198
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO RURAL EDUARDO LUÍS RUPPENTHAL RETERRITORIALIZAÇÃO DOS ATINGIDOS PELA BARRAGEM BARRA GRANDE – RS/SC PORTO ALEGRE 2013

Pgdr m 156 Eduardo Ruppenthal

Embed Size (px)

Citation preview

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE CINCIAS ECONMICAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DESENVOLVIMENTO RURAL

    EDUARDO LUS RUPPENTHAL

    RETERRITORIALIZAO DOS ATINGIDOS PELA BARRAGEM BARRA GRANDE RS/SC

    PORTO ALEGRE 2013

  • EDUARDO LUS RUPPENTHAL

    RETERRITORIALIZAO DOS ATINGIDOS PELA BARRAGEM BARRA GRANDE RS/SC

    Dissertao submetida ao Programa de Ps-Graduao em Desenvolvimento Rural da Faculdade de Cincias Econmicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Desenvolvimento Rural.

    Orientador: Prof. Dr. Ivaldo Gehlen

    Srie PGDR Dissertao n 156

    PORTO ALEGRE 2013

  • DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAO NA PUBLICAO (CIP) Responsvel: Biblioteca Gldis W. do Amaral, Faculdade de Cincias Econmicas da

    UFRGS

    R946r Ruppenthal, Eduardo Lus Reterritorializao dos atingidos pela barragem Barra Grande RS/SC /

    Eduardo Lus Ruppenthal. Porto Alegre, 2013. 196 f. : il.

    Orientador: Ivaldo Gehlen.

    (Srie PGDR Dissertao, n. 156).

    Dissertao (Mestrado em Desenvolvimento Rural) Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Cincias Econmicas, Programa de Ps-Graduao em Desenvolvimento Rural, Porto Alegre, 2011.

    1. Desenvolvimento territorial. 2. Assentamento rural : impacto ambiental. 3. Agricultura de subsistncia. 4. Modo de produo. 5. Trabalhadores rurais. I. Gehlen, Ivaldo. II. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Cincias Econmicas. Programa de Ps-Graduao em Desenvolvimento Rural. III. Ttulo. IV. Srie.

    CDU 502.22

  • EDUARDO LUS RUPPENTHAL

    RETERRITORIALIZAO DOS ATINGIDOS PELA BARRAGEM BARRA GRANDE RS/SC

    Dissertao submetida ao Programa de Ps-Graduao em Desenvolvimento Rural da Faculdade de Cincias Econmicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Desenvolvimento Rural.

    Aprovado em: Porto Alegre, 25 de novembro de 2011.

    BANCA EXAMINADORA:

    .

    Prof. Dr. Ivaldo Gehlen Orientador PGDR/UFRGS

    .

    Prof. Dr. Cleyton Henrique Gerhardt PGDR/UFRGS

    .

    Prof. Dr. Paulo Brack Instituto de Biocincias da UFRGS

    .

    Prof. Dr. Joel Joo Carini Instituto Federal Farroupilha

  • Dedico esta dissertao aos meus pais, Olavo (in memoriam) e Seli, exemplos de amor, de perseverana, de respeito e de dedicao, guerreiros por criar seis filhos e alguns netos, constituindo uma bela e grande famlia, atualmente com oito netos e uma bisneta, a Ceclia, que veio para alegrar e continuar o ciclo da vida. Obrigado por todo esforo e apoio incondicional para eu poder estudar. Me, continuas uma herona. Agradeo por toda a ajuda e pacincia durante o mestrado, principalmente no perodo das duas cirurgias. Pai, festejamos as formaturas e comemoramos juntos a minha seleo para o mestrado. Lembro sempre do orgulho que demonstravas ao falar dos meus estudos e/ou quando me apresentavas aos outros. De ser o Nne do Teno. Por meses choramos e rimos juntos. Muitas saudades. A toda confiana que tinhas em mim, a todo sorriso, a cada barbear, a

    cada beijo, a cada abrao, obrigado, muito obrigado, Pai! Muito obrigado, Me!

  • AGRADECIMENTOS

    Realizar o mestrado s foi possvel graas a inmeras pessoas, na contribuio de cada uma, seja atravs da amizade, do companheirismo, do apoio ou da ajuda direta na dissertao. Fico feliz por poder dizer obrigado a todas estas pessoas que fazem parte desta etapa da minha vida.

    Agradeo a toda minha famlia, pois, assim como nas graduaes, sem ela no teria feito o mestrado. Em especial, aos meus pais, Olavo (in memoriam) e Seli, s minhas irms, Isolete, Isolde e Rosemeri, e aos meus irmos, Gilberto e Evandro, fundamentais para chegar at aqui. s minhas avs, Leonida (in memoriam) e Frida. V Leonida, minha segunda me, realizei o seu sonho de me tornar professor, obrigado por acreditar em mim. Ao meu sobrinho (irmo) Gustavo e Rebeca, testemunhas da dissertao e que ajudaram muito no cotidiano.

    Cristiane, pelo amor, pela amizade, pela confiana e pelo companheirismo, estamos juntos e que todos os dias sejam iguais a este.

    famlia Bocchese, ao acolhimento e aos timos momentos de convvio. Aos meus amigos, pelo apoio e incentivo. Destaco os de longa caminhada, desde a

    infncia na localidade de Arroio Alegre (Srio-RS) at os da adolescncia, da Biologia, da universidade e de tantos outros lugares. Cito nominalmente alguns, mesmo reconhecendo o risco de ser injusto por deixar de citar muitos nomes, agradeo a: Andrei Minuzzo (in memoriam), Jorge Balz, Milton Scherer, Itamar Dessoy, Ceclia S. Nin, Rodrigo C. Lima, Diego Correa, Rafael B. Machado, Bianca Espndola, Hellen Tarasconi, Giovani Neves,

    Hlder Gomes, Guilherme Seger, Andr Frainer, Daniel Slomp, Lucas Milanesi, Moiss da Luz, Ariane Ribeiro, Martin Grings, Sarah Amaral, Lucas Lazari, Vicente Ribeiro, Andr Schneider, Gabriela Konrath, Adriano Sontag e Karl Petrich (Katsche). Agradeo tambm os amigos que compartilham os mesmos sonhos de justia e mudana socioambiental: Daniela Conte, Viviane Camejo, Antnio Ruas, Conceio Carrion, Sandra Feltrin, Carlos Schmidt, Virginia Talbot, Renzo Bassanetti, Vicente Medaglia, Elisngela Soldatelli e Sylvio Nogueira.

    Aos colegas, funcionrios e professores das escolas estaduais Itoror e Izaura Ibanez Paiva. Obrigado pela recepo carinhosa e pela ajuda constante nesse perodo de trabalho concomitante ao trmino do mestrado. Aos meus alunos, eu prometo falar menos sobre energia e barragens.

  • Aos funcionrios e professores do PGDR. Aos colegas de mestrado e doutorado, em especial a Moiss da Luz, Daniele Possatti, Felipe Almeida, Igor de Bearzi, Fabiano Escher, Mrcia Alves, Andressa Teixeira, Monique Medeiros, Vitoriano F. Martin e Otvio do Canto.

    Aos ajudantes diretos na dissertao, aos companheiros que ajudaram em algumas sadas de campo: Cssio Rabuske e Otvio do Canto. Ao Gustavo Zvirtes, pela elaborao dos mapas e das figuras. Daniela Conte, pela ajuda imensurvel na correo da escrita e releitura da dissertao.

    Aos professores que ajudaram na minha formao acadmica, especialmente Paulo Brack, Jorge Quillfeldt e Gilberto Rodrigues, meu orientador na graduao.

    Ao meu orientador, professor Ivaldo Gehlen, pelo exemplo pessoal de superao e

    perseverana na recuperao do acidente e pelo exemplo profissional como professor e pesquisador, pelo amor e dedicao Cincia. Agradeo pela pacincia, por ensinar desde o

    bsico da Sociologia a um bilogo at a compreenso pelos momentos pessoais durante o mestrado.

    A todos os entrevistados, em especial aos agricultores atingidos e suas famlias, pela hospitalidade, por abrirem suas casas. Particularmente, pela ajuda durante o campo, agradeo s famlias de Cleonira e Eloir Soares e lio Borges de Almeida.

    Sou estudante da educao pblica brasileira. No deveria, mas me sinto um privilegiado por ter conseguido acesso s essas diversas etapas do ensino. Assim, se no fosse a universidade pblica e gratuita, dificilmente teria cursado as duas graduaes e uma ps-graduao da qualidade do PGDR na UFRGS. O financiamento pblico da bolsa Capes foi

    fundamental para a realizao do mestrado, tanto para me manter como para custear as despesas das pesquisas. O custeio pblico fundamental para a realizao de estudos de

    forma independente e crtica. Atualmente, como professor de duas escolas estaduais (nos Ensinos Fundamental e Mdio), constato a difcil e precria situao da educao pblica, por isso a urgncia e a necessidade da concretizao do direito de estudar no Brasil e da defesa de uma educao pblica, gratuita, de qualidade e socialmente referenciada. Para que estudar no

    seja um privilgio.

  • Do rio que tudo arrasta, diz-se que violento. Mas ningum chama violentas as margens que o comprimem.

    Bertolt Brech

  • RESUMO

    Esta dissertao tem como tema o processo de reterritorializao das famlias rurais atingidas pela construo da barragem Barra Grande, situada no rio Pelotas, na divisa entre os estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. A maioria da populao rural atingida pertence a dois grupos socioculturais caboclos e colonos (italianos) e produzia essencialmente uma agricultura de subsistncia. O objetivo compreender a dinmica de reorganizao territorial, as mudanas nas unidades familiares produtivas e as consequncias nos diferentes grupos socioculturais. A pesquisa foi conduzida sob uma perspectiva qualitativa, mediante utilizao de entrevistas semiestruturadas, observao direta e documentao fotogrfica, aliadas aos dados provenientes de fontes primrias e secundrias. Foram feitas entrevistas no estruturadas com base na perspectiva da histria oral, procurando obter informaes sobre o processo de territorializao-desterritorializao-reterritorializao (T-D-R), sobre as mudanas provocadas, a situao atual e a perspectiva das famlias. O universo emprico constitudo por agricultores deslocados compulsoriamente pela implantao da barragem que atualmente ocupam localidades e reassentamentos situados nos municpios de Anita Garibaldi/SC, Pinhal da Serra/RS e Esmeralda/RS. A territorializao diferente dos caboclos e dos colonos se expressa em configuraes espaciais diferentes, mas a geografia da regio ocupada, de relevo acidentado, faz com que haja aproximao do modo de produo agrcola, conhecido por roa (agricultura tradicional), com o uso de recursos disponveis no ambiente. A construo da barragem, por sua vez, inicia o processo de desterritorializao tanto dos caboclos quanto dos colonos, tornando-os atingidos. Alm do deslocamento compulsrio dos agricultores, a barragem provoca impactos socioambientais, como a inundao das reas agricultveis e naturais, diminuindo o hbitat de espcies endmicas da regio. A reterritorializao uma confluncia do histrico de conflitos, das especificidades culturais e da organizao ou no no movimento social. H a perda de autonomia dos atingidos na reterritorializao, pois esta impe mudanas nos usos da terra, com a substituio da roa, agricultura tradicional de subsistncia, pela lavoura, agricultura moderna, altamente dependente de insumos externos (adubos, agrotxicos e sementes); na relao e percepo do meio ambiente; no relevo, na paisagem e no microclima; e no uso de recursos naturais (gua, lenha e frutas). A organizao dos atingidos em um movimento social redefiniu a reterritorializao, principalmente na disputa em torno das modalidades de remanejamento populacional, sendo que, por parte do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), a reivindicao era terra por terra (reassentamento), alm do reconhecimento de todos os atingidos, disputando as modalidades indenizatrias propostas pela empresa (indenizao em dinheiro e autorreassentamento por carta de crdito). A organizao em um movimento social no meio rural atravs da mobilizao e conscientizao poltica acaba gerando outras formas de sociabilidade mais abertas com a sociedade regional, como associaes produtivas, cooperativas, sindicatos rurais e partidos polticos.

    Palavras-chave: Reterritorializao. Barragem. Atingidos. Caboclos. Colonos.

  • ABSTRACT

    The theme of this thesis is the process of reterritorialization of rural families affected by the construction of the Barra Grande dam, located in Pelotas River, on the border between the states of Rio Grande do Sul and Santa Catarina. Most of the affected rural population belongs to two socio-cultural groups caboclos and (Italian) settlers and produced an essentially subsistence farming. The goal is to understand the dynamics of territorial reorganization, changes in family production units and the consequences in different socio-cultural groups. The research was conducted under a qualitative perspective, by using semi-structured interviews, direct observation and photographic documentation, combined with data from primary and secondary sources. Non-structured interviews were conducted from the perspective of oral history, looking for information about the process of territorialization-deterritorialization-reterritorialization (T-D-R), the changes brought about, the current situation and perspective of families. The empirical universe is made up of farmers that were forcefully displaced by the construction of the dam and that currently occupy villages and settlements located in the municipalities of Anita Garibaldi/SC, Pinhal da Serra/RS and Esmeralda/RS. The different territorialization of caboclos and settlers has manifested itself in different spatial configurations, but the geography of the area occupied, with its broken terrain, causes an approximation to traditional farming, with the use of resources available from the environment. The construction of the dam in turn triggers the process of deterritorialization both of caboclos and settlers, affecting them. In addition to the compulsory displacement of farmers, the dam will cause social and environmental impacts, such as flooding of farmland and natural areas, thus reducing the habitat of endemic species in the region. A reterritorialization is a confluence of historical conflicts, cultural specificities and the presence or lack of organization in the social movement. There is loss of autonomy of those affected by the reterritorialization, as it demands changes in the uses of the land, by replacing the traditional subsistence farming with modern agriculture, which is largely dependent on external inputs (fertilizers, pesticides and seeds); in both the relationship with and the perception of the environment; in the topography, landscape and micro-climate; and in the use of natural resources (water, firewood and fruit). The organization of people affected in a social movement has redefined the reterritorialization, especially in the dispute over the methods of population relocation. The Movement of People Affected by Dams (MAB) was claiming land for land (resettlement), besides the acknowledgment of all those affected, competing for the modalities proposed by the company for damages (monetary indemnity and self-resettlement by means of letter of credit). The organization in a social movement in rural areas by mobilization and political awareness ends up generating other forms of sociability that are more open to the regional society, such as production associations, cooperatives, rural unions and political parties.

    Keywords: Reterritorialization. Dam. Affected. Caboclos. Settlers.

  • LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 Mapa da localizao da UHE Barra Grande na divisa entre os estados Rio Grande do Sul e Santa Catarina. ....................................................................................................... 33 Figura 2 Mapa da localizao dos municpios atingidos pelo reservatrio da barragem Barra

    Grande. ................................................................................................................................ 34 Figura 3 Esttua em homenagem Anita Garibaldi, localizada em frente da Prefeitura

    Municipal de Anita Garibaldi-SC. ........................................................................................ 35 Figura 4 Esttua em homenagem colonizao italiana localizada no municpio de Anita Garibaldi-SC. ....................................................................................................................... 36 Figura 5 Grfico com os valores anuais (R$ bilhes), apontando a evoluo dos desembolsos do BNDES (2000-2008). ................................................................................. 50 Figura 6 Mapa da Integrao Eletroenergtica do Sistema Energtico Nacional (SIN) com as usinas em funcionamento e outras planejadas. ...................................................................... 57 Figura 7 A situao dos empreendimentos hidreltricos na Bacia Hidrogrfica do Rio Uruguai. ............................................................................................................................... 65 Figura 8 Mapa da localizao da UHE Barra Grande, no Rio Pelotas, afluente do Rio

    Uruguai, na divisa dos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. ........................... 80 Figura 9 Mapa das Bacias e sub-bacias hidrogrficas do Rio Grande do Sul 2009. ......... 81 Figura 10 Imagem da construo da barragem Barra Grande no leito do Rio Pelotas,

    afluente do Rio Uruguai na divisa do RS e SC. .................................................................... 82 Figura 11 A queima por geada de uma plantao de milho ocorrida no dia 22 de dezembro

    de 2010 em Esmeralda-RS. .................................................................................................. 83 Figura 12 Paisagem dos campos de altitude caracterizados por campos entremeados por capes florestais. .................................................................................................................. 84 Figura 13 Paisagem dos campos de altitude na regio dos Campos de Cima da Serra, cultivados ou no, com as matas ciliares ao longo dos cursos dgua ou nos pontos com maior umidade formando capes. ................................................................................................... 85 Figura 14 Paisagem dos campos de altitude na regio dos Campos de Cima da Serra, com campos entremeados por florestas com araucrias. ............................................................... 85 Figura 15 Pinheiros integram a paisagem dos Campos de Cima da Serra. .......................... 86 Figura 16 Mapa das rotas dos tropeiros. ............................................................................ 90 Figura 17 Placa sinalizando a localidade Rinco dos Crentes. ......................................... 104 Figura 18 Placa sinalizando a localidade de Rinco So Jorge. ........................................ 105

  • Figura 19 Casa caracterstica dos caboclos. ..................................................................... 106 Figura 20 Casa caracterstica dos caboclos. ..................................................................... 107 Figura 21 Fogo a lenha. ................................................................................................. 108 Figura 22 Carneao de um boi na propriedade de um colono. ........................................ 110

    Figura 23 Vales. .............................................................................................................. 111 Figura 24 Queimada da rea destinada para a roa. .......................................................... 112 Figura 25 Ferramentas utilizadas para fazer a roa. ......................................................... 112 Figura 26 Porco caipira. ............................................................................................... 114 Figura 27 rea do faxinal, limtrofe entre o campo e a mata, com destaque para a presena das araucrias. .................................................................................................................... 115 Figura 28 Criao de ovelhas. ......................................................................................... 115 Figura 29 Animais caados na regio. ............................................................................. 116 Figura 30 Pinhas contendo os pinhes. ............................................................................ 117 Figura 31 Placa com os nomes dados s comunidades. .................................................... 118 Figura 32 Casa tpica dos colonos. .................................................................................. 119 Figura 33 Escombros de um bordel localizado prximo ao alojamento principal do canteiro de obras da barragem Barra Grande.................................................................................... 130 Figura 34 Porto de acesso ao canteiro de obras da barragem Barra Grande. ................... 133 Figura 35 Floresta primria omitida pelo EIA-RIMA para o licenciamento da barragem Barra Grande. .................................................................................................................... 137 Figura 36 Bromlia Dyckia distachya. ............................................................................. 137 Figura 37 Ato em apoio aos atingidos pela barragem Barra Grande realizado em Porto Alegre-RS. ......................................................................................................................... 138

    Figura 38 Corte da mata prxima da barragem Barra Grande (185 metros de altura). ...... 140 Figura 39 Usina Hidreltrica de Barra Grande. ................................................................ 146 Figura 40 Afogamento de milhes de rvores, em destaque as araucrias. ....................... 147 Figura 41 Lavoura de milho, mecanizada e limpa com o uso de agrotxicos, no

    Reassentamento Rural Coletivo. ......................................................................................... 151 Figura 42 A irrigao utilizada para alguns cultivos nos RRC. ...................................... 152 Figura 43 Amora cultivada no Reassentamento Rural Coletivo. ...................................... 156 Figura 44 A paisagem formada vista pelos autorreassentados localizados prximos s antigas reas inundadas pelo lago. ...................................................................................... 161 Figura 45 A cerrao acompanha a extenso do reservatrio da UHE de Barra Grande. .. 162 Figura 46 Placas dispondo as leis ambientais. .................................................................. 163

  • LISTA DE QUADROS

    Quadro 1 Dados gerais dos municpios da unidade de pesquisa: Anita Garibaldi-SC, Pinhal da Serra-RS e Esmeralda-RS. ............................................................................................... 37

    Quadro 2 Principais tipos de minrios, a produo anual beneficiada e as caractersticas da produo Brasil (2008). ..................................................................................................... 55 Quadro 3 Atores sociais rurais e formas sociais na agricultura segundo alguns indicadores (sul do Brasil). ..................................................................................................................... 97 Quadro 4 As desterritorializaes dos caboclos e seus desterritorializadores na regio dos Campos de Cima da Serra (RS). ......................................................................................... 101 Quadro 5 O tamanho da rea indenizada e os valores pagos para a modalidade autorreassentamento por carta de crdito. ........................................................................... 142

    Quadro 6 Informaes gerais e financeiras sobre a barragem Barra Grande. .................... 145

  • LISTA DE TABELAS

    Tabela 1 A populao atingida e a potncia das sete principais hidreltricas da Bacia Hidrogrfica do Rio Uruguai. ............................................................................................... 64 Tabela 2 As temperaturas mnima, mdia, mxima e a previso pluviomtrica de municpios

    com clima subtropical mido. .............................................................................................. 84

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    AGU Advocacia Geral da Unio ANEEL Agncia Nacional de Energia Eltrica APP rea de Preservao Permanente APREMAVI Associao de Preservao do Meio Ambiente e da Vida BAESA Barra Grande Energtica S.A. BANDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social (Venezuela) BID Banco Interamericano de Desenvolvimento BLADEX Banco Latinoamericano de Exportaciones BNDES Banco Nacional de Desenvolvimento Econmico e Social (Brasil) CAF Corporao Andina de Fomento CCMA Manual de Estudos de Efeitos Ambientais dos Sistemas Eltricos CDDPH Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana CENEC Consrcio Nacional de Engenheiros Consultores S.A. CGH Centrais Geradoras Hidreltricas CGISE Comit de Gesto Integrada de Empreendimentos de Gerao do Setor Eltrico CMB Comisso Mundial de Barragens COMASE Comit Coordenador das Atividades de Meio Ambiente do Setor Eltrico CONAMA Conselho Nacional do Meio Ambiente CPT Comisso Pastoral da Terra CRAB Comisso Regional dos Atingidos por Barragens CSE Cadastro Socioeconmico DNAEE Departamento Nacional de guas e Energia Eltrica ECO 92 Conferncia das Naes Unidas de Meio Ambiente e Desenvolvimento EIA Estudo de Impacto Ambiental ELETROBRAS Centrais Eltricas Brasileiras S.A. ELETROSUL Centrais Eltricas do Sul do Brasil S.A. EMATER/RS Empresa de Assistncia Tcnica e Extenso Rural/RS ENGEVIX Engevix Engenharia Ltda. ENID Eixos Nacionais de Integrao e Desenvolvimento EPAGRI/SC Empresa de Pesquisa Agropecuria e Extenso Rural de Santa Catarina EPE Empresa de Pesquisa Energtica FAPES Fundao do Alto Uruguai para a Pesquisa e Ensino Superior

  • FATMA Fundao do Meio Ambiente (SC) FEPAM Fundao Estadual de Proteo Ambiental Henrique Luiz Roessler (RS) FMI Fundo Monetrio Internacional FONPLATA Fundo da Bacia do Prata FUNAI Fundao Nacional do ndio GEAB Grupo de Empresas Associadas de Barra Grande S.A. GERASUL Centrais Geradoras do Sul do Brasil S.A. GPI Grandes Projetos de Infraestrutura IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renovveis IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica IDH ndice de Desenvolvimento Humano IECLB Igreja Evanglica de Confisso Luterana do Brasil IFC International Financional Corporation IFIs Instituies Financeiras Internacionais

    IIRSA Integrao da Infraestrutura Regional Sul-Americana INMET Instituto Nacional de Meteorologia IPARJ Instituto de Pesquisas Antropolgicas do Rio de Janeiro LI Licena de Instalao LO Licena de Operao LP Licena Prvia

    MAB Movimento dos Atingidos por Barragens

    MASTER Movimento dos Agricultores Sem-Terra MMA Ministrio de Meio Ambiente

    MME Ministrio de Minas e Energia MPF Ministrio Pblico Federal ONG Organizao No Governamental ONS Operador Nacional do Sistema ONU Organizao das Naes Unidas PAC Programa de Acelerao do Crescimento PCB Partido Comunista Brasileiro PCH Pequenas Centrais Hidreltricas PDMA Plano Diretor de Meio Ambiente PJR Pastoral da Juventude Rural

  • PMDB Partido do Movimento Democrtico Brasileiro PT Partido dos Trabalhadores PTB Partido Trabalhista Brasileiro RIMA Relatrio de Impacto Ambiental

    RRC Reassentamento Rural Coletivo SDR Secretaria de Desenvolvimento Regional SE Setor Eltrico SIN Sistema Interligado Nacional STF Supremo Tribunal Federal UHE Usina Hidreltrica UNESCO Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura TC Termo de compromisso TRF Tribunal Regional Federal

  • SUMRIO

    1 INTRODUO ............................................................................................................... 19 1.1 Histrico ....................................................................................................................... 26 1.2 Metodologia .................................................................................................................. 28 2 DESENVOLVIMENTO, TERRITRIO E OS GRANDES PROJETOS HIDRELTRICOS ............................................................................................................ 39 2.1 A IIRSA ........................................................................................................................ 45 2.2 O PAC ........................................................................................................................... 48 2.3 A exportao de commodities e de energia .................................................................. 54 2.4 Energia privada, consequncias pblicas .................................................................... 56 2.4.1 Os impactos socioambientais ....................................................................................... 59 2.4.2 Os impactos na Bacia Hidrogrfica do Rio Uruguai ..................................................... 63 2.5 Territrio: territorializao, desterritorializao e reterritorializao (t-d-r) .......... 65 2.6 Revolta, contestao e resistncia dos atingidos por barragens ................................. 68 2.7 Atingidos: um conceito em disputa .............................................................................. 74 3 O TERRITRIO DE INFLUNCIA DA BARRAGEM BARRA GRANDE .............. 80 3.1 O histrico de ocupao territorial .............................................................................. 88 3.1.1 A territorializao dos caboclos ................................................................................... 91 3.1.2 A territorializao dos colonos .................................................................................... 94

    3.2 As identidades socioculturais ....................................................................................... 96 3.2.1 Nomadismo, sobrevivncia e sustentabilidade: a questo indgena .............................. 98 3.2.2 Itinerncia, autoconsumo e excluso: a questo cabocla .............................................. 99 3.2.3 Migrao, substituio da mata e produtividade: a questo colona ............................. 101

    3.3 As configuraes espaciais dos caboclos e dos colonos ............................................. 103 3.3.1 Os rinces, as capelas e as moradias .......................................................................... 104 3.3.2 As linhas e as propriedades........................................................................................ 118

    4 A DESTERRITORIALIZAO E A RETERRITORIALIZAO ......................... 124 4.1 A disputa em torno das modalidades de remanejamento ......................................... 141 4.2 As mudanas ............................................................................................................... 147 4.2.1 As mudanas para os reassentados ............................................................................. 148 4.2.2 As mudanas para os autorreassentados ..................................................................... 159

    5 ESTRATGIAS DE RETERRITORIALIZAO PARA CONTINUAR AGRICULTOR ................................................................................................................ 168

  • 5.1 A emergncia das diferentes estratgias de reterritorializao ................................ 170 5.2 A organizao redefine a reterritorializao ............................................................ 173 6 CONSIDERAES FINAIS ........................................................................................ 181 REFERNCIAS ............................................................................................................... 186 APNDICE A LISTA DOS ENTREVISTADOS ........................................................ 197

  • 19

    1 INTRODUO

    Esta dissertao analisa uma importante expresso da luta contra a expropriao da

    natureza no Brasil, por meio dos dramas de indivduos, famlias e comunidades rurais que tiveram que se deslocar compulsoriamente devido construo da barragem para a Usina Hidreltrica Barra Grande (na divisa entre os municpios de Pinhal da Serra-RS e Anita Garibaldi-SC). Nos ltimos anos, observa-se no pas o aumento de grandes obras de infraestrutura, em particular ligadas ao setor de energia, como as hidreltricas. Essas obras geram conflitos socioambientais, impactos, tenses econmicas e psicoemocionais para os

    atingidos. A construo de barragens ocorre h milhares de anos, inicialmente visava reserva

    hdrica para irrigao e consumo humano e dos animais. No final do sculo XIX, com o advento da energia eltrica, passaram a ser construdas exclusivamente para a gerao de

    eletricidade. A construo dessas barragens requer a ocupao de amplas extenses territoriais, na maioria das vezes, em detrimento de segmentos sociais vulnerveis, tais como

    populaes ribeirinhas e comunidades rurais e tnicas, demandando uma reordenao territorial nos locais onde elas so instaladas. Sendo assim, o deslocamento compulsrio pode ser considerado uma das principais consequncias sociais.

    Segundo Santos (2007), os projetos do Setor Eltrico (SE) so iniciativas complexas e multidimensionais que compreendem aspectos econmicos, polticos, socioculturais, tcnicos e ecolgicos, produzindo profundas alteraes em diferentes esferas que extrapolam seus

    aspectos meramente econmicos e tcnicos. Vainer (2008) complementa que, nesse processo de mudana social, h interferncia em vrias dimenses e escalas, espaciais e temporais.

    Alm de alteraes patrimoniais (novos proprietrios) e morfolgicas (nova geomorfologia, novo regime hdrico etc.), instauram-se novas dinmicas socioeconmicas, novos grupos sociais emergem na regio de implantao, novos interesses e problemas se manifestam.

    Em 2010, um relatrio elaborado pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa

    Humana (CDDPH) reconheceu a existncia de um padro de violaes dos direitos humanos na construo de barragens no Brasil, reconhecendo a relevncia e a magnitude dos impactos sociais negativos.1

    1 O relatrio da Comisso Especial Atingidos por Barragens do CDDPH foi aprovado no dia 22 de novembro

    de 2010 em Mato Grosso do Sul. Esse relatrio resultado de quatro anos de investigao, em que foram analisadas denncias de violaes de direitos humanos no processo de implantao de barragens. Para saber mais sobre o relatrio, acessar: .

  • 20

    No pas, as inmeras barragens construdas afetaram milhares de pessoas, como foi o caso da hidreltrica Barra Grande (1995-2005) que atingiu 1.516 famlias, sendo todas do meio rural, compostas por proprietrios que tiveram suas terras parcial ou totalmente

    alagadas, arrendatrios, parceiros rurais, agregados e posseiros que dependiam da frao

    suprimida para viver. A hidreltrica Barra Grande, construda no Rio Pelotas, um dos afluentes do Rio

    Uruguai, faz parte do projeto de explorao do potencial energtico da Bacia Hidrogrfica do Rio Uruguai, formulado nos anos 1970 pelo governo brasileiro. Era a primeira vez que no Brasil se formulava um projeto para o aproveitamento integral de uma Bacia Hidrogrfica. O levantamento foi elaborado pela recm-criada Centrais Eltricas do Sul do Brasil S.A.

    (ELETROSUL), como subsidiria das Centrais Eltricas Brasileiras S.A. (ELETROBRAS), criada em 1961 para ficar responsvel pelo SE nacional. Na poca, em torno de 22 aproveitamentos foram definidos como interessantes e passveis de implantao. Para Paim e Ortiz (2006), a proposta pretendia somente racionalizar os aproveitamentos em relao energia, minimizando outras questes, como as socioambientais.

    Os projetos hidreltricos implantados durante o regime militar Itaipu, Sobradinho e Tucuru produziram conflitos e impactos socioambientais drsticos, o que resultou principalmente na mobilizao das populaes atingidas, organizadas ou no em movimentos sociais em busca de assegurar seus direitos sobre a terra e do processo expropriatrio promovido pelo Estado (BOEIRA, 2006, p. 39).

    Assim, nos anos 1980, com a crise econmica do pas, o SE enfrentou dificuldades para levar a termo projetos que estavam em andamento. Alm da estagnao econmica, houve forte resistncia popular. Movimentos sociais contra a implantao de hidreltricas

    disseminaram-se, tendo como referncia a Comisso Regional dos Atingidos por Barragens (CRAB) e depois o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que emergiram como resistncia organizada s barragens da Bacia do Rio Uruguai, de interesse da ELETROSUL (SANTOS, 2007, p. 45). Dentre as crticas estava a acusao de que a interveno das empresas com vistas implantao de aproveitamentos hidreltricos era imposta de fora da regio, pois desconhecia suas realidades e tinha sido decidida sem a participao daqueles que

    iriam sofrer diretamente os efeitos da construo das barragens (VAINER; ARAJO, 1992, p. 10).

  • 21

    Como forma de reconhecer a existncia de problemas relacionados construo de grandes obras, como barragens para Usinas Hidreltricas (UHEs)2, assistimos na dcada de 1980 a uma srie de medidas e recomendaes sendo institucionalizada pelo Estado brasileiro e incorporada pelo SE, este conduzido por empresas estatais. Por meio da Lei 6.938/1981, definiu-se a Poltica Nacional do Meio Ambiente, e assim foram criados vrios rgos federais, coordenados por uma Secretaria com nvel de Ministrio, para colocar em prtica os

    novos dispositivos legais. Houve tambm a criao do Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA), que por meio da Resoluo 001/1986 fixou os requisitos para a avaliao de impactos e licenciamento de obras modificadoras do meio ambiente, como no caso das barragens. Tornaram-se obrigatrios o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatrio de Impacto Ambiental (RIMA).3 Outras resolues do CONAMA a serem destacadas so a 006/1987, que estabelece as diversas etapas do processo de licenciamento4, e a Resoluo 009/1987, que garante a obrigatoriedade de audincias pblicas.

    No cenrio da redemocratizao, a ELETROBRAS se reorganizou na questo socioambiental, editando, em 1986, um Manual de Estudos de Efeitos Ambientais dos Sistemas Eltricos (CCMA) que se sucedeu por um Plano Diretor de Meio Ambiente (PDMA). Em seguida, foi criada internamente a Diviso do Meio Ambiente, elevada logo a Departamento. Em 1988, instituiu o Comit Coordenador das Atividades de Meio Ambiente do Setor Eltrico (COMASE), estimulando a institucionalizao de reas sociais e ambientais com as concessionrias. Em 1990, elaborou o II PDMA (II Plano Diretor de Meio Ambiente). Segundo Nuti (2007), esse plano pode ser considerado a poltica socioambiental do SE brasileiro devido ao seu contedo de orientao para o desenvolvimento dos estudos e de compromisso bsico das empresas signatrias.

    Importante destacar que essas incorporaes de medidas legais so consequncia da reivindicao por parte da resistncia interna s megaobras, alm do pas ser signatrio de

    2 No texto, as Usinas Hidreltricas, ou simplesmente hidreltricas, sero tambm designadas de UHEs (Usinas

    Hidreltricas de Energia). Sero consideradas somente as grandes hidreltricas, classificadas conforme sua capacidade instalada. No Brasil, os empreendimentos hidreltricos recebem trs denominaes, dependendo da sua capacidade instalada: UHE para hidreltricas com capacidade instalada superior a 30 MW (Megawatts); PCH (Pequenas Centrais Hidreltricas) para aquelas com capacidade instalada entre 1 MW e 30 MW; e CGH (Centrais Geradoras Hidreltricas) para as com menos de 1 MW de capacidade instalada. A Usina Hidreltrica de Barra Grande tem potncia mxima instalada de 708 MW.

    3 O EIA um documento tcnico-cientfico composto por diagnsticos ambientais, anlise dos impactos

    ambientais do projeto e de suas alternativas, definio das medidas mitigadoras dos impactos negativos e de programas de acompanhamento e monitoramento. O RIMA um documento pblico que reflete as informaes e concluses do EIA. apresentado de forma subjetiva e adequada para compreenso de toda a comunidade. Para uma discusso sobre o EIA e o RIMA, ver Verdum e Medeiros (2006).

    4 As etapas do processo de licenciamento so: Licena Prvia (LP); Licena de Instalao (LI); Licena de

    Operao (LO).

  • 22

    diferentes Declaraes e Convenes internacionais, como em 1992 quando foi anfitrio da Conferncia das Naes Unidas de Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO 92).

    Vrios conceitos novos acabaram sendo aceitos pelo SE, pois a dicotomia efeitos diretos/indiretos no dava conta dos diferentes problemas sociais e ambientais. As noes de

    rea de influncia, de usos mltiplos, de insero regional e de monitoramento foram incorporadas ao EIA e ao RIMA. Vrios estudos foram encaminhados pela ELETROBRAS s

    universidades do pas, objetivando o aprofundamento do conhecimento sobre situaes especficas. No caso das populaes indgenas afetadas por projetos hidreltricos, o Instituto de Pesquisas Antropolgicas do Rio de Janeiro (IPARJ) realizou uma srie de estudos de caso, introduzindo os conceitos de externalidade, direito difuso e impacto global. Por esses

    conceitos compreende-se que esses tipos de empreendimento causam danos globais, isto , influenciam, em geral, deleteriamente todos os setores da vida de um povo indgena, desde a

    sua populao e as condies materiais de sua sobrevivncia at as suas concepes de vida e vises de mundo. Por sua vez esses danos raramente so exclusivos a um nmero populacional, mas atingem como um todo a uma etnia, a uma cultura (ELETROBRAS; IPARJ, 1988, p. 33-34).

    O avano no campo socioambiental interrompido na dcada de 1990, quando o SE brasileiro passou por um processo de privatizao, fundamentado internamente por uma nova verso do liberalismo econmico, mas diretamente relacionado com o contexto internacional, baseado na poltica da globalizao.5 Antes de privatizadas, as empresas estatais foram divididas, atendendo aos interesses do mercado (gerao, transmisso e distribuio/fornecimento). Na regio Sul, a ELETROSUL sofreu o processo de diviso, dando origem s empresas Centrais Geradoras do Sul do Brasil S.A. (GERASUL) e Empresa Transmissora de Energia Eltrica do Sul do Brasil S.A. (ELETROSUL). Pouco tempo depois, a GERASUL foi privatizada, sendo adquirida pelo grupo belga Tractebel Electricity & Gas International, integrante do grupo belga Suez. No que concerne ao mbito nacional, as atribuies do governo foram redirecionadas para o exerccio e controle de diferentes

    5 O SE o conjunto das empresas responsveis pela produo, transmisso e distribuio de energia eltrica.

    Antes do processo de privatizao, o SE tinha a predominncia das empresas estatais como marca e que eram responsveis por 95% do total da produo de energia no pas. As empresas federais eram principalmente geradoras e transmissoras; as empresas estaduais eram essencialmente distribuidoras, embora houvesse algumas grandes geradoras e transmissoras; havia poucas empresas privadas e eram de porte menor. Aps a privatizao, o SE muda a sua constituio, principalmente na produo, quando o Estado continua presente, mas est em forma de consrcio com as empresas privadas, sendo quase sempre financiador das obras, mesmo que o consrcio seja formado somente por empresas privadas. Portanto, atualmente, quando falamos em Setor Eltrico brasileiro, nos referimos ao Estado, mais as empresas estatais e as privadas.

  • 23

    empresas, como a Agncia Nacional de Energia Eltrica (ANEEL) e o Operador Nacional do Sistema (ONS).6

    O processo de privatizao das empresas distribuidoras e de gerao de energia eltrica e a obrigatoriedade de novos investimentos a ser realizados exclusivamente por

    agentes privados ou consrcios, entre outras medidas legais e institucionais, resultaram em alteraes significativas nas prticas de planejamento e implantao de usinas hidreltricas, afetando diretamente um processo que comeava a se institucionalizar no que diz respeito aos aspectos socioambientais (NUTI, 2007, p. 59).

    Depois de um perodo de esvaziamento e falta de planejamento da poltica energtica nacional, tivemos como consequncias a crise de abastecimento e o racionamento de energia

    com a possibilidade de um apago nos primeiros anos da dcada de 2000. Assim, visando resolver esses problemas, na gesto do primeiro governo Lula, se instituiu a Empresa

    Pesquisa Energtica (EPE), responsvel pelo setor, que estabeleceu prioridades e alternativas.7 A novidade no foi a mudana de matriz energtica, ao contrrio, o governo federal reafirmou a hidroeletricidade como prioritria para a demanda crescente de energia e a retomada do planejamento sistemtico da expanso com a elaborao de planos nos horizontes de dez a trinta anos. Contudo, aliado ao perodo de privatizao, que representou um processo de desregulao do SE, a retomada de planejamento no representa a institucionalizao de uma poltica socioambiental.

    nesse contexto que os dados sobre o deslocamento populacional compulsrio permanecem sem atualizao e insuficientes, deixando a maior parte das solues para o

    mbito das negociaes individualizadas, projeto a projeto, como foi o caso de Barra Grande e outras UHEs.8 E isso inicia ainda nos estudos preliminares e nos EIA-RIMAs elaborados,

    6 A Agncia Nacional de Energia Eltrica (ANEEL) uma autarquia especial vinculada ao Ministrio de

    Minas e Energia (MME), criada em 1996, que tem como funes: regular e fiscalizar a gerao, a transmisso, a distribuio e a comercializao de energia eltrica. Mais informaes no stio eletrnico: . O Operador Nacional do Sistema (ONS) uma pessoa jurdica de direito privado, sob a forma de associao civil, criado em 1998, responsvel pela coordenao e controle da operao das instalaes de gerao e transmisso de energia eltrica no Sistema Interligado Nacional (SIN), sob a fiscalizao e regulao da Agncia Nacional de Energia Eltrica (ANEEL). Mais informaes no stio eletrnico: .

    7 A Empresa de Pesquisa Energtica (EPE) foi criada em 2004 para a elaborao de estudos e pesquisas destinadas a subsidiar o planejamento do setor energtico, tais como energia eltrica, petrleo e gs natural, carvo mineral, fontes energticas renovveis e eficincia energtica, dentre outras. Est sob a coordenao do Ministrio de Minas e Energia. Mais informaes no stio eletrnico: .

    8 Inmeros conflitos foram gerados por todo o Brasil pela indefinio de uma poltica socioambiental. Como

    exemplos prximos, da mesma Bacia Hidrogrfica, citam-se a construo das barragens Foz do Chapec e Monjolinho. A barragem Foz do Chapec, construda no rio Uruguai entre os municpios de guas de Chapec (SC) e Alpestre (RS), pertence ao consrcio Foz do Chapec Energia, composto pelas empresas CPFL (51%), Furnas (40%) e CEEE-GT (9%). A usina tem potncia instalada de 855 MW e um investimento de mais de R$ 2 bilhes, sendo que cerca de 70% foi financiado pelo BNDES. A obra foi considerada uma

  • 24

    sendo que o nmero de famlias atingidas varia antes, durante e aps a construo, aumentando consideravelmente. At mesmo o reconhecimento de quem atingido, e como e quais so as formas de indenizao depende de cada caso, da empresa, do rgo de financiamento e, principalmente, da fora da mobilizao da populao afetada.9

    Nesse sentido, os casos como a UHE Barra Grande apontam para a atualizao de conflitos entre os quais se contrapem tentativas de desterritorializao e reterritorializao

    promovidas pelo Estado e/ou empresas privadas como a Barra Grande Energtica S.A. (BAESA)10 e os processos de reterritorializao distintos que visam manuteno do territrio para as famlias e comunidades rurais, reelaborando estratgias, identidades e discursos no processo de luta pelo reconhecimento como atingido e pela defesa de seus direitos territoriais.

    No processo de reterritorializao, vrios interesses so confrontados, apresentando uma heterogeneidade de modalidades de remanejamento populacional, dependendo do projeto e da empresa, das estratgias dos atingidos e mudando durante a implantao da mesma obra. Em um levantamento realizado por Nuti (2007) sobre as modalidades de remanejamento populacional utilizadas no pas, destacam-se: indenizao, reassentamento urbano ou relocao, reassentamento rural ou reassentamento em reas remanescentes e carta de crdito. Em Barra Grande, foram utilizadas a indenizao em dinheiro, principalmente para os

    das prioridades do PAC 1. O consrcio j tinha implantado o canteiro de obras e recrutado mais de 2.400 funcionrios, mas no encaminhado o destino das 1.500 famlias atingidas (dezembro de 2006). Em 2008, o conflito gerado levou a enfrentamentos diretos entre os atingidos e a polcia. Alm de feridos, vrios agricultores foram presos. Como forma de pressionar para resolver a situao das famlias, ocorreu a ocupao do canteiro de obras. A paralisao da obra ocorreu at ser fechado um acordo para o reconhecimento e o encaminhamento das famlias atingidas. Ao final, 2.400 famlias foram reconhecidas pelo consrcio. O fechamento das comportas da barragem ocorreu em 2010. A barragem de Monjolinho foi construda no rio Passo Fundo (junho de 2007) entre os municpios de Nonoai e Faxinalzinho, abrangendo tambm Benjamim Constant do Sul e Entre Rios do Sul, norte do RS. O empreendimento, que tem potncia de 74 MW, teve investimentos da ordem de R$ 281 milhes financiados pelo BNDES. Pertence a Monjolinho Energtica S.A. Monel que uma empresa pertencente a Desenvix S.A. controladora da Engevix Engenharia. O conflito socioambiental gerado foi com as comunidades indgenas atingidas pela formao do lago. Em junho de 2009, a empresa fechou as comportas da barragem antes de resolver os problemas com as famlias e revelia da justia, que havia expedido uma liminar proibindo o enchimento do lago. O TRF da 4 Regio reconheceu que o enchimento do lago seria prejudicial s comunidades indgenas. A continuidade do alagamento gerou um protesto dos indgenas prximo barragem, reprimido pela polcia gacha, ferindo vrios manifestantes. O abuso da fora repressiva repercutiu negativamente, aliado ao reconhecimento da violao dos direitos humanos. O fato gerou audincias pblicas entre MPF, FUNAI, FEPAM, BNDES, IBAMA, Engevix e os indgenas. Alm da presso institucional, os indgenas continuaram mobilizados e acampados at o reconhecimento de suas reivindicaes. A UHE entrou em operao em setembro de 2009.

    9 A disputa em torno do conceito de atingido se expressa no nmero de atingidos no Brasil at hoje, sendo

    motivo de divergncia, enquanto que o Movimento dos Atingidos por Barragens refere-se a um milho de atingidos, os representantes do SE variam suas informaes em torno de 300 mil pessoas afetadas.

    10 O Consrcio BAESA Energtica Barra Grande S.A. formado por Alcoa Alumnio S.A., com 50% das cotas de capital financeiro, a Companhia Paulista de Fora e Luz Ltda. (CPFL), com 25%, a Companhia Brasileira de Alumnio Ltda. (CBA), com 5%, a Camargo Correa S.A., com 9%, e a DME Energtica Ltda., com 8%.

  • 25

    proprietrios de terras. Para o restante dos proprietrios e no proprietrios (arrendatrios, agregados, parceiros ou residindo em terras devolutas), trs foram as opes: a carta de crdito11, o Reassentamento Rural Coletivo (RRC) e os reassentamentos em reas remanescentes locais prximos do reservatrio que no foram alagados e se encontram fora

    da rea de proteo ciliar. Os impactos socioambientais se apresentam para todos os atingidos, principalmente

    relacionados ao territrio. No entanto, por causa da heterogeneidade sociocultural e econmica da populao afetada (latifundirios e pequenos proprietrios e no proprietrios, ribeirinhos, quilombolas, colonos, caboclos etc.), as consequncias so distintas, tanto no que se refere s possibilidades de negociao com a empresa quanto s condies de vida e

    reproduo socioeconmica. Esses efeitos submetem as estratgias de vida dos grupos envolvidos.

    A maioria da populao rural dos municpios atingidos pela implantao da barragem Barra Grande constituda de pequenos proprietrios, que produzem uma agricultura de subsistncia, associada produo orientada para o mercado, em maior ou menor grau. Essa populao pertence, sobretudo, a dois grupos socioculturais distintos: caboclos ou brasileiros e colonos, designao para os migrantes italianos, na sua maioria. A estes, as prticas de sobrevivncia esto organicamente vinculadas terra e aos demais espaos que ocupam. Segundo Bloemer (2000), isso significa uma ntima relao entre organizao social, econmica, espao fsico ocupado e ordenamento territorial. Mesmo podendo possuir caractersticas idnticas em relao terra e ao meio ambiente, possuem diferenas culturais,

    e s vezes internas no mesmo grupo. Nesse contexto, a problemtica da pesquisa est voltada para os estudos das relaes

    do deslocamento compulsrio a partir da implantao de usinas hidreltricas e suas implicaes sociais em populaes rurais. Desse modo, este estudo norteado pelas seguintes perguntas: O que acontece com os agricultores ao se deslocarem foradamente? Quais so as estratgias dos grupos socioculturais na reterritorializao? Quais so as novas territorialidades surgidas? Qual o papel da resistncia em todo processo? Passados alguns anos, como est a situao dos atingidos?

    Esta dissertao pretende trazer reflexes a esses questionamentos. Portanto, o objetivo geral compreender a dinmica de reorganizao territorial, as mudanas nas

    11 A definio da BAESA para essa modalidade foi autorreassentamento por meio da carta de crdito.

  • 26

    unidades familiares produtivas e as consequncias nos diferentes grupos socioculturais, resultantes dos impactos sobre os atingidos pela implantao da barragem Barra Grande.

    Os objetivos especficos a serem alcanados so: a) analisar as mudanas sociais provocadas pela reterritorializao nos diferentes

    grupos socioculturais;

    b) identificar as diferentes estratgias utilizadas pelos atingidos e pela empresa na reterritorializao;

    c) compreender as alteraes ocorridas aps o deslocamento compulsrio nos valores socioculturais sobre a terra e o meio ambiente.

    O estudo orientou-se por duas hipteses principais:

    a) a reterritorializao impe mudanas nos usos da terra, na percepo e relao com o meio ambiente, determinando a perda de autonomia dos atingidos;

    b) a organizao dos atingidos em um movimento social redefine as modalidades de remanejamento populacional e gera formas de sociabilidade mais abertas com a sociedade regional.

    A relevncia desta dissertao justifica-se pela existncia de processos de desterritorializao e reterritorializao de muitas comunidades rurais pela implantao de barragens, como Barra Grande, considerando que inmeras outras esto planejadas para a Bacia Hidrogrfica do Rio Uruguai. Pretende-se, ento, colaborar na identificao e no reconhecimento da heterogeneidade sociocultural, na reflexo dos efeitos socioambientais e sobre a situao dos atingidos alguns anos depois da reterritorializao, alm da

    problematizao da concepo de projetos dessa natureza; assim como contribuir na crtica das polticas pblicas e das propostas de institucionalizao de uma poltica socioambiental

    pelo SE brasileiro. A seguir, realizado um breve histrico sobre o envolvimento com o tema para

    entender o porqu da definio do objeto da pesquisa. Tambm sero expostos e detalhados os procedimentos metodolgicos, a busca de dados de fontes primrias e secundrias e a

    definio da rea de estudo, da populao, da amostra e das tcnicas auxiliares como entrevistas, observao direta e documentao fotogrfica.

    1.1 Histrico

    O interesse pelo tema comeou no ano de 2004, quando, ainda graduando de Cincias

    Biolgicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), tornou-se pblica a

  • 27

    fraude no licenciamento da barragem Barra Grande, em que foi descoberta a omisso no EIA-RIMA da rea a ser inundada, composta em torno de 2 mil hectares de florestas primrias ou em fase avanada de regenerao, alm de 4 mil hectares com vegetao secundria, submersos com o enchimento do lago no final de 2005.

    Na poca, participava das pesquisas no Laboratrio de Ecologia Aqutica do Departamento de Ecologia da UFRGS que focavam os cursos dgua e suas relaes

    ecolgicas. A rea de estudo localizava-se no municpio de So Francisco de Paula, na regio dos Campos de Cima da Serra, onde tambm est situada a UHE Barra Grande.

    No primeiro momento, a maior preocupao em relao construo da barragem foi com os impactos ambientais, tanto para o rio como para a flora e a fauna. A polmica em

    torno da fraude do EIA e a continuidade da obra comeou a ter repercusses estaduais e logo em seguida nacionais, principalmente com a divulgao da omisso contida no EIA-RIMA.

    Inmeras Organizaes No Governamentais (ONGs) ambientalistas comearam a se incorporar resistncia realizada pelos agricultores afetados.

    Naquele ano, professores e estudantes da UFRGS organizaram sadas de campo regio a ser inundada. Uma dessas idas foi realizada de nibus, com mais de 40 pessoas, com o objetivo de conhecer e levantar mais dados ambientais. Nesse momento, se descobriu a situao social vivida pelas famlias afetadas, pois a construo da barragem j estava em processo avanado e inmeras famlias no tinham sido reconhecidas como atingidas. Como forma de resistncia e presso, as famlias estavam h dias acampadas na Capela So Jorge no municpio de Pinhal da Serra (RS), bloqueando a estrada de acesso ao canteiro de obras, no permitindo que os funcionrios passassem, paralisando a obra e, principalmente, os trabalhos de supresso da vegetao. O mesmo bloqueio estava acontecendo do lado catarinense, na

    estrada de acesso obra em Anita Garibaldi (SC). A principal reivindicao era o reconhecimento daquela populao como atingida pela barragem.

    Naquele final de semana, alm de conhecer as florestas omitidas no EIA-RIMA, com alto grau de conservao, cheias de araucrias centenrias, tambm se visitou as comunidades,

    propriedades e casas que iriam ser afetadas ou alagadas. E foram relatadas muitas histrias, do passado e do presente, de pessoas simples, mulheres, jovens, idosos, todos agricultores, que viviam da terra, ameaados pela construo da barragem. A partir daquele momento, o movimento dos atingidos recebeu o apoio dos estudantes, professores e ambientalistas e incorporou a questo ambiental na pauta de reivindicaes.

    Na esfera judicial, inmeras iniciativas foram tomadas pelas ONGs, na esperana de ver reconhecida, pelo Poder Judicirio, a fraude existente no processo de licenciamento

  • 28

    ambiental. Em primeira instncia processual, chegou-se a obter duas medidas liminares, a primeira suspendendo os efeitos das licenas ambientais concedidas, e a segunda proibindo o IBAMA a conceder Licena de Operao (LO) ao empreendimento at que se terminasse a realizao de prova pericial na rea a ser inundada. Tais medidas liminares foram cassadas no

    Tribunal Regional Federal (TRF) da 4 Regio, com o argumento de que a questo foi trazida tardiamente para a apreciao do Poder Judicirio. A LO foi obtida em junho de 2005 atravs da assinatura de um Termo de Compromisso (TC).12 No dia 1 de julho de 2005, o enchimento do reservatrio comeou. Mas nem todos os atingidos tinham sido reconhecidos ou remanejados.

    Quando h a emisso da LO, o comeo do enchimento do lago e o consequente incio das operaes da hidreltrica caracterizam o fim de uma etapa, pois para os defensores ou para os opositores da usina, a maioria dos argumentos e da movimentao girava em torno do

    questionamento ao seu funcionamento, com seus prs e contras. O fato consumado do funcionamento favorece ao empreendedor, j que no h mais tanta exposio pblica, no h mais a possibilidade de reverso do enchimento sem danos ambientais e o objetivo principal que a gerao de energia foi alcanado, independente de como isso foi feito. Mas para os atingidos, mesmo reconhecidos alguns de seus direitos, continuam sendo afetados e precisam se reterritorializar, o que representa inmeras mudanas e o surgimento de novos problemas.

    1.2 Metodologia

    A pesquisa foi conduzida sob uma perspectiva qualitativa, mediante utilizao de entrevistas semiestruturadas, observao direta e documentao fotogrfica, aliados aos dados

    provenientes de fontes primrias e secundrias. Na fase exploratria da pesquisa, fez-se uma reviso da literatura referente ao modelo e ao SE brasileiro, o seu histrico e as transformaes ocorridas nas ltimas dcadas, consequncias dos diferentes momentos polticos e econmicos. Assim como, especificamente, uma atualizao sobre a construo de

    barragens e a produo de energia a partir das hidreltricas e seus impactos socioambientais. Ao mesmo tempo, elaborou-se a caracterizao da rea (histrico, ambiente e economia) e da populao atingidas pela implantao da UHE Barra Grande. Para isso reunimos dados extrados de material impresso livro e boletins mensais e on-line da BAESA, do EIA-

    12 Assinado o Termo de Compromisso (IBAMA, MME, MMA, MPF, AGU) com o objetivo de dar continuidade ao processo de licenciamento do empreendimento (emisso de Autorizao da Supresso da Vegetao), estabelecendo diretrizes gerais para a elaborao do Termo de Referncia para a Avaliao Ambiental Estratgica Integrada dos Aproveitamentos Hidreltricos localizados na Bacia Hidrogrfica do Rio Uruguai.

  • 29

    RIMA, publicaes e material eletrnico de diversas ONGs, do MAB, das prefeituras e outros rgos pblicos como EMATER/RS, EPAGRI/SC, FEPAM, ELETROSUL, IBAMA, IBGE, ANEEL, MME e MMA.

    Essa fase tambm foi contemplada com trs sadas de campo de carter exploratrio

    (novembro de 2009, maio e agosto de 2010), envolvendo o conhecimento dos municpios e das comunidades atingidas, a realizao de entrevistas-chave com autoridades (prefeitos, secretrios e vereadores), militantes e lderes do movimento, sindicalistas, comerciantes, lideranas e moradores locais. Essa etapa foi importante para a preparao e o planejamento da entrevista a ser realizada, assim como conhecimento prvio de alguns entrevistados (caboclos e colonos, mesclando mulheres e homens chefes de famlias), as oportunidades das entrevistas, os horrios e as condies favorveis para serem aplicadas.

    importante destacar que a fase exploratria foi responsvel por incorporar novos elementos na pesquisa, como a heterogeneidade dos grupos socioculturais atingidos, principalmente os caboclos que no so reconhecidos na histria oficial dos municpios e tambm esto ausentes na maioria da literatura acadmica sobre a regio dos Campos de Cima da Serra, pois na histria oficial a regio comea a ser ocupada com a colonizao dos migrantes europeus, principalmente italianos conhecidos como colonos no final do sculo XIX. Nesta dissertao, alm de resgatar o histrico de ocupao da regio por diversos grupos, demonstramos a participao efetiva dos caboclos no processo de resistncia implantao da barragem.

    Em todas as sadas de campo, foi visitada a sede da empresa BAESA, localizada no

    municpio de Anita Garibaldi (SC). Alm de informaes bsicas obtidas com os funcionrios responsveis, tivemos somente acesso aos materiais publicados periodicamente, como

    tambm um livro sobre a usina e informaes contidas no stio eletrnico da empresa. Em cada ocasio de visita, solicitamos maiores informaes sobre as famlias atingidas e dados sobre as modalidades de remanejamento populacional, que no foram obtidas. As visitas e as solicitaes de materiais foram marcadas por um clima de desconfiana por parte dos

    funcionrios, e as perguntas mais complexas sobre a barragem no foram respondidas. As que foram, eram encaminhadas para os empregados com hierarquia superior dentro da empresa,

    quando presentes na sede.13 A justificativa fora sempre que as respostas e as solicitaes, como os dados das famlias, no poderiam ser entregues naquele momento, sendo necessrio

    13 Um dos questionamentos feitos e no respondidos foi: Atualmente, quantos funcionrios trabalham na usina hidreltrica?. A informao dada por vrios informantes, como alguns funcionrios pblicos das prefeituras, que seriam 24 trabalhadores.

  • 30

    encaminhamento do pedido ao setor responsvel dentro da empresa. Porm, no obtivemos retorno e conclumos que a falta de acesso s informaes faz parte de todo um processo de desorientao sobre as informaes reais desde o projeto e que continua sendo realizado aps a implantao da barragem e o funcionamento da UHE.

    Alm da falta de informaes, a nossa presena na regio e circulao na rea prxima barragem era vista com muita desconfiana por funcionrios da empresa. O fato mais

    marcante ocorreu em uma das sadas exploratrias, quando o pesquisador e o acompanhante estavam fotografando o reservatrio no mirante da barragem e dois funcionrios uniformizados adentraram com um veculo no estacionamento, aproximaram-se do carro do pesquisador, fotografaram, anotaram a placa e em seguida foram embora sem nada dizer. O

    fato, alm de reafirmar o incmodo, significou uma forma de intimidao em relao a nossa presena na regio.

    A segunda etapa da pesquisa foi marcada pelo trabalho de campo propriamente dito, totalizando outras quatro sadas (duas em novembro e duas em dezembro de 2010). Alm da observao direta, foram feitas entrevistas no estruturadas com base na perspectiva da histria oral, procurando obter informaes sobre o processo de territorializao-desterritorializao-reterritorializao (T-D-R), sobre as mudanas provocadas, a situao atual e a perspectiva das famlias.

    O universo emprico constitudo por agricultores deslocados compulsoriamente pela implantao da barragem Barra Grande e que hoje ocupam localidades e reassentamentos situados nos municpios de Anita Garibaldi (SC), Pinhal da Serra (RS) e Esmeralda (RS).14 A escolha por esses trs dos nove municpios atingidos se deve localizao da barragem, pois neles encontra-se a maior concentrao da rea alagada pelo reservatrio, como tambm os

    maiores impactos decorrentes da obra, expressos no nmero de famlias atingidas. Localizam-se, atualmente, nesses municpios, cinco dos sete Reassentamentos Rurais Coletivos (RRC). Outro fator considerado a distncia entre os municpios, percorridos na maior parte por estradas de cho batido, com difcil trafegabilidade, principalmente nos dias de chuva,

    considerando o tempo e os recursos para as pesquisas.15

    14 So nove os municpios atingidos pela hidreltrica, cinco no estado de Santa Catarina (Anita Garibaldi, Campo Belo do Sul, Capo Alto, Cerro Negro e Lages) e quatro no estado do Rio Grande do Sul (Pinhal da Serra, Esmeralda, Bom Jesus e Vacaria). Durante o processo de reterritorializao, muitas famlias instalaram-se em municpios no atingidos, como Concrdia (SC) e Caxias do Sul (RS).

    15 O comentrio sobre as condies das estradas necessrio, pois foi uma grande dificuldade para a realizao das pesquisas de campo, considerando tambm o fato de chover muito na regio, principalmente no inverno. A precariedade das estradas resultou em danos no carro utilizado para o campo. E sobre a trafegabilidade delas, o pesquisador tem experincia de vida, pois nasceu e cresceu no interior do municpio de Srio (RS) na

  • 31

    No total, foram gravadas entrevistas com 23 famlias, contempladas nas modalidades de RRC (13) e de autorreassentamento por carta de crdito (10), das quais participaram homens e mulheres chefes de famlia, com a presena, em muitas das vezes, de toda a famlia: marido, esposa, filhos e filhas.16 Mas, nesses casos, eram somente os/as chefes de famlia que

    falavam. A escolha dos entrevistados se deu pela proximidade surgida durante a realizao do campo exploratrio, assim estes foram indicando vizinhos, familiares e outros agricultores,

    reassentados ou autorreassentados, alternando as identidades socioculturais: caboclos e colonos.

    A amostra foi sendo determinada durante a realizao das entrevistas, aps a percepo e anlise das informaes obtidas pela transcrio das mesmas. O nmero das

    famlias entrevistadas correspondeu s informaes necessrias referentes aos objetivos da pesquisa, pois as informaes estavam se repetindo, se saturando, a cada nova entrevista, no

    surgindo novos elementos. Como so municpios com populao pequena onde todos os habitantes se conhecem,

    a presena do pesquisador e do acompanhante era percebida tanto pelos muncipes, de certa forma com desconfiana, quanto pelos no moradores, constatado esse fato pela presena constante do carro com placa de fora do municpio. Esse carro quase sempre era relacionado com os funcionrios da empresa BAESA, j que desde o comeo da construo da barragem muitos estrangeiros passaram pela regio. Depois de uma breve conversa e apresentao dos motivos da nossa presena e circulao entre os moradores e entrevistados, o estranhamento sumia.

    O mesmo acontecia nas localidades e/ou RRCs. Para os entrevistados e as famlias, a desconfiana desaparecia quando havia a referncia ou a indicao de algum lder

    comunitrio ou do movimento sobre os reais motivos da nossa presena. Para isso, foi fundamental um contato inicial e anterior entrevista, estabelecendo desde o incio um dilogo amistoso e franco para explicar a finalidade, o objetivo e a relevncia da pesquisa, ressaltando a importncia da participao.

    Para os atingidos, essa desconfiana a estranhos era reforada, pois vinha desde o incio da desterritorializao, quando da presena dos primeiros funcionrios das empresas a

    servio do consrcio construtor para fazer o cadastro das famlias. Como a relao entre

    regio do Vale do Taquari, que possui quase toda malha rodoviria composta de estradas de cho batido, mas em condies melhores que as encontradas na regio dos Campos de Cima da Serra.

    16 Para facilitar a compreenso, usamos a expresso reterritorializados para todos os atingidos, independente da modalidade de remanejamento populacional; reassentados para os atingidos da modalidade RRC; e autorreassentados para os atingidos da modalidade autorreassentamento por carta de crdito.

  • 32

    ambas as partes foi conflituosa, com inmeros momentos de tenso, estranhos no so bem-vindos. Outra relao feita pelos atingidos sobre a presena dos pesquisadores era de serem funcionrios do governo, como do IBAMA, por causa da fiscalizao ambiental ou de algum banco, por causa da cobrana de dvidas, o que demonstra a tenso ainda existente entre

    instituies oficiais (privadas ou pblicas) e a populao. A resistncia em receber estranhos e dar entrevistas era maior nas famlias caboclas, sendo que em muitas destas foi

    necessria uma breve apresentao do pesquisador por algum conhecido na localidade. Assim, passado esse primeiro contato e cientes dos motivos daquela presena, qualquer desconfiana desaparecia ou se atenuava com a boa recepo e a hospitalidade de todos os entrevistados e suas famlias.

    Quando realizadas prximas s residncias, alm do convite para entrar na casa, sentar-se mesa da sala ou da cozinha para a realizao das entrevistas, eram oferecidas

    bebidas (chimarro, gua, caf, leite, suco e cachaa) e comidas (po, biscoitos, frutas, doces e geleias). Durante ou ao final das entrevistas, dependendo do turno do dia, surgiam convites para permanecer ou retornar para almoar ou jantar, ou conhecer o restante da famlia. Aps as entrevistas, fazendo parte da observao, vinham os convites para observar o entorno da casa, o lote, os animais e os cultivos, tudo mostrado com orgulho pelos agricultores, mesmo havendo dificuldades na unidade produtiva.

    Como os entrevistados so agricultores e esto na maior parte do dia na roa, foram necessrios alguns horrios especficos para a realizao das entrevistas, como no perodo do meio-dia e ao entardecer. Devido aos desencontros de horrios, os imprevistos, a distncia

    entre os moradores e as estradas precrias, foram possveis, em mdia, de 2 a 3 entrevistas por dia. Elas duravam em torno de 2 a 3 horas, sendo gravados, em geral, de 30 a 50 minutos.

    Nos meses de janeiro e fevereiro de 2011, foram realizadas as transcries completas de todas as entrevistas, sendo em seguida feita a anlise dos dados referentes aos objetivos da dissertao. Inmeras informaes das entrevistas somente ganharam sentido quando analisados com os conceitos tericos, j identificados ou descobertos com a (re)leitura das publicaes.

    A identidade nominal dos entrevistados no revelada, seus nomes no so citados

    devido tenso ocorrida durante a reterritorializao e ainda existente entre as instituies oficiais (pblicas e privadas), destacando a empresa BAESA e a populao atingida. Tambm no so nomeados os reassentamentos. As referncias das entrevistas so identificadas pelas siglas com as iniciais do gnero (Homem ou Mulher), pelo grupo sociocultural pertencente (Caboclo ou Italiano) e pela sua modalidade de remanejamento populacional

  • 33

    (Reassentamento ou Autorreassentamento), e numeradas na ordem cronolgica do tempo conforme a realizao das entrevistas.17

    Uma das dificuldades para a realizao dos campos de pesquisa foi a distncia at a rea de estudo (Figura 1). O municpio de Pinhal da Serra (RS) dista em torno de 340 quilmetros de Porto Alegre. preciso tambm considerar as distncias entre os municpios, entre as localidades e os reassentamentos pesquisados, muitas vezes distantes das sedes

    municipais. Ao todo foram realizadas sete sadas com o carro do pesquisador. A utilizao do veculo foi fundamental, alm da precariedade ou inexistncia de um transporte coletivo na regio, considerando o tempo e o oramento da pesquisa. Nas trs sadas exploratrias, foram visitados os municpios atingidos pelo lago, exceto Lages (SC). Nas outras quatro sadas, foram percorridos os trs municpios da unidade de pesquisa: Anita Garibaldi (SC), Pinhal da Serra (RS) e Esmeralda (RS) (Figura 2). Os municpios gachos esto localizados no COREDE Campos de Cima da Serra.18

    Figura 1 Mapa da localizao da UHE Barra Grande na divisa entre os estados Rio Grande do Sul e Santa Catarina.

    Fonte: Elaborado por Zvirtes (2011).

    17 Exemplos da referncia das entrevistas: Homem, Italiano e Reassentado, entrevista n 21 (HIR/21); Mulher, Cabocla e Autorreassentada, entrevista n 11 (MCA/11). Na categoria dos colonos, alm dos italianos, aparecem duas entrevistadas portuguesas (P) e um alemo (A).

    18 O estado do Rio Grande do Sul dividido em 28 unidades de planejamento, os chamados COREDES (Conselhos Regionais de Desenvolvimento). Os COREDES so caracterizados por seus aspectos culturais e territoriais. Nesse sentido, a regio dos Campos de Cima da Serra est localizada no Nordeste do estado e composta pelos seguintes municpios: Vacaria, So Jos dos Ausentes, Bom Jesus, Esmeralda, Pinhal da Serra, Monte Alegre dos Campos, Campestre da Serra, Ip, Muitos Capes e Andr da Rocha.

  • 34

    Figura 2 Mapa da localizao dos municpios atingidos pelo reservatrio da barragem Barra Grande.

    Fonte: Elaborado por Zvirtes (2011).

    Um breve histrico da formao e informaes gerais dos trs municpios estudados

    esto sintetizados no Quadro 1, nesta introduo, ressaltando que a histria oficial, tanto divulgada pelas prefeituras, como parte da literatura acadmica, comea somente com a

    chegada dos colonos italianos. A territorializao da regio onde se localizam os municpios atingidos pelo lago da

    barragem foi realizada por humanos pr-histricos com registros datados em torno de 10.000 A.P. (Antes do Presente), o que mais tarde originou vrios grupos indgenas. Somente no incio do sculo XIX, registrou-se a passagem de povoadores paulistas e gachos. A regio serviu de rota para os tropeiros, mas alguns locais foram escolhidos para acampamento, como

    o local onde hoje situa-se a Prefeitura de Anita Garibaldi. Nesse local eram efetuadas trocas de equinos, ficando o lugar conhecido como Rinco dos Baguais. Denota-se, pela toponmia, a nomenclatura rinco como registro da presena dos caboclos.19

    19 A toponmia o estudo dos nomes atribudos aos lugares tambm pode ajudar no trabalho do pesquisador que emprega uma abordagem territorial e ambiental ou que busca informaes sobre grupos sociais que vivem ou ali viveram.

  • 35

    Em 1900, chegaram as primeiras famlias de migrantes italianos, oriundos das primeiras colnias de imigrantes europeus.20 Em 1905, surgiram o primeiro estabelecimento comercial e a primeira escola. Poucos anos depois, em 1912, em homenagem ao governador do estado, Herclio Luz, os colonizadores deram o nome de Colnia Herclio Luz. Se verifica

    a alterao de um nome atribudo pelos caboclos (Rinco) por outro definido pelos novos habitantes (Colnia), os colonos europeus. O atual nome do municpio uma homenagem passagem de Anita Garibaldi, representada por uma esttua em frente Prefeitura (Figura 3).21 Outra esttua localizada na sede do municpio em homenagem colonizao italiana (Figura 4).

    Figura 3 Esttua em homenagem Anita Garibaldi, localizada em frente da Prefeitura Municipal de Anita Garibaldi-SC.

    Fonte: Cssio Rabuske (2010).

    20 Estas foram as primeiras famlias italianas: Paulino Granzotto, Eduardo Salmria, Luiz Gracietti e Joaquim Fermino Varela.

    21 Anita Garibaldi nasceu na cidade catarinense de Laguna e seu nome original era Ana Maria de Jesus Ribeiro. considerada a herona de Dois Mundos, por ter lutado na Revoluo Farroupilha e na unificao da Itlia. A histria registra que aps uma batalha, estava Anita procura de seu marido, Giuseppe Garibaldi, quando foi presa pelos inimigos na localidade de Curitibanos. Entregue a dois milicianos, conseguiu fugir e embrenhar-se nas matas, ocasio em que passou pelo local mais tarde denominado Anita Garibaldi em homenagem sua bravura.

  • 36

    Figura 4 Esttua em homenagem colonizao italiana localizada no municpio de Anita Garibaldi-SC.

    Fonte: Otvio do Canto (2010).

    A emancipao ocorreu em 1961, desmembrando-se de Lages. Atualmente conhecida como a Cidade dos Lagos, ttulo recebido recentemente na Assembleia Legislativa Catarinense, pela presena em seu territrio de inmeros lagos formados pelas UHEs Machadinho, Campos Novos e Barra Grande.

    A toponmia tambm contribui para ajudar na construo histrica dos dois municpios gachos estudados. A primeira denominao de Esmeralda foi Fazenda So Joo. Mais tarde passou a ser vila e denominou-se So Joo Velho. So Joo por ser o santo padroeiro, e

    Velho por ser o sobrenome do doador do terreno da praa, Antnio Joaquim Velho. Vila Esmeralda surgiu em homenagem a um mdico que atendeu na localidade e props o nome.22 Foi elevada categoria de municpio com a denominao de Esmeralda em 1963, desmembrando-se do municpio de Vacaria.

    A formao do municpio de Pinhal da Serra mais recente. O primeiro povoado era denominado de So Jos dos Tocos. O nome teve como causa a grande quantidade de tocos,

    principalmente de guamirim (Guamirim felpudo), que havia sido derrubado para limpar a rea onde deveria ser formado o povoado. Em 1920, os moradores do ento So Jos dos Tocos, juntamente com moradores da Serra dos Gregrios, se uniram para construir uma capela em homenagem a So Jos. Em razo da construo da capela para So Jos, do desaparecimento

    22 O mdico Antnio Dias Fernandes atendia os doentes e dizia: Quando um dia mudarem o nome de So Joo Velho, troquem por Esmeralda, devido beleza de seus campos ondulados, suas matas abundantes e seus pinheiros verdejantes e tambm porque esta pedra preciosa verde, que a esmeralda do meu anel.

  • 37

    dos tocos e da existncia da grande quantidade de pinheiros nessa rea, o povoado passou a ser chamado de So Jos dos Pinhais.

    No dia 29 de novembro de 1938, a localidade de So Jos passou a ser chamada de Pinhal da Serra. Com o crescimento da populao, foi chamada de Vila Pinhal da Serra. Foi

    elevada categoria de municpio com a denominao de Pinhal da Serra em 1996, desmembrando-se do municpio de Esmeralda. No h nenhum registro oficial, mas segundo

    alguns informantes, a elevao da Vila a municpio se deu em razo da implantao da UHE Barra Grande.

    Quadro 1 Dados gerais dos municpios da unidade de pesquisa: Anita Garibaldi-SC, Pinhal da Serra-RS e Esmeralda-RS.

    Dados/Municpios Anita Garibaldi Esmeralda Pinhal da Serra Populao em 2010 9.141 3.168 2.130 rea da unidade territorial (Km2)

    637 830 434

    Altitude (m) 900 944 930 Data da criao 17/06/1961 27/11/1963 16/04/1996 Municpio de origem Lages Vacaria Esmeralda Principais atividades econmicas

    A agricultura e a pecuria so as principais fontes de renda, com destaque para a produo de milho, feijo, fumo, apicultura, piscicultura, vinicultura e a criao de sunos, gado de corte e de leite. Durante vrias dcadas do sculo XX, a principal atividade foi a madeireira, atravs da explorao dos pinheiros. Hoje, existe a retomada da atividade com a plantao de vastas reas com espcies de Pinus.

    A pecuria, com a criao do gado de corte e de leite. Na agricultura, destacam-se a soja, o milho e o trigo. Em menor escala: o feijo, a erva-mate, a aveia, a batata-doce e a batata-inglesa.

    A agricultura, a pecuria e a produo de energia hidreltrica. Na agricultura, destacam-se a produo de feijo, milho, trigo e soja. Na pecuria, criao do gado de corte e de leite.

    Fonte: Fundao de Economia e Estatstica (FEE, 2010) e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE, 2010).

    O segundo captulo, a seguir, destinado ao aprofundamento terico em relao s hidreltricas e ocupao do territrio. Alguns conceitos sero analisados, como desenvolvimento, territrio juntamente com seus derivados, a territorialidade, a territorializao, a desterritorializao e a reterritorializao , atingidos e identidade

    sociocultural.

  • 38

    Como a temporalidade do antes e depois marca o processo de construo da barragem Barra Grande, no terceiro captulo analisaremos o perodo at 1995, quando se obteve a licena para os estudos de viabilidade. Apresenta-se um resgate histrico da regio, destacando as caractersticas socioculturais, ambientais e econmicas, assim caracterizando as

    territorializaes ao longo do tempo. No captulo quatro, sero analisadas as temporalidades que marcam os perodos da

    construo da barragem (desterritorializao) e a ocupao de novos espaos pelos atingidos (reterritorializao). No h como definir datas-limite, porque os processos ocorreram simultaneamente. A usina foi construda entre os anos de 1995 a 2005, quando obteve a LO, enquanto que o deslocamento compulsrio comeou em 2002 e terminou somente aps o

    trmino da construo. O quinto captulo apresenta as consideraes de anlise da construo das

    territorialidades mediante o cruzamento das conceituaes tericas realizadas pela bibliografia existente, pelas entrevistas realizadas e a validao das hipteses elencadas. Nele tambm se destaca a importncia da construo do caboclo como expresso sociocultural especfica de um tipo de atingido, sujeito excludo em suas especificidades nas anlises at ento realizadas. Essa especificidade ressaltada, pois altera a relao da construo do processo de reterritorializao com base nas polticas indenizatrias das empresas do SE. Por fim, nas consideraes finais, so sistematizados e valorizados os aspectos inovadores da dissertao, que demonstram sua validade e viabilidade cientfica.

  • 39

    2 DESENVOLVIMENTO, TERRITRIO E OS GRANDES PROJETOS HIDRELTRICOS

    Quando estudamos um caso especfico da instalao de uma grande barragem em uma regio, alm de analisar os impactos locais e regionais, importante ressaltar que esta faz parte da poltica energtica nacional e que responde a um modelo de desenvolvimento

    proposto para o pas. Assim, para entendermos as consequncias que possam aparecer em uma escala menor, como o deslocamento compulsrio das populaes rurais, o olhar sobre a totalidade se faz necessrio para a busca do entendimento sobre a infinidade de questes relacionadas a esse processo, sejam elas sociais, econmicas, culturais, ecolgicas e polticas, associada a uma ideologia de progresso e desenvolvimento23, refletindo nas suas prticas de planejamento e interveno, repercutindo no cotidiano de quem participa e impactado pelas obras. Para Zhouri e Oliveira (2005), as grandes barragens geradoras de energia eltrica so cones de uma determinada concepo hegemnica de progresso e desenvolvimento, representando smbolos de atitude e poltica empreendedora moderna.

    A partir do sculo XVIII, solidificou-se nos centros do poder econmico do Ocidente um modelo de sociedade com base ideolgica nestes elementos: civilizao e progresso. A ideia de civilizao, iniciada com a descoberta do Novo Mundo, preconiza uma suposta superioridade cultural de uma sociedade em relao a outras, sendo que estas deveriam ser civilizadas. A ideologia do progresso24 com base positivista aponta o desenvolvimento econmico e tecnolgico como indicador inquestionvel do avano definitivo da cultura

    humana sobre as foras e os recursos da natureza. Em meados do sculo XIX, depois de aceita e assimilada pela comunidade cientfica, incorpora-se a teoria darwinista que explica a

    evoluo das espcies a partir de antecedentes em comum25 para o mundo social e assim

    23 Segundo Porto-Gonalves (2006), o desenvolvimento a verso moderna do progresso. A ideia de desenvolvimento est associada modernidade ser moderno ser desenvolvido, estar em desenvolvimento e, tambm aqui, se olvida de que a modernidade incompreensvel sem a colonialidade. Por isso, modernizar , sempre, expandir uma determinada ideia de progresso e, com ela, de colonizao dos povos e regies que so diferentes.

    24 Para uma discusso sobre o mito do progresso ou o progresso como ideologia, ver Dupas (2006).

    25 O termo evoluo tornou-se sinnimo de progresso, avano e aperfeioamento. Mesmo a Cincia comeou a usar a escala de evoluo para explicar o desenvolvimento das espcies em uma hierarquia organizada em uma trajetria linear e ascendente. A concepo da relao homem x natureza revelada da mesma forma, sendo que o patamar inferior da escala da evoluo humana representa a fase em que o homem primitivo est inserido no meio natural; medida que ele vai se distanciando desse mundo, vai adquirindo status de mais evoludo. Assim, a espcie mais evoluda aquela que tem o poder de dominar ou destruir as espcies consideradas inferiores. Essa forma de conceber a evoluo estimula e legitima processos de dominao no somente em relao s espcies no humanas, mas tambm em relao a culturas humanas que so qualificadas de primitivas, inferiores, atrasadas, selvagens ou menos desenvolvidas: precisa-se levar o desenvolvimento para aqueles atrasados.

  • 40

    estabelece uma hierarquia entre culturas, sociedades, instituies e naes.26 O desenvolvimento idealizado como a evoluo natural dos povos.27

    A consolidao da sociedade capitalista no sculo XIX aposta no carter inexoravelmente libertador do desenvolvimento das foras produtivas, caminho percorrido

    tambm pelos crticos ao capitalismo, na primeira metade do sculo XX, como o regime estalinista sovitico. No perodo ps-Segunda Guerra Mundial, h a consolidao da ideologia

    do desenvolvimento, inclusive elegendo o subdesenvolvimento28 como o grande vilo da histria para os pases do Terceiro Mundo (Amrica Latina, frica e sia).29 Na prpria ideia de subdesenvolvimento j est embutido o que seria a sua superao: o desenvolvimento.

    A ideologia desenvolvimentista ganhou fora no Brasil em meados da dcada de

    1950.30 A crise porque passava o capitalismo brasileiro fez com que se operasse um rearranjo das foras polticas e econmicas que vo constituir um novo bloco de poder.

    O debate do nacionalismo, at ento pensado em termos populistas (Era Vargas), deslocado afirmando que o verdadeiro nacionalista aquele que quer o desenvolvimento da nao. A hegemonia ideolgica passa a ser do nacional-desenvolvimentismo, atravs de uma nova articulao de classes dominantes nacionais com o imperialismo, tendo frente a burguesia industrial (PORTO-GONALVES, 1990, p. 30).

    Na dcada de 1960, as classes dominantes nacionais acreditavam que uma grande potncia econmica implicava na construo de um moderno parque industrial, ainda que ao preo de uma ordem poltica e social autoritria (Segurana e Desenvolvimento), efetivada pela associao aos setores militares e de um golpe poltico institudo em 1964. No campo, a concentrao de terras permaneceu, a Revoluo Verde iniciada nos anos 1950 foi

    26 Atualmente, a trade civilizao, progresso e evoluo ainda domina o pensamento intelectual hegemnico no Ocidente, espalhada para todos os cantos do mundo. Um exemplo disso a classificao dos pases conforme a evoluo do seu desenvolvimento: pases menos desenvolvidos, pases em desenvolvimento ou emergentes (Brasil) e pases desenvolvidos. Essas denominaes sugerem a ideia de evoluo em direo a uma condio melhor, mais avanada, como se existissem etapas a serem superadas.

    27 Nessa lgica eurocntrica, os povos primitivos da pr-histria, como os povos da Amrica e da Oceania, alm dos povos africanos, orientais e asiticos, aparecem na escala inferior do processo evolutivo, e do mundo natural aparece apenas como um recurso ou um entrave ou empecilho no caminho da civilizao.

    28 Aps a Segunda Guerra Mundial, foram introduzidas as expresses pases desenvolvidos e pases subdesenvolvidos s naes fortes e naes fracas econmica, poltica, cient