrafia experimental: trabalho do calígrafo 6.

brasileiro Cláudio Gil.

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1. Construção do objeto pesquisado: definições, categorias e conceitos

escrita manual. A partir de uma abordagem múltipla, contemporânea e centrada na adaptação de duas lógicas de produção distintas (a escrita manual e a tipografia), a pesquisa tem por objetivo mapear novas possibilidades tecnológicas.

“En uma época en la que el número de problemas de diseño ha alcanzado niveles inabarcables, de complejidad casi insoluble, es muy difícil enfrentarse a ellos desde el plano teórico. En tal circunstancia es casi mejor adoptar una posición que alguien podría calificar de posmoderna: no enfrentarse al problema directamente, sino quizás asumirlo simplesmente y, en el mejor dos casos, intentar discribirlo. De tal forma, no pretendo dar respuestas, sino más bien provocar un nuevo debate desde la sistematización y el análisis de las manifestaciones del pasado para desarrollar las futuras con conocimiento de causa.” (Sesma, 2004: 19)

1.1.2. Limitações da terminologia existente

Para a compreensão do tema era preciso encontrar uma expressão que pudesse estar asso-ciada a três tipos de aplicação:

: a atividade que estava sendo mapeada;

: a pessoa que exerce essa atividade;

: o atributo (adjetivo) relacionado a essa atividade.

Em relação a esses três itens, os principais termos encontrados foram:

: atividade - escrita manual, caligrafia1.

: quem exerce - escriba, escritor, calígrafo.

: atributo - manuscrito, caligráfico.

Para a definição do item ‘atividade’ o termo mais preciso seria ‘escrita manual’, uma vez que, como já foi observado, a pesquisa não tem por objetivo analisar exclusivamente modelos pautados pela qualidade estética. Ou seja, é o método de produção manual da escrita o que realmente importa, e não sua aparência ou adequação visual em relação a um determinado cânone de ordem formal ou fidelidade histórica.

Na língua inglesa essa distinção é claramente feita através de duas expressões:

: calligraphy – que se refere especificamente à bela escrita (valor estético).

: handwriting – que se refere à escrita manual de maneira ampla, e a tudo que é manuscrito (escrito à mão) com ou sem algum tipo de preocupação formal.

1 A expressão quirografia [kheirógraphia] poderia estar incluída neste levantamento, mas sua utilização é tão pou-co usual que seu uso foi descartado.

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1. Construção do objeto pesquisado: definições, categorias e conceitos

Alguns autores não utilizam o termo ‘calligraphy’ de maneira indiscriminada, preferindo as-sociar o termo a uma abordagem mais tradicional da escrita – relacionada principalmente a estilos históricos ou modelos formais rígidos.

Entretanto, antes de definir o termo ‘escrita manual’ como sendo o mais adequado para esta pesquisa, era preciso resolver dois outros problemas:

a. o primeiro deles dizia respeito a encontrar uma expressão para denominar o sujeito que exerce a escrita manual.

Em português a utilização da expressão ‘escritor’ para se referir a quem simplesmente execu-ta uma escrita (escreve) é bastante imprecisa, na medida em que o termo abriga de maneira intrínseca a relação de autoria do texto – algo que não é necessariamente verdadeiro neste caso. Quem escreve pode estar apenas dando forma a um texto alheio, graças a uma habili-dade particular ou devido a uma questão apenas circunstancial.

Já a expressão ‘escriba’ apresenta uma abordagem histórica e um recorte bastante especí-fico, não se mostrando adequada a uma análise mais generalizada da atividade da escrita manual. Segundo o dicionário Houaiss, o escriba seria: 1. entre os judeus, aquele que lia e interpretava as leis; 2. profissional que copiava manuscritos ou escrevia textos ditados; e 3. aquele que escreve mal, escrevinhador. O mesmo recorte inadequado poderia ser observa-do em outras expressões similares como ‘escrevente’, ‘escriturário’ ou ‘escrivão’ – todas as expressões associadas a colocações profissionais exercidas por pessoas hábeis na escrita (geralmente em cargos pertencentes à burocracia oficial ou religiosa).

Em inglês, o termo ‘writer’ oferece essa mesma leitura imprecisa, o que leva muitos autores a preferir a expressão ‘calligrapher’ na hora de se referir ao praticante da escrita manual. Essa opção, quando não acompanhada da expressão ‘calligraphy’ (para se referir à escrita pratica-da) causa certa estranheza – tanto em inglês quanto em português.

b. o segundo problema diz respeito ao adjetivo proposto para caracterizar a atividade.

O termo tecnicamente mais adequado – manuscrito (manuscript) – tanto pode ser utilizado como um adjetivo quanto um substantivo, o que pode tornar seu uso ambíguo. Segundo ain-da o dicionário Houaiss, manuscrito não é apenas um adjetivo para se referir a algo que foi escrito à mão – é um termo utilizado também para se referir a um objeto (físico), como uma obra escrita ou copiada manualmente2.

Nesta pesquisa, a importância de se estabelecer um adjetivo de fácil utilização diz respeito à dimensão específica da caligrafia que está sendo analisada: fontes digitais de simulação. Uma fonte digital não é um objeto palpável, mas um conjunto de informações responsáveis pela atualização em meios de saída de atributos visuais associados a uma estrutura de lin-guagem.

2 A expressão ‘manuscrito’ deriva dos termos latinos [manus] e [scriptus]. Originalmente a locução ‘manu scriptus’ era usada apenas adjetivamente, enquanto os substantivos ‘codex’ e ‘líber’ eram utilizados para se referir aos objetos produzidos por intermédio da escrita manual (Houaiss).

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1. Construção do objeto pesquisado: definições, categorias e conceitos

Não se trata, portanto, de analisar o desenvolvimento de uma ‘caligrafia’ dita digital, mas do desenvolvimento de fontes digitais (softwares) de aparência caligráfica (por simulação). No ambiente digital, a constituição formal / aparência é o aspecto central a ser analisado, na me-dida em que o conteúdo / matéria digital é sempre uma seqüência numérica codificada. Dessa maneira, encontrar um termo (adjetivo) que seja facilmente compreendido é algo fundamental nesta pesquisa. Essa constatação enfraquece a opção pelo termo ‘manuscrito’.

O termo inglês ‘script’ também é muitas vezes associado a fontes digitais de simulação cali-gráfica. Em português, sua tradução seria algo como ‘escritural’ – buscando por expressões derivadas do mesmo radical latino ‘script’ (escrita manual, escritor, escritural).

Podemos observar dois problemas em relação a essa expressão:

: o uso do próprio termo ‘script’ na língua portuguesa como sinônimo de roteiro (originalmente derivado de manuscript).

: a tradução proposta ‘escritural’ pode ser associada ao termo ‘escritura’ além de escrita, que apresenta outros significados (documento ou forma escrita de um ato jurídico, escrituras sa-gradas, etc.).

Para exemplificar a dificuldade de se encontrar um termo preciso na elaboração dessa pes-quisa, no livro ‘Elementos do Estilo Tipográfico’, Robert Bringhurst refere-se a esta categoria de fontes (digitais ou não) pela expressão ‘tipos manuscritos’ (script types). A definição não é muito clara:

“Em seu uso comum, o termo ‘manuscrito’ significa tudo aquilo que não é tipografia. Ele indica a escrita – o modo de linguagem visual utilizado em âmbito público pelos calígrafos e em âmbito privado por outras pessoas letradas, incluindo os próprios tipógrafos.” (Bringhurst, 2005: 294)

Podemos verificar que o próprio autor se apóia na expressão caligrafia (através de calígrafo) para se referir ao praticante em âmbito público da escrita manual. A distinção entre âmbito público e privado, entretanto, não é apresentada. Em nota, o tradutor da edição brasileira André Stolarski esclarece que, para o autor, o termo ‘tipos manuscritos’ é uma contradição em qualquer língua.

Como veremos adiante no capitulo 2.2.2.1, alguns autores utilizam o termo ‘script’ para se referir especificamente a alfabetos cursivos encadeados (letras conectadas no interior da palavra).

Em classificações tipográficas na língua inglesa o termo ‘handwriting’ é bastante utilizado, superando ‘script types’, ‘cursive’ ou ‘calligraphic’. Isso pode ser percebido tanto em sites comerciais (ex. Myfonts), como em catálogos de distribuidores ou em sistemas automáticos de classificação tipográfica (ex. Panose / HP). Essas classificações utilizam o termo em uma análise bastante restrita, o que facilita a adoção de uma expressão tecnicamente precisa.

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1. Construção do objeto pesquisado: definições, categorias e conceitos

1.1.3. Solução adotada e justificativa

No somatório das questões previamente apontadas, a tríade formada pelas expressões deri-vadas do radical grego [kallos] ‘caligrafia, calígrafo e caligráfico’ mostrou-se a mais adequa-da para o desenvolvimento dessa pesquisa. Acreditamos que as ressalvas apresentadas na definição do objeto de estudo serão suficientes para dirimir qualquer dúvida a respeito dos termos escolhidos.

Ainda assim, cabe destacar que a adoção do termo ‘caligrafia’ no estabelecimento de uma ca-tegoria particular do design tipográfico não se trata de uma decisão exclusiva e isolada. Essa escolha reverbera o emprego da expressão ‘calligraphic’ em uma relevante exposição orga-nizada em San Francisco no ano de 2001 pela ‘Friends of Calligraphy’ e pela ‘San Francisco Public Library’ – duas instituições de renome internacional.

A exposição era uma homenagem em vida ao trabalho do professor, designer, tipógrafo e calí-grafo Hermann Zapf e sua esposa Gudrun Zapf von Hesse, de mesma formação e igualmente laureada [fig. 7]. A exposição foi transformada em uma interessante publicação, contendo a biografia resumida do casal homenageado, dos participantes convidados e uma série de arti-gos de seus organizadores. O título da exposição e da publicação homônima é ‘Calligraphic Type Design in the Digital Age – an exhibition in Honor of the Contributions of Hermann and Gudrun Zapf / Selected Type Designs and Calligraphy by Sixteen Designers.’

Dentre os 16 designers convidados para expor suas experiências caligráficas trans-postas para o universo da tipografia digital constavam nomes como Hermann e Gudrun Zapf, Erik van Blokland, Akira Kobayashi, Richard Lipton, Robert Slimbach, Jovica Veljović, Alan Blackman e Julian Waters, entre outros.

Apresentando uma diversidade enorme de estilos e técnicas de escrita, a publicação conseguiu deixar bem claro a impossibili-dade técnica de se definir um padrão esté-tico responsável pelo significado ‘belo’ na expressão caligrafia – associada a fontes

digitais de aparência manuscrita (ou caligráfica). Diante dessa dificuldade, entretanto, os or-ganizadores não se furtaram do direito de abarcá-las sobre uma definição ampla do termo ‘calligraphic’, no momento em que decidiram um nome para a importante mostra.

Falar de ‘Calligraphic Type Design’ envolve, portanto, a definição da categoria ‘calligraphic typefaces’.

No ambiente acadêmico, o termo ‘caligrafia’ é largamente empregado em estudos históricos, ainda que de maneira indiscriminada quanto à qualidade estética dos registros analisados. Dificilmente encontraremos algum autor que se refira a um modelo de escrita manual por

Gudrun Zapf von Hesse e Hermann Zapf, homenageados 7.

na mostra ‘Calligraphic Type Design in the Digital Age’.

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1. Construção do objeto pesquisado: definições, categorias e conceitos

outra expressão – ainda que não seja inteiramente capaz de julgar se o espécime analisado assegura as qualidades estéticas responsáveis por determinar se a escrita era bela ou não na época em que foi realizada. A simples aproximação formal da escrita com modelos canônicos, estilos nacionais e ou personagens relevantes para o desenvolvimento da atividade justifica a utilização da expressão.

Na medida em que esses padrões estéticos também mudam freqüentemente, podemos de-duzir que ‘caligrafia’ é um termo utilizado para se referir à escrita manual associada a al-gum nível de erudição: formal, técnica, estética ou mesmo conceitual. Os modelos de es-crita manual convertidos em fontes digitais apresentam invariavelmente qualidades visuais particulares que justificariam o emprego do termo ‘caligráfico’. Ainda que essas qualidades sejam questionáveis do ponto de vista estético [fig. 8], são inquestionáveis enquanto valores simbólicos – pela capacidade de articular no ambiente digital aspectos próprios ao universo artesanal da escrita manual.

Na introdução do seu livro ‘The Stroke’, Gerrit Noordzij define a caligrafia como sendo “han-dwriting pursued for its own sake, dedicated to the quality of the shapes”3. Já no livro Noções de Paleografia e de Diplomática, Leal e Berwanger apresentam uma classificação de mode-los históricos de escrita manual pela expressão ‘tipos de caligrafia’4 (Berwanger, 1995: 44). Os exemplos que utiliza não necessariamente apresentam qualidade estética inquestionável, apenas pertencem a uma categoria histórica passível de identificação.

A decisão pelo uso (aparentemente) informal da expressão ‘caligrafia’ não significa, portanto, descaso com sua definição técnica ou origem etimológica.

Da mesma maneira, vale men-cionar que as expressões deriva-das do termo ‘caligrafia’ seguem o mesmo princípio: calígrafo é simplesmente o sujeito que ope-ra os instrumentos de registro manual da escrita, fazendo uso desta para se comunicar a partir de valores visuais múltiplos, sem a preocupação (primordial) com padrões estéticos. Calígrafo, por-tanto, foi a expressão utilizada para se referir àquele que, de ma-neira genérica, escreve à mão.

Convém ressaltar ainda que a pesquisa tem como único foco a análise de modelos de escrita referentes ao alfabeto latino. Todas as expressões cunhadas, as categorizações, análises práticas, formulações teóricas e pesquisa bibliográfica foram voltadas e se apóiam unicamen-

3 Sem se preocupar, entretanto, em definir a qualidade a que se refere.

4 Na página anterior (2005: 43) os autores referem-se a essa classificação pela expressão ‘tipos caligráficos’ utilizando-se da palavra ‘tipos’ de forma dúbia: tipos como classes, que pode ser confundido por tipos de metal.

Graffiti: ‘8. expressive calligraphy wich break the boundaries of

traditional lettering’ (Gaur, 1994).

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 32

1. Construção do objeto pesquisado: definições, categorias e conceitos

te na experiência latina. Os exemplos de outros sistemas de escrita (de diferentes origens) são mencionados com caráter meramente ilustrativo – quando algum detalhe, característica ou curiosidade se mostrou enriquecedor ao texto da pesquisa.

1.2. Tipografia digital

Preocupada com as lacunas encontradas na língua portuguesa a respeito do vocabulário re-lacionado ao design gráfico e a tipografia, a pesquisadora e designer Priscila Farias procurou em seu livro ‘Tipografia Digital – o impacto das novas tecnologias’ esclarecer alguns conceitos básicos:

“Definiremos, assim, tipografia como o conjunto de práticas subjacentes à criação e utilização de símbolos visíveis relacionados aos caracteres ortográficos (letras) e para-ortográficos (tais como números e sinais de pontuação) para fins de repro-dução, independentemente do modo como foram criados (à mão livre, por meios mecânicos) ou reproduzidos (impressos em papel, gravados em um documento di-gital).” (Farias, 2001: 15)

Da mesma maneira, Farias define ‘fonte’ como sendo o termo mais adequado em língua por-tuguesa (e o mais utilizado também) para se referir a uma família de caracteres tipográficos.

A expressão ‘fonte’ foi adaptada do ambiente mecânico para o eletrônico quando esta tecno-logia passou a constituir um novo padrão de produção. Em um primeiro momento, a utilização no ambiente digital de uma terminologia associada a tipografia de metal foi questionada. Este questionamento devia-se à inconsistência conceitual observada no emprego de expressões relacionadas a aspectos materiais da produção tipográfica em um contexto tecnológico onde alguns desses aspectos eram inexistentes. A relação, entretanto, era tão óbvia que não fazia sentido inaugurar uma terminologia exclusiva para o ambiente digital e a maioria dos termos migrou de maneira quase natural. Priscila Farias acrescenta:

“Embora o termo original, ligado às práticas mecânicas, derive do latim fundere (fun-dir), este termo parece se adequar perfeitamente às novas tecnologias por invocar não uma matriz absolutamente fixa e concreta, mas sim um lugar – um arquivo di-gital – de onde ‘emana’ um conjunto de instruções capaz de construir um caractere para o qual podemos estabelecer, através de programas de manipulação de tipos, parâmetros diversos como corpo, gênero, etc.”5 (Farias, 2001: 16)

No ambiente digital, podemos dizer tecnicamente que uma fonte é um software especializa-do em converter instruções binárias em vetores matemáticos ou bitmaps, responsáveis pela

5 No tradicional ‘Dicionário de Artes Gráficas’, Frederico Porta define fonte como sendo “o conjunto de letras, sinais e espaços de um dado caráter e corpo que integram a caixa tipográfica; e o jogo completo de matrizes, também de um corpo e caráter determinado que vão nos magazines das máquinas compositoras”.

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1. Construção do objeto pesquisado: definições, categorias e conceitos

aparência final de um texto em um dispositivo de saída (projeção ou impressão). De maneira ainda mais específica: uma fonte digital é um plugin capaz de disponibilizar um desenho tipo-gráfico particular para softwares habilitados à edição de texto6.

As fontes digitais começaram a ser desenvolvidas no formato bitmap, ainda na década de 1970: eram definidas por meio de adição e subtração, e indicavam dentro de uma malha de pontos quais seriam ligados e quais desligados. No inicio da década seguinte, esse padrão passou a ser gradualmente substituído pela linguagem PostScript, onde as letras eram defi-nidas por linhas de contorno escaláveis (scalable outlines) [fig. 9].

No inicio dos anos 90 surge o formato TrueType – que diferia do PostScript principalmente pela maneira como o arquivo orientava a reconstrução matemática das curvas de uma letra.7 O formato PostScript prosperou em uma versão inicial conhecida como Type One (T1), en-quanto o formato TrueType deu origem a duas variações: as fontes Graphic Extensions .GX (1994) e TrueType Open .TTO (1995). Esses formatos são extremamente importantes, dada

6 Um plugin é um programa de computador que serve normalmente para adicionar funções a outros programas, particulares ou muito específicas.

7 Ambas interpretam a forma das letras em termos de curvas Bézier: as PostScript são curvas de natureza cúbica, enquanto as TrueType são curvas quadráticas. Outro fator importante que diferencia os dois formatos diz respeito à maneira como lidam com o processo de hinting (ajustes de renderização em tela).

Na tipografia digital a letra é construída a partir de coordenadas e 9.

vetores matemáticos. Na parte direita da imagem: letra ‘W’ no formato

bitmap.

OpenType: janela de edição para os 10.

recursos adicionais de substituição.

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1. Construção do objeto pesquisado: definições, categorias e conceitos

as suas habilidades de acomodar grandes conjuntos de caracteres, aliada à substituição con-textual e automática de variantes e ligaturas – recursos que se mostraram fundamentais para a evolução técnica de experiências associadas à simulação caligráfica [fig. 10].

Atualmente, o formato OpenType constitui o padrão tecnológico adotado pelo mercado, não só pela capacidade de armazenamento e propriedades adicionais, como pela característi-ca multi-plataforma: o mesmo arquivo é reconhecido por computadores de plataforma PC e Macintosh. Apesar disso, ainda é possível encontrar no mercado fontes digitais em formatos TrueType e Type 1, e esses formatos continuam sendo perfeitamente reconhecidos pelos sistemas operacionais mais atualizados. Segundo Bringhurst:

“Muitos milhares de fontes OT foram editados – e, mais uma vez, sua qualidade varia de lamentável a estupenda. Algumas fontes OT de fato não tiram nenhuma vantagem das capacidades do formato e são funcionalmente idênticas ao arroz com feijão das fontes OS ou TT. Outras ricas e sutis. É impossível verificar isso sem abrir o pacote e examinar seu conteúdo.” (Bringhurst, 2005: 202)

Os recursos do formato OpenType necessitam de softwares capazes de interpretar a pro-gramação da fonte. Caso contrário, seu funcionamento se limitará ao desempenho de uma simples TrueType ou Type 1, dependendo do tipo de arquivo (sabor, do termo inglês flavour) adotado pelo formato OT.

1.3. Definição de fontes digitais de simulação caligráfica

Fontes digitais de simulação caligráfica constituem uma categoria de projetos tipográficos cuja característica principal é a grande semelhança visual apresentada em relação a escritas manuais [fig. 11]. A categoria tipográfica proposta nesta pesquisa cobre uma ampla gama de partidos visuais, derivados do conceito adotado para a expressão ‘caligrafia’ – previamente apresentado e justificado.

O principal aspecto utilizado para classificar um alfabeto digital como uma fonte de simulação caligráfica é sua capacidade de articular na estrutura tipográfica características próprias ao meio manual de registro. Isso pode se dar através da semelhança entre o modelo desenvolvi-do e determinado padrão estético caligráfico (um estilo histórico, por exemplo), ou através da articulação intencional de índices visuais pertencentes ao universo de realização da escrita manual8. Esses índices visuais constituem as categorias de compreensão da forma caligráfi-ca, e serão apresentados resumidamente no capítulo 2 da pesquisa.

Os índices caligráficos podem variar de acordo com ferramentas utilizadas, suportes e téc-nicas de registro: é a coordenação adequada dessas marcas que fundamenta a verossimi-lhança necessária para que a simulação cumpra plenamente seu objetivo. Ao mesmo tempo, a construção pode se apoiar na alusão à características impróprias ao ambiente tipográfico, sugerindo (por oposição) um meio artesanal (não-industrial) de realização.

8 Segundo referencial Peirceano, trata-se na realidade da representação de um índice, conseqüentemente de um índice degenerado.

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1. Construção do objeto pesquisado: definições, categorias e conceitos

Com o intuito de aprofundar a classificação proposta, foram de-senvolvidas subcategorias para o conjunto das fontes digitais de simulação caligráfica. Essa sub-divisão não procurou agrupar os projetos de acordo com questões relacionadas à aparência dos al-fabetos (seguindo uma provável classificação baseada na própria caligrafia), mas de acordo com as possibilidades de construção das fontes digitais de simulação cali-gráfica – e a metodologia adotada durante o desenvolvimento dos

projetos. Essa divisão será apresentada mais a frente, na parte 3 desta pesquisa.

É importante ressaltar que a análise proposta se volta exclusivamente para os projetos desen-volvidos em tecnologia digital. Qualquer abordagem que por uma questão de coerência faça menção à tecnologias anteriores tem como único objetivo estabelecer um raciocínio lógico em relação ao tema – para evitar que a pesquisa apresente um assunto sem localizá-lo no tempo. No entanto, esta pesquisa não se propõe a realizar um levantamento histórico do tema.

1.3.1. A origem dos projetos de simulação caligráfica

As fontes de simulação caligráfica podem ser consideradas a categoria mais antiga dos tipos de impressão, na medida em que as primeiras matrizes tipográficas produzidas por Johannes Gutenberg procuravam imitar a forma das escritas utilizadas na produção artesanal de livros [fig. 12].

Mais que uma opção estética, entretanto, a letra manuscrita constituía a única referência para ser utilizada nos novos meios de produção de texto. Por esse motivo, talvez não seja muito adequado associar os primeiros tipos impressos ao assunto dessa pesquisa – na medida em que estes modelos de impressão não tinham o intuito deliberado de articular um significado por simulação, mas estavam simplesmente adaptando um tipo de registro existente a outro meio tecnológico.

Nos primeiros anos de invenção tipográfica (e por um período de aproximadamente 50 anos – incunábulo), o livro impresso ainda foi produzido sob forte influência do livro manuscrito [fig. 13]. Segundo Wilson Martins:

“Como tudo que começa, o livro impresso não surgiu imediatamente com sua per-sonalidade própria. Ele procurou instintivamente continuar o livro manuscrito, em lugar de substituí-lo como deveria ser, forçosamente, seu destino (...).” (Martins, 2002: 166)

Fonte digital de simulação caligráfica: ligaturas da fonte Zapfino Ink.11.

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1. Construção do objeto pesquisado: definições, categorias e conceitos

“(...) dificilmente o homem inventa qualquer coisa de inteiramente novo. Bem exa-minadas, as invenções, mesmo as mais revolucionárias, são apenas transforma-ções ou aperfeiçoamentos de coisas anteriormente conhecidas, ou de pedaços de invenções anteriormente tentadas. (...) Pode-se mesmo, afirmar que, quanto mais complexa uma invenção, mais tempo e mais degraus exigirá para atingir o seu pleno aperfeiçoamento, para alcançar a sua própria personalidade.” (idem, 174)

O tipo de impressão era produzido e multiplicado através de moldes9 que imitavam os carac-teres manuscritos, embora, ainda segundo Martins, alcançassem uma regularidade natural que permitia distingui-los das letras traçadas à mão. Fazendo um paralelo com o tema desta pesquisa, podemos considerar que a tipografia surge como uma tecnologia de simulação, e só alcança uma espécie de maturidade formal com o desenvolvimento dos primeiros tipos planejados exclusivamente para impressão – eliminando grande parte dos vestígios caligráfi-cos que haviam sido conservados na estrutura dos caracteres.

A influência formal das letras manuscritas esteve claramente presente durante os dois sé-culos que sucederam o surgimento da tipografia. Com o passar do tempo, os impressores passaram a encomendar e utilizar modelos alfabéticos especialmente projetados para o meio tipográfico, o que fez com que algumas características formais pertencentes ainda à escrita manual fossem sendo gradualmente substituídas por outras – marcas estas associadas ao universo renovado de ferramentas e recursos tipográficos.

No desenvolvimento de alfabetos tipográficos, a ruptura formal com relação à referência ca-ligráfica não tem uma data precisa, mas apresenta um marco histórico: a encomenda feita pelo monarca francês Luís XIV à Imprensa Real Francesa (Imprimerie Royale) de um dese-

9 O molde era o instrumento no qual se colocavam as matrizes e onde era derramado o chumbo para fabricar os tipos. A concepção da letra (e de seu caráter manuscrito) era definida ainda no momento de gravação das punções.

As origens do livro impresso: manuscritos franceses do séc. XV. (à esquerda) e do século XIII (à direita).12.

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1. Construção do objeto pesquisado: definições, categorias e conceitos

nho cuja proposta apresentada baseou-se em proporções matemáticas e regras precisas de construção – realizado pelo desenhista Louis Simonneau e produzidas pelo puncionista Philippe Grandjean10. Esse alfabeto ficou conhecido como Roman du Roi:

“About 1692 Philippe Grandjean, the French punchcutter, created for the Imprimerie Royale the famous Roman du Roi, a revolutionary design, the first to be drawn to mathematical principles, that eventually led to the type style now called modern. For though these types were restricted to use by the French royal press, they had considerable influence on the styles developed by the commercial typefounders.” (Lawson, 1990: 175)

Apesar de ainda se basear em modelos derivados das formas manuscritas tradicionais, o desenho proposto apresentava uma ruptura clara em relação ao processo de construção das letras, dando início a um longo caminho de experimentações formais [fig. 14]. Esse distan-

10 Segundo Gerard Unger, antes dessa célebre encomenda já haviam sido apresentadas algumas pesquisas su-gerindo a impressores que se utilizassem de tipografias especialmente projetadas para a imprensa. É o caso do trabalho ‘Mechanik Exercises on the Whole Art of Printing’ de Joseph Moxon, publicado na Inglaterra em 1683. Neste tratado, Moxon se apoiava em estudos realizados por tipógrafos e puncionistas holandeses, especialmen-te no trabalho de Christoffel van Dijck (1606-1669) na apresentação de sugestões de desenho.

A Bíblia de 42 linhas de Johannes Gutenberg.13.

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1. Construção do objeto pesquisado: definições, categorias e conceitos

ciamento não diminuiu a importância da escrita manual em relação ao desenvolvimento de projetos tipográficos, mas demoveu da caligrafia a exclusividade de uma origem comum a todos os desenhos.

Com a essa ruptura formal e conceitual, tornou-se mais clara a distinção existente entre os dois modelos de escrita: a tipografia (tipos de impressão ou printing types) e a caligrafia (escrita manual ou handwriting). A partir desse momento faz sentido se referir a projetos tipo-gráficos de aparência caligráfica como fontes de simulação – antes disso o termo seria inade-quado, por que a referência formal que dá origem aos caracteres é obviamente a escrita.

Mesmo em alfabetos desenvolvidos especialmente para tipos de impressão é possível identi-ficar a presença de estruturas e relações derivadas da caligrafia. Estas estruturas, entretanto, tem caráter secundário e não constituem índices relevantes para a construção de um signifi-cado específico.

Roman du Roi: letras 14.

desenhadas por Louis

Simonneau e produzidas

pelo puncionista Philippe

Grandjean para a Impremerie

Royale Francesa,

encomenda de Luís XIV,

em 1692.

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1. Construção do objeto pesquisado: definições, categorias e conceitos

Na tipografia mecânica o desenvolvimento de fontes de simulação caligráfica esbarrou em diversos aspectos materiais limitado-res. Apesar de algumas experiências terem sido desenvolvidas com tipos de chumbo (‘Civilité’ de Robert Granjon 1558 [fig. 15]; ‘Rosart’ de J.F. Fleischmann 1768)11, as li-mitações de natureza física (ex. dimensão restrita do suporte tipográfico) e processual (ex. fragmentação da composição) impedi-ram que a tipografia mecânica se tornasse um campo fértil para experimentações for-mais de natureza caligráfica.

Muitos desses aspectos foram supera-dos com o advento da fotocomposição, que permitiu ao designer de tipos resgatar modelos históricos de difícil adaptação ou projetar formas mais expressivas e espon-tâneas de escrita.

“Mesmo tendo abandonado a idéia de reproduzir com perfeição a escrita manual, e assim encontrado um caminho para a tipografia que se adequava melhor a estas novas ferramentas, os tipógrafos ainda trabalhavam dentro de limites que só foram superados com o advento da fotocomposição e, em seguida, dos computadores pessoais. (...) Os desenhos tradicionais precisaram ser adaptados a este novo meio, que não só eliminava o perigo do entupimento dos rebaixos como permitia a repro-dução, sem grandes riscos, de traços complexos e delicados.” (Farias, 2001: 54)

A fotocomposição, sistema de composição à frio criado na década de 1950, substituiu os tipos fundidos por matrizes planas gravadas em filmes de acetato, facilitando a criação, mo-dificação e o transporte de fontes. Estas passaram a ter versões em muitos corpos, pesos, gêneros e proporções, muitas vezes gerados a partir de um único original em corpo grande. (Farias, 2001).

As novas possibilidades oferecidas pelos dispositivos de ampliação intermediaram a completa desmaterialização da escrita tipográfica – realizada definitivamente pela tecnologia digital al-guns anos mais tarde, e que viria a satisfazer os anseios por maior liberdade de expressão.

1.3.2. A evolução dos projetos de simulação caligráfica

O surgimento de um novo complexo tecnológico exigiu um significativo período de transição, onde a maioria dos projetos foi simplesmente adaptada aos novos meios de produção. Com

11 Fonte: Lawson, 1990.

Civilité, de Robert Granjon, 1558.15.

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1. Construção do objeto pesquisado: definições, categorias e conceitos

recursos ainda bastante limitados – tanto no que diz respeito ao desenvolvimento de novos alfabetos, como em relação ao processamento de arquivos digitais – formas mais trabalhadas e ornamentais enfrentaram uma espécie de recesso tecnológico:

“Nos primeiros computadores pessoais voltados para a área de produção gráfica, o desenho das fontes era limitado pela baixa resolução das telas e impressoras. As letras deviam, necessariamente, ser desenhadas a partir de bitmaps, resultando em contornos visivelmente serrilhados.” (Farias, 2001: 55)

Foi somente com o surgimento de uma linguagem de descrição mais complexa – o PostScript, em 1985 – que este problema foi minimizado. Até então não era possível vislumbrar a tradu-ção digital de qualquer desenho associado a uma experiência manuscrita. Embora as fontes de tela continuassem apresentando uma aparência serrilhada, esta nova linguagem passava a descrever o contorno das letras para a impressora, possibilitando a definição exata de cur-vas e retas (Farias, 2001).

Ainda assim e durante um bom período, os arquivos tipográficos estiveram submetidos à baixa capacidade de armazenamento e memória, levando o designer de tipos a trabalhar curvas de maneira bastante econômica – o que obviamente não favorecia o desenvolvimento de soluções baseadas na escrita manual [fig. 16]. Os primeiros projetos de simulação caligráfica desenvolvidos no suporte digital não apresentavam grandes avanços do ponto de vista formal em relação aos projetos que já vinham sendo lançados e revitalizados por intermédio da fotocomposição.

Com a melhoria da capacidade de processamento dos computadores pessoais e o surgi-mento de formatos digitais que proporcionavam mais qualidade de renderização às formas tipográficas, finalmente começa a ocorrer a migração maciça dos esforços produtivos para o

ambiente digital. A evolução contínua do dispositivo tecnológico (processamento de dados, softwares e recursos de digitalização) aliada à simplificação do processo de produção de uma fonte (que não dependia mais de material e maquinário complexo) favoreceu o surgimento de uma infinidade de novos desenhos tipográficos.

“(...) a partir da década de 80, uma nova tecnologia reaproximaria os processos de criação, produção e distribuição tipográfica, permitindo que qualquer um, com

Limitações das primeiras fontes 16.

digitais. A fonte Matrix utiliza

estrutura geométrica simples,

buscando a redução máxima de

pontos. A fonte Citizen substitui

curvas por retas na construção dos

bojos. Criações Emigre da

typedesigner Zuzana Licko.[ E ] Matrix Book e Bold, Emigre 1986. [ 3, 8 ] Citizen, Emigre 1986.

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1. Construção do objeto pesquisado: definições, categorias e conceitos

um mínimo de habilidade e paciência, criasse suas próprias fontes, composições e impressões. A enorme diversidade de fontes disponíveis hoje reflete esta possi-bilidade, gerada pelas tecnologias dos computadores pessoais e das ferramentas de desktop publishing, de um mesmo indivíduo ser o responsável por sua criação, manufatura e distribuição.” (Farias, 2001: 55)

Nesse ambiente de profusão, as fontes digitais de simulação caligráfica ganham um novo im-pulso. Diversos projetos são lançados e comercializados com relativo sucesso nesse período, que consiste basicamente a década de 1990.

No entanto, é com o desenvolvimento do formato OpenType (cujo potencial será aprofundado nesta pesquisa) que o designer de tipos parece finalmente encontrar condições favoráveis para a criação de experiências digitais de simulação caligráfica.

Podemos considerar o surgimento da tecnologia OpenType como um marco divisor na his-tória da tipografia digital, especialmente em relação ao desenvolvimento das fontes de simu-lação caligráfica. Este marco definiria as fontes desenvolvidas antes do formato OpenType como pertencentes à primeira geração de projetos de simulação, enquanto as que fazem pleno e bom uso destes recursos, como pertencentes à segunda geração de fontes digitais de simulação caligráfica12.

12 A tecnologia OpenType foi anunciada em 1996, e nos anos 2000 e 2001 diversas fontes passaram a ser conver-tidas para este formato – nem todas se utilizando plenamente de seus recursos adicionais. Em 2002 a Adobe converteu toda sua biblioteca de fontes para o formato OT. Em 2006 havia cerca de 10.000 fontes OT disponíveis no mercado.

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

Sem o objetivo de realizar um mapeamento exaustivo do vasto universo da caligrafia – envol-vendo todas suas diversas possibilidades de realização – esta parte da pesquisa teve por ob-jetivo estabelecer categorias úteis a uma posterior análise voltada ao conjunto de estratégias implementadas na simulação da forma caligráfica.

As características visuais mais relevantes foram agrupadas em quatro categorias:

: características associadas ao universo instrumental da prática caligráfica;

: características associadas ao processo de construção da escrita;

: características associadas à perícia ferramental;

: e as características associadas à caligrafia como uma ocorrência espaço-temporal.

Essas categorias serão reapresentadas no capítulo 3.3 da pesquisa na forma de estratégias de alusão à forma caligráfica, neste ponto sob a ótica do desenvolvimento prático das fontes digitais de simulação caligráfica.

2.1. Características visuais associadas ao universo instrumental da prática caligráfica

O universo instrumental da caligrafia é parte do conjunto responsável pelo exercício da escri-ta – constituído ainda pela ação de realização (o gesto) e possibilitado pelo sistema de sinais utilizado (o alfabeto).

escrita = sistema de sinais + [instrumental e ação de realização]

Se na prática é impossível dissociar esses três aspectos, na análise teórica realizar essa ta-refa permite identificar uma série de estratégias associadas à recriação intencional de índices e atributos tipicamente ‘caligráficos’. Essa identificação facilita o exercício mais aprimorado da simulação no ambiente digital.

Podemos dividir o universo de características instrumentais da caligrafia em três grupos distintos:

: o suporte;

: a substância corante;

: e a ferramenta.

Cada um desses grupos será analisado com o intuito de identificar a maneira como podem influenciar a forma (aparência) e a utilização dos caracteres (composição).

Apesar de estarmos analisando isoladamente o suporte, a substância e a ferramenta empre-gada na escrita, cada item influencia diretamente a definição de outra escolha compatível ao

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

aspecto do texto pretendido pelo calígrafo. Levando em consideração sua habilidade em ma-nusear e controlar todo o processo, a combinação deve estar alinhada ao objetivo do registro: uma composição repleta de marcas acidentais ou regular ao toque da perfeição.

A relação existente entre cada aspecto analisado e a aparência dos caracteres é, portanto, de natureza relativa. Ainda assim, algumas observações podem ser feitas no intuito de destacar características marcantes associadas a uma escolha particular.

2.1.1. Suporte

No caso da caligrafia, um suporte é uma base física na qual se registram informações manus-critas. Qualquer superfície capaz de registrar informações por algum tempo pode ser consi-derado um suporte para a prática da escrita [fig. 17].

O suporte pode registrar a escrita através de um processo de adição ou subtração. No pro-cesso de adição, o suporte recebe alguma substância líquida ou pastosa capaz de alterar de maneira visual ou visual/tátil a superfície de trabalho. No processo de subtração, o material que compõe o suporte é removido da superfície com alguma ferramenta de riscar alterando a textura e a aparência da base de trabalho. Tradicionalmente, a caligrafia é exercida através da adição: pela utilização de tintas de base líquida ou oleosa. Conceitualmente entretanto, não convém limitá-la a esse método apenas.

A propriedade de permanência (conservação do registro) não determina o que é ou não é um suporte – tem apenas função qualitativa: definir se um suporte é bom ou adequado a determi-nado tipo de substância corante e/ou ferramenta. Alguns suportes são excelentes para certas substância e não para outras, fazendo com os que aspectos qualitativos sejam relativos.

Alguns exercícios de caligrafia se utilizam do baixo poder de conservação dos suportes, como a areia, por exemplo, para que o praticante possa ensaiar o gesto de execução sem nenhum custo material [fig. 18]. As tábuas de cera (tabula cerate - codex) utilizadas na Roma antiga

Caligrafia no corpo: suportes alternativos para a prática caligráfica.17.

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

é outro exemplo (histórico) de suporte temporário [fig. 19]. A possibilidade de utilizar a base da escrita em mais de uma ocasião fazia do objeto um importante e barato instrumento de comunicação – em uma época onde diversos suportes eram produzidos a partir de materiais caros e escassos.

A influência do suporte na execução da escrita (e conseqüentemente na aparência dos carac-teres) ocorre em diversos níveis, sobretudo naqueles que dizem respeito ao preenchimento e à definição do contorno (acabamento) das letras. A textura da superfície de trabalho influencia diretamente a operação caligráfica através da absorção da tinta (ou outra substância qual-quer) e do seu potencial de conservação, comprometendo ou favorecendo o resultado da escrita.

Papéis apresentando textura muito acidentada, por exemplo, são mais indicados para o uso de ferramentas maleáveis (pincéis), onde a pressão exercida sobre a ferramenta pode acom-panhar os pequenos desníveis da superfície evitando o excesso de falhas no preenchimento das hastes. Esse efeito, entretanto pode ser desejado pelo calígrafo, buscando trabalhar a imprecisão de uma escrita de caráter artesanal como um valor positivo em determinado pro-jeto [fig. 20].

acima: Suportes reutilizáveis – ideais para 18.

o treino da caligrafia (caixa de areia).

ao lado: Codex, pequenas placas 19.

enceradas usadas para a escrita.

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

Superfícies muito lisas por sua vez (fibras muito compactas ou revestidas) apresentam baixo poder de absorção e são mais indicadas para ferramentas de grande acuidade, pois estas geralmente depositam tinta de maneira moderada sobre a superfície. Papéis e outras su-perfícies com acabamento envernizado (revestimento) necessitam de substâncias corantes bastante aderentes.

A superfície pode influenciar ainda o movimento da escrita: dependendo do tipo de ferramenta utilizada, uma superfície porosa ou relativamente frágil pode dificultar a realização de certos movimentos. O gesto ascendente, por exemplo, quando realizado com penas de ponta chata tende a friccionar o papel. A dificuldade em realizar movimentos dessa natureza deu origem ao processo interrompido de construção – que será apresentado adiante.

2.1.2. Substância corante

Chamamos de substância corante qualquer espécie de matéria líquida ou pastosa capaz de alterar a superfície de um suporte através de um processo de adição1. Em alguns casos a substância empregada pode alterar não só a aparência do suporte, mas também sua textura.

Como foi anteriormente mencionado, a influência da substância corante na aparência do registro não pode ser analisada de maneira isolada. Esta é diretamente afetada pelo tipo de

1 Além da substância corante, podemos ter a utilização de algum agente químico que atue sobre a superfície do suporte alterando sua aparência através de reações químicas.

acima: Papel texturizado influenciando o preenchimento dos caracteres. abaixo: Suporte com alto poder de 20.

absorção influenciando a definição do contorno da escrita.

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

suporte empregado, pela posição da superfície de trabalho durante a escrita, pela escolha de determinada ferramenta e etc. Ainda assim, algumas características particulares podem ser associadas a certos tipos de substância, analisados de acordo com sua consistência (fluidez e densidade), em relação a sua resistência ao tempo e à outras adversidades. A principal substância corante utilizada na caligrafia é a tinta.

As tintas são substâncias corantes constituídas basicamente por quatro componentes: resi-nas, diluentes, aditivos e pigmentos. A resina é a parte que se solidifica para formar a película de tinta seca. O diluente auxilia no ajuste da viscosidade, bem como é o veículo dos demais componentes, que se dosados adequadamente podem facilitar a aplicação das tintas. Os di-ferentes aditivos têm várias funções, sendo uma delas auxiliar na secagem da tinta. Pigmento é a substância sólida existente na natureza ou produzida quimicamente que absorve, refrata e reflete os raios luminosos que sobre ela incidem (Haines, 1994).

Algumas tintas tem características bastante particulares. A tinta preta à prova d’água, por exemplo, é extremamente recomendada à prática caligráfica pela sua capacidade de con-servação. No entanto, não é indicada para a criação de letras apresentando hastes muito finas: seu alto poder de aglutinação faz com que ainda durante o uso se assente na ponta da ferramenta, exigindo desentupimento e limpeza constantes. Mais uma vez, a relação com a ferramenta é direta.

Guaches, aquarelas e tintas de base líquida podem ser dissolvidas para a obtenção de diver-sas nuances cromáticas [fig. 21]. O processo de diluição e conseqüentemente de conserva-ção das tintas pode influenciar a forma da escrita: se a tinta apresentar densidade irregular ou for diluída em excesso, o acabamento das letras pode ser prejudicado – tanto pelo apareci-mento de irregularidades no preenchimento e na definição do contorno das hastes, como na aparência tonal da mancha de texto.

Tinta diluída de forma irregular sobre a superfície do suporte provocando variações tonais e falhas de 21.

preenchimento.

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

As características físicas da tinta também podem influenciar diretamente o gesto da escrita: quanto mais fluida for sua consistência maior a liberdade de locomoção da ferramenta, uma vez que o excesso de viscosidade pode dificultar o deslizar do instrumento.

Em todos os casos o calígrafo precisa aprender a dominar o material, operando as combi-nações de acordo com seus objetivos. Caso opte por uma escrita de acabamento preciso, pela elegância formal e pela regularidade dos caracteres, a combinação escolhida deve res-peitar o limite e o potencial de trabalho de cada aspecto envolvido na realização do registro.

Se, por outro lado, preferir uma construção imprevisível, irregular e sobrecarregada de acidentes intencionais, deve justamente coincidir escolhas incompatíveis ou situa-ções cuja operação forneça pouco controle [fig. 22].

Uma escrita que aparente ter sido realiza-da de maneira pouco habilidosa pode ser fruto de uma técnica bastante elaborada. Nos dias de hoje, acidentes gráficos oriun-dos do descontrole ferramental estão as-sociados ao aspecto artesanal da escrita – fazendo da imperfeição um índice positivo, principalmente em situações e contextos dominados pela alta tecnologia [fig. 23].

Tinta borrada resultando 22.

em belos efeitos gráficos:

a escrita se transforma em

uma paisagem com árvores e

nuvens. Trabalho experimental

de Claudio Gil.

Respingos de tinta: trabalho de GB Crowley.23.

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

2.1.3. Ferramenta

Dos três aspectos instrumentais analisados individualmente, a ferramenta é sem dúvida o principal agente capaz de influenciar a aparência dos caracteres. Essa influência pode ser observada na relação existente entre os dois pontos de contato da ferramenta:

: com o usuário, através da região passiva do instrumento – onde ocorre o manuseio e a empunhadura da ferramenta.

: e com a superfície do suporte, através da região (extre-midade) ativa – onde o fluxo de tinta é moldado pela forma física da terminação da ferramenta [fig. 24].

Na extremidade passiva, a principal influência diz respeito ao fator usabilidade do equipamento. O porte (proporciona-lidade com a atividade), o peso (centro de massa e equi-líbrio), a natureza física (capacidade de conservação do gesto) e a pega (empunhadura e manuseio) devem estar adaptadas ao usuário para que o registro seja realizado da maneira pretendida.

- porte

Uma pena de comprimento desproporcional pode dificultar a operação caligráfica e influenciar diretamente a aparência dos caracteres.

- peso

Um instrumento leve ou pesado demais pode limitar e atrapalhar os movimentos do calígrafo.

região passivada ferramenta

região ativada ferramenta

A FERRAMENTA

Áreas de contato da ferramenta: região passiva 24.

e região ativa.

Ferramentas caligráficas: diferenças na extremidade 25.

ativa da ferramenta proporcionam variações na forma da

escrita.

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

- natureza física

Uma ferramenta constituída de material flexível pode absorver parte do movimento realizado e não transferir plenamente o gesto para a superfície de trabalho.

- pega

Uma ferramenta que apresente um formato pouco compatível com a mão humana pode difi-cultar a construção de formas precisas e bem acabadas.

Estes são apenas alguns exemplos onde as características citadas influenciariam diretamen-te a aparência dos caracteres, através de interferências observadas exclusivamente na ação do usuário. O que não quer dizer, entretanto, que estes instrumentos sejam inteiramente inadequados para a caligrafia: com treinamento é possível atingir resultados estéticos bem interessantes a partir de equipamentos alternativos ou aparentemente limitados. Para ilustrar esse fato podemos citar a obra do consagrado calígrafo iraquiano Hassan Massoudi, que revolucionou a caligrafia árabe pela utilização de ferramentas inusitadas como pincéis de até 20 centímetros de largura [fig. 26].

No outro extremo – físico e con-ceitual da questão – temos a par-te ativa da ferramenta [fig. 25], que recebe esse nome por regis-trar fisicamente na superfície de trabalho o movimento executado pelo usuário. O ponto de contato entre o instrumento e o suporte é o local onde a escrita efetivamen-te se concretiza.

Em um registro por adição, essa região é onde se concentra ou flui a substância corante que tornará o gesto aparente. Ex. a ponta de uma pena caligráfica, as cerdas de um pincel, a parte nua do gra-

fite de um lápis, etc. Em um registro por subtração, é onde se localiza a parte afiada da ferra-menta ou a ponteira – extremidade que provoca risco ou escavação no suporte de trabalho.

2.1.4. A influência da ferramenta na aparência dos caracteres

Em qualquer método de escrita, a parte ativa da ferramenta é determinante na aparência dos caracteres, uma vez que o ponto de contato do instrumento com o suporte condiciona o fluxo da substância corante. As influências mais significativas seriam:

Ferramentas alternativas: o experimentalismo do calígrafo 26.

iraquiano Hassan Massoudi.

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

: a modulação do traço

Manipulando a posição e a pressão imposta sobre a ferramenta, o calígrafo consegue gerar variações na espessura das hastes de uma letra – essa variação é chamada contraste ou modulação [fig. 27].

A espessura de uma haste caligráfica é definida por dois pontos opostos, localizados cada um em uma lateral da haste – esse par de pontos é chamado contraponto [fig. 28]. De acordo com a posição e o movimento realizado em uma determinada ferramenta, a largura do contraponto pode aumentar ou diminuir, gerando a variação de espessura nas hastes da letra. Quando a ferramenta é manuseada em uma posição razoavelmente constante, o contraste torna-se cíclico e previsível, e essa variação recebe o nome de modulação.

De acordo com a direção do movimen-to e o ângulo de trabalho, o traçado pode apresentar espessuras distintas em cada coordenada: horizontal, vertical e diagonal (intermediária). Gerrit Noordzij classifica o contraste entre finos e grossos (modula-ção) a partir de três situações, relacionadas a instrumentos específicos e condições de uso [fig. 29]:

- translação

o contraste da haste é resultado de mudan-ças apenas na direção do traçado – o ta-manho e a orientação do contraponto são constantes.

30° 15° 0°45° + pressão

100%85% 95%75%

A formação do contraste na escrita com dois tipos de ferramenta: contraste oriundo da mudança de angulação da ferramenta e 27.

oriundo da pressão exercida sobre a ferramenta.

contraponto

CONTRASTE

A distância do contraponto determina a 28.

espessura da haste.

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

- rotação

o contraste da haste não resulta apenas de mudanças na direção do traçado, mas também de mudanças na orientação do contraponto. O tamanho do contraponto é constante.

- expansão

o contraste da haste é resultado de mudanças no tamanho do contraponto. A orientação do contraponto é constante.

Noordzij observa que nenhum desses três tipos de contraste ocorre de modo isolado – ape-nas em modelos teóricos – uma vez que dificilmente o calígrafo consegue manter constante a posição e a pressão exercida sobre a ferramenta durante toda a execução de uma escrita (Noordjiz, 2005: 26).

Parte fundamental do aprendizado da caligrafia diz respeito à manutenção da posição e da postura da escrita, para que a modulação obtida seja constante e responsável por uma textu-ra regular. Com prática, o calígrafo aprende a desenvolver variações mais complexas, man-tendo ainda assim um ritmo uniforme.

Nas ferramentas de ponta inflexível, quanto mais larga for a extremidade de contato do ins-trumento, maior a amplitude visual possível de ser obtida, mas a posição e a regularidade da ação influenciam radicalmente a obtenção desse contraste. Ângulos muito próximos de 0º (em relação à linha de base) produzem contrastes extremos: o que muitas vezes é desacon-

As três situações geradoras de contraste: 29.

translação, rotação e expansão. Na prática,

essas situações dificilmente são encontradas

de forma isolada na origem da modulação de

uma escrita.

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

selhável para uma leitura confortável. As ferramentas de extremidade parcialmente flexível (pena metálica de ponta fina, por exemplo) produzem contraste através da pressão imposta sobre a ferramenta, alterando a dimensão do ponto de contato com o suporte (expansão).

Ferramentas de extremidade macia como pincéis, por exemplo, permitem a criação de diver-sas situações de contraste – variando sensivelmente de acordo com a pressão exercida no instrumento, a direção do movimento, a velocidade do gesto, a quantidade de tinta, e etc. Por esse motivo acabam se transformando em instrumentos de difícil controle: as escritas produ-zidas por pincéis macios são belíssimas, mas a expressividade gestual muitas vezes substitui a legibilidade e a possibilidade de identificação dos caracteres.

: serifas e terminações

Outra característica visual influenciada pelo aspecto ferramental da escrita diz respeito ao arremate das letras (serifas) e às terminações (estruturas terminais ou encerramento das hastes). Da mesma maneira que determinam a espessura e a relação de contraste existente em uma escrita, a extremidade de contato da ferramenta também interfere no modo como as hastes são encerradas.

Quando a terminação da haste é abrupta – indicando a repentina interrupção do movimento – esta estrutura não é diretamente condicionada pela forma do instrumento, mas pode acabar indicando sua natureza [fig. 30]. Se esta interrupção resulta no corte seco de uma haste de espessura constante, podemos deduzir que a ferramenta utilizada não produz variação de contraste a partir da pressão exercida pelo calígrafo, ou seja, trata-se de alguma pena de ponta chata não flexível. Nesses casos a frontline (linha formada pelo par de contrapontos que determina a extremidade final do traço) vai indicar a espessura da ferramenta2.

Com ferramentas flexíveis a interrupção do traçado está condicionada a uma redução gradual na pressão exercida pelo calígrafo, o que dificulta o encerramento abrupto e perfeitamente alinhado dos caracteres (principalmente em modelos não-cursivos). O uso dessas ferramen-tas geralmente implica na utilização de arremates como serifas, reforçando o acabamento da escrita e corrigindo pequenas variações no encerramento do traçado. Isso não quer dizer,

2 Deve-se sempre levar em consideração o ângulo de trabalho: na maioria dos casos é a espessura da diagonal descendente direita (downright) que informa a verdadeira dimensão da ferramenta.

Terminações abruptas 30.

podem indicar a natureza da

ferramenta utilizada.

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

entretanto, que toda haste que possui uma serifa de arremate é produzida por uma ferramenta de ponta flexível.

Em todos os casos as serifas funcionam como estruturas de acabamento, mas tam-bém como elementos visuais de valor es-tético. Além de reforçar o alinhamento hori-zontal dos caracteres e melhorar o aspecto final da escrita (padronizando o término das hastes), a serifa é uma estrutura que caracteriza diversos estilos de caligrafia.

As ferramentas de ponta fina permitem a criação de serifas ultrafinas (lineares) e estruturas ornamentais de encerramento conhecidas como terminais [fig. 31 e 32]. Terminais modelados em forma de gota ou perfeitamente circulares dificilmente são construídos por ferramentas como penas de ponta chata: a dimensão reduzida dessas estruturas indica o refinamento próprio a instrumentos mais delicados.

: proporção e espessura

A proporção dos caracteres também é influenciada diretamente pela dimensão, tipo de ferra-menta e ângulo empregado na escrita.

Com instrumentos de ponta larga, por exemplo, dificilmente o calígrafo consegue produzir ca-racteres em dimensões muito reduzidas ou hastes muito finas, uma vez que a largura da fer-

Serifas lineares: ajudam a padronizar letras produzidas com 31.

ferramentas sensíveis à pressão.

Terminações em forma de gota também conhecidas como lacrimais: 32.

tradicionalmente encontradas em cursivas comerciais inglesas.

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

ramenta impõe um espaço mínimo para a articulação de curvas e retas [fig. 33]. Executadas em uma dimensão inadequada, as estruturas podem acabar sobrepostas ou perigosamente próximas – dificultando a compreensão de letras e palavras3.

2.1.5. O aspecto instrumental e a evolução formal da escrita

As diferenças relacionadas à finalidade e à técnica utilizada no registro – manuseio da fer-ramenta e natureza material suporte – conduziram a escrita por dois caminhos distintos em relação a sua evolução formal. Segundo Adrian Frutiger, no livro Sinais e Símbolos:

“Em todas as partes do mundo e em todas as épocas houve duas formas básicas de expressão no emprego da escrita: de um lado, a inscrição monumental em paredes de rochas, palácios e nas placas de sinalização e, de outro, o desenho corrente e manuscrito nas anotações, correspondências, registros de chancelarias etc.

Esses dois estilos sempre foram executados, obrigatoriamente, com instrumentos e materiais diferentes. Por isso, suas formas evoluíram de modo diverso. A escrita monumental capitular conservou sua forma original devido à natureza permanente do seu suporte, geralmente feito de pedra, enquanto a cursiva ou corrente alterou-se intensamente ao longo dos séculos, devido ao uso constante de materiais pere-cíveis, como placas de cera, papel etc.” (Frutiger, 1999: 127)4

A natureza duradoura e permanente do registro escultórico transformou os modelos executa-dos em cinzel5 em padrões bastante estáveis. Podemos encontrar exemplos de escrita escul-tórica em ruínas de construções e monumentos que resistiram a mais de 2000 anos de idade.

3 Em alguns modelos de gótica, a inclinação utilizada pelo calígrafo para obter uma escrita econômica acabou resultando na criação de caracteres estreitos, muito densos e de difícil legibilidade.

4 O argumento de Frutiger não contempla as maiúsculas góticas.

5 Instrumento manual resistente usado para entalhar, esculpir, cortar ou gravar materiais duros (madeira, ferro, pedra etc.) geralmente com auxílio de um martelo.

Letra de proporções reduzidas gerada com 33.

ferramenta de ponta larga: deformação excessiva

no padrão da escrita.

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

Por esse motivo, o modelo alfabético romano da escrita monumental (maiúsculas capitulares) se manteve praticamente inalterado nesse longo intervalo, enquanto modelos manuscritos passaram por vários estágios de transformação e adaptação [fig. 34 e 35].

Em relação ao aspecto formal dos caracteres, outra diferença importante vale ser ressaltada. A dureza material do suporte onde a letra monumental é executada exerce influência direta na sua aparência. Por ser construída através do manuseio de ferramentas rústicas utilizadas para golpear a pedra ou escavar a madeira (marfim, etc.), a escrita tem por característica a presença de hastes quase uniformes, construção sólida e aparência estática.

Já a escrita manual evoluiu no sentido oposto. Desenvolvida inicialmente como uma ferra-menta de função contábil, foi empregada como um instrumento de verificação e controle em trocas comerciais e nos primeiros meios de comunicação. Como seu uso não esteve limitado ao universo erudito dos escultores monumentais – mas ao ambiente informal do comércio – não gozou da mesma estabilidade dos modelos esculpidos.

2.2. Características visuais associadas ao processo de construção da escrita (ductus)

Segundo o designer de tipos Fred Smeijers observou em seu livro ‘Counter Punch’, existem três maneiras básicas de se construir uma letra:

: através da escrita (writing);

: do desenho (drawing or lettering);

: e da tipografia (typography).

ao lado: Escrita monumental – caracteres realizados sobre 34.

um suporte durável e permanente.

abaixo: Cursiva romana antiga – transformações graduais 35.

no padrão da escrita geradas pela informalidade do registro

realizado em suporte perecível.

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

“There are just three kinds of letters: written, drawn or ‘lettered’, and typographic. They follow from and are defined by their method of production: writing, drawing or ‘lettering’; and all the methods by which typographic letter are generated.” (Smeijers, 1996: 19)

A tipografia difere claramente das outras duas maneiras por constituir um método mecânico de criação [fig. 36]. Já a diferença existente entre o ato de se escrever e desenhar uma letra é mais sutil, mas ainda assim encerra princípios opostos em sua realização.

Indo ao ponto que interessa a esta parte da pesquisa, podemos dizer que a escrita manual é uma técnica de registro baseada na conservação de um gesto. A forma dos caracteres surge como uma conseqüência desse gesto, naturalmente influenciada por características físicas e materiais do processo de construção. Ou seja, na escrita a forma está submetida ao gesto e o fundamento de construção é o traço.

Já a letra desenhada é produzida a partir de um método cujo objetivo é a construção da forma. A finalidade da construção não é registrar o movimento, mas construir uma determinada forma. O gesto não constitui a essência do registro, ou seja, nas letras desenhadas o gesto está submetido à forma. Mesmo que a aparência final da letra faça referência à um gesto caligráfico, o fundamento de construção é o contorno – pois é ele que define a aparência da letra.

Essa distinção é confirmada por Gerrit Noordzij no livro ‘The Stroke’. Este autor, entretanto, também se refere ao desenho de letras (lettering) como uma forma de escrita (writing), mas que se diferenciaria das formas manuscritas (handwriting) pelas características anteriormente mencionadas.

“Handwriting is single-stroke writing. Lettering is writing with built-up shapes. In lettering the shapes are more patient than in handwriting, as they accept retouching strokes that may gradually improve (or impair) the quality of shapes.” (Noordzij, 2005: 9)

Três maneiras distintas de se construir uma letra: escrita, desenho e tipografia.36.

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

Levando essa análise mais adiante, podemos dizer que na escrita a ação criativa encontra-se localizada no interior das hastes de uma letra. No centro da haste estaria localizada uma espécie de linha mestra – a heartline6, que representa o deslocamento do ponto de contato da ferramenta com o suporte (the track of a tool) [fig. 37].

Na caligrafia portanto, a constru-ção da forma ocorre de dentro para fora – uma vez que o con-torno deriva desta ação central. Nas letras desenhadas, a cons-trução não deriva do desloca-mento de um ponto localizado no interior da haste: a forma pode ser construída diretamente a par-tir do contorno, ou a haste pode ser construída por mais de um movimento (hachura, segmentos descontinuados, pontos, etc.). Ou seja, a construção ocorre de fora para dentro7.

A distinção entre estes dois métodos de produção mostra-se importante por dois aspectos fundamentais:

: em primeiro lugar porque identifica a categoria de registros que realmente interessa à esta pesquisa – letras escritas e não letras desenhadas.

: e em segundo lugar, porque evidencia a importância do traçado como sendo a principal rea-lização a ser preservada ou artificialmente recriada em projetos de simulação caligráfica.

Esse traçado original que dá forma à escrita é chamado de ductus.

2.2.1. O ductus

Derivada do latim [ducere] (levar, transportar, conduzir) a expressão ductus é utilizada para se referir à informação esquemática correspondente ao movimento responsável por dar for-ma à letra ou a partes da letra manuscrita. Além do sentido e do curso da ferramenta, essa informação pode indicar ainda a inclinação e a velocidade empregada pelo calígrafo no ato da escrita.

6 Na prática, essa linha estrutural existe apenas em letras geradas através de processos de construção por adição (escrita), não existindo nas letras construídas através de processos escultóricos (entalhe).

7 Em alguns casos uma letra desenhada pode sugerir a existência de um traçado de construção, simulado pelo contorno do desenho ou pela aparência final da letra. Essa estratégia será analisada nesta pesquisa, uma vez que as fontes digitais são – sem exceção – construídas a partir de um contorno vetorial, ou seja, constituem exemplos de letras desenhadas vetorialmente.

Linha mestra (37. heartline) representando o

deslocamento da ferramenta caligráfica.

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

“(...) pelo termo ductus – particípio do verbo ducere – conduzir, levar – designamos o sentido do movimento da mão para traçar as letras, de acordo com o cânone habitual, podendo ser pausado ou lento ou, por contraposição, cursivo ou rápido, exercendo, em qualquer dos casos marcada influência na forma ou aspecto que a escrita se apresente a vista.” (Marques 2002: 82)

“Ductus peut être defini comme étant le nombre, l’ordre de sucession et le sens des traits qui composent une lettre. (...) L’etude du ductus, qui représent un élément fondamental dans la calligraphie, ne se limite pás simplesment à decomposer la lettre em un certain nombre de traits, mais a noter dans quel ordre ces derniers doivent être tracés.” (Mediavilla 2000: 51-2)

Em virtude da óbvia relação existente entre o movimento de execução de uma escrita e sua aparência, o termo ductus também pode ser usado para a descrição morfológica de modelos de caligrafia, servindo como uma boa ferramenta de análise para esta pesquisa [fig. 38].

O termo ductus é utilizado tanto para indicar a natureza do 38.

gesto de construção da escrita (interrompido, contínuo,

lento, etc.) como para orientar a construção de modelos

formais de escrita.

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

“Le terme ductus s’applique également à l’aspect general d’une écriture: un ductus carré, un ductus allongé. La rustica est un ductus simple et étroit dans as morphologie. La fraktur en revanche poisède un ductus composé de nombreux traits.” (Mediavilla, idem)

A pequena diferença observada nas duas definições (Mediavilla e Marques) tem relação com a utilização do termo em seus respectivos campos de estudo. Na prática caligráfica (Mediavilla) a decomposição do movimento tem objetivo instrucional – por isso o termo está associado a uma descrição pormenorizada e esquemática do gesto caligráfico. Na paleografia (Marques) o termo é observado por características mais gerais, suficientes para identificar e classificar os estilos e as técnicas de registro empregadas na criação de um documento histórico8.

Apesar de constituir uma informação importante na prática da caligrafia, o termo ductus não é de amplo conhecimento no universo profissional dos designers de tipos – o que pode ser percebido na bibliografia especializada que freqüentemente o ignora. Para esta pesquisa, as referências bibliográficas relacionadas ao campo da paleografia foram de grande valia: nesse campo de estudo o termo é de grande importância, uma vez que a compreensão do ductus de uma escrita facilita o processo de transcrição dos documentos analisados pela disciplina.

Na medida em que os centros de ensino de caligrafia clássica foram perdendo importância na formação de novos calígrafos (e por influência direta na formação de designers de tipo), o rigor no ensino da atividade acabou sendo reduzido na mesma intensidade, afastando a práti-ca das suas bases teóricas mais tradicionais. O surgimento de uma prática caligráfica menos canônica e mais informal naturalmente reduziu a importância do termo na esfera instrucional da atividade – mas obviamente não eliminou sua existência concreta. Na origem de cada le-tra existem movimentos que servem como base para a construção estrutural dos caracteres, independente do estilo ou do rigor formal empregado no modelo em questão.

Por constituir a realização visual do gesto caligráfico, o ductus representa a essência de uma escrita. Do ponto de vista morfológico, é a armação estrutural por onde esta toma forma atra-vés de características secundárias relacionadas à ferramenta e ao suporte.

2.2.1.1. A natureza estrutural do ductus caligráfico

Compreendendo o ductus como a essência do desenho caligráfico, torna-se interessante tomá-lo como um parâmetro importante na identificação de procedimentos distintos de cria-ção – capazes de estabelecer categorias particulares de projeto.

Na criação de um original caligráfico, o movimento realizado na execução das letras pode variar de duas maneiras: através de um método contínuo de construção (running ou cursivo) ou interrompido (interrupted ou pausado).

No método contínuo o calígrafo só levanta a ferramenta de desenho do papel ao término da letra – e em alguns casos da palavra inteira. É um processo responsável por criar uma escrita

8 A Paleografia é a parte da Diplomática que, pelo caráter da letra em que se acham os documentos antigos, nos ensina a julgar sua idade, veracidade e ainda a determinar o território ou a nação à que pertencem.

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

cursiva, fluida e possivelmente conectada. Já no método interrompido (interrupted) a letra é construída por um gesto descontinuado, situação na qual o calígrafo suspende a ferramenta do papel ao término de uma haste, reposicionando-a para executar outra – e assim completar a letra [fig. 39].

No livro ‘The Stroke’ Noordzij não estabelece uma relação precisa entre cursividade e construção contínua (running construction). Segundo o autor, é possível que uma escrita cursiva seja cons-truída de maneira interrompida, ficando a cursividade apenas a cargo de hastes geradas de ma-neira mais sinuosa – a que se re-fere pelo termo ‘cursivas formais’ (formal cursives). Em sua análi-se, Noordzij parece utilizar a has-

te como unidade básica da escrita para determinar o caráter cursivo de uma caligrafia.

Nesta dissertação entretanto, optamos por tomar a letra como a unidade básica de análise. Dessa maneira, a decomposição do desenho de uma letra em dois ou mais movimentos é determinante para estabelecer uma satisfatória distinção entre os métodos de desenho. Logo, de acordo com a natureza da construção o ductus de uma escrita pode se apresentar dentro das seguintes gradações [fig. 40]:

: interrompido;

: interrompido sinuoso;

: cursivo;

: cursivo semi-encadeado;

: cursivo encadeado.

Métodos de construção contínuo e interrompido.39.

Gradações na natureza de construção 40.

do ductus de uma escrita.

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

Essas gradações foram organizadas de acordo com a característica central dessa análise – o método de desenho adotado – tomando a letra como unidade básica da escrita. Vale ressal-tar entretanto, que em alguns casos uma escrita de ductus interrompido e uma construção cursiva (não-encadeada) podem apresentar grande semelhança formal. A maneira como as hastes se articulam no interior dos caracteres pode ser observada apenas através de deta-lhes milimétricos, o que pode em alguns casos dificultar a identificação precisa do método de construção.

2.2.1.2. Aspectos materiais que influenciam a realização do ductus de uma escrita

Quando a intenção do calígrafo é registrar um texto de modo veloz, o desenvolvimento de uma escrita de ductus contínuo (construção otimizada) certamente vai se mostrar uma esco-lha conveniente. O tempo poupado no reposicionamento da ferramenta pode parecer pouco, mas multiplicado em um texto longo torna-se uma economia considerável. A escrita de ductus contínuo é uma construção fluida, e essa característica permite que sua execução seja não só mais veloz, mas também mais expressiva e espontânea, por garantir maior liberdade ao gesto de criação.

Por outro lado, quando o calígrafo tem por objetivo construir uma escrita uniforme ou reprodu-zir determinado cânone formal com precisão e regularidade, um movimento mais controlado pode ser fundamental para a execução da tarefa. Nesses casos, uma construção de ductus interrompido mostra-se mais adequada ou mesmo obrigatória, quando o formalismo exige determinado resultado visual.

Entretanto, a definição entre uma técnica de construção e outra não tem relação apenas com a escolha pessoal do calígrafo, mas com condições materiais e operacionais intrínsecas à realização da escrita.

A combinação entre o tipo de suporte e a ferramenta empregada é determinante na escolha do método de construção a ser empregado9. Algumas ferramentas mostram-se claramente

mais indicadas que outras para certas situações da escrita, pro-porcionando não só resultados melhores como até mesmo impe-dindo acidentes de natureza prá-tica – como rasgos ou borrões.

A realização de uma escrita de ductus contínuo, por exemplo, exige a constante mudança de sentido no traçado da letra, resul-tando em movimentos de retorno

9 Características da ferramenta com flexibilidade, superfície de contato, capacidade de entintamento, etc. combi-nadas com características do suporte como porosidade, aderência, resistência.

Limitações técnicas podem determinar a escolha do tipo 41.

de construção utilizado na escrita.

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

(sobreposição de hastes) e rotação. Por conta disso, as letras apresentam em sua estrutura hastes de orientação descendente (downstrokes) e ascendente (upstrokes). Dependendo da maneira como são manuseadas, as penas de ponta chata não são muito indicadas para a realização de hastes ascendentes [fig. 41]. Quando o ângulo de uso dessa ferramenta em relação ao suporte é inferior a 60º, o movimento de retorno ascendente faz a ponta da pena friccionar a superfície do suporte – dificultando sua realização e podendo até mesmo causar sua destruição parcial.

“Another factor to consider is the angle of the pen holder in relation to the writing surface. Again, this depends on what you find works best for you, and also on the angle of the board, but in general the pen should be held steeply enough (about 60º) to allow you to write with the very tip of the nib. If the pen is held at too flat an angle, the pen will ‘stroke’ the paper, rather than write on it, and the underside of the nib will be used, resulting in scratchy, uneven lines. Hold the pen with a relaxed grip; do not grasp it tightly.” (Haines, 1994: 46)

Superar problemas técnicos como esse constituem desafios interessantes para o praticante da caligrafia. Velocidade (fluência) e controle (articulação e regularidade na escrita) geral-mente são objetivos opostos na operação caligráfica. Segundo Gerrit Noordzij:

“A returning construction can be written more quickly (with a ‘running’ hand) than an interrupted construction, but with an interrupted construction it is easier to maintain control. (...) In returning construction the articulation of the letterform can be sacrificed to the speed of execution. Articulation and speed are antipodes in the development of writing.” (Noordzij, 2005: 39)

Entrevistado informalmente para esta pesquisa, o calígrafo Claudio Gil afirmou que com muito treino é possível superar algumas dessas combinações adversas (uso da ferramenta e supor-te). No caso específico que foi descrito, a perícia está em controlar o ângulo da ferramenta e a pressão exercida sobre o papel, realizando o movimento sem prejuízo para a escrita.

2.2.2. O ductus contínuo: a escrita cursiva

A construção caligráfica de ductus contínuo é comumente conhecida por escrita cursiva. A expressão é utilizada para se referir às letras construídas de forma otimizada – o que significa em muitos casos uma escrita veloz e bastante fluida. Na prática, a melhor definição para a cursividade na escrita é a economia de tempo, e em alguns casos espaço10.

A letra cursiva não constitui exatamente um estilo particular de escrita, mas uma caracterís-tica do processo de registro, ou seja, de uma condição da sua realização. Além do alfabeto latino, outros sistemas de escrita apresentam formas cursivas de grafia, como o hebraico e o japonês, por exemplo [fig. 42].

10 O fator que define a cursividade de uma escrita não é a velocidade, mas a maneira como as letras são produzi-das. Uma escrita cursiva pode ser construída lentamente.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 63

2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

A origem de uma construção de característica contínua (cursiva) tem relação direta com as técnicas de registro empregadas, bem como com a função da escrita [fig. 43]. Na medida em que o trabalho do calígrafo passou a ser acelerado por questões de produtividade (economia e tempo), o modelo estático do alfabeto monumental romano passou a sofrer uma série de deformações em sua estrutura, gradualmente assimiladas como novos padrões de legibili-dade. Essas deformações, posteriormente compreendidas como evoluções formais, eram frutos da otimização do processo de construção das letras, simplificando e acelerando sua execução11.

Segundo a citação de Lecoy de La Marche retirada do livro ‘A Palavra Escrita’ de Wilson Martins:

“A cursiva romana nasceu da escrita popular, com a qual os transeuntes lambuza-vam as paredes e que se encontra em certas inscrições da Pompéia, ou ainda da que os notários e escrivães introduziram na prática para redigir os seus documentos de uma forma expedita. Seus caracteres mais evidentes são a rapidez e a ligação das letras entre si.” (Martins, 2002: 55)

A palavra ‘cursivo’ vem do latim [cursare], freqüentativo do verbo currere que significa ‘correr’. As primeiras letras cursivas (de origem latina) de que se têm registro datam do século I a.C. e constituíam maiúsculas utilizadas geralmente em documentos oficiais. Ainda por volta do

11 Em alguns casos a simplificação na execução da letra resultou em uma aparência mais complexa.

à esquerda: Escrita japonesa cursiva – estilo ‘grama’.42.

acima: Escrita cursiva, manuscrito do calígrafo Yciar, 43.

Saragossa, século XVI.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 64

2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

século III, consolida-se o modelo conhecido como Nova Cursiva Romana, uma escrita feita com uma pena pontiaguda bastante arredondada e que mais tarde daria origem a nossa mo-derna minúscula [fig. 44].

É importante ressaltar que nem toda escrita manual apresenta estrutura cursiva, ou seja, a cursividade não é uma característica geral de formas manuscritas. Isso pode parecer óbvio, mas é uma ressalva que deve ser feita, uma vez que nos dias de hoje a cursividade como característica visual é provavelmente o maior clichê relacionado ao universo visual das fontes digitais de simulação caligráfica.

Em virtude do caráter mecânico do método tipográfico de composição, a escrita manual aca-bou assumindo algumas características visuais de maneira muito profunda – alterando a per-cepção do significado ‘caligráfico’ nos dias de hoje.

Com o objetivo de desenvolver um sistema de composição extremamente simples e versátil, a tipografia mecânica adotou a letra como a unidade básica de construção tornando-se um processo fragmentado de escrita. Essa fragmentação acabou se transformando em uma evi-dente marca do meio tipográfico de produção, apesar de alguns estilos de caligrafia serem construídos de maneira igualmente fragmentada. Por outro lado, toda indicação de constru-ção contínua e integrada passou a simbolizar uma criação de natureza ‘caligráfica’, deforman-do ou achatando uma percepção mais precisa do termo ‘caligrafia’.

A fragmentação da escrita e a integração dos caracteres será analisada mais adiante no ca-pítulo 2.3.4 desta pesquisa.

2.2.2.1. Planos de ocorrência da cursividade na escrita

A cursividade enquanto atributo pode ser percebida em dois planos de ocorrência:

: no nível do caractere;

: no contexto da palavra12.

12 Como já foi observado, Noordzij também reconhece a cursividade no nível da haste de construção.

Nova cursiva romana: realizada com uma pena pontiaguda, 44.

influenciou a invenção da moderna minúscula (século IV a.C).

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 65

2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

Quando a letra é construída de modo contínuo, mas a palavra não é, podemos dizer que a cursividade se manifesta apenas no nível do caractere. Ou seja, o movimento da escrita é interrompido ao término de cada letra, mas a construção interna do caractere tem natureza contínua – apresentando movimentos de retorno durante a operação caligráfica.

Quando as letras são construídas de modo conectado, ou seja, quando a palavra (ou boa parte dela) é gerada por uma linha contínua, podemos dizer que a cursividade se manifesta no contexto da palavra: tratam-se de modelos encadeados (joined-up handwriting) de escrita [fig. 45]. Segundo Alexander Lawson, na terminologia tipográfica os alfabetos baseados em manuscritos de natureza encadeada comumente recebem a nomenclatura ‘script’, como uma categoria particular de cursivas:

“The reader of this book has been confronted with a confusing diversity of typographic terminology, for no single system of type classification exists. And script types, because they derive from a profusion of handwriting styles, are even more difficult to classify than others. In describing these types two terms are used almost interchangeably: script and cursive. Many typographers prefer to call a type a script only if it has joining characters, and cursive if the characters are separate. But there is a general lack of agreement in usage; manufactures themselves are quite indiscriminate in their names.” (Lawson, 1990: 354)

A aparência de uma escrita encadeada pode diferir bastante de uma cursiva não-encadeada. A otimização completa do movimento de construção tende a eliminar qualquer interrupção intermediária no desenho – o que acaba transformando as terminações internas da palavra (hastes em ponta) em curvas de retorno (loopings). A palavra é formada por um traço único que se retorce dando forma às letras13. Objetivando a continuidade do movimento, algumas letras passam a apresentar ligações inexistentes em modelos não conectados, o que pode alterar significativamente sua aparência.

13 Informalmente em português esses modelos são conhecidos como ‘letras de mão’.

Exemplo de cursiva semi-encadeada (Wyss, Zurich, 1549) e encadeada (Barbedor, Paris, 1647).45.

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

2.2.2.2. Características visuais associadas à cursividade

A partir da análise de diversos modelos cursivos de escrita e da compreensão técnica do seu processo de construção, poderíamos destacar algumas características visuais relacionadas à idéia de ‘cursividade’, funcionando como índices de otimização e fluência14. Seriam:

: inclinação de hastes verticais ou entorse estrutural

O deslocamento horizontal é um movimento típico da escrita (ocidental, foco desta pesquisa). Quando a letra é construída de maneira cuidadosa, esse deslocamento só ocorre ao térmi-no da construção de cada caractere. Quando essa operação é acelerada entretanto, a mão desloca-se horizontalmente ainda durante a construção do sinal – o que tende a inclinar as hastes verticais de maneira diagonal (haste vertical + deslocamento horizontal = inclinação diagonal).

Em outros casos, a letra cursiva pode não apresentar inclinação diagonal, mas um entorse estrutural mais complexo [fig. 46]. Esse entorse é conseqüência de uma construção fluente e cautelosa ao mesmo tempo, manifestando características cursivas sem, no entanto, deformar a postura tradicional da escrita.

: formas otimizadas

Em escritas mais velozes, a otimização do movimento realizado durante o registro resultou em uma espécie de simplificação formal dos caracteres [fig. 47]. Em alguns casos, a estrutura das letras foi resumida a uma seqüência mínima de marcas necessárias para sua identifica-ção. Dessa maneira, algumas letras acabaram ‘evoluindo’ a ponto de se apresentarem intei-ramente distintas dos modelo construído de maneira não-otimizada (interrompida). É o caso, por exemplo, do ‘a’ minúsculo de um andar ou pavimento (single storey) em comparação ao ‘a’ de dois andares15.

14 As características listadas correspondem a aspectos gerais encontrados em grande parte das escritas cursivas. Não necessariamente todas se manifestam em qualquer modelo de escrita cursiva.

15 Interessante observar que o ‘a’ cursivo foi tomado por modelo formal em algumas fontes modernas de caráter geométrico: devido a sua simplicidade estrutural, e não devido a sua origem caligráfica.

Escritas cursivas podem 46.

apresentar a estrutura

retorcida pelo gesto ou um

elevado grau de inclinação.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 67

2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

Formas otimizadas também caracterizam letras como ‘g’, ‘k’, ‘v’ e outras apresentando hastes diagonais – transformadas em curvas pela velocidade com que são construídas. Em alguns alfabetos essa característica se expressa de modo bastante sutil: em letras como ‘b’, ‘h’, ‘m’, ‘p’ ou ‘r’, por exemplo, esse aspecto da cursividade é revelado apenas pelo formato do bojo, pelo ângulo ou pela altura em que as curvas encontram as hastes.

: conexão entre os caracteres

Em algumas escritas de característica cursiva é relativamente comum que determinadas le-tras apresentem extensões e prolongamentos indicando a continuidade do traçado na passa-gem de uma letra à outra [fig. 48]. A conexão entre os caracteres no interior de uma palavra é uma característica associada ao processo fluente do registro, dificilmente sendo encontrada em caligrafias de ductus interrompido.

: serifas transitivas

Em um registro caligráfico as serifas podem constituir o resultado natural da distensão do gesto de desenho – uma marca gerada involuntariamente ao término do movimento, ou cons-tituir um arremate estilístico intencional – executado com o intuito de demarcar o término da haste.

As serifas que caracterizam as escritas de natureza cursiva geralmente tem aspecto tran-sitivo: indicam o início (entrada) e o fim (saída) do gesto de construção de uma letra. São

A simplificação dos movimentos conduziu a evolução formal da escrita. à dir.: Caligrafia maneirista holandesa.47.

Prolongamentos conectando os caracteres indicam a continuidade no traçado.48.

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

estruturas unilaterais (projetam-se em uma única direção) e inclinadas no ângulo da escrita – geralmente em posição ortogonal ao eixo de inclinação [fig. 49]. Diferem-se das serifas reflexivas, encontradas em formas mais ‘estáticas’ onde o traço parece apenas dobrar-se ao término da haste.

A serifa transitiva não é encontrada apenas em escritas cursivas: algumas caligrafias de duc-tus interrompido também apresentam hastes terminando de modo relativamente sinuoso. Da mesma maneira, podemos encontrar escritas cursivas sem serifa ou com outro tipo de forma-ção particular.

: terminações características

A fluência de uma escrita pode ser evidenciada através de estruturas ornamentais localizadas no término das hastes. Em uma construção cursiva, a extremidade das letras pode apresentar grande relação com o tipo de ferramenta empregada no registro16. Podemos encontrar quatro formas tradicionais para o encerramento de uma haste:

- terminação abrupta:

Encerramento caracterizado pela ausência de qualquer recurso gráfico [fig. 50]. Constituem cortes em ângulo da haste de construção respeitando sua inclinação, eixo e espessura. Indicam um final repentino no gesto de construção: a remoção da ferramenta da superfície do suporte. Comum em escritas cursivas realizadas com penas de ponta larga, onde trabalhar a terminação de uma haste de maneira ornamental é bastante difícil.

- terminação estendida em floreio ou em ponta:

Recurso ornamental caracterizado pelo prolongamento sinuoso, rebuscado ou pontiagudo da parte final de uma haste. Indica o espírito luxurioso de algumas formas caligráficas, tendo como objetivo a ornamentação da escrita através de uma indicação clara de virtuosismo e liberdade gestual.

16 Esse detalhe da escrita pode ser um índice valioso para a identificação da ferramenta utilizada.

Serifas transitivas indicam 49.

o término do movimento

de construção de uma

letra e o deslocamento

para a construção da letra

seguinte.

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

As extensões em floreio podem ser realizadas com diversas fer-ramentas. As terminações reali-zadas com penas de ponta fina permitem a criação de prolonga-mentos mais complexos, entre-laçados como novelos de linhas e executados em caligrafias de dimensões reduzidas. Com uma pena de ponta chata a execução depende da dimensão da escrita, apresentando limitações formais óbvias na execução de curvas muito fechadas.

- terminais em forma de gota (lacrimal):

Terminais constituem formas bem definidas de encerramento de hastes utilizadas como recursos estilísticos de ornamentação. São encontradas na extremidade de determinadas letras: geralmente ‘a’, ‘c’, ‘f’, ‘j’, ‘r’, ‘s’, ‘y’. Terminais em forma de gota constituem arremates arredondados realizados no intuito de suavizar o término da haste em uma curva contínua e sem acidentes, indicando acuidade na execução da letra. Tradicionalmente são executadas com ferramentas de ponta fina e flexível, e muito encontradas em caligrafias conhecidas como copperplate, english roundhand ou comercial inglesa – bastante comuns em gravuras de metal [fig. 51].

- hastes terminando em looping

Recurso observado em caligra-fias de ductus contínuo, onde o término de hastes intermediárias apresenta um looping na curva de retorno.

: maiúsculas sinuosas e extensões caudais

A maiúscula cursiva possui uma estrutura tradicionalmente mais sinuosa e inclinada que uma romana de ductus interrompido – pelas mesmas características previamente apresentadas associadas a uma execução otimizada e veloz [fig. 52].

Em alguns casos, a maiúscula cursiva pode apresentar extensões semelhantes a longas li-nhas de entrada: trata-se de alongamentos ornamentais executados com o objetivo de sugerir o início do desenho sinuoso de suas hastes de construção. Esses alongamentos (caudas)

Exemplos de terminações comumente encontradas em 50.

escritas cursivas: abrupta e floreada.

Terminações: lacrimal e haste em 51. looping.

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

tem por objetivo aproximar visu-almente as maiúsculas (modelos remanescentes da tradição es-cultórica) das minúsculas cursi-vas de origem manuscrita.

: contraponto cruzado

Em escritas cursivas realizadas com ferra-mentas de ponta chata, a mudança de di-reção em certas curvas (ângulo maior que 90°) proporciona a aparição de ‘dobras’ sutis na região interna de um bojo. A rup-tura na sinuosidade da curva é uma marca deixada pelo cruzamento do contraponto. Neste ponto exato da curvatura ocorre a mudança de direção no traçado da linha, onde a lateral interna da haste muda de di-reção e se transforma em lateral externa [fig. 53].

Dependendo do tipo de ferramenta utili-zado, esse cruzamento torna-se bastante aparente e passa a se caracterizar como um importante índice de construções de natureza cursiva.

: tendência à irregularidade

Uma característica comum em escritas cursivas mais velozes e informais é a aparência rela-tivamente irregular de seus caracteres – tanto em relação à sua construção como em relação ao seu posicionamento na linha da escrita. Essa irregularidade é conseqüência de uma reali-zação acelerada e espontânea [fig. 54].

Maiúsculas sinuosas apresentando 52.

em muitos casos grandes extensões

em floreio.

A mudança de direção realizada com uma ferramenta de 53.

ponta chata pode ser percebida através do cruzamento do

contraponto.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 71

2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

Resumindo:

: inclinação de hastes verticais ou entorse estrutural;

: formas otimizadas;

: conexão entre os caracteres;

: serifas transitivas;

: terminações características;

: maiúsculas sinuosas e extensões caudais;

: contraponto cruzado;

: tendência à irregularidade.

É importante relembrar que a associação estabelecida entre o ductus de natureza contínua e a cursividade é uma opção me-todológica, apoiada na decisão de tomar a letra como unidade básica de análise para a definição das categorias propostas. Alguns modelos de caligrafia podem ser construí-dos de maneira interrompida e apresentar alguns dos aspectos cursivos listados nes-se capítulo. É preciso entender esse ma-peamento proposto como um conjunto de tendências.

2.2.3. O ductus interrompido

Como já foi anteriormente mencionado, a combinação entre ferramentas de ponta chata e o modo como são manuseadas pode dificultar a realização de movimentos ascendentes de construção (upstrokes), em virtude da fricção causada entre a área de contato da ferramen-ta e o suporte utilizado no registro. Essa combinação dificulta a execução do movimentos ascendente de retorno, onde a ferramenta inverte o sentido do movimento ao término de determinada haste.

Para superar essa limitação operacional o calígrafo se vê obrigado a decompor o desenho da letra em dois ou mais movimentos, realizando apenas traços descendentes (downstrokes) em sua execução17. Ao terminar o desenho de uma haste vertical ou de parte de uma circunferên-cia, a ferramenta é levantada do papel e reposicionada para finalizar a construção da letra. Ou seja, o gesto é decomposto em uma construção de ductus interrompido.

17 A decisão de se realizar uma escrita de ductus interrompido pode não decorrer de uma limitação operacional: o calígrafo pode ter como objetivo simplesmente reproduzir a imagem de uma caligrafia construída de forma interrompida.

Distribuição irregular dos caracteres em uma 54.

composição caligráfica: informalidade de modelos

construídos de maneira veloz.

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

Em teoria, a interrupção do gesto e o reposicionamento da ferramenta torna o processo de escrita mais trabalhoso, e conseqüentemente mais lento também. No entanto, se por um lado um método de construção decomposto exige mais tempo, por outro permite maior controle sobre a execução – o que faz com que escritas de ductus interrompido tradicionalmente apre-sentem formas regulares e bem articuladas.

Em alguns casos, a limitação ope-racional que dá origem a escritas de ductus interrompido pode re-sultar em uma simplificação na aparência da letra. Em outros ca-sos a simplificação pode ser ape-nas operacional, resultando em um desenho mais complexo.

Sem conhecimento prévio é pre-ciso olhar atentamente para de-talhes na estrutura das letras buscando informações acerca do procedimento de construção ado-tado. A despeito de variações sutis no desenho, a principal diferença existente entre uma escrita de na-tureza contínua e uma interrom-pida consiste de fato na maneira como as hastes se conectam.

Gerrit Noordzij compara as duas situações (processo interrompido / contínuo) através da mu-dança de espessura neste ponto de conexão (link):

“The returning and the interrupted differ in the linking of their stems. If in returning construction a linking upstroke runs from thick to thin, then the comparable link runs from thin to thick in interrupted construction, and vice versa.” (Noordzij, 2005: 40)

No processo interrompido a conexão entre as duas hastes é abrupta, pois a ligação entre elas não é fruto de um movimento contínuo, mas representa o reinício do traçado após o reposi-cionamento da ferramenta [fig. 55]. Nas construções contínuas, o movimento de retorno torna a conexão mais suave, indicando justamente a continuidade do traçado: a ligação entre as hastes afina-se gradativamente a partir da reta onde ocorre o movimento de retorno, produ-zindo uma estrutura de natureza triangular na base da curva.

Tradicionalmente, as escritas construídas de maneira interrompida recebem a denominação ‘romanas’. Na tipografia essa nomenclatura está associada à escritas de postura exclusivamente ereta – na medida em que muitos modelos cursivos apresentam algum tipo de inclinação.

Uma pequena diferença na conexão das hastes 55.

(link) permite identificar o processo de construção

utilizado na escrita.

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

2.2.3.1. Características visuais associadas a escritas de ductus interrompido

Os modelos de escrita construídos de modo contínuo geralmente apresentam a cursividade como uma característica comum. No entanto, não é tão simples associar ao método interrom-pido de construção um atributo visual exclusivo, capaz de caracterizar toda uma categoria de escritas. Modelos interrompidos geralmente apresentam detalhes percebidos de maneira apenas pontual, ou qualidades subjetivas relacionadas indiretamente ao tipo de operação realizada.

Por necessidade ou propósito, no desenvolvimento das escritas de ductus pausado a parte gestual da construção encontra-se submetida ao método decomposto utilizado. Enquanto o aspecto gestual é muitas vezes bastante explorado nas escritas de ductus contínuo, ele tende a se achar reprimido ou contingenciado nas escritas de construção interrompida – seguindo esquemas previamente planejados na articulação de hastes e curvas.

Por se tratar de um processo decomposto de trabalho, o ductus interrompido permite ao ca-lígrafo maior controle sobre o traçado individual de cada haste, favorecendo (sem constituir uma regra) o desenho de letras mais regulares, eretas e bem articuladas.

Historicamente, as escritas de ductus pausado deram origem a cânones formais executados com precisão e repetidos à exaustão em busca de uma letra perfeita [fig. 56]. Na medida em que a parte gestual da escrita se encontrava submetida a um procedimento estável e prees-tabelecido, o calígrafo passou a experimentar ferramentas e situações que lhe permitissem particularizar sua realização – sem fugir entretanto, dos modelos de construção. Optou por variar angulações de trabalho e a largura das penas, assim como suportes e materiais que permitissem a realização de um conjunto relativamente simples de gestos básicos. Essas experiências deram origem a formas bastante particulares, representadas principalmente através de modelos históricos como alguns tradicionais estilos de escrita gótica e as romanas humanistas (conhecidas como ‘fundamentais’).

BlackLetter e Fundamental: escritas tradicionais 56.

de ductus interrompido.

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

A decomposição do gesto obrigou o calígrafo a planejar a construção das letras, favorecendo ainda uma certa padronização do movimento caligráfico. Por essa ótica, a construção pausa-da pode ser compreendida como um dos primeiros processos de racionalização formal dos caracteres, pensando hastes e bojos como módulos básicos a serem ordenados na constru-ção da escrita.

Analisando modelos tradicionais de escritas de ductus interrompido é possível encontrar ca-racterísticas formais comuns relacionadas ao método de construção. Estas, novamente, não constituem regras ou padrões, mas tendências.

: conexão abrupta entre curvas e retas

Pode ser considerada a principal caracte-rística de escritas de ductus interrompido. A conexão entre as hastes verticais e as curvas que as interceptam ocorre de ma-neira abrupta, indicando o início repentino do movimento – no lugar de uma junção suave de formas construídas continuamen-te. Ao término da vertical a ferramenta é re-movida do papel e reposicionada no início da curva, localizada geralmente no topo da altura-de-x: a articulação entre essas duas estruturas é um ponto de observação importante na identificação do método de construção utilizado na escrita [fig. 57].

: bojo fraturado

No processo interrompido, a ne-cessidade de se construir uma curva sem o movimento ascen-dente de retorno faz com que essa estrutura seja decomposta em mais de um movimento. Em alguns casos, os dois movimen-tos podem não se encontrar perfeitamente, causando uma espécie de fratura na aparência circular do bojo (desencontros na curvatura). Nestes casos, a ausência de continuidade acaba funcionando como uma marca do método de construção utilizado [fig. 58].

Marca característica das escritas de ductus interrompido: 57.

conexão abrupta entre as curvas que interceptam hastes

verticais.

Desencontro em formas circulares (bojos completos e 58.

incompletos).

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

: tendência à regularidade

Por permitir maior controle ao calígrafo, o método interrompido de construção facilita o de-senvolvimento de alfabetos bem articulados, apresentando letras realizadas de maneira firme e segura. A construção dos caracteres é facilitada pelo constante reposicionamento da ferra-menta caligráfica, e também pela decomposição do gesto em movimentos mais simples.

Com o intuito de estabelecer a regularidade como um padrão de acabamento, é comum que sejam traçadas linhas de marcação horizontal para orientar o início e o término dos caracte-res [fig. 59]. Esse procedimento favorece o alinhamento da escrita e é chamado de pautação (ruling up):

“Ruling up paper can be time-consuming at first, but it is worth doing, accurately, and once you have had some practice, it will get quicker. (…) Rule up for a baseline and the top of the x-height (or body height) of the letter. After some practice, allow yourself more freedom by ruling a baseline only.” (Haines, 1994: 47)

: serifas de topo inclinadas

Em uma escrita de ductus inter-rompido, é comum encontrarmos serifas de topo (localizadas na parte superior de uma haste ver-tical) indicando claramente o ân-gulo de inclinação da ferramenta caligráfica [fig. 60].

Em nome de uma execução pre-cisa, o calígrafo tradicionalmente se preocupa em apoiar a ferra-

ao lado: A tarefa de pautar o 59.

suporte facilita a construção

de uma escrita mais alinhada.

abaixo: Serifas de topo 60.

bem marcadas indicam

o início das hastes após

o reposicionamento da

ferramenta.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 76

2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

menta no papel antes de iniciar o traçado da haste – localizando-a precisamente na altura pré-estabelecida. Como a posição de trabalho é em ângulo, o procedimento gera uma marca-ção diagonal bastante forte. Esse posicionamento diagonal tem seu benefício: começando o desenho pela área de menor superfície de contato com a ferramenta (lateral), o gesto encon-tra menos resistência e flui com maior desenvoltura e naturalidade.

“The pen will start more easily on a thin line (this is particularly true of a dip pen, and is not so obvious with a coarser pen), so make a habit of moving into broad straight strokes from a thin lead-in line. A curve must start on a thin line; its position is determined by the pen angle, and circles should be written with two strokes, to avoid pushing the pen.” (Haines, 1994: 44)

Resumindo:

: conexão abrupta entre curvas e retas;

: bojo fraturado;

: tendência à regularidade;

: serifas de topo inclinadas.

2.3. Características visuais associadas à perícia ferramental

Podemos afirmar que, segundo a tradição, a qualidade técnica de um registro caligráfico está associada à capacidade demonstrada pelo calígrafo de executar os movimentos da escrita de maneira precisa – mantendo sempre que possível o estrito controle sobre os diversos aspectos da atividade.

Uma caligrafia bem executada resulta da sinergia entre múltiplos fatores associados ao uni-verso material e operacional da escrita, como:

- a escolha adequada para a combinação de suporte, ferramenta e substância corante;

- a combinação entre a técnica de construção adotada e o modelo de escrita definido pelo calígrafo para a execução do registro;

- o controle gestual sobre a execução do modelo de caligrafia definido (que resulta na criação de um ritmo constante e de um contraste regular na escrita, alinhamento dos caracteres, res-peito ao padrão de construção adotado, bom acabamento);

- e o controle técnico sobre todo o aparato material e instável associado à prática caligráfica (como quantidade de tinta na ferramenta, velocidade adequada a cada tipo de movimento, correto manuseio da ferramenta, etc.).

O controle e a coordenação de todos esses aspectos constituem a parte técnica da operação caligráfica, estabelecendo o conhecimento básico que um calígrafo deve possuir para realizar seu trabalho com qualidade [fig. 61]. Com o pleno domínio da técnica, o calígrafo geralmen-

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

te opta por uma das estratégias para explicitar a qualidade do seu trabalho e destacar suas acuida-des profissionais particulares:

: desenvolver uma escrita formal absolutamente perfeita (acaba-mento técnico);

: ou rebuscar a execução da es-crita através da ornamentação dos caracteres.

As duas estratégias produzem soluções distintas no que diz res-peito ao aspecto visual da escri-ta, fazendo com que a escolha por um dos caminhos deva ser pautada pela adequação aos ob-jetivos do registro. Ambas funcio-nam no sentido de demonstrar o virtuosismo caligráfico.

Para executar com perfeição uma escrita, o praticante da cali-grafia deve procurar seguir todas as recomendações técnicas ob-servadas em manuais e tratados sobre o assunto. Não há mistério: há empenho, trabalho, exercício, prática, treino e repetição exaustiva.

Tradicionalmente, o calígrafo se dedica a aprender a construção de determinados modelos de escrita (a partir de cânones formais estabelecidos historicamente) transformando-os em fer-ramentas com as quais poderá contar para compor seus textos. A partir do momento em que domina a técnica e o modelo de escrita, o calígrafo tem condição de particularizar o registro à sua maneira, exercitando sua habilidade manual em construções mais complexas e elabora-das. Através de floreios e adornos, procura desafiar a instabilidade material do equipamento, buscando manter o mesmo ritmo, equilíbrio e elegância em composições ornamentadas de caráter decorativo.

Quanto maior o desafio maior a destreza requerida para executá-lo com qualidade.

“Nos mosteiros e nas chancelarias, os copistas cultivaram a prazerosa arte da ca-ligrafia a ponto de desenvolverem formas individuais, em que geralmente a letra só podia ser reconhecida de longe como base do desenho. Desse modo as ini-ciais góticas, por exemplo, adquiriram uma ornamentação bastante espessa e que

Perícia ferramental: técnica refinada para a realização de uma boa 61.

escrita (Paillasson, Paris, 1760).

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

preenche toda a superfície da letra. Os tipos cancerelescos do pós-Renascimento também foram ampliados com manipulações bastante impressionantes e hábeis do traçado.” (Frutiger, 1999: 153)

Além de funcionar como um recurso de demonstração do virtuosismo caligráfico, a ornamen-tação da escrita elevou a caligrafia ao status de arte decorativa, fazendo com que os textos passassem a ser admirados não apenas pelo seu conteúdo, mas também pela sua forma – e esta não só no que diz respeito a sua boa construção mas também a seu caráter ornamental.

2.3.1. Acabamento e qualidade técnica

Seguindo os preceitos mais tradicionais da atividade, o calígrafo deve desenvolver seu traba-lho no intuito de reproduzir determinado padrão de escrita com perícia e destreza. Pequenos erros e acidentes devem ser evitados ao máximo, aproximando a execução de um paradigma de perfeição [fig. 62].

Entretanto, em uma escala que oscila entre o detalhe microscópico e o acontecimento facil-mente percebido, é possível afirmar que características como precisão e perfeição não são próprias a processos manuais de registro. As inúmeras condições físicas e materiais a que o escriba está sujeito enquanto trabalha são responsáveis por dificultar a execução precisa de dezenas ou centenas de caracteres no decorrer de um texto. Olhando com atenção, mesmo em um trabalho de enorme qualidade técnica podemos encontrar uma grande quantidade de irregularidades (ainda que mínimas) na reprodução dos modelos de uma determinada letra.

Qualidade de execução (Neff, Cologne, 1549).62.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 79

2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

A perícia do calígrafo pode ser observada tanto no nível do caractere, ou seja, no acabamento cuidadoso, individual e pormenorizado de cada letra, como no contexto da composição – na articulação dos caracteres para a construção de palavras e frases.

Partindo de uma abordagem estritamente técnica, é importante reduzir ao máximo a quanti-dade de ruídos desnecessários à compreensão da forma18. Um ruído pode ser definido como uma interferência visual cuja amplitude e freqüência não apresentam relações compatíveis com o conjunto em que se insere, ou seja, é tudo o que prejudica a noção de conjunto, equi-líbrio e ritmo em uma escrita manual.

O ritmo na caligrafia é um aspecto de suma importância na construção de uma composição bem acabada. Um ritmo constante é fruto da sucessão harmônica de formas e contra-formas, dando origem a uma composição de densidade uniforme e equilibrada [fig. 63]. Essa densida-de é estabelecida através da sucessão de claros e escuros (áreas de preto e branco) formada pela seqüência de hastes e pela distância estabelecida entre essas hastes – lembrando que o estabelecimento de um contraste interno cíclico e a repetição de formas semelhantes e proporcionais ajuda a reforçar essa percepção.

O ritmo na escrita proporciona ao texto uma espécie de densidade global. A densidade da escrita é uma definição relativamente subjetiva estabelecida nos diversos níveis de uma com-posição caligráfica: na espessura individual de cada haste, na largura dos caracteres, na relação de proximidade entre as letras (formação das palavras), na separação das palavras, e na disposição das linhas em textos mais extensos. Para manter esta densidade constante, o calígrafo procura estabelecer padrões regulares em relação a cada item apontado.

18 Isso não impede que o calígrafo articule na escrita estratégias voltadas para tornar a estrutura de reconhecimen-to mais rebuscada e interessante – através da ornamentação, por exemplo. Estabelecendo um padrão constante, o calígrafo consegue destacar de maneira precisa situações onde este é intencionalmente alterado por algum recurso decorativo inusitado ou incomum.

O ritmo constante 63.

produz uma densidade

regular, estabelecendo

uma textura de característica

contínua e equivalente.

(manuscrito do século XII,

provavelmente da abadia

de Rochester).

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 80

2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

Na tipografia, esse controle é facilitado através de um planejamento prévio e minucioso. Boa parte da regularidade da escrita é estabelecida através da métrica tipográfica: onde o desig-ner de tipos pode determinar distâncias padronizadas para caracteres semelhantes. Na escri-ta manual essa padronização não é tão rígida: o calígrafo equilibra a composição através de variações sutis na distribuição dos caracteres19.

Pelo somatório das observações anteriores, podemos concluir que a percepção de um regis-tro manuscrito tecnicamente bem acabado derivaria:

- do tratamento refinado e delicado das hastes dos caracteres, percebido através de um con-torno bem delineado, regular e sem acidentes;

- do preenchimento compacto das hastes, evitando o surgimento de falhas causadas por mo-vimentos mal feitos ou pela ausência de tinta na ferramenta;

- do estabelecimento de uma modulação constante no decorrer da escrita;

- do alinhamento e do equilíbrio proporcional de estruturas alfabéticas correlatas (verticais, barras, serifas, bojos);

- da reprodução relativamente constante de um único modelo de letra para cada caractere, evitando variações extremas que tornem difícil a identificação do texto;

- da criação de letras dimensionadas proporcionalmente;

- da criação ou da reprodução fiel de um modelo caligráfico que constitua um sistema com-patível de sinais visuais;

- do respeito a regras de utilização dos sinais da escrita;

- da ausência de qualquer acidente gráfico que se oponha à calma que requer a atividade da leitura (manchas, borrões, falhas, etc.);

- do correto posicionamento das letras na linha de base da escrita (alinhamento horizontal);

- do estabelecimento de um ritmo consistente na escrita.

Todas essas características encontram-se associadas ao conceito tradicional de acabamento e qualidade técnica na caligrafia, e são percebidas como indicadores da perícia ferramental do calígrafo na execução da escrita.

19 Como esse ajuste é subjetivo e flexível, não convém chamar o espacejamento em textos manuscritos pelo termo tipográfico ‘métrica’ – sem que sejam feitas as devidas ressalvas para essa apropriação terminológica.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 81

2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

2.3.2. A ornamentação da forma caligráfica

A consolidação da tipografia mecânica provocou diversas alterações no universo de realiza-ção da caligrafia, re-contextualizando a atividade (do ponto de vista técnico e profissional) diante de novos desafios, realidades e conjunturas sociais.

O contato entre as duas técnicas acabou fazendo com que a caligrafia passasse a se desen-volver por caminhos mais autorais, sob o risco de se extinguir como atividade profissional. Ao explorar a expressividade e a particularização do registro manuscrito – duas características dificilmente percebidas no ambiente controlado da tipografia – a caligrafia encontrou sobrevi-da e novas funções sociais.

“Se a capacidade de imprimir reuniu livros e jornais, restam setores da escrita reser-vados à pena. A correspondência, os atos públicos (atos de tabeliães) e a literatura serão, ainda durante três séculos, manuscritos. Os instrumentos de ofício público e jurídico exigiam, até bem pouco tempo, a escrita cursiva, única apta, com a as-sinatura, para autenticar contratos, testamentos ou escrituras de compra e venda.” (Jean, 2002: 113)

Do ponto de vista profissional, o calígrafo gradualmente deixou de trabalhar na reprodução de textos (tarefa de copista) para dedicar-se exclusivamente à produção de originais, ocupando importantes cargos relacionados a uma burocracia oficial em ascensão – decorrentes da expansão comercial do período nas principais nações européias. Na esfera pública, o pro-fissional calígrafo era contratado como um funcionário exclusivo pertencente ao alto escalão de instituições, departamentos de estado e aristocracias. Sua tarefa constituía justamente na criação de documentos cujo valor e autenticidade provinham de uma escrita bem realizada e individual [fig. 64].

Um dos principais recursos utilizados para a criação de uma escrita particular e exclusiva consistia na elaboração de modelos de letra rebuscados e ornamentais, valorizando o caráter decorativo do documento que estava sendo produzido. O ornamento tornou a escrita um cam-po fértil para o exercício da forma, acompanhando diversas outras áreas do desenvolvimento cultural humano.

Saudação e assinatura 64.

floreada do calígrafo

holandês Jan van de Velde,

Roterdan, 1605.

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

Funcionando como meio de expressividade autoral e liberdade criativa, podemos destacar a ornamentação da escrita como uma das principais estratégias utilizadas na construção contemporânea do conceito de ‘caligrafia’. A austeridade formal, que também caracteriza a realização de uma boa escrita, parece ter sido deslocada para um plano secundário diante do valor simbólico de uma estrutura decorada e ornamental.

Seja através do acréscimo de extensões e floreios à estrutura funcional da letra ou através de alterações realizadas na própria estrutura, a ornamentação caligráfica tem como objetivo transformar o texto em uma experiência visual mais interessante. Tornar a escrita não apenas uma seqüência lógica de caracteres decodificados através da leitura, mas uma composição visual complexa para ser apreciada também como imagem [fig. 65].

Por trabalhar com ferramentas artesanais, materiais e substâncias de difícil controle, o ca-lígrafo precisa de grande habilidade manual para executar com qualidade e técnica formas mais complexas e elaboradas. Grande parte dos ornamentos desenvolvidos na escrita são ensaiados e repetidos várias vezes, fornecendo assim uma gama ampliada de opções para diversificar a realização de letras e palavras. Essa estratégia de ensaiar o recurso ornamental previne que um movimento mais arrojado acabe dando origem a um adereço mal construído, arruinando assim uma composição inteira.

Em outros casos entretanto, os volteios e floreios sinuosos, as pontas e incrustações, exten-sões, ligaturas e alongamentos são desenvolvidos de maneira casual e improvisada. Nessa circunstância o calígrafo exercita toda sua capacidade técnica na execução de formas e solu-ções individuais, contextuais e inesperadas. Trabalhando com ferramentas sensíveis e extre-mamente capazes de registrar qualquer movimento mal executado, a operação se transforma em um exercício constante de superação.

Virtuosismo e ostentação ornamental: Jan van de Velde, 1605.65.

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

A demonstração do controle exer-cido sobre os aspectos instáveis da caligrafia – como a quantida-de de tinta presente na ferramen-ta, a diluição da tinta, o nível de absorção do papel e a velocidade imposta ao movimento da escrita, por exemplo, acabam funcionan-do como um demonstrativo óbvio de sua técnica. Controlar o erro ou torná-lo parte de uma compo-sição envolve a mesma perícia e capacidade de articulação.

O ornamento na letra (ou mesmo a letra ornamental) revela algo que está além do domínio técnico exigido para a simples realização da caligrafia. A ação decorativa funciona como um modo de os-tentação intencional do controle ferramental exercido pelo calí-grafo [fig. 66].

2.3.3. Integração

Podemos destacar a existência de caracteres construídos de maneira integrada como uma característica própria a muitas formas de escrita manual, principalmente aquelas geradas através de um ductus contínuo – cursivas encadeadas ou semi-encadeadas. Nesses casos específicos, a continuidade do ductus extrapola a estrutura do caractere e alcança o contexto de articulação da palavra [fig. 67].

A união entre os caracteres pode ocorrer através das hastes que compõe a estrutura básica das letras (a estrutura é parcialmente distorcida para se unir ao caractere seguinte) ou através de extensões ornamentais adicionadas à estrutura das letras. De acordo com a natureza do registro e da maneira como a conexão entre os caracteres é realizada, podemos identificar se a junção é fruto de um processo de otimização ou é um recurso de ornamentação da escrita.

Não são muito comuns os casos em que os dois fatores se encontram na origem da integra-ção: o ornamento é por natureza um recurso complementar ao desenho dos caracteres, o que torna paradoxal sua aplicação em um desenho pautado pela economia de tempo. Isso não impede, entretanto, que o ornamento seja realizado de forma acelerada.

Ornamentação experimental: trabalho do calígrafo Claudio Gil.66.

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

A presença de ligações de caráter ornamental indica um desenho tornado intencionalmente mais complexo, onde os caracteres se unem de maneira elegante e arrojada através de alon-gamentos, filetes ou fios adicionais. As ligações ornamentais tem por objetivo extrapolar a estrutura dos caracteres através de hastes que serpenteiam pelo espaço de trabalho, dando origem a um conjunto mais elaborado de soluções visuais utilizadas na escrita. A maioria dos calígrafos tem por hábito exercitar essas combinações, evitando que um movimento mais arriscado na junção de dois caracteres possa prejudicar a boa formação das palavras.

A integração é uma característica comu-mente encontrada em escritas velozes, nas quais o calígrafo procura acelerar o movi-mento otimizando a construção de hastes próximas – em muitos casos interligando-as para que sejam geradas a partir de um gesto simplificado e sem grandes interrup-ções [fig. 68]. Essa estratégia favorece o surgimento de sinais graficamente mais complexos, contendo dois ou mais carac-teres unificados geralmente pela integra-ção de suas estruturas. Nesses casos, as ligações ocorrem por influência do método de construção e não tem função ornamen-tal específica – o que não impede entre-tanto, que dêem origem a belas soluções visuais.

Essas ligações podem ser observadas ao longo de todo o texto, sem que necessaria-mente se apresentem da mesma maneira em cada ocorrência. Em outros casos, por conta da freqüência com que se repetem,

podem apresentar soluções relativamente constantes. Nesses casos, o sinal passa a am-pliar o conjunto alfabético utilizado pelo calígrafo e recebe o nome de ligatura. Quando esta

Integração dos caracteres à partir de ligações ornamentais (Beauchesne and Baildon, London, 1571).67.

Integração de natureza contextual encontrada em escritas 68.

mais casuais: Hermann Zapf, 1969.

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

integração é uma ocorrência individual e aleatória, a união não chega a constituir exatamente uma ligatura – é apenas uma ligação contextual.

A abreviação de palavras constitui outra situação tradicional encontrada em manus-critos associada à integração da escrita. Com o intuito de economizar espaço e tem-po de trabalho, a grande maioria dos ca-lígrafos que trabalhava profissionalmente tinha por hábito abreviar palavras inteiras, nomes próprios, datas e expressões tradi-cionais através de letras ou sinais integra-dos – contendo apenas iniciais e partes de palavras [fig. 69].

O benefício observado pela economia de tempo e material, em muitos casos, era revertido em prejuízo na compreensão do texto. O abuso desse recurso levou auto-ridades estatais a baixarem decretos proi-bindo o uso de abreviações em minutas oficiais e atos jurídicos, para evitar interpretações duvidosas e falsificações (Martins, 2002). As abreviações constituem informações de grande relevância na paleografia.

2.3.4. A imperícia caligráfica

Com o surgimento da tipografia de metal (século XV) e a possibilidade de se desenvolver uma escrita extremamente precisa e planejada, a perfeição deixa de ser apenas um ideal almejado pelo calígrafo para se transformar na realidade prática do meio mecânico de impressão. O ali-nhamento dos caracteres, a tonalidade constante das hastes, o modelo único do desenho de letras, o ajuste padronizado do espacejamento das palavras, passaram a constituir o padrão de acabamento da escrita tipográfica.

Pela contraposição de valores, a caligrafia acabou gradualmente associada a uma imagem mais artesanal da escrita, deixando o rigor técnico a cargo dos tipos de metal. O contato entre as duas técnicas fez com que a caligrafia se desenvolvesse por caminhos mais autorais e ex-pressivos: pela particularização, pela idiossincrasia e pelo ornamento, destacando-se ainda por vestígios que assegurassem a origem humana do registro.

No ambiente digital – onde a precisão da tecnologia de reprodução é ainda mais impres-sionante – a estratégia adotada para a representação de valores humanos é justamente a busca pelo que se opõe à principal característica do meio: a precisão. Quanto mais imprecisa e irregular for a imagem do registro (aparência das letras, composição, etc.), mais ‘humano’ este registro vai parecer.

Abreviações caligráficas: exemplos realizados pelo 69.

calígrafo italiano Giambatista Palatino, Roma, 1544.

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

Se a máquina é programada para não errar, a imperfeição e o erro transformaram-se em importantes marcas de humanidade no ambiente tecnológico. A estética caligráfica contem-porânea (especialmente na era digital) tem se mostrado sensivelmente distinta do padrão estabelecido pela tradição.

Nos dias de hoje, a demonstração de qualidade técnica na execução de um espécime ca-ligráfico é constantemente sobrepujada pela manifestação de qualidades expressivas [fig. 70]. Estas seriam consideradas ‘inconfundivelmente humanas’, ao apresentar características bastante incomuns para um contexto permeado e provido por alta tecnologia.

Essa estratégia tem por objetivo aproximar a escrita manual de uma realidade mais informal – o que acaba refletido nas interpretações digitais da realização caligráfica. Em alguns casos, a caligrafia é apresentada de forma mal acabada, irregular, ornamental em excesso ou reple-ta de imperfeições que atestem sua origem manual – mesmo que esta origem esteja sendo apenas sugerida pelo aparato tecnológico.

Podemos concluir que a imperfeição (forjada ou autêntica) passou a constituir um valor repre-sentativo do universo da caligrafia, ou seja, a imperícia técnica acabou transformando-se em uma característica visual marcante da atividade. Em diversas exposições e mostras contem-porâneas de caligrafia percebemos a predileção por um caminho mais expressivo, valorizan-do inclusive o erro, a mancha, o acaso e o ‘acidente’.

“Às vezes minha mão também escreve palavras involuntárias; é por isso que es-tas páginas estão abarrotadas de emendas e borrões. Quando jovem, eu odiava qualquer imperfeição; no entanto, com o passar dos anos, aprendi a reconhecer nas manchas e palavras sobrescritas uma das várias formas adotadas pela nossa assinatura. Tudo o que me ensinaram na escola de Vidors é falso. O melhor calí-grafo não é aquele que nunca se equivoca, mas aquele que consegue arrancar das manchas algum sentido e um resto de beleza.” (de Santis, 2001: 146)

Experimentação caligráfica 70.

de Claudio Gil.

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

Apesar de antagonizar com o título deste capítulo (características visuais associa-das à perícia ferramental), a imperícia ins-trumental também pode ser considerada uma característica caligráfica típica e con-temporânea associada à qualidade de exe-cução (por oposição).

Vale lembrar ainda que, no atual contexto, é comum ver o calígrafo cometer erros e imperfeições de maneira intencional – jus-tamente para destacar o aspecto instável da atividade. Geralmente realiza esta ope-ração através de interferências no acaba-mento, na estrutura e na disposição dos caracteres [fig. 71].

2.4. Características associadas à caligrafia como ocorrência espaço-temporal: o conceito de variância

A caligrafia é um acontecimento espaço-temporal: o aspecto material e instável da operação caligráfica revela como importante característica a variância de um processo artesanal de registro. Por esse motivo, o resultado é sempre uma escrita de natureza única e particular.

Por mais que o calígrafo se esforce em tornar a escrita uma operação mecânica e repetitiva, as letras naturalmente apresentarão diferenças (mesmo que em nível milimétrico) resultantes de variações na superfície do suporte, na quantidade de tinta presente na ferramenta (ou outra substância corante) e no próprio gesto caligráfico.

A precisão aparente encontrada em alguns espécimes manuscritos traduz com fidelidade a tentativa do calígrafo em superar a condição material e instável da escrita manual, aproximan-do-a de valores como precisão e controle.

Com o surgimento e a consolidação da tipografia como um eficiente método de reprodução, a caligrafia perde terreno como instrumento multiplicador. Entretanto, livre dessa sua função comercial específica, continua se desenvolvendo como uma importante técnica de registro.

A difusão da palavra escrita fez aumentar o número de leitores e de pessoas com capacidade de escrever, fazendo a caligrafia florescer em outros ambientes. Na esfera educacional, a ca-ligrafia passou a se destacar como uma importante ferramenta de ensino, tornando acessível o universo de conhecimento que florescia a passos largos.

“Perante os resultados obtidos pela máquina de Gutenberg, poder-se-ia prever que a modesta escrita manuscrita estivesse destinada ao esquecimento. Muito pelo

Caligrafia expressiva de 71.

Donald Jackson, 1988.

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2. As categorias de compreensão da forma caligráfica

contrário! Graças à imprensa, o mundo da palavra escrita irá, pouco a pouco, se expandindo para um número cada vez maior de pessoas, enquanto a “main a la plume” (a pena na mão) – segundo a expressão de Rimbaud – continuará sendo a indispensável ferramenta do pensamento.” (Jean, 2002: 97)

Nesse momento, passa a se caracterizar preferencialmente por aspectos formais que a dis-tanciavam dos métodos de reprodução: pela individualidade, pela particularidade e por quali-dades ornamentais. Profissionalmente continua sendo empregada em órgãos oficiais e todo tipo de burocracia, onde a exclusividade e a autenticidade do registro constituíam aspectos (quando não exigências) muito valorizadas. Os documentos eram produzidos individualmente ou no máximo reproduzidos em baixa quantidade. Uma escrita particularizada servia como recurso de segurança para evitar falsificações e alterações indevidas.

A essa particularidade desenvol-vida, a esse aspecto único e es-paço-temporal que caracteriza a ocorrência caligráfica – tanto na execução formal como na valo-rização da diferença – podemos nomear como sendo a variância da caligrafia [fig. 72].

Na tipografia esse processo de variância foi praticamente elimi-nado, na medida em que o siste-ma de composição trabalha sobre a noção de padronização: repeti-ção precisa das mesmas formas a partir de uma matriz. Se o as-pecto físico da tipografia de metal ainda era capaz de proporcionar letras impressas com diferenças mínimas (devido ao desgaste fí-sico dos caracteres) na tipografia digital essa variância foi definiti-vamente eliminada.

Consequentemente, a padronização percebida na composição tipográfica acaba funcionando como um índice evidente da técnica de composição utilizada, prejudicando a percepção do significado caligráfico em fontes digitais de simulação. Por oposição, a variedade natural das formas e soluções encontradas na escrita manual (variância) tornou-se um excelente indica-dor de sua natureza particular e individual – atestando e caracterizando a origem caligráfica do registro.

Variância caligráfica: mesmo em escritas bem realizadas é possível 72.

perceber pequenas diferenças na aparência dos caracteres.

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3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

A partir do mapeamento realizado no capítulo 2 da dissertação, serão apresentadas as estra-tégias de articulação visual adotadas na construção de fontes digitais de simulação caligráfi-ca – que constituem basicamente a recriação de características relacionadas ao universo da escrita manual.

É importante lembrar que além da bagagem expressiva particular, uma fonte digital apresenta uma série de características e qualidades associadas à maneira como o dispositivo tecnológi-co funciona: um método de composição segmentado, linear, racional e com grande tendência à padronização. Tanto as características particulares de uma determinado alfabeto como as características gerais do processo tipográfico de composição são aspectos fundamentais e inseparáveis na percepção do significado de uma fonte.

Por esse motivo, torna-se importante analisar uma fonte digital não apenas pelas qualida-des visuais constituídas ao longo do processo de criação, mas também pelas qualidades manifestas através do aspecto operacional da própria tipografia. Diversas características do funcionamento do arquivo digital devem ser observadas com atenção, pois constituem o que podemos chamar de significado intrínseco do meio tipográfico. Esse conjunto de caracterís-ticas processuais trata-se basicamente de vestígios resultantes da técnica de composição utilizada – são traços ou marcas decorrentes da lógica tipográfica de produção. Nas fontes digitais de simulação caligráfica esses índices podem acabar manifestando referências inde-sejáveis ao universo visual da caligrafia, dificultando a construção do significado ‘caligráfico’ em um determinado contexto.

Em relação à natureza referencial da experiência caligráfica a ser constituída, podemos dis-tinguir as fontes digitais de simulação caligráfica em duas categorias:

: fontes digitais de simulação caligráfica construídas a partir de referência concreta.

Categoria em que se encontram as fontes desenvolvidas no intuito de reproduzir fielmente alguma experiência caligráfica realizada de maneira concreta.

: fontes digitais de simulação caligráfica construídas a partir de referência conceitual.

Categoria em que se encontram as fontes desenvolvidas no intuito de articular características associadas a um conceito genérico de caligrafia, sem a preocupação exata de estar recriando determinada referência concreta.

No exercício teórico proposto a separação entre essas duas categorias é relativamente sim-ples, e pode ser entendida a partir da motivação original do designer: reproduzir através da tipografia digital um modelo específico de escrita (concreto) ou basear a simulação em uma idéia geral de caligrafia (conceitual). Na prática entretanto, essa distinção é bastante tênue, e em muitos casos só pode ser percebida se a formulação inicial do projeto (objetivos e diretri-zes) estiver colocada de maneira clara.

O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 89

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 90

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

A distinção em categorias não tem como principal objetivo classificar as fontes digitais de simulação caligráfica, mas auxiliar o desenvolvimento dos projetos dessa natureza tornando claras as especificidades de cada metodologia.

3.1. As fontes digitais de simulação caligráfica de referência concreta

Resumidamente, podemos dizer que as fontes digitais de simulação caligráfica de referência concreta são aquelas cujo desenvolvimento se pauta na recriação digital de determinado mo-delo de escrita, registrado em original manuscrito (ou conjunto de originais) conservado em algum suporte de natureza física concreta.

Nesta dissertação, o termo ‘origi-nal’ não apresenta nenhuma for-ma de julgamento de valor sobre o registro caligráfico em questão. Original refere-se ao documento que serve como base (origem) para o desenvolvimento de uma fonte digital de simulação caligrá-fica – sem levar em consideração se este possui caráter inédito, único ou histórico [fig. 73]. Um original pode ser um documento manuscrito previamente reprodu-zido (uma cópia) ou uma falsifica-ção, contanto que constitua um registro caligráfico primário (pro-duzido a partir de uma ferramen-ta caligráfica).

Este registro pode ser individu-al (um único exemplar) ou uma experiência desenvolvida em di-versos documentos – contanto que estes formem um grupo que compartilhe as mesmas caracte-rísticas formais [fig. 74]. A auten-ticidade nesse caso corresponde apenas à maneira como o origi-nal foi produzido, e não ao valor do documento em si.

A reconstrução do original existente pode ser subdividida em relação aos níveis de compatibi-lidade visual do projeto de simulação com a referência utilizada. Esta pode ser:

Exemplo de original manuscrito: correspondência pessoal 73.

de Sigmund Freud para Alfred Adler, 1905.

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3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

: uma reconstrução literal;

: ou uma reconstrução inspirada.

Os projetos baseados em uma referência concreta de reconstrução literal têm como principal preocupação a reprodução exata de determinado modelo de escrita, buscando simular atra-vés da tipografia digital o registro caligráfico utilizado como referência. A proximidade formal da fonte digital projetada com a referência escolhida deve ser evidente e minuciosa – conside-rando as limitações tecnológicas e as incompatibilidades associadas aos meios de execução da caligrafia e da tipografia.

Já nos projetos de construção inspirada, o projetista não tem como objetivo central reproduzir fielmente determinado registro caligráfico, mas apenas desenvolver uma fonte digital que se aproxime formalmente desse registro. As semelhanças e o grau de parentesco são eviden-tes, embora essa relação não chegue a se transformar em uma regra rígida de construção: alguns aspectos menores podem ser desconsiderados ou adaptados sem que isso prejudique o desenvolvimento do projeto. Ainda assim, é possível identificar claramente a relação exis-tente entre a referência concreta e o modelo desenvolvido. Na medida em que começam a se afastar demasiadamente do registro caligráfico escolhido como referência, as fontes digitais de simulação estariam migrando para o campo do desenvolvimento conceitual.

Assim como foi observado em relação à distinção referência concreta / conceitual, vale res-saltar que a proposta de classificação para as categorias recriação literal / inspirada também não é estanque: na prática funcionam mais como conceitos-regiões que se interpenetram. Conseqüentemente, o parâmetro de avaliação de determinado projeto vai depender sempre da intenção do designer.

Conjunto de originais manuscritos: missiva de Pêro Vaz de Caminha ao Rei de Portugal Dom Manuel, 1500.74.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 92

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

3.1.1. Etapas de construção das fontes digitais de simulação caligráfica de referência concreta

Podemos identificar três fases distintas no desenvolvimento de fontes digitais de simulação caligráfica de referência concreta. Seriam elas:

a. uma fase inicial de análise do original ou do conjunto de originais;

b. uma fase de preparação, relacionada à digitalização do original;

c. e uma fase relacionada à construção efetiva do arquivo digital – onde o original é utilizado como modelo para a criação das letras na forma de vetores matemáticos (vetorização).

Todas essas fases estão presentes em projetos de reconstrução literal e geralmente também são encontradas em projetos de construção inspirada. Entretanto, no caso de projetos ape-nas inspirados em registros caligráficos, o original pode não chegar a ser digitalizado: nessa circunstância o designer trabalharia diretamente no computador modelando o vetor de cons-trução sem a utilização de um apoio digital. Apesar de possível, isto é pouco usual, devido aos inúmeros benefícios que a presença de um modelo digitalizado oferece. O procedimento não é ignorado, mas é pouco relevante para esta dissertação.

A perspectiva de se trabalhar sobre um nível de semelhança ou outro deve ser levada em conta em cada etapa, pelos seguintes motivos:

: se o original possui partes destruídas, está em estado ruim de conservação ou caso não apresente o conjunto completo de caracteres base de um sistema tipográfico, a tarefa de se realizar um projeto de na-tureza literal será enormemente dificultada [fig. 75]. Reproduzir uma letra que não foi sequer produzida ou que se encontra par-cialmente destruída no original é uma tare-fa bastante complexa. Com experiência e prática caligráfica a forma de determinado caractere pode ser deduzida em função do resto do conjunto, mas esta suposição será sempre uma construção hipotética.

: o cuidado relacionado ao processo de digitalização do original (que será aprofun-dado mais à frente) deve levar em conside-ração a natureza do projeto a ser desen-volvido. Se a imagem digital produzida não Original em estado ruim de conservação: fragmento 75.

incompleto do único exemplo de Cursiva Literária Romana,

que combina elementos de capitais rústicas, unciais e

cursivas romanas antigas, século II a.C.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 93

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

apresenta qualidade e alto nível de detalhamento, a forma tipográfica será uma interpretação limitada do registro original, impedindo que o resultado final seja uma simulação literal ou precisa da referência escolhida.

: o grau de semelhança da forma vetorial com o registro caligráfico encontrado no original escolhido como base é o que define se o projeto constitui uma reconstrução literal ou inspi-rada. Apesar da intenção e da importância das fases de análise e preparação, é na fase de construção que o projeto efetivamente se realiza.

3.1.2. Fase inicial: a análise do original

Na etapa inicial do trabalho – antes de se partir para alguma fase de construção – devem ser tomadas algumas decisões de caráter fundamental na criação de uma fonte digital de simu-lação caligráfica.

Nos casos em que o projeto tem como referência um conjunto de originais manuscritos, com-pete ao designer analisar o material em toda sua extensão para que selecione um único ori-ginal ou um subconjunto de originais capazes de oferecer uma expressão caligráfica concisa e capaz de ser percebida como um estilo particular de escrita. Este subconjunto deve apre-sentar características formais pautadas por algum critério observado claramente manifesto nos exemplos selecionados, com o intuito de permitir que o registro possa ser transformado em uma fonte digital.

A observação atenciosa de determinado registro possibilita a identificação de alguma par-ticularidade relacionada ao estilo da escrita ou ao modelo de letra, que dificultaria sua utili-zação como referência em um projeto de simulação. A experiência no desenvolvimento de projetos dessa natureza permite ao designer antecipar possíveis problemas de construção. Se o original de trabalho não apresenta um conjunto consistente de sinais semelhantes e pro-porcionais, por exemplo, é bem provável que não seja possível constituir um bom espécime tipográfico a partir da referência escolhida.

A definição dos critérios de seleção é importante, mas não precisa ser necessariamente enca-rada como uma regra rigorosa: é uma estratégia útil no sentido de tornar a experiência mais coesa na construção de um caráter único ao conjunto tipográfico proposto [fig. 76]. O esta-belecimento de critérios claros permitiria ainda que, a partir de um único original manuscrito, fossem construídas duas ou mais experiências de simulação caligráfica distintas.

Por outro lado, é importante tomar alguns cuidados para evitar que esse processo de seleção resulte no empobrecimento da experiência tipográfica, tornando-a visualmente monótona e desinteressante1.

Os recursos tecnológicos oferecidos pelo formato OpenType permitem, por exemplo, que uma grande quantidade de caracteres alternativos possa ser armazenada no arquivo tipográ-

1 O que pode acontecer ao se restringir a ocorrência caligráfica a apenas um modelo de letra.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 94

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

fico simulando com mais propriedade uma ocorrência caligráfica. Esse tipo de procedimento geralmente é indicado para os casos onde as variações apresentam entre si um considerável grau de parentesco formal, acrescentando vida e variedade ao conjunto sem descaracteri-zar o aspecto particular da escrita. Ainda assim, pode ser interessante estabelecer alguns critérios para organizar os glifos2 em grupos constituídos a partir de características comuns, hierarquizando-os na estrutura do arquivo.

3.1.3. Fase de preparação da referência: digitalização

Na fase de preparação encontram-se algumas decisões importantes relacionadas ao tra-tamento dado ao original caligráfico antes que este possa ser utilizado (na prática) para a criação de um arquivo tipográfico.

Esse registro original é digitalizado por algum equipamento de captura visual (geralmente um scanner ou máquina fotográfica digital) responsável por interpretar, codificar e armazenar o registro como uma imagem no formato bitmap – constituída por uma malha de pixels. O valor particular de luminosidade e cor de cada pixel é armazenado em um mapa de informações e transferido para o dispositivo de memória do equipamento de captura (no caso de uma

2 Um glifo é uma versão da letra. A letra é um conceito que pode ser materializado de diversas maneiras.

Análise do original: escolha de glifos e variantes à partir de exercícios caligráficos. As letras cortadas são 76.

organizadas em uma prancha para visualização do conjunto – Zapf Renaissance Italic, de Hermann Zapf.

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3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

máquina fotográfica digital) ou de algum equipamento ligado a este dispositivo (no caso do scanner). Essa informação bitmap vai ser utilizada pela máquina para recriar a imagem em algum recurso de visualização – como um monitor, ou de saída – como uma impressora.

A partir de sua digitalização, o arquivo bitmap produzido e armazenado no computador não constitui mais um registro primário – mas um registro caligráfico derivado. A transferência do original para o meio digital serve para apoiar o processo de construção vetorial, tanto no posi-cionamento dos pontos de inflexão como no manuseio das curvas de beziér – matéria-prima da forma tipográfica no ambiente digital.

O registro caligráfico digitalizado não é menos importante que o registro caligráfico primário, mas é um registro derivado – produto de um processo de interpreta-ção. Todo processo de digitali-zação apresenta perdas, tanto na esfera bidimensional como na tridimensional. As características tridimensionais do impresso não são coletadas com precisão: re-levo e brilho são ‘achatados’ em uma estrutura de representação bidimensional. Esse achatamen-to pode representar uma perda de informação significativa ou ir-relevante: isso vai variar de acor-do com o conjunto utilizado no registro caligráfico – o tipo de suporte, a ferramenta e a substância corante [fig. 77].

As perdas podem ser minimizadas caso o equipamento realize o processo de captura com grande profundidade, restringindo o prejuízo a uma informação pouco relevante. Entretanto, quanto maior o grau de derivação, maiores tendem a ser as perdas acumuladas ao longo dos processos a que o registro foi submetido. A impressão de um registro caligráfico digitalizado, por exemplo, constitui uma segunda derivação, pois acumula perdas (interpretações) em dois processos consecutivos: a digitalização do registro caligráfico primário e a impressão do re-gistro caligráfico digitalizado.

Dependendo da qualidade e da proximidade formal deste impresso com o registro original, a impressão ainda pode oferecer um satisfatório ponto de partida para um projeto de simulação caligráfica. Entretanto, considerando que essa impressão provavelmente vai passar por um novo processo de digitalização (para dar apoio à construção vetorial), sua utilização como referência caligráfica começa a apresentar um nível de derivação muito alto, acumulando perdas cada vez mais significativas.

Informações tonais são eliminadas durante a criação 77.

dos vetores de um arquivo tipográfico digital.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 96

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

A distinção entre um registro primário e um registro derivado é importante, e deve ser levada em consideração ainda na origem do projeto – podendo inclusive determinar os rumos do trabalho. Em virtude do distanciamento que apresentam em relação ao original caligráfico, registros derivados são mais indicados para projetos de inspiração caligráfica, do que aqueles que se baseiam em reprodução literal [fig. 78].

O equipamento utilizado para digitalização permite que a imagem seja capturada e codificada em diferentes níveis de qualidade. Qualidade neste caso pode ser entendida como a quan-tidade de informação coletada sobre determinada imagem, e a medida utilizada para aferi-la baseia-se na razão de pontos coloridos (pixels) por polegada quadrada. Essa medida é tec-nicamente conhecida como ‘resolução’ e indicada pela unidade DPI (dot per inches): quanto maior a resolução, mais informação armazena o arquivo digital.

Um bom equipamento de captura permite que o computador armazene informações sobre determinado registro visual em um escala de proximidade muito elevada (e com considerável acuidade cromática), oferecendo ao designer a possibilidade de trabalhar com uma referência digital bastante fiel ao original analógico. No caso de um registro caligráfico essa ‘profundida-de’ é muito importante: permite conservar informações relevantes presentes muitas vezes em detalhes milimétricos da estrutura dos caracteres.

A escolha do equipamento a ser utilizado no processo de digitaliza-ção, bem como a familiaridade do designer com seu funcionamento é importante, podendo influenciar de maneira radical o resultado fi-nal do projeto de simulação – po-sitiva ou negativamente. Os equi-pamentos de digitalização pos-

Processo de derivação do original: a perda de informação deve ser considerada durante a fase de digitalização, na 78.

medida em que este aspecto interfere diretamente nas fases seguintes de construção.

A qualidade de digitalização do original influencia o aspecto final da fonte.79.

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3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

suem capacidades e limitações que devem ser consideradas na fase de seleção do original e posteriormente no momento em que estes originais são preparados para servir de apoio à fase de construção [fig. 79].

A imagem digital do registro caligráfico servirá como base para a criação dos vetores mate-máticos utilizados pelo arquivo tipográfico na construção dos caracteres. A criação desses modelos vetoriais chama-se vetorização.

3.1.4. Fase de construção e acabamento: processo de vetorização

As duas fases de desenvolvimento analisadas até aqui – a escolha do original caligráfico e sua posterior digitalização – são essenciais aos projetos de simulação caligráfica baseados em referências manuscritas concretas. A importância dessas duas fases é definida principal-mente pela maneira como essa referência será utilizada: como base de apoio para fontes digitais inspiradas em registros caligráficos, ou como modelos para recriação literal.

A fase de vetorização (construção vetorial) é um estágio fundamental do processo de cons-trução em todos os projetos de tipografia digital – fazendo com que as observações presen-tes nesse capítulo possam ser utilizadas também em relação ao processo de construção de fontes digitais de referência conceitual. É nessa fase em que são efetivamente construídos os contornos armazenados na memória do computador, utilizados cada vez que determinado caractere é acionado na composição de um texto.

Em relação às fontes digitais de simulação caligráfica baseadas em uma referência concre-ta, o processo de vetorização constitui uma nova fase de derivação do original manuscrito. Como já foi previamente observado, todo processo de derivação resulta em reinterpretações e perdas, merecendo por este motivo a atenção redobrada do designer de tipos. Esta nova fase de derivação exige máximo cuidado em toda sua extensão, com o intuito de limitar o prejuízo a informações pouco relevantes na reconstrução do modelo de escrita utilizado como referência.

Quando as formas tradicionalmente fluidas e irregulares de um espécime caligráfico são inter-pretadas pelo equipamento de captura, a transformação de áreas de cor e luminosidade em uma matriz regular de pontos naturalmente torna o contorno dos caracteres uma construção geométrica de aspecto serrilhado. Como os originais utilizados como referência geralmente são digitalizados com muita qualidade (alta resolução) esse aspecto serrilhado só pode ser observado em escala milimétrica. Entretanto, é sobre essa escala de precisão (e profundi-dade) que o equipamento, não os olhos humanos, costuma trabalhar. Conseqüentemente, entender o funcionamento do software que realiza essa tarefa é de fundamental importância nos casos em que o processo de vetorização é automatizado.

Entretanto, no desenvolvimento de uma fonte digital nem toda informação presente em um original necessariamente deve ser conservada. O excesso de detalhes pode tornar-se dis-pensável e até mesmo prejudicial ao desenvolvimento de uma boa fonte de simulação caligrá-fica – caso esse aspecto mostre-se incompatível com as limitações tecnológicas do ambiente digital.

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3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

Esses parâmetros (limitações) não são estáveis ou universais: tendem a variar de acordo com os objetivos do projeto (grau de semelhança e paridade com a referência utilizada) e com a natureza do desenho tomado por base. Em cada projeto isso precisa ser avaliado isoladamente, uma vez que originais manuscritos apresentam na maioria dos casos soluções formais bastante particulares [fig. 80].

Cores e variações tonais encontradas em uma experiência caligráfica, por exemplo, consti-tuem informações incompatíveis com o processo de construção vetorial. Nesta etapa a cor é simplesmente convertida em área de preenchimento, independente de seu matiz, saturação ou brilho. Gradações tonais são devidamente ‘achatadas’: ou são convertidas em áreas de preenchimento ou são devidamente ignoradas. É no processo de vetorização que o designer define qual o limite tonal (em termos de claro ou escuro) que deve ser aproveitado e trans-formado em vetor [fig. 81]. Essa decisão entretanto, deve ser contemplada ainda durante a digitalização do original.

Avaliar tecnicamente que informação visual deve ser conservada e o que é dispensável re-quer muita experiência na prática do design tipográfico. Entender tanto a lógica quanto o fun-cionamento de um arquivo tipográfico permite antecipar problemas relacionados à recriação

A construção do caractere 80.

digital: exemplo do processo

de reinterpretação vetorial

de um desenho de origem

caligráfica – fonte Cataneo

Swash Light, da Bitstream.

Dos esboços de Jacqueline

Sakwa até a versão final da

fonte digital, diversas etapas

modificam o desenho original.

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3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

de experiências caligráficas no ambiente digital. Sobre esta questão debruçou-se o designer Eduardo Berliner em sua tese de pós-graduação ‘Problems relating to translation of a drawn letterform to a digital typeface’ desenvolvida na Universidade de Reading, em 2003.

É interessante ressaltar que em alguns casos, o designer responsável pela criação da fonte digital é também o profissional que realiza o registro caligráfico que servirá de base para o projeto de simulação. Nessa circunstância é normal que sua experiência no desenvolvimento de fontes digitais acabe influenciando diversos aspectos da criação de um modelo de escrita

Durante o processo de vetorização o designer de tipos deve avaliar que informações devem ser conservadas 81.

ou descartadas.

Planejamento prévio: ainda na etapa de criação o calígrafo pode prever questões próprias ao universo 82.

tipográfico, antecipando possíveis ajustes e correções. Acima: desenhos de Hermann Zapf para a fonte

Zapfino Script, prevendo alinhamento, proporção, métrica e encaixe.

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3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

apto para ser transformado em tipografia. Soluções formais comedidas são naturalmente mais apropriadas ao contexto tipográfico, fazendo com que esse feedback possa acabar do-sando algumas características mais expressivas da caligrafia [fig. 82]. O pleno conhecimento do aparato tecnológico digital e suas possibilidades tem permitido que designers de tipos realizem esse ‘intercâmbio’ com cada vez mais liberdade.

Acertar a mão é uma expressão que vale para dois meios de realização (literalmente). Observações atenciosas ainda no início do projeto podem antecipar possíveis problemas em etapas futuras, evitando retrabalho ou a perda de consistência no conjunto.

3.1.5. Conservação da essência caligráfica na estrutura de uma tipografia digital: a importância do ductus em fontes de simulação caligráfica

Durante o minucioso e extenso processo de vetorização, compreender o movimento realizado pelo calígrafo torna-se fundamental. Isso evita que ajustes no contorno das letras deformem o gesto de construção original, reproduzindo precisamente a maneira como as formas foram construídas: movimento, ritmo e orientação.

Uma curva mal formada ou um afinamento repentino podem acabar indicando variações no curso de construção de uma letra, deformando o desenho original [fig. 83]. Em situações me-nos drásticas, a deformação pode não modificar a essência do movimento de construção da haste, mas tornar a forma ruidosa e mal acabada – prejudicando a percepção de suavidade e continuidade presentes em muitos exemplos de caligrafia.

Podemos considerar o gesto como sendo a principal característica da construção caligráfica. As ferramentas utilizadas servem basicamente para registrar esse gesto, realizado sobre al-guma superfície preparada para conservá-lo. Conseqüentemente, o movimento presente na origem de toda forma manuscrita pode ser identificado na estrutura dos caracteres. Conservar ou sugerir essa essência (movimento) é um dos principais objetivos em uma fonte digital de simulação caligráfica, garantindo a criação de um modelo alfabético visualmente compatível com uma experiência manuscrita.

Nas fontes digitais de simulação caligráfica baseadas em uma re-ferência concreta, torna-se inte-ressante identificar o movimento realizado durante a escrita com o objetivo de tomá-lo por gabarito na correção de perdas e altera-ções ocorridas durante os proces-sos de derivação. Os caracteres podem ser mapeados de modo esquemático permitindo ao desig-ner ajustar curvas e conexões no ambiente digital evitando a des-caracterização do movimento.

Logotipo ‘Rachel Comey’: durante o processo de manipulação vetorial 83.

o designer altera a espessura da curva e interfere na modulação do

lettering caligráfico, prejudicando a percepção de um movimento factível

na origem do sinal proposto.

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3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

Em toda fonte digital de simulação caligráfica, a sugestão de um ductus estruturando e dando forma aos caracteres de um alfabeto constitui a formulação responsável pela consistência e factibilidade do projeto. Essa sugestão está diretamente relacionada à etapa de vetorização dos originais manuscritos, e sua identificação permite que o designer de tipos entenda a lógica de construção da escrita em questão – o que também facilita a criação de caracteres não realizados em um original. Essa reconstrução é fundamental principalmente em projetos apresentando extensos mapas de caracteres, ou nos casos em que a referência utilizada é antiga e apresenta variações arcaicas de caracteres do alfabeto.

É importante ressaltar entretanto, que o ductus não constitui exatamente uma estrutura con-creta da letra manuscrita: trata-se de uma informação esquemática relacionada ao movi-mento de construção da letra. O ductus de uma escrita se faz presente através de diversas características tipográficas visualmente relacionadas ao gesto de construção da caligrafia – como na relação de contraste existente nas hastes dos caracteres, no contorno das letras, nas terminações, serifas, etc. De maneira isolada, o ductus só pode ser compreendido como uma referência esquemática de construção, identificável a partir do conhecimento de uma ferramenta específica ou de determinado padrão de escrita3.

A compreensão do ductus de uma escrita ocorre amparada pela análise detalhada das marcas deixadas pela ferramenta utilizada na prática caligráfica. A forma final de uma letra não deriva apenas do movimento da mão do calígrafo – mas de um complexo de variáveis relaciona-das ao aspecto material da realização caligráfica (suporte, substância corante e ferramenta). Essas informações combinadas naturalmente proporcionam condições bastante particulares, ocasionando formas significativamente diferentes a cada realização de um mesmo caractere [fig. 84]. Ou seja, um mesmo movimento pode resultar em formas consideravelmente distintas apesar de apresentarem um gesto semelhante na origem da construção.

Em escritas que privilegiem a qualidade formal dos caracteres, um dos objetivos do calígrafo é reduzir ao máximo essas varia-ções, desenvolvendo uma escrita extremamente regular e uniforme. Para se atingir esse elevado ní-vel de regularidade é preciso não

3 Na caligrafia clássica, cada estilo específico de escrita apresenta uma forma correta para a construção dos caracteres – um cânone formal. Isso não impede que na prática esse modelo possa apresentar variações signi-ficativas, influenciadas pela maneira particular com que cada calígrafo realiza seu trabalho, suas ferramentas e outras interferências externas. O cânone formal tem sobretudo caráter instrutivo.

Exercícios executados pelo designer 84.

e pesquisador Eduardo Berliner no intuito

de compreender a natureza do gesto a ser

reproduzido no suporte tipográfico digital.

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3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

apenas dominar o aspecto ferramental da caligrafia, mas treinar à exaustão a maneira como os caracteres são desenhados – com o objetivo de automatizar ao máximo o movimento re-alizado na construção das letras.

Mais à frente serão apresentadas algumas estratégias de construção visual para a sugestão do ductus em uma escrita: essa análise está incluída na parte da dissertação que aborda as fontes digitais de simulação caligráfica de construção conceitual. Como esta categoria de pro-jetos depende exclusivamente desse tipo de articulação para seu desenvolvimento, mostrou-se mais interessante localizar a informação nesse ponto da dissertação.

3.1.6. Construção da métrica em uma fonte digital de simulação caligráfica

Em uma fonte digital de simulação caligráfica o ajuste de métrica do arquivo tipográfico cons-titui um dos pontos mais críticos do trabalho.

Uma das principais diferenças entre um método tipográfico de composição e um processo de registro manual diz respeito ao espacejamento da escrita – tanto interno (entre os caracteres), quanto externo (entre as palavras e entrelinha). Enquanto essa relação é necessariamente regularizada pelos processos de criação e composição de tipos, em uma escrita manual o equilíbrio visual no espaço interno da escrita baseia-se em um arranjo muito mais flexível.

Na caligrafia a criação de um ritmo constante para a escrita não depende apenas da constru-ção de hastes e letras, mas também do espacejamento existente entre os caracteres. Esse ajuste é repleto de variações e compensações sutis, cujo objetivo é restabelecer a todo mo-mento o equilíbrio tonal da mancha de texto [fig. 85].

Em uma tipografia, o fato dos caracteres serem precisamente repetidos ao longo da escrita permite que o espacejamento interno seja definido de antemão, estabelecendo relações es-paciais estáveis e padronizadas. Vale lembrar ainda que, quanto mais regular for o desenho

Variações naturais no espacejamento da escrita compensam pequenas diferenças na 85.

estrutura dos caracteres, restabelecendo o equilíbrio da composição.

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3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

dos caracteres em um alfabeto tipográfico, menos essa padronização é compreendida como um problema. Mas na medida em que o desenho dos caracteres torna-se mais elaborado e irregular, o estabelecimento de relações padronizadas tende a ser mais difícil.

A definição do espacejamento em uma fonte digital é chamada de métrica tipográfica e cons-titui o conjunto de informações relacionadas à distância entre os caracteres, a definição do espaço de separação entre as palavras e alguns ajustes adicionais (pares de kerning)4.

Diversas vezes porém, podemos encontrar em um espécime caligráfico o exercício de uma escrita bastante regular – apoiada em relações espaciais estáveis e uniformes. Apesar de não possuir efetivamente uma métrica, é possível identificar na escrita uma relação espacial se-melhante, ou seja, conceitualmente compatível com o princípio de métrica tipográfica. Nesses casos, adaptar o modelo de escrita à lógica de construção tipográfica não é uma tarefa tão difícil de ser realizada (por esse aspecto). Cabe ao designer de tipos analisar o registro cali-gráfico identificando as situações limites na relação espacial dos caracteres, estabelecendo situações intermediárias capazes de reproduzir globalmente a regularidade desse modelo de escrita.

Em contrapartida, nos casos onde o modelo caligráfico apresenta uma relação espacial va-riada e irregular, essa informação tende a ser simplificada na definição de um comportamento único para cada caractere [fig. 86]. Ainda que o designer opte por estabelecer distâncias la-terais desiguais, a métrica tipográfica dificilmente reproduz com fidelidade as características da escrita simulada5.

4 Em um arquivo tipográfico essa informação se estabelece através de unidades de espaço localizadas na lateral dos caracteres. Quando um caractere se encontra com outro, suas distâncias laterais se somam e a separação entre eles é estabelecida.

5 Apesar de apresentar um comportamento aparentemente aleatório, em muitos casos as combinações acabarão se repetindo, reforçando através de ‘acidentes’ visuais a incompatibilidade entre o modelo caligráfico escolhido e a tipografia digital. Acidentes graves podem, inclusive, causar problemas mais sérios em relação à integridade do arquivo.

A irregularidade no espacejamento de um original caligráfico nem sempre é conservada em um arquivo digital. 86.

à esquerda: manuscritos de Jimi Hendrix, 1967; à direita: a fonte digital Axis Bold.

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3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

Desse modo, podemos concluir que a escolha do original caligráfico a ser reproduzido (de-pendendo do nível de fidelidade pretendido) deve levar em consideração não apenas o dese-nho dos caracteres mas também a relação espacial existente entre eles. Relação que, com certa liberdade, poderíamos chamar de ‘métrica caligráfica’.

Existem ainda outras dificuldades que podem ser apontadas em relação ao desenvolvimento da métrica em fontes digitais de simulação caligráfica, como:

: a escrita reproduzida apresenta alguma forma de inclinação diagonal (bastante comum prin-cipalmente em escritas cursivas).

Enquanto hastes verticais relacionam-se por uma aproximação lateral geralmente bem defi-nida, hastes diagonais tendem a projetar suas extremidades horizontalmente avançando na direção da letra seguinte [fig. 87]. Isso faz com que o encaixe entre os caracteres torne-se naturalmente mais acidentado e irregular.

Em alfabetos sem inclinação o ajuste de situações irregulares tradicionalmente acontece em apenas alguns pares de letras – chamados pares de kerning – onde projeções coincidentes ou incompatíveis exigem um acerto mais cuidadoso. Por comparação, o ajuste global de mé-trica em um alfabeto ‘inclinado’ acaba sendo muito mais trabalhoso. Essa dificuldade é bas-tante comum no desenvolvimento de fontes itálicas – tanto em desenhos cursivos legítimos como em versões apenas inclinadas das romanas.

Os softwares de desenvolvimento tipográfico oferecem alguns recursos para a automatização das definições métricas de uma fonte digital. Esses ajustes são desenvolvidos a partir do es-tabelecimento de um padrão em unidades de espaço definidas globalmente pelo designer de tipos ou sugeridas pelo próprio software. Dificilmente, entretanto, essa operação automática (e global) é capaz de resolver definitivamente e bem o espacejamento da fonte – principal-mente em um alfabeto que apresente hastes inclinadas. Na prática, o programa oferece ape-nas um bom ponto de partida.

: a escrita reproduzida apresenta letras encadeadas (ver capítulo 2.2.2.1).

Reproduzir tipograficamente a conexão dos caracteres em uma escrita encadeada exige um ajuste de métrica preciso – além de soluções estruturais que previnam possíveis particulari-dades. Se o objetivo do projeto é recriar com fidelidade um original caligráfico encadeado, o

A projeção de hastes inclinadas dificulta o ajuste de métrica em uma fonte digital. fonte: Adobe Jenson Pro.87.

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3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

encaixe precisa ser planejado não só de acordo com as combinações encontradas no registro mas também com as possibilidades criadas a partir de novas combinações (não necessaria-mente realizadas no original).

Em muitos casos, para diminuir a chance de colisões ou desencaixes entre as estruturas de conexão (geralmente extensões ou serifas de transição) o designer padroniza graficamente esse encaixe: uma estratégia que tende a resolver tecnicamente o problema, mas que em contrapartida diminui as nuances visuais de uma escrita [fig. 88]. De acordo com a impor-tância que a estrutura de conexão tem em relação ao caractere, essa padronização pode se tornar mais aparente ou mesmo irrelevante.

A questão consiste portanto, em avaliar que prejuízo é maior para o projeto. Se o desencaixe cons-titui uma deficiência óbvia na alu-são a um alfabeto de construção contínua, reduzir o encaixe a um comportamento padrão também pode prejudicar a simulação.

Um fator técnico relacionado ao funcionamento do projeto de si-mulação que também deve ser levado em consideração diz res-peito à sobreposição de estrutu-ras tipográficas nas regiões de encaixe – produzindo uma região de interseção vetorial entre uma estrutura de conexão e uma has-te, por exemplo6. Quando uma composição de texto é conver-tida em curva (vetores simples sem recursos de edição tipográ-fica) essa interseção pode resul-tar na aparição de áreas vazias no interior dos caracteres (sem preenchimento) [fig. 89]. Apesar do arquivo tipográfico não apre-sentar esse tipo de imperfeição, o designer de tipos deve levar em consideração essa possibilidade.

No lugar de integrar os caracteres, esse pequeno defeito acaba funcionando no sentido opos-to – indicando um encaixe artificial e prejudicial à fluência da escrita.

6 Opção indicada para evitar a necessidade de posicioná-la precisamente em um ponto e/ou distância pré-definida.

conector

receptor

altura padronizada

[ cac ] Bickham Script Pro: Adobe, 2004.

A padronização dos elementos de conexão facilita a integração entre os 88.

caracteres.

[ cac ] Bickham Script Pro: Adobe, 2004.

vetores combinados

Sobreposição de estruturas de conexão: interseção de vetores 89.

transforma elementos de integração em fissuras na palavra.

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3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

Um ajuste de métrica bem realizado pode reduzir esse problema ou mesmo eliminá-lo, mas sem dúvida não é tarefa simples de resolver. Nos projetos de simulação caligráfica construí-dos a partir de um original manuscrito, reproduzir o espacejamento realizado na escrita é ta-refa bastante importante, na medida em que a relação entre os caracteres é uma informação que auxilia a caracterização de uma experiência caligráfica. Já nos projetos de construção conceitual o designer goza de maior liberdade nesse sentido: tanto para propor formas pa-dronizadas de conexão, quanto para projetar letras cuja relação facilite o desenvolvimento de uma métrica mais simples de ser desenvolvida.

Durante o uso de uma fonte digital de simulação caligráfica, o usuário final do arquivo tem a possibilidade de alterar as definições de métrica estabelecidas minuciosamente pelo projetis-ta da fonte – o que pode causar a deformação da escrita através do desencaixe das letras e da má formação das palavras. Em uma aplicação a responsabilidade pela aparência final da escrita não depende apenas do desenho ou do bom funcionamento da fonte digital, mas da maneira como esta é utilizada pelo usuário. Ao designer de tipos cabe a tarefa de oferecer um produto final ajustado e em perfeito funcionamento – o que não é pouco, mas ainda assim não garante a qualidade da simulação.

3.1.7. Fechamento do arquivo tipográfico

Tendo reproduzido vetorialmente o desenho dos caracteres encontrados no original caligráfi-co, concluída a tarefa de desenvolver aqueles que porventura não se encontrem no manus-crito, e estabelecida uma condição de paridade visual entre a métrica do arquivo digital e a aparência da escrita (ritmo, balanço e textura visual), o designer de tipos parte então para uma etapa de encerramento do projeto – a criação do arquivo digital.

Com os recursos tecnológicos disponibilizados pelo formato OpenType, torna-se possível incrementar a experiência de simulação caligráfica a partir de funções voltadas para a criação de uma composição tipográfica mais complexa. Essas funções permitem que glifos adicio-nais de determinados caracteres sejam armazenados no arquivo (contendo variações en-contradas no próprio registro caligráfico) acomodando esses caracteres alternativos em uma localização pré-estabelecida. Permite ainda que esses glifos adicionais sejam acionados de maneira automática através de substituições contextuais previamente programadas, reprodu-zindo situações particulares do manuscrito tomado por referência [fig. 90].

Incorporar esses recursos a um arquivo tipográfico requer conhecimento básico de progra-mação em OpenType. Através de linhas de comando o designer determinada uma situação de substituição a ser gerenciada pelo arquivo tipográfico, e esta ação passa a funcionar de maneira automática durante a digitação do texto.

Analisar e mapear situações peculiares em um original caligráfico permite o desenvolvimento de características relacionadas à execução do manuscrito no contexto de uma fonte digital de simulação.

Um recurso que poderia aprimorar o desenvolvimento de um projeto de simulação consiste na implementação de uma substituição aleatória em relação à definições métricas da fonte. Esta

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 107

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

estratégia, obviamente, funcionaria apenas na simulação de modelos de caligrafia que apre-sentem uma composição irregular – com variações significativas no encaixe e na localização dos caracteres. Dessa maneira as combinações possíveis constituiriam o somatório de glifos alternativos e seus distintos arranjos de métrica.

Outro aspecto relevante relacionado a essa etapa final de trabalho diz respeito a escolha de um nome para a tipografia recém-criada. Nas fontes digitais construídas com o intuito de

Incremento tecnológico: linhas de comando programadas para a execução de tarefas de substituição automática.90.

Informações sobre a referência utilizada na construção das fontes digitais constituem importantes argumentos de venda. 91.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 108

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

reproduzir modelos caligráficos históricos, a utilização de uma nomenclatura precisa é parte importante do projeto. O nome da fonte funciona como uma legenda de informação facilitando a identificação do estilo ou a origem do modelo que está sendo reproduzido.

Mesmo nos casos em que a fonte é batizada com um nome fantasia qualquer, torna-se in-teressante apresentar a origem do desenho produzido [fig. 91]. Esta informação geralmente consta de algum memorial descritivo do projeto – na medida em que a pesquisa realizada pode constituir um relevante argumento de venda. A semelhança de uma fonte digital de si-mulação com sua referência concreta é naturalmente encarada como um mérito projetual, e tende a ser valorizada e destacada na apresentação desses projetos.

3.2. As fontes digitais de simulação caligráfica de referência conceitual

As fontes digitais de simulação caligráfica desenvolvidas a partir de referências conceituais são aquelas cuja aparência não se baseia na reconstrução específica de um original ma-nuscrito (ou conjunto de originais). A tipografia desenvolvida constitui um modelo virtual de alfabeto realizado a partir de uma proposta relacionada visualmente a um conceito genérico de caligrafia.

A distinção desta categoria em relação aos projetos baseados em uma referência concreta reside principalmente na liberdade formal experimentada nesse tipo de construção. Durante a criação da fonte digital, a inexistência de um modelo concreto a ser fielmente reproduzido permite que o designer de tipos explore com maior liberdade o conceito de ‘caligrafia’.

Também são considerados pertencentes a esta categoria as fontes digitais de simulação que apenas apóiam seu desenvolvimento em esboços caligráficos – sem que estes sejam utilizados como gabaritos de construção, mas como ensaios, experiências e rascunhos de apoio. Estes rascunhos são usados para dirimir dúvidas a respeito da estrutura dos caracte-res, como o contraste de determinada haste, a melhoria das curvas, etc. Apesar de se apoiar em uma ocorrência concreta, a tipografia em vias de construção não tem como preocupação reproduzir com exatidão a experiência caligráfica realizada nesses exercícios.

Em relação ao processo de criação, os alfabetos ‘conceituais’ que se apóiam em exercícios ou esboços durante seu desenvolvimento aproximam-se tecnicamente das fontes apenas inspiradas em uma referência concreta. A separação entre as duas categorias (mais uma vez tênue e subjetiva) só pode ser realizada com precisão mediante a manifestação explicita das intenções do designer.

Como já foi dito em relação ao aspecto teórico das definições propostas, vale ressaltar que são poucas as fontes digitais de simulação caligráfica desenvolvidas sem qualquer influência ou auxílio de um original manuscrito. A intenção do projetista determina a natureza do projeto, condicionando a metodologia utilizada em seu desenvolvimento.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 109

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

3.2.1. As estratégias de construção das fontes digitais de simulação caligráfica de referência conceitual

Esta parte da dissertação tem como objetivo apresentar de maneira esquemática uma série de informações relacionadas ao processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica. Estas informações dizem respeito às estratégias de representação visual desen-volvidas na estrutura das letras com o objetivo de sugerir uma escrita de natureza manual.

As estratégias apresentadas funcionam como uma espécie de mapa no desenvolvimento de fontes digitais de simulação caligráfica de referência conceitual. Estas estratégias foram elaboradas a partir da observação de aspectos relacionados à caligrafia e à tipografia – res-pectivamente o objeto da simulação e o meio onde essa simulação se realiza. Tais como:

: a observação de características existentes na prática da caligrafia, compreendendo um am-plo conhecimento do aspecto material da realização caligráfica (suporte, substância corante e ferramenta). Essas características são observadas pelo ponto de vista formal constituindo aspectos plásticos a serem devidamente reproduzidos na estrutura de uma fonte digital.

: a observação de características relacionadas aos meios onde a escrita se articula, compre-endendo os diversos aspectos técnicos inerentes aos dois universos de criação em questão: o tipográfico e o caligráfico. É importante lembrar que o funcionamento de um arquivo tipo-gráfico digital apresenta características muitas vezes impróprias ao desenvolvimento de um projeto de aparência caligráfica – o que torna essa tarefa bastante complexa.

A maneira como o designer de tipos consegue coordenar essas estratégias no desenvolvi-mento de uma fonte digital de simulação caligráfica define a qualidade e o bom funcionamento do projeto – não só através de características plásticas presentes na estrutura dos caracteres, como através de recursos tecnológicos disponíveis no processo de composição.

Podemos dividir essas estratégias em quatro grupos centrais, seguindo os mesmos princípios apresentados no mapeamento realizado na parte 2 da dissertação (categorias de compreen-são da forma caligráfica). São elas:

: estratégias de alusão à utilização de uma ferramenta caligráfica;

: estratégias de alusão a um processo caligráfico de construção (ductus);

: estratégias de alusão à perícia ferramental;

: estratégias de alusão à especificidade da caligrafia enquanto ocorrência espaço-temporal.

As características apontadas no capítulo 2 da dissertação deram origem às estratégias de representação visual, adotadas para a articulação do conceito ‘caligráfico’ em fontes digitais de simulação que não se baseiam em referências concretas para o seu desenvolvimento (conceituais). A transformação de ‘características’ em ‘estratégias’ descreve ainda uma outra

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 110

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

mudança de foco: no capítulo 2 da dissertação a análise incide especificamente sobre a cali-grafia e suas características gerais; no capítulo 3, o objeto em análise é a tipografia digital – e a maneira como esta tecnologia reproduz características associadas à caligrafia.

3.2.2. Estratégias de alusão à utilização de uma ferramenta caligráfica

No processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica, uma das principais estratégias utilizadas na articulação do conceito ‘caligráfico’ diz respeito à tarefa de reprodu-zir na aparência de uma tipografia características associadas à parte instrumental da escrita manual.

No capítulo 2.1 as características visuais associadas ao universo instrumental da prática ca-ligráfica foram separadas em três grupos: suporte, substância corante e ferramenta. Neste ponto da dissertação estes grupos serão reorganizadas por outros critérios:

: características estruturais;

: e características expressivas.

As características estruturais tem natureza geral e indireta: relacionam-se de maneira menos imediata com o conceito de caligrafia. É o caso, por exemplo, do contraste entre grossos e finos (modulação) observado na estrutura dos caracteres em diversos alfabetos.

Originalmente essa modulação é produzida pelo rastro de uma ferramenta caligráfica, quanto utilizada com uma angulação e pressão relativamente constantes. Posteriormente, entretanto, essa característica tornou-se apenas referencial dissociando-se de sua origem exclusivamen-te caligráfica. Diversas fontes digitais desenvolvidas inteiramente no computador apresentam modulação em sua estrutura apenas com o intuito de proporcionar uma variação claro/escuro benéfica para a leitura – mas sem o objetivo específico de fazer algum tipo de menção ao caráter caligráfico da escrita.

O desenvolvimento de um aparato tecnológico capaz de mecanizar completamente a escrita (incluindo a concepção dos caracteres) proporcionou a remoção de outros vestígios caligrá-ficos, permitindo a permanência apenas daqueles que fossem compatíveis com a nova téc-nica/lógica de composição tipográfica. O mesmo pode ser dito em relação às serifas e outras estruturas de terminação. Com o emprego de novas ferramentas de desenho e produção, essas estruturas foram reinterpretadas de acordo com as possibilidades oferecidas, transfor-mando índices caligráficos autênticos em simples referências de estilo.

A evolução desse processo de descaracterização deu origem a deformações conceituais curiosas. Podemos citar por exemplo a utilização de caracteres simplesmente inclinados para a variante ‘itálica’ de fontes geométricas e de baixo contraste – sugerindo algo como uma versão ‘cursiva’ desses alfabetos; ou ainda a criação de serifas afiadas e ‘construídas’ en-contradas nos tipos conhecidos por modernos (Didot, Bodoni, etc.) – onde essa estrutura ‘artificializada’ passou a ter caráter estilístico.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 111

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

Já as características expressivas tem natureza particular: relacionam-se de maneira imediata com a prática caligráfica a partir da exploração visual de vestígios que evidenciem uma ocor-rência específica. É o caso por exemplo, de caracteres cujo preenchimento apresenta falhas internas e externas (definição do contorno) sugerindo uma pincelada veloz e informal sobre uma superfície rugosa. Apóiam-se na expressão visual da escrita fugindo de um padrão ra-cional de construção – utilizando-se sobretudo de marcas facilmente associadas à execução caligráfica como manchas de tinta, falhas no preenchimento, etc. [fig. 92].

Com o intuito de evidenciar a origem caligráfica dos alfabetos, podemos verificar atualmente no mercado de tipografia digital uma tendência muito forte ao desenvolvimento de fontes de simulação explorando de maneira intencional (por vezes exagerada) a articulação de carac-terísticas expressivas7.

A explicação para essa acentuada tendência é que as características estruturais derivadas dos modelos manuscritos (serifas, modulação, terminais) tornaram-se próprias tanto ao uni-verso tipográfico quanto ao meio manual de criação, deixando de constituir um valor diferen-

cial – ou seja, associado exclu-sivamente à prática caligráfica. Assim, a reprodução intencional de marcas expressivas associa-das à execução manual acabou transformando-se em uma estra-tégia tida quase como necessária para a construção de uma apa-rência caligráfica, especialmente no meio digital e diante de uma audiência menos especializada.

A conseqüência desse novo con-texto tecnológico repercute na reformulação do conceito ‘cali-

grafia’, percebido principalmente nas gerações ‘reeducadas’ pelo meio digital. A idéia da ca-ligrafia como uma atividade pautada pela beleza, pelo virtuosismo e pela rigorosa execução técnica (bela escrita) acabou dando lugar a uma noção de escrita artesanal, mais imprecisa e errática do que na visão tradicional. Ou seja, de aparência mais ‘humana’ possível. A qualida-de estética da escrita não foi alijada do termo ‘caligrafia’ em sua leitura contemporânea, mas não pode mais ser tomada com rigor para definir o que é e o que não é caligrafia.

Quando a escrita manual é pautada pela qualidade de execução, a caligrafia geralmente recebe a denominação ‘clássica ou tradicional’, e quando o aspecto artesanal/processual é a circunstância mais explorada da atividade, a caligrafia é denominada ‘expressiva ou experi-mental’. Essa denominação contemporânea estabelece duas abordagens distintas, comple-mentares e válidas para o termo.

7 Em detrimento à modelos que exploram a origem caligráfica através de modelos tradicionais mais contidos e de construção regular.

[ o ] Aquiline: Group Type, 1999.[ o ] Aunt Judy: Judith Sutcliffe, 1992.

CARACTERÍSTICAS ESTRUTURAIS

: modulação e eixo

CARACTERÍSTICAS EXPRESSIVAS

: contorno e contraste irregular

Características estruturais e expressivas associadas à sugestão de 92.

utilização de uma ferramenta caligráfica.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 112

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

A escolha dos recursos visuais empregados no desenvolvimento de uma fonte digital de si-mulação caligráfica dependerá, portanto, dos objetivos do designer de tipos: que classe de caligrafia pretende simular, ou melhor, de que maneira pretende manifestar o conceito ‘cali-gráfico’ em seu alfabeto.

A opção por um desenvolvimento ‘clássico’ tende a dialogar com um público mais erudito e restrito, conhecedor de modelos históricos, métodos de desenho e ferramentas caligráficas tradicionais. Por outro lado, a opção pela criação de um alfabeto mais expressivo tende a alcançar um público maior, na medida em que a construção se dá através de características visuais mais estereotipadas e acessíveis.

3.2.2.1. Articulação de características estruturais: modulação

A modulação estabelecida em uma fonte digital de simulação caligráfica deve seguir princí-pios semelhantes aos adotados na sugestão do ductus da escrita – principalmente porque as duas características são absolutamente indissociáveis. Como foi previamente observado na capítulo 2 desta dissertação, a construção da relação entre finos e grossos de uma escrita manual tem origem na mudança de direção, pressão e sentido exercida em uma determinada ferramenta.

Com o intuito de tornar a experiência de simulação visualmente compatível com uma realiza-ção caligráfica concreta, torna-se interessante que a variação estabelecida na estrutura dos caracteres tipográficos aproxime-se de uma situação caligráfica ideal: mostrando-se constan-te e previsível em relação ao ciclo constituído pela alternância de espessura das hastes. Uma boa estratégia empregada para verificar se a sugestão deste ciclo está se mantendo constan-te ao longo do projeto consiste na criação de um círculo completo semelhante a uma letra ‘O’ [fig. 93]. Com esta figura construída o projetista pode estabelecer três aspectos fundamentais no desenho do alfabeto:

: o contraste máximo observado, ou seja, a situação de maior amplitude entre finos e grossos.

: a largura da ferramenta que está sendo sugerida (para os casos em que o contraponto não apresenta grande variação, ou seja, quando não se trata de uma ferramenta de ponta maleável);

: o eixo da escrita – a postura (angulação) em que a ferramenta é utilizada. Para encontrar esse ângulo, traça-se uma reta ligando os dois pontos de menor espessura na circunferência.

Partindo do círculo proposto como gabarito é possível estabelecer de maneira prática a es-pessura precisa a ser empregada em hastes verticais e horizontais. Para isso é necessário identificar a angulação que está sendo sugerida e a largura da ferramenta.

Estabelecer essas definições facilita a tarefa de verificação e o ajuste final dos caracteres, em um processo de correção que deve ser constante em todo o projeto – utilizado para atestar a compatibilidade formal entre o modelo projetado e uma situação real de construção. Além

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 113

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

de prejudicar o estabelecimento de um ritmo uniforme para o texto, a criação de um contraste irregular implica no enfraquecimento da sugestão de um ductus caligráfico no alfabeto dando à escrita uma aparência artificial.

Vale ressaltar entretanto, que essa verificação deve permitir pequenas irregularidades e va-riações também presentes no estabelecimento cíclico do contraste de uma escrita. Mesmo com uma técnica bastante apurada dificilmente o calígrafo consegue manter com precisão a mesma postura, pressão e direção ao longo de todo o registro. Em uma escrita manual essa regularidade permite algumas exceções em nome de formas mais elegantes e hastes bem distribuídas. Em se tratando de um modelo teórico, cabe ao projetista avaliar quão precisa deve ser essa verificação.

3.2.2.2. Serifas e terminações

Nos alfabetos de origem caligráfica serifas e terminações apresentam-se visualmente asso-ciadas à ferramenta empregada na escrita, funcionando como índices importantes na cons-trução de um espírito caligráfico em uma fonte digital de simulação. A aparência dessas estru-turas contribui para reforçar visualmente diversas características que estão sendo articuladas ao longo do alfabeto: como a existência de um ductus interno e o estabelecimento de um contraste regular, constante e verossímil [fig. 94].

Nas fontes digitais de simulação caligráfica, a estratégia empregada na criação de serifas e terminações tem por objetivo explicitar o caráter manuscrito do alfabeto. A função de serifas e terminações não é apenas ornamentar ou arrematar as hastes de uma letra, mas conservar marcas importantes decorrentes do processo de construção da escrita. Curvas exagerada-mente precisas ou excessivamente aplainadas durante a etapa de vetorização podem produ-zir arremates de aspecto artificial.

Nos casos em que a serifa é produzida através da interrupção abrupta de uma haste – tra-dicionalmente nos modelos produzidos com ferramentas de ponta chata – essa ressalva é

eixo da escrita / inclinação 25° (upright)espessura horizontal

[ O ] Centaur: Adobe, 1994.

CARACTERÍSTICAS ESTRUTURAIS OBSERVADAS NA LETRA 'O'

espessura vertical

contraste

(ligeiramente superior a espessura vertical)largura da ferramenta

A construção de um círculo completo (letra ‘O’) permite ao designer de tipos estabelecer parâmetros importantes ao 93.

desenvolvimento de uma fonte digital de simulação caligráfica.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 114

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

especialmente relevante. A aparência dessas estruturas deve ser compatível a um corte seco de uma haste normal, respeitando a espessura e o ângulo de trabalho observados ao longo de todo o alfabeto. O acabamento diagonal observado nessa situação tem por objetivo indicar

claramente o posicionamento e a dimensão da ferramenta de trabalho.

Levando em consideração que mesmo nos modelos caligráficos pautados pela regularidade podemos encontrar variações sutis de ângulo, direção e pressão, cabe ao designer flexibilizar o rigor dessa espécie de ‘montagem’, para evitar que o alfabeto proposto acabe parecendo pouco factível.

Um exemplo interessante na criação de se-rifas que sugerem uma origem caligráfica pode ser encontrada na fonte digital Adobe Jenson, projetada e editada por Robert Slimbach em 1995. Nesta fonte é possível perceber uma pequena diferença na curva que une a serifa de base às hastes verti-

cais: essa solução gráfica tem o intuito de sugerir o curso da escrita na construção de um arremate de aparência caligráfica. A maior suavidade percebida na lateral esquerda da jun-ção indica que ao terminar a haste, o calígrafo iniciou o arremate nesse sentido cruzando a haste horizontalmente depois. Esse cruzamento horizontal é sugerido através de uma junção abrupta na outra lateral da serifa [fig. 95].

Outra particularidade interessante pode ser observada nas fontes de Slimbach: na maioria de seus projetos é possível perceber uma série de detalhes conservados para indicar a referên-cia caligráfica do desenho digital. Na letra ‘e’ minúscula de suas fontes Arno, Jenson e Brioso por exemplo, podemos encontrar uma pequena saliência na parte direita da letra sugerindo uma espécie de desencaixe proposital causado pela extensão da barra inclinada que corta a letra [fig. 96].

Mas nem todos os projetistas tem essa mesma preocupação e objetivo. Nas pri-meiras tipografias humanistas produzidas ainda no século XV é possível perceber uma espécie de aperfeiçoamento da ima-gem do alfabeto gerado pela pena caligráfi-ca – o que deu origem a serifas modeladas e adnatas, bem como a terminais arredon-

[ Z, E ] Zapfino Extra LT One: Linotype, 2003.

SERIFAS E TERMINAÇÕES DIFERENTES, PORÉM COMPATÍVEIS.

A terminação das hastes contribui de maneira importante 94.

para a percepção de uma forma de aparência ‘caligráfica’.

[ n ] Adobe Jenson Pro Lt: Adobe, 2000.

serifa: sugestão de movimento

Detalhe ampliado da fonte Adobe Jenson: serifa sugere 95.

de maneira sutil o curso de construção da escrita.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 115

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

dados e em forma perfeitamente circular. A evolução formal dessas estruturas resultou na criação de terminais geométricos e serifas lineares precisas, dificilmente produzidas através de ferramentas caligráficas [fig. 97].

3.2.2.3. Articulação de características expressivas associadas à ferramenta caligráfica

Em uma fonte digital de simulação caligráfica as características instrumentais de natureza expressiva geralmente tem por objetivo evidenciar o caráter caligráfico dos alfabetos através de indícios visuais evidentes – e conseqüentemente acessíveis a uma audiência maior. Por este motivo, a exploração de características expressivas acaba sendo uma estratégia bastan-te adotada nos projetos de simulação caligráfica voltados para o mercado de tipografia digital (sobretudo para o consumidor pouco conhecedor de modelos mais tradicionais).

Essas características baseiam-se na exploração de marcas visuais associadas a aconteci-mentos caligráficos expressivos – como o erro, a imprecisão, a imperfeição, o acidente, o acaso, a imperícia e o excesso. Esses acontecimentos podem ser evidenciados através de pequenos detalhes (um contorno indefinido, um preenchimento falhado) ou através de defor-mações evidentes na estrutura dos caracteres.

Saliência sugere a 96.

continuidade do traçado:

referência ao alongamento

da barra da letra ‘e’ minúscula.

[ e ] Adobe Arno, Jenson Pro e Zapfino Script Four.

TERMINAIS

SERIFAS

detalhe [ a, f ] Centaur, Adobe Jenson, AGaramond, Baskerville, Bodoni.

Acabamento geométrico: 97.

derivação formal de serifas

e terminais.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 116

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

Muitas dessas estratégias apóiam-se nos aspectos instrumentais da execução caligráfica para explorar visualmente acontecimentos observados no suporte ou associados à substân-cia corante utilizada na escrita. Podemos citar como exemplos de estratégias associadas às características instrumentais expressivas:

: interferência no contorno dos caracteres;

- imperfeições no contorno dos caracteres causadas pelo excesso ou falta de subs-tância corante [fig. 98];

- imperfeições de contorno causadas pela rugosidade excessiva do papel;

: interferência no preenchimento inter-no dos caracteres;

- preenchimento falhado causado pela au-sência parcial de substância corante na ferramenta [fig. 99];

- preenchimento falhado causado pela in-compatibilidade física total ou parcial do suporte com a substância corante;

- interferência no preenchimento dos ca-racteres causada pela textura do suporte;

: interferência no entorno dos caracteres.

- manchas de tinta localizadas no entorno dos caracteres [fig. 100];

A localização e a dimensão dessas interfe-rências podem afetar de maneira significa-tiva a estrutura básica de reconhecimento dos caracteres. Repetidas falhas de pre-enchimento podem acabar fragmentando hastes e letras, deslocando a expressivida-de caligráfica de uma região secundária para uma região de reconhecimento e assim preju-dicar a legibilidade da escrita.

Algumas características acima listadas serão abordadas novamente na relação entre a forma dos caracteres e a perícia ferramental (ou imperícia) demonstrada pelo calígrafo na execução da escrita (capítulo 3.2.4).

[ o, k ] Aquiline: Group Type, 1999.

CARACTERÍSTICAS EXPRESSIVAS ASSOCIADASÀ FERRAMENTA CALIGRÁFICA

: interferência no contorno dos caracteres

Interferência no contorno dos caracteres: além de 98.

apresentar um aspecto inteiramente irregular, a fonte digital

Aquiline apresenta em sua estrutura a sugestão de uma

série de manchas causadas pelo excesso de tinta

(indicadas em vermelho).

[ G, 5 ] Arid: ITC, 1997.

INTERFERÊNCIA NO PREENCHIMENTO DOS CARACTERES

Falhas no preenchimento das letras causadas pela 99.

falta parcial de substância corante na execução da escrita

(informação conservada pelo processo de digitalização).

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 117

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

3.2.3. Estratégias de alusão a um processo caligráfico de construção (ductus)

As estratégias de alusão a um método caligráfico de construção constituem operações res-ponsáveis por simular em uma fonte digital a existência de um gesto constitutivo estruturando o desenho dos caracteres – circunstância fundamental em um processo de escrita. Assim como foi observado em relação aos projetos de simulação de referência concreta, essa ope-ração geralmente se dá através da simulação de um ductus na estrutura da tipografia digital [fig. 101].

Na parte da dissertação relacionada à construção dos projetos de simulação de-senvolvidos a partir de referências concre-tas, ficou claro o quanto a conservação do ductus é fundamental em fontes digitais dessa natureza. A tarefa de reproduzir de-terminada experiência caligráfica tem início na compreensão do movimento realizado durante a escrita, envolve a conservação das marcas resultantes desse gesto e a ar-ticulação visual dessas características na estrutura tipográfica.

Nos projetos de simulação que não se ba-seiam em um original caligráfico, ou seja, de referência apenas conceitual, a inexis-tência (ou a existência apenas parcial e

Mag Octo us P atypus Quo koo p kl

R b t S ingray To can Uriala tbi u

lture W b us X no s Yak Zeb aa er p r

INTERFERÊNCIA NO ENTORNO DOS CARACTERES

INK BLOTS

Dear Sara: Veer.

Interferência no entorno dos caracteres: a fonte digital Dear Sara possui no seu conjunto manchas 100.

e respingos de tinta para tornar a simulação ainda mais convincente.

contorno vetorial

sugestão de ductus

Sugestão de ductus em um caractere tipográfico.101.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 118

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

aproximada) de um modelo previamente realizado torna a tarefa um pouco mais complexa. Nesta categoria de projetos o designer precisa sugerir visualmente os indícios de um movi-mento de natureza apenas virtual. Simular um modelo de escrita é o mesmo que simular um movimento, uma ferramenta, um cânone formal e um estilo particular de construí-lo. Realizar essa tarefa sem um apoio visual é uma tarefa bastante complicada.

Por esse motivo, dificilmente uma fonte digital de simulação caligráfica é desenvolvida direta-mente (ou exclusivamente) no ambiente digital – o que reduziria consideravelmente as chan-ces de um bom resultado prático, além da tarefa se mostrar muito mais trabalhosa realizada desta maneira.

Mesmo nos casos em que não se almeje reproduzir um modelo específico de escrita, é bas-tante comum que o designer de tipos se apóie em algum esboço ou rascunho desenvolvido com ferramentas caligráficas. Estes tem o objetivo de exercitar algumas características deri-vadas do desenho manuscrito, dificilmente obtidas no trabalho realizado apenas e diretamen-te com vetores matemáticos8 [fig. 102].

Estes esboços servirão para nortear a tarefa de sugerir no suporte tipográfico digital aspectos compreendidos como tipicamente caligráficos: como a reprodução de determinado estilo de escrita, indícios do uso de uma ferramenta específica, a fluência do gesto, modulação das hastes, etc. Estas características naturalmente vão variar de acordo com as ferramentas utili-zadas, a habilidade do calígrafo e os modelos de escrita tomados por referência.

Nesse tipo de exercício algumas técnicas são empregadas para simular ferramentas caligrá-ficas tradicionais utilizando instrumentos mais simples e acessíveis, como lápis e canetas esferográficas, por exemplo.

8 Excetuam-se em alguns casos desenhos desenvolvidos diretamente em mesas digitalizadoras – equipamentos capazes de interpretar de forma bastante razoável o movimento das mãos na construção das letras, e da cons-trução a partir de ferramentas vetoriais de caligrafia.

Esboços caligráficos permitem a compreensão do gesto, auxiliando a tarefa de simular a escrita em uma fonte de simulação. 102.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 119

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

Uma dessas técnicas consiste em desenhar os caracteres utilizando dois lápis bem amarra-dos [fig. 103], simulando a utilização de uma pena caligráfica de ponta chata9. Esse exercício é interessante por permitir a visualização do cruzamento do contraponto localizado nas duas extremidades laterais de uma haste. Esse cruzamento é um movimento característico na caligrafia feita com pena de ponta chata, muitas vezes reinterpretado de maneira pobre ou inconsistente na tipografia digital. Em nome de uma aparência mais bem acabada, em muitos casos esse movimento é excessivamente suavizado em curvas que não exprimem uma das principais marcas deixadas por esta ferramenta.

Em seu livro ‘Letterletter’, Noordzij apre-senta outra maneira eficiente de se repre-sentar uma haste caligráfica com instru-mentos básicos de desenho. Partindo de uma angulação e de uma largura máxima pré-estabelecida, a letra é desenhada à lápis ou caneta através de linhas em zi-guezague (hachura) [fig. 102]. Apesar de parecer algo simples de se realizar, para que as letras correspondam efetivamente a modelos caligráficos factíveis, essas duas técnicas exigem uma experiência prévia na prática caligráfica – utilizando ferramentas tradicionais.

O objetivo ao se utilizar de esquemas dessa natureza não consiste exatamente em desenvol-ver modelos precisos de letras para serem vetorizados e reproduzidos no suporte tipográfico. Em muitos casos os desenhos são apenas parcialmente digitalizados, servindo mais para demonstrar o comportamento natural de curvas e conexões desenvolvidas no ambiente ca-ligráfico, ou ensaiar situações relacionadas à modulação dos caracteres. Essas estratégias são indicadas para facilitar a compreensão do movimento e suas conseqüências na estrutura visual das letras, ou seja, servem para exercitar e aprimorar o ductus de construção que está sendo proposto no alfabeto desenvolvido.

Na pesquisa que realizou em sua pós-graduação, Eduardo Berliner apresenta em detalhes o processo de transposição de inúmeros esboços realizados com instrumentos e técnicas ca-ligráficas. Berliner avalia através de seu trabalho pessoal uma série de questões relevantes para o desenho tipográfico, especialmente em relação à importância de se conhecer o movi-mento responsável por dar forma a cada haste.

9 Vale ressaltar que em se utilizando dois lápis iguais, a largura mínima da haste tende a se aproximar do diâmetro do lápis (descontado o efeito da inclinação escolhida) fazendo com que a escala do desenho seja relativamente maior que a naturalmente desenvolvida com ferramentas caligráficas tradicionais.

Exercícios utilizando instrumentos simples permitem 103.

a visualização de situações próprias à prática caligráfica.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 120

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

3.2.3.1. Kalliculator, uma ferramenta digital de simulação do ductus caligráfico

O estudante belga Frederik Berlaen desenvolveu uma interessante ferramenta de criação tipográfica durante sua pós-graduação no curso Type/Media em 2005/6, ministrado na tradi-cional escola holandesa Kabk – Royal Academy of Art. A ferramenta batizada de ‘Kalliculator’ oferece ao designer de tipos a possibilidade de modelar o contorno da letra a partir de uma estrutura interna linear, chamada por Berlaen de ‘esqueleto’ [fig. 104].

“These skeletons are a mix between the mathematical middle of a stroke and the imaginary path the hand follows during the writing process.”

“In calligraphy the skeleton is the movement of the hand when writing a character. It can also be seen as the middle of a stroke. However, the exact mathematical middle is not equal to the movement of the hand of that stroke. A skeleton is something in between. A pen in a hand turns around and the mathematical middle does not take these rotations into account.” (Berlaen, 2007: 6)

O modelo desenvolvido apresenta de maneira clara e funcional uma estrutura que se aproxi-maria bastante da noção de ductus – de acordo com o conceito adotado nessa dissertação10. Através desse esqueleto seria possível orientar a criação de alfabetos de aparência caligráfica baseados em situações reais de contraste compatíveis e similares às encontradas na execu-ção material da caligrafia. Para isso o software conta com informações relacionadas às duas principais ferramentas de criação na tradição caligráfica ocidental: a pena de ponta chata e a pena de ponta fina flexível.

Segundo o autor, a proposta e o principal desafio do progra-ma Kalliculator é automatizar a produção de fontes digitais de simulação caligráfica em função dessas duas ferramentas. Para se aproximar desse objetivo, Berlaen compreendeu que o es-queleto de construção era uma informação fundamental para ser trabalhada como a base do

10 A principal diferença estaria no fato de que o modelo esquemático utilizado no software não segmenta as linhas de construção em função da quantidade de movimentos de execução, conectando-os em uma única linha unidi-recional. Segundo Berlaen: “A skeleton is a collection of strokes. The difference with strokes is that a skeleton can be simplified into one line. For example an ‘o’ is made out of two pen strokes, but the skeleton consists of one line. In the digital movement, the skeleton, you don’t lift your hand anymore, only when the stroke starts somewhere else. (...) Thinking in strokes has become redundant.” (Berlaen, 2007: 7). O ductus é uma estrutura complexa, responsável por conservar essa segmentação e outras informações relativas à maneira como a letra foi efetiva-mente construída – e não apenas seu aspecto final.

Esqueleto interno dos caracteres: a sequência de pontos indica ainda 104.

a velocidade do traçado (kalliculator).

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 121

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

desenvolvimento de uma estrutura com aparência caligráfica verossímil. Para realizar com êxito essa tarefa não se amparou apenas em avançados recursos de programação, mas so-bretudo no conhecimento técnico de aspectos ferramentais da caligrafia11.

O software desenvolvido por Berlaen ainda se encontra em fase de ajustes, mas já pode ser considerado um marco em relação à criação de projetos de simulação caligráfica [fig. 105]. Os resultados práticos ainda não apresentam qualidade comercial ou acabamento para serem prontamente comercializados, mas apontam um novo método de construção em relação a tipografias de caráter caligráfico concebidas diretamente no ambiente digital.

A ferramenta Kalliculator oferece ainda a inusitada possibilidade de mesclar situações dis-tintas de contraste no desenvolvimento digital de um único modelo de escrita – permitindo a criação de ‘híbridos caligráficos’ que apresentem indícios dessas duas ferramentas (ponta chata e fina) na estrutura dos caracteres. Segundo Berlaen:

“This results in exciting possibilities. When there is a possibility to interpolate, it is also possible to extrapolate. Of course these results are not controllable and definitely not calligraphic. But they are a new sort of contrast, which offers new shapes to experiment with.” (Berlaen, 2007: 13)

11 Foram utilizadas as ferramentas de programação Python, Robofab, Vanilla, Cocoa e Pyobjc. O projeto teve como orientador Just van Rossum e contou com o auxílio técnico dos designers e programadores Erik van Blokland e Tal Leming. O programa será comentado mais à frente em função de suas outras características e qualidades relevantes para essa dissertação.

Kalliculator: software de criação tipográfica baseado em ferramentas ‘caligráficas’ – desenvolvido pelo 105.

estudante belga Frederik Berlaen (2005/6).

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3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

Apesar da abordagem do projeto ser extremamente inovadora em alguns pontos, o programa não chega a revolucionar o processo de criação de fontes digitais – uma vez que a saída dos arquivos gerados a partir do esqueleto das letras se baseia no tradicional contorno vetorial dos caracteres. O esqueleto orienta a fase de desenho mas uma vez gerado o arquivo tipo-gráfico essa informação deixa de existir na estrutura da fonte digital.

Sua principal qualidade é possibilitar um desenvolvimento inteiramente virtual na construção de alfabetos que simulem situações bastante factíveis de contraste caligráfico.

Vale ressaltar entretanto, que a automação do processo é apenas parcial. O programa parte da interpretação de uma série de informações inseridas pelo designer de tipos para parâ-metros como angulação, pressão, tipo de ferramenta empregada, etc. A partir desse input personalizado o software gera uma haste (ou um segmento de haste) de acordo com os procedimentos armazenados na memória, combinando as variáveis indicadas pelo designer de tipos [fig. 106].

Embora Kalliculator ofereça grande flexibilidade e precisão, a ferramenta necessita ser ha-bilmente conduzida para realizar com qualidade o desenvolvimento de uma fonte digital de simulação caligráfica. Ou seja, o programa por si só não garante o sucesso da empreitada: é apenas um excelente recurso para aparelhar um desenvolvimento calcado no conhecimento específico da prática caligráfica tradicional.

3.2.3.2. A representação visual do ductus de uma escrita em fontes digitais de simulação caligráfica

A existência do ductus de construção como uma estrutura norteadora do desenho caligráfico pode ser percebida através de aspectos visuais evidenciados na aparência dos caracteres, como:

Os parâmetros de construção devem ser inseridos pelo designer de tipos, o que exige pleno conhecimento 106.

da execução caligráfica por ferramentas tradicionais.

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3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

: a relação de contraste da letra (modulação);

O ductus pode ser insinuado através da modulação (variação de espessura) existente nas hastes dos caracteres sugerindo movimentos realizados pela ferramenta caligráfica como rotações, curvas, mudanças de direção, pressão e velocidade. Uma relação de contraste articulada de modo consistente sugere a existência de uma linha mestra de construção na estrutura dos caracteres. Essa linha mestra estrutural (heartline) representa uma espécie de realização referencial do ductus caligráfico.

: na formação do contorno das letras;

Como veremos mais adiante, o ductus de construção pode influenciar a definição do contorno dos caracteres, na medida em que uma construção de natureza contínua (otimizada) ou inter-rompida geralmente proporciona acabamentos distintos. Por esse motivo, o contorno dos ca-racteres também conserva informações relevantes sobre a realização do ductus da escrita.

: na natureza das terminações das hastes de construção;

Apresentando ângulo ou dimensão compatível com o restante da haste, a terminação vai reforçar a percepção de uma linha mestre existente no desenho da letra.

Estas características associadas (e realizadas de maneira coerente) permitem que o obser-vador identifique a existência de um movimento caligráfico na origem do modelo digital pro-posto, tornando a experiência de simulação bastante verossímil. Para a organização desta dissertação as características associadas à modulação, ao contorno dos caracteres e termi-nações também foram agrupadas sob o conjunto de estratégias relacionadas à sugestão de utilização de ferramentas caligráficas. Vale ressaltar que é impossível dissociar as marcas deixadas pelo movimento de outras características impostas pela ferramenta na qual ele é exercido – de maneira que essa organização é apenas uma sugestão de apresentação.

De acordo com a natureza do processo de construção do ductus (interrompido ou contínuo) as características mencionadas apresentam diferenças consideráveis na estrutura dos carac-teres. Dessa maneira, é interessante apresentar separadamente as estratégias de represen-tação associadas a ductus de natureza contínua e interrompida – o que facilita a tarefa de simular esses dois grupos de fontes digitais de simulação caligráfica.

3.2.3.3. A origem das fontes tipográficas baseadas em escritas de ductus contínuo

Nos primeiros momentos que sucederam a invenção da tipografia, os tipos móveis mais co-muns costumavam ser moldados sobre a imagem de alfabetos góticos em variantes caligrá-ficas pesadas e angulosas. O método fragmentado de composição tipográfica favorecia a utilização de estilos caligráficos mais contidos e regulares – características tradicionalmente associadas à escritas de ductus interrompido.

Por volta de 1500, o impressor italiano Aldo Manuzio encomendou ao puncionista Francesco Griffo um alfabeto tipográfico baseado em escritas cursivas, ou seja, produzidas através de

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3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

um método contínuo de construção. O objetivo era aproveitar o aspecto compacto e conden-sado de um modelo caligráfico cursivo para desenvolver publicações em formatos reduzidos [fig. 107]. O tipo ficou conhecido como Itálico Aldino (em referência à sua origem italiana) e foi considerado um dos fatores responsáveis pelo enorme sucesso comercial dos impressos de Manuzio:

“Era, de fato, um tipo de corpo pequeno ligeiramente inclinado, leve e facilmente legível, algo estreito para permitir encaixar nas linhas daqueles livrinhos (...) o maior número possível de caracteres. A bem da verdade, esse tipo não se caracterizava tanto pela inclinação das letras quanto pela inclinação das formas; daí resulta outra unidade – essa estreitamente formal – sutil e notável.” (Satué, 2000: 104)

Francesco Griffo desenvolveu apenas as minúsculas inspiradas nas cursivas – geralmente utilizadas junto à maiúsculas romanas eretas – e até meados do século XVI as itálicas conti-nuaram sendo consideradas um estilo particular de escrita. Foi apenas no alto Renascimento que os tipógrafos começaram a utilizar romanas e itálicas em diferentes situações de um mesmo livro: tradicionalmente as romanas eram usadas no texto e as itálicas no prefácio, em notas e citações (Bringhurst, 2005: 66).

Com o tempo as itálicas passaram a ser incluídas em planejamentos tipográficos complexos, transformando-se em variantes do modelo estático romano – padrão vigente nos dias de hoje. Em alguns casos, este processo levou a uma espécie de deformação do conceito original das Itálicas, dissociando as variantes desenvolvidas do aspecto cursivo da escrita.

O alfabeto de caráter cursivo desenvolvido por Francesco Griffo: aspecto condensado favorecia a produção de publicações em 107.

formato reduzido.

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3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

“Desde o século XVII, muitas tentativas procuraram frear a natureza cursiva e flui-da do itálico, redesenhando-o segundo o modelo romano. Muitos tipos assim cha-mados ‘itálicos desenhados’ nos últimos duzentos anos não passam de romanos inclinados, também conhecidos como oblíquos. (...) À medida que os tipos itálicos minúsculos se metamorfoseavam em romanos inclinados, suas proporções tam-bém eram alteradas. Assim é que muito dos itálicos (mas não todos) são de 5 a 10% mais estreitos do que seus companheiros romanos. Por outro lado, muito dos romanos inclinados (...) são tão ou mais largos do que seus companheiros eretos.” (Bringhurst, 2005: 67)

Isso permite concluir que é a es-trutura, e não a inclinação, o que define uma letra como sendo cur-siva. Se inicialmente as fontes itálicas surgiram como interpre-tações tipográficas de alfabetos cursivos, nos dias de hoje tomar as duas expressões por sinôni-mo é um tanto quanto perigoso. Em seu livro Elementos do estilo tipográfico, Robert Bringhurst es-tabelece uma comparação entre diversos desenhos de itálicos em busca do que batizou curiosa-mente como ‘quociente de italici-zação’ de fontes sem serifa [fig. 108]. Segundo o autor, é possível mensurar esse aspecto contando o número de letras caixa-baixa com características visivelmente cursivas.

A partir dessa observação, podemos concluir que a cursividade aplicada na tipografia é uma característica estrutural que pode ser percebida em níveis distintos e diversas gradações.

Quociente de italicização proposto por 108.

Robert Bringhurst: avaliação de acordo

com a quantidade de caracteres de

natureza cursiva em cada alfabeto.

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3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

Na prática caligráfica essa gradação também existe. Como a cursividade tem relação direta com a otimização do gesto empregado na realização de um registro, é comum encontrarmos em um mesmo registro caligráfico níveis distintos de cursividade. Em alguns casos torna-se possível identificar inclusive quando ocorre uma gradual ou repentina mudança de velocida-de na execução de um texto – apenas pela observação de características mais ou menos cursivas na formação de letras e palavras. A aceleração pode ser percebida através de uma tendência à criação de ligações e pela presença de formas cada vez mais sinuosas.

No projeto tipográfico Sassoon por exemplo (desenvolvido entre 1988 e 1998), os designers Rosemary Sassoon e Adrian Williams implementaram de modo gradual características ‘cursi-vas’ sobre um alfabeto base, com o intuito de produzir fontes digitais especialmente adapta-das a audiências definidas pelo grau de alfabetização [fig. 109].

Nos modelos voltados para leitores menos experientes, o alfabeto básico apresenta formas de fácil reconhecimento, com caracteres claramente isolados e sem nenhuma inclinação. Já na versão voltada para leitores mais experientes a fonte apresenta letras completamente interligadas (por estruturas adicionais, extensões de hastes e serifas transitivas), uma inclina-ção horizontal bem acentuada, maior modulação e hastes ligeiramente mais afinadas. Nesse nível ‘avançado’ o objetivo é tornar o material de leitura mais próximo ao modelo de escrita ensinado às crianças – enquanto no nível mais básico a preocupação é apenas em fazer o texto ser facilmente reconhecido12.

Mesmo não se tratando especificamente de uma fonte digital de simulação caligráfica, a ex-periência Sassoon é um bom exemplo de implementação gradual da cursividade em um alfabeto tipográfico.

12 O projeto se baseou em uma extensa pesquisa realizada com cerca de 50 crianças a respeito da legibilidade de algumas tipografias tradicionais. O objetivo era desenvolver uma fonte digital para ser utilizada em materiais educacionais voltados a crianças em idade de alfabetização. Atualmente a fonte é comercializada pela distribui-dora inglesa Club Type e os alfabetos chamam-se: Sassoon Primary, Sassoon Primary Linked, Sassoon Primary Joined Script e Sassoon Pen Script.

Rosemary Sassoon e 109.

Adrian Williams implementaram

características cursivas de

maneira gradual nos alfabetos

desenvolvidos para a fonte

digital Sassoon, de 1998.

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3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

3.2.3.4. A representação visual do ductus contínuo em fontes digitais de simulação caligráfica

Como já foi observado, a construção caligráfica de ductus contínuo é comumente conhecida por escrita cursiva. A estratégia utilizada para a representação visual da cursividade em fontes digitais de simulação caligráfica constitui a tarefa de desenvolver um alfabeto que apresente em sua estrutura características claramente associadas a esse tipo de construção, como:

: inclinação de hastes verticais

A inclinação diagonal das letras é uma ca-racterística encontrada em diversos mode-los de escrita cursiva, e por esse motivo acabou se transformando em um forte ín-dice de deslocamento, movimento e velo-cidade. Em diversas famílias tipográficas, por exemplo, a variante itálica do conjunto (interpretação cursiva da tipografia) consis-te apenas na versão inclinada do alfabe-to base (romano)13. A grande maioria dos alfabetos itálicos apresenta algum tipo de inclinação, em ângulos que variam tradi-cionalmente de 4 a 12 graus, mas valores acima e abaixo desse padrão também são encontrados [fig. 110].

: entorse estrutural

A simples inclinação da letra não garante o caráter cursivo ou ‘caligráfico’ de um alfabeto de simulação. A indicação de velocidade e deslocamento (otimização) também pode se apoiar em outras sutis modificações na estrutura do alfabeto: como a utilização de hastes sinuosas substituindo diagonais retas e traços verticais [fig. 111]. Por conta desta característica alguns itálicos sequer apresentam inclinação.

13 Nesses casos, mais adequado seria se referir a estes alfabetos como inclinados (sloped) ou oblíquos. Quanto menor o caráter cursivo das letras maior o ângulo de inclinação, compensando a ausência de outras caracterís-ticas cursivas.

Entorse estrutural: curvas substituem hastes 111.

retas em escritas cursivas.

[ h ] Zapfino, Lucida Calligraphy

INCLINAÇÃO DAS HASTES VERTICAIS

12°

32°

Inclinação de hastes verticais: característica comum em 110.

escritas cursivas.

[ s, v ] Galliard Regular e Italic: Bitstream, 1993.

ENTORCE ESTRUTURAL

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3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

: padrão cursivo de desenho

É comum encontrarmos determi-nadas letras do alfabeto (como o ‘a’ e o ‘g’ minúsculos, por exem-plo), apresentando formas otimi-zadas de construção, sugerindo uma origem em escritas de duc-tus contínuo. Letras de aparência complexa indicam um procedi-mento mais trabalhoso de articu-lação [fig. 112].

: serifas transitivas

Nas fontes digitais de simulação a serifa transitiva tem por objetivo sugerir o des-locamento contínuo e fluente de uma fer-ramenta caligráfica indicando a passagem veloz de uma letra à outra [fig. 113]. Ao tér-mino de uma haste a ferramenta já insinua o deslocamento rumo à seguinte, transmi-tindo continuidade, fluência e velocidade.

: conexão entre os caracteres

Muitas escritas de caráter cursivo apresen-tam letras unidas pela extensão de suas hastes. Em alguns casos, essa união resulta sim-plesmente da extensão de uma serifa transitiva na direção da próxima letra. Nessa circuns-tância a conexão pode ocorrer em qualquer parte da letra seguinte, podendo inclusive resultar na sobreposição de hastes ou no desencaixe proposital dos elementos de conexão14. Esse recurso visual serve para reforçar a alusão à uma construção contínua e informal.

14 Em alguns softwares a sobreposição de curvas pode gerar áreas de interseção vetorial interpretadas como áreas vazias (apresentado no capítulo 3.1.6).

[ a, g ] Galliard Italic: Bitstream, 1993.

PADRÃO CURSIVO DE DESENHO

'a' single storey (um pavimento)

Padrão cursivo de desenho: letra ‘a’ de um pavimento sugere uma 112.

construção otimizada.

[ n, r ] Galliard Italic: Bitstream, 1993.

SERIFAS TRANSITIVAS

Serifas transitivas sugerem o deslocamento da ferramenta 113.

caligráfica de uma letra para a seguinte.

[ t, n, d ] PF Champion Script Pro: Parachute, 2007.

CONEXÃO ENTRE OS CARACTERES alteração na métrica da fonte

Conexão entre caracteres: 114.

serifas transitivas dão lugar a

estruturas de ligação.

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3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

Em outros casos a conexão não indica a simples extensão de uma serifa ou haste: ela é a representação de uma escrita inteiramente encadeada (no nível da palavra) constituindo parte do próprio traçado que dá forma as letras. A extensão da parte final da letra é a solu-ção encontrada pelo designer de tipos para simular uma escrita encadeada em um sistema fragmentado de composição [fig. 114]. Para atingir plenamente esse efeito a conexão deve ocorrer em pontos específicos – estruturas preparadas para realizar um encaixe perfeito – pois qualquer desencontro depõe contra o efeito desejado. O objetivo é tornar imperceptível o ponto de junção, sugerindo assim a continuidade do traçado.

Como foi previamente apresentado na parte da dissertação que aborda projetos de simulação de referência concreta (capítulo 3.1), o ajuste de métrica em fontes digitais de aparência en-cadeada é parte fundamental do bom funcionamento do projeto. Um encaixe defeituoso (que pareça artificial) pode ter um efeito indesejado e ser pior que nenhum tipo de encaixe.

: terminações características

Existem diversas formas de encerrar a haste em uma letra de característica cursiva: em todos os casos a preocupação central nos projetos de simulação é não parecer artificial e incompa-tível com o restante do desenho.

Nessa estrutura do caractere a artificialidade pode se manifestar através de terminações excessivamente regulares: terminações em ângulos precisos ou hastes alinhadas milime-tricamente (dificilmente encontradas em escritas manuais de característica cursiva). A pa-dronização excessiva de qualquer estrutura tipográfica remete a um processo mecânico de construção, revelado ainda através de formas coincidentes e ornamentos repetidos.

É interessante que a parte terminal de uma haste reproduza as características formais obser-vadas ao longo da estrutura dos caracteres: como ângulo, espessura e formato. Desse modo, o designer de tipos estará reforçando as relações encontradas na estrutura da letra, indicando apenas uma interrupção natural do traçado [fig. 115].

[ n ] Renard Italic n2: TEFF, 1993. | [ w ] Zapfino Extra One: Linotype, 2003.

TERMINAÇÕES CARACTERÍSTICAS abrupta looping

extensão

Terminações de caráter cursivo: maneiras de se encerrar uma haste sugerindo uma escrita de construção 115.

contínua.

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3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

Um recurso utilizado para sugerir a existência de um ductus contínuo em fontes digitais de si-mulação caligráfica é a sugestão do término em looping observado nas hastes intermediárias de uma letra. Nesse caso, o designer busca reforçar o caráter contínuo da escrita substituindo a sobreposição exata de dois traços (conseqüência do retorno da ferramenta) por uma volta em 180 graus. Para não distorcer demasiadamente a aparência da haste, a curva é constru-ída de maneira bastante fechada e a sugestão fica por conta do contorno nas proximidades dessa região (indicando inclusive a continuidade do traçado nas hastes subseqüentes).

: maiúsculas sinuosas e extensões caudais

A alusão ao caráter fluente da escrita nas maiúsculas de uma fonte digital de simulação cali-gráfica geralmente se encontra limitada à simples inclinação de formas romanas – respeitan-do a angulação encontrada no restante da fonte. Apesar de parecer uma operação simples entretanto, o deslocamento horizontal dos pontos exige correções complicadas, especial-mente em curvas e diagonais. Nesses casos também é comum encontrarmos as maiúsculas ligeiramente comprimidas em sua largura. Essa operação tem por objetivo deixá-las mais compatíveis em relação às minúsculas, e subjetivamente sugerir um trajeto mais curto no traçado dos caracteres (e consequentemente uma construção mais veloz).

Mesmo inclinada a maiúscula pode conservar serifas romanas ou adaptar em sua estrutura serifas transitivas semelhantes às encontradas nas minúsculas. Cabe ao designer verificar se a aplicação de uma serifa de transição em uma estrutura estática e tradicionalmente retilínea não está funcionando como um falso indicador de movimento – principalmente se nenhuma outra estrutura da letra indica qualquer tipo de transição.

O desenvolvimento de um conjunto de maiúsculas de aspecto ainda mais cursivo passa pela transformação da estrutura retilínea do desenho romano em uma construção mais sinuosa – aproveitando as longas hastes existentes em diversos caracteres para explicitar a fluência do movimento [fig. 116]. Seqüências de ângulos retos e diagonais podem ser transformadas em curvas, como no caso da letra ‘E’ ou no ‘W’, por exemplo, (mesmo efeito já observado em relação à otimização da forma de algumas minúsculas).

[ A, a, E ] Zapfino Extra One, Voluta Script, Scriptina.

MAIÚSCULAS SINUOSAS 'A' em padrão cursivootimização do movimento em looping

terminais sinuosos'E' em padrão cursivo

Para incrementar características cursivas em um conjunto de maiúsculas, o designer de tipos pode optar por modelos 116.

otimizados, estruturas sinuosas, ou pelo alongamento das hastes – sugerindo uma construção acelerada e informal.

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3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

Com o desenvolvimento de um desenho mais fluente e possivelmente curvilíneo, passa a fazer sentido a implementação de serifas transitivas e outras estruturas que indiquem movi-mento. Não tomar a serifa como um acessório é fundamental em projetos dessa natureza: não se trata de um simples arremate, mas do encerramento de um gesto que indica o método pelo qual a letra é construída.

Outro recurso bastante encontrado em fontes digitais de simulação caligráfica de caráter cursivo é o desenvolvimento de uma versão caudal – Swash Caps – onde longas projeções ornamentais são aplicadas no intuito de indicar o ponto inicial ou terminal do traçado dos ca-racteres [fig. 117]. Por ser um recurso geralmente localizado em uma região externa a estru-tura de reconhecimento da letra, é possível trabalhar a extensão caudal de maneira bastante ornamental e sinuosa. Maiúsculas Swash são claras menções à tradição caligráfica.

Na tradição tipográfica as maiúsculas Swash geralmente são projetadas para acompanhar as minúsculas itálicas. No entanto algumas apresentam variações ainda mais cursivas (si-nuosas) que as maiúsculas encontradas na versão itálica de uma fonte, servindo como uma espécie de acessório de luxo (pelo caráter ornamental) em grandes projetos tipográficos.

Alguns conjuntos Swash apresentam minúsculas com extensões semelhantes: constituem variações desenvolvidas para ser utilizadas no final ou no início das palavras (dependendo para qual lado se projeta a estrutura). Nestas minúsculas, a extensão caudal pode se projetar para qualquer lado da letra, e essa possibilidade é utilizada justamente no sentido de indicar se o glifo foi projetado para uma localização inicial, isolada ou terminal.

Nas maiúsculas a projeção caudal geralmente se situa na parte esquerda dos caracteres, pois em textos corridos a localização das maiúsculas é sempre inicial. Ao implementar uma extensão voltada para o curso da escrita (direita), o designer de tipos precisa prever o possí-vel choque entre hastes de letras distintas, optando por extensões reduzidas ou por alonga-mentos abaixo da linha de base da escrita15. Pelo mesmo motivo maiúsculas caudais não são indicadas para compor textos usando apenas caixa alta – a não ser que o aspecto emaranha-do e possivelmente confuso da composição seja algo pretendido.

15 O que, entretanto, não evitaria o choque com projeções descendentes.

[ A, Q, e ] ACaslon Swash Italic: Adobe, 1992.projeção para baixo da baseline

SWASH CAPS

[ K, U ] Vivaldi: URW, 1993.

caráter curvilíneo acentuado

extensões ornamentais

Swash Caps: maiúsculas iniciais de aspecto curvilíneo com extensões e floreios.117.

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3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

: cruzamento do contraponto

As letras apresentam em sua estrutura uma rica combinação de hastes curvas e retas arti-culadas em diferentes sentidos. Em um processo contínuo de desenho essa situação obriga o calígrafo a realizar mudanças freqüentes na orientação da ferramenta, fazendo com que os pontos que determinam o contorno das letras troquem de posição: passando de externo a interno e assim sucessivamente16.

O cruzamento do contraponto de uma haste é um acontecimento extremamente comum nas caligrafias de ductus contínuo – especificamente naquelas executadas com ferramentas de ponta chata. A característica inflexível da extremidade da ferramenta, somada a sua larga su-perfície de contato tem a capacidade de tornar aparente o movimento de inversão no contorno das curvas, destacando as mudanças de direção realizadas. Evidenciar esse movimento na estrutura de uma fonte digital é uma maneira interessante e eficiente de sugerir a existência de uma linha mestra de construção, e conseqüentemente de um ductus [fig. 118].

A principal maneira de se indicar o cruzamento dos pontos na estrutura de uma letra é criando uma pequena mudança de direção na curva que constrói a haste através de pontos adicionais e segmentos de curva de encaixe cúspide. Para essa mudança se tornar perceptível é inte-ressante que o redirecionamento ocorra de maneira clara, evitando o encontro adnato (sutil) entre os dois segmentos de curva. Essa sugestão naturalmente torna o contorno dos caracte-res mais irregular resultando em uma construção vetorial ligeiramente mais complexa17.

Vale ressaltar ainda que nem todas as quebras de continuidade indicam o cruzamento de con-trapontos: é preciso compreender o movimento executado originalmente pelo calígrafo para

16 Rotação, translação e expansão – movimentos apresentados no capítulo 2.1.4 - a influência da ferramenta na aparência dos caracteres, que aborda a construção do contraste na caligrafia.

17 Isso é amplificado na medida em que a natureza irregular do contorno precisa ser refletida em outras estruturas dos caracteres, como serifas, terminações e etc.

CRUZAMENTO DO CONTRAPONTOcurva acidentada,inflexão invertida

[ t, h, e ] Zapfino Extra One: Linotype, 2003. [ e ] Times New Roman Italic: Monotype, 1992.

cruzamento suavizadoinflexão acompanha as curvas

contraponto

O cruzamento do contraponto é uma informação relevante sobre o método contínuo de construção. Em muitas fontes digitais 118.

esse indício é eliminado na fase de vetorização – onde os contornos acabam aplainados em busca de um acabamento mais

suave.

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3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

distinguir essa ocorrência de outra imperfeição qualquer no contorno de uma fonte digital. O cruzamento geralmente ocorre em curvas apresentando uma inversão completa na direção do movimento.

Uma excelente realização nesse sentido é o conjunto de itálicas desenvolvido pelo desig-ner de tipos Fred Smeijers para a fonte digital Renard (1993), distribuída pela TEFF (the Enschedé Font Foundry) [fig. 119]. No desenho de diversas letras podemos perceber a inver-são de posição dos pontos externos da haste simulando a existência de uma linha mestre de construção.

Na maioria das fontes digitais de simulação caligráfica, entretanto, as informações visuais relacionadas aos movimentos da ferramenta caligráfica (modulação e cruzamento de con-trapontos) acabam sendo removidos ou deformados por conta de falhas no processo de di-gitalização. Em outros casos, em nome de um desenho mais regular e bem acabado, essas informações são removidas ou suavizadas em curvas aplainadas que não exprimem uma das principais marcas deixadas por esta ferramenta.

: irregularidade

As escritas de ductus interrompido tradicionalmente caracterizam-se por possuir uma aparên-cia associada à cânones formais rígidos, pautados sobretudo pela reprodução parcimoniosa de letras bem articuladas. Já nos modelos cursivos de escrita, a forma dos caracteres sofre mais influência do movimento executado pelo calígrafo que de determinado padrão de cons-trução, sendo portanto mais suscetíveis a ocorrências particulares relacionadas não somente ao gesto mas ao ferramental utilizado na operação.

Em uma escrita de caráter contínuo, o calígrafo pode abrir mão da qualidade de execução pela economia de tempo, priorizando a rapidez do movimento em relação ao acabamento das letras. Essa situação pode ser intencionalmente reproduzida em uma fonte digital de simula-ção caligráfica. Embora nem toda escrita cursiva seja necessariamente realizada de maneira veloz ou descuidada, a irregularidade das formas é uma conseqüência natural desse proces-so, gerando uma variedade de situações muitas vezes interessante para a escrita.

[ a, c, e, n, o, k ] Renard Italic n1: TEFF, 1993.

CARACTERÍSTICAS CALIGRÁFICAS ACENTUADAS POR INFORMAÇÕES DE CONTORNO

looping cruzamento

características suavizadas

[ a, c, e ] AGaramond: Adobe, 1996.

Renard Italic: diversas informações preservadas no contorno da fonte sugerem a origem manuscrita dos caracteres.119.

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3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

Apesar da irregularidade não constituir exatamente um objetivo na caligrafia, é uma caracte-rística relevante principalmente na simulação digital de modelos de escrita manual. A precisão oferecida pela ferramenta tipográfica de construção mostra-se em muitos casos incompatível com a realidade material e instável das inúmeras técnicas de registro. Ao eliminar pequenas irregularidades nos modelos tipográficos, o designer de tipos acaba muitas vezes removendo informações associadas ao processo de construção de escritas manuais.

É importante ressaltar que irregular não quer dizer necessariamente mal acabado. A irregula-ridade pode ser uma característica conservada de modo extremamente técnico, envolvendo um planejamento complexo de situações e possibilidades combinadas para se obter um efeito desejado.

Podemos identificar três ocorrências particulares associadas a esse tópico:

- irregularidade no acabamento;

Realização de um contorno tipográfico apresentando oscilações e ruídos, com o objetivo de simular uma aparência derivada de um processo veloz e instável de registro – onde variáveis materiais interagem proporcionando um acabamento naturalmente irregular [fig. 120]. Essa operação exige um contorno mais complexo composto por mais pontos e segmentos de cur-va, o que tende a tornar os arquivos mais pesados e passíveis de apresentar problemas de ordem técnica.

A simplificação do contorno por sua vez, pode tornar a aparência da fonte digital artificial. Pequenos acidentes fazem parte da execução caligráfica: eliminar a irregularidade do contor-no das letras significa remover uma marca importante do meio manuscrito. Cabe ao designer de tipos avaliar que nível de ruído vale ser conservado na estrutura tipográfica em fontes digitais de simulação caligráfica.

- irregularidade no alinhamento horizontal da escrita;

Recurso que consiste em variar o posicionamento de hastes e letras nas linhas que compõem a grade horizontal de construção de uma fonte digital: linha de base (baseline), linha das as-cendentes, linha das descendentes, altura-de-x e linha das capitulares.

Na prática isso significa desalinhar os caracteres em relação a essas linhas referenciais, pro-porcionando um balanço na distribuição das hastes na composição do texto. A variação pode ser acompanhada ou não pelo redimensionamento do caractere ou pelo estabelecimento

[ O ] Viner Hand ITC: Design Galapagos Group, 1995.

IRREGULARIDADE NO ACABAMENTO

Em escritas mais velozes, 120.

o acabamento das letras

pode apresentar um aspecto

acidentado e irregular.

Page 135: pesquisa de mestrado - Fabio Lopez

O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 135

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

de alturas-de-x diferentes – o que também pode proporcionar uma variação interessante. O simples desalinhamento proporciona um balanço visual satisfatório e aproxima a experiência tipográfica da realidade da execução de caligrafias menos formais [fig. 121].

É importante lembrar que, ao redimensionar os caracteres a espessura das linhas deve ser mantida uniforme. Essa espessura tem relação com a ferramenta caligráfica que está sendo sugerida na fonte digital: qualquer alteração nesse sentido reduz a factibilidade do modelo que está sendo sugerido.

Com o intuito de evitar que essa variação proporcione algum acidente gráfico (ex. repetição de determinadas soluções nos conjuntos pré-estabelecidos) o designer de tipos deve cons-tantemente testar situações de uso – e em alguns casos pode ser interessante estabelecer classes tipográficas dentro do conjunto criado para solucioná-las de maneira semelhante.

- irregularidade na métrica.

Com o objetivo de tornar a distribuição de caracteres mais informal, o designer de tipos tem a opção de variar o espaço lateral (sidebearings) destinado ao ajuste de métrica dos caracte-res [fig. 122]. Esse recurso não é muito comum na medida em que o próprio ajuste ótico das letras proporciona uma variação lateral mínima. A relação desse recurso com o aspecto cur-

sivo do traçado é vaga: diz res-peito apenas ao aspecto informal que uma escrita acelerada pode apresentar. Para o caso de alfa-betos cursivos conectados essa alteração envolve ainda o ajuste dos elementos de conexão e das hastes de ligação.

Para concluir, vale a ressalva de que nem todas essas caracterís-ticas precisam estar associadas a

Zapfino PRO: Linotype, 2003.

IRREGULARIDADE NO ALINHAMENTO HORIZONTAL DA ESCRITA

região das capitulares (cap zone)

região das descendentes (descender zone)

região das ascendentes (ascender zone)

região da altura-de-x (x-height zone)

região da linha de base (baseline zone)

Em escritas mais fluentes podemos perceber um desalinhamento horizontal no posicionamento de hastes e letras, fazendo 121.

com que as linhas guias que tradicionalmente regem a construção tipográfica transformam-se em regiões.

IRREGULARIDADE NA MÉTRICA

Scriptina: Apostrophic Labs, 2001.

Desequilíbrios propositais na métrica tipográfica visam reproduzir 122.

irregularidades espaciais presentes em escritas realizadas de

maneira mais acelerada e informal.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 136

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

um desenho tipográfico para a sugestão de um traçado manuscrito de caráter contínuo. Mas a implementação dessas estratégias, quando bem articuladas, tende a gerar uma experiência bastante próxima de um modelo concreto de escrita. É impossível estabelecer como regra a utilização de qualquer uma dessas características, pois algumas se incompatibilizam e outras exigem ajustes adicionais. O julgamento de relevância e adequação fica a critério do designer de tipos e da experiência que este pretende executar.

3.2.3.5. A representação visual do ductus interrompido em fontes digitais de simulação caligráfica

Um processo interrompido de construção tem como principal característica a decomposição do gesto de escrita em uma quantidade maior de movimentos. Essa decomposição é conse-qüência de dois fatores centrais (que podem estar associados ou não):

- a dificuldade técnica de se realizar o movimento ascendente com determinadas ferramentas caligráficas (em angulações específicas);

- e a intenção do calígrafo em controlar de maneira mais rigorosa o processo de escrita, de-senvolvendo modelos precisos e bem articulados de letras a partir de esquemas rígidos de construção.

Nos projetos de simulação de desenvolvimento conceitual, as estratégias utilizadas para su-gerir modelos de escrita relacionados a essa condição de construção envolvem a reprodu-ção das características previamente observadas no mapeamento proposto no capítulo 2.2.3. desta dissertação. Como algumas dessas características não respondem exclusivamente a modelos interrompidos – mas a alfabetos tipicamente desenvolvidos para impressão (postura ereta, serifas padronizadas, alinhamento regular, etc.), convém destacar apenas aquelas que tem capacidade de articular um significado específico, como:

: conexão abrupta entre hastes curvas e retas

Nas escritas de ductus interrompido o encontro entre uma haste curva e uma haste vertical tem natureza abrupta [fig. 123], pois as duas estruturas são construídas de maneira indepen-dente. No desenvolvimento de fontes digitais de simulação caligráfica, o designer de tipos

PROCESSO INTERROMPIDO DE CONSTRUÇÃO

: conexão abrupta entre hastes curvas e retas

2

[ a, n ] Galliard BT: Bitstream, 1993. [ n, m, h ] Scrivano: Outras Fontes, 2007.

downstrokes

A conexão abrupta entre curvas e retas é a principal característica visual das escritas de ductus interrompido.123.

Page 137: pesquisa de mestrado - Fabio Lopez

O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 137

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

deve se preocupar em reproduzir na estrutura dos caracteres tal particularidade, evitando eliminar esse índice em nome de uma aparência mais suave e bem acabada – o que pode proporcionar um aspecto artificial ou ambíguo.

: encontro entre duas curvas descendentes evidenciado na construção do bojo

Como o bojo de uma escrita de ductus interrompido é gerado através de dois ou mais mo-vimentos coordenados, uma estratégia comumente utilizada na alusão a estruturas dessa natureza é evidenciar sutilmente o encontro entre esses dois segmentos de curva [fig. 124]. Esse encontro é sugerido através de um contorno acidentado no ponto de contato entre es-sas duas partes. Em algumas situações (angulações específicas) esse encontro pode ficar bastante evidenciado: se o traço se direciona para a direita ou esquerda, seu início pode ser pontiagudo (esquerda) ou largo (direita).

Enquanto o processo contínuo de construção é facilmente relacio-nado a uma escrita de natureza cursiva, o método interrompido não chega a gerar um conjunto de características visuais facilmente identificáveis na estrutura dos ca-racteres. O desenvolvimento de experiências de caráter interrom-pido geralmente apóia-se em es-tratégias mais expressivas na ar-ticulação do conceito pretendido: apresentando um preenchimento falho ou um contorno irregular, por exemplo. Estas marcas evidenciariam um método caligráfico de construção cabendo às estratégias listadas nesse item apenas a tarefa de qualificar a referência sugerida.

A dificuldade em se articular características próprias faz com que os modelos interrompidos de caligrafia sejam pouco associados ao clichê de mercado que caracteriza a categoria comer-cial de fontes ‘caligráficas’18. Pelo mesmo motivo, a maioria das fontes digitais de simulação baseadas em um método interrompido apóiam-se na reprodução de referências históricas, sendo bastante comum portanto, a utilização de originais concretos.

18 O que pode ser percebido no desigual interesse observado em relação a esses dois ‘tipos’ de construção: en-quanto as fontes de simulação cursivas e informais destacam-se comercialmente, as ‘caligráficas’ de caracterís-tica pausada (fora do clichê) não obtém o mesmo sucesso. O reflexo disso está na quantidade de lançamentos das duas categorias.

PROCESSO INTERROMPIDO DE CONSTRUÇÃO

: encontro entre duas curvas descendentes evidenciado na construção do bojo

[ o, s ] Lucida Blackletter: Type Solutions, 1991.

Indicação clara do encontro de dois segmentos de curva na formação de 124.

bojos em escritas de construção interrompida.

Page 138: pesquisa de mestrado - Fabio Lopez

O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 138

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

3.2.4. Estratégias de alusão à perícia ferramental

De acordo com uma abordagem mais tradicional e técnica da caligrafia, a qualidade atribuída a um registro manuscrito tem relação direta com a capacidade do calígrafo em aproximar-se da perfeição na execução da escrita.

Essa qualidade pode ser observada através de fatores como a combinação adequada de ma-teriais (suporte, substância corante e ferramenta), na combinação adequada entre a técnica de construção e o modelo de escrita, e através do controle gestual e técnico exercido sobre todo o aparato material e instável associado à atividade. Somados ao apuro estético e ao talento particular do calígrafo esses fatores colaboram com a criação de uma escrita precisa e consistente, cuja qualidade pode ser observada através de aspectos como:

: manutenção de um ritmo constante na construção da escrita (considerando forma e contra-forma);

: a criação de um contraste cíclico e regular;

: o alinhamento dos caracteres em relação à linha de apoio;

: o alinhamento e a equivalência na relação das hastes;

: a equivalência formal entre estruturas próximas (arremate e terminações);

: o contorno bem definido19;

: o preenchimento consistente do interior das letras.

Como a caligrafia constituía a principal referência formal utiliza-da pelos impressores no desen-volvimento das primeiras fontes tipográficas, os mesmo princípios que norteavam o padrão de qua-lidade em um meio passaram a ser imediatamente adotados no outro. No entanto, na medida em que tanto letras quanto textos in-teiros passaram a ser padroniza-dos e produzidos por meios me-cânicos de impressão, a precisão

19 Mesmo que isso signifique um contorno repleto de ruídos. Basta que essa característica seja implementada de maneira regular e consistente – correspondendo a uma característica associada ao suporte, por exemplo.

[ de ] Zapfino Extra Ligatures, [ quem ] Paul 5, [ M ] Vivaldi.

ESTRATÉGIAS DE REPRESENTAÇÃO VISUAL DE PERÍCIA FERRAMENTAL

imperícia

integração

ornamentação

Estratégias de alusão à perícia ferramental.125.

Page 139: pesquisa de mestrado - Fabio Lopez

O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 139

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

técnica acabou deixando de ser um simples ideal para constituir um padrão de trabalho. Precisão formal e qualidade técnica tornaram-se características associadas ao controlado ambiente da tipografia mecânica.

No desenvolvimento de uma fonte digital de simulação caligráfica, o designer de tipos precisa encontrar outros caminhos (além da precisão) para associar a noção de qualidade técnica a uma experiência manuscrita [fig. 125]. Algumas das principais estratégias adotadas nesse sentido dizem respeito à explicitação da habilidade manual no controle dos aspectos instru-mentais da escrita, como:

: ornamentação (como ostentação de virtuosismo);

: integração (como um modo particular de ornamentação);

: e imperícia (por oposição, como demonstração intencional de imprecisão).

3.2.4.1. Ornamentação

Buscando sobrevida em um contexto modificado pela nova tecnologia, o calígrafo encontrou novas possibilidades profissionais em realizações mais autorais e expressivas utilizando o alfabeto como uma ferramenta de composição bastante versátil20. Como foi previamente ob-servado, o principal recurso utilizado na expressão dessa versatilidade formal consistiu na elaboração de modelos mais rebuscados e ornamentais. Através do ornamento o calígrafo poderia salientar na execução do registro não apenas sua capacidade técnica, mas seu bom gosto e habilidade na exploração estética de uma escrita elaborada e de difícil construção.

Isso não quer dizer que a escrita tenha se tornado ornamental apenas a partir da invenção da tipografia. Mas em virtude das rigorosas restrições físicas impostas pela tecnologia tipo-gráfica, a espontaneidade do ornamento não encontrou o mesmo respaldo no trabalho dos impressores – principalmente nos primórdios tecnológicos da invenção. Além da difícil tarefa de se recriar estruturas rebuscadas com instrumentos de desgaste tridimensional (durante a criação das matrizes de metal), a ornamentação dos caracteres resultava em problemas complexos de espacejamento.

Paulatinamente, a limitação física foi transformada em partido estético e a evolução da experi-ência tipográfica conduziu a escrita rumo a uma simplificação formal – sentido diametralmen-te oposto ao adotado pela caligrafia. Diante de formas austeras e racionais encontradas na tipografia, a ornamentação (percebida através de floreios, extensões e arremates exuberan-tes) transformou-se por clara oposição em um importante índice caligráfico – principalmente diante de audiências pouco conhecedoras de modelos mais clássicos e formais.

Com o surgimento e a evolução de técnicas fotográficas de composição (fotocomposição) diversas barreiras materiais acabaram sendo eliminadas permitindo novamente o desenvolvi-mento (e o resgate) de modelos ornamentais e decorados no ambiente tipográfico.

20 Versatilidade esta que não caracterizava o ambiente tipográfico, limitado pelas características físicas do metal.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 140

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

Na tipografia digital, após um breve interlúdio técnico (causado pela dificuldade de adaptar uma tradição formal de 500 anos em um suporte inédito), a escrita pôde novamente encontrar um campo fértil para a experimentação estética dando vazão e profundidade ao anseio por maior liberdade formal.

No desenvolvimento de uma fonte digital de simulação, podemos destacar a ornamentação da escrita como uma importante estratégia associadas à representação visual da perícia e do virtuosismo na caligrafia [fig. 126]. Essa perícia é demonstrada através da execução técnica de formas rebuscadas e de difícil concepção, demonstrando um controle apurado sobre o aspecto ferramental da escrita. O ornamento expande a letra através de estruturas mais com-plexas, exigindo maior habilidade na manutenção das características associadas à qualidade de execução (contraste, equivalência, alinhamento, etc.).

Nos modelos conceituais mais formais, o ornamento é encontrado com mais freqüência em regiões de importância secundária – interferem apenas sutilmente na estrutura de reconhe-cimento dos caracteres – constituindo basicamente extensões e floreios terminais. Com o intuito de não prejudicar a construção e a identificação do texto, essas estruturas ornamentais geralmente são projetadas em direção à áreas externas nas palavras: acima, abaixo, ou em uma lateral margeada por um espaço.

Em modelos conceituais mais expressivos e experimentais, o ornamento pode transformar-se em uma estratégia de construção, interferindo não apenas nas áreas secundarias mas na pró-pria estrutura de reconhecimento dos caracteres. Nesse caso, as hastes podem transformar-se em estruturas decorativas, rebuscando a aparência das letras rumo à derivação formal.

Podemos identificar quatro maneiras de ornamentação tipográfica (três instâncias e uma in-termediação):

: interna ou estrutural;

O ornamento é parte da estrutura de reconhecimento dos caracteres, substituindo uma haste ou bojo por um componente decorativo, ou constituindo parte significativa desses elementos.

ORNAMENTAÇÃO

[ V, Q ] Zapfino Extra LT Two: Linotype, 2003.

A ornamentação é um recurso 126.

utilizado pelo calígrafo para

tornar a composição mais

interessante, e demonstrar

o controle operacional

exercido sobre o aspecto

instrumental da caligrafia.

Page 141: pesquisa de mestrado - Fabio Lopez

O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 141

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

: externa ou acessória;

O ornamento opera fora da estrutura de reconhecimento dos caracteres extrapolando a letra através de floreios e extensões decorativas.

: intermediária;

O ornamento é aplicado em estruturas de arremate como terminais e serifas. Dependendo da importância que essas construções (arremates decorativos) apresentam em relação à letra, o ornamento pode se confundir com a estrutura de reconhecimento dos caracteres ou não, podendo portanto ser considerado interno ou externo, estrutural ou acessório21.

: apoio

O ornamento não está associado a nenhum caractere específico, mas acompanha o conjunto possibilitando a criação de molduras e decorações ornamentais no mesmo estilo do alfabeto proposto [fig. 127].

3.2.4.2. Integração dos caracteres como estratégia de ornamentação

Uma das principais dificuldades encontradas pelos primeiros impressores, dizia respeito à fragmentação de um sistema de escrita pautado em muitos casos por uma integração parcial ou completa de caracteres e palavras. O mecanismo tipográfico de impressão precisou que-brar a escrita:

“Estes primeiros tipógrafos enfrentaram grandes dificuldades na tentativa de adap-tar as escritas manuscritas da época aos tipos. A princípio, sentiram a necessidade de transformar em caracteres todas as ligaturas, acentos, marcas de pontuação e

21 A ornamentação da escrita possibilita inúmeras formas de apresentação. Esta dissertação não tem por objetivo classificar o ornamento por sua forma, mas pela importância que possui na estrutura tipográfica no processo de articulação das características caligráficas. Resumindo: a dissertação se interessa pela ornamentação como es-tratégia, mas não pelo ornamento enquanto estrutura. Vale ressaltar ainda que todas as categorizações propos-tas tem por objetivo oferecer uma ferramenta de analise teórica: natural que na prática as categorias se misturem e interpenetrem, dificultando em alguns casos a aplicação dos modelos teóricos fornecidos nesse estudo.

estrutural externa intermediária

[ B ] Vivaldi, [ D ] Adobe Caslon, [ K ] Zapfino Extra One, Champion Script Pro.

NATUREZA DO ORNAMENTO

apoio

As instâncias de ornamentação dos caracteres.127.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 142

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

abreviações. Algumas fontes de Gutenberg eram compostas por quase 300 tipos. Aldus Manutius chegou a desenvolver uma fonte que continha 600 caracteres para publicar seus livros em grego.” (Farias, 2001: 54)

Com a progressiva adaptação da letra manuscrita ao sistema mecânico de composição, a integração observada através de caracteres interligados passou a se limitar a um conjunto reduzido de sinais compostos conhecidos por ligaturas [fig. 128].

Algumas dessas ligaturas tinham finalidade puramente técnica: corrigir pequenas imperfei-ções na composição tipográfica. Essas imperfeições eram causadas pela seqüência de dois ou mais caracteres cujo encontro provocava algum tipo de inconsistência no espacejamento interno das palavras. Quando esse contato não era resolvido por intermédio do ajuste de métrica ou pela criação de um ajuste de kerning, o designer de tipos se via obrigado a desen-volver um sinal composto para substituir o par conflituoso. Na maioria dos casos as ligaturas tipográficas são compostas pela letra ‘f’ minúscula e outro caractere: ao projetar-se à frente, o braço do ‘f’ colide com a haste vertical de diversas letras como ‘b’, outro ‘f’, ‘h’, ‘i’, ‘j’, ‘k’, ‘l’. Segundo Bringhurst, as ligaturas requeridas pelas especificidades do desenho de uma fonte devem residir sempre em seu conjunto básico (2005: 341) [fig. 129].

Já as ligaturas herdadas da caligrafia não tinham exatamente este mesmo intuito, e não eram produzidas a partir de nenhuma necessidade específica – uma vez que o espacejamento na escrita manual deriva de um ajuste visual bem mais flexível. Essas ligaturas procuravam

Nos tipos móveis desenvolvidos por Gutenberg é possível observar uma grande variedade de ligaturas: o objetivo era manter a 128.

mesma textura tradicionalmente compacta das elaboradas escritas góticas.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 143

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

reviver soluções ornamentais e inusitadas encontradas nos manuscritos e acabaram trans-formando-se em um capricho reservado aos impressos de maior qualidade e apuro. Como foi observado previamente não havia limite para seu desenvolvimento.

Dessa maneira, podemos observar a distinção existente entre ligaturas ‘caligráficas’ e ligatu-ras exclusivamente tipográficas. Enquanto as ligaturas caligráficas tem origem na ornamenta-ção da escrita ou na otimização do desenho das letras (movimento), as ligaturas tipográficas nascem da necessidade de se oferecer uma solução gráfica para problemas de composição (encaixe). Na tipografia as ligaturas que não constituem soluções gráficas específicas tam-bém são chamadas de ornamentais ou arcaicas (quaint).

As ligaturas caligráficas tem por objetivo reintroduzir características visuais tradicionalmente associadas à caligrafia no ambiente tipográfico, proporcionando através de uma composição menos fragmentada e mais complexa um índice de ornamentação e fluência [fig. 130].

Na primeira geração de fontes digitais as ligaturas adicionais não encontravam espaço para serem alocadas em um único conjunto de caracteres: as fontes ISO básicas acomodavam apenas duas ligaturas tipográficas (‘fi’ e ‘fl’). Para resolver esse problema os designers cria-vam arquivos adicionais, geralmente chamados de ‘extra’ ou ‘expert’, alocando as ligaturas complementares em locais destinados a caracteres normais.

Apesar de viabilizar a apresentação desses glifos, essa solução obrigava o usuário da fonte digital a substituir manualmente os pares transformados em caracteres especiais: a substitui-ção automatizada era dificultada pela coordenação de dois arquivos distintos – operação que alguns softwares não realizavam.

AD Scala Sans Romein: FontFont, 1991.

LIGATURAS TIPOGRÁFICAS

Ligaturas tipográficas tem 129.

como objetivo central corrigir

pequenos problemas de

natureza técnica.

LIGATURAS CALIGRÁFICAS

Zapfino Extra Ligatures: Linotype, 2003.

continuidade e integração

Ligaturas caligráficas 130.

procuram reintroduzir

características próprias ao

ambiente da escrita manual.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 144

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

Com o surgimento do formato OpenType, caracterizado entre outras coisas pelo seu enorme potencial de armazenamento, as ligaturas complementares puderam ser alocadas em um único arquivo facilitando o acesso e o emprego desses sinais. Os recursos de programação permitiram ainda o planejamento prévio de substituições contextuais e aleatórias, restabele-cendo parte da variedade da escrita através de combinações diferenciadas – apresentando soluções inusitadas e muitas vezes exuberantes.

Nas fontes digitais de simulação caligráfica, o desenvolvimento de ligaturas ornamentais constitui uma importante estratégia de representação visual voltada para a articulação de características associadas à perícia ferramental. A qualidade estética dessas construções or-namentais associada a outros recursos tecnológicos (substituição automática contextual, por exemplo) torna essa categoria de fontes digitais uma experiência sem paralelos no ambiente tipográfico.

3.2.4.3. Por oposição: imperícia ferramental como estratégia de representação visual

Em uma escala que oscila entre o detalhe microscópico e o acontecimento facilmente per-cebido, é possível afirmar que qualidades como precisão e perfeição não são próprias a pro-cessos manuais de registro. As inúmeras condições físicas e materiais a que o calígrafo está sujeito enquanto trabalha são responsáveis por tornar praticamente impossível a reprodução exata de qualquer forma manuscrita. Olhando com atenção, mesmo em um trabalho de gran-de qualidade técnica podemos encontrar uma grande quantidade de irregularidades (ainda que mínimas) na reprodução dos modelos de uma determinada letra.

Na articulação do conceito caligráfico em uma fonte digital de simulação, pode ser interes-sante ao designer de tipos evidenciar as características artesanais da escrita através de uma demonstração ostensiva da falta de perícia instrumental. O designer acaba se utilizando do erro e da imperfeição para evidenciar a condição material da escrita manual, ou seja, de-monstrar por oposição (ainda que de maneira desproporcional ou exagerada) características exclusivamente próprias ao meio caligráfico.

Em muitos exemplos é possível perceber o significado ‘caligráfico’ sendo construído sobre um ideal de imprecisão e irregula-ridade – observada tanto no acabamento quanto na própria estrutura dos caracteres. A opção por um desenho que apresente um considerável nível de imperfeição es-trutural, acabamento irregular ou posicio-namento disforme acaba funcionando efi-cientemente na tarefa de simular a nature-za artesanal da escrita [fig. 131].

Algumas fontes digitais apresentam como recursos adicionais a essa sugestão a uti-

IMPERÍCIA FERRAMENTAL

Paul 5: Eyesaw Fontz, 1997.

Características visuais associadas ao desenvolvimento 131.

de uma escrita imprecisa tem por objetivo sugerir um

caráter menos tecnológico (e mais humano) em peças

de comunicação.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 145

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

lização de manchas de tinta, respingos e borrões externos aos caracteres (situados ao longo da massa de texto). Esses artifícios reforçam a imprecisão da escrita apresentando deficiên-cias forjadas (ou conservadas intencionalmente) no controle da ferramenta e da substância corante. São recursos extra-alfabéticos, porque se localizam fora do conjunto de sinais e elementos que tradicionalmente compõe uma tipografia.

Na maioria dos casos, as estratégias apresentadas sobre o conceito de irregularidade optam por uma representação literal do objeto simulado: no lugar de fazer apenas uma sugestão ou referência ao universo caligráfico. Constituem portanto, qualidades essencialmente expres-sivas.

Podemos destacar as seguintes estratégias utilizadas para a representação da irregularidade como alusão à imperícia ferramental:

- no contexto dos caracteres [fig. 132]:

: contorno irregular (podem ser observados níveis distintos de irregularidade);

: preenchimento interno falhado;

: desalinhamento entre haste e estruturas equivalentes;

: hastes tortas e curvas imperfeitas (bojos mal formados);

: diferenças entre estruturas semelhantes (como serifas, terminais, bojos e hastes).

- no contexto da composição [fig. 133]:

: utilização de manchas e outros elementos não alfabéticos;

: caracteres dimensionados de maneira desproporcional;

: utilização de uma métrica irregular para desconstruir a compactação da palavra;

: prolongamentos projetados para os caracteres seguintes, causando sobreposições e cho-ques propositais;

: desalinhamento em relação à linha de apoio da escrita.

IRREGULARIDADE NO NÍVEL DOS CARACTERES

: contorno irregular

[ w ] Aquiline [ Q ] Texas Hero

: preenchimento falhado

[ m ] Yexivela

: desalinhamento estrutural

[ m, o ] Comic Sans

: hastes e bojos tortos

[ E ] Amphi

: estruturas diferentes

Características associadas à imperícia ferramental caligráfica manifestas no nível dos caracteres.132.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 146

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

Algumas dessas características foram previamente listadas em outras partes da dissertação. Na maioria das vezes essas ocorrências podem ter origem em diversos aspectos relaciona-dos à escrita.

Convém ressaltar que a imperícia tratada neste capítulo não tem relação com a capacidade técnica do designer no desenvolvimento de uma fonte digital. Os defeitos intencionalmente preservados na estrutura dos caracteres ou na métrica tipográfica constituem, na maioria dos casos, estratégias de representação visual e não problemas de natureza técnica e funcional.

3.2.5. Estratégias de alusão à especificidade da caligrafia enquanto ocorrência espaço-temporal

Como foi previamente observado no capitulo 2.4, uma das principais características asso-ciadas à prática caligráfica diz respeito à variância encontrada na execução dos caracteres. Essa variância é uma condição natural em um processo artesanal de escrita, caracterizado justamente pelo aspecto material e instável do ferramental caligráfico: suporte, substância corante e execução gestual.

Com o surgimento da tipografia mecânica, essa variância foi praticamente eliminada. No pro-cesso de produção dos caracteres tipográficos cada letra é gerada a partir de uma matriz apresentando geralmente um único modelo de letra a ser reproduzido – selecionado ou cons-truído no intuito de otimizar e padronizar a produção de texto. Ainda que no início da tipografia os puncionistas gravassem várias versões para as letras mais comuns, a expansão da ativi-dade impossibilitou que este cuidado perdurasse por muito tempo, conduzindo a maioria das fontes latinas a se limitar em um glifo para a maioria dos caracteres.

No entanto, o uso continuado dos caracteres desgastava a superfície de impressão dos tipos causando a ocorrência de pequenas alterações na forma (sobretudo no contorno) das letras. Dependendo do perfeccionismo do impressor, enquanto esse desgaste não prejudicasse a compreensão do sinal o tipo continuava sendo utilizado fazendo com que uma letra pudesse se apresentar ao longo do texto com minúsculas variações formais22. Essa pequena variância

22 Quando o desgaste era excessivo, o tipo era descartado e posteriormente derretido para a fabricação de novos caracteres.

IRREGULARIDADE NO CONTEXTO DA COMPOSIÇÃO

: manchas

Dear Sara Paul 5

: caracteres desproporcionais : métrica irregular

Scriptina

: sobreposição de extensões

Yexivela

: desalinhamento horizontal

Características associadas à imperícia ferramental caligráfica manifestas no contexto da composição.133.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 147

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

no entanto não era objetivada ou planejada: constituía a conseqüência natural de uma insta-bilidade material, não podendo ser tomada como uma condição que caracterize a tipografia mecânica.

Segundo Bringhurst:

“As letras de Griffo e Colines eram gravadas com imenso cuidado, mas eram ta-lhadas à mão em latão, fundidas, moldadas e compostas à mão, entintadas à mão com tinta feita à mão e impressas manualmente em uma prensa manufaturada em madeira sobre papel feito à mão. Cada passo do caminho introduzia pequenas va-riações que ninguém planejava. (Bringhurst, 2005: 206)

Do ponto de vista coletivo (alfabeto) não era raro encontrar alterações sutis no desenho das letras para corpos distintos. Um caractere ‘a’ em um corpo muito pequeno, por exemplo, po-deria apresentar diferenças significativas em relação ao ‘a’ dessa mesma fonte em um corpo maior. Para garantir uma legibilidade mínima nos caracteres diminutos algumas hastes eram engrossadas e reposicionadas, impedindo assim o fechamento de olhos e outros acidentes de impressão.

Esse tipo de variância entretanto difere completamente do conceito que vem sendo associado ao universo da prática caligráfica – na medida em que essa variância não ocorre dentro de um mesmo conjunto de iguais23. No sentido proposto portanto, podemos concluir que a variância formal dos caracteres havia sido praticamente eliminada da escrita na tipografia de metal.

Se foi praticamente extinta na era do metal, na tipografia digital essa variância foi comple-tamente eliminada [fig. 134]. Como a interpretação digital da tipografia não possui natureza física, os caracteres conseqüentemente não apresentam desgaste ou deformação por uso.

23 Não se trataria de variância, mas de diferença.

A variância da escrita manual está associada à natureza específica de uma ocorrência espaço-temporal. 134.

Esse aspecto foi praticamente eliminado com o surgimento da tipografia de matriz digital.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 148

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

As matrizes digitais são absolutamente idênticas às suas infinitas reproduções, já que a letra é construída pela repetição precisa de um código matemático que orienta o computador a re-produzir os caracteres. Ao eliminar definitivamente a variância a tipografia digital se afastava ainda mais de sua origem caligráfica.

Tecnicamente entretanto isso simbolizou um avanço indiscutível – uma vez que um dos prin-cipais objetivos do tipógrafo (compositor) era justamente produzir textos perfeitos, mantendo a regularidade e o padrão de composição recomendado para uma leitura confortável. Apesar dessa possibilidade, em sua aurora tecnológica a tipografia digital apresentou sérias limita-ções técnicas, principalmente em relação à capacidade de processamento das máquinas (e das dificuldades de interpretação das curvas matemáticas dos computadores). A primeira geração de fontes digitais carecia de qualidade, e tinha seu funcionamento e aparência pre-judicados pela capacidade limitada dos equipamentos.

Com a natural evolução do aparato tecnológico, a tipografia pôde se desenvolver de maneira mais plena e assim aproveitar os recursos disponíveis. Uma das vantagens da informática consiste na imaterialidade do ambiente digital, o que permitiu ao designer de tipos trabalhar a forma dos caracteres de maneira bastante livre – não mais limitado pelos rígidos limites físi-cos do chumbo e suas ferramentas de trabalho24. Essa liberdade favoreceu o desenvolvimen-to de alfabetos irregulares e ornamentais, reintroduzindo o frescor e a vitalidade de modelos inspirados na escrita manual.

De modo paradoxal portanto, ao mesmo tempo em que praticamente eliminou a variância da escrita, a tipografia digital possibilitou a criação de formas mais rebuscadas, permitindo inclu-sive o desenvolvimento de experiências que se aproximassem plasticamente da caligrafia.

Se por um lado essa complexidade formal era interessante, por outro a repetição de letras mais trabalhadas acabava demasiadamente evidenciada na composição – principalmente em textos longos (onde as letras ecoavam em quantidade) ou em alfabetos mais ornamentais. A referência manual reproduzida de maneira idêntica explicitava o aspecto mecânico da tipo-grafia digital, destacando a natureza artificial de um alfabeto que buscava simular a escrita humana.

Para transformar as fontes digitais de simulação caligráfica em experiências mais complexas (nesse sentido) era preciso reintroduzir a variância no âmbito da tipografia digital. Como vere-mos mais adiante, esse recurso foi reintroduzido a partir de evoluções tecnológicas ocorridas principalmente no arquivo digital dando origem a formas distintas de variância. Estas podem ser classificadas em duas categorias:

: variância estrutural (nível primário);

: variância do modelo de letra (nível secundário).

24 Fenômeno este que, como fora mencionado, já havia sido experimentado inicialmente com a fotocomposição.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 149

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

3.2.5.1. Variância estrutural, ou em nível primário

A variância estrutural consiste na utilização de estruturas minimamente diferentes em letras parecidas ou derivadas, evitando o tradicional reaproveitamento de partes comuns – método de desenho conhecido como copiar e colar (copy and paste).

Estruturas como hastes ascendentes, descendentes, terminações, bojos, traves e outras par-tes são construídas individualmente (assim como as letras em que se localizam) acarretando situações minimamente variáveis como posição, extensão, espessura, forma e etc. A variân-cia estrutural proporciona ao alfabeto vitalidade e diversidade – duas características geral-mente associadas a uma escrita manual25 [fig. 135].

Em grande parte dos alfabetos (principalmente em tipografias de texto), a reutilização de es-truturas na construção de letras semelhantes mostra-se uma operação interessante, uma vez que a regularidade criada por estruturas compatíveis favorece uma leitura uniforme. Nesses casos entretanto, as formas não são construídas para serem apreciadas mas rapidamente identificadas.

Já nas fontes digitais de simulação caligráfica essa operação não colabora para a criação do caráter pretendido. O reaproveitamento de estruturas idênticas acaba indicando um método artificial de criação, principalmente porque essas estruturas geralmente são marcadas por idiossincrasias associadas ao universo da escrita manual. Ao diversificar as soluções, o de-signer de tipos evita explicitar o aspecto artificial do método de construção (principalmente em relação a alfabetos que não se apóiam em referências concretas).

3.2.5.2. Variância do modelo de letra, ou em nível secundário

Com o objetivo de simular a diversidade encontrada em um processo manual de registro, a variância do modelo de letra consiste no desenvolvimento de mais de um glifo para uma

25 Como foi apresentado na parte 2 da dissertação, mesmo em modelos caligráficos de construção regular pode-mos perceber uma pequena variação na estrutura das letras.

VARIÂNCIA ESTRUTURAL

[ h, d ] Scriptina: Apostrophic Labs, 2001.

estrutura reaproveitada soluções diferenciadas

[ h, d ] Zapfino Extra One: Linotype, 2003.

A reutilização de estruturas 135.

e terminações semelhantes

prejudica a percepção de

características associadas

à escrita manual.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 150

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

determinada letra em um conjunto alfabético. Essa estratégia vem sendo empregada no am-biente digital em diversos projetos tipográficos, oferecendo ao usuário de fontes opções para tornar a composição mais complexa.

A possibilidade de multiplicar os modelos utilizados na composição de um texto rompe uma tradição tipográfica sustentada por antigas limitações de ordem prática e tecnológica. Com o desenvolvimento de arquivos capazes de armazenar uma quantidade enorme de caracteres e de programar substituições previamente definidas, o designer de tipos não precisa selecionar (ou desenvolver) apenas um glifo por letra – seleção que naturalmente empobrece a experi-ência de simulação caligráfica.

O designer de tipos pode desenvolver ainda caracteres especiais para combinações exclu-sivas, ou glifos alternativos para substituir letras e expressões que se repetem no texto com mais freqüência – como vogais e algumas consoantes (variando de acordo com o idioma)26.

3.2.5.3. A evolução tecnológica da variância na tipografia digital

No intuito de entender como a diversidade formal dos caracteres foi reintroduzida na tipo-grafia digital, é interessante apresentar de modo sucinto a evolução do recurso no ambiente da tipografia digital. Podemos identificar três momentos distintos em relação ao conceito de variância:

: variância manual;

: variância aleatória;

: variância programada27.

26 Pode também resolver questões semelhantes a um par de kerning: no lugar de ajustar determinada combinação de letras através de um espacejamento particular, cria-se um caractere especial contendo os dois sinais fundidos ou desenvolvidos de forma adaptada. Uma fonte digital pode apresentar variantes para todos os caracteres, mas isso geralmente não é indicado ou necessário.

27 Categorias propostas por Robert Bringhurst no livro ‘Elementos do Estilo Tipográfico’ (2005: 205).

A ilimitada capacidade de armazenamento permitiu a criação de experiências de simulação bastante complexas. 136.

Em alguns casos as fontes digitais chegam a apresentar até uma dezena de variantes para um único glifo.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 151

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

3.2.5.4. Variância manual

Na tradição tipográfica, caracteres especiais eram desenhados no intuito de permitir a subs-tituição individual de determinadas letras: glifos integrados ou alternativos eram empregados para acrescentar variedade à composição tipográfica, ou desenvolvidos para substituir pares de caracteres corrigindo acidentes gráficos pontuais. Esse processo de substituição já vinha sendo feito com os tipos móveis fundidos: na Bíblia de 42 linhas de Gutenberg (1455) havia cerca de 35 ligaturas; na Civilité de Robert Granjon (1570) 45; no primeiro itálico de Francesco Griffo (1499) cerca de 70.

No contexto da tipografia digital a substituição de caracteres ainda ocorria de maneira pon-tual. Durante a composição do texto o designer podia selecionar e substituir individualmente determinado glifo, encontrando-o em uma paleta limitada de opções. O processo era traba-lhoso e a intervenção exigia atenção:

“Ao incluir glifos suplementares para certos caracteres, essas fontes oferecem aos tipógrafos o mesmo grau de liberdade (e pedem de volta o mesmo investimento de habilidade e atenção) de que os compositores manuais desfrutavam desde os tem-pos de Gutenberg, Ratdolt e Jenson.” (Bringhurst, 2005: 206)

As famílias tipográficas que possuíam ligaturas e/ou caracteres alternativos em abundância apresentavam um arquivo adicional para alocá-los – geralmente chamado de ‘expert’ ou ‘ex-tra’. A primeira versão da família tipográfica Mrs. Eaves de Zuzana Licko (Emigre, 1996) por exemplo, era equipada com 71 ligaturas: algumas clássicas e delicadas, outras excêntricas e bastante particulares [fig. 137]. Atualmente as distribuidoras passaram a incluir as opções dentro de um único arquivo relançando as fontes no formato OpenType.

Apesar de manual, a operação de substituição inaugurou uma novo patamar de qualidade em relação às fontes digitais de simulação caligráfica. A primeira versão da fonte digital Zapfino Script por exemplo, contava com quatro conjuntos completos de caracte-res para serem substituídos de forma individual pelo usuário do arquivo. Esta versão – anterior ao desenvolvimento do formato OpenType – ainda não fazia uso dos recursos adicionais de ar-mazenamento e automatização, mas já permitia uma composição de texto enriquecida por uma va-

riedade maior de glifos. Esse projeto será apresentado mais a fundo no capítulo 3.2.5.7.

CARACTERES ALTERNATIVOS

Mrs Eaves Ligatures Roman: Emigre, 1996.

O desenvolvimento de conjuntos tipográficos mais completos inaugurou 137.

um novo momento na tipografia digital.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 152

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

3.2.5.5. Variância aleatória

No início dos anos 90, a dupla de designers holandeses Erik van Blokland e Just van Rossum (Leterror) desenvolveu o experimento tipográfico Beowolf (FontShop, 1990). O objetivo do projeto era introduzir um processo de variância aleatória no ambiente digital – universo de criação pautado sobretudo pelo controle absoluto e pela precisão maquinal.

Desenhada por Erik van Blokland, a Beowolf tratava-se de uma fon-te digital de texto (sem caráter caligráfico) que se utilizava do dispositivo de saída para criar perturbações aleatórias a partir de um único conjunto de carac-teres. As letras eram enviadas ao dispositivo de impressão por meio de uma sub-rotina28 conce-bida por Just van Rossum, e o comando provocava distorções em cada letra dentro de certos limites, sempre de modo indeter-minado fazendo com apresentas-sem uma aparência ligeiramente diferente [fig. 138].

“O código PostScript de uma fonte é composto por uma série de instruções que ‘explicam’ para a impressora como desenhar os contornos das letras com base em coordenadas fixas. O código de Beowolf inclui novas instruções, que fazem com que os contornos sejam desenhados “não necessariamente de acordo com as coor-denadas certas, e sim passando por pontos aleatoriamente próximos a elas. Sendo assim, cada vez que um trecho das linhas de contorno de Beowolf é desenhado, (...) ele termina em algum ponto próximo de onde deveria estar, mas nunca no ponto exato” (van Blokland, comunicação pessoal).” (Farias, 2001: 78)

Apesar dos problemas técnicos que dificultaram sua difusão comercial – a fonte não ‘funcio-nava’ em todos os sistemas operacionais e acabou sendo ultrapassada rapidamente pela evolução das máquinas e programas – a Beowolf permanece como um marco importante na história da tipografia digital.

“Em Beowolf há uma crítica implícita ao mundo previsível e bem delineado da ti-pografia digital. (...) Os algoritmos utilizados na descrição de fontes digitais, ainda

28 Uma sub-rotina (ou subprograma) consiste uma porção do código que resolve um problema muito específico.

O projeto experimental Beowolf foi pioneiro ao reintroduzir o conceito de 138.

variância na tipografia digital.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 153

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

mais do que os sistemas de fotocomposição e offset, contribuíram para um controle maior sobre as formas dos caracteres, sugerindo a existência de tipos ‘perfeitos’, absolutamente coerentes e confiáveis.” (Farias, 2001: 79)

O princípio mostrou-se valioso apesar do resultado obtido parecer caótico demais para uma aplicação comercial. O próximo passo seria programar o recurso, limitando a variância a uma gama de opções formais para que fosse possível controlar previamente o resultado final. Este não seria tão imprevisível, mas o recurso significava um avanço considerável para o desen-volvimento de fontes digitais de simulação caligráfica.

3.2.5.6. Variância planejada

Como foi possível perceber através da experiência Beowolf, designers de tipos e programa-dores começaram a coordenar seus esforços no sentido de reintroduzir a vitalidade da escrita no ambiente digital. Por mais contraditório que possa parecer, a evolução dos alfabetos ba-seados em modelos caligráficos aconteceu por intermédio do desenvolvimento tecnológico: principalmente graças a uma capacidade ampliada de armazenamento e novos recursos de programação.

No final dos anos 1990 os criadores dos formatos PostScript (Adobe Systems) e os herdei-ros29 do formato TrueType (Microsoft) chegaram a um acordo em torno de um outro formato conhecido como OpenType .OT ou .OTF. O formato OpenType possuía como recurso tecno-lógico inédito uma grande capacidade de armazenamento, permitindo que um único arquivo digital apresentasse não apenas uma quantidade enorme de caracteres, como ainda a exis-tência de uma ampla paleta de glifos para cada caractere.

“Exteriormente, uma fonte OpenType lembra uma fonte GX ou TTO. Ela pode incluir um colossal conjunto de caracteres com múltiplas codificações (por exemplo, milha-res de caracteres chineses e coreanos e um conjunto pan-europeu latino, grego e cirílico completo, com variantes regionais). Vários estilos de algarismos e diversos conjuntos de versaletes podem residir na mesma fonte em caixa-alta e baixas. A fonte também pode incluir um ou vários conjuntos de regras para substituição auto-mática de caracteres alternativos e ligaturas e para o reposicionamento automático de certos glifos em determinados contextos. Além disso, as formas de uma OT po-dem ser descritas tanto em termos cúbicos quanto quadráticos. Noutras palavras, seu núcleo pode ser tanto PS quanto TT.” (Bringhurst, 2005: 201)

É importante destacar que o software de editoração digital precisa trabalhar junto com a fonte para aproveitar ao máximo os recursos do formato OT – caso contrário suas características pré-programadas não estarão disponíveis. Outra vantagem técnica do formato é sua natureza

29 Originalmente desenvolvido pela Apple Computers.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 154

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

multiplataforma: funciona tanto em PC como em Mac. Nos aplicativos que suportam o formato OpenType os recursos de substituição podem ser ativados ou não, permitindo que o designer não perca o controle sobre decisões automáticas.

O surgimento de arquivos capazes de comportar em suas próprias bases informações de substituição contextual levou a tipografia digital a um novo patamar. Não seria exagerado con-siderar o formato OpenType como sendo o marco divisor de uma segunda geração de fontes digitais – em particular destaque nas fontes de simulação caligráfica.

A capacidade do formato OpenType incluir na própria fonte uma ampla paleta de opções e regras de substituição de glifos possibilita ao designer de tipos projetar não apenas o alfabe-to, mas o funcionamento de um sistema inteligente de composição. Trabalhando com formas complexas e desenhadas de modo especifico, a previsibilidade das substituições viabiliza o encaixe e a articulação de caracteres mais rebuscados e ornamentais. As letras são dese-nhadas especificamente para ocuparem posições previamente definidas, evitando acidentes gráficos e permitindo experiências mais arrojadas [fig. 139].

Algumas fontes digitais de simulação caligráfica (ex. Bickham Script, Champion Script) che-gam a trabalhar com até seis ou sete possibilidades de glifos para as principais letras do alfabeto. Dessa maneira a previsibilidade da substituição evita a repetição indesejada de caracteres com uma freqüência bastante razoável, assegurando uma simulação bastante ve-rossímil e visualmente interessante. Apesar de ainda limitado ao esforço do designer de tipos (quanto maior a paleta desenvolvida maior a variância obtida no conjunto), o resultado final indica o resgate promissor de características associadas à escrita manual que haviam sido eliminadas temporariamente pelo aparato tecnológico de composição.

3.2.5.7. A experiência Zapfino Script: um caso de variância limitada

A fonte Zapfino Script constitui uma experiência tipográfica bastante complexa: um verdadeiro tour de force combinando de maneira exemplar habilidades artísticas e conhecimento tecno-lógico. Pela qualidade da execução e pelo sucesso alcançado no mercado internacional de fontes digitais, pode ser considerada uma referência na história da tipografia, principalmente em relação a projetos comerciais de simulação caligráfica.

Bickham Script Pro: Adobe, 2004.

VARIÂNCIA PLANEJADA - SUBSTITUIÇÃO CONTEXTUAL AUTOMÁTICA

Exemplo de substituição contextual: de acordo com a sequência de digitação, o arquivo tipográfico automaticamente substitui 139.

um ou mais caracteres por combinações previamente planejadas.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 155

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

“O desenho livre e vívido dessa peça determinou as características fundamentais da Zapfino: o casamento de letras estreitas em caixa-baixa com um espacejamento entre as letras relativamente largo, volutas que se sobrepõem com freqüência aos caracteres das linhas subseqüentes e diferentes capitulares misturadas dentro do texto.” (Zapf, 2005: 88)

O registro caligráfico utilizado como referência na construção da fonte digital foi desenvolvido pelo calígrafo e professor alemão Hermann Zapf ainda em 1944 [fig. 140], e já havia sido empregado como modelo para a fonte Virtuosa Script, de 1947. O resultado final desta fonte acabou comprometido em virtude das limitações físicas encontradas na tipografia de metal – principalmente em relação aos prolongamentos ornamentais dos caracteres.

Reconhecendo as dificuldades e a incompatibilidade conceitual da conversão de um trabalho caligráfico em um arquivo digital tipográfico comum, a equipe técnica responsável pelo desen-volvimento do projeto Zapfino Script adotou uma estratégia até então inédita para aprimorar a experiência de simulação. No lugar de trabalhar com um modelo único de alfabeto a fonte contava com quatro conjuntos completos, cada um deles apresentando variações para todas as letras elegantemente desenhadas [fig. 141].

Espécime caligráfico de 1944 serviu de base para a criação da fonte digital Zapfino Script, desenvolvida pela Linotype em 140.

parceria com o calígrafo e designer de tipos Hermann Zapf.

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3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

“O conceito básico no princípio do projeto Zapfino, em 1993, era a mistura automáti-ca de diferentes letras na seqüência dentro de uma palavra. Nenhuma letra deveria ter o design repetido; estavam disponíveis até seis variações. Na versão Linotype da Zapfino, existem apenas quatro variantes para intercambiar manualmente sem um programa de automação. Mas a idéia inicial de ter uma expressão mais indivi-dual e animada na composição ainda era o nosso foco. (...) A Zapfino significa o fim da monotonia usual da tipografia. Ela acaba com a estrutura repetitiva das letras,

Zapfino Script: o projeto sinaliza 141.

um marco no desenvolvimento de

fontes digitais de simulação caligráfica

por qualidades técnicas e estéticas.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 157

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

como era um princípio normal dos tipos de metal. Esse princípio foi levado para a fotocomposição e, em certa medida, para a tipografia digital. Quando usada com cuidado e criatividade, a Zapfino realmente acrescenta variedade e mistura à com-posição.” (Zapf, 2005: 90)

A ausência de um sistema de substituição automática acabou prejudicando a utilização da fonte nos moldes em que foi idealizada. Por descaso ou desconhecimento muitos usuários acabavam utilizando apenas o alfabeto principal da fonte, abrindo mão de um grande trunfo tecnológico do projeto: a variância do modelo de letra.

Em 2003 o projeto foi ampliado e lançado no formato OpenType: diversas letras foram rede-senhadas e novos caracteres projetados para cobrir algumas possibilidades vislumbradas originalmente pelo professor Zapf. Com uma capacidade de armazenamento quase ilimitada para glifos e variantes tipográficas, o formato OpenType permitiu a expansão da experiência de simulação através da fonte Zapfino Extra – digitalizada pelo designer de tipos japonês Akira Kobayashi. Os recursos de substituição contextual também serviram para atenuar os problemas observados na utilização ‘incorreta’ da família tipográfica.

“Para a lista final de caracteres que estariam na Zapfino Extra, decidimos acrescen-tar ligaturas de capitulares para títulos e abreviações, figuras especiais de jubileu, caracteres em caixa-baixa com traços ascendentes para serem usados no começo de palavras, versaletes, números ordinais e signos matemáticos etc., que completa-riam o conjunto existente de letras.” (Zapf, 2005: 92)

Para ampliar essa verdadeira saga tipográfica, Hermann Zapf coordenou ainda o desenvolvi-mento de uma variante mais pesada da Zapfino – a Zapfino Forte – indicada para destaques em composições mais complexas.

3.2.5.8. Os projetos Bickham Script e Champion Script: dois casos de variância planejada

Outro exemplo interessante de experiência buscando restabelecer a variância da escrita na tipografia digital é o projeto Bickham Script Pro, de autoria do designer e calígrafo Richard Lipton (2004). Trata-se de uma fonte digital desenvolvida pela empresa Adobe simulando a caligrafia de George Bickham feita em pena de ponta fina flexível no estilo English Roundhand (copperplate script ou cursiva inglesa comercial). As impressões originais podem ser encon-tradas no tradicional livro ‘The Universal Penman’ (Inglaterra, século XVIII) [fig. 142].

O projeto também se utiliza dos recursos da tecnologia OpenType. Nos aplicativos que supor-tam esse formato, o usuário pode habilitar a substituição automática das letras baseadas no contexto de utilização. Isso evita a repetição de caracteres e combinações de letras ao longo do texto. Ligaturas contendo pares de letras duplicadas (‘ll’, ‘rr’, ‘oo’, ‘ee’, ‘pp’) foram especial-mente construídas com esse mesmo objetivo.

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3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

Os caracteres alternativos apresentam variações sutis e são adaptados para um comporta-mento tipográfico específico: a localização da letra na palavra (posição inicial, intermediária ou final), a perfeita conexão com a letra subseqüente, e etc.

Ainda no estilo Copperplate, a typefoundry grega Parachute disponibilizou no mercado em meados de 2007 uma fonte digital de simulação caligráfica bastante ambiciosa: a Champion Script Pro.

Apresentado pelo designer de tipos Panos Vassiliou no site da Parachute como sendo o mais completo e extenso projeto tipográfico de simulação caligráfica já desenvolvido (“the most powerful script ever made”), a fonte digital Champion Script Pro é baseada nos manuscritos do calígrafo Joseph Champion. Seu trabalho também pode ser encontrado no livro ‘Universal Penman’ de George Bickham – publicação onde constam nada menos que 47 composições de Joseph Champion [fig. 143]. Segundo o autor da fonte:

“The decision to develop such a typeface was taken during my trip to London back in 2001, while doing a research at the St Bride Library. It was then that I came across some beautiful 18th century manuscripts written by English calligraphers. I was particularly impressed by the writing of Joseph Champion, somebody whom I had never heard before.” (Vassilou: http://blog.parachutefonts.com/?p=16)

Original caligráfico de George Bickham e fonte digital desenvolvida por Richard Lipton, em 2004: uma das primeiras e mais 142.

completas fontes digitais de simulação caligráfica a se utilizar dos recursos de substituição contextual.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 159

3. O processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica

O projeto possui impressionantes 4280 glifos por fonte distribuídos entre caracteres alterna-tivos, ligaturas contextuais, ornamentos (117) e completos conjuntos alfabéticos para com-posições em línguas latinas, turco, grego e cirílico, entre outras. Apresenta ao todo 27 recur-sos aplicados de OpenType, como substituição contextual automática para formas iniciais, terminais, numerais e denominadores, frações, ligaturas contextuais, versaletes, algarismos superiores, sinais matemáticos e etc.

Todo o desenvolvimento da fonte encontra-se detalhado no site da fundição digital Parachute, constituindo um excelente (e obsessivo) memorial descritivo da complexa experiência de si-mulação caligráfica realizada30.

30 O endereço eletrônico desta e de outras referências citadas encontram-se na lista de ilustrações.

Fonte digital Champion Script Pro: alardeada pelos criadores como o maior projeto de simulação caligráfica já desenvolvido.143.

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4. Conclusões

O trabalho aponta para duas sínteses e algumas considerações a respeito do processo de construção das fontes digitais de simulação caligráfica.

As duas sínteses constituem a sistematização e a formalização do levantamento realizado, e tem por objetivo apresentar de maneira sucinta as categorias propostas nesta dissertação.

síntese 1: referência concreta / referência conceitual

A primeira síntese diz respeito aos dois tipos de projeto apresentados na dissertação: as fontes baseadas em referências concretas – reprodução literal de um original caligráfico; e aquelas baseadas em referências conceituais – sugestão de um desenho moldado a partir de um conceito mais geral de caligrafia [fig. 144].

A organização da dissertação nesses moldes teve por objetivo destacar as diferenças exis-tentes na metodologia de construção dos projetos nas duas categorias. Essa classificação, portanto, não se baseia na aparência ou no funcionamento das fontes (cuja diferença pode ser mínima ou inexistente), mas na importância que é conferida à referência caligráfica origi-nal utilizada como modelo de construção.

Quando o designer de tipos tem por objetivo reproduzir uma referência caligráfica específica, a fidelidade visual é o fator que estabelece as diretrizes e os procedimentos de trabalho tidos como fundamentais: a escolha e análise do original, a qualidade de digitalização, a vetoriza-

O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 160

REFERÊNCIA CONCRETA REFERÊNCIA CONCEITUAL

RECONSTRUÇÃO LITERAL RECONSTRUÇÃO INSPIRADA APOIADO EM GABARITOS FORMAIS MODELOS HIPOTÉTICOS

modelos apresentando alto nívelde semelhança formal a referências

caligráficas concretas.

modelos apresentando relativasemelhança formal a referências

caligráficas concretas.

modelos conceituais de caligrafiaapoiados em esboços e gabaritos

formais concretos.

modelos conceituais de caligrafiaproduzidos diretamente no

ambiente da simulação.

a natureza das no desenvolvimento das fontes digitais de simulação caligráficareferências utilizadas

IMPORTÂNCIA DO ORIGINAL

nível de paridade visual

Síntese 1: diagrama apresenta as duas categorias (e gradações) propostas por esta dissertação: as fontes digitais de 144.

simulação caligráfica de referência concreta e conceitual.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 161

4. Conclusões

ção, a reprodução de relações espaciais (métrica) e a nominação do arquivo. Nos casos em que o registro caligráfico serve apenas como um apoio visual, ou ainda, naqueles em que não existe um original a ser reproduzido, algumas dessas etapas tem sua importância diminuída, estabelecendo outra abordagem para o desenvolvimento de uma fonte digital de simulação.

A importância da referência tomada por modelo é, sem dúvida, o fator central na busca de qualidades caligráficas e mostrou-se um importante parâmetro para a organização e a apre-sentação do tema.

A apresentação de duas abordagens metodológicas distintas, entretanto, não implica na se-paração estanque das duas categorias. A passagem gradual de cor no diagrama representa de maneira mais exata a distinção tênue entre cada grupo apresentado. O limite proposto entre o desenvolvimento de uma fonte de simulação inspirada em um original concreto e uma fonte que apenas faça uso de esboços caligráficos para apoiar a fase de construção vetorial é absolutamente sutil. Em muitos casos, essa distinção só se faz possível diante das intenções manifestas do designer, quando presentes em algum material de apresentação do projeto.

síntese 2: etapas e estratégias de construção

A segunda síntese diz respeito à sistematização das informações relacionadas às duas abor-dagens metodológicas apresentadas na parte 3 da dissertação, oferecendo uma hipótese de construção das fontes digitais de simulação caligráfica.

O quadro 1 apresenta de maneira seqüencial as etapas de construção propostas para o desenvolvimento de fontes digitais baseadas em referências concretas [fig. 145]. Nesta ca-tegoria específica, a paridade visual entre o modelo desenvolvido e a referência escolhida constitui a noção fundamental do projeto1.

1 Esse diagrama também mostra-se útil para o desenvolvimento de fontes digitais de simulação caligráfica de referência conceitual, na medida em que algumas das etapas apresentadas estão presentes no processo de construção desses projetos: como vetorização, métrica e fechamento.

ANÁLISE DO ORIGINAL DIGITALIZAÇÃO

: definição dos critériosde captura (resolução,dimensão, tonalidade)

: produção do originalde apoio digitalizado

VETORIZAÇÃO

: identificação do ductusda escrita

: definição dos critérios deconstrução que tipo deinformação é preservadaou descartada

: construção do contornovetorial

: escolha da referência utilizada

: definição dos critériosde amostragem dos caracteres

: seleção de caracteres

MÉTRICA

: análise do original eidentificação dadensidade da escrita

: definição das relaçõesespaciais na tipografia

: ajustes e correções

FECHAMENTO

: programação derecursos adicionais

: produção do arquivodigital – testes

: nominação e apresentaçãodo projeto

as etapas desenvolvimento das fontes digitais de simulação caligráfica de referência CONCRETAde

Síntese 2, quadro 1: diagrama das etapas de desenvolvimento das fontes digitais de simulação caligráfica 145.

de referência concreta.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 162

4. Conclusões

O quadro 2 apresenta as estratégias de construção propostas para o desenvolvimento de fon-tes digitais baseadas em referências conceituais [fig. 146]. Este diagrama também contribui para consolidar as informações organizadas e apresentadas na parte 2 da dissertação – as categorias de compreensão da forma caligráfica, estabelecendo desta maneira uma relação direta entre a prática caligráfica e a tipografia digital.

: alusão à perícia ferramental

no contexto da composição:escrita encadeada

no nível do caractere

+ controle

características estruturais

+ velocidade

características expressivas

serifas e terminações

modulação

integração

qualidade técnica

ornamentação

variância

ornamentação de apoio

ornamentação externa ou acessória

simulação de imperícia

variância manual

variância aleatória

variância programada

: alusão ao método caligráfico de construção

ornamentação interna ou estrutural

estrutura oumodelo de letra

no contexto da composição

no nível do caractere

virtuoso

básico

interferência no entorno dos caracteres

interferência no contorno dos caracteres

geral

particular

(ductus)

: alusão à utilização de uma ferramenta caligráfica

: alusão à especificidade da ocorrência espaço-temporal

Síntese 2, quadro 2: diagrama das estratégias de construção das fontes digitais de simulação caligráfica de referência 146.

conceitual.

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O Processo de Construção das Fontes Digitais de Simulação Caligráfica 163

4. Conclusões

Os dois quadros constituem hipóteses metodológicas coerentes com os dados levantados na pesquisa, podendo servir (ou ser testados) como parâmetros para o desenvolvimento prático de fontes digitais de simulação caligráfica.

: considerações

Entendendo que ainda caberiam diversos desdobramentos em relação a este tema, as con-siderações aqui apresentadas pretendem oferecer um fechamento proporcional apenas ao recorte sugerido pela dissertação – que naturalmente não foi capaz de esgotar o universo de possibilidades associadas às fontes digitais de simulação caligráfica.

A questão inicial desta pesquisa voltou-se para o levantamento de possíveis antagonismos entre os meios de produção caligráfico e tipográfico digital.

O contato entre tecnologias distintas proporciona modificações expressivas em ambas, al-terando processos de criação e produção de maneira bastante significativa. Embora essas transformações nem sempre tenham caráter negativo, esse contato não implica necessaria-mente que qualquer forma de manifestação cultural venha a ser substituída ou eliminada pela proposta da simulação tecnológica.

No caso específico das fontes digitais de simulação caligráfica esse risco, entretanto, não foi percebido ao longo do levantamento realizado. De maneira positiva e não-predatória, as fontes de simulação tem possibilitado com considerável qualidade realizar o encontro entre a experiência humana da escrita e o aparato digital.

Contrariando uma visão desfavorável em relação às novas tecnologias e meios de produ-ção de conteúdo, os projetos de simulação caligráfica tem valorizado registros tradicionais e despertado grande interesse pelo universo da caligrafia. Outros aspectos relevantes também puderam ser observados ao longo dessa dissertação, como:

1. conservação digital e interatividade

Traduzir vetorialmente uma ocorrência caligráfica significa transformá-la em informação apta a ser armazenada e multiplicada infinitamente. A possibilidade de multiplicação ilimitada de um arquivo digital – cópias idênticas podem ser produzidas a partir de um mesmo conjunto de dados – permite que as informações sejam preservadas pela simples geração de cópias de segurança. Isso torna o ambiente digital potencialmente seguro, fazendo com que a digitaliza-ção de experiências analógicas possa ser considerada uma estratégia de conservação.

Se uma imagem digital de alta qualidade pode conservar visualmente determinada experiên-cia caligráfica, uma fonte digital permite que parte significativa desse registro seja convertida em um modelo interativo de escrita.

Uma fonte digital construída a partir de um registro caligráfico oferece ao usuário a possibili-dade de rearticular os caracteres (previamente realizados) na criação de aplicações inéditas. Como esta interação ocorre apenas na interpretação digital do registro, o arquivo tipográfico permite que esta ampla experimentação não ofereça risco algum ao original caligráfico utili-zado como referência.

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4. Conclusões

2. compartilhamento de informação

Enquanto o original caligráfico constitui um documento único – muitas vezes um objeto frágil e de acesso limitado – o arquivo tipográfico pode ser facilmente reproduzido e manuseado no ambiente digital, permitindo que uma dimensão relevante do manuscrito (a forma dos carac-teres e a maneira como se articulam) possa ser compartilhada e acessada indefinidamente.

A ‘democratização’ da experiência caligráfica, entretanto, não se apóia apenas na possibilida-de tecnológica de multiplicação do arquivo tipográfico, mas também na distribuição simples, rápida e potencialmente barata de uma fonte digital.

Esse processo tem permitido que a interpretação virtual de determinado documento ou ex-periência caligráfica possa ser inserida no mercado como um produto de consumo – o que é interessante para toda uma cadeia de produção: designers, fabricantes, programadores, distribuidores e etc.

3. relevância comercial

Na medida em que o meio eletrônico se transforma cada vez mais em um ambiente de inter-câmbio e prolífica criação, a tipografia digital tem servido a diversos profissionais do design na divulgação e comercialização de suas experiências profissionais.

Com a irrestrita possibilidade de transformar expressões caligráficas particulares em opções de desenho tipográfico, a escrita manual se transformou em um campo de criação de enorme

A popularidade da categoria tipográfica: no portal de comercialização MyFonts, a fonte digital Metroscript 147.

(de Michael Doret) encerrou o ano de 2008 como ‘best seller’ do ano. No mapa de tags de busca da página,

destaque para expressões associadas à escrita manual: ‘script’, ‘handwriting’, ‘cursive’ e ‘calligraphy’.

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4. Conclusões

potencial comercial. No mercado internacional de tipografia digital a relevância comercial dos projetos de simulação caligráfica é inquestionável: em importantes portais de comercialização as fontes de aparência caligráfica frequentemente aparecem em destaque [fig. 147].

O interesse crescente por fontes digitais de simulação caligráfica se reflete ainda na grande quantidade de projetos sendo lançados por fundições digitais. Além de outros nomes já citados nessa dissertação, algumas empresas e profissionais destacam-se no mercado como espe-

cialistas na produção de fontes digitais de aparência caligráfica. Podemos citar, por exemplo, o designer argentino Alejandro Paul (fundição digital Sudtipos), o designer e calígrafo mexica-no Gabriel Martínez Meave (Kimera Fonts), o coletivo norte-americano House Industries, e o tipógrafo e pesquisador brasileiro Ricardo Esteves (Outras Fontes) [fig. 148].

A explicação para esse crescente interesse comercial é composta por questões de ordem comercial, estética e tecnológica. Ao articular visualmente significados associados à escri-ta manual, as fontes digitais de simulação proporcionam uma espécie de ‘humanização’ do ambiente digital, disponibilizando modelos de aparência caligráfica para serem usados em projetos de escala industrial.

A informalidade, a proximidade, a afetividade e a expressividade da escrita manual trans-formaram-se em importantes ferramentas de marketing na articulação de um discurso de

Diversas fontes digitais de simulação caligráfica tem se destacado no mercado internacional de tipografia. No sentido horário: 148.

‘Arcana Angular’ de Gabriel Martinez Meaves; ‘Maryam’ de Ricardo Esteves; pacote ‘Studio Lettering’ da House Industries e

‘Ministry Script’ de Alejandro Paul.

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4. Conclusões

mercado bastante contemporâneo. A opção por um design artesanal e de aparência ‘humana’ na comunicação de diversos produtos e serviços pode ser entendida como uma estratégia objetiva de construção de significado e associação de valor. Sem elaborar nenhum tipo de julgamento moral em relação a essa estratégia, as fontes digitais de simulação caligráfica tem encontrado um mercado ávido por qualquer manifestação (artificial ou não) que apresente esse aspecto ‘humano’.

Cabe ressaltar, entretanto, que seria desproporcional atribuir às fontes digitais de simulação caligráfica a responsabilidade – ainda que parcial – pelo surgimento desse interesse. Elas apenas proporcionam apoio visual para uma procura e um interesse já existentes, e que ad-vém de múltiplos fatores associados sobretudo ao contexto tecnológico em que a sociedade moderna se vê inserida. É a ubiqüidade da tecnologia digital que produz como reflexo o inte-resse por tudo que não é (ou aparenta ser) obrigatoriamente tecnológico. Essa reação ocorre de maneira cíclica e é natural em períodos marcados por transições tecnológicas bruscas e acomodações.

Curiosamente no caso das fontes digitais de simulação caligráfica, o diferencial responsável por alavancar o interesse por esta categoria tipográfica tem relação direta com avanços tec-

nológicos recentes: o desenvolvimento de sofisticadas ferramentas de digitalização, a criação de softwares especializados em construção caligráfica e a criação de arquivos digitais ‘inteli-gentes’ (formato OpenType) [fig. 149].

Na última década, a evolução dos projetos de simulação caligráfica tem sido impressionante e esta categoria de projetos vem recebendo gradativamente mais atenção por parte da co-munidade de profissionais da tipografia. Mas a relevância das fontes digitais de simulação caligráfica aos poucos vai extrapolando também a esfera comercial – onde já tem assegurado um lugar de destaque.

Segundo Hermann Zapf:

“(...) a Zapfino se aproxima do domínio das formas caligráficas, mas jamais pode imitar a originalidade da mão. As irregularidades acidentais da ferramenta da escrita

Aperfeiçoamentos tecnológicos permitiram que a tipografia digital rompesse padrões tradicionais de produção, favorecendo o 149.

desenvolvimento de complexas fontes digitais de simulação caligráfica.

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4. Conclusões

e a expressão espontânea serão sempre do domínio especial do calígrafo: nenhuma fonte alcan-çará esse privilégio.” (Zapf, 2005: 90)

Apesar de arriscar uma previsão com a qual podemos nos surpreender futuramen-te, há algo que Zapf não mencionou ao analisar seu trabalho em sua autobiografia profissional: o professor alemão completou 90 anos no final de 2008, e naturalmente daqui a algum tempo estará presente ape-nas na história. O projeto Zapfino Script não serve exclusivamente para simular a bela escrita de Zapf, mas para conservá-la e distribuí-la (ainda que de maneira comercial) em um formato versátil e adaptado às atuais possibilidades tecnológicas. Ou seja, a tipografia digital perpetuará uma dimensão relevante do trabalho de Hermann Zapf [fig. 150].

Já o projeto Bickham Script da Adobe, trata-se do resgate de um exemplar caligráfico de 1738. Hoje, 270 anos depois, a qualidade estética de uma dimensão relevante desse trabalho está disponível em formato digital e pode ser reproduzida e multiplicada indiscriminadamente. O mesmo pode ser dito em relação à fonte Champion Script: um esforço tipográfico hercúleo responsável por reviver tecnologicamente uma importante referência visual do século XVIII.

O objetivo primordial de uma fonte digital de simulação caligráfica não é enganar o leitor ou falsificar um registro, mas permitir que o designer (usuário final da fonte) trabalhe com tipo-grafias enriquecidas por referências caligráficas – em muitos casos construídas com altíssimo nível técnico e grande apuro estético.

A suspeita de que um tipo de impressão é feito à mão não constitui de fato um engano ou um ato de má fé: é resultado de um trabalho de reconstrução minucioso capaz de reduzir signifi-cativamente o impacto visual de um poderoso aparato tecnológico na recriação de modelos realizados manualmente ou apoiados em expressões caligráficas genuínas.

Para dominar o processo de construção e manipulação dessas referências, é cada vez mais importante conhecer e dominar a lógica operacional da tecnologia digital, suas características e principalmente suas limitações técnicas e conceituais. Mas segundo Pierre Lévy:

“Uma visão estreita da informática (...), a reduz a um conjunto de ferramentas para calcular, escrever e comunicar mais depressa e melhor. A plena abordagem retórica descobre nela um espaço de produção e de circulação dos signos qualitativamente diferente dos anteriores, no qual as regras de eficiência e os critérios de avaliação

O calígrafo Hermann Zapf trabalhando, 1968.150.

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4. Conclusões

da utilidade mudaram. (...) A questão, portanto não é avaliar sua ‘utilidade’ mas determinar em que direção prosseguir um processo de criação cultural irreversível.” (Lévy, 1996: 85)

Como é praticamente impossível criar uma boa fonte de simulação sem antes aprender de fato a caligrafia, podemos concluir que o desenvolvimento desta área da tipografia digital acarreta no crescimento em paralelo do interesse pela prática caligráfica – e não sua atrofia, pressuposto contemplado no início da pesquisa.

Não existe, portanto, um antagonismo fundamental entre as duas atividades. O que existe de fato são maneiras distintas de se relacionar com novas tecnologias: para alguns a ferramenta digital se apresenta como um instrumento de atrofia e substituição, para outros é um ambien-te de ilimitada capacidade de criação.

A tecnologia permite, basta ao ser humano saber conduzi-la.

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5. Referências

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